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Portuguese Pages 224 Year 2016
ATUALIDADES EM PSICOLOGIA JURÍDICA Eduardo Ponte Brandão (org.) Rio de Janeiro, 2016
© NAU Editora Rua Nova Jerusalém, 320 CEP. 21042-235 Rio de Janeiro RJ FONE [55 21] 3546 2838 [email protected] www.naueditora.com.br Coordenação editorial: Simone Rodrigues Revisão e preparação de textos: Angela Moss e Larissa Ventura Projeto gráfico e capa: Estúdio Arteônica Produção do arquivo epub: Melanie Guerra Imagem da capa: Shutterstock Conselho editorial: Alessandro Bandeira Duarte, Claudia Saldanha, Cristina Monteiro de Castro Pereira, Francisco Portugal, Maria Cristina Louro Berbara, Pedro Hussak e Vladimir Menezes Vieira CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ A898 Atualidades em psicologia jurídica [recurso eletrônico] Organização Eduardo Ponte Brandão. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Nau, 2016. 280 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia
ISBN 978-85-8128-067-7 (Ebook) 1. Direito - Aspectos sociais. 2. Psicologia forense. 3. Psicologia social. 4. Sociologia jurídica. I. Brandão, Eduardo Ponte. 16-30340 CDU: 340.6 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) sem permissão escrita da Editora. 1 a . edição Sumário Apresentação Prefácio Da execução à construção das leis: a psicologia jurídica no legislativo brasileiro Pedro Paulo Gastalho de Bicalho Uma leitura da genealogia dos poderes sobre a perícia psicológica e a crise atual na psicologia jurídica Eduardo Ponte Brandão Duas décadas e meia de vigência da Convenção sobre os Direitos da Criança: algumas considerações Esther M. M. Arantes Conselhos tutelares: defesa de direitos ou práticas de controle das famílias pobres? Maria Helena Zamora A lógica interventiva nas perícias em meio às disputas de famílias Sidney Shine Homoparentalidade e modos de vida Márcia Arán A dimensão trágica da alienação parental nos conflitos familiares: fragmentos da clínica Lenita Pacheco Lemos Duarte Psicanálise e as questões da perícia em meio às disputas familiares Eduardo Ponte Brandão
Responsabilidade: laço entre a Cidade e o paciente judiciário Renata Costa-Moura A “revista vexatória” e sua “utilidade” inconfessável no sistema penal brasileiro Cristina Rauter Violência e direitos humanos Maria Márcia Badaró Bandeira O psicólogo na Defensoria Pública do Rio de Janeiro: para além de assistente técnico, um mediador Silvia Ignez Silva Ramos As equipes técnicas no Judiciário: que relação é esta? Érika Piedade da Silva Santos Um lugar de palavra para adolescentes em situações de violência Paula Mancini C. M. Ribeiro Psicanálise, educação e direito da infância e da juventude: uma reflexão sobre a normatização, a sexualidade e o saber na clínica com adolescentes Aline Bemfica ; Marcone Mello Condições de trabalho: o cotidiano laboral de assistentes sociais e psicólogos no TJ/RJ Érika Piedade da Silva Santos ; Lindomar Expedito S. Darós Sobre os autores Eu estava esgotado – mortalmente esgotado por aquela longa agonia; e quando enfim me desataram, e foi-me dada a permissão de sentar, percebi que os sentidos me faltavam. (...) Vi os lábios dos juízes em seus mantos negros. Pareceram-me brancos – mais brancos que a folha em que traço estas palavras – e finos ao ponto mesmo do grotesco; finos com a intensidade de suas expressões de intransigência – de inamovível determinação – de austero desprezo pelo suplício humano. Vi que os decretos do que para mim era o Destino ainda saíam por aqueles lábios. Vi que se contorciam em mortal elocução. Vi que formavam as sílabas de meu nome; e estremeci, pois som nenhum adveio. (...) Então o universo se tornou silêncio, imobilidade e noite. Edgar Allan Poe “O Poço e o Pêndulo” Apresentação
A concepção deste livro corresponde a uma trajetória contingente, que se remete ao início do curso presencial de pós-graduação lato sensu em Psicologia Jurídica da Faculdade Integrada A Vez do Mestre (AVM), em 2002. Na ocasião, eu já fazia parte da primeira turma do primeiro concurso para o cargo de psicólogo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em 1999, e também era docente de outros cursos da AVM, sendo o momento oportuno para que fosse idealizado, lado a lado com outros companheiros que também fizeram ou ainda fazem parte do corpo docente, um curso acessível e, ao mesmo tempo, capaz de reunir aporte teórico, reflexão crítica e, sobretudo, experiência profissional. Na concepção desse curso, parti do pressuposto de que o docente deveria possuir, necessariamente, inserção profissional na matéria que estivesse lecionando. Ademais, acreditei que o curso poderia surgir como alternativa à tendência que, no Rio de Janeiro, envergava um campo tão novo e fecundo que era essa psicologia jurídica surgida no fim dos anos 1980, sob embalo da abertura democrática e dos direitos da criança e do adolescente, tanto para uma discussão monocórdica e unívoca entre leis jurídicas e lei simbólica (centrada em autores como Pierre Legendre, Irene Théry, dentre outros) quanto para reivindicações por leis com as quais, sem dúvida, havemos de concordar – mas que estão longe de esgotarem todos os problemas que inquietam o psicólogo quando se vê demandado a opinar tecnicamente sobre questões ligadas a guarda de filhos, habilitação de adultos para adoção, medidas aplicadas a adolescentes, denúncias de abuso infantil e violência doméstica, entre outros assuntos penosos. O curso foi muito bem aceito e, já em 2006, realizamos um seminário no auditório da Universidade Candido Mendes; depois, com o apoio generoso do professor Pedro Paulo Bicalho, fizemos uma parceria junto ao Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IP / UFRJ) e organizamos mais dois seminários em 2013 e 2014. Nesse ínterim, mais precisamente em 2004, a convite da NAU Editora, coorganizei em parceria com a professora Hebe S. Gonçalves o livro Psicologia Jurídica no Brasil, o qual se tornou uma importante referência para a formação e seleção de profissionais tanto da psicologia quanto de áreas afins. Vale dizer que o sucesso desse projeto foi tal que ele recebeu uma nova versão, mais completa e atualizada, no ano de 2011. Nesse compasso, a NAU Editora fez um novo convite para a obra que o leitor tem agora em mãos, cuja proposta foi organizar parte das excelentes palestras que compuseram os dois últimos seminários a que me referi acima, transformando-as em artigos acessíveis também ao público não especializado. Aproveitando a oportunidade, incluí também o texto apresentado no seminário de 2006 pela saudosa professora Márcia Arán (falecida em 2011), conhecida por seu estilo vigoroso por meio do qual fazia dialogar de forma consistente a psicanálise com as vicissitudes de nossos tempos. Apreciem a leitura. Rio de Janeiro, julho de 2016.
Eduardo Ponte Brandão Prefácio Um convite para prefaciar uma obra é sempre uma surpresa. O convite de Eduardo foi uma excelente surpresa. E eu contarei por quê. Em 2008, conheci Eduardo na Maison du Brésil, em Paris, durante as nossas intensas pesquisas de doutorado. Não demorou muito para, no clima inspirador da capital francesa, encontrarmos afinidades acadêmicas entre Psicologia e Direito. Foi quando tomei conhecimento das suas pesquisas no campo da psicologia jurídica. Alguns anos depois, convidei-o para proferir uma palestra sobre a Síndrome de Alienação Parental (tema ainda incipiente no âmbito jurídico-acadêmico) num Congresso da Faculdade de Direito Joinville, em Santa Catarina, onde eu lecionava. Diante de um público integralmente jurídico, Eduardo mostrou quão avançadas estavam as reflexões no campo da psicologia jurídica e quão urgente era tomar conhecimento desse tema. O “excelente” do convite-surpresa se deu por saber que teríamos mais um livro organizado por ele, por tomar conhecimento da profundidade e atualidade dos textos e por me desafiar a prefaciar uma obra produzida por psicólogos com reflexões fundamentais sobre e para o Direito e seus operadores. Quais são as reflexões contemporâneas no campo da psicologia jurídica no Brasil? Aos leitores e leitoras, essa obra apresentará algumas respostas. Já nas primeiras páginas se vê que o livro é fruto de um efetivo trabalho de pesquisa em parceria, apresentando um fio condutor comum que ressalta os avanços alcançados, mas, sobretudo, os desafios para a área, sejam eles do ponto de vista teórico, judicial ou social. A obra é inaugurada com o texto de Pedro Paulo Gastalho de Bicalho sobre aquilo que o autor denominou “psicologia jurídica legislativa”, ou seja, sobre a construção das leis no legislativo brasileiro como uma etapa e mesmo uma prática social anterior à execução das mesmas no campo da psicologia jurídica. Esse processo inclui a própria participação de psicólogos tanto no âmbito das assessorias quanto no das audiências públicas, por exemplo. E, nesse contexto, os discursos psi correm o risco de servir como legitimadores da criação de leis excludentes e da crescente judicialização da vida em nome da segurança.
Logo a seguir, Eduardo Ponte Brandão debruça-se sobre certo momento de crise atual no campo da psicologia jurídica, passada a euforia surgida na esteira da proclamação dos direitos humanos nos anos 1980 e 1990. O autor identifica uma aparente contradição entre a demanda por perícia por parte dos operadores do Direito e as práticas alternativas idealizadas pelos psicólogos. Por meio de uma abordagem histórica e crítica sobre as perícias no meio jurídico, Eduardo lança luz sobre o poder de sedução que estas exercem sobre os operadores. Ao mesmo tempo, demonstra que as práticas ditas alternativas não modificam as linhas de força postas em marcha na atualidade, sendo necessário, para tanto, fazer uma leitura de acordo com a genealogia dos poderes sobre esse campo de atuação psicológica. Esther Arantes analisa diversos aspectos e temáticas vinculados à Convenção sobre os Direitos da Criança, normativa internacional amplamente discutida durante os dez anos de sua elaboração. A autora salienta que, no Brasil, os debates centraram-se mais em como superar o binômio “menor-infrator” em detrimento das tensões entre os direitos de proteção e autonomia ou capacidade decisória, inclusive em relação aos indígenas (e, nesse contexto, ao nosso deficitário pluralismo jurídico). Maria Helena Zamora propõe-se a analisar em que medida os Conselhos Tutelares (CTs) atuam em defesa de direitos ou no controle das famílias pobres. Iniciando por uma perspectiva histórica, a autora ressalta que a criação de tais institutos está ligada a um processo de vigilância sobre as famílias de classes mais baixas, a partir das primeiras décadas da República, persistindo até os dias de hoje. Além disso, menciona que o ideal da família tradicional burguesa permanece, sendo que uma composição familiar diversa é encarada como “desestruturada” e como um espaço privilegiado da violência. Por outro lado, os CTs estariam também sofrendo com a insuficiência da estrutura física, a cooptação política e vivências depressivas dos conselheiros face às dificuldades da profissão. Isso foi exemplificado no caso Belo Monte – onde, mesmo com as ameaças sofridas, a persistência dos envolvidos resultou na descoberta de várias redes de exploração comercial e de tráfico humano, possibilitando o resgate de adolescentes em situações degradantes e de risco. Na sequência, Sidney Shine discute a lógica interventiva (para além da dimensão da avaliação) nas perícias em meio às disputas de famílias, desvelando os pressupostos existentes, ainda que de maneira implícita, nos tipos de perguntas que serão dirigidas aos peritos psicólogos, bem como as possíveis confusões entre o raciocínio argumentativo lógico e verdadeiro nesse campo. Márcia Arán aborda a homoparentalidade e os modos de vida, partindo do pressuposto da variabilidade e não universalidade das formas de constituir família, por um lado, e da intensa participação do Estado na constituição do familialismo, por outro. Independentemente da recente ¹ decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecendo a natureza jurídico-familiar das uniões entre pessoas do mesmo sexo, a autora recupera o debate dos últimos anos sobre o tema, notadamente na França, de modo a problematizar as origens do pressuposto da heteronormatividade, bem como as implicações da (des)necessária intervenção legal nesse campo.
Lenita Pacheco Lemos Duarte demonstra os efeitos dos conflitos familiares sobre as crianças envolvidas em situações de litígio de seus pais, principalmente nos casos de disputa da guarda, alienação parental, abuso e violência psicológica. Assim, a autora expõe uma visão clínica sobre o modo como a criança representa seus sofrimentos e angústias, vivenciados numa situação familiar conflituosa, a partir de brincadeiras e desenhos. Em mais um artigo, Eduardo Ponte Brandão busca analisar qual o papel da psicanálise no judiciário brasileiro e, mais concretamente, nas Varas de Família – que, apesar de contar com a abertura da psicologia jurídica aos direitos humanos, também é marcada pelo uso de “mecanismos totalitários de extração de ‘verdade’ e de ortopedia moral das condutas e dos sentimentos”. O autor analisa a banalização da Síndrome de Alienação Parental enquanto operador discursivo privilegiado para a regulação dos conflitos familiares e reitera a necessidade da ética do cuidado nas avaliações de psicólogos e equipes técnicas que, enquanto peritos, assessoram e orientam os operadores do Direito nesses processos. Renata Costa-Moura analisa o lugar e o “não lugar” do paciente judiciário durante e após o processo judicial. A autora, amparada nas análises centradas em Lacan e Foucault sobre a loucura, desnuda os tratamentos destinados a esses sujeitos durante o processo, destacando o viés preponderantemente cientificista, medicalizante e sanitarista em detrimento das iniciativas socializadoras nesse contexto. Cristina Rauter analisa a “revista vexatória” e sua “utilidade” inconfessável no sistema penal brasileiro. Se, por um lado, a revista teria a finalidade de impedir a entrada de drogas, celulares e armas (objetos que poderiam estar escondidos no próprio corpo dos visitantes) nos presídios, por outro, ela teria a “utilidade” estratégica de impedir uma possível relação entre quem está preso e quem não está. A revista é vista pelos familiares como um castigo injusto, uma irracionalidade das instituições totalitárias ao dissolver os laços de solidariedade e amor entre o detento e sua família. Com foco na realidade carcerária brasileira, Maria Márcia Badaró Bandeira analisa em que medida, em nome dos direitos humanos, são cometidas grandes atrocidades – e, nesse contexto, qual o papel do psicólogo. Além das determinações legais para estabelecer “graus de periculosidade”, a autora propõe intervenções em diferentes níveis. Silvia Ignez Silva Ramos questiona o papel do psicólogo na Defensoria Pública do Rio de Janeiro enquanto assistente técnico ou mediador. No primeiro caso, o profissional assumiria a psicologia voltada aos prognósticos e diagnósticos psicopatológicos; enquanto mediador, a ênfase estaria situada no desafio do profissional multifacetado, promotor de garantias sociais no que tange à judicialização da política. Érika Piedade da Silva Santos reflete sobre as diversas relações entre as equipes técnicas do Judiciário no Brasil com o campo do direito, especialmente quando são chamadas a atuar como auxiliares do Juízo. Desse modo, elas podem se alinhar tanto a uma orientação do direito que valoriza a sujeição coletiva à hegemonia vigente quanto a outra orientação que reconhece a multiplicidade e a transitoriedade das realidades sociais,
culturais e subjetivas. Diante desse impasse, a autora analisa a história da relação inicial entre direito e psicologia. A seguir, Paula Mancini Ribeiro aborda o lugar da palavra para adolescentes em situação de violência. A autora privilegia o tema a partir da experiência do Núcleo de Atenção à Violência no atendimento de crianças e adolescentes autores ou vítimas de violência. Ela apresenta a aposta do Núcleo no tratamento que propõe uma abertura para o lugar da palavra, de escuta do que lhes for possível dizer, sem julgamentos, para que a palavra volte a ser ouvida e produza efeitos benéficos para esses sujeitos de direitos. Aline Bemfica e Marcone Mello analisam os Direitos da Infância e da Juventude frente ao grande número de casos de adolescentes nomeados “problemáticos” encaminhados pelo Conselho Tutelar e por escolas municipais de Minas Gerais. Mais concretamente, os autores analisam o tema da parentalidade e os impasses da sexualidade na adolescência, a partir de um fragmento clínico do acompanhamento de um jovem, apresentando uma conclusão a favor da importância da escuta nesses casos. Encerrando a compilação, Érika Piedade da Silva Santos, agora em parceria com Lindomar Expedito Darós, apresenta os resultados oriundos do mapeamento feito em 2012 sobre as condições de trabalho dos profissionais do serviço social e da psicologia do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Tais profissionais foram submetidos a importantes mudanças em 2009, na medida em que perderam sua lotação original e passaram a atender diversas varas em várias comarcas – e o resultado não foi outro senão a deterioração expressiva do trabalho desenvolvido pelas equipes técnicas interprofissionais, implicando prejuízos ao público e ao trabalhador. Com imensa honra e satisfação, cumpre-me registrar que esta obra – na sua metodologia e conteúdo, na sua trajetória e resultados – constitui uma singular e efetiva contribuição aos estudos contemporâneos acerca do imbricamento entre psicologia e direito, no campo teórico como no empírico, judicial e social. O leitor ou leitora tem diante de si uma obra que apresenta reflexões de ponta, com rigor metodológico-argumentativo nos diferentes caminhos teóricos e empíricos percorridos pelos seus autores e autoras em busca de uma produção acadêmica intelectualmente plural, faticamente sensível e ideologicamente emancipatória em relação à família, aos seus integrantes e aos demais atores e profissionais diretamente envolvidos nesse processo. Paris, junho de 2015. Taysa Schiocchet 1 Maio de 2011. Da execução à construção das leis: a psicologia jurídica no legislativo brasileiro Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Esse presente, que se renova na repetição das práticas discursivas e não discursivas [...] nos impulsiona a pensá-los como urgência, tendo em vista que, hegemônicos, apresentam-se como verdades absolutas e universais que devem conduzir a tudo e a todos. Cecília Coimbra et al. (A invenção do humano como modo de assujeitamento) Da “Psicologia do Testemunho” surgida no final do século XIX às formulações de depoimentos “especiais ou sem dano” do século XXI. Dos pareceres técnicos intitulados exames criminológicos às práticas de individualização da pena nos ambientes prisionais. Do Manual de Psicologia Jurídica, escrito por Mira y Lopez em 1945, à atuação do psicólogo no Judiciário, seja nas Varas de Família, de Execução Penal, da Infância, Juventude e do Idoso. Do psicólogo na construção do “perfil psicológico do terrorista brasileiro” à atuação com direitos humanos nas instituições policiais e nas defensorias públicas. Das práticas com os “menores” do Código de 1927 à socioeducação com os adolescentes em conflito com a lei do Estatuto de 1990. Em qualquer uma das áreas de atuação da psicologia jurídica descritas acima (que testemunham o crescimento da interseção dos saberes e fazeres psicológicos e jurídicos), parte-se de um pressuposto: a pré-existência das leis. Neste texto afirmaremos a atuação de uma psicologia jurídica presente no processo de construção das leis. Uma psicologia, portanto, legislativa. E, por isso, jurídica. Porque a lei, como uma prática social, também deve ser tomada por seu processo de construção. E, afirmamos, este também é um lugar para a atuação de uma psicologia que se pretende jurídica. Há vários tipos de leis que integram o sistema normativo brasileiro. A Constituição Federal, considerada o fundamento legal, é a principal fonte de referência de todas as demais. Nenhuma outra norma do sistema pode estar em desacordo ou mostrar-se incompatível com seu conteúdo, sob pena de ser considerada inconstitucional e, portanto, não ter sua validade jurídica reconhecida. A elaboração de leis (além de outras atribuições, como a fiscalização dos atos do Poder Executivo) compete ao poder legislativo, que no âmbito federal ¹ é constituído pelo Congresso Nacional – que, desde 1891, é composto por duas Casas Legislativas autônomas: a Câmara dos Deputados e o Senado Federal. ² A Câmara dos Deputados é constituída pelos representantes eleitos em número proporcional ao da população de cada estado e do Distrito Federal, para um mandato de quatro anos. Na quinquagésima quinta legislatura da história política do país ³ – iniciada no ano de 2015 – a Câmara conta com 513 membros, sendo que o maior número de deputados é eleito no estado de São Paulo, que tem setenta representantes (o número máximo, por estado, permitido pela Constituição). Os estados de menor população elegem o número mínimo previsto constitucionalmente: oito deputados cada um.
O Senado Federal, embora também composto por membros escolhidos em eleição direta pelo povo (para um mandato de oito anos), representa os interesses dos estados e do Distrito Federal como unidades da federação, independente do tamanho da respectiva população. Por isso, o número de senadores eleitos por estado e pelo Distrito Federal não é proporcional ao número de habitantes, mas fixo: três por unidade da federação, totalizando, hoje, 81 membros na Casa. (LEMOS, 2008) Os trabalhos de elaboração de leis se desenvolvem, basicamente, em duas fases distintas em cada Casa Legislativa: o momento em que os projetos tramitam nas comissões ⁴ e, após, a discussão e votação em Plenário. É no âmbito das comissões que os parlamentares, justamente por estarem reunidos em número menor que no Plenário, conseguem examinar minuciosa e cuidadosamente os projetos que tramitam na Casa, avaliando aspectos técnicos, ético-políticos, sociais e jurídicos, identificando os méritos e as falhas de cada um, ouvindo autoridades e especialistas na matéria tratada, propondo eventuais alterações e aperfeiçoamentos por meio de assessoria parlamentar direta ou por audiências públicas convocadas por um parlamentar. Quando conclui o exame de cada matéria submetida à sua apreciação, a comissão apresenta à Casa um parecer sobre o assunto, recomendando aos demais parlamentares a aprovação, integral ou com alterações, ou a rejeição do projeto examinado. (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1994) Psicólogos são rotineiramente convocados para a atividade de assessoria parlamentar (em diálogo específico com determinado deputado ou senador, ou por meio de assessoria a instituições políticas profissionais ou demais instituições que possuem interesse nas questões relativas à profissão), proferindo palestras em audiências públicas, com um número maior de parlamentares e, geralmente, reproduzindo a lógica jurídica do contraditório para a formulação da “convicção íntima” parlamentar, capaz de convencê-los acerca da “verdade” e, portanto, de seus votos. As leis, ao serem votadas, são “julgadas”. Assim, no processo legislativo, somos todos pequenos juízes. Em casos de projetos de lei controversos ou que foram divulgados midiaticamente e que, por isso, alcançaram a opinião pública, a atuação do psicólogo nessas funções é visivelmente potencializada. ⁵ Transformam-se, midiaticamente, os pequenos em grandes juízes, pela ação performática tanto das leis como dos discursos ali proferidos. O Plenário é a instância de decisão final sobre a maior parte das matérias apreciadas pela Casa Legislativa. Constitui-se por meio do conjunto dos parlamentares que compõem a Casa, e as decisões tomadas em seu âmbito têm caráter definitivo e irrecorrível. Sendo o processo legislativo no nível federal do tipo bicameral, isto é, envolvendo a participação das duas Casas Legislativas, Câmara dos Deputados e Senado Federal, uma vez apreciado e aprovado um projeto ou proposta numa delas (chamada Casa iniciadora), será ele remetido à outra (Casa revisora), devendo, lá, passar também pelas fases de comissão e de Plenário. E, então, o projeto segue para sanção (ou veto) presidencial.
Deste modo, o primeiro ato do processo de feitura de uma lei é a apresentação, à Casa Legislativa, de um projeto, de uma proposição legislativa, para utilizar a nomenclatura técnica empregada no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (BRASIL, 2015). Embora o Regimento Interno considere como proposição legislativa qualquer matéria que venha a ser submetida à deliberação da Casa, como emendas, pareceres ou recursos, apenas duas espécies efetivamente dão início ao processo legislativo: as propostas de emenda à Constituição e os projetos, estes últimos admitindo ainda três subespécies: de lei, de decreto legislativo e de resolução. Propostas de emenda à Constituição (PEC), como o nome indica, são proposições destinadas a promover alterações no texto da Constituição vigente. Para serem recebidas e processadas, têm de estar assinadas, no caso de iniciativa dos parlamentares, por no mínimo um terço do total de membros da Casa (o que, na Câmara, equivale à assinatura de 171 deputados). Sua apresentação, entretanto, pode se dar ainda por parte de agentes externos ao Congresso Nacional, como a presidente da República e as assembleias legislativas das unidades da federação. No caso das assembleias legislativas, a iniciativa da apresentação só será válida se contar com o apoio de mais da metade delas, cada uma tendo tomado a decisão por deliberação da maioria de seus membros. (PACHECO, 2013) Além dos requisitos de autoria aqui referidos, as PECs só podem ter andamento se suas disposições não tiverem impacto sobre as chamadas “cláusulas pétreas”, que são as normas constitucionais não modificáveis. São elas: (1) a forma federativa do Estado – que envolve, no Brasil, a existência de três esferas autônomas de organização político-administrativa: a União, os estados e o Distrito Federal e os municípios, cuja capacidade de autogoverno e autogestão deve ser assegurada; (2) o direito ao sufrágio universal: a escolha de seus representantes no Governo Executivo e Legislativo por meio do voto direto e secreto, exercido periodicamente; (3) a independência e a harmonia entre os três poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), não se permitindo o domínio de um sobre o outro; (4) os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. (SARLET, 2011) Já os projetos de lei são proposições destinadas a criar leis novas ou a alterar aquelas em vigor. Podem ser apresentados, em geral, tanto por parlamentares, individual ou coletivamente (por meio de suas organizações próprias, como bancadas ou frentes parlamentares), quanto pelas comissões da Câmara, do Senado ou das duas Casas em conjunto, ou ainda pela presidente da República – que dispõe de iniciativa concorrente com a dos parlamentares sobre temas em geral, mas detém competência privativa para a apresentação de projetos sobre certas matérias definidas pela Constituição Federal. É de se registrar também a possibilidade de iniciativa legislativa por parte do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais Superiores e do procurador-geral da República em relação a alguns assuntos específicos. A Constituição Federal de 1988 deu abrigo ainda à iniciativa popular de leis, conferindo aos cidadãos o direito de apresentar projetos ao Congresso Nacional, desde que atendida a exigência de subscrição mínima de um por cento do eleitorado nacional, distribuído por pelo menos cinco estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. ⁶
Visando criar um canal alternativo para a participação popular nos trabalhos legislativos, a Câmara dos Deputados, em 2001, instituiu a Comissão de Legislação Participativa, órgão permanente da Casa, destinado a examinar e dar parecer sobre sugestões de iniciativa legislativa recebidas de associações e órgãos de classe, sindicatos e outras entidades organizadas da sociedade civil. Dispondo de iniciativa legislativa como qualquer outra comissão parlamentar, a Comissão de Legislação Participativa, quando verifica que uma sugestão apresentada atende às condições mínimas para tramitar, adota-a, formulando e apresentando o projeto à Casa como sendo de sua autoria. (COUTO, 2007) Nas comissões, entre o recebimento de uma proposição e a apresentação do parecer do relator (que constitui o primeiro voto), podem ocorrer reuniões de assessoria parlamentar e audiências públicas na comissão, com o objetivo de instruir e esclarecer o relator e os demais membros sobre as conveniências ou inconveniências da aprovação da matéria tratada na proposição, bem como suas controvérsias. Após a aprovação em uma comissão, o projeto segue para as demais consoantes ao tema. Uma vez encerrada a fase de apreciação pelas comissões, as proposições sujeitas à deliberação do Plenário serão encaminhadas à Mesa com os respectivos pareceres, devendo aguardar sua inclusão na Ordem do Dia, ou seja, na pauta de deliberações do Plenário, onde primeiro inicia-se a fase de discussão e, em seguida, a votação. A discussão é a fase dos trabalhos em que a proposição é debatida pelos parlamentares inscritos. A inscrição para uso da palavra é feita perante a Mesa, antes de iniciar-se a discussão, devendo cada debatedor declarar previamente se irá manifestar-se contra ou a favor da aprovação da proposição. Com isso, a Mesa pode organizar duas listas de oradores, concedendo a palavra alternadamente aos de uma e de outra posição, de modo que a um orador favorável à aprovação da matéria suceda, sempre que possível, um contrário. A fase de discussão de uma proposição sujeita à apreciação do Plenário é também a fase ideal para que os deputados apresentem suas emendas ao projeto. Para a votação, exige-se a presença mínima da maioria absoluta do total de membros votantes – o que equivale ao primeiro número inteiro superior à metade do referido total. Em caso de aprovação originariamente em uma das Casas e concluída a redação final, a proposição deverá ser remetida à outra Casa Legislativa para apreciação. Quando se dá a aprovação também no âmbito da segunda Casa, há duas possibilidades: sendo aprovada a proposição com emendas, deverá o processo retornar à primeira Casa, para apreciação das alterações propostas ou, sendo aprovada a proposição na íntegra, o destino será o encaminhamento à presidente da República para veto ou sanção. E, mais uma vez, o trabalho de assessoria parlamentar e participação em audiências públicas acontecerá, incluindo neste caso reuniões com ministros, secretários de Estado e com a própria presidente da República. ⁷ A sanção expressará a concordância do chefe do Poder Executivo com o conteúdo do projeto aprovado pelo Poder Legislativo. O veto, ao contrário, demonstrará sua oposição, total ou parcial, ao texto da proposição, que não
poderá se transformar em lei exceto se vier a ser rejeitado o veto pelo Congresso Nacional. A presidente da República dispõe de quinze dias úteis para sancionar ou vetar projeto de lei que lhe tenha sido encaminhado pelo Legislativo. Após esse prazo, não tendo havido manifestação expressa em contrário, considerar-se-á sancionado o projeto (sanção tácita), devendo ser encaminhado à promulgação. O veto, se vier a ocorrer, deverá se fundamentar em razões de constitucionalidade ou de interesse público e ser comunicado pela presidente da República ao presidente do Congresso Nacional, a quem competirá convocar sessão conjunta das duas Casas para sua apreciação. O veto presidencial a projeto de lei só poderá ser derrubado pelo voto secreto da maioria absoluta dos membros de cada uma das Casas do Congresso Nacional, hipótese em que o projeto deverá ser reenviado à presidente da República para a promulgação, ato pelo qual a autoridade competente dá ciência ao público em geral de que uma lei foi aprovada e entrará em vigor. (PACHECO, 2013) Transformar um projeto em lei, portanto, constitui-se como um processo complexo de formulação, negociação e votação, que exige a presença de “especialistas” capazes de dialogar com os parlamentares, ou com instituições que acompanham a tramitação legislativa: os assessores e os membros de audiência pública. Muitas vezes, como já dissemos, psicólogos exercem tais atividades que, em fazendo parte do processo legislativo, correspondem ao exercício de uma psicologia jurídica. Psicologia jurídica esta que não está comprometida com a execução, mas com o acompanhamento (e proposição) de leis cuja elaboração constitui-se como intenso processo de problematização, negociação, argumentação, afirmação de claros posicionamentos. Um intenso processo, portanto, de produção de subjetividades: capaz de tornar argumentos em votos legislativos. Capaz de promover o arquivamento de um projeto ou a promulgação de uma nova lei. E, como pontua Foucault (2002, p. 8), “discursos que podem matar, discursos de verdade e discursos que fazem rir. E os discursos de verdade que fazem rir e que têm o poder institucional de matar são, no fim das contas, numa sociedade como a nossa, discursos que merecem um pouco de atenção”. A construção deste artigo foi movida pela necessidade de dar visibilidade ao (complexo) processo legislativo, pela importância da participação do saber psicológico na formulação das políticas públicas e, principalmente, pela contribuição para a compreensão dos mecanismos, das disputas e das negociações envolvidas na formulação das leis. A atividade legislativa – como atuação de uma psicologia jurídica – configura-se pelo exercício de um poder discursivo. Não necessariamente repressivo, mas como investimento à potencialidade de bifurcações às práticas sociais que, cotidianamente, são estabelecidas. Discursos performáticos e que, portanto, merecem um pouco de nossa atenção.
Ao concentrar suas análises nas práticas que, historicamente, construíram determinadas condições de possibilidade e formas de experiência, Foucault “[...] tenta examinar mais detalhadamente o funcionamento daquelas práticas em que figuram normas morais e verdades acerca de nós próprios, submetendo-as à análise crítica.” (RAJCHMAN, 1987, p. 77) . O autor questiona o pressuposto de que o poder funciona primordialmente através de uma mistificação ou falsificação de uma verdadeira, ou racionalmente fundamentada, experiência. O poder, para Foucault, opera produzindo verdades. E é exatamente pela produção de verdades que somos convocados para a atuação junto à Justiça, seja no momento de construção ou no de execução das leis. É preciso, portanto, interrogar a inevitabilidade de nossas práticas, de nossos modos de existência – e investigar sua história pode propiciar a recolocação de nosso próprio modo e categorias de pensar. Foucault (1999) já nos inspirava a indagar: Qual é esta minha atualidade? Qual é o sentido desta atualidade? E o que faço quando falo desta atualidade? A racionalidade expande-se por todos os campos da vida social, com vistas a certa dominação ou hegemonia. E, por isso, é preciso estarmos atentos para os discursos que são proferidos na atividade legislativa. A própria formação do Estado Moderno também carrega consigo princípios de organização e racionalização, onde são elaboradas tecnologias (racionalidade instrumental), inclusive de poder sobre a vida, direcionadas ao “progresso” e ao “avanço social”, de forma a propiciar condições de suposta felicidade individual e de bem-estar comunitário. Nesse processo, no momento mesmo em que se considera o “permitido”, “adequado”, “normal”, cria-se o que pode ser considerado “nocivo”, “anormal”. Dessa maneira, alguns comportamentos são eleitos como legítimos para se alcançar tais conquistas em detrimento de outros. Com Dieter (2012, p. 22) podemos: [...] compreender as pretensões do processo de racionalização da vida social, que [...] constitui o traço distintivo da civilização ocidental – isto é, do Estado capitalista – a partir do trânsito entre os séculos XIX e XX. De fato, o rigor e a neutralidade reclamados por seu método científico produziram uma descrição pormenorizada desta promessa da Modernidade, responsável por uma irreversível transformação – também definida como progresso técnico – dos espaços político, social e econômico. (grifos do autor) A expectativa das comunidades científica e política em relação às ciências humanas, dentre elas a Psicologia, recai no desejo pelo desenvolvimento de instrumentos capazes de funcionar a favor da erradicação do “resto bárbaro” que insistentemente emerge na sociedade, a favor da promessa da modernidade de reenquadrar estes outros (sempre “os outros”), que não desistem, não abandonam seus “instintos atávicos”, clara referência – aqui – da antropometria lombrosiana. ⁸ Por outro lado, vemos a possibilidade de outro tipo de intervenção capaz de se debruçar sobre a imanência do próprio legislador, afirmando-se como potência criadora e disruptiva da ordem. Deste modo, revela-se um discurso com caráter de apropriação e criação que se pretende um exercício que visa ao conhecimento de algo, ou melhor, pretende se debruçar sobre algo, é
para revelar as forças que o leva a possuir uma ordem, uma suposta natureza. O empreendimento do saber, constituindo-se como uma genealogia do poder. Neste caso, poder de bifurcação. O projeto político do Legislativo tem por objetivo a busca da felicidade, por meio da negação da barbárie e da afirmação da civilização. Muitas vezes, nesse processo, é apontada como elemento fundamental para a realização desse propósito a segurança. Assim, teoricamente, os homens, em troca de segurança, optam por limitar sua liberdade, alienando certo domínio ao repositório comum denominado Estado. Toda a força do Estado estaria trabalhando em prol da promessa de felicidade e de um bem comum, que seriam, assim, supostamente garantidos caso se mantenha o cumprimento do projeto de socialização e a consequente segurança que ele propiciaria. Um contrato social irrompe como uma possibilidade de regular a coletividade a fim de alcançar os ideais propostos. No contexto do movimento iluminista (século XVIII), baseado em pressupostos enunciados por Rousseau, entende-se que a sociedade se organizaria pelo consenso dos indivíduos livres com base num “Contrato Social”. Realizam esse pacto como um somatório de vontades e interesses individuais manifestos no exercício do livre-arbítrio, da responsabilidade individual, da livre iniciativa econômica. Por que os indivíduos contratariam? Porque teriam interesses que antes do contrato estariam ameaçados. Os indivíduos têm vontade de se manter em segurança, de salvaguardar pelo menos alguns de seus interesses e, por isso, aceitam sacrificar outros. “É a vontade jurídica que se forma então, o sujeito de direito que se constitui através do contrato é, no fundo, o sujeito do interesse.” (FOUCAULT, 2008, p. 373) Carvalho (2008) nos indica que a formação do Estado Moderno carrega consigo princípios de organização e de racionalização da administração pública como um ideal de segurança. O legislativo, por este viés, teria como objetivo gerenciar os desvios, prevenindo que aconteçam, e reprimi-los, punindo os delitos. Essas seriam, então, algumas das intervenções estatais frente às transgressões na tentativa de reduzir / extinguir as ocorrências sentidas como danosas e controlar seus efeitos. Assim, amplia-se a perspectiva analítica com a noção de segurança, permitindo interpretar as relações contemporâneas entre Estado e população, aqui representadas pelo discurso legislativo. É preciso, deste modo, do lugar de uma psicologia jurídica atravessada ao Legislativo, problematizar cotidianamente a noção de segurança e do medo que se configura como argumento de construção de uma determinada ordem. Medo, portanto, como operador político. É preciso problematizar para não legitimar, pela via do discurso psi, os processos de sofrimento e exclusão promovidos em nome da segurança. O que acontece hoje, portanto? A relação de um Estado com a população se dá essencialmente sob a forma do que se poderia chamar de “pacto de segurança”. [...] O que o Estado propõe como pacto à população é: ‘Vocês estarão garantidos’. Garantidos contra tudo o que pode ser incerteza, acidente, dano, risco. (FOUCAULT, 1977, p. 385)
Essas intervenções, contudo, muitas vezes se realizam via propostas legislativas que atuam, então, com a pretensão de regular, estabelecendo os atos civilizados e as ações inapropriadas dentro desse modelo. Por meio da regulamentação jurídica, a sociedade fixaria os preceitos básicos da convivência em comunidade e os ideais de conduta, instituindo respostas de reprovação ao seu desrespeito. E no âmbito das ciências jurídicas, o campo do Legislativo funciona como instrumento regulador: o mecanismo para resguardar os valores, interesses e bens expressos no contrato social. A apreensão e a regulação da vida humana são abordadas, desta vez, a partir de mecanismos de poder que visam a promover a segurança da população. A segurança é aqui uma questão ampla, que envolve não apenas a doença, os genótipos corruptores ou a anormalidade hereditária, que põem em risco o patrimônio biológico da espécie, mas tudo aquilo que representa um perigo, uma ameaça. (FARHI NETO, 2007, p. 80) A regulação da vida humana se difundiria assim por toda a rede social, pretendendo uma função de hegemonia. Penetraria no mais íntimo, no intento de ser cada vez mais eficaz, transbordaria das regulamentações jurídicas para regulamentar todas as manifestações da vida. O contrato não se restringe à relação com o Estado, mas se espraia por todas as relações, pautando nossas formas de existência e se presentificando nas nossas relações cotidianas. E, por isso, a construção das leis nos interessam. Não porque servem para nos regular, apenas – mas porque nos constroem. Fundamentalmente, nossos modos de perceber, sentir, ser e estar no mundo. As leis constroem subjetividades e, assim, constroem a nós mesmos. Os valores de segurança e de certeza dizem oferecer proteção em relação aos riscos que esta sociedade busca rechaçar, mas, segundo Carvalho (2008), enclausuram o legislativo em sua dimensão formal, impossibilitando sua oxigenação e o necessário confronto com a pulsante realidade social à qual deveria estar voltado. A complexidade da vida em sociedade indicaria a incapacidade de o sistema jurídico-normativo prever todas as hipóteses de conflitos e de demandas. Nisso residiria a evidência da incompletude dos ordenamentos e a crítica pela fixidez das normas jurídicas em relação à constante redefinição das práticas sociais. Na nova razão de Estado, inaugurada na formação do Estado moderno, deixamos de focar na ampliação e defesa das fronteiras do território, mas passamos a agir no gerenciamento dos indivíduos para supostamente produzirmos um mundo seguro. Dispomo-nos, alegando que alguns outros são perigosos porque ameaçam os interesses e rompem o pacto, a buscá-los, identificá-los, classificá-los e intervir sobre seus supostos perigos, para que a lei promova a formatação da vida. Vigiamo-los e, se necessário, tutelamos esses outros, transformamo-los / -nos em sujeitos assujeitados “que abrem mão da expansão da vida” para a expansão das leis. Tudo supostamente em nome da segurança. Tais processos de “judicialização da vida” necessitam de constante atenção deste lugar em que se exerce o saber psicológico como um fazer legislativo. Lobo (2012, p. 19) aponta que “faz parte da economia do poder na atualidade a multiplicação do papel da magistratura e, principalmente, a
multiplicação da função judiciária no corpo social”. É exatamente porque problematizamos a lógica de “multiplicação dos objetos judiciáveis” que o lugar do psicólogo nas atividades legislativas é necessário. E urgente. E o mundo a me exigir decisões para as quais não estou preparada. Decisões não só a respeito de provocar o nascimento de fatos, mas também decisões sobre a melhor forma de se ser. Uma tensão de corda de violino. (Clarice Lispector, Um Sopro de Vida). 1 Nos estados, o Poder Legislativo é composto pelas Assembleias Legislativas e Tribunal de Contas do Estado; nos municípios, pelas Câmaras Municipais e Tribunal de Contas dos Municípios. Neste capítulo discutiremos apenas o Poder Legislativo Federal, embora a lógica de funcionamento seja a mesma. E, por conseguinte, a atuação de uma psicologia jurídica legislativa também. 2 Integra ainda, ao Poder Legislativo Federal, o Tribunal de Contas da União, órgão que auxilia o Congresso Nacional nas atividades de controle e fiscalização externa (fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração pública direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas). Por não ser um órgão para o qual compete a elaboração de leis, neste capítulo o funcionamento de tal instituição não será mencionado. 3 Com a proclamação da República, a tradição constitucional brasileira espelhou-se no modelo norte-americano para criar um Legislativo federal bicameral, dividindo-o em duas vertentes, uma a representar os estados federados, com senadores eleitos pelo sistema majoritário, e outra, o povo, com deputados eleitos pelo sistema proporcional, formando portanto duas câmaras mutuamente revisoras. Foram exceções as Constituições de 1934 e 1937, que preconizavam o unicameralismo. A doutrina republicana entende que o bicameralismo é o sistema mais apropriado às federações, ao apontar o Senado como a câmara representativa dos estados federados. (ARAÚJO, 2012 ) 4 A Câmara Federal possui, hoje, vinte comissões permanentes: Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural; Comissão da Amazônia, Integração Nacional e de Desenvolvimento Regional; Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática; Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania; Comissão de Defesa do Consumidor; Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio; Comissão de Desenvolvimento Urbano; Comissão de Direitos Humanos e Minorias; Comissão de Educação e Cultura; Comissão de Finanças e Tributação; Comissão de Fiscalização Financeira e Controle; Comissão de Legislação Participativa; Comissão de Minas e Energia; Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável; Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional; Comissão de Seguridade Social e Família; Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público; Comissão de Viação e Transportes; Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado; Comissão de Turismo e Desporto.
5 Tomamos como exemplo o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 234/2011, de autoria do deputado João Campos (PSDB-GO), que propunha sustar a aplicação da resolução 01/1999 do Conselho Federal de Psicologia, que “estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual” (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 1999) . Tal projeto fora veementemente apoiado pelo então presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara Federal, deputado Marco Feliciano (PSC-SP) e, então, aprovado para prosseguimento legislativo. Naquele momento do ano de 2013, eclodiram várias manifestações no país (as “jornadas de junho”) e tal PDC popularizou-se como o “projeto de cura gay”, com intensa reprovação pública. A partir de então, o trabalho de assessoria parlamentar e a participação em audiências públicas do então Coordenador Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (e autor deste artigo) cresceu assustadoramente. E tal PDC fora logo arquivado. 6 Como o atingimento desse número mínimo de subscritores é bastante difícil e complicado, têm sido muito poucos os projetos de lei de iniciativa popular apresentados ao Congresso Nacional até hoje. 7 O autor deste artigo teve participação direta, nestas instâncias, nas discussões relativas ao PL 7663/2010, que acrescenta e altera o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (SISNAD), de autoria do deputado Osmar Terra (PMDB-RS), à época em que exerceu o mandato de Coordenador Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. 8 O médico e cientista Cesare Lombroso (1835-1909), com sua obra L’Uomo Delinquente, traz as principais ideias da Antropometria Criminal, buscando nas características biopsíquicas de alguns indivíduos a base de sua teoria sobre criminosos natos e perigosos sociais. Por meio de estudos com prisioneiros, conclui que determinado tamanho de cérebro e crânio, além de outras características fisionômicas, constituem o perfil do indivíduo criminoso, marcando sua inferioridade biológica. Tais sujeitos não teriam liberdade de escolha, pois sua natureza determina suas ações, sendo o homem a causa do crime. (MOREIRA et al., 2010) Referências ALTOÉ, Sônia. Atualidade da psicologia jurídica. 2002. Disponível em: < http://pt.scribd.com/doc/2519940/Atualidade-da-psicologia-juridica >. Acesso em: 23 fev. 2016. ARAÚJO, P. M. O bicameralismo no Brasil: argumentos sobre a importância do Senado na análise do processo decisório federal. Política & Sociedade, v. 11, n. 21, p. 83-135, 2012. BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Regimento interno da Câmara dos Deputados. 15. ed. Brasília: Edições Câmara, 2015. Disponível em: < http://bd.camara.gov.br/bd/handle/bdcamara/18847 >. Acesso em: 23 mar. 2015. BRITO, L. M. T., Reflexões em torno da Psicologia Jurídica. In: CRUZ, R. M.; MACIEL, S. K.; RAMIREZ, D. C. O trabalho do psicólogo no campo jurídico. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.
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PACHECO, M. B. Como se fazem as leis. Brasília: Edições Câmara, 2013. RAJCHMAN, John. Foucault: liberdade da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. SARLET, I. W. Os direitos fundamentais sociais como “cláusulas pétreas”. Cadernos de Direito, v. 3, n. 5, p. 78-97, 2011. Uma leitura da genealogia dos poderes sobre a perícia psicológica e a crise atual na psicologia jurídica Eduardo Ponte Brandão Passados cerca de quinze anos desde o primeiro concurso para o cargo de psicólogo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, concomitante ao florescimento da produção teórica em psicologia jurídica nas últimas duas décadas, é chegado o momento de revisitar criticamente os fundamentos de sua práxis e de seu campo de conhecimento. A euforia com a qual surgiram novos campos de atuação, na esteira de outros concursos que sucederam àquele, seja no Tribunal de Justiça, ¹ seja noutros órgãos do judiciário (Defensoria Pública, Ministério Público), tanto no Rio de Janeiro quanto noutros estados, para não falar das oportunidades desenvolvidas nas instituições e nos sistemas relacionados aos tribunais (OSCIP, ONG, Conselhos, delegacias, instituições de acolhimento, SEAP, DEGASE, etc), em suma, o entusiasmo inicial cedeu lugar a um sutil sentimento de desânimo e a um profundo mal-estar, já assinalado por Arantes (2007). Ao mesmo tempo, assistimos hoje em dia a um esgotamento do repertório teórico da psicologia jurídica em comparação ao momento em que ela se desvinculou do viés positivista da chamada psicologia do testemunho para se associar aos direitos humanos celebrados na Constituição Federal (1988) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). (cf. ALTOÉ, 1994 ) ² É possível que o momento de crise atual seja tributário de uma crise mais ampla no campo dos direitos humanos, em relação aos quais Santos e Chauí (2013, p. 42) perguntam se “servem eficazmente à luta dos excluídos, dos explorados e dos discriminados ou se, pelo contrário, a tornam mais difícil”. Contudo, sem menosprezar a importância desse questionamento mais amplo, convém investigar o que há de particular no momento atual de crise nos domínios da psicologia jurídica. Numa primeira abordagem sobre as distintas práticas e a produção de conhecimento nessa área, percebe-se uma contradição entre as demandas dirigidas pelos operadores do direito aos psicólogos e a resposta que esses idealizam frente as mesmas. Se as demandas são focadas na confecção de laudos que subsidiam suas decisões, de um lado e de outro lado, os psicólogos idealizam, de modo geral, suas práticas de acordo com uma produção extensa de bibliografia que aponta para formas de inserção que não se encerram nos limites da perícia. (cf. BRANDÃO e GONÇALVES, 2011; GROENINGA e PEREIRA, 2003; BRITO, 1999)
Ao mesmo tempo em que se multiplicam, de forma dispersa, os dispositivos de atuação chamados alternativos (por exemplo: mediação, justiça restaurativa, escola de pais, entre outros), são iniciativas ainda pouco valorizadas frente à exigência de realização da perícia, cujo instrumento exerce um poder de sedução para os operadores do Direito tal qual fosse o canto de uma sereia. Com base nessa proposta, convém fazermos uma breve abordagem políticohistórica sobre as perícias judiciais, considerando o forte poder de persuasão sobre os operadores do Direito, a despeito de toda a produção teórica que coloca em questão a confecção de laudos. Parafraseando Foucault (2001), quais são as condições de possibilidade das perguntas insensatas que juízes, promotores, defensores e advogados sentem tanta necessidade de formular ao psicólogo? Esse indivíduo está apto a assumir a guarda de seu filho? Ele pode visitá-lo? Pode adotar uma criança? É perverso, abusador, manipulador, em suma, ele é virtualmente perigoso? ³ A entrada da perícia na cena jurídica, centrada na figura do psiquiatra, ocorreu particularmente a partir dos séculos XVIII / XIX com objetivo de, numa primeira análise, alcançar a maior objetividade possível e varrer qualquer sombra de dúvida que embaralhasse a extração da “verdade” requerida pelo Direito. Donde a crença de que o suporte científico seria o mais seguro para os operadores do direito chegarem à decisão mais justa. Contudo, tal concepção escamoteia a razão estratégica pela qual a perícia foi inserida no contexto jurídico, desde a sua primeira aparição, especificamente no cenário criminológico. Para tanto, é importante retratar que os séculos XVIII e XIX correspondem ao momento de forte industrialização e, assim, de acumulação de novas formas de riqueza industrial e agrícola, fazendo surgir a necessidade de protegê-las da depredação e das revoltas populares e proletárias. Com efeito, como Foucault (1996, p. 79) descreve em suas conferências, destacou-se uma nova forma de controle e penalidade de tal maneira que caracterizará a sociedade contemporânea – a disciplina: “a sociedade contemporânea [...] merece o nome de ‘sociedade disciplinar’”. A disciplina responde à necessidade de utilização racional, intensa e máxima do corpo, constituindo-se como uma das precondições da implementação do capitalismo. Ela implica uma técnica que se inscreve materialmente no corpo humano, manipulando os elementos de suas ações, produzindo comportamentos, em suma, fabricando o tipo de homem que se fez necessário para o funcionamento e a manutenção dessa forma de organização social. (RABINOW, 1999) Portanto, ao controlar os indivíduos em suas ações e aperfeiçoar ao ápice suas capacidades, a disciplina tratou nas sociedades industriais de não simplesmente impor limites, e sim aumentar a utilidade econômica da população e diminuir sua capacidade de revolta. Consequentemente, ela se inseriu e floresceu nas mais diversas instituições (a fábrica, o hospital, o exército, a escola), embora encontrando o seu principal ponto de apoio na prisão.
Se até então a prisão não era vista como a punição em si, mas o meio de evitar a fuga de alguém que seria punido e supliciado em praça pública, por sua vez, ela passou a aglutinar outras funções nas sociedades disciplinares. Tratou-se de utilizá-la para punir, mas, ao mesmo tempo, por meio da pena, isolar, vigiar, controlar, conhecer e corrigir cada indivíduo que estivesse sob seu domínio. Funcionando como uma espécie de microtribunal, a prisão adquiriu o papel de excluir o criminoso para incluí-lo e fixá-lo às normas e disciplinas. Assim, ela produz um saber sobre aquele que é mantido sob vigilância, dando origem às técnicas de exame e mantendo-se como a grande punição do século XIX até os dias de hoje. Acrescenta-se que, da mesma forma que o inquérito foi a matriz das ciências da observação que se desenvolveram nos séculos seguintes ao XIII, o exame penal será a matriz das ciências humanas, entre as quais podemos incluir a psiquiatria, a pedagogia e a psicologia. (FOUCAULT, 1999) A tarefa de enquadrar e de individualizar o criminoso foi ao encontro de uma reforma penal inspirada na doutrina positivista. Por meio desta, passou-se à percepção de que as leis não acarretavam o mesmo efeito de intimidação sobre todas as pessoas. Por conseguinte, para apaziguar os efeitos sociais do crime, de modo que não fosse mais repetido, tornava-se necessário calcular a punição não apenas de acordo com o crime, mas com “as características singulares de cada criminoso”. (FOUCAULT, 1987, p. 90) A partir de então, o indivíduo passou a ser considerado através de suas virtualidades, ou seja, do que ele poderia ou estivesse na iminência de fazer, e não mais a partir de seus atos. Nessa nova economia punitiva, o foco passou a ser a natureza do infrator, sendo julgar por si só menos essencial do que “corrigir, reeducar, curar”. (ibidem, p. 15) Foi assim que, mais do que nunca, a justiça se aparelhou de peritos, por meio dos quais se poderia estrategicamente introduzir a figura do infrator que supostamente preexistiria ao cometimento do crime. Tais peritos encarregavam-se de realizar os exames que compunham o veredicto, lançando luz sobre as circunstâncias atenuantes do crime e tudo o mais “que, pretendendo explicar um ato, não passam de maneiras de qualificar um indivíduo” (ibidem, p. 21-22). Seguindo esse raciocínio, os dados biográficos passam a ser introduzidos com o objetivo de justificar o ato criminoso a partir do indivíduo e, assim, construir a afinidade entre o criminoso e seu crime. Nesse campo, destacaram-se os métodos positivistas de Cesare Lombroso, que eliminaram a religiosidade que cercava a punição dos delitos e crimes e deram origem à criminologia positivista. O exame clínico encabeçado pelo homem da ciência passou a divergir da instrução criminal, fazendo com que os atos em si perdessem relevância frente às categorias mórbidas que justificariam esses mesmos atos. Nessa perspectiva, o autor buscava estigmas físicos que apontassem para a presença de traços congênitos de anomalias que estariam na raiz de certos comportamentos delituosos. Ao mesmo tempo, nesse contexto, começou-se a erigir a “humanidade” do criminoso como limite a ser respeitado. O “Homem” constituiu-se como a fronteira a ser preservada em comparação aos antigos excessos vingativos
do soberano. “Homem” e “medida” passaram a ser a justificativa moral para a suavização das penas, cujos valores nasceram “nas próprias táticas do poder e na distribuição de seu exercício.” (FOUCAULT, 1987, p. 92) . Se o poder soberano foi alvo de crítica de reformadores do século XVIII, não foi porque o soberano abusava de sua força, e sim porque havia uma gestão irregular, dispendiosa e, em suma, ruim do poder de punir. Curiosamente, os crimes pareceram também adquirir certa “suavidade”, dirigindo-se menos aos corpos e mais contra a propriedade, causando a impressão de que a brandura atingiu tanto o campo da punição quanto o da criminalidade. De um lado, a justiça suavizou-se na medida em que se tornou mais meticulosa, ramificando-se nos recônditos das pequenas delinquências que até então eram toleradas. De outro lado, as agressões físicas e os assassinatos cederam mais lugar ao roubo, à pilhagem, à vigarice e à fraude. (ibidem) Foucault observa que esse quadro geral de abrandamento e de humanização esteve ligado à “modificação no jogo das pressões econômicas, de uma elevação geral do nível de vida, de um forte crescimento demográfico, de uma multiplicação das riquezas e das propriedades e ‘da necessidade de segurança que é uma consequência disso’” (ibidem, p. 71). Dito de outra maneira, o surgimento da economia punitiva moderna, mais branda e mais meticulosa, exigiu o desenvolvimento de técnicas mais sofisticadas de controle, a valorização jurídico-moral das relações de propriedade e uma vigilância mais atenta da multiplicidade e das forças que uma população representava. Donde a produção de um “dispositivo da sexualidade”, para o qual as perícias judiciais no campo criminológico foram de fundamental importância. Foi a partir de tais perícias que surgiram os primeiros tratados de psicopatologia sexual que consideravam o instinto como anormal e sem objetivos procriadores, ressaltando que, antes deles, o estudo científico dos comportamentos vistos como perversos já ocupava o centro das perícias judiciárias ao longo de todo o século XIX. A partir de então, o instinto sexual passou a ser localizado na raiz das doenças mentais e do comportamento em geral, assumindo, assim, relevância central na patologia psiquiátrica e se transformando em objeto de interesse da medicina. Acreditou-se que as manifestações patológicas no adulto dito “anormal” seriam tributárias da ausência de controle adquirido no desenvolvimento infantil em relação aos instintos sexuais, de natureza propriamente perversa. É verdade que essa normalização científica do sexual não teria ocorrido se, além das perícias criminológicas, a medicina não tivesse se inscrito no campo das famílias. Ora, foi por meio da atribuição de falhas constitutivas da infância na etiologia do anormal que a psiquiatria se ramificou num conjunto amplo de instituições dos séculos XIX e XX, principalmente por meio dos aparelhos de controle jurídico-pedagógico. Não por menos, o “mercado da infância” foi o principal ponto de apoio para a abertura do que Donzelot (1980) chama de uma perícia psiquiátrica restrita para uma perícia generalizada. Com essa transposição, abriram-se as portas para que a psiquiatria concentrasse a fonte dos distúrbios na
família e discriminasse as causas das anomalias entre a ausência de disciplina, de um lado, e de outro lado, a presença de degenerações. Desde o fim do século XVIII, passou-se a acreditar que os perfis dos “monstros” do judiciário já poderiam ser identificados desde as suas infâncias, de forma atenuada, no interior das famílias. Dizia-se: os pequenos masturbadores de hoje podem se tornar os loucos criminosos de amanhã (FOUCAULT, 2001) . Tal raciocínio tinha como efeito a conexão entre as irregularidades intra e extrafamiliares. Logo, as perícias psiquiátricas no campo criminológico foram um dos alicerces principais que, associado à busca de degenerações na sexualidade infantil, ampliou o arco de ação da psiquiatria a ponto de se imbuir da tarefa de proteção da ordem social e da raça humana, pretendendo, assim, gerenciar e legislar sobre as uniões conjugais e familiares. A psiquiatria deixou de ser uma mera gestora da loucura para se transformar na gestora privilegiada da ordem social, sendo necessário que, para tanto, ela incorporasse em seu campo de conhecimento a ideia de que uma doença, vício ou defeito poderia causar, de uma geração a outra, qualquer outra anomalia: alcoolismo, tuberculose, doença mental, comportamento delinquente, etc. Bastaria encontrar em qualquer ponto da hereditariedade um desvio para explicar a emergência de um “estado mórbido” no indivíduo descendente. Em suma, a teoria psiquiátrica da hereditariedade e da degenerescência atribuía aos ascendentes a responsabilidade das aberrações que se constatavam nos descendentes. A anamnese dirigida pelo médico exerce uma importância fundamental na busca de dados sobre a degenerescência do indivíduo, pois “se a marca de sua realidade não se inscrevia no corpo, deveria aparecer sob a forma de predisposições que se revelariam através de lembranças infantis [...], indicando os antecedentes da doença” (GARCIA-ROZA, 2000, p. 29) como pertencentes à família. Portanto, uma descoberta da medicina do século XIX foi a técnica do interrogatório que visava a obtenção de uma confissão, isto é, “o reconhecimento, por parte do paciente, de sua própria loucura.” (ibidem, p. 30) Encontramos novamente, embora no plano das alianças conjugais e familiares, o sujeito visto em sua virtualidade, cabendo à psiquiatria antecipar e administrar as diversas formas de manifestação de anomalias que podem afetar a ordem social. Nesse contexto, a psiquiatria se transforma em estratégia biopolítica que percorre o espaço social e intervém nos pequenos desvios de conduta, abrangendo a quase totalidade dos assuntos humanos.
A partir de então, a psiquiatria não se satisfez mais em dar pequenas orientações à higiene privada, e sim assumir de vez a indicação e a contraindicação das uniões conjugais e familiares. A degeneração foi o ponto de apoio essencial para a medicalização da vida humana em seus pormenores, pois incidia sobre a reprodução, ou seja, aquilo do qual escapavam os prazeres, mas que ao mesmo tempo transmitia a anomalia entre as gerações, de uma aliança conjugal à aliança familiar e vice-versa. Para os médicos, tratou-se de edificar a sexualidade em negócio de Estado, passando por cima do arbítrio familiar e da moral cristã. (DONZELOT, 1980) Por sua vez, o projeto de profilaxia das anomalias não deixou de enfrentar certos obstáculos, esbarrando, inclusive, numa tendência familiarista – também jurídica e nacionalista – que preconizava o abrandamento do controle da família pelos aparelhos do estado. A luta entre ambas as correntes foi fundamental, vale dizer, para o sobrepujamento da psicanálise em relação à psiquiatria enquanto tecnologia estratégica do biopoder, fato ocorrido em boa parte do Ocidente moderno. Donde a multiplicação, em meados do século XX, de psicanalistas, assim como de psicólogos, conselheiros e especialistas da vida familiar e da liberação sexual que se tornaram “nossos novos diretores de consciência”. (ibidem, p. 170) Donzelot (1980) descreve o contexto da França no qual a psicanálise destituiu a família de parte de seus antigos poderes, sem, contudo, anulá-la, atribuindo-lhe novas tarefas educacionais. Logo, na batalha entre a tendência familiarista e a tendência medicalizante, triunfou a primeira ao se apoiar na psicanálise e reverter estrategicamente para si o tema da educação e da liberação sexual enquanto instrumento privilegiado de profilaxia. Para tanto, foi crucial a formação, entre os anos 1930 e 1940, de um núcleo familiarista chamado Escola de Pais, cuja preocupação inicial era o problema da desadaptação infantil na escola. Foi por meio desse vínculo entre família e escola que se alavancou a difusão social da psicanálise, substituindo uma psiquiatria da degenerescência que, com seus diagnósticos fatalistas, não parecia mais cumprir seu papel regulador. Nesse movimento, ela modificou as funções da família, sem deixar de salvaguardar a sua importância na formação individual e na qualificação social de sua descendência. No caso francês, a psicanálise jogou com a estratégia educacional da família, transformando-a mais uma vez em objeto e agente de normas relacionais – só que, agora, de cunho psicológico, e não médicopedagógico. (ibidem)
Assim, desde a segunda guerra mundial, as linhas de transformação da família desqualificaram o antigo círculo médico e religioso em proveito de um novo enquadramento: o psi. Cabe observar que não se tratou de reforçar pura e simplesmente a família, quando, na verdade, ela foi, em parte, dissuadida. Em especial, a expansão da psicanálise permitiu não somente o afrouxamento das nosografias psiquiátricas, mas também a flexibilização das relações de aliança. Com efeito, de pilar da sociedade, a família passou a ser, nos discursos psi que floresceram nessa época, o lugar que corre permanentemente o risco de se desfazer. Donde se conclui que a chamada “crise da família” e a solução psi são um só mesmo processo político. (ibidem) Nesse panorama, a psicanálise e os demais discursos psi extrapolaram o domínio da escola e conquistaram inúmeras instituições, dentre as quais as do aparelho judiciário. Apesar de também penetrar nas Varas de Família, foi na “Justiça de Menores” que, no contexto francês, a psicanálise teve forte influência, a ponto de fazer com que o jurídico retomasse suas formas de intervenção moral e controle sobre as famílias. Ao se associar à psicanálise, tornou-se possível ao jurídico resgatar as atividades normalizadoras, na medida em que se conseguia dissolver a resistência das famílias e chamar os pais a assumirem a responsabilidade perante os filhos. Mais ainda, foi por meio da própria psicanálise que a figura do psiquiatra abandonou o cabedal de cientista positivista e se transformou num aliado das práticas pedagógico-preventivas do juiz, desfazendo o hiato que existia antes entre os dois. Em suma, a psicanálise ampliou a inserção do perito-psiquiatra na cena jurídica e, ao mesmo tempo, permitiu a ampliação do poder simbólico do juiz, mesmo em lhe fazendo escapar ainda mais os mecanismos decisórios. (ibidem) Concomitantemente, multiplicaram-se as leis protetoras da infância, que passaram a desqualificar as medidas de correção paterna, sendo implantado um sistema de delação de abusos contra a infância que se mantém até os dias de hoje. Tal sistema situa a família há cerca de três séculos diante da obrigação de reter e vigiar seus filhos, tornando-a uma participante ativa da tutelarização de seus membros. A própria igualdade jurídica entre o homem, a mulher e os filhos passou a apresentar imensas vantagens estratégicas, pois, em não havendo mais o arbítrio absoluto do primeiro, provocava-se a controvérsia e dava-se início à verificação e ao inquérito social, multiplicando-se os interlocutores e ampliando suas intervenções. (BRANDÃO, 2012) Encontramos, finalmente, as linhas de força que compõem o cenário de entrada da figura do psicólogo no campo jurídico. O resgate do poder simbólico do juiz, a normalização e, ao mesmo tempo, a flexibilização das relações de aliança, o discurso de crise das famílias, a centralidade da criança, a produção de virtualidades para além do campo criminológico e a generalização da perícia constituem, entre outros fatores, a base da inscrição da perícia psicológica. Tais linhas de força são as razões pelas quais a psicologia penetra nas Varas de Infância e Juventude e de Família, em particular no Brasil, ao final dos anos 1980 e 1990, conforme dito anteriormente, embalada pelos direitos
humanos proclamados na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Para tanto, torna-se necessário fazer uma releitura histórica da psicologia jurídica no Brasil, não sendo suficiente atrelá-la epistemologicamente à publicação em 1955 do Manual de Psicologia Jurídica, de Mira y Lopes – que “marcou o surgimento desta área de conhecimento” (ALTOÉ, 1994, p. 1) : A história nos mostra que a primeira aproximação da Psicologia com o Direito ocorreu no final do século XIX e fez surgir o que se denominou “psicologia do testemunho”. Esta tinha como objetivo verificar, através do estudo experimental dos processos psicológicos, a fidedignidade do relato do sujeito envolvido em um processo jurídico. (ibidem) Em vez de afunilar a origem da psicologia jurídica das últimas décadas ao estudo do comportamento criminoso que marcou o modelo positivista da psicologia forense ou do testemunho, convém fazer a releitura à luz do traçado genealógico feito acima. Com efeito, será possível elucidar não apenas as razões pelas quais a perícia seduz os operadores do Direito, mas também as linhas de força que vêm instalando uma crise duradoura no campo da psicologia jurídica. A começar, vejamos a maneira como se mantém o poder simbólico do juiz em nosso contexto sócio-jurídico. Nas sentenças judiciais, devem ser produzidas provas que ajudam a formar a “convicção íntima” do juiz em seu ato decisório (com a ressalva de que, em se tratando da matéria civil, as provas materiais são, amiúde, insuficientes para terem força de convencimento). No direito processual brasileiro, um dos princípios fundamentais que regulam as ações do juiz é o de livre convencimento ou persuasão racional. De acordo com tal princípio, a partir do caso concreto e após a apresentação das provas e dos argumentos, o juiz tem liberdade para decidir acerca de seu conteúdo da forma que considerar mais adequada – conforme seu convencimento – e dentro dos limites impostos pela lei e pela Constituição, fundamentando para tanto a sua decisão. Nesse panorama, o laudo pericial é um elemento importante dentro do processo judicial, pois funciona como “prova” e complementa as demais, entre as quais, documentais, testemunhais e confessionais. Entretanto, em considerando que boa parte das provas nas áreas de Família e de Infância e Juventude são vistas como “subjetivas” e sem muita materialidade, o juiz prefere se apoiar no laudo pericial – com a ressalva de que, assim, ele pode manobrar suas decisões e, logo, manter incólume o seu poder simbólico.
Com base no “livre consentimento”, o magistrado não precisa estar preso à perícia para dar seu veredito. Mais ainda, ele pode nomear o perito “de sua confiança”, independente do fato de existirem profissionais disponíveis no quadro dos tribunais. Para ser mais exato, o juiz não está adstrito ao laudo psicológico e tampouco à equipe interprofissional de sua Vara, possuindo autonomia para nomear quantos psicólogos e assistentes sociais achar, a princípio, necessários. Por fim, ele pode também considerar partes de um laudo e partes de outro, ou, na pior das hipóteses, nenhum dos dois. Ramos e Bicalho (2012) retratam bem os efeitos dessa manobra que preserva o poder simbólico do juiz ao mesmo tempo em que são colocados em marcha mecanismos de normalização das virtualidades. Trata-se de um caso que os autores denominam de “UBU”, ⁴ que foi iniciado por uma demanda de regulamentação de guarda de uma criança e é finalizado por uma denúncia de abuso sexual contra essa mesma criança onde autor e réu trocam de papéis. Nessa transição, o laudo pericial transforma-se numa importante ferramenta que forma a convicção íntima dos operadores do Direito, supondo a virtualidade do pai, suposto abusador, para então construir uma verdade a seu respeito e condená-lo moral e juridicamente. Para proteger a criança das virtualidades do pai, isto é, do que ele poderia vir a fazer, o mais ínfimo elemento de demonstração – o laudo – foi suficiente para condená-lo sem provas que fossem mais concretas. Não se trata aqui simplesmente de questionar o poder e a arbitrariedade das decisões judiciais, e sim de lançar luz sobre as vantagens estratégicas que o laudo oferece à manutenção da força simbólica do juiz. Todavia, torna-se necessário mais um esforço teórico para elucidar o impasse atual no campo da psicologia jurídica, cuja espinha dorsal, conforme já vimos, situa-se na dicotomia entre a demanda por perícia e as práticas ditas alternativas à confecção de laudos. De forma geral, tais práticas correspondem à recusa de psicólogos e equipes interprofissionais em responder diretamente às demandas judiciais que, em Varas de Família e de Infância e Juventude, correspondem a definir o mais apto a obter a guarda, conceder ao genitor o direito de visita à prole, habilitar o candidato à adoção, recolocar a criança na família de origem, aplicar a medida socioeducativa mais adequada ao adolescente autor de ato infracional, entre outras tantas que, em última instância, definem virtualidades dos mais diversos matizes. Para fazer frente a essas demandas, esses profissionais propõem atuações que promovem e orientam os jurisdicionados a compor ativamente as resoluções para os seus próprios impasses. A “participação ativa” e a “autonomia” transformam-se na pedra de toque dessas “novas” práticas que, dependendo de algumas modalidades, agenciam outros atores (família, escola, comunidade, etc.). Apesar das diferenças entre os dispositivos, a grande maioria pretende fazer frente aos paradigmas tradicionais do Direito. Não obstante, tais práticas não constituem propriamente um campo de “resistência”, se levamos em conta a leitura crítica empreendida acima. Ao contrário, pretendendo fazer face às formas predominantes do direito, elas
não fazem mais do que colocar em marcha as formas sutis de gestão social das irregularidades. Para tanto, é importante observar que o direito da infância e da juventude transformou-se num forte vetor de intervenção do estado na vida privada, embora, amiúde, solicitada pelas próprias famílias. Conforme apontado por Théry (2007), a proclamação dos Direitos da Infância e Juventude na Convenção Internacional de 1989 consolidou dois sentidos contraditórios a respeito de seu campo. De um lado, o sentido que diferencia a criança do adulto e, portanto, faz com que ela seja portadora da necessidade de proteção (assim sendo, são concedidos direitos peculiares à criança em vista de sua vulnerabilidade, podendo a mesma ser, inclusive, irresponsável por não possuir a autonomia inerente ao adulto). De outro lado, o sentido que procura excluir a especificidade da proteção, cujo cordão em torno da criança é visto como uma forma moderna de opressão secular. Seguindo esse raciocínio de origem anglo-saxônica, busca-se menos a proteção integral do que a aquisição de “novos direitos”, acreditando-se que a criança seja capaz de exercer os direitos civis, entre os quais de opinião, expressão, pensamento, consciência, associação, etc. Logo, há um emprego indiscriminado no campo dos direitos, com uma preocupante esfera de triunfo que se formou a partir dessa segunda corrente. Decorreu da Convenção Internacional uma campanha intempestiva fomentada pelos “ideólogos dos novos direitos” – ou, como chama Théry (2007, p. 139), pelos “partidários da autodeterminação das crianças”. Os “novos direitos” são como uma “fórmula mágica” que suprime a vulnerabilidade infantil e eleva a criança a um patamar no qual os seus interesses estariam isolados e em franca oposição aos interesses dos seus pais. (ibidem) Em face desse panorama, tal concepção a respeito dos “novos direitos” da criança paira sobre práticas jurídicas que se tornam cada vez mais corriqueiras, resultando no costume generalizado de oitiva de crianças, por exemplo, em audiências judiciais a respeito de disputa de guarda e de regulamentação de visitas. Donde se construiu desde então um novo paternalismo, não familiar, e sim do estado, utilizando-se da infância como base para a diluição do Direito e a multiplicação insidiosa de normas e disciplinas nos interstícios das relações doméstico-familiares. Tais tecnologias sutis de controle, tutela e dominação carregam consigo o discurso soberano do Direito, judicionalizando cada vez mais a convivência íntima entre homem e mulher e, sobretudo, entre pais e filhos. Em face desse panorama, as práticas alternativas à perícia não fazem frente a esse poderoso vetor de normalização e tutela sobre as individualidades. Pelo contrário, elas não fazem nada que não seja submeter cada jurisdicionado a tecnologias que impõem modificações sobre si mesmo. De forma sutil e mascarada por uma pretensa autonomia dos sujeitos envolvidos em conflitos jurídicos, as práticas psicológicas vetorizadas pelos direitos da infância visam a transformar sutilmente as normas e disciplinas, fortemente inspiradas pelo direito, em desejos pessoais e, assim, salvaguardar a ordem social.
Para agravar a situação, tais práticas não conseguem sequer abalar o encantamento que os laudos exercem sobre os operadores do direito há mais de dois séculos. Donde se encontra a espinha dorsal do profundo malestar e da desconfortável estagnação na qual repousa a psicologia jurídica nos tempos atuais. Sem a releitura genealógica desse campo, torna-se inviável incidir estrategicamente nas linhas de força do aqui e agora. 1 Houve mais dois concursos, em 2002 e 2014. Os assistentes sociais e psicólogos do quadro foram distribuídos conforme as diretrizes do Campo de Aplicação e vigência no Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, que define as equipes como grupo de analistas judiciários na especialidade Psicólogo e Assistente Social, dividindo-se, majoritariamente, em cinco tipos: Equipe Técnica Interdisciplinar Cível (ETIC), Vara da Infância e da Juventude (VIJ), Vara da Infância e da Juventude e Idoso (VIJI), Central de Penas e Medidas Alternativas (CPMA) e Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFCM). Segundo dados fornecidos pela corregedoria, o quadro atual (ano de 2015), é composto por 207 psicólogos, dos quais 118 estão lotados nas ETICs responsáveis pelo atendimento às Varas de Família e 62 nas VIJs e VIJIs (os 27 restantes estão distribuídos em outros setores do TJ). 2 Retornaremos a esse ponto mais adiante. 3 “Ao se interrogar o médico, hoje em dia, com a questão propriamente insensata: esse indivíduo é perigoso?” (FOUCAULT, 2001, p. 52) 4 Os autores justificam tal denominação por se inspirarem em Foucault (2001), quando “aponta o cruzamento entre os enunciados científicos e jurídicos usados para legitimar como estatuto de verdade a produção desses discursos que estão alheios às próprias regras científicas e jurídicas.” (RAMOS e BICALHO, 2012, p. 15 ) Referências ALTOÉ, Sônia. Atualidade da psicologia jurídica. 1994. Disponível em: < http://pt.scribd.com/doc/2519940/Atualidade-da-psicologia-juridica > Acesso em: 20 fev. 2016. ARANTES, E. M. de M. Mediante quais práticas a psicologia e o direito pretendem discutir a relação?: anotações sobre o mal-estar. 2007. Disponível em: < http://www.crprj.org.br/documentos/2007artigo-esther-arantes.pdf >. Acesso em: 20 ago. 2014. BRANDÃO, Eduardo. Sexualidade e aliança na contemporaneidade: nem Édipo, nem barbárie: uma contribuição genealógica ao debate psicanalítico. Curitiba: Juruá, 2012. BRANDÃO, Eduardo; GONÇALVES, Hebe (Orgs.). Psicologia jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: NAU, 2011. BRITO, Leila (Org.). Temas de psicologia jurídica. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999.
DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro: Graal, 1980. FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 1999. __. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU, 1996. __. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. __. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. GROENINGA, G.; PEREIRA, R. (Orgs.). Direito de família e psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003. RABINOW, Paul. Antropologia da razão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999. RAMOS, S. I; BICALHO, P. P. A avaliação psicológica em Varas de Família: “ubuescas” proteções à infância. Polis e Psique: revista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rio Grande do Sul, v. 2, n. 2, p. 63-80, 2012. SANTOS, Boaventura; CHAUÍ, Marilena. Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez, 2013. THÉRY, Irène. Novos direitos da criança: a poção mágica? In: ALTOÉ, Sônia (Org.). A Lei e as Leis: direito e psicanálise. Rio de Janeiro: Revinter, 2007. Duas décadas e meia de vigência da Convenção sobre os Direitos da Criança: algumas considerações ¹ Esther M. M. Arantes Introdução Por iniciativa da delegação da Polônia, e para dar força de lei aos direitos da criança, a Organização das Nações Unidas (ONU) constituiu, em 1979, um Grupo de Trabalho (GT) para dar início à elaboração do texto da Convenção sobre os Direitos da Criança (CDC), que foi debatido durante dez anos. Adotada por unanimidade pela Assembleia Geral, em 20 de novembro de 1989, a CDC foi aberta para ratificação em 26 de janeiro de 1990 e entrou em vigor em 2 de setembro do mesmo ano, significando que cada Estadoparte assumia o compromisso de construir uma ordem legal interna voltada para a sua efetivação. Até o final de 2014, Somália, Estados Unidos da América e Sudão do Sul não a haviam ratificado. No entanto, no início de 2015, Somália tornou-se o 194º país a ratificar a CDC ² , sendo que o Sudão do Sul já teria iniciado os procedimentos para sua ratificação.
Dentre as razões existentes para a não ratificação da CDC pelos EUA está o receio, por parte de setores da sociedade norte-americana, de que a ONU passe a ditar como as crianças devem ser criadas, interferindo no poder parental e na soberania do país. Acreditam que, após a ratificação, o Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança passe a funcionar nos EUA como uma espécie de “Suprema Corte dos direitos da criança” (SMOLIN, 2006) . No entanto, por não terem ratificado a CDC, os EUA não podem ter representação no Comitê, fato lamentado por alguns autores. (BARTHOLET, 2011) Contendo um Preâmbulo e uma parte substantiva, onde são apresentados os direitos da criança ³ , e duas outras partes, dedicadas ao seu cumprimento e monitoramento, a CDC é considerada um dos documentos mais completos de direitos humanos dentre os aprovados pela comunidade internacional, afirmando quatro grandes princípios: (1) não discriminação; (2) melhor interesse da criança; (3) direito à sobrevivência e ao desenvolvimento, e (4) respeito à opinião da criança. Embora o Brasil tenha sido um dos primeiros países a ratificar a CDC ⁴ (e sem ter feito Reservas aos seus artigos, o que significa que não estabeleceu nenhuma condição para a sua vigência no Brasil), a Convenção é ainda pouco conhecida e debatida entre nós. Embora se admita que a aprovação do pré-texto da CDC tenha influenciado a redação do Art. 227 da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), certo é que, nos dez anos em que o texto da CDC foi discutido na ONU, os debates sobre os direitos humanos de crianças e adolescentes no Brasil centraram-se, sobretudo, na necessidade de superação da histórica divisão da infância entre “criança” e “menor”, ⁵ não se vislumbrando um debate das tensões entre os direitos de proteção e autonomia trazidos pela CDC. É o que pensam também Rosemberg e Mariano (2010, p. 693) quando afirmam que o interesse que tiveram em discutir a Convenção [...] decorre não só da escassez da bibliografia brasileira, apesar da célere ratificação do documento pelo Brasil e de ele ter inspirado a elaboração do art. 227 da Constituição Brasileira de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Deriva, sobretudo, de sua inovação na representação de infância e dos direitos da criança e, em consequência, da intensa e instigante produção acadêmica que tem provocado no hemisfério norte. Além disso, parece-nos urgente que a sociedade brasileira disponha de embasamento mais consistente sobre os marcos legais que adota. Essa ausência de debate nos faz imensa falta, tanto pelo caráter de lei da CDC, quanto pelas tensões existentes entre a pretendida universalização dos direitos e as imensas desigualdades de renda e de oportunidades existentes no Brasil, como também em relação à diversidade cultural, com impacto direto em como pensamos as questões das crianças indígenas, por exemplo. Esse debate também se faz necessário levando-se em consideração que muitos projetos dirigidos às crianças e aos adolescentes no Brasil têm origem em programas internacionais, muitos dos quais acriticamente transportados para nossa realidade.
O contexto de elaboração e ratificação da CDC Embora até o início de 2015 a CDC tenha sido ratificada por 194 países, tornando-se o documento de direitos humanos com mais adesão no plano internacional, dezenas de países fizeram Reservas e Declarações aos seus artigos, para compatibilizar a CDC com a cultura, religião e legislação nacionais. Muitos foram os assuntos que geraram debates durante os dez anos de sua elaboração, como, por exemplo, o estabelecimento de uma idade mínima e máxima para a definição de criança, implicando discutir se a sua proteção deveria incluir a proibição da interrupção voluntária da gravidez e, também, a proibição da participação em conflitos armados. [...] para lograr los amplios consensos requeridos para una aceptación casi universal del tratado, muchos temas polémicos están ausentes o bien fueron regulados de manera tal que no quede establecido un estándar categórico. Ello se advierte en lo que se refiere a la definición del sujeto niño, a la falta de consideración de diferentes franjas etarias (niños y adolescentes, por ejemplo), a los derechos sexuales y reproductivos, a la prohibición de castigos físicos, al trabajo infantil, a la adopción, a los límites a la protección, a las tensiones entre derechos-deberes de los padres y derechos de los niños y niñas, entre otros. (BELOFF, 2008, p. 15) ⁶ Uma questão de fundo, objeto de vários questionamentos, diz respeito à participação majoritária de países europeus, além dos Estados Unidos da América, Canadá e Austrália, na elaboração do texto da CDC. Os países da África, Ásia e América Latina foram pouco representados no GT, embora não estivessem impedidos de participação. Quanto a isso, o representante do Senegal chamou a atenção do GT para os resultados de um Seminário ocorrido em seu país, onde se afirmou a necessidade da CDC levar em conta os valores culturais da África (UNITED NATIONS, 1992) . O representante da Venezuela lamentou que um encontro regional semelhante não tivesse ocorrido na América Latina, embora o representante da Argentina tenha mencionado um encontro latino-americano realizado em Buenos Aires, em setembro / outubro de 1988, em apoio ao texto da Convenção. ⁷ De qualquer modo, embora comparecendo aos encontros do GT, a participação brasileira na elaboração do texto da CDC se mostrou bastante discreta. ⁸ Segundo Pilotti (2000) apud Mariano (2010, p. 60): [...] somente os países industrializados do ocidente formaram um bloco claramente identificável, denominado “grupo ocidental”, composto por Canadá, Austrália, Suécia, Noruega, Áustria, Finlândia, Reino Unido e Estados Unidos da América (EUA), entre outros, os quais articulavam conjuntamente suas estratégias frente aos temas incluídos na agenda de cada reunião do Grupo de Trabalho. A arena de negociação da CDC também foi palco para outros embates políticos entre os estados, nos quais a defesa da criança foi instrumento de disputa e confrontações dentro do contexto da “Guerra Fria”, principalmente no período inicial dos trabalhos de elaboração da Convenção, quando os direitos humanos faziam parte da confrontação política entre os países do Leste e Oeste. Ainda segundo Pilotti (2000) apud Mariano (2010, p. 61), a disputa entre os blocos também se deu na primazia concedida aos diferentes tipos de
direitos, sendo que esta disputa apenas teria sido amenizada na segunda metade dos anos 1980: “[...] os países pertencentes ao bloco soviético defendiam a primazia dos direitos econômicos e sociais, enquanto alguns países ocidentais, particularmente os EUA, somente reconheciam como direitos humanos legítimos os de caráter civil e político”. Nesse sentido, os EUA teriam proposto a maioria dos artigos relativos aos direitos civis e políticos: En respuesta al predominio de los derechos sociales em el borrador original presentado por Polonia, los Estados Unidos propusieron la incorporación de la mayoria de los artículos referidos a los derechos civiles y políticos de los niños: 13 (libertad de expresión), 14 (libertad de pensamiento, conciencia y religión), 15 (libertad de asociación y reunión) y 16 (derecho a la privacidad). Asimismo, esse país participó activamente em el desarrollo del artículo 17 (acceso a la información). El artículo 12, referido a la libertad de opinión, fue elaborado principalmente por Estados Unidos, Canadá, Australia y Dinamarca, a partir del texto original presentado por Polonia. Durante las discusiones de estos artículos, las delegaciones de la ex Unión Soviética y la ex República Democrática de Alemania fueron las más críticas sobre el contenido de los mismos. Por outra parte, la versión original del artículo 14, referido a la liberdade de religión, defendida por los representantes de los países occidentales industrializados com el apoyo del bloque latinoamericano, fue rechazada por el grupo de países islâmicos. El artículo aprobado corresponde a um texto de caráter muy amplio, resultado de las intensas negociaciones realizadas para alcanzar el necessário concenso. (PILOTTI, 2000, p. 44) ⁹ Essa tensão pode ser mais bem visualizada levando-se em conta o fato de que, apesar de 26 países da Europa, 19 da Ásia, dez do Oriente Médio, dez da África, sete das Américas e dois do Caribe terem feito Reservas aos artigos da CDC, apenas dois países da Europa receberam Objeções às suas Reservas, sendo todas as demais Objeções ¹⁰ feitas aos países não europeus. ¹¹ Não é nosso objetivo, no presente texto, fazer uma análise de cada uma das Declarações e Reservas feitas à CDC, bem como das Objeções a esta, mas apenas o de apontar a existência de tensões entre os países durante o processo da elaboração e ratificação da CDC. Nesse sentido, caso os EUA venham a ratificar a CDC, deverão fazer inúmeras Reservas. Curiosamente, os artigos propostos pelos EUA para a CDC são, justamente, os que têm gerado polêmica e oposição naquele país. ¹² A seguir, nossa atenção se voltará para algumas destas tensões, por considerá-las importantes para o debate envolvendo crianças e adolescentes no Brasil. Infância ou infâncias? Sobre universalismo e diversidade cultural Segundo Dinechin (2015) ¹³ , a Convenção tem sido criticada por apresentar uma visão ocidental de criança. El ninõ occidental, idealizado em los trabajos preparatorios de la CDN se convertiría en el niño internacional através del Derecho Internacional, es
decir, em um niño que se beneficia de unas reglas comunes, independientemente de su cultura. Em los trabajos preparatorios, durante la 35ª sesión de la Comisión de los Derecho Humanos (1979) estaban presentes no más que 30 países en el grupo de trabajo: 30 países em los que los Estados occidentales y las ONGs internacionales estaban sobre representados. [...] Así pues se deve estudiar la CDN teniendo em cuenta las circunstancias que la originaron, captar no sólo las necessidades que las justifican (la situación de los niños) sino también la politica a la que va asociada. ¹⁴ Apesar do texto final da CDC ter levado em conta as ponderações dos diferentes países, restaram dificuldades que não devemos desconhecer, como, por exemplo, decidir o que devemos compreender por “práticas tradicionais contrárias à saúde da criança”. Nesse sentido, ainda que a CDC, em seu Art. 30, afirme o respeito às minorias e aos indígenas e que a eles não será negado ter sua própria cultura, professar e praticar sua própria religião ou utilizar seu próprio idioma ¹⁵ , por outro lado, também afirma, no Art. 24 (3), que “Os Estados-partes adotarão todas as medidas eficazes e adequadas para abolir práticas tradicionais que sejam prejudiciais à saúde da criança”. Esses dois artigos nem sempre são facilmente conciliáveis. Segundo Smith (1998, p. 171), o Art. 24 (3) foi proposto tendo em vista a prevenção da mutilação genital de meninas e incluía também, em sua proposta inicial, a proteção em relação às investigações médicas e os tratamentos prejudiciais à criança, como podemos ver a seguir: Os estados partes desta Convenção devem proteger as crianças em relação a quaisquer investigações médicas ou tratamentos prejudiciais à sua saúde física ou mental e ao seu desenvolvimento, e tomar todas as medidas apropriadas para prevenir práticas tradicionais prejudiciais à sua saúde. ¹⁶ No entanto, alegando não se ter chegado a um consenso ou não se ter suficientemente discutido o tema, o Art. 24 (3) foi aprovado mencionando apenas “as práticas tradicionais contrárias à saúde da criança”. Ainda que a intenção seja proteger a integridade física da criança, esse artigo não é de fácil compreensão e corre o risco, como já vem acontecendo no Brasil, de se prestar às mais abusivas interpretações –como, por exemplo, a de considerar como sendo “cárcere privado” os ritos de passagem para a vida adulta de grupos indígenas ou os ritos de iniciação nas religiões afrobrasileiras, por manterem os iniciantes isolados por determinado período de tempo. Nesse sentido, não podemos desconhecer a existência, no Congresso Nacional, de projetos de leis que visam criminalizar práticas tradicionais dos povos indígenas. Veja-se, por exemplo, a polêmica instalada sobre o tema “infanticídio”, quando foram mostradas cenas de simulação de enterro de crianças indígenas em um programa de televisão. ¹⁷ Especificamente em relação a esse tema, Holanda (2008, p. 3) chama a atenção para a utilização simplista de categorias ocidentais como “infanticídio” para “diagnosticar” diferentes estratégias ameríndias, afirmando que:
O projeto de criminalização do que vinculou-se chamar infanticídio indígena é fruto de uma concepção hegemônica do que é vida, do que é ético e do que é humano, demarcando quem tem legitimidade para outorgar estas fronteiras. Contudo, os direitos indígenas, sobretudo o direito à diferença, só poderão ser garantidos por meio da superação do pensamento jurídico moderno e de sua ficção monista, que supõe o Estado como único produtor de juridicidade. [...] O que está em jogo aqui é quem detém o poder de nomeação de humanidades e alteridades. Assim, diante da noção de “práticas tradicionais contrárias à saúde da criança” (CDC) ou de “práticas tradicionais contrárias aos direitos humanos” (Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT – sobre Povos Indígenas e Tribais), é necessário pensar quais são as consequências da transposição, sem maiores problematizações, de categorias ocidentais para as diferentes tradições culturais, incluindo os indígenas brasileiros. Ou seja, o que é ser criança, filho, pai, mãe, parente etc., nas diferentes tradições? O que isso implica com relação ao modo do cuidado, distribuição das tarefas, alianças e expectativas? Como deve se dar o diálogo intercultural para que este não se constitua mera imposição de valores ou recolonização? Ramirez (2005, p. 4) aponta a questão que considera fundamental nesse debate: a coexistência, em um mesmo Estado, de sistemas de regulação social diferentes. Segundo a autora, não existe proteção adequada das minorias étnicas se não admitirmos a existência de pluralismo jurídico. Si no reconocemos derechos diferenciados que surgen de las propias diferencias de estos pueblos, el Estado no podrá garantizar una inserción plena, que reduzca la vulnerabilidad de los grupos afectados, y que les de cabida dentro de un marco democrático de interacción. Esto no significa que la tarea sea sencilla, y que no existan problemas que merezcan una reflexión más profunda (como lo es la vigencia de los derechos humanos), pero lo cierto es que hoy es impensable concebir un Estado de Derecho “genuino” que no implique el respeto a la diversidad. La pregunta sigue siendo cuáles son los caminos para que este respeto sea posible. De lo que se trata, entonces, es de discutir cuál es la legitimidad de los Estados en donde la dimensión multiétnica es ya incuestionable. Y si los derechos individuales pueden dar respuestas a reivindicaciones en términos de una protección específica de sus identidades y tradiciones culturales distintivas. (p.4) ¹⁸ Esse não é um debate simples e, segundo a autora, tem colocado em lados opostos “comunitaristas” versus “liberais”, na medida em que os primeiros sustentam que os direitos individuais não são suficientes para dar conta das identidades forjadas nas culturas e, os segundos, que os direitos coletivos não devem prevalecer sobre os direitos individuais. Para Ramirez, é necessário aprofundar esse debate, levando também em consideração que os direitos humanos têm sido pensados, fundamentalmente, a partir de um olhar ocidental. Tal vez sea pertinente plantear la necesidad de iniciar un trabajo de resignificación de cierta concepción de los derechos humanos, que ha
prestado poca atención a las posturas indigenistas. Si bien en este trabajo defiendo la importancia del respeto a los derechos humanos, no es posible pasar por alto que estos derechos humanos son definidos desde una “mirada occidental”, que no profundiza sobre un paradigma intercultural, que es imperativo desarrollar para que el respeto hacia “el otro” sea genuino. (ibidem, p. 12) . ¹⁹ De qualquer modo, não se podem ignorar as questões colocadas por uma sociedade cada vez mais pluricultural e pluriétnica. Isto implica, segundo Robert Castel, mesmo em relação ao modelo republicano francês, que tende a enfatizar fortemente o universalismo e a se ver como uma república monolítica, “que um novo lugar seja dado às diferenças raciais e religiosas dentro da cidadania”. (CASTEL, 2008, p. 107) De acordo com Pilotti (2000, p. 53), a polêmica em torno da primazia da universalidade ou do relativismo cultural na implementação da CDC pode ser colocada nos seguintes termos: Por una parte, la aspiración universalista de la Convención supone um conjunto de normas inspiradas em uma concepción global e ideal de la infancia, mienstra que, por outra, el relativismo cultural cuestiona la aplicabilidad de normas universales aduciendo la existencia de uma diversidad de infancias, realidades cuyos marcos normativos sólo pueden abordarse a partir de sus especificidades espaciales, temporales y socioculturales. ²⁰ Essa diversidade cultural pode ser exemplificada, por exemplo, pela Carta Africana sobre os Direitos e Bem-Estar da Criança ²¹ , de 1990, que no artigo 31, intitulado “responsabilidade da criança”, afirma que esta tem o dever de zelar pela coesão familiar, assistir aos pais quando em dificuldade financeira, servir a comunidade nacional e preservar e fortalecer a solidariedade social e nacional. (ibidem, p. 54) Não estamos, no entanto, condenados a permanecer neste impasse, como se as culturas e os direitos fossem essências imutáveis e verdades absolutas, e como se o diálogo intercultural não pudesse acontecer. Ademais, como nos ensinam os antropólogos brasileiros, Os índios contemporâneos não vivem isolados em florestas intocadas nem em um passado remoto. Em sua maioria habitam em áreas reservadas assistidas pelo Estado, em convívio intenso com funcionários governamentais, vizinhos não indígenas e autoridades municipais e estaduais, frequentemente articulados, inclusive, com a rede de comunicação e a Internet. (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, s.d.) Proteção versus autonomia? Sobre a criança como “sujeito de direitos” e o “direito à infância” Em importante trabalho de pesquisa, Pinheiro (2006) mostrou como diferentes representações de crianças estiveram presentes nos debates da Constituinte. Ao lado da representação como sujeito de direitos, também estiveram presentes as representações da criança e do adolescente como
objetos da assistência, controle, disciplinamento e repressão. O fato de se ter afirmado, no Art. 227 da Constituição Federal de 1988, que crianças e adolescentes são titulares de direitos, não significa que as demais representações tenham sido automaticamente banidas da vida social. Ao contrário, persistem em maior ou menor grau e são passíveis de emergirem com grande força, dependendo dos agenciamentos que se dão em torno da infância e da adolescência em determinada conjuntura. Atualmente, constatamos, por exemplo, uma construção social do adolescente autor de ato infracional como sendo perigoso, incorrigível e drogado, existindo um forte movimento para que seja punido severamente. Dão prova disto as diversas propostas legislativas de rebaixamento da idade penal e de agravamento das medidas socioeducativas existentes no Congresso Nacional. Assim, ao lado de todos os que se opuseram (e que ainda hoje se opõem) ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 13 de julho de 1990), por ter rompido com a tradição dos Códigos de Menores (de 1927 e de 1979) e da Política Nacional de Bem-estar do Menor, instituída no Brasil com a criação da Fundação Nacional de Bem-estar do Menor (FUNABEM) em 1964, existem todos aqueles que consideram que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), apesar de todos os avanços, manteve um “ranço” conservador, enfatizando o princípio da proteção em detrimento dos princípios de liberdade e participação. Por outro lado, uma das categorias profissionais que mais resistiu ao Estatuto, e de certa forma ainda resiste, foi a dos professores do ensino fundamental, por acreditar que o ECA diminui a autoridade do professor ou concede muitos direitos e nenhum dever. Na França, segundo a socióloga Irène Thery, após a Convenção ter sido aprovada, um questionamento intenso tomou lugar entre os partidários dos direitos da criança como sendo apenas direitos de proteção. Para essa corrente protecionista, não se pode desconstruir a infância como menoridade jurídica, tratando-se apenas de assegurar a ela uma melhor e mais eficaz proteção e não de lhe conceder novos direitos. Quanto a isso, assim se expressa Théry (2007, p. 137-138): É inegável que a campanha sobre os direitos da criança teve, na opinião francesa, um impacto considerável. Quem não desejaria melhorar, hoje e sempre, a sorte das crianças? Quem ignora que algumas delas passam, em nosso país, por situações escandalosas? Quem desconhece, sobretudo, os impasses em que nos encontramos face a determinadas situações sociais, apesar de dispormos de um sistema jurídico de proteção à infância reconhecido por todos como bastante notável (mesmo se perfectível)? Essas inquietações, esses impasses, criaram o campo de uma receptividade. É possível, no entanto, problematizar a oportunidade, em tal contexto, de uma mobilização justamente sobre os direitos da criança. Trata-se de uma opção: considerar que a questão é, em primeiro lugar, de ordem jurídica; que nosso direito deve ser repensado em seu conjunto; que não são, portanto, as crianças, na diversidade dos seus destinos sociais, o que é preciso tomar como questão prioritária de reflexão e de ação, mas a infância como menoridade. Sejamos mais precisos: a campanha não tratava da
proteção legal da criança, mas de seus “novos direitos”. Enfim, nenhuma dessas escolhas é óbvia. Ficar nisso seria proibir-se de avaliar a confusão na qual três anos de promoção midiática de um texto no mínimo ambíguo nos mergulharam A crítica de Théry é que os partidários dos novos direitos não se limitaram a denunciar o sofrimento das crianças que se encontravam em situação de exploração, miséria e opressão, ou seja, não se limitaram a denunciar as falhas da proteção, mas afirmaram que todas as crianças tinham sido, até então, objeto de opressão, pela sua condição comum de menoridade jurídica. A menoridade não confina a criança ao não-direito; ela significa que, embora seja titular de direitos desde o nascimento, a criança não poderia ser intimada a exercê-los imediatamente por si mesma, e indica aquele que têm o poder e o dever de velar pelo respeito a seus direitos fundamentais. Em outras palavras, o que diferencia a infância do estado adulto justifica conceber para ela direitos peculiares, específicos, derivados de sua necessidade própria de proteção: os direitos dos menores. Nesse sentido, os “direitos da criança” são os de seres humanos particularmente vulneráveis, porque ainda não autônomos. A incapacidade jurídica não é senão o direito à irresponsabilidade, isto é, o direito a não ser submetido aos deveres que a capacidade implica. É essa acepção protetora que preside a Convenção de Genebra, de 1924, sobre os “direitos da criança”, como também a Declaração dos Direitos da Criança da ONU, de 1959. (ibidem, p. 138) Para a autora, a concepção dos direitos da criança como sendo direitos de proteção sempre foi criticada por autores e ativistas anglo-saxões, que denunciam a proteção como uma forma de opressão dos adultos sobre as crianças. Para Holt (1975) ²² , educador norte-americano considerado um dos expoentes do liberacionismo, a infância moderna constitui uma forma de aprisionamento à qual toda criança tem o direito de escapar. A partir de severa crítica ao modo como as crianças e os jovens são educados nas famílias e no sistema escolar norte-americano ²³ , o autor propõe que qualquer pessoa jovem não possui apenas necessidades que devem ser supridas, mas direitos que devem ser reconhecidos e acatados. Assim, qualquer pessoa jovem que deles queira fazer uso deve ter os direitos, privilégios, obrigações e responsabilidades do cidadão adulto, desde que demonstre capacidade e responsabilidade para tal. Isso inclui, dentre outros: (1) o direito a igual tratamento pela lei, significando que, em qualquer situação, não seja tratado pior do que o adulto seria; (2) direito de votar e tomar parte em todos os assuntos relacionados à política; (3) direito de ser responsável pela sua própria vida; (4) direito de trabalhar, por dinheiro; (5) direito à privacidade; (6) direito à independência e responsabilidade financeira, que inclui adquirir, comprar, vender propriedade e fazer empréstimos bancários, assinar contratos, etc; (7) direito a decidir sobre sua própria educação; (8) direito de viajar, de viver longe da casa dos pais, de escolher ou estabelecer-se em sua própria casa; (9) direito de receber a mesma renda mínima garantida pelo Estado ao cidadão adulto; (10) direito de escolher, em base de consenso mútuo, um
guardião ou responsável que não seus pais biológicos; (11) direito de fazer, em geral, o que qualquer adulto faz legalmente. Para Holt, esses direitos não devem ser hierarquizados em ordem de importância e nem é necessário que sejam exercidos de uma só vez e para todas as pessoas. O que pode ser importante para um jovem pode não ser para outro. Assim, eles deverão ter liberdade para escolher. No entanto, afirma o autor que alguns desses direitos só fazem sentido se articulados a outros. O direito de viajar, de escolher viver em sua própria casa, por exemplo, só faz sentido se o jovem tiver a responsabilidade e o direito legal de trabalhar para obter uma renda. Considera que alguns desses direitos, mais do que outros, dependem de mudanças na legislação, nos costumes e nas atitudes. Acredita que tais mudanças não se farão de um dia para outro – ao contrário, são processos que dependem de uma série de medidas tomadas ao longo de muitos anos e na direção de uma sociedade mais aberta e generosa. Dentre os grandes pioneiros na luta pelos direitos das crianças destaca-se o pediatra e educador polonês Janusz Korczak (1878 – 1942), morto na câmara de gás nazista juntamente com as 200 crianças do orfanato que dirigia, em agosto de 1942. Ele escreveu Quando eu voltar a ser criança; O Direito da Criança ao Respeito; Como amar uma criança e Diário do Gueto ²⁴ . Para o autor, as crianças eram uma classe oprimida: “as crianças, afinal, são ou não seres humanos? [...] Para nós [falando como se fosse uma criança], não existem direitos nem justiça [...] Somos uma classe oprimida” (KORCZAK, 1987, p. 112-114) . Na segunda edição de sua principal obra, Como amar uma criança, Korczak (1929) argumentava que “o principal e mais indiscutível dos direitos da criança é o que lhe permite exprimir livremente suas ideias e tomar parte ativa no debate sobre a apreciação de sua conduta e punição”. Ainda, no folheto publicado anexo à mesma obra, O direito da criança ao respeito , manifestava dura crítica à Declaração de 1924: “Os legisladores de Genebra confundiram as noções do direito e do dever: o tom da Declaração salienta a solicitação e não a exigência. É um apelo à boa vontade, um pedido de compreensão.” (ibidem) Uma magna charta libertatis era o que Korczak já defendia em 1915, na primeira edição de Como amar uma criança. Para ele, os direitos das crianças deveriam repousar sobre alguns aspectos essenciais: “o direito da criança a viver sua vida atual” e “o direito da criança a ser o que é” (KORCZAK, 1929) . O amor de Korczak às crianças foi incondicional: acompanhou-as ao gueto de Varsóvia e ao campo de Treblinka, onde foram assassinados pelo terror nazista. (ROSEMBERG e MARIANO, 2010, p. 700) Não se deve confundir o movimento liberacionista com o movimento pelos direitos da criança: […] os libertadores das crianças não devem incorrer no erro de acreditar que a liberação e os direitos das crianças apresentam os mesmos objetivos. O movimento pelos direitos das crianças luta pelas crianças que aceitam sua proteção especial, como participantes desiguais da vida social. Os libertadores das crianças frequentemente parecem desejar o contrário: a liberação das crianças até mesmo da autoridade bem-intencionada dos
adultos e sua exposição aos mesmos direitos e privilégios dos adultos, com base em que a proteção que a elas proporcionam, na verdade lhes extorquem muitos direitos como cidadãos. (BERGER, 1984, p. 224 apud ROSEMBERG e MARIANO, 2010, p. 702) Ainda segundo Rosemberg e Mariano (2010, p. 702), Dentre os autores liberacionistas do período, são mais frequentemente citados os norte-americanos Richard Farson (1974), John Holt (1974) e Howard Cohen (1980), considerados por Franklin (2002) os verdadeiros “pais” dos denominados novos paradigmas nos estudos da infância. Em Birthrights: a bill of rights for children (1974), Richard Farson, educador, assinala que, no contexto da sociedade norte-americana, as crianças são segregadas, ignoradas, impotentes e invisíveis para a nação. Defende que as crianças deveriam ter o direito de participar na sociedade e que deveriam ser valorizadas pelo que são e não somente como um potencial adulto. Critica os defensores das crianças que se centram no abuso e na vitimização, os quais seriam responsáveis pelo notável aumento da legislação protecionista para as crianças. Predica a liberação das crianças no mundo que está organizado contra elas, que as mantém fracas, dominadas, ignoradas. Nesse mundo, o reconhecimento de direitos civis e políticos para as crianças poderia ser um instrumento dessa liberação. Dentre essas duas tradições, cuja ênfase recai seja na proteção seja na autonomia, qual a que funda a Convenção sobre os Direitos da Criança? Segundo Théry (2007), a CDC não afirma nenhuma das duas tradições inteiramente, colocando lado a lado os direitos de proteção e autonomia. Para a autora, o fato de que estejam presentes na Convenção essas duas lógicas, que considera como antagônicas, constitui uma verdadeira contradição, para a qual a Convenção não aponta nenhuma solução. Em primeiro lugar, é preciso enfatizá-lo, a Convenção entende “criança” estritamente no sentido de “menor” e não põe absolutamente em questão o conceito de “menoridade jurídica”. Em certo sentido, portanto, emprega “direitos da criança” na mesma linha da Convenção de Genebra de 1924 e da Declaração da ONU de 1959: seu preâmbulo e numerosos artigos definem claramente os direitos da criança como direitos a “uma proteção especial”, e esses direitos são reafirmados com muita força. Contudo, por outro lado, somam-se a esses direitos à proteção outros tipos de direitos, os quais só têm sentido caso exercidos pelos seus beneficiários: direitos à liberdade de opinião (Art. 12), à liberdade de expressão (Art. 13), à liberdade de pensamento, de consciência e de religião (Art. 14), à liberdade de associação (Art. 15); em suma, direitos que pressupõem a capacidade jurídica, quer dizer, a responsabilidade. (ibidem, p. 139-140) Para a autora, os efeitos da intensa propaganda a favor da Convenção tiveram dois efeitos negativos na França: (1) esvaziamento do debate sobre crianças e adolescentes em seus aspectos psicológicos, biológicos, econômicos, sociais e culturais, em favor de uma visão meramente abstrata e jurídica da criança; (2) afirmar como verdadeiro um “escândalo” jurídico jamais demonstrado: o de que as crianças e os adolescentes franceses, até então, não teriam sido considerados senão como coisas, objetos, subseres.
Esse discurso estaria dotando de legitimidade uma maior intervenção do Estado na esfera privada. Quanto ao Brasil, embora concordando que as noções de criança e de adolescente se encontram igualmente empobrecidas pela juridicização e medicalização abusiva dos comportamentos, devemos fazer uma importante distinção entre a realidade francesa, tal qual apresentada por Théry, ²⁵ e a realidade brasileira, tal qual a compreendemos. Nesse sentido, é preciso reconhecer que a criança pobre no Brasil foi, de fato, objeto de um grande escândalo jurídico e de uma assistência pública, gestados no início da República, que mais a inferiorizaram que a protegeram. A assistência ao chamado “menor” propiciou a abusiva internação de crianças e adolescentes pobres nos estabelecimentos preventivos e correcionais, indiferenciando as categorias de “abandono”, “orfandade”, “carência” e “infração”. A solução do problema da assistência à infância, um dos mais complexos dentre os nossos problemas sociais, inclui as medidas de caráter judiciário – organização de tribunais para crianças e regime de sentença por tempo indeterminado –, além de outras medidas legislativas, afetando o próprio Direito Penal e Civil, no tocante à indagação sobre discernimento e perda do pátrio poder. (BRASIL, 1912, p. 91) Na época, a tentativa de se construir a escola pública para todos encontrou grande resistência, já que muitas famílias não admitiam que suas crianças, consideradas “ingênuas” e “inocentes”, fossem misturadas aos ditos “menores”. Nesse sentido, a escola pública era vista como lugar de misturas indesejáveis e não como lugar de construção de valores compartilhados, necessários a uma sociedade democrática. Foi justamente para romper com essa lógica e com essas práticas que os movimentos sociais e demais organizações da chamada sociedade civil, no bojo das manifestações pelo fim da ditadura militar e pela democratização do Brasil, iniciaram ampla mobilização em torno dos direitos humanos e de cidadania dos diferentes grupos marginalizados da população brasileira, entre os quais os chamados “menores”. À medida que se pode efetivamente questionar o modelo de assistência até então vigente, tornou-se possível a emergência de novas proposições, como o Art. 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. A Proteção Integral, de que trata a legislação nacional e internacional, além de reconhecer a criança como titular de direitos, reconhece-a também como pessoa em desenvolvimento, não abolindo a diferença entre crianças e adultos. No entanto, como já mencionado, essa não é uma questão simples e devemos admitir, senão uma contradição, pelo menos uma tensão entre proteção e autonomia (tensão que, sem sombra de dúvida, necessita ser pensada e compreendida). Segundo Lansdown (2005, p. 16), esta é, talvez, “a questão mais difícil e controversa” em se tratando dos direitos de crianças e adolescentes, postulando a necessidade de se buscar uma articulação entre as noções de desenvolvimento, participação / autonomia e proteção.
A interrelação entre estes três fios é complexa. De fato, tem-se argumentado que a diferenciação entre crianças como dependentes requerendo proteção e como indivíduos independentes buscando autonomia é “talvez a questão mais difícil e controversa em direitos da criança” ²⁶ . No contexto dos direitos internacionalmente definidos, as dificuldades são agravadas pela necessidade de se ter em conta os diversos pontos de vista e experiências da infância, do desenvolvimento, do que constitui autonomia e quais capacidades desenvolvem. ²⁷ Segundo Pilotti (2000, p. 25), é provavelmente em decorrência dessa tensão que as legislações tendem a especificar o que se pode ou não fazer dentro de faixas etárias específicas. La tensión entre autonomia y protección se manifesta em la diversidad de leyes que regulam la vida de los menores de edad, muchas de ellas inconsistentes y contradictorias entre si, fiel reflexo del hecho que la infancia es uma construcción social en permanente redefinición por parte del mundo adulto. Así, por ejemplo, en muchos países um individuo de 14 años puede ser considerado como niño para los efectos de ciertas leyes laborales o como adulto si comete um crime violento; a los 14 o 16 años generalmente se pude obtener permiso para conducir um vehículo morotizado pero no para comprar bebidas alcohólicas. [...] Se trata de definiciones arbitrarias y temporales, sujetas a la dinâmica social, cultural y demográfica de uma determinada sociedad, razón por la cual su validez está siempre sujeta a cuestionamientos y modificaciones. ²⁸ Para o equacionamento da questão, recomenda Lansdown (2005), deve ser levada em consideração a noção de “evolução da capacidade da criança”, contida no Art. 5 da Convenção. Segundo o autor, a noção de desenvolvimento da capacidade da criança tem grande implicação para a compreensão dos direitos internacionais de crianças e adolescentes. Tal princípio estabelece que a proteção dos pais ou responsáveis deva diminuir na medida em que aumenta a capacidade da criança de exercer os seus direitos por ela mesma e em seu benefício. Adverte, no entanto, que ao mesmo tempo em que é necessário respeitar o direito de participação da criança, também é igualmente necessário não colocá-la prematuramente em situações de responsabilidade que possam lhe causar danos. Escutar é o mesmo que inquirir judicialmente? Sobre o direito da criança de se expressar e de ser ouvida Em documentos internacionais O direito da criança de ser ouvida e ter sua opinião levada em consideração constitui um dos quatro princípios gerais da CDC, sendo os demais o princípio da não discriminação, o direito à vida e ao desenvolvimento e o princípio do melhor interesse da criança. Assim, os direitos internacionais da criança não mais se limitam, como na Declaração sobre os Direitos da Criança (1959), aos direitos que derivam de sua vulnerabilidade (proteção) e
dependência do adulto (provisão). Nesse sentido, um dos artigos mais celebrados da CDC tem sido o Art. 12, conforme se lê a seguir: 1. Os Estados Partes assegurarão à criança, que for capaz de formar seus próprios pontos de vista, o direito de exprimir suas opiniões livremente sobre todas as matérias atinentes à criança, levando-se devidamente em conta essas opiniões em função da idade e maturidade da criança. 2. Para esse fim, à criança será, em particular, dada a oportunidade de ser ouvida em qualquer procedimento judicial ou administrativo que lhe diga respeito, diretamente ou através de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais do direito nacional. (BRASIL, 1990) Tendo em vista, no entanto, dificuldades na compreensão e implementação deste direito, o Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança (Committee on the Rights of the Child – CRC) promoveu, em 2006, um dia de discussão para explorar os significados do Art. 12, suas relações com os outros artigos da CDC e as lacunas, boas práticas e os temas prioritários para o enriquecimento do tema. Neste item apresentamos brevemente as considerações do Comitê sobre o tema, publicadas em documento oficial da ONU no ano de 2009. ²⁹ Para o Comitê, mesmo a criança pequena pode formar seus pontos de vista, ainda que não verbalmente. Consequentemente, a implementação do Art. 12 requer o reconhecimento e o respeito às formas não verbais de comunicação, incluindo brincadeiras, linguagem corporal, expressão facial, desenhos e pinturas, nas quais as crianças demonstram compreensão, escolhas e preferências. Em segundo lugar, o Comitê afirma que não é necessário que a criança tenha uma compreensão de todos os aspectos da matéria que a afeta, bastando ter suficiente compreensão para formar, de maneira apropriada, seus pontos de vista. Além do mais, os Estados-partes estão obrigados a desenvolver esforços para permitir que crianças com deficiência e pertencentes às minorias possam expressar seus pontos de vista.
Se o Comitê reconhece, por um lado, que a criança tem o direito de expressar suas opiniões, por outro lado, esclarece que a criança tem o direito de não exercer este direito; que expressar seus pontos de vista é uma escolha e não uma obrigação (CRC, 2009, p. 8). Além do mais, a criança deve expressar seus pontos de vista livremente e não sob pressão ou coação. Lembra que usar a criança, colocá-la em situação na qual se diz a ela o que dizer, ou expô-la a situações que podem trazer riscos de danos não são práticas éticas e não podem ser entendidas como implementação do Art. 12 da CDC. Ademais, todos os processos nos quais a criança participa e é ouvida devem ser: transparentes e informativos, devendo a criança ser informada dos procedimentos, propósitos e possíveis consequências de sua participação; voluntário, nunca devendo a criança ser coagida ou obrigada a participar, tendo o direito de parar a qualquer momento; respeitoso, oferecendo à criança a oportunidade de participar; relevante, dando à criança a oportunidade de dizer o que é relevante para ela; amigável, ou seja, adaptado à criança; inclusivo, evitando discriminação, e seguro e sensível a riscos, dentre outros. Em relação à criança vítima ou testemunha de crimes, o Comitê remete o leitor à Resolução 2005/20 do Conselho Econômico e Social da ONU, Guidelines on Justice in Matters involving Child Victims and Witnesses of Crime ³⁰ . Embora se afirme, nessa Resolução, que a participação da criança vítima ou testemunha de crime pode ser relevante para a condenação de infratores, tal Conselho reconhece, no entanto, as dificuldades envolvidas em tal participação, na medida em que a criança vítima e / ou testemunha é particularmente vulnerável, necessitando proteção especial, assistência e suporte apropriado à sua idade, nível de maturidade e necessidades específicas, para prevenir futuros danos e traumas que podem resultar de sua participação em processo da justiça criminal. Além do mais, não se pode negligenciar os direitos das pessoas acusadas dos crimes. Visando a adoção de boas práticas, o documento propõe que sejam tomados diversos cuidados, em consonância com os princípios de dignidade, não discriminação, melhor interesse e direito de participação da criança. Assim, a criança deve ser tratada de forma cuidadosa e sensível durante todo o processo judicial, levando-se em consideração critérios como sua idade, desejos, compreensão, gênero, orientação sexual, etnia, cultura, religião, formação linguística, condição socioeconômica, status de refugiado ou imigrante, bem como as necessidades especiais de saúde e assistência, dentre outros. Os profissionais devem ser respeitosos, sensíveis e qualificados para lidar com tais diferenças. As crianças, seus familiares ou responsáveis devem ser protegidos quanto à sua privacidade, evitando-se exposições indevidas, além de ser prontamente e adequadamente informados da existência de serviços de saúde e outros serviços de assistência e suporte relevantes. Outro documento (UNODC e UNICEF, 2009) lembra que o princípio do melhor interesse da criança deve prevalecer sobre quaisquer outras considerações e que a criança vítima e / ou testemunha tem o direito de ser tratada com dignidade e compaixão; de ser protegida contra discriminações; de ser informada; de ser ouvida e expressar seus pontos de vista e suas preocupações; de receber assistência efetiva; o direito à privacidade; de ser
protegida de danos durante o processo judicial; direito à segurança; à medida de prevenção especial e o direito de reparação. Em texto do UNICEF Innocenti Research Centre, O’Donnell (2009, p. 1) analisa o Art. 12 da CDC face às leis internacionais de direitos humanos, apresentando, também, um levantamento sobre os esforços de alguns países para sua implementação. O direito de expressar opiniões e de ser ouvido no processo administrativo e judicial afeta muitas áreas da vida da criança: a relação com os pais e familiares; acesso alternativo às crianças em família ou casa; tratamento de crianças que se tornam vítimas de abuso ou exploração; crianças com dificuldades na escola; requerentes de asilo e crianças cujos pais residem em outros países; crianças sem benefícios sociais. Com efeito, o direito de ser ouvido em um processo judicial ou administrativo é, em princípio, relevante para qualquer criança que acredita que seus direitos foram negados ou violados. ³¹ Segundo o autor, apenas um pequeno número de direitos reconhecidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos não são reafirmados como direitos pela CDC. Um deles é o direito à personalidade jurídica, significando ser reconhecido como pessoa diante da lei; outro, o direito de acesso aos tribunais ou o direito a um remédio para a proteção de seus direitos. O termo “personalidade jurídica” significa que a pessoa é sujeito de direitos reconhecidos legalmente, mas também de obrigações. Em geral, ser sujeito de direitos também significa ter a capacidade para o exercício e defesa destes direitos, quando apropriado, em procedimentos jurídicos. (ibidem, p. 2) Todos os sistemas jurídicos reconhecem, no entanto, que determinadas categorias de pessoa não têm a capacidade para exercer os seus direitos pessoalmente. Este ponto é especialmente relevante em se tratando de crianças porque a falta de capacidade jurídica é a essência do conceito de menoridade. Por esta razão, talvez não seja surpresa que estes dois direitos não tenham sido incorporados – pelo menos não de forma facilmente reconhecível – na Convenção. Ao invés de simplesmente reafirmar estes direitos, os redatores fizeram um esforço para identificar os aspectos destes direitos dos quais as crianças são titulares, não obstante o status de menor. (ibidem, p. 2) Reconhecendo que o status especial e dependente das crianças cria dificuldades para sua participação em procedimentos jurídicos, o Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança postula a necessidade de procedimentos amigáveis e sensíveis à criança. No entanto, segundo O’Donnell (2009), o Art. 12 não postula a necessidade de crianças participarem de procedimentos administrativos e jurídicos, mas apenas confere às crianças o direito de expressarem seus pontos de vista e serem eles levados em consideração. Na maioria dos procedimentos jurídicos, o que é relevante é o conhecimento dos fatos em disputa e não o ponto de vista das pessoas. A inclusão do direito de ser ouvido e de ter seus pontos de vista reconhecidos em procedimentos jurídicos e administrativos em um artigo reconhecendo estes direitos, em termos amplos, sugere que esta limitação
no alcance do Art. 12 (2) não é acidental e não pode ser ignorada ou negligenciada. A única conclusão possível é que o Art. 12 (2) não reconhece o “direito” de ser ouvido como testemunha – ou seja, de testemunhar. Esse ponto deve ser levado em conta na discussão da “participação” da criança em procedimentos legais e administrativos. O uso do termo “ponto de vista” no segundo parágrafo do Art. 12 torna este direito mais relevante para certos procedimentos administrativos e jurídicos do que para outros. Nos procedimentos do direito de família, sobre questões relativas à guarda ou visitas, e em procedimentos de cuidados alternativos, o ponto de vista da criança – e do Art. 12 (1) – é altamente relevante. A opinião da criança também é relevante e deve ser levada em conta nos procedimentos relativos ao nome, nacionalidade e outros aspectos do direito à identidade. (ibidem, p. 4) De qualquer modo, seja convocando, convidando ou apenas permitindo que crianças testemunhem, o que é relevante, segundo o autor, é que a modalidade da participação da criança deve ser consistente com a totalidade dos direitos e princípios reconhecidos pela CDC, bem como outros documentos internacionais pertinentes. Nesse sentido, em relação à participação de crianças como testemunha de crimes, O’Donnell considera que a questão mais relevante do ponto de vista das autoridades e também da sociedade é se a criança pode oferecer evidências e, neste caso, que peso atribuir a elas e quais salvaguardas devem ser acionadas para amparar o impacto da experiência na criança. No levantamento empírico sobre os procedimentos adotados em diferentes países, o autor encontrou grande variedade, classificando-os, no entanto, em três grandes grupos: (1) Um primeiro grupo de países tem como regra que crianças abaixo de determinada idade não devem ser ouvidas em procedimentos judiciais; (2) Um segundo grupo de países não estipula, via legislação, uma idade mínima para que crianças sejam ouvidas. No entanto, em geral, existe uma idade mínima baseada em jurisprudência ou regulamentação; (3) Um terceiro grupo de países estipula que crianças acima de uma determinada idade devem ser ouvidas. Assim, é importante deixar claro que não existe um modelo único, postulado para todos os países. De acordo com o estudo de Lansdown (2005), a idade tem sido o fator determinante para o exercício dos direitos na grande maioria dos Estadospartes da Convenção sobre os Direitos da Criança. Ou seja, em geral, estipula-se uma idade mínima para o consentimento sexual, casamento, consentimento para tratamento médico, emprego, alistamento nas forças armadas, responsabilidade penal, voto, dentre outros. Segundo o autor, além da fixação, por lei, das idades em que a criança pode exercer os direitos, pode-se pensar em alternativas, cada uma delas com vantagens e desvantagens: (1) Ausência de quaisquer limites de idade, fazendo avaliações individuais para se determinar a competência da criança para exercer qualquer direito particular. Como alternativa, pode-se introduzir a presunção legal de competência da criança, existindo a necessidade de demonstrar sua incapacidade, no caso de se desejar
restringir algum direito; (2) Definição legal de idades, dando à criança o direito de demonstrar competência para o exercício do direito em uma idade mais precoce; (3) Definição de limites de idade apenas para os direitos com maior risco de abuso ou negligência por parte de terceiros, introduzindo a presunção de competência em relação aos outros direitos. Diante da tensão entre proteção e autonomia, Lansdown sugere que no estabelecimento e cumprimento de marcos legais, o legislador e demais operadores do direito tenham total familiaridade com a CDC e suas implicações para as crianças, buscando-se proteger a criança sem negligenciar sua capacidade. Segundo o autor, onde o risco associado à decisão for relativamente pequeno, pode-se conceder à criança o direito de decidir sem que ela demonstre nível significativo de capacidade. No entanto, onde o risco for considerado alto, como no consentimento para procedimentos médicos e de saúde, por exemplo, é necessário assegurar maior grau de competência e maturidade, implicando demonstrar habilidade em compreender e comunicar informações relevantes; habilidade para pensar e escolher com certo grau de liberdade; habilidade para entender potenciais benefícios, riscos e danos e possuir um conjunto de valores básicos que possibilite tomar decisões. A questão, no entanto, é como verificar esses níveis de maturidade e competência da criança, uma vez que, segundo o autor, não há resposta fácil para esta questão. Ademais, ele questiona, deve a criança ser constantemente submetida a avaliações de especialistas para o exercício de seus direitos? Prova das dificuldades suscitadas pelo tema é a polêmica gerada pela decisão do parlamento da Bélgica em fevereiro de 2014, que estendeu a eutanásia para crianças de qualquer idade alegando, dentre outras razões, o direito da criança de ser ouvida e de decidir sobre sua morte. De acordo com Cláudio Lorenzo, membro do conselho diretor da Rede Bioética para a América Latina e o Caribe da UNESCO, para a aprovação da eutanásia não importa a idade e nem o grau de maturidade da criança, mas apenas o grau de sofrimento a que ela é submetida. Segundo ele, A autonomia da criança sobre sua vida deve ser respeitada. O sofrimento sem possibilidade de vida é uma experiência tão traumática para crianças como para adultos e não está ligado a uma questão de maturidade [...] É preciso refletir mais sobre o grau de sofrimento do que fazer conjecturas sobre a maturidade. [...] No entanto, é preciso ter cuidado, independentemente da idade, pois em determinados momentos o sofrimento leva a medidas desesperadas. É necessário o acompanhamento para uma decisão clara. O objetivo deve ser a interrupção de uma vida onde o sofrimento impõe a perda da dignidade. (SERRA, 2014) Opinião diferente tem Francisco Assumpção, membro da Associação Brasileira de Psiquiatria. Para ele, crianças não têm capacidade para decidir sobre eutanásia:
As crianças dependem das informações e influências do mundo adulto ao seu redor. Elas têm o direito de opinar sobre sua vida, mas não têm capacidade para avaliar as consequências de seus atos [...]. Por um lado, a criança ganha o direito de se matar, mas ela não tem o direito de fumar ou beber. Onde está a lógica nisso? (idem) Não é de nosso conhecimento, até o presente momento, que o Comitê da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança tenha se manifestado sobre este tema específico. Em 2003, teve início, na Justiça da Infância e Juventude de Porto Alegre, um projeto intitulado Depoimento sem dano (DSD). De lá para cá, tal iniciativa ganhou a adesão do Conselho Nacional de Justiça, existindo diversas experiências de “Depoimento sem dano” ou “Inquirição especial” em andamento no Brasil, totalizando 41 salas até meados de 2011. Tal projeto foi implantado na 2ª Vara e prevê a possibilidade de produção antecipada de prova no processo penal, antes do ajuizamento da ação, para evitar que a criança passe por sucessivas inquirições nos âmbitos administrativo, policial e judicial. A sistemática permite a realização de audiência, simultaneamente, em duas salas interligadas por equipamentos de som e imagem. Na sala de audiência ficam o juiz, o promotor e as partes. O magistrado faz as inquirições por intermédio do profissional que se encontra com a criança em outra sala. Simultaneamente, é feita a gravação de som e imagem em CD, que é anexada aos autos do processo judicial. ³² Afirma-se, por um lado, que tal procedimento não é senão o cumprimento do Art. 12 da CDC e que tal dispositivo tem possibilitado uma condenação acima de 60% dos suspeitos de abuso sexual de crianças e adolescentes. No entanto, por outro lado, alegando justamente a pouca idade e a imaturidade da criança, busca-se designar psicólogo ou assistente social para tomar o seu depoimento, a despeito do que pensam os conselhos profissionais dessas áreas e a despeito da compreensão que a criança possa ter de seu envolvimento em tal situação e do impacto que isto terá em sua vida. Este nos parece ser um dos pontos cruciais na tensão instaurada quando avançamos na atribuição do direito de crianças e adolescentes à autonomia e à voz. Ou seja: cabe-nos indagar se reconhecer as crianças como atores sociais – dotadas de competências para apreender e alterar a realidade, com algum (ou certo) grau de consciência sobre o que pensam, sentem e desejam, com capacidade para emitir opiniões e fazer escolhas – significa, também, reconhecer que devem assumir o ônus de decisões importantes ou de ser envolvidas em processos judiciais, cujo controle lhes escapa, em boa medida, porque as instituições estão erigidas e funcionam em sociedades adultocêntricas? (ROSEMBERG e MARIANO, 2010, p. 721) Em vista dessa situação, tanto o Conselho Federal de Psicologia (CFP) quanto o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) publicaram resoluções diferenciando escuta de inquirição, vedando ao psicólogo e ao assistente social o papel de inquiridor. De acordo com a resolução do CFP nº 010/2010,
A escuta deve ter como princípio a intersetorialidade e a interdisciplinaridade, respeitando a autonomia da atuação do psicólogo, sem confundir o diálogo entre as disciplinas com a submissão de demandas produzidas nos diferentes campos de trabalho e do conhecimento. Diferencia-se, portanto, da inquirição judicial, do diálogo informal, da investigação policial, entre outros. (CFP, 2010) De acordo com a resolução do CFESS nº 554/2009, A atuação de assistentes sociais em metodologia de Inquirição especial de crianças e adolescentes como vítimas e / ou testemunhas em processo judicial sob a procedimentalidade do “Projeto Depoimento sem dano” não é reconhecida como atribuição e nem competência de assistentes sociais. (CFESS, 2009) Tanto a resolução do CFP como a do CFESS foram suspensas em todo o território nacional. A do CFP, por uma liminar proferida pela 28ª Vara Federal do Rio de Janeiro; a do CFESS, pelo Juiz da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará. No entanto, tais medidas judiciais não encerram a polêmica, mesmo porque se pode argumentar que as salas de Depoimento sem dano / Inquirição especial foram implantadas no Brasil sem uma legislação que lhes dê respaldo. Tendo em vista a polarização do debate no Brasil e as diversas solicitações feitas ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) para que se posicionasse sobre o tema, este publicou a Resolução 169, dispondo sobre a proteção dos direitos de crianças e adolescentes em atendimento por órgãos e entidades do Sistema de Garantia de Direitos. Para os fins dessa resolução, entende-se por atendimento o conjunto de procedimentos adotados nos momentos em que a criança e o adolescente são ouvidos nos órgãos e entidades do Sistema de Garantia de Direitos, envolvendo, entre outros, o Sistema de Justiça, os órgãos de Segurança Pública e do Poder Executivo e os Conselhos Tutelares. Pela resolução, o atendimento deverá ser uma prática ética e profissional, de acordo com a regulamentação dos respectivos órgãos profissionais, não podendo agravar o sofrimento psíquico de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes, devendo-se respeitar o tempo e o silêncio de quem é ouvido, prevalecendo as medidas emergenciais de proteção. (CONANDA, 2014) Tal resolução não tem o poder de impedir que juízes convoquem crianças e adolescentes para serem inquiridos judicialmente, assim como não tem o poder de regulamentar o exercício profissional de psicólogos e assistentes sociais, função dos Conselhos Profissionais. No entanto, oferece diretrizes norteadoras para uma prática ética e respeitadora dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, amparando também os profissionais que atuam no Sistema de Garantia de Direitos. Sobretudo, a resolução do CONANDA tem o poder de barrar práticas danosas de escuta / inquirição que desconsideram a condição subjetiva de crianças e adolescentes, agravando, muitas vezes, traumas existentes – quando não produzindo novos danos. Considerações finais
Sem pretendermos ser exaustivos e nem encerrarmos o debate de questões complexas e polêmicas, o nosso objetivo com este artigo foi oferecer subsídios que nos ajudem a pensar a CDC. Preocupa-nos, sobremaneira, o pouco debate entre nós, o que tem feito com que nos contentemos em repetir afirmações como “A CDC é o documento internacional mais ratificado do mundo” – ignorando, no entanto, as dezenas de Reservas feitas aos seus artigos por diferentes países. Tão preocupante quanto este desconhecimento são os diferentes projetos e propostas que buscam se legitimar afirmando que decorrem de uma leitura inequívoca da CDC, como se os diferentes conteúdos ali tratados fossem passíveis apenas de uma única e absoluta interpretação. 1 Parte da pesquisa “Convenção sobre os Direitos da Criança: um debate necessário”. Alguns de seus resultados já foram divulgados: Direitos da criança e do adolescente: um debate necessário, Psicol. clin. vol.24 no.1 Rio de Janeiro 2012, < http://www.scielo.br/scielo.php? pid=S0103-56652012000100004&script=sciarttext >; Convenção Sobre os Direitos da Criança: vinte e cinco anos de sua aprova, in: Ética e Psicologia – Reflexões do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro < http:// www.crprj.org.br/publicacoes/livros/livroetica.pdf >. A versão aqui publicada foi revista e atualizada, de modo a incluir novas considerações. 2 Ver: < http://www.unmultimedia.org/radio/portuguese/2015/01/governoda-somalia-ratifica-convencao-da-onu-sobre-direitos-da-crianca/ #.VPt2BfnF_Xo >. Acesso em: 11 set. 2015. 3 A CDC define como criança todo ser humano menor de 18 anos de idade, diferentemente do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que faz uma distinção entre criança e adolescente. 4 O Brasil ratificou a CDC em 20 de setembro de 1990. Ver: Brasil, 1990. 5 O Código de Menores de 1979, por exemplo, não se dirigia a todos os menores, mas apenas aos considerados em situação irregular: “carentes”, “abandonados” e “infratores”. 6 Para alcançar os amplos consensos necessários para uma aceitação quase universal do tratado, muitos temas polêmicos estão ausentes ou bem foram regulamentados de forma tal que não foi estabelecida uma norma categórica. Isto é evidente no que diz respeito à definição do sujeito criança, à falta de consideração das diferentes faixas etárias (crianças e adolescentes, por exemplo), aos direitos sexuais e reprodutivos, à proibição de castigos físicos, ao trabalho infantil, à adoção, aos limites de segurança, às tensões entre direitos-deveres dos pais e dos direitos dos meninos e meninas, entre outros. 7 As sugestões do encontro estariam contidas no documento E/CN.4/1989/ WG.1/WP.1. (DIETRICK, DOEK e CANTWELL, 1992, p. 625) . 8 Segundo Pilotti (2000, p. 45), Argentina e Brasil estiveram presentes nos nove encontros do Grupo de Trabalho realizados no período de 1981 a 1988. Argentina teria proposto o artigo relativo ao direito da criança de preservar
sua identidade e, como bloco, os países da América Latina se aliaram aos países islâmicos, opondo-se firmemente às propostas iniciais sobre adoção internacional, na medida em que não contemplavam medidas para evitar o tráfico de crianças. 9 Em resposta ao predomínio dos direitos sociais no projeto inicial apresentado pela Polónia, os Estados Unidos propuseram a incorporação da maioria dos artigos sobre os direitos civis e políticos das crianças: 13 (liberdade de expressão), 14 (liberdade de pensamento, consciência e religião), 15 (liberdade de associação e de reunião) e 16 (direito à privacidade). O artigo 12, refere-se à liberdade de opinião, foi desenvolvido principalmente pelos Estados Unidos, Canadá, Austrália e Dinamarca a partir do texto original apresentado pela Polónia. Durante a discussão desses artigos, as delegações da antiga União Soviética e da antiga Alemanha Oriental foram as mais críticas sobre os seus conteúdos. Por outra parte, a versão original do artigo 14, referido à liberdade de religião, defendida pelos representantes dos países industrializados ocidentais com o apoio do bloco latino-americano, foi rejeitado pelo grupo de países islâmicos. O artigo aprovado corresponde a um texto de caráter muito amplo, resultado das intensas negociações realizadas para atingir o consenso necessário. 10 As Objeções foram feitas com base no Art. 51 da CDC. 11 Para uma análise das Reservas e Objeções, ver: Grahn-Farley, 2008. 12 Em texto já citado, Smolin sugere algumas Reservas, Declarações e modos de interpretação que podem ser feitos pelos EUA para contornar as objeções feitas à CDC por grupos religiosos conservadores naquele país. 13 O texto é uma síntese da tese de Doutorado defendida pelo autor em 2006, no Institut des Hautes Etudes de l’Amérique Latine de la Université Paris 3, intitulada La rénterprétation en droit interne des conventions internacionales sur les droit de l’homme. Le cas de l’intégration de la Convention des droit de l’enfant dans les droits nationaux en Amérique latine. 14 A criança ocidental, idealizada nos trabalhos preparatórios da CDC, se converteria na criança internacional através do Direito Internacional, ou seja, em uma criança que se beneficia das regras comuns, independentemente de sua cultura. Nos trabalhos preparatórios, durante a 35ª sessão da Comissão dos Direitos Humanos (1979) estavam presentes não mais que 30 países no grupo de trabalho: 30 países dos quais os Estados ocidentais e as ONGS internacionais estavam sobre representadas. (...) Assim, pois, deve-se estudar a CDC tendo em conta as circunstâncias que a originaram, apreender não somente as necessidades que as justificam (a situação das crianças), senão também a política que lhe está associada. 15 Art. 30: “Nos Estados-partes, onde existam minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, ou pessoa de origem indígena, não será negado a uma criança que pertença a tais minorias ou que seja indígena o direito de, em comunidade com os demais membros de seu grupo, ter sua própria cultura, professar e praticar sua própria religião ou utilizar seu próprio idioma”.
16 Livre tradução do original em inglês. 17 Ver: Freire, 2010; Lacerda, 2010; ABA, s.d. 18 Se não reconhecemos direitos diferenciados que surgem das próprias diferenças dos povos, o Estado não poderá garantir uma inserção plena que reduza a vulnerabilidade dos grupos afetados, e colocá-los dentro de um marco democrático de interação. Isto não significa que a tarefa seja simples e que não existam problemas que mereçam uma reflexão mais profunda (como o é a observância dos direitos humanos), mas a verdade é que, hoje, é impensável conceber um Estado de direito “genuíno” que não implique o respeito pela diversidade. A questão continua a ser quais são os caminhos possíveis para que este respeito seja possível. Do que se trata, então, é discutir qual é a legitimidade dos Estados em que a dimensão multiétnica já é inquestionável. E se os direitos individuais podem fornecer respostas às reinvindicações nos termos de uma proteção específica de suas identidades e tradições culturais distintas. 19 Talvez seja pertinente apresentar a necessidade de iniciar um trabalho de ressignificação de certa concepção dos direitos humanos, que tem prestado pouca atenção às posições indigenistas. Ainda que neste trabalho defenda a importância do respeito aos direitos humanos, não é possível esquecer que esses direitos humanos são definidos a partir de um “olhar ocidental”, que não se aprofunda sobre um paradigma intercultural, que é imperativo desenvolver para que o respeito em relação “ao outro” seja genuíno. 20 De um lado, a aspiração universalista da Convenção supõe um conjunto de normas inspiradas em uma concepção global e ideal da infância, enquanto que, de outro, o relativismo cultural questiona a aplicabilidade de normas universais alegando a existência de uma diversidade de infâncias, realidades cujos marcos normativos podem ser abordados a partir de suas especificidades espaciais, temporais e socioculturais. 21 Para uma análise da Carta Africana, ver: Kaime, 2009. 22 Ver também outros cinco títulos,do autor: How children learn; How children fail; The underachieving school; What do I do Monday? e Freedom and beyond. 23 Nas décadas de 1960 e 1970, muitos outros autores empreenderam severas críticas ao sistema de ensino e ao modo como as crianças estavam sendo educadas, entre eles: Paul Goodman (Compulsory Mis-Education and The Community of Schoolar, 1962); Jonathan Kozol (Death at an early age, 1967); Herbert R. Kohl (The Open Classroom, 1969); C. A. Bowers (Cultural Literacy for Freedom: an existential perspective on teaching, curriculum and school policy, 1970); Allen Graubard (Free the Children: Radical Reforma and the Free School Movement, 1972) e William Ryan (Blaming the victim, 1972). 24 Cf. Gadotti, 1998. 25 Para outras leituras acerca da realidade francesa, ver: Donzelot, 1980; Castel, 1998 e 2008.
26 O autor cita EVATT, E. Children´s rights and the legal regulation of families. Paper presented at the third AIFS. Australian Family Research Conference, Ballarat, 1989. 27 Livre tradução do original em inglês. 28 A tensão entre autonomia e proteção se manifesta na diversidade de leis que regulam a vida dos menores de idade, muitas delas inconsistentes e contraditórias entre si, fiel reflexo do fato que a infância é uma construção social em permanente redefinição por parte do mundo adulto. Assim, por exemplo, em muitos países, um indivíduo de 14 anos pode ser considerado criança para efeito de certas leis trabalhistas e como adulto se comete crime violento; aos 14 ou 16 anos geralmente se pode obter permissão para conduzir um veículo motorizado mas não para comprar bebidas alcoólicas [...] Trata-se de definições arbitrárias e temporais, sujeitas às dinâmicas social, cultural e demográfica de uma determinada sociedade, razão para a qual sua validade está sempre sujeita a questionamentos e modificações. 29 Cf. United Nations Committee on the Rights of the Child (CRC), 2009. 30 Ver: ECOSOC, 2005, particularmente os artigos 8, 19 e 20. Ver também: UNODC e UNICEF, 2009. 31 Livre tradução do original em inglês. 32 Para visualização dos procedimentos a que estão sujeitos crianças e adolescentes no denominado “Depoimento sem dano” ou “Inquirição especial”, sugerimos os seguintes vídeos: Abuso sexual de crianças – Parte 1 (< http://globotv.globo.com/rede-globo/profissao-reporter/v/abuso-sexual-decriancas-parte-1/1969069/ >) e Vida no mangue – Parte 2 (< http:// globotv.globo.com/rede-globo/profissao-reporter/v/vida-no-mangueparte-2/1989391/ >). Referências ABUSO SEXUAL de crianças. Parte 1. Globo TV, Profissão Repórter, 29/05/2012. Disponível em: < http://globotv.globo.com/rede-globo/profissaoreporter/v/abuso-sexual-de-criancas-parte-1/1969069/ >. Acesso em: 31 ago. 2010. ARANTES, E. M. de M. Posição do Conselho Federal de Psicologia apresentada na Audiência Pública sobre Depoimento sem Dano, realizada em conjunto pelas Comissões de Constituição e Justiça, Assuntos Sociais e Direitos Humanos do Senado Federal em 1º de julho de 2008. In: CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Falando sério sobre escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situações de violência e a rede de proteção: propostas do Conselho Federal de Psicologia. Brasília: CFP, 2009. p. 157-165. Disponível em: < http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/ 2009/08/livroescutaFINAL.pdf >. Acesso em: 31 ago. 2010. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA (ABA). Comissão de Assuntos Indígenas. Infanticídio entre as populações indígenas: campanha humanitária ou renovação do preconceito?. s.d. Disponível em: < http://
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Tomamos como início o conhecimento por parte do leitor dos processos históricos de controle e vigilância das famílias e crianças no Brasil, principalmente das mais pobres, nas primeiras décadas da República. A forma de tratar o problema do abandono e do perigo que elas poderiam representar era a institucionalização. Além da ideia de proteger o “menor” e, ambiguamente, de proteger a sociedade, a institucionalização era uma forma de submetê-los à docilização para o mundo do trabalho e de conformidade a um lugar social subalterno. O consequente afastamento do “menor” de sua família passava pela desqualificação da mesma. E, sem dúvida, tais processos estavam atravessados pelo pensamento racista, dirigido aos descendentes dos indígenas e dos povos negros escravizados. Esses fatos ocorreram, com maior intensidade, no período seguinte à proposição do Código de Menores, de 1927, que teve uma revisão em 1979, em plena ditadura militar. Chamo aqui de “menorismo”, típico da lógica da doutrina da situação irregular, a forma de pensar, falar e atuar sobre as crianças pobres, típica desta lei e desta época. Com a proposição do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069 de 1990), outra lógica se colocou, a da proteção integral, dirigida a toda e qualquer criança ou adolescente. Contudo, ainda hoje, a essa população são dirigidos discursos e práticas que em pouco divergem do passado. Examinaremos algumas das rupturas, continuidades e jogos de forças presentes, ainda que brevemente. Se não nos demoramos sobre a leitura histórica, sobejamente conhecida, é apenas porque dela partimos. Os CTs atendem principalmente, no seu cotidiano, crianças de famílias pobres, como vimos, por razões históricas. Essas crianças e suas famílias estão em situações variadas, mas todas submetidas à violência estrutural, à ausência do direito de sobreviver com um “mínimo básico”. A elas são devidas, de acordo com a singularidade do caso, proteção e defesa. Aqui nos propomos a pensar que possibilidades de atuação estão colocadas para os conselhos para realmente avançarem na defesa de crianças e adolescentes, sempre considerando a posição de poder que efetivamente ocupam. Começaremos por examinar o contexto histórico de transição democrática em que os CTs foram criados. A seguir, colocaremos em questão algumas ideias e práticas que estão muito presentes no cotidiano dos conselheiros, aliás, bem como de outros integrantes do sistema de garantia de direitos (CAMURI et al., 2012). Procuramos também ilustrar nossas afirmações com exemplos trazidos de experiências, de intervenções, de encontros com conselheiros. Suscitar o pensamento, abrir o debate e criticar certas práticas é importante para que os conselheiros – e todos os implicados com a afirmação dos direitos humanos – sustentem práticas inventivas e atentas para os efeitos que podem produzir. Campos de forças, lutas e permanências A Constituição Federal de 1988, da qual o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069 de 1990 faz parte (Art. 227) (BRASIL, 1990), evidencia o jogo de forças então travado entre os setores mais
conservadores da sociedade e os movimentos sociais. Com toda a dificuldade ainda presente no final da ditadura, as lutas populares tornaram possível a aprovação de diversos direitos sociais e políticos (MACIEL, 2011). Apesar dos setores hegemônicos conseguirem preservar a maior parte dos seus interesses, não se pode desprezar o valor destas conquistas. O Estatuto foi criado no contexto neoliberal extremado do breve governo de Fernando Collor (1990-1992) e em um momento global de afirmação desta tendência, com a consequente tendência ao recuo dos direitos sociais e, no limite, de desmonte do estado de bem-estar social. A nova lei foi balizada pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989, documento ratificado pelo Brasil e também por outras cartas de direitos, igualmente importantes. O espírito dos documentos internacionais constituiu importante base de sustentação para a construção de proteção especial e diferenciada para as crianças e os adolescentes no Brasil. A doutrina de proteção integral inspirou-se principalmente na Declaração de Genebra (1924), que previa a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial; na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948); na Convenção Americana sobre os direitos humanos (Pacto de São José, de 1969), que assegurava que “toda criança tem direito às medidas de proteção por parte da família, da sociedade e do Estado”, bem como nas Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras de Beijing (1985). (CORRÊA, 2007, p. 25) Todo esse histórico de lutas, que aqui apenas esboçamos, não está isento de contradições. Mas, sem dúvida, a promulgação do Estatuto inaugura um novo momento, diferente de um histórico de dominação dos setores populares. A nova lei [...] representa um novo diagrama, uma nova composição de forças, em que se colocam outras demandas, diferenciadas em alguns pontos das anteriores presentes nos Códigos de Menores de 1927 e 1979; opera-se um deslocamento de forças, formando novas engrenagens e dispositivos políticos. (LEMOS, 2004, p. 117) A seguir, passamos a resumir algumas das características mais originais e interessantes dos CTs – e que poderiam fazer com que se tornassem uma instituição transformadora de uma dura realidade para tantos meninos e meninas. O CT é um órgão público, mas não governamental, e tem uma estrutura composta por cinco conselheiros, votados em sua região, com experiência e atuação, vinculados aos movimentos sociais, como bem pontuam Nascimento e Scheinvar (2007). A característica de autonomia política do órgão significa que não é subordinado ao Poder Executivo ou Judiciário – o que sem dúvida configura uma mudança significativa em relação à herança histórica menorista – com a centralidade decisória da figura do “Juiz Pai”. (ZAMORA e PEREIRA, 2013, p. 147-160) O candidato a conselheiro deverá ter idade superior a 21 anos, residir no município do conselho e ter “reconhecida idoneidade moral” (Art. 133). A
ideia é que o órgão não seja composto por especialistas ou burocratas, mas por cidadãos que representam as lutas de cada comunidade contra processos de injustiça e desigualdade social que comprometem a sobrevivência dos mais jovens. O Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu artigo 13, estabelece a obrigatoriedade da notificação de maus-tratos (casos suspeitos ou confirmados) ao CT (podendo haver outros caminhos) e alerta que o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, se deixar de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente, estará sujeito a multas. Em termos ideais, o que se deseja construir é uma rede de atenção, prevenção e cuidados a agir nos casos apropriados. Além dos CTs e no sentido da criação da rede, o Estatuto também previu, entre outros dispositivos, a criação dos Conselhos de Direitos (nos níveis Municipal, Estadual e Federal). No caso, os CTs deveriam propor e cogestar políticas públicas com o Estado, podendo colaborar com informações sobre a demanda e as prioridades, sempre em rede com o Conselho Municipal e os demais conselhos da criança e outros conselhos setoriais (da Saúde, Educação, Assistência Social e outros), ainda mais quando precisasse requisitar serviços. Com o conhecimento dos CTs da retaguarda dos serviços disponíveis, que chegam a eles na realidade dos casos, sua incumbência legal estende-se a auxiliar o poder executivo municipal para a elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento à criança e ao adolescente. É importante mencionar que, ainda reforçando a ideia de funcionamento em rede, em 2006 foi aprovada a Resolução 113 do Conselho Nacional dos Direitos da criança e do Adolescente (CONANDA, 2006), que cria o sistema de garantias de direitos humanos de crianças e adolescentes. Os CTs são parte desse sistema. O atendimento deve se dar em rede, que também deve ter caráter intersetorial, interinstitucional e baseado no princípio da incompletude institucional, articulando os níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal. Como se sabe, os CTs devem agir quando acionados por algum agente que efetue a notificação da violação ou suspeita de violação dos direitos da criança e do adolescente (Art. 131). Como uma instância que ouve, que acolhe e atende às famílias, os CTs deveriam contribuir para desjudicializar o atendimento quando do caso de violações de direitos. O seu desenho é favorável para dar este rumo para suas intervenções. Em concordância com os estudos de Azevedo (2007) e de Cantalice (2011), entendemos que os CTs poderiam representar um aspecto interessante da consolidação da democracia participativa e da efetiva cidadania no nosso país. Para esses autores, esta é uma marca de sua origem, uma “marcada intencionalidade de construir [através dos CTs] um processo de busca democrática e democratizante de intervenção na realidade” (AZEVEDO, 2007, p. 5). Para os mesmos autores, não é o que se verifica na análise de suas práticas predominantes, ainda incapazes de cumprir suas promessas de
nascimento. Com essa afirmação não se pretende resumir todas as ações dos Conselhos no país, visto que muitos deles têm explorado amplamente suas atribuições (CANTALICE, 2011), com mostraremos adiante. Podemos afirmar, com Scheinvar (2014, p. 58), que, na construção da estrutura de conselhos, havia a pretensão e o desejo “de que o movimento popular fertilizaria as lutas contra a desigualdade, enfrentando parte significativa dos males que levavam famílias e jovens ao antigo Juizado de Menores”. As famílias escapariam, então, de serem julgadas e moralizadas, como sempre acontecera. As crianças e adolescentes seriam protegidas dos que as ameaçassem – não negamos que possam ser seus próprios pais ou parentes. Mas, notadamente, elas encontrariam defesa contra instituições, processos e estruturas sociais muito opressivos que não podem ser dissociados da notificação que as levou até o conselho. Isso tudo fazia e ainda hoje faz sentido em um país onde o trabalho infantil, a exploração sexual, a violência das instituições ditas socioeducativas, a precariedade das instituições de acolhimento institucional e da implantação do acolhimento familiar, a situação de rua e o extermínio são persistências menoristas inquietantes. Os autores que até aqui mencionamos provavelmente concordariam em dizer que não é o enfrentamento das estruturas opressivas o que acontece na maior parte das vezes, na atuação dos conselheiros. Para tais autores – e é forçoso concordar com eles – as famílias pobres, a maior clientela, seguem sendo julgadas por aquilo que deveriam ser e não compreendidas nas suas possibilidades reais de existência. Elas seguem sendo vistas como faltosas, descritas como “desestruturadas” e observadas apenas no ângulo de suas supostas irregularidades, inadequações e violências. (NASCIMENTO, 2002; NASCIMENTO, CUNHA e VICENTE, 2008) Aliás, é oportuno darmos atenção ao termo “família desestruturada”. Ele é uma noção disseminada a partir do Código de Menores de 1979. É uma falta em relação à família “completa” e reflete a aceitação inquestionável do modelo tradicional da família burguesa como ideal também para todas as outras. É interessante ver como o termo está ligado à família pobre, sempre o maior objeto de controle. Concordamos com Mioto (2010, p. 54) quando afirma que não é apenas por uma questão semântica que o termo continua sendo usado para nomear as famílias que falharam no desempenho “das funções de cuidado e proteção dos seus membros e trazem dentro de si as expressões de seus fracassos, como alcoolismo, violências e abandonos. Assim, se ratifica a tendência de soluções residuais aos problemas familiares”. É a família pobre que deve se adaptar ao modelo hegemônico (que não é mais tão dominante assim, mesmo nas classes médias e altas). Dificilmente as pessoas de outros extratos sociais têm suas famílias assim “classificadas”, tão pejorativamente, embora possam ter a mesma composição de outra em situação de pobreza ou miséria e viver os mesmos problemas ou mais graves. Barbosa (2011, p. 230), em pesquisa sobre a visão das “famílias de comunidade” pelos conselheiros em questão, afirma que as primeiras seguem sendo pensadas como tendo
[...] um ethos ligado à ausência de capacidades e de potencialidades construtivas. Não foi contemplado, nestas famílias, nem em caráter incipiente, a posse de iniciativa própria ou de algum nível de pró-atividade, algo muito próximo à alienação e irresponsabilidade. Os conselheiros tutelares, assim, colocavam-se na posição de primazia quanto à competência para guiar estas famílias para os valores que imaginam corretos, algo diametralmente oposto aos valores degenerados disseminados nas ‘comunidades’ [...] Os conselheiros eram censores impiedosos das ‘famílias de comunidade’, pois sua condição de ‘pobreza’ e ‘carência’ foi compreendida como indolência ou letargia, sendo preguiçosas e acomodadas à sua condição de desvantagem social. Em concordância, em nossa atuação também observamos que a família pobre continua a ser vista no negativo. Vários estudos (NASCIMENTO, 2002; SCHEINVAR, 2004) mostram que, quando as chamadas “famílias desestruturadas” chegam aos CTs, o foco do atendimento passa a ser seu modo de funcionamento interno, os conflitos intrafamiliares, suas falhas – e não suas condições concretas de vida que, de fato, acabam por produzir as violações de direitos. É uma atuação que mais se assemelha a um continuum de julgamento e normalização, onde aquelas famílias poucas chances têm de serem ao menos vistas. Também Lemos (2011, p. 82-83) relata em sua pesquisa certo CT de um município do interior paulista; ao receber notificações de situações de violência produzida por familiares, o mesmo agia de modo a controlar e a “punir a família”. Porém, quando se tratava de violência institucional, os agentes “ficavam impunes”. Desse modo, as violações dos direitos cometidas por agentes de equipamentos sociais do município e da sociedade “eram silenciadas pelo CT, que as negava, já que praticamente se recusava a olhálas e realizar encaminhamentos e advertências”, ou seja, a proceder como o devido, mesmo em casos de trabalho infantil. Eram também usuais as apreciações morais negativas sobre a conduta dos pais e outros parentes e sobre o próprio arranjo familiar. Em 2011, no contexto de uma pesquisa sobre a escola como espaço de proteção para crianças e adolescentes contra a violência intrafamiliar (BICAS, 2011), a investigação tinha como foco a capacidade de identificação e notificação de situações de violência intrafamiliar em escolas públicas de ensino fundamental e também como se dava o devido encaminhamento. O campo do trabalho foi constituído pelas mensagens dos participantes de duas turmas de um fórum de discussão virtual muito amplo, em um curso para a capacitação sobre direitos das crianças e adolescentes, atingindo professores, técnicos e outros membros da comunidade escolar de todo o Brasil. A partir de análise de conteúdo de 69 mensagens (selecionadas entre 1839 mensagens do total examinado), os resultados revelaram que a maior parte dos participantes conhecia a existência da violência intrafamiliar e sabia da necessidade de notificação, em geral ao conselho, em caso de suspeitas. Contudo, as mensagens dos educadores mostraram muitas dúvidas sobre o procedimento para encaminhamento, bem como sérios entraves na relação com o conselho.
Os professores e outros participantes da pesquisa demonstraram, em sua maioria, um grande descontentamento em relação à atuação do CT e, embora reconheçam a necessidade de parceria, apresentaram em suas mensagens um profundo descrédito na capacidade deste para a resolução satisfatória dos casos reportados. As mensagens revelaram o conhecimento da precariedade do atendimento nos CTs, segundo os participantes, mas também apontaram que os educadores reconhecem as dificuldades enfrentadas pelos conselhos devido à falta de recursos financeiros, logísticos, humanos e de capacitação dos profissionais para atuarem frente à violência intrafamiliar, foco do estudo. Foram também encontradas mensagens em que a escola e o conselho estabelecem relações de parceria para a defesa integral dos direitos, mas em geral a apreciação era negativa. Os trabalhadores da Educação têm conhecimento que os conselhos também deveriam atuar de forma preventiva e se queixaram do fato de os conselheiros não visitarem as escolas, o que eles consideraram fundamental para uma efetiva parceria. Alguns exemplos não tão fictícios Podemos também dizer que, em muitos casos, o que está sendo chamado pelo conselheiro de violações de direitos são dificuldades de entendimento de problemas reais de famílias em condições muito difíceis (MIRANDA e ZAMORA, 2009); manifestações de famílias que não conseguem mais pensar sozinhas em soluções para seus graves dilemas e cujas ações são ditadas pelo desespero, pelo desamparo, pelo medo, que podem terminar por serem prejudiciais, embora sem intencionalidade. Talvez os exemplos possam esclarecer melhor nosso ponto. Entre 2002 e 2004, no contexto de certa pesquisa sobre as formas dos pais cuidarem dos filhos e também para descobrir com que apoio contavam, nossa equipe entrou em três territórios. Um deles era quase uma comunidade rural, apesar de sua localização num município do Grande Rio. Havia áreas de bastante pobreza, mas, em geral, as pessoas não viviam maiores dificuldades. Era bastante seguro e tranquilo, com áreas verdes e casas com quintais. As crianças brincavam nas ruas sem temor e os vizinhos se conheciam. A associação de moradores então desempenhava um papel importante e agregador. Já os outros locais eram duas favelas da cidade do Rio de Janeiro, na Zona Sul e Zona Oeste. Ambas conheciam as tensões de uma guerra entre facções do tráfico e o conflito com a polícia; a da Zona Oeste era bem mais pobre, com desemprego e fome, pois as indústrias, que antes eram fontes de emprego, fecharam as portas. Os movimentos sociais eram vigiados e cerceados por estas forças. Observamos, então, diferenças notáveis na forma de se relacionar com os filhos entre a primeira localidade e as duas outras. Na primeira, as mães e alguns familiares, ao refletirem sobre o assunto da pesquisa, a nosso pedido, contavam que às vezes gritavam com os filhos, apesar de acharem isso desnecessário. As palmadas eram pouco empregadas e as surras, muito raras. Nas outras regiões, com a tensão permanente das mães e a preocupação constante com o paradeiro dos filhos, os gritos e os tapas utilizados como recurso corriqueiro diante de qualquer falha eram comuns. Elas não apenas relatavam a dificuldade de se acalmar,
mas seu próprio estresse, sofrimento psíquico e adoecimento. A todo momento compartilhavam histórias da comunidade, em que meninos e jovens tinham sido mortos, às vezes simplesmente por circular nas ruas. Era um relato misto de desabafo, pedido de socorro ou simplesmente uma oportunidade rara para refletir e conversar. Nos casos mais problemáticos, as mães mostravam apatia e desalento diante da violência que as cercavam. A prevalência de medicamentos para “dormir”, “se acalmar”, “nervos” e hipertensão, em especial entre as mulheres, era outro aspecto importante, ainda que não estudado. Essa pesquisa foi encerrada em 2004, mas o problema persiste ou se agrava. Apenas no mês de janeiro de 2015, na cidade do Rio de Janeiro, já são trinta e dois os casos de balas perdidas, que também vitimaram crianças e adolescentes, vários deles fatais (LISSARDY, 2015). Até março já foram relatadas, em diversos jornais, mais de seis mortes em episódios de ataque policial a pessoas sem antecedentes criminais. Houve quatro tiroteios em áreas de grande circulação, mesmo na presença de pessoas desarmadas e com muitas crianças. Segundo a BBC Brasil (ibidem), seriam mais de quarenta as vítimas no terceiro mês do ano, ainda incompleto. Todos esses episódios se deram em favelas da cidade ou em suas redondezas; dois deles aconteceram em uma das localidades pesquisadas. Aqui faremos algumas indagações, “baseadas em fatos reais”, pois estamos limitados pelo compromisso do devido sigilo para trazer mais detalhes sobre casos atendidos. Como os conselheiros ouviriam a notícia de que uma das mães dessas favelas bateu no seu filho, que desobedeceu a ordem de ficar em casa durante uma operação policial? Considerariam eles como parte “esperada” da dinâmica familiar violenta, parte de um lugar violento? Será que pensariam a violência como um objeto natural, talvez exclusiva de algum extrato social, ou, ainda, inerente a uma família? O que pautaria a intervenção? Seria possível separar as mães e familiares das favelas (e de outros lugares feridos pela violência) da realidade em que vivem? Seria possível ignorar a presença de tanques de guerra nas ruas ou a possibilidade das balas perdidas? Seria possível não se preocupar constantemente e manter a serenidade quando o filho some no meio de um tiroteio? Podemos garantir que ficamos bastante afetados com as experiências de medo que passamos e presenciamos nessas comunidades. Mas, depois de um dia de trabalho, podíamos ir para nossas casas, em relativa segurança, e depois retornar ao trabalho, tranquilizados. Até porque muitos outros afetos chegavam e éramos sempre bem acolhidos. Não se trata aqui de justificar qualquer forma de violência. Mas conhecer e entender em que contexto elas acontecem. A própria definição de violência sempre pressupõe uma intencionalidade, como definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS, 2002), uma motivação destrutiva por parte de quem a exerce, o que nem sempre está presente na violência intrafamiliar. Pelo contrário. Muitas famílias alegam que agridem com palavras e ações para proteger as crianças e evitar que, futuramente, elas tracem os caminhos da marginalidade. É, enfim, preciso compreender que
[...] o abuso intrafamiliar está circundado por estruturas sociais, políticas, econômicas e ideológicas, que exercem influências nem sempre imediatas e perceptíveis, portanto, sendo necessária a reflexão sobre o contexto histórico e a trajetória da proteção social, considerando as práticas, as interrelações e as articulações existentes entre os mesmos. (BARROS, 2005, p. 17) Dificuldades dos CTs na sua ação Acreditamos ter colocado, tanto por meio da literatura quanto pelos exemplos, os problemas e distorções de certas práticas dos CTs. Entendemos que é preciso mencionar quais são os principais entraves para outro funcionamento possível e com que problemas concretos esses órgãos se defrontam. “Em 1999, 55% dos municípios tinham Conselhos Tutelares e 71,9%, Conselhos Municipais de Direitos da Criança e Adolescente. Em 2009, os percentuais eram 98,3% e 91,4%, respectivamente”, segundo informação do IBGE em 2010 (CANTALICE, 2011). Tais dados, porém, referem-se apenas à existência de um conselho, não informando, com relação à população a ser atendida, se um seria ou não suficiente. Sabemos que, em especial nas grandes cidades, o número de CTs é em geral insuficiente, tendo em vista a recomendação do CONANDA de um CT para cada 200 mil habitantes. Outro problema é que nem todos os CTs estão minimamente equipados para suas funções, pois têm espaço físico limitado e / ou que dificulte uma conversa sigilosa; ausência de veículo próprio para realizar as visitas necessárias e / ou de outros equipamentos, como telefone e acesso a internet. Um terceiro problema que podemos apontar é a prática da cooptação política sobre os conselhos; em geral, isso acontece em relação à prefeitura. Esse problema sem dúvida põe em questão as finalidades, funções e objetivos e até mesmo a legitimidade dos CTs. A partir de nosso conhecimento e mesmo de queixas de conselheiros sobre o apadrinhamento de candidatos, entendemos que pode acontecer de esses órgãos se tornarem mais ou menos reféns de interesses partidários, de suas decisões ou da falta delas e, desta forma, extremamente limitados. Ainda atrelados a uma visão assistencialista ou mesmo caritativa, há municípios em que os conselheiros ou nada recebem ou então recebem uma remuneração indigna, como se fosse um serviço voluntário, missionário, inspirado na boa vontade. Mas ser conselheiro não raro é ter mais exigências que muitos profissionais – se pensarmos na grande responsabilidade e dedicação exclusiva e da tão comum má remuneração. Muitas vezes ele é um trabalhador social que não tem nem pode ter uma carreira, seja como conselheiro, seja em outro lugar. Outra questão é a falta de formação continuada e até mesmo de oportunidades de diálogo e estudos sistemáticos (CANTALICE, 2011). Em nossas formações, alguns conselheiros reportam impotência e inconformidade com as limitações do trabalho frente ao contexto maior, sem ver que suas atuações fazem muita diferença. Isso pode conduzir a vivências
depressivas, desânimo e, por fim, desistência. Porém, um dos efeitos mais interessantes da oportunidade de se expressar, expor dúvidas e ter encontros com os pares é a percepção da dimensão da violência estrutural e da falta de acesso aos direitos, vivida pela população – e até pelos próprios conselheiros – e a possibilidade que eles têm de incidir sobre ela. A formação continuada deveria ser parte do trabalho, para qual é sempre solicitada, inclusive, a parceria com as universidades. Em conclusão ou por outro caminho mais coletivo Talvez possamos arrematar essas breves considerações com outro exemplo. Vamos fazer um resumo de um percurso de lutas, onde nem tudo está registrado; no caso, o que está aqui retratado tem como fonte, em parte, diálogos travados com pessoas ligadas a ele. Outras fontes são informes em redes sociais e da própria mídia. Portanto, pode haver esquecimentos e distorções de alguns fatos, sem intenção. Com a construção de grandes obras no estado do Pará, em especial a hidrelétrica de Belo Monte, chegaram à região mais de 200 mil pessoas, a maioria homens. Pouco tempo depois, em 2012, os conselheiros tutelares locais se reuniram e denunciaram que os dados de trabalho infantil e de exploração sexual mais que dobraram após o início das obras. Cresceram, ainda, os números de estupros, abusos sexuais e os partos de meninas entre dez e dezesseis anos. Os conselheiros denunciaram também a precariedade de suas próprias condições de trabalho e dos equipamentos disponíveis para fazer frente às denúncias. Ao longo do tempo, em mobilização permanente, um coletivo com a presença ativa de conselheiros tutelares organizou vários documentos. Entre eles, destaca-se a Carta de Altamira (2013), onde o amplo grupo de trabalho sintetiza suas discussões e propõe, entre vários outros pontos, a implantação de mais CTs e estruturação dos existentes, incluindo sua formação continuada. Na continuidade, o grupo fez vários protestos na ocasião da visita de autoridades, com ampla participação de outros movimentos sociais, que se uniram ao núcleo inicial. Em rede com o Conselho Municipal e com vários conselhos setoriais, os CTs avançaram na organização das denúncias e da demanda de providências. (O GLOBO, 2013) Com grande visibilidade, inclusive internacional, os recursos para os CTs começaram a chegar. No final de 2012, a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente se pronunciaram e várias ações começaram (TOKARNIA, 2012). O Ministério Público iniciou uma investigação e mais adiante foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito. Em vários momentos, as empresas envolvidas na obra foram convocadas a se posicionar sobre o assunto e a assumir responsabilidades, criando-se o primeiro pacto nacional feito com empresas para a criação de uma rede de proteção e enfrentamento da violência sexual. (O IMPACTO, 2014)
Com uma ação complexa e a participação de várias instituições, inclusive da Segurança Pública, redes e esquemas de exploração comercial e de tráfico humano de meninas foram descobertas e várias adolescentes, algumas provenientes do sul do país, foram resgatadas de situações absolutamente degradantes. Ações semelhantes foram empreendidas nos estados do Amazonas, Roraima e Rondônia, na denúncia de redes de exploração sexual e das piores formas de trabalho infantil. Isso muitas vezes valeu aos conselheiros numerosas ameaças. Mas esse foi decidido como um caminho de ação, uma estratégia, diante da opressão. Os conselheiros não recuaram, ganharam mais visibilidade, mais aliados e as ameaças, afinal, não se cumpriram. Talvez possamos terminar endossando essas vias de ação, tão sintônicas com as propostas iniciais dos conselhos, tão vivas e tão efetivas. Acreditamos que os leitores vão entender se o texto terminar com um pedido: “por Conselhos Tutelares mais amazônicos!”. Referências AZEVEDO, R. C. O Conselho tutelar e seus operadores: o significado social e político da instituição – um olhar sobre os Conselhos Tutelares de Fortaleza. 2007. Dissertação não publicada (Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade) – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2007. BARBOSA, C. H. M. Entre a cidadania e a estigmatização: representações sociais de família dos conselheiros tutelares do município de Niterói / RJ. In: SOUZA FILHO, R. et al.. Conselhos Tutelares: desafios teóricos e práticos da garantia de direitos da criança e do adolescente. Juiz de Fora: UFJF, 2011. Disponível em: < http://www.editoraufjf.com.br/files/LivroCT-ImpressoDIAC_Totinho.pdf >. Acesso em: 01 mar. 2015. BARROS, N. V. Violência intrafamiliar contra criança e adolescente: trajetória histórica, políticas sociais, práticas e proteção social. 2005. Tese não publicada (Doutorado em Psicologia Clínica) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, 2005. BICAS, R. A. Escola e violência intrafamiliar: proteção integral ou “jogo de empurra-empurra”? Dissertação não publicada (Mestrado em Psicologia) – UNIVERSO, Niterói, 2011. BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990.Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Presidência da República. Brasília, 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Leis/L8069.htm >. Acesso em: 24 mar. 2015. CAMURI, A. C.; SERENO, G. C.; ZAMORA, M. H; QUINTANA, J. T. Direitos sexuais no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro. Mnemosine, v. 8, n. 1, p. 43-71, 2012. Disponível em: < http://www.mnemosine.com.br/ojs/ index.php/mnemosine/article/view/241 >. Acesso em: 12 fev. 2015. CANTALICE, L. B. O. A produção do conhecimento em torno dos Conselhos Tutelares: uma análise de teses e dissertações. In: SOUZA FILHO, R. et al..
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Como vimos, o psicodiagnóstico está referido ao contexto clínico. A terminologia no Direito nomeia o processo pelo qual o psicólogo buscará respostas a uma questão posta pelo processo judicial como perícia. Se o clínico, quando diagnostica, trata, o perito, quando pericia, faz o quê? Da lógica aristotélica à lógica interventiva Coelho (2000, p. 15), explicando os fundamentos da lógica, parte da afirmação que nem todo pensamento é raciocínio; e nem todo raciocínio é lógico: “para que uma inferência (relação premissa – conclusão entre duas ideias) tenha o caráter lógico, devem ser obedecidos três princípios fundamentais: o da identidade, o do terceiro excluído e o da nãocontradição”. Para ilustrar o primeiro princípio (princípio da identidade: o que é, é), o autor cita a poesia O relógio, de Cassiano Ricardo. Peço licença ao leitor para reproduzir tal citação (RICARDO, Cassiano apud COELHO, 2000): Diante de coisa tão doída conservemo-nos serenos. Cada minuto de vida nunca é mais, é sempre menos. Ser é apenas uma face do não ser, e não do ser. Desde o instante em que se nasce já se começa a morrer. O autor utiliza-se da passagem acima para explicar que a lógica do pensamento contida no poema fere o princípio da identidade porque afirma que a vida e a morte são uma mesma e única coisa, uma unidade de contrários. Contrapondo a lógica dialética à lógica aristotélica, ressalta a importância desta para o Direito: Para decidir certas questões judiciais sobre sucessão hereditária, deve-se pesquisar se determinada pessoa morreu antes da outra, se a criança nasceu com vida ou natimorta etc. Nessas situações não tem nenhuma serventia uma dissertação acerca da unidade indissolúvel da vida e da morte. Em outros momentos, essa ideia pode ser decisiva para despertar nas pessoas a consciência de como gastam inutilmente tempo e energia por conta de vaidades ou orgulho, mudando a sua atitude diante de si próprio e dos outros. (ibidem, p. 16) Ora, o perito, quando ouve as afirmações dos seus periciandos, está procurando diagnosticar a pessoa como um todo, entender sua vivência e compreender sua forma de apreender o mundo. A confusão sobre sua função pode advir da expectativa errada de alguns profissionais do Direito que esperam que o psicólogo perito possa aferir sobre a validade da realidade
que o(s) periciando(s) afirma(m). A nossa posição é que o psicólogo perito atua não sobre a percepção da realidade, mas sobre a inferência que o sujeito faz dela. Vejamos um exemplo comum em nossa prática: “O meu filho volta triste e calado da casa do pai, portanto a visita não está sendo boa”. É a fala de uma mãe que se queixa sobre a condição do filho em visita à casa do pai, exmarido da mãe em questão. A fala é direcionada ao psicólogo perito como forma de explicar sua restrição ao contato entre pai e filho. O que se afirma com tal raciocínio? Trata-se de um argumento lógico no qual a premissa é “filho volta triste e calado”. A conclusão que a pericianda retira dessa observação é que “a visita faz mal ao filho”. A decorrência prática de tal conclusão é um processo de regulamentação de visitas em que se solicita uma diminuição ou monitoramento da visita paterna (visita assistida). Portanto, o filho estar triste e calado é parte da realidade, segundo a percepção dessa mãe. Para cuidar de seu filho, recorre à ideia de controle do contato paterno, seja diminuindo-o ou impondo um dispositivo de vigilância. Há três possibilidades: O filho não estava nem triste e nem calado, o que quer dizer que a mãe está mentindo e induzindo o interlocutor ao erro; O filho não estava nem triste e nem calado, mas foi assim que a mãe o percebeu. Ou seja, ela acredita nisso – o que aponta para uma distorção da realidade em função de um viés pessoal. O filho estava triste e calado, mas sua inferência contém um erro / engano. Dentro desse enquadre de trabalho, o psicólogo perito não está lá para descobrir como o filho realmente estava. Esse dado se perdeu no passado e o psicólogo somente tem acesso a ele por meio da narrativa feita pela mãe (e, eventualmente, pela narrativa do próprio filho). Mas confrontar supostos dados factuais não é função do psicólogo. E muito menos estamos neste lugar pericial para validar tal raciocínio. Contudo, podemos desconstruir tal raciocínio em suas partes componentes e verificar como essa mãe responde. Por exemplo: É ruim ficar “triste” e “calado”? Ficar “quieto” e “calado” significa “tristeza”? A criança tem permissão para voltar alegre e compartilhar tal sentimento na casa da mãe? A criança não estaria triste porque percebe os pais separados, sendo que a maioria dos filhos gostaria que seus pais estivessem juntos? É claro que nem todas essas perguntas podem ser feitas dessa forma e em uma única oportunidade, mas seria importante o profissional psi ter a sua mente aberta para todas essas possibilidades que não são nada mais do que hipóteses a serem confirmadas ou rejeitadas ao longo do processo de
avaliação. Mas o que é mais importante: qual é a capacidade dessa mãe de admitir hipóteses alternativas àquela que nos comunica? Qual é a sua vivência de tristeza pela qual consegue (ou acha que consegue) perceber tal estado no filho? De que forma discrimina o que é seu do que é do filho? De que forma necessita que o psicólogo perito se alie a ela como o filho ou permite ao outro ter outra possibilidade de pensar? Vejamos outro exemplo: “A minha filha chora que não quer ir embora, por isso estou pedindo a guarda”. O raciocínio que subjaz a tal afirmação seria: “filha sofre e pede ajuda” (premissa). A conclusão inferida de tal premissa seria: “filha ficaria melhor se morasse comigo”. O movimento impulsionado por tal raciocínio é: “entro com pedido de guarda”. Essa é a forma como podemos decompor tal raciocínio. Por outro lado, a sequência que redundou no processo de disputa de guarda pode ter sido outra. Como hipótese alternativa, podemos pensar em algo assim: “Gasto muito com pensão”. Uma constatação que não é um raciocínio. “Se eu ficar com minha filha, economizo dinheiro”. Raciocínio lógico (premissa: se minha filha morar comigo; conclusão: economizo dinheiro). O que não quer dizer que corresponda à realidade (ou seja, que seja mais econômico ter a guarda física do que pagar pensão), mas o raciocínio não deixa de ser lógico. “Ainda por cima, minha filha chora que não quer ir embora toda vez que vem”. Pensamento que justifica o anterior. “Vou solicitar a guarda”. Atitude baseado no raciocínio. (Não preciso contar a ninguém que comecei a pensar nisso pelo dinheiro). “Aliás, o dinheiro não é o mais importante. O mais importante é o que minha filha quer”. O movimento contido no item 5 pode ser chamado de pensamento racionalizador ¹ , que justifica de forma aceitável uma ideia que tem origem não tão nobre. Vamos explorar agora o segundo princípio, que deve respeitar um raciocínio para que ele seja considerado lógico: o princípio do terceiro excluído. Segundo esse princípio, para a lógica clássica algo não pode ser verdadeiro e falso ao mesmo tempo. Portanto, diz-se que algo é verdadeiro ou falso, utilizando-se sempre a conjunção “ou”. Essa operação se chama disjunção, formando um enunciado composto, que revela uma alternatividade. (COELHO, 2000) Coelho (2000) chama atenção para certa ambiguidade no uso da língua portuguesa em relação ao conectivo “ou”. O seu uso pode dar origem a uma alternatividade exclusiva ou inclusiva. Na exclusiva seria o caso do princípio do terceiro excluído, ou seja, os elementos não podem conviver de nenhuma forma (ou é falso ou é verdadeiro). Mas, na alternatividade inclusiva, podemos encontrar uma possibilidade em que ambos os elementos podem
ocorrer. O autor dá o exemplo da frase “para vencer na vida é necessário sorte ou competência” (COELHO, 2000, p. 46). O sucesso viria aos competentes, aos sortudos e aos que são ao mesmo tempo competentes e sortudos. É por isso que, em textos técnicos, utiliza-se a expressão “e / ou” para especificar a alternatividade inclusiva. Voltando ao nosso enquadre de avaliação pericial, podemos enfrentar a seguinte afirmação tendo esta distinção em mente: “Meu filho diz que não quer ir embora, ou seja, ele não quer ir para a casa da mãe”. Essa frase é comum vinda da parte do genitor descontínuo que recebe a criança em visita e enfrenta o problema da rebeldia do filho na hora de ir embora. Se isolarmos o primeiro enunciado simples (“meu filho não quer ir embora”) e o simplificarmos ainda mais para significar a escolha “pai” (p); se pegarmos o segundo enunciado (“ele não quer ir para a casa da mãe”) e também simplificamos para a escolha “mãe” (m), então, teríamos a equação p ou m. Normalmente, o periciando entende que é uma equação de alternatividade exclusiva, ou seja, pai ou mãe, querendo dizer que o filho está escolhendo entre um e outro. Podemos novamente questionar tal raciocínio propondo considerar a hipótese inclusiva: A criança pode não querer ir embora (da casa do pai), mas também fica bem na casa da mãe. Parece-me que isso se coaduna perfeitamente com a asserção muito comum nesse campo de que “são os adultos que se separam, o filho não se separou nem do pai e nem da mãe”. Há fenômenos psíquicos no âmbito da criança que demonstram claramente a coexistência de dois elementos – o que, para o adulto, seria “ilógico”. Um exemplo concreto é o “ursinho de dormir” que muitas crianças adotam ² . Winnicott (1990, p. 127) cunhou o termo “objeto transicional” para significar que o objeto é ao mesmo tempo criado pelo bebê e existe fora dele. Entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido existe uma terra de ninguém, que na infância é natural, e que é por nós esperada e aceita. O bebê não é desafiado no início, não é obrigado a decidir, tem o direito de proclamar que algo que se encontra na fronteira é ao mesmo tempo criado por ele e percebido ou aceito no mundo, o mundo que existia antes da concepção do bebê. Alguém que exija tamanha tolerância numa idade posterior é chamado de louco. Na religião e nas artes vemos essa reivindicação socializada, de modo que o indivíduo não é chamado de louco e pode usufruir, no exercício da religião ou na prática e apreciação das artes, do descanso necessário aos seres humanos em sua eterna tarefa de discriminar entre os fatos e a fantasia. As estórias em quadrinhos criadas por Bill Watterson (2010) ³ , Calvin e Haroldo, ilustra de maneira bastante criativa essa ideia: Calvin é um menino de 6 anos que tem no seu tigre Haroldo não simplesmente um bicho de pelúcia, mas um companheiro, um cúmplice e um amigo que o ajuda a enfrentar os problemas do dia a dia.
O uso do conetivo “ou” pode ter outras finalidades. Como vimos, a sua utilização leva a uma escolha obrigatória entre uma opção e outra (exclusiva) ou contemplar as duas (inclusiva). Mas e se ambas as opções forem ruins? Essa é a situação que Walton (2006, p. 40-42) explora em seu livro, denominando-a falácia da pergunta complexa. O autor defende a ideia de que em uma pergunta há um pressuposto, o que é definido por ele como uma proposição supostamente aceitável para o oponente / interlocutor. O ato de fazer uma pergunta conteria informações positivas em forma de proposições. Conclui, então, afirmando que perguntar também é argumentar e influenciar o curso subsequente da argumentação. Ele dá o exemplo que se trata de um ardil coercitivo, pois levaria o oponente a admitir uma coisa prejudicial: “Você sempre foi mentiroso ou está começando agora?”. A pergunta é uma armadilha, pois se eu nego que “sempre fui mentiroso”, admito que “estou começando agora”. Se eu nego que “estou começando a mentir agora”, admito que sempre fui mentiroso. Conclusão: cara, você perde; coroa, eu ganho. Veja um exemplo de quesito ⁴ que me foi endereçado para responder: O Sr. Mário é capaz de reconhecer sua culpa nas agressões praticadas, ou pelo menos sua participação nos erros cometidos? Pobre Sr. Mário, que fica entre reconhecer sua culpa na agressão ou reconhecer sua participação nos erros cometidos. Mas não é o Sr. Mário que responderá a essa pergunta, e sim o psicólogo perito. E como sair dessa? Walton (2006) ensina que a forma de se responder a esse tipo de pergunta é dividi-la nas duas partes componentes. “Você sempre foi mentiroso ou está começando agora?”: Eu nunca fui mentiroso. E também não estou começando agora. Em relação ao quesito mencionado, minha saída foi outra: O Sr. Mário é capaz de reconhecer sua culpa nas agressões praticadas, ou pelo menos sua participação nos erros cometidos? R: PREJUDICADO. O quesito se mostra inespecífico quanto aos supostos “erros cometidos”. Outro exemplo processual: A Sra. Tânia explora os conflitos de lealdade dos filhos em seu favor? Tenta apagar ou instalar nos filhos a alienação da figura paterna? Em caso positivo, essa dinâmica ocorre de forma encoberta ou explícita? Por favor, explique.
Nesse caso, o uso do “ou” também remete à possibilidade de “testar” alternativas que não foram pensadas, principalmente pelos adultos proponentes, ou seja, as partes em litígio. Antes mesmo da promulgação da chamada Nova Lei da Guarda compartilhada ⁵ , era comum a ideia de alguns pais de “compartilhar a guarda” nos seguintes moldes: O filho passa 50% do tempo com cada responsável. O filho fica metade da semana e metade das férias e feriados em cada casa. O filho ganha em dividir seu tempo com cada um dos pais. Uma forma que encontrei de contrapor esse arranjo para continuar pensando junto ao pai ou mãe que faça tal proposta é dizer: O filho ganha em dividir seu tempo com cada um dos pais. Então: Ele fica na casa em que sempre morou, seja com qual responsável for. Metade da semana o pai vem e mora com ele. Na outra metade é a mãe. Todos compartilham; quem alterna são os pais. É engraçado perceber que, quando a guarda compartilhada é posta nesses termos, os adultos perdem o interesse. Aliás, isso não seria guarda compartilhada, mas guarda alternada. (SHINE, 2004) O que expusemos acima pode ser respaldado na literatura científica disponível: A criança só pode realmente fazer o trabalho afetivo de compreender o divórcio, se é muito pequena, quando permanece no mesmo espaço. A tal ponto que, havendo possibilidade para os pais, melhor seria que o apartamento ficasse com os filhos e que eles próprios fossem alternadamente viver ali seus “deveres parentais”. [...] O lugar de residência habitual dos filhos deve ser aquele em que eles viveram com ambos os pais e onde permaneçam com um único genitor. (DOLTO, 1989, p. 22) Com 27 anos de prática como psicólogo perito em São Paulo, nunca encontrei uma família que quisesse implementar tal ideia.
Relendo a crônica Tênis x Frescobol, de Rubem Alves (2008), em que ele tece uma analogia entre os dois jogos como se fossem dois tipos de casamento, veio-me uma comparação em relação à guarda compartilhada. A metáfora que me ocorreu é a divisão de contas em um jantar. Há dois métodos possíveis: aquele em que se somam todos os gastos, inclusive os 10% do garçom, e divide-se a conta em duas partes iguais; outra forma é colocar, separadamente, cada item discriminado, como em uma comanda individual, e cada um paga aquilo que consumiu. O espírito que se procura, idealmente, na guarda compartilhada, seria correspondente ao primeiro método; infelizmente, muitos casais buscam o segundo. Lógica e verdade O argumento pode ser lógico, mas isso não quer dizer que a sua conclusão seja necessariamente verdadeira, isto é, que corresponda à realidade. Um raciocínio pode ser lógico e, nesse sentido, real, mas não ter lastro na realidade. Coelho (2000) dá um exemplo de um argumento lógico retirado de uma demonstração de um filósofo grego que parte da ideia de continuidade do espaço para provar a inexistência do movimento. O filósofo é Zenão de Eléia. O argumento da flecha considera o lugar de seu lançamento, onde se encontra o arqueiro (ponto A), e o alvo em direção ao qual é lançado (ponto B). Para a flecha alcançar o ponto B, ela deverá percorrer o espaço compreendido entre o ponto A e a metade da distância entre A-B (ponto C). Para, no entanto, alcançar o ponto C, ela deverá, antes, percorrer a metade do espaço entre A-C (ponto D). Mas, por sua vez, para alcançar D, a flecha terá que percorrer a metade da distância A-D (ponto E) e assim sucessivamente. Como entre dois pontos há sempre um terceiro, segue-se que entre A e B há infinitos pontos a percorrer, exigindo-se, para tanto, um tempo infinito, de sorte que a flecha nunca chegará ao seu alvo. Precisamente, ela não abandonará nunca o ponto A, porque para chegar a qualquer outro ponto, por mais próximo que esteja, necessitará percorrer o infinito. Logo, conclui Zenão, o movimento não existe. (ibidem, p. 12) Parece uma viagem, mas do ponto de vista lógico o argumento construído é irrepreensível. Mas todos sabemos que o movimento existe. O autor explica que se a premissa é a continuidade do espaço (entre dois pontos há sempre um terceiro), a conclusão inafastável é a de que o movimento inexiste. Então, onde está a falha ou erro no raciocínio? Nas palavras do autor: Contudo essa premissa não é verdadeira, não corresponde à realidade. Entre dois marcos reais, a minha mesa de trabalho e a porta do escritório, há concretamente um espaço finito, que apenas pode ser considerado contínuo na minha cabeça. (ibidem, p. 13) Portanto, podemos concluir que o argumento é um conjunto de proposições. Quando elas estão concatenadas de maneira que seja possível retirar uma inferência delas que obedeça aos princípios da identidade, do terceiro excluído e da não-contradição, então, podemos falar de um argumento lógico. Nesse sentido, se as premissas são verdadeiras e se os princípios da lógica são atendidos, a conclusão é necessariamente verdadeira.
Vimos, por outro lado, que se o argumento é válido e seu enunciador está convencido dele, isso não quer dizer, necessariamente, que seja verdadeiro. Ora, veracidade ou falsidade são atributos das proposições – e não da construção do argumento. McInerny (2006, p. 92) faz uma demonstração interessante ao falar da verdade das premissas. Ele dá o seguinte exemplo de um argumento estruturalmente bem fundamentado, mas cujos conteúdos são infundados: Todo cachorro tem três cabeças. Pastores são cachorros. Portanto, pastores têm três cabeças. O autor cita o provérbio “Onde entra lixo, sai lixo” para enfatizar que, se se começa com uma premissa falsa (Todo cachorro tem três cabeças), um argumento válido (ou seja, estruturalmente bem fundamentado) levará a uma conclusão falsa (Pastores têm três cabeças). O mesmo pode ser dito sobre a relevância das premissas. Ou seja, uma premissa precisa ser suficientemente consistente para embasar um argumento e levar ao convencimento. O exemplo que o autor dá é o seguinte: (ibidem, p. 93) Pierre Poseur era jogador de futebol do All-american. Pierre Poseur ganhou seu primeiro milhão antes dos 30 anos. Pierre Poseur é bonito e tem um sorriso encantador. Portanto, Pierre Poseur deveria ser eleito governador. Os fatos de Pierre Poseur ser ex-jogador, milionário e bonito não seriam qualificações suficientes, embora verdadeiras, para habilitá-lo a exercer o cargo de governador. Este mesmo cuidado deveríamos ter na construção de nossos argumentos presentes em nossos laudos psicológicos. Uma colega foi questionada, certa vez, de suspeição. Segundo a parte que queria sua impugnação como perita, a profissional teria intercedido em um pedido da outra parte. O pai queria ficar com a data do Natal, em vez da do Ano Novo, a que teria direito naquele ano; para a mãe, a perita, o pai e a filha estavam em conluio para mudarem tal arranjo nas festividades de final de ano. Em sua resposta, a perita justifica que o pai realmente queria que a profissional fosse a porta-voz do pedido de mudança de datas, mas que ela teria recusado tal incumbência. Como forma de comprovar tal situação, diz que isso poderia ser confirmado pelo próprio pai. Ora, se a mãe não acredita na perita e muito menos no ex-marido, o argumento de trazer o testemunho deste não reforça em nada o argumento da perita – pelo contrário, enfraquece-o ao validar uma fala em detrimento de outra. Termino este artigo destacando um último ponto que o autor traz, fazendo uma importante distinção entre proposições de fato e proposições de valor. Compare os dois exemplos a seguir: (ibidem, p. 94 e 95)
[Exemplo 1] Músicos são pessoas que fazem música. Dorothy é música. Como consequência, Dorothy faz música. [Exemplo 2] Músicos são pessoas superiores. Cecília é música. Cecília, portanto, é uma pessoa superior. Intuitivamente, sabemos a diferença entre as afirmações do Exemplo 1 e as do Exemplo 2. O primeiro afirma um fato comprovável: “músicos são pessoas que fazem música”; o segundo expressa uma opinião, o que pode ser contestado. Como diz o autor: Um argumento baseado numa proposição de valor nunca pode ter o mesmo tipo de valor conclusivo que um argumento baseado numa proposição de fato, pois avaliações podem ser contestadas interminavelmente. Mas nem todas as proposições de valor carecem de fundamento. Para concluirmos se uma proposição tem valor, precisamos ver o quanto se apóia em um fato objetivo. Quanto mais sólido e extenso for o alicerce do fato objetivo, mais confiável é a proposição de valor baseada nele. (ibidem, p. 95) Quando encontramos em um laudo psicológico afirmações como “A mãe é adequada para exercer a guarda do filho”, este “adequada” reflete uma conclusão construída por meio do processo de avaliação psicológica empreendida na perícia ou será uma opinião, uma proposição de valor que pode ser contestada e sem um fundamento ou fato objetivo? 1 A racionalização é um processo muito vulgar, que abrange um extenso campo que vai desde o delírio ao pensamento normal. Como qualquer comportamento pode admitir uma explicação racional, muitas vezes é difícil decidir se esta peca ou não por defeito. (LAPLANCHE e PONTALIS, 1983) 2 Entendo que há variações possíveis do “ursinho” como um cobertor, um paninho ou outro objeto utilizado pela criança. 3 WATERSON, B. O ataque dos perturbados monstros de neve: mutantes e assassinos. Trad. Alexandre Boide. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2010. 4 Denomina-se quesito a pergunta feita ao perito para esclarecer a questão controversa que deu origem à perícia. 5 Lei 13.058, de 22 de dezembro de 2014. Referências
ALVES, Rubem. O retorno eterno. Crônicas. 27. ed. São Paulo: Papirus, 2008. COELHO, F. U. Roteiro de lógica jurídica. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Cartilha sobre avaliação psicológica. Brasília, DF, jun. 2007. Disponível em: < http://site.cfp.org.br/ wp-content/uploads/2013/05/Cartilha-Avalia%C3%A7%C3%A3oPsicol%C3%B3gica.pdf >. Acesso em: 04 jan. 2015. DOLTO, F. Quando os pais se separam. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J-B. Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1983. McINERNY, D. Q. Use a lógica: um guia para o pensamento eficaz. Rio de Janeiro: Best Seller, 2006. SHINE, S. K. Andando no fio da navalha: riscos e armadilhas na confecção de laudos psicológicos para a justiça. 2009. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: < http:// www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-25022010-100314/ >. Acesso em: 17 fev. 2015. __. Guarda compartilhada é o mesmo que guarda alternada? 2004. Disponível em: < http://www.pailegal.net/guarda-compartilhada/mais-afundo/analises/398-guarda-compartilhada-e-o-mesmo-que-guarda-alternada>. Acesso em: 16 fev. 2015. VASCONCELLOS, D. A avaliação psicológica na clínica atual: evolução cultural e valores éticos. Universidade Luterana do Brasil. Aletheia, Canoas, n. 12, p. 121-126, jul.-dez. 2000. WALTON, D. N. Lógica informal: manual de argumentação crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2006. WINNICOTT, D. W. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990. Homoparentalidade e modos de vida Márcia Arán Muitas vezes, quando iniciamos um debate sobre as novas relações familiares, partimos do pressuposto de que existe uma invariante chamada “família”, percebida como a mais natural das instituições. Geralmente a definimos como um conjunto de indivíduos vinculados por laços de consanguinidade e / ou afinidade que podem se apresentar como a “família nuclear” – pai, mãe e filho – ou como a “família extensa”. Porém, vários antropólogos e historiadores já demonstraram exaustivamente que, apesar da maioria das sociedades terem alguma instituição que possa ser reconhecida como “uma família”, suas configurações são tão variadas que esta dita “célula base” não pode ser considerada universal.
Segundo Remi Lenoir (2003), as definições de família na nossa sociedade e as representações às quais elas estão ligadas são construções sociais, consagradas pelo Estado, que graças aos instrumentos jurídicos de que dispõe tem o poder de transformá-las em fatos. Esta visão estatal da família encontra-se tanto no estado objetivado, ou seja, nas estruturas sociais (direito e instituições especializadas), quanto no estado incorporado, nas estruturas mentais (categorias de compreensão e percepção) e na subjetividade dos indivíduos. Do efeito desses dispositivos provém o sentimento de evidência da família “normal” sem que se perceba que ela mesma é produto de um trabalho permanente de construção social extremamente complexo, forjado a partir de intensas lutas sociais que impõem uma definição de família por meio de uma moral familiar. Desta forma, Lenoir chama de “familialismo” um projeto que vingou em vários estados católicos no início do século XX – o qual, por meio de uma aliança bastante complexa entre igreja e estado, estabeleceu políticas populacionais baseadas na estruturação da família nuclear heterossexual e reprodutora. É neste sentido que podemos compreender como nas controvérsias atuais sobre a família aparece, por um lado, os defensores da sociedade conservadora (ou seja, do familialismo que quer legitimar a velha moral familiar) e, por outro, os dissidentes que anunciam as mudanças: a maneira moderna de viver em família como consequência da evolução dos costumes. Assim, o que está em jogo nas discussões públicas sobre “a crise da família” é mais a manutenção da ordem social e jurídica a qual ela está associada do que propriamente a preservação desta “célula base” que se apresenta de forma naturalizada e a-histórica. (LENOIR, 2003, p. 15-16) Nesses termos, só é possível compreender a percepção catastrófica do “fim da família” – que se apresenta junto com a crítica à entrada da mulher no mercado de trabalho e à separação da sexualidade da reprodução (e, mais recentemente, ao casamento e à filiação homossexual) – como uma atualização progressiva do familialismo que se expressa por meio de um conjunto de estratégias efetivadas por diferentes frações da classe dominante. Porém, diferentemente do familialismo na primeira metade do século XX, os partidários atuais da ordem familiar fundada sobre a família nuclear não têm como modificar as bases materiais e sociais de um mundo que já está em transformação. Nesse contexto, a moral familiar do familialismo, que pretende sustentar a família heterossexual reprodutiva como a guardiã da sociedade, faz do casamento homossexual e da homoparentalidade algo da ordem do não inteligível, ou do impensável. Um dos argumentos que se destaca nessa empreitada é o de que a família, e consequentemente o parentesco, baseiam-se necessariamente na articulação entre a diferença de sexos e a diferença de gerações. Sendo assim, cabe perguntar: seria a família, necessariamente, heterossexual? A definição de família torna impensável a família
homoparental? Deveríamos ampliar a noção de família para contemplar as famílias homoparentais? Ou, a partir do que foi dito anteriormente, não será fundamental repensar a própria noção de família? Para responder a essas questões, é necessário antes apresentar o vetor histórico desse debate. A emergência do tema da união homossexual na esfera pública surgiu por ocasião da epidemia da AIDS. No início dos anos 1980, já existia um intenso movimento jurídico-institucional com o objetivo de proteger os indivíduos das mais diversas formas de discriminação. A despenalização da homossexualidade (com a saída das práticas sexuais homoeróticas dos códigos penais em diversos países) e sua desmedicalização (com a retirada da categoria da homossexualidade da Classificação Internacional das Doenças) foram conquistas importantes e significaram, sobretudo, uma tolerância por parte da sociedade em relação à liberdade do amor homossexual, desde que exercido no âmbito privado. (ARÁN, 2005a) Naquela época, a homossexualidade era associada a uma forma de socialização libertária, a um modo de vida celibatário e à diversidade de parceiros sexuais. Porém, na medida em que a epidemia avançava, tornavase evidente a fragilidade jurídica de inúmeros casais que, em função da perda de um dos companheiros, não tiveram acesso aos bens adquiridos com esforço mútuo e foram excluídos da participação na herança, além de outras injustiças. Foi o momento em que o debate em torno do direito patrimonial colocou em evidência a existência da conjugalidade homossexual (ADAM, 1999) . Assim, o que antes era concedido e tolerado no âmbito privado tornava-se um problema, já que o reconhecimento público da existência de um laço afetivo-sexual homossexual colocava na ordem do dia a questão da entrada da homossexualidade no direito civil. Em vários países surgiram propostas instituintes de diversas formas de reconhecimento de união homossexual, as quais vão desde o casamento propriamente dito até o reconhecimento de união estável e a criação de formas jurídicas substitutivas, como o pacto civil ou parceria registrada, entre outros. (BORRILLO, 2001; FASSIN, 1998b) No Brasil, desde 1995, está tramitando no Congresso Nacional um projeto de lei de autoria da então deputada federal Marta Suplicy que disciplina “a parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo”. Embora esse projeto tenha sido totalmente descaracterizado, permanece como referência para o tema (UZIEL, 2002; RIOS, 2001) . Além disso, o poder judiciário tem sido frequentemente solicitado para regulamentar questões envolvendo, sobretudo, a esfera patrimonial. Somente nos tribunais do Rio Grande do Sul tem-se observado a alegação de “união estável”. (ARÁN, 2005A) ¹ Embora o reconhecimento jurídico do casal homossexual seja uma reivindicação que diz respeito à esfera da legitimidade, trazendo diversas consequências práticas no plano do direito civil, é importante ressaltar que não podemos pressupor que todas as formas de laços afetivos e sexuais necessariamente possam e devam ser formalizadas pelas regras jurídicas. Não devemos querer incluir na esfera da norma e da lei todos os campos das práticas sexuais que podem querer permanecer inteligíveis e não irreconhecíveis. Porém, isso não quer dizer que devamos aceitar uma
hierarquia das práticas sexuais que fazem do casal homossexual um campo “periférico” ao âmbito do direito. É importante problematizarmos os pronunciamentos e ações da igreja católica, a rearticulação de grupos de extrema direita ou até mesmo pronunciamentos de especialistas da sociologia da família ou de alguns psicanalistas que, em nome da defesa da ordem vigente, associam o reconhecimento jurídico do casal homossexual e da homoparentalidade ao perecimento da ordem dita simbólica ou familiar (BORRILLO e FASSIN, 2001) . Uma forma de interpretar o mundo onde um princípio moral se transforma num saber normativo. Nesse contexto, particularmente na defesa da ordem familiar contra o casamento e filiação homossexual, em que medida a psicanálise, a antropologia e outras ciências humanas e sociais são convocadas com o objetivo de conservar as funções mais tradicionais da família? Principalmente através de noções e categorias tais como “função paterna”, “diferença de sexos” e a “dupla referência identitária”, as quais estabelecem uma norma para compreender a cultura e a sociedade, transformando tudo o que está “fora” numa constante ameaça? (ARÁN, 2005b) O debate realizado na França por ocasião da aprovação do “Pacto Civil de Solidariedade” (Pacs ² ), em 1999, é apenas um dos inúmeros exemplos de que os efeitos da conquista da visibilidade da conjugalidade homossexual, ou seja, da sua legitimidade, têm provocado as mais diversas reações conservadoras em defesa da moral familiar. Não foram os argumentos biológicos, ou os psicológicos, mesmo sendo os mais comuns, que serviram de base para uma argumentação político-científica contra o Pacs, e sim aqueles que falavam da necessidade de uma “preservação simbólica” da sociedade e da cultura. Tal argumentação parte da análise de que as sociedades democráticas contemporâneas estariam de tal forma fragilizadas que dar o estatuto de igualdade a casais homo e heterossexuais nos levaria ao perigo de uma suposta “dessimbolização” provocada por uma política de “indiferenciação”, ou seja, pelo “apagamento da inscrição da diferença sexual no simbólico”, o que quer dizer, no plano do Direito ³ (ARÁN, 2005A) . Nesse sentido, é com o objetivo de preservar “o simbólico”, assegurado mais do que nunca pelas normas jurídicas, que, independentemente de situações de fato, a tríade heterossexualidade-casamento-filiação pretende fazer do casamento homossexual algo impensável. Nesse raciocino é veiculada a ideia de que é necessário preservar esse tipo de instituição para que se preserve a cultura, como se só fosse possível pensar em uma produção de subjetividades que tem como referência um modelo vertical transcendente – a lei, a família e o estado – desconsiderando as possibilidades horizontais de outras formas de subjetivação. (ARÁN, 2001) Porém, cabe perguntar; no que se baseia a premissa de que o que funda a sociedade e a cultura é o laço heterossexual?
Uma das referências que sustenta essa argumentação é certa interpretação da sociologia da família realizada por Irène Théry (1997). Segundo a autora, “a família seria a instituição que articula a diferença dos sexos com diferença de gerações”, fundada no sistema simbólico do parentesco. Diante da crise da instituição do casamento (já que este é cada vez mais reconhecido como uma questão de consciência individual) é necessário restituir o parentesco por meio da normatividade da filiação. Nesse sentido, segundo FASSIN (1998a), “a ordem simbólica do parentesco teria por vocação restaurar uma ordem social ameaçada pelas incertezas do casamento”. Porém, nota-se que a argumentação política que nega aos homossexuais o direito ao casamento e à filiação se baseia fundamentalmente num a priori antropológico e psicanalítico que faz da homoparentalidade uma ameaça à cultura e à sociedade. Dois argumentos são os mais utilizados: O primeiro: a afirmativa de Françoise Héritier (1996) de que “nenhuma sociedade admite o parentesco homossexual”. A partir da análise das relações de parentesco, aliança, divisão sexual do trabalho e das representações sobre a fecundação em diversas culturas, a autora afirma que a primeira observação da diferença dos sexos funda a estrutura do pensamento. O corpo humano como lugar privilegiado de observação, principalmente na sua função reprodutiva, daria suporte a uma oposição conceitual essencial: aquela que opõe a identidade à diferença. Tanto o pensamento científico como os esquemas de representação simbólica seriam derivados dessa percepção. Assim, para a autora, “pensar é antes de tudo classificar, classificar é antes de tudo discriminar, e a discriminação fundamental é baseada na diferença de sexos.” (HÉRITIER apud FASSIN, 2001, p. 106) O segundo argumento frequentemente evocado nesse debate é certa interpretação do complexo de Édipo e do complexo de castração na teoria psicanalítica que faz, tanto do primado genital como do simbólico, um telos em relação ao qual a homossexualidade só pode ser pensada como narcisismo ou como perversão. Apesar de Freud, no início do século, desconstruir a relação entre a homossexualidade e a descrição psiquiátrica dos “invertidos” (já que as trajetórias homossexuais, da mesma forma que as heterossexuais, passam a ser teorizadas a partir da experiência cultural e subjetiva), nota-se ao longo de toda sua obra uma contradição teórica entre uma formulação evolucionista do sexual, sempre referida à importância do recalque ou da superação / sublimação da homossexualidade, e a permanente problematização desta afirmativa (COSTA, 1995) . Uma das expressões dessa contradição é a conhecida carta de Freud a uma mãe americana, onde ele afirma categoricamente que a homossexualidade não é um crime, não é uma doença e nem deve ser “curada” pela psicanálise ⁴ . Jacques Lacan, por sua vez, quando teoriza a constituição do sujeito do inconsciente, desenvolve a tese de que a mesma lei responsável pela interdição do incesto fará da diferença sexual a causa significante do desejo. Esse é o ponto no qual o autor, em seu seminário sobre as formações do
inconsciente, situa uma diferença entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Referindo-se à homossexualidade masculina, afirma: “no momento em que a intervenção proibidora do pai deveria se identificar com o falo, o sujeito encontra na estrutura da mãe, ao contrário, o suporte, o reforço que faz com que esta crise não ocorra.” (LACAN, 1999, p. 215 ) Segundo Elisabeth Roudinesco (2003), Lacan, ao contrário de Freud, faz da homossexualidade uma perversão em si: não uma prática sexual perversa, diz a autora, mas a manifestação de um desejo perverso comum aos dois sexos. Assim, para Lacan, o homossexual seria uma espécie de perverso sublime da civilização, obrigado a endossar a identidade infame a ele atribuída pelo discurso normativo. Muitos autores pinçam algumas dessas formulações de Freud e Lacan e radicalizam uma argumentação política e científica contra o casamento e a filiação homossexual. Ao conceber uma antropologia dogmática, o psicanalista e jurista Pierre Legendre declara que o pai e a mãe são imagens fundadoras da sociedade e, portanto, da família, que devem ser instituídas e garantidas pelo direito. Em entrevista amplamente citada e publicada pelo jornal Le Monde em 23 de outubro de 2001, o autor afirma: O pequeno pacto de solidariedade revela que esse Estado abdicou de suas funções de garantia da razão [...]. Instituir a homossexualidade com o status familiar é colocar o princípio democrático a serviço da fantasia. Isso seria fatal, na medida em que o direito, fundado no princípio genealógico, abre espaço para uma lógica hedonista, herdeira do nazismo. Já Charles Melman (2003, p. 65-66), referindo-se a um debate sobre a adoção de uma criança realizada por um casal de mulheres, afirma: Evidentemente por uma razão de estrutura, isto é, o fato que uma tal criança vai ser – em razão da homossexualidade dos pais – completamente desligada de toda e qualquer gênese fálica que lhe dissesse respeito [...], ela será colocada na posição pura de um objeto. Essa criança está ali com o casal para que os pais adotivos possam gozar com ela, e esse gozo dos pais é a única causa da presença dessa criança no mundo. Podemos apreender, assim, que a violência de certas interpretações não se cansa de descrever o que supostamente estaria fora da norma, para em última instância preservá-la. Sabemos que na maioria das vezes quando se trata do indivíduo homossexual no âmbito privado, o argumento psicanalítico não se mostra conservador ou discriminatório. O problema aparece, como dizíamos antes, no reconhecimento público do laço homossexual, ou seja, quando mudanças sociais e políticas começam a fazer perecer os pilares de sistemas teóricos que não mais se sustentariam a partir do estremecimento do dispositivo da “diferença sexual”, suposto fundador da cultura, e da própria teoria. (ARÁN, 2005b)
Porém, não são poucos os trabalhos que demonstraram como o modelo tradicional ao qual se recorre para pensar a diferença entre os sexos na psicanálise é o modelo – historicamente construído nos séculos XVIII e XIX – da primazia da heterossexualidade e da dominação masculina ⁵ . Nesse sentido, levar em conta a historicidade do sexual não é apenas uma questão ética e política, mas, sobretudo, uma questão teórica da maior importância. Se existe um território sexual “fora” ou “excluído” do simbólico, em relação ao qual o próprio simbólico se constitui, é fundamental reconhecer como a contingência histórica e política pode promover nesse mesmo território deslocamentos subjetivos, ampliando as possibilidades existenciais. Finalmente, vale ressaltar que homoparentalidade é uma palavra criada em 1997 pela Associação de Pais e Futuros Pais Gays e Lésbicas (APGL), em Paris, nomeando a situação na qual pelo menos um adulto que se autodesigna homossexual é (ou pretende ser) pai ou mãe de, no mínimo, uma criança. Porém, ela pode ter diversas configurações. A primeira delas é a da família constituída por filhos de uma ligação heterossexual anterior. A segunda concerne à adoção, que pode ser legal ou informal. Atualmente, a adoção legal por homossexuais é buscada, na maioria das vezes, individualmente. Existe o temor da recusa se o pedido for feito pelo casal, quando ficaria explicitada a homossexualidade. ⁶ Uma terceira forma diz respeito ao uso de tecnologias reprodutivas. O método mais utilizado pelas mulheres lésbicas é a Inseminação Artificial ou Fertilização Medicamente Assistida, com doador conhecido, geralmente um amigo, ou doador desconhecido, por meio de um banco de esperma. Os homens gays que quiserem filho biológico sem relação sexual com uma mulher têm de fazer uso da chamada “barriga de aluguel”, procedimento considerado ilegal no Brasil. Finalmente, a quarta possibilidade é a chamada coparentalidade, na qual os cuidados cotidianos são exercidos de forma conjunta e igualitária pelos parceiros, podendo aparecer entrelaçada com as formas de acesso já citadas. A parceria pode se dar pelo planejamento conjunto do casal homossexual, no qual os parceiros decidem pela adoção de uma criança ou pelo uso de novas tecnologias reprodutivas para formar uma família, sendo a parentalidade, desde o início, exercida igualmente pelos dois, mesmo que apenas um deles seja o pai biológico ou legal. (ZAMBRANO, 2006) Como podemos observar, trata-se muito mais de sexualidades diferentes, admitidas ou não na família, do que de uma diferença entre sexos, inscrita ou não na filiação. Não podemos a priori dizer que não existem alteridades nessas relações. O reconhecimento da capacidade de cuidar de uma criança não pode estar vinculado à orientação sexual de seus pais. Como afirma Stéphane Nadaud (2006, p. 22), “a possibilidade do exercício e da inscrição da alteridade não se resume à alteridade sexual: masculino / feminino. Existem várias possibilidades de diferenciação e neste sentido de construção de um modo de vida ou de uma vida familiar”.
1 Nota do organizador: em 2011, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu pela primeira vez no Brasil a constitucionalidade da união de casais do mesmo sexo, equiparando-a à convivência igualmente estável entre casais heterossexuais. 2 “Pacto civil de solidariedade que pode ser concluído por duas pessoas físicas, independentemente do seu sexo para organizar sua vida comum.” (BORRILLO, 2001) 3 Segundo Irène Théry, uma das principias divulgadoras dessa teoria: “De fato, nenhuma sociedade pode deixar de distinguir os homens das mulheres, as crianças dos adultos, e certamente o sexual do não sexual. A verdadeira questão não é a supressão das diferenças, ela é acima de tudo a de saber em qual plano se exprimem e se exprimiriam daí em diante estas diferenças: o plano do direito ou o plano de fato? O plano das significações comuns instituídas ou o das escolhas privadas? O da ordem simbólica ou o das situações concretas? Os debates levantados pelo reconhecimento da homossexualidade não adquirem todo o seu alcance a não ser relacionados com estes três eixos maiores de diferenciação simbólica que são o casal, o gênero e a filiação.” (THÉRY, 1997, p. 173) 4 “Eu aprendo de sua carta que seu filho é um homossexual, estou muito impressionado pelo fato de que a senhora não mencionou este termo, nas informações que deu sobre ele. Posso perguntar-lhe por que evitou esta palavra? Homossexualidade, seguramente, não é uma vantagem, mas não é nada de que tenhamos que ter vergonha. Não é vício, degradação e não pode ser classificada como uma doença. Consideramos a homossexualidade como uma variação da função sexual, produzida por uma certa parada no desenvolvimento sexual. Muitos indivíduos altamente respeitáveis, nos tempos antigos e modernos, foram homossexuais, entre eles, vários homens (Platão, Michelangelo, Leonardo da Vinci etc.). Perguntando-me se posso ajudá-la, a senhora pergunta, suponho, se posso abolir a homossexualidade substituindo-a pela heterossexualidade normal. A resposta é: de maneira geral, não podemos prometer isto. Em certo número de casos, somos bemsucedidos, desenvolvendo os germes das tendências heterossexuais que estão presentes em todo homossexual. Na maioria dos casos isto não é mais possível. [...] O que a análise pode fazer por seu filho caminha numa linha diferente. Se ele é infeliz, neurótico, dilacerado por conflitos, inibido em sua vida social, a análise pode trazer-lhe harmonia, paz de espírito, plena eficiência, quer ele permaneça homossexual ou mude.” (FREUD, 1920) 5 Sobre esse assunto, ver: Arán, 2001; Birman, 1999; Neri, 1999 e Nunes, 2000. 6 Nota do organizador: é possível que tal situação seja hoje em dia menos frequente depois da decisão do Superior Tribunal de Justiça em favor da constitucionalidade da união de casais do mesmo sexo, já assinalada em nota anterior, além de jurisprudências anteriores – embora devamos admitir que ainda subsiste o preconceito relativo à adoção por casais homoafetivos. Referências
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A partir de histórias, brincadeiras, desenhos, jogos e dramatizações expressas por crianças / adolescentes cujos pais se separaram num clima de discórdias e disputas, é possível observar os conflitos e angústias por elas vividas. As crianças constroem seus “mitos ² individuais” usando o simbólico e o corpo para expressar seus sofrimentos frente às dores emocionais decorrentes dos sentimentos de abandono, rejeição, revolta e traição, considerados traumáticos, quando são impedidas de conviver com o genitor que não tem sua guarda e respectivos familiares e amigos. Os conflitos familiares na alienação parental Os ex-cônjuges / conviventes recorrem ao judiciário pela incapacidade de resolverem suas divergências e conflitos interpessoais no âmbito privado da família. Muitas vezes não conseguem dialogar e superar seus impasses emocionais porque ainda predominam, em seus relacionamentos, vários sentimentos de traição, rejeição, abandono, mágoas, anseios de punição e vingança que não foram elaborados. Mostrando-se inseguros e frustrados ao verem fracassar suas relações amorosas, acabam alimentando hostilidades e disputas, às vezes estimulados por seus familiares e advogados para que haja um vencedor. Quando os conflitos e impasses entre o casal envolvem os filhos e se transformam em disputas judiciais, há a interferência do poder público, do Estado, na vida privada da família, provocando mudanças nas relações parentais ao estabelecer regras de convivência entre pais e filhos. Estes últimos, imersos em discórdias conjugais, podem ser utilizados com diversos objetivos, por exemplo, como “objetos” de disputa, vingança e punição. A maneira como são interpretados e abordados os conflitos presentes nas separações e divórcios litigiosos faz emergir distintos efeitos nas subjetividades dos envolvidos, principalmente quando há disputas emocionais e judiciais em torno da guarda e convivência com os filhos – situação considerada, na maioria dos casos, traumática ³ . Assim, legalidade e subjetividade estão mutuamente entrelaçadas, principalmente nas questões pertinentes ao Direito de Família. Os pais ou substitutos em situações de litígio podem produzir diversos impactos e reações nas crianças / adolescentes. Dentre esses, podemos identificar conflitos não verbalizados, não ditos, violência física e / ou verbal, hostilidade direta ou dissimulada, afastamento, isolamento e abandono do lar de um dos pais. Nesses acontecimentos se observam fenômenos subjetivos que escapam ao ordenamento jurídico. Nesse sentido, destaco o sujeito do inconsciente, do desejo, a pulsão e o gozo. Cabe lembrar que o desejo se encontra no centro da teoria psicanalítica, e que nada tem a ver com a concepção naturalista ou biológica da necessidade. Esta implica uma relação com um objeto real, que encontra satisfação através de uma ação específica, visando a um objeto que permite a redução da tensão, ou seja, a necessidade implica satisfação. O desejo, entretanto, não possui relação com um objeto real, mas com uma fantasia. O desejo busca um objeto perdido e jamais é satisfeito. Quanto à pulsão, Freud (1915) a define como sendo uma impulsão do sujeito, ou seja, uma força interna e constante que busca sempre um objeto,
o mais variável possível, para se satisfazer. Nessa direção, esclareço que os operadores do direito lidam com os arranjos pulsionais dos diversos sujeitos (criança, adolescente, adulto e idoso) envolvidos em conflitos parentais e familiares. Em relação ao termo genuss (gozo), este foi retirado do campo jurídico, onde significa distribuir um bem, por exemplo. Freud (1920) o utiliza para ressaltar o caráter excessivo de um prazer, associando-o em certas situações com o júbilo mórbido ou o horror. Embora Freud não tenha conceituado o gozo, definiu o seu campo, situando-o no mais-além do princípio do prazer, regulando o funcionamento do aparelho psíquico, no qual se manifestam como prazer a dor e fenômenos repetitivos que podem ser remetidos à pulsão de morte. Aqui podemos citar as brigas e as disputas intermináveis, destrutivas e mortíferas entre sujeitos que querem se separar ou já estão divorciados, que se agridem para vencer e ter a guarda dos filhos, ignorando os sentimentos e sofrimentos dos mesmos. Eles “gozam“ brigando. Nas situações de separação e divórcio litigiosas, é possível encontrar certa confusão nos vínculos de parentesco e conjugalidade. A união conjugal pode ser desfeita, mas não se desfaz o vínculo filial. Certamente, as crianças / adolescentes sofrem os efeitos das situações decorrentes não apenas das decisões e dos atos de seus pais, mas também de certos atos jurídicos advindos da instituição de um genitor “guardião” e outro “não guardião”. Em muitos casos, temos uma criança numa situação complicada, ficando como “joguete”, “marionete” ou mesmo um “troféu” nas relações conturbadas entre os genitores, onde ocorre a prática da alienação parental. Muitos sofrimentos dos filhos passam despercebidos pelos próprios familiares, uma vez que, em certos casos, muitos pais de nada querem saber, obtendo daí um gozo. Dessa forma, o discurso do psicanalista é indicado para mostrar o que está para além do que é objetivo e racional – e, falando em termos do inconsciente freudiano, fazer emergir o sujeito do desejo, da “Outra cena”, ou, ainda, segundo Lacan, falar do “inconsciente estruturado como linguagem”. Ao interpretar suas diversas manifestações (atos falhos, esquecimentos, chistes, sonhos e sintomas), o psicanalista aponta para as particularidades de cada sujeito e, quando convocado, não deve recuar diante do desafio de contribuir nessa interlocução com diferentes campos do saber. Feitas essas considerações, pretendo abordar agora a dimensão trágica dos conflitos conjugais e parentais relacionados à disputa da guarda dos filhos, nos processos de separação e divórcio litigiosos, que culminam em situações de alienação parental, principalmente na guarda unilateral. Nesse contexto, inicialmente, é necessário apresentar breves definições do termo “conflito” sob óticas distintas. O conflito Conflito, no sentido etimológico, significa embate entre pessoas que apresentam um desacordo interpessoal. O conflito pode ser definido como “um processo ou estado em que duas ou mais pessoas divergem em razão de metas, interesses ou objetivos individuais percebidos como mutuamente incompatíveis.” (AZEVEDO, 2009, p. 27)
Em psicanálise, fala-se de conflito psíquico quando, no sujeito, opõem-se exigências internas contrárias. O conflito pode ser manifesto (entre um desejo e uma exigência moral, por exemplo, ou entre dois sentimentos contraditórios) ou latente, que pode exprimir-se de maneira deformada por meio de sintomas, desordens do comportamento, perturbações do caráter, entre outros. Para a psicanálise, o conflito é considerado como constitutivo do ser humano, sob diversas perspectivas: conflito entre o desejo e a defesa, conflito entre as diferentes instâncias (isso, eu, supereu), conflitos entre as pulsões (vida e morte) e, por fim, o conflito edipiano, onde não apenas se defrontam desejos contrários, mas onde enfrentam a interdição. (LAPLANCHE e PONTALIS, 1991, p. 89) Do ponto de vista sociojurídico, de acordo com a moderna teoria do conflito, este pode ser percebido tanto de forma positiva quanto negativa. Na primeira, o conflito seria percebido como um fenômeno natural na relação entre os seres vivos; como fenômeno negativo, quando se enfatizam perdas nas relações sociais, pelo menos para uma das partes envolvidas. Como nos ensina Azevedo (2009, p. 27), os juristas viam normalmente o conflito como algo a ser combatido, uma vez que uma das funções principais do Direito está voltada para solucionar alguns tipos de conflitos sociais. Esses conflitos nem sempre podem ser evitados, tendo em vista que existem divergências de interesses na sociedade. Entretanto, a única reação adequada ao conflito consistia em buscar sua anulação, de forma que a sociedade considerada harmônica era aquela em que não havia conflitos ou tensões. A estratégia jurídica básica, nesse caso, seria estabelecer juízes com autoridade para decidir os conflitos. Entretanto, em uma sociedade igualitária, os juízes não decidem e sentenciam segundo suas convicções pessoais, mas buscam aplicar padrões objetivos fixados previamente. Assim, são necessárias normas jurídicas para a determinação dos padrões de julgamento. Esta descrição simplificada do Direito moderno e sua articulação com o individualismo moderno significam que os indivíduos têm interesses diferenciados que entram em choque e precisam ser anulados por meio da aplicação de regras previamente definidas e aplicadas por juízes imparciais. Considerando as perspectivas que abrangem a noção de conflito, procuro a seguir definir e mostrar como se dão as relações paterno-filiais nas situações de alienação parental. Alienação parental De acordo com as referências de cada área do saber, o termo “alienação” ⁴ pode ter significados diferentes. Como vem sendo apresentada atualmente nas esferas familiar, social e jurídica, a alienação parental, na guarda unilateral, caracteriza-se pela manipulação e pelo abuso de poder por parte do genitor “guardião”, que dificulta ou mesmo impede a convivência dos filhos com o “não guardião” e seus respectivos familiares. Essa prática, muito comum nos processos de separação e divórcio litigiosos, evidencia uma ligação de acentuada dependência e submissão do sujeito criança/ adolescente ao genitor ou responsável alienador – que, em geral, detém sua guarda, mas procura afastar e separar, de diversas formas, a criança /
adolescente do outro genitor, que permanece também como alienado aos ditos e atos do guardião. No contexto de separação e divórcio litigiosos, as críticas e desvalorizações em relação ao ex-cônjuge são profundamente perniciosas e frustrantes para os filhos, trazendo-lhes muitas questões conflitantes, pois esses idealizam seus pais, identificando-se com alguns de seus traços e condutas. Nessa direção, surgem questões importantes. Por exemplo, como as crianças reagirão frente à figura paterna, constantemente humilhada e depreciada por sua mãe e outros familiares, recebendo qualificações negativas, carregadas de ódio e ressentimento? Ou, ao contrário, quando os atos e discursos maternos são recriminados e desvalorizados pelo pai, deixando a criança confusa, que entra em contradição com os sentimentos amorosos que vivencia junto à mãe? Tais condutas indicam atos de alienação parental que tantos problemas trazem aos filhos, despertando-lhes insegurança, dúvidas, oposição, medo, agressividade, ódio e até horror em aproximar-se do genitor “alienado”. Essas atitudes em relação ao genitor não guardião, foco e objeto de ressentimentos e necessidade de punição e vingança do guardião, contribuem para diminuir a autoestima dos filhos e levá-los a apresentar sentimentos de culpa em outros momentos de sua vida, quando estiverem em condições de avaliar e perceber que as qualificações atribuídas foram incutidas pelo “alienador” em suas mentes, não correspondendo à realidade dos fatos. A alienação parental costuma ser praticada pelo guardião por meio de atos e expressões verbais, quando procura denegrir e desqualificar o outro genitor não guardião (embora nem sempre feita de forma consciente), com o objetivo de impedir e destruir os laços afetivos parentais e familiares. Nessa situação, o “alienador” inventa mentiras, utiliza-se de comentários sutis e até de referências ameaçadoras, gerando mal-estar, temor, revolta, agressividade e pavor nas crianças / adolescentes, com o objetivo de evitar que elas se aproximem do genitor “alienado”. Esses atos podem culminar em falsas memórias implantadas no psiquismo dos filhos vulneráveis, fragilizados e dependentes e desembocar no judiciário, em falsas denúncias de abuso sexual, com o intuito de bloquear de vez o relacionamento dos filhos com o genitor “alienado”, produzindo efeitos prejudiciais na subjetividade das crianças e dos adolescentes. Como resposta, os filhos evidenciam sofrimentos e angústias diante do que é falado e praticado pelo responsável “alienador”, em quem confiam e de cujo amor dependem para viver. E, para expressarem seus sentimentos de raiva, abandono e traição devido à falta de convívio com o outro genitor e em razão das frustrantes experiências emocionais que enfrentam, as crianças / adolescentes tendem a apresentar diversos sintomas, tais como bloqueios e acentuadas inibições na capacidade de aprendizagem, crises de agressividade, tristeza, dificuldades de relacionamento, somatizações, atos obsessivos compulsivos, fobias e pesadelos, entre outros. Cabe ressaltar que essa prática pode ocorrer em diversos núcleos familiares e acontecer tanto por parte do guardião como do não guardião, estendendo-
se a outros familiares, caracterizando a alienação parental bilateral. Pai, mãe, avós, outros parentes, padrastos, madrastas e até profissionais podem interferir nas relações paterno-filiais, com efeitos danosos e prejudiciais ao psiquismo dos envolvidos, principalmente da criança, sujeito em formação e desenvolvimento, que precisa de proteção e modelos positivos para se espelhar e se identificar – no caso, em seus pais “super-heróis”, avós ou substitutos e, por meio destes, desenvolver regras civilizadas de boa convivência baseadas no respeito, no carinho e na admiração. A prática da alienação parental também atinge o pai ou a mãe “alienados”, principalmente quando esses ficam muito tempo sem contato com seus filhos, lutando para conseguir vê-los, apesar da morosidade na justiça, isso quando não há um desfecho fatal. Desse modo, pais e filhos perdem muito tempo de convivência profícua e enriquecedora, que dificilmente pode ser reparada ou compensada. Perdendo-se o vínculo afetivo, os pais se tornam indiferentes, estranhos, rivais ou mesmo inimigos. Como consequências a médio e longo prazo, o jovem “alienado” pode evidenciar sentimentos de desconfiança, desamparo, abandono e impotência diante da vida escolar, profissional e amorosa, apresentando sérios sintomas depressivos que podem culminar em suicídios, envolvimento com drogas ou conflitos com as leis, entre outras condutas destrutivas. O saber e as experiências de profissionais de outras disciplinas contra atos de alienação parental são necessários para combatê-los, objetivando que os pais se conscientizem dos malefícios de suas condutas alienadoras contra os filhos. Nessa direção, a efetivação da Lei da Guarda Compartilhada e a utilização de técnicas de mediação familiar podem ajudar a recuperar a possibilidade de diálogo entre os ex-cônjuges, assim como a indicação de tratamentos diversos, como psicológico, psicoterapêutico e, dependendo da gravidade, médico psiquiátrico. A dimensão trágica da alienação parental Separações, divórcios e os novos arranjos familiares decorrentes de novas uniões trazem impasses e sofrimentos para as crianças / adolescentes, que são acometidas por inúmeras dúvidas, conflitos de lealdade e perda de pontos de referência que dizem respeito às questões de paternidade, filiação e autoridade. A clínica psicanalítica fornece um testemunho dos fenômenos subjetivos que ocorrem nas relações conjugais e parentais. Durante o tratamento psicológico, tornam-se manifestos os conflitos e angústias que estavam latentes, causando sintomas a princípio indecifráveis na criança / adolescente, em sua posição de vulnerabilidade e dependência de seus responsáveis. Além dos filhos, outros membros de famílias em situações de litígio também vivenciam conflitos e sofrimento, como seus pais, avós e outros parentes envolvidos. Na guarda unilateral, verificam-se condutas diversas nos guardiões, desde os que valorizam e facilitam os contatos entre pais e filhos até as condutas mais radicais de certas mães ou substitutos, que fazem de tudo para negar à outra figura parental (em geral, o pai) o direito e o dever de conviver com seu filho, assim como com seus familiares, favorecendo ou desencadeando
uma série de sintomas nas crianças. Por se sentirem impotentes para resolver a problemática de seus pais, os filhos se sentem na obrigação de “tomar partido” de um dos dois ou inventar “estratégias” para conviverem com situações que não podem prever ou controlar, acarretando conflitos de lealdade e angústia. Além disso, muitas crianças assumem a culpa pela separação dos pais, procurando, desse modo, intervir como mediadoras para aliviar a tensão da situação, mas não dispõem de maturidade emocional para tanto – e nem lhes cabe essa função. Nos litígios, os filhos vivenciam os conflitos familiares e acabam se transformando em mais um “bem” – aqui entendido como “objeto” – entre os bens pelos quais os pais brigam e gozam para conseguir a sua posse, a sua “guarda”, não importando as consequências para eles nem os meios usados para alcançar tal objetivo. Simultaneamente aos dramas familiares, os filhos têm que tirar notas boas na escola, obedecer aos pais, sair vitoriosos nas competições esportivas, aceitar as sentenças jurídicas em relação às visitas quinzenais com o genitor que não detém a guarda e os novos parceiros amorosos dos pais, além de outras exigências. Enfim, têm que se submeter a determinadas normas instituídas pelos pais e pela justiça, na grande maioria dos casos, com poucas chances de escolha. As crianças precisam acompanhar o desejo do(a) genitor(a) ou responsável que domina a cena e detém o poder assegurado pela instituição da guarda. Em muitos casos de separação e divórcio litigiosos, as crianças / adolescentes vivenciam inúmeras situações de disputa, violência, punição e vingança entre seus pais quando são colocadas, independentemente de suas escolhas, como testemunhas, espectadoras e protagonistas dos conflitos familiares. São sujeitos que acabam passando por momentos constrangedores, sendo desrespeitados como sujeitos de desejo e de direito – nesse caso, o direito essencial de serem ouvidos e acolhidos em suas particularidades. O destino de suas vidas está nas mãos e na dependência das decisões de sujeitos adultos, que acabam, em muitos casos, por desvalorizar as demandas, os sentimentos e as necessidades afetivas de seus filhos. Nessas situações surgem indagações do tipo “O que se espera do atendimento clínico com crianças, principalmente quando estão em cena pais e familiares em conflito, disputando a guarda e praticando atos de alienação parental?”. Em muitos casos o psicólogo / psicanalista participa de litígios parentais onde existe um “jogo perverso” que nos faz lembrar o desejo puro, mortífero, como o da tragédia de Antígona. Dessa forma, esse profissional participa de situações que o remetem às tragédias familiares, nas quais se encontra a falha no simbólico, que é a mola do trágico, onde nem tudo do real pode ser simbolizado. É possível constatar alguns efeitos dos conflitos familiares sobre a subjetividade das crianças, como mostram os sintomas por elas apresentados, bem como observar que seus sintomas revelam um saber inconsciente sobre a verdade do par parental (LACAN, 1998a). Pautando-me nos estudos de caso, posso dizer que os sintomas das crianças também respondem ao litígio familiar.
Por meio de construções míticas, a criança diz o impossível de dizer, o que escapa ao significante, buscando dessa maneira esvaziar sua angústia. Ela constrói seu romance familiar, expressando, dessa forma, sua questão neurótica e sua existência como ser sexuado. Verificamos que durante o processo analítico aparece a questão sobre a fantasia do desejo tanto do outro materno quanto do outro paterno: “que queres?”. Ou seja, “o que o papai, a mamãe, a vovó, vovô, etc. querem de mim?” (LACAN, 1996b, p. 829). A essa questão cada criança responde de acordo com sua fantasia e seu romance familiar. Constata-se que, nas situações de litígio familiar, cada criança desenvolve sintomas específicos, de acordo com o tipo de sua estrutura clínica. Cabe ressaltar que a possibilidade de as crianças serem ouvidas em sua singularidade durante o tratamento facilita a expressão de seus conflitos psíquicos e mudanças subjetivas, que permitem deslocá-las da posição de alienação aos desejos e discursos dos pais para a posição de questionamentos, emergindo sujeitos desejantes e responsáveis por suas escolhas. Nas disputas judiciais dos pais em relação à guarda dos filhos, a clínica mostra que as crianças são colocadas, como vimos, em posições de objeto de vingança e de disputa, como “moeda de troca, nota promissória, cifra, troféu”. Em alguns casos, os filhos participam da relação entre seus pais representando para eles um “bem” patrimonial valioso, que pode ser “extorquido, vendido ou comprado” do(a) ex-parceiro(a), principalmente quando impera um discurso capitalista em certos núcleos familiares. Nessas situações, procura-se obter ganhos significativos com a posse da guarda da criança, quando, por exemplo, o guardião consegue obter elevados valores de pensão alimentícia do genitor não guardião, ou substituto, para se manter. Em relação, sobretudo, ao princípio de proteger a criança, é importante questionar se os adultos (por um lado, os pais envolvidos; por outro, os profissionais do campo jurídico) que atuam no delicado processo de desfazer o vínculo conjugal nos casos de separação ou divórcio têm consciência da importância de tal missão. A procura da solução mais adequada para as disputas e para os novos arranjos de guarda necessita do atendimento de uma equipe técnica multidisciplinar, na qual é preciso estar incluído um psicólogo, de preferência com conhecimentos em psicanálise. Em alguns casos, o processo litigioso é considerado um “mal necessário”, na medida em que determinados sujeitos necessitam da discussão e da “briga” para abrir um caminho para dar novos rumos às suas vidas. Nessa perspectiva, o processo judicial associado ao tratamento psicológico pode servir para que os sujeitos dissolvam o vínculo amoroso e consigam elaborar a dor da separação. Observa-se que toda separação revela o real do desamparo, que, trazido para a experiência do tratamento psicológico pode, em parte, ser elaborado por intermédio das palavras, do simbólico. O recurso ao ordenamento jurídico pressupõe que existe um imperativo, uma norma fundamental superior na hierarquia da qual deriva toda ordenação jurídica. Dessa forma, pressupõe-se submeter-se à lei. Na prática, observa-se que essa instituição é necessária porque nem sempre a Lei paterna que barra o desejo da mãe funciona, sendo necessário buscar
reforço no campo jurídico. Os tribunais existem porque a Lei simbólica, a Lei do pai, não dá conta de regular o relacionamento entre diferentes sujeitos. Quando a Lei do pai vacila, recorre-se ao jurídico para que este faça suplência àquela. Para ilustrar os efeitos dos conflitos familiares e da alienação parental bilateral, realizada por ambos os pais e outros parentes na subjetividade dos filhos, com graves consequências psicológicas, apresento em seguida recortes clínicos do caso do menino Pierre Guido ⁵ , nomeado O mito do barco pesquisador e da sepultura: o enigma da morte de uma criança. Fragmentos da clínica No caso clínico de Pierre Guido, sete anos, cujos pais passam por processo de divórcio litigioso, a decisão da Justiça estabeleceu sua guarda com a mãe e os fins de semana, intercalados, com o pai. Com o tratamento psicológico, o menino se aproxima do pai, quando aparecem as exigências da mãe que não quer que ele fique com o genitor durante a semana, pois isso “atrapalha seus estudos”. Questiono: como essa criança vai reagir às situações que presencia de agressões físicas entre os genitores, quando o pai é designado pela própria avó paterna como “viciado, inconsequente, marginal, irresponsável, pirado e maluco”, e a mãe como “exploradora”? E ao discurso da sua mãe, criticando a avó como “invasora, nervosa” e o ex-marido como “incapaz, incompetente e dependente da mamãe”, porque deseja mantê-los afastados? Segundo a avó paterna, o neto já foi testemunha e alvo de atos violentos entre os pais, com abertura de processos na justiça. Aos três anos ficou como testemunha muda, passiva diante das cenas traumáticas. Também foi vítima, por volta dos dois anos, de manipulação sexual por parte da babá e de um episódio sexual entre ele e o irmão, sete anos mais velho, que o traumatizou, ficando como objeto passivo nas mãos de outras pessoas. Quais as repercussões desses ditos e atos sobre a subjetividade de Pierre? De que forma ele vai responder e expressar tantas confusões, incoerências e conflitos de interesses das pessoas que ama e das quais precisa para sobreviver? Como vai responder à prática bilateral de alienação parental? Com o litígio, o menino ocupa o lugar de um bem útil, trazendo inúmeros ganhos para os pais alienadores. Ele é uma “nota promissória”, como diz o pai, na medida em que, ao morar com a mãe, seu companheiro atual e o irmão (filho de outro casamento materno), o menino “garante” o sustento da família. Dessa forma, não interessa que Pierre manifeste o seu desejo, pois, caso o faça, certamente trará consequências financeiras para a estrutura familiar, exigindo assim um reordenamento dos lugares que cada pessoa ocupa naquele núcleo. Ele “paga o aluguel e a alimentação” da família materna e “a avó paterna é a fiadora”. Paralelamente, diz a avó: “Se ele ficar com o pai, não come direito, pois ele não consegue dar limites ao filho!”. A empregada da mãe de Pierre diz que ela não liga para o menino, trancando-se no quarto com o atual marido. Sentindo-se abandonado no lar materno, Pierre telefona chorando para o pai ou para a avó paterna.
Cercado de demandas ambíguas e de conflitos de interesses, a avó lamenta que o neto “não quer saber de nada”, afirmando: “Ele não é burro, não! Mas por que repetiu a alfabetização? Por que fica só se masturbando, apanhando e destruindo os objetos dos colegas, se tem tudo em casa?”. Complementando, afirma: “o pai é um alcoólatra com 45 anos, não trabalha desde os 25 anos, dribla a lei, dando um péssimo exemplo para o filho. Chega a ultrapassar sinal de trânsito e depois diz ao filho, rindo: ‘Olha só a cara do guarda!’. A mãe é igual, doutora! Ela e meu filho acabaram com os bens da família e eu pago dívidas deles até hoje. Todos abusam de mim. O meu filho é explorado e o meu neto é extorquido, ele é uma cifra, uma moeda de troca”. O menino paga com a inscrição do seu nome, cujas iniciais foram bordadas por sua avó paterna numa toalha, a história familiar. Essas articulações significantes marcam a posição de Pierre como objeto nas mãos de vários outros. Os significantes falados pela avó, como “abusado”, “explorado” e “extorquido”, estão presentes o tempo todo nesse desígnio familiar, que aponta para uma dívida impagável. Como objeto de disputa de vários interesses em jogo, Pierre ocupa lugar ora de objeto agalmático ⁶ , de amor, ora de “mais-de-gozar”, de dejeto, resto, “cocô” (como o próprio menino vai se designar durante o tratamento), de produto de uma relação do pai com a mãe que não teve lugar. Durante o tratamento psicanalítico de Pierre, ele se apresentava na escola como “burro, ladrão e destruidor”, que só queria vencer, ser o “mico preto”, o “herói” do jogo e dar xeque-mate na psicanalista, executando jogadas de mestre, no xadrez, incompatíveis com seu baixo rendimento escolar. Tenta várias vezes desafiar a analista driblando as regras do jogo. Risca o papel com muita pressão, esburaca a folha, assim como fura a própria pele, ao escrever no corpo com a caneta até se machucar, escancarando o real. Marcas que evidenciam sua dor e angústia. Pierre se inflige um sofrimento aplicado mediante um objeto perfurante ou por meio de suas próprias mãos, beliscando-se, roendo unhas até provocar feridas no nariz, nos dedos das mãos e dos pés, para mostrar que está machucado e impotente, incapaz de agir. De forma masoquista, ele sinaliza a castração quando diz: “Não posso mais fazer nada, Lenita. Veja, minha mão está machucada”. Quando pergunto sobre a razão da ferida, tenta justificar: “Foi o sofá que empurrou o lápis na minha mão, furando-a”. Ou, então, “Foi o palito que fez isso”. Ele se castiga, mas nega quando questionado, dando respostas ilógicas e incoerentes. Ele quer mostrar e falar da dor, do sofrimento do qual é vítima, utilizando-se de suas próprias mãos para mostrar que ele está atendendo o desejo do Outro, que é levado de um canto para outro, transformado em testemunha, vítima e espectador de uma história de agressões verbais e físicas e, até mesmo, tentativas de assassinato praticadas por seus pais. Paradoxalmente, Pierre precisa renunciar às suas pulsões agressivas e sexuais, mas paga um preço por isso. Freud, no artigo Mal-estar na civilização, ressalta que a maior fonte de sofrimento é o relacionamento com as outras pessoas. Pierre não deixa de apontar o “furo”, ou seja, o real, esburacando o papel e o corpo até sangrar. Qual o sentido desses atos,
desses sintomas? Como lidar com esse material que é trazido do encontro precoce com o real do sexo? Estaria essa criança tentando falar do real da castração? Na escola, Pierre procura, compulsivamente, tirar, destruir os brinquedos valorizados, agalmáticos de outros colegas, isolando-os, atirando-os para fora do alcance, escondendo-os ou rasgando-os. Além disso, realiza atos obscenos, masturbando-se na frente da turma, no colégio, para mostrar e exibir a todos que ele tem um “piru”. Isso não seria uma forma de negar a castração? Entretanto, escreve no próprio cartão de identificação (que fica colado no peito), em vez do seu nome, o significante “piru”. Sempre nega seus atos, como se não tivesse qualquer implicação com o ocorrido. Tira, rouba e destrói, das mais variadas formas, e com rituais, tudo o que é mais precioso para os outros. Chega a rir da situação, enquanto nega sua participação. Quer se exibir, mesmo que seja desafiando as regras estabelecidas no grupo social. Dessa forma, aponta-nos sua forma particular de gozar.
A escola demanda um contato urgente comigo, mostrando-se impotente diante dos atos compulsivos e transgressores do menino. Além da avó marcar os pertences do neto com as letras P e G, iniciais do seu nome, Pierre também assina seus desenhos com essas iniciais (Figura 1).
Os significantes “nota promissória” e “moeda de troca” parecem cifrar um gozo familiar. Ao perceberem que a criança se aproxima do pai, alterando a dinâmica familiar, aparecem as reações contrárias. Com a análise, Pierre chama pelo pai, chora, pede que ele o “adote”, fazendo, assim, com que o pai se dedique mais ao filho. A avó, doente, idosa, vê no neto a razão de viver, de tal modo que, em face de tantas infelicidades, exclama: “sem mim, não sei o que seria do meu neto, todos precisam do meu dinheiro!”. Todos reagem frente à possibilidade de perder o falo (lugar que a criança vem a ocupar junto à família). Por um lado, seus sintomas cifram um jogo; por outro, trazem “cotas de gozo” que geram lucros e benefícios secundários. O “capital” está em jogo, ocupando o lugar de objeto na família. De quem se trata? Como um ioiô, ele é jogado de uma casa para outra e, conforme a mão de quem o manipula e possui o controle da situação, muda sua realidade. Pierre está num jogo de enganos, como uma carta marcada que fica no lugar do morto, onde o seu desejo aparece mortificado. A criança, enfim, atendendo o desejo do Outro, permite que os outros gozem, para ser um bem útil à família. Aqui, observa-se uma aproximação da Psicanálise com o Direito, onde a noção de usufruto é primordial para compreender o sentido de repartir e compartilhar (termo tirado do Direito pelo psicanalista Jacques Lacan). Pierre precisa ficar como garantia de “cifra” de gozo. A avó precisa dele para viver e gozar; a mãe, para se sustentar. Assim, ele é duplamente colocado como falo. Ele identifica-se como tal e nomeia-se como “piru”. Simbolicamente, quando “rouba”, tirando dos colegas seus objetos preciosos, não poderíamos pensar que se trata de querer ter o falo que lhe falta, para atender às fantasias do desejo da avó e da mãe? A avó comete lapsos, chamando o neto pelo nome do seu filho. Por vezes esquece a diferença, confundindo-os. Vendo o filho no neto e sem saber, sabendo, repete com o neto o que fez com o filho. Ela não discute, “paga” tudo o que o neto destrói, assim como fez enquanto mãe, passando a mão na cabeça da criança, em nome de seu amor. Com dinheiro, a avó dá conta dos atos “ilícitos”, tampando os “furos” deixados pelo neto, repondo-os com cifras. Ela “paga” tentando apagar o que o neto quer escancarar, desvelar e mostrar: a falta, a castração. O paciente entra na relação como substituto do falo anterior, lugar do seu próprio pai junto à avó. Paradoxalmente, ela mantém uma relação ambígua com o neto, ela o ama mas o destrói, situando-o num lugar mórbido na estrutura familiar, aprisionando-o no seu desejo. Como foi dito, Pierre bota o piru para fora e se masturba diante de todos, desafiando a lei e gerando mal-estar na escola. Nesse gesto ele assume o lugar do falo ou a sua posse, negando a castração: “eu tenho o falo” ou “eu sou o falo”, como apresenta no cartão de identificação que carrega junto ao peito. Sobre o piru, Pierre diz: “não foi piru, foi pirô!”. “O que é pirô?”, pergunto. “Ficou maluco”, responde. Quem é o maluco nessa história? Lembramos que a avó repete que seu filho é “maluco, louco”. Desse modo, com que traço da figura masculina essa criança se identifica, já que seu pai é depreciado por sua avó (e depende da fonte materna para se sustentar)?
Do avô paterno, que morreu quando Pierre tinha um ano, o menino só escuta informações positivas (“ótima pessoa, trabalhadora”). Ele passa a investigar a vida do avô. Desenvolve um comportamento estranho ao viajar com a avó para uma cidade do interior, onde acompanha cortejos fúnebres querendo ver a face do morto (da morte?). Foge para acompanhar os rituais fúnebres, pedindo que o levantem para que veja a face do morto, chegando, certa vez, a exclamar em voz alta: “Olhem! Os olhos dele estão abrindo!”. Frente à situação tragicômica, Pierre continuou pesquisando. Fugiu para o cemitério, manuseando um crânio, onde queria colocar bilhetes, conforme relato da avó. Esta pensou que tudo seria sua imaginação, mas diante da insistência do neto, foram juntos ao local, ficando horrorizada ao ver, in loco, que era verdade. A mandíbula estava aberta, cheia de papéis. “Quando vi aquilo, corremos para casa”, disse-me a avó, sorrindo. Simultaneamente, a avó contabiliza quantos amigos já morreram. O que Pierre quer dizer com seus atos compulsivos e suas feridas? Como constrói suas fantasias? Pode-se observar o circuito pulsional: uma criança fere; uma criança é ferida; uma criança se fere. Na relação com a analista (comigo), o menino repete o que faz na escola e em casa. Ele tenta quebrar lápis, esconder e levar brinquedos, querendo engolir peças de jogos após mastigá-las. Aproxima-se da janela para jogá-las, com extrema rapidez. Ele joga pela janela para destruir, ferir – mostrando, simbolicamente, como ele foi machucado.
Os significantes “jogar”, “ferir”, “furo”, “ferida”, “ferimento”, “morto”, “morte”, “cifra”, “dinheiro”, “nota promissória”, “doença”, “dor”, “louco”, “maluco”, que se repetem nos ditos familiares, norteiam e determinam a história de Pierre. Qual o sentido dos seus sintomas? Para dar conta do seu romance familiar, para construir um mito daquilo que não pode ser dito, ele joga e atua, sendo difícil para ele esvaziar o seu gozo por meio do simbólico, das palavras. Ele enterra e desenterra objetos que parecem simbolizar a figura do avô, sempre presente nas falas da mãe e da avó, ou talvez buscando o pai real, agente da castração, já que o pai imaginário falhou muito em barrar o gozo da mãe e da avó. O que significa a curiosidade mórbida pela questão da morte? Em tratamento, Pierre me pede para fazer um livro de histórias e desenha barcos de um pesquisador, um escritor chamado Noa (Figura 2). Impossibilitado de falar sobre a verdade do par parental, do seu gozo, o menino diz e mostra, por meio dos seus atos, dos desenhos, o seu desejo de pesquisar a dor. Conta que “Rindolfo, um índio que trabalha no barco de pesquisa [Noa], foi ao mercado de peixe para ver a baleia morta mas não a encontrou, então chamou a polícia marítima para prender o responsável pela caça às baleias” (Figura 3).
Depois, conta que um menino morreu no carro que explodiu. Diz que era ele, e desenha-se morto dentro de uma sepultura, num cemitério. Entre túmulos, coloca-se no caixão, no lugar de “morto” (Figura 4).
Como “morto” nesse romance familiar, tem direito a enterro, padre e celebração de missa, onde põe sua família participando do ritual fúnebre, inclusive o avô falecido (Figura 5).
Como “morto”, o paciente aponta para aquele que não fala, que não escolhe –portanto, aquele que não deseja. O que está querendo pesquisar e dar conta com seus significantes mortíferos? Em análise, Pierre sempre contabiliza, querendo, sistematicamente, escrever até mil, como se vê na Figura 6.
Sempre escolhe a tinta marrom, esparramando-a no papel, e diz que é “cocô”. Lambuza as mãos, depois as imprime no papel e corre para sujar as paredes (Figura 7).
Depois, joga no lixo o que fez. Pierre mostra-se como o próprio cocô, o próprio objeto que se oferece à demanda do Outro, simbolizando o dejeto. É a este sentido que suas brincadeiras o remetem: “ele é o cocozinho da vovó”, faz sujeiras e maldades que ela tem que limpar, ou seja, “pagar”. E ele atende à fantasia do desejo dos Outros, a questão do “che vuoi?”. ⁷ O que o Outro quer de mim? “O meu cocô, que eu lhe dê prejuízos”. Ao ficar nessa posição, alienado ao desejo do Outro, a criança sustenta a razão de viver da avó, ou seja, o pagamento das dívidas impagáveis. Pierre simboliza o falo, encarnando, assim, a moeda e a cifra. Quando tenta se deslocar desse lugar do desejo mortificado, ameaça. Quando começa a desejar, assusta, e todos correm para manter aquelas formas conhecidas de gozo, que fazem parte da estrutura de cada um. Levantamos a hipótese de neurose obsessiva, onde aparece a seguinte questão: estou vivo ou morto? Recusando-se a obter o “saber”, mantém-se como o falo que vem completar o Outro. Apesar do destino fatal, ele quer pesquisar. Quem sabe “o morto não vai abrir os olhos”, como ele gritou e apontou no enterro, e, então, será possível se deparar com seu próprio desejo, com a sua verdade? Quem sabe “o morto vai abrir a boca e falar”, como sugerem os bilhetes deixados por Pierre no crânio encontrado no cemitério? O sofrimento e a angústia apresentados pelo menino apontam para as repercussões das situações traumáticas de violência física e emocional vividas precocemente junto aos pais em litígio, sofrendo os efeitos da prática de alienação por parte de seus familiares. No atendimento dessa criança foi preciso ter contato com a avó, pai, mãe, professora e coordenadora escolar, entre outros, que participaram dessa tragédia familiar – o que exige a ética e o desejo do analista. ⁸ A alienação parental bilateral, por parte do pai e da mãe, é mais complexa e dolorosa quando, além deles, a avó paterna se agarra à criança assumindo de fato sua guarda, mesmo quando ambos ou um dos pais está presente. A avó insiste em competir para exercer a guarda, tratando a criança como “objeto” de desejo, como se o neto fosse a encarnação do próprio filho. Mesmo sem amparo legal, a avó faz diversas manobras emocionais, nem sempre conscientes, contribuindo para deixá-lo ainda mais em conflito quanto às figuras de autoridade. Essa situação observada no caso de Pierre torna-se mais complicada e de difícil intervenção em face da posição da avó de manter e sustentar financeiramente o pai e a família materna do neto, o que colabora para situá-la na posição de poder e autoridade. Os sintomas apresentados por Pierre Guido – bloqueios na aprendizagem, dificuldade de relacionamento, mecanismos obsessivo-compulsivos, desafios e transgressões das leis escolares, entre outros – podem ser entendidos como um ato de se negar a ser objeto dos caprichos da mãe, do pai e da avó. É essencial escutar a criança, pois seus sintomas evidenciam formas de se rebelar e de não se sujeitar aos discursos e desejos dos que a rodeiam. Considerações finais Ambos os pais são importantes para o desenvolvimento psíquico da criança, salvo a presença de impedimentos e outros motivos que venham a prejudicá-
la, por exemplo, casos de violência física e emocional e abuso sexual. Observa-se que, além dos pais, outros parentes e alguns operadores do direito, tomando partido do pai ou da mãe em disputas pela guarda, acabam envolvendo as crianças / adolescentes nos conflitos e litígios parentais, contribuindo para reforçar a alienação parental e causar sofrimento aos (e sintomas nos) filhos. Como instrumentos para lidar com e enfrentar as situações de alienação parental, muitos “não guardiões”, pai ou mãe, impedidos de conviverem com seus filhos, como mostram as diversas associações criadas por pais e mães na condição de separados, vêm demandando a aplicação da Lei 11.698/08 (“Lei da Guarda Compartilhada”), mesmo nos casos em que não há consenso entre o casal, visando à possibilidade de participação conjunta e igualdade parental nas responsabilidades e direitos junto aos filhos. Em vários casos, os pais possuem o recurso da Lei 12.318/10 (“Lei da Alienação Parental”), abrindo a possibilidade de aplicação de penalidades que barrem as condutas alienantes praticadas contra os filhos (entre elas, a utilização de multas, inversão da guarda e perda do poder parental). As decisões também podem se basear no artigo 227 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Lei 13.058/14 (“Nova Lei da Guarda Compartilhada” ⁹ ), que foi adotada como regra – e não mais como alternativa. Nessa modalidade de guarda, somente em situações excepcionais será aplicada a guarda unilateral, quando se apresentarem justificativas relevantes (por exemplo, quando um dos pais não se encontra apto ao exercício do poder parental ou quando não houver interesse expresso em compartilhar a guarda do filho). Dependendo do caso, também são indicados tratamentos diversos, como psicológico, psicoterapêutico individual e / ou familiar e, às vezes, médico psiquiátrico, em face da gravidade da situação. Dessa forma, espera-se que com a instituição de leis como a da Guarda Compartilhada e a da Alienação Parental, de técnicas de mediação familiar, práticas colaborativas e os demais tratamentos citados anteriormente, sejam enfrentados e minimizados os efeitos negativos da alienação parental. Além disso, considera-se necessária a orientação dos responsáveis, pai e mãe ou substitutos, objetivando melhor conscientização e reflexão sobre seus atos e falas, às vezes de caráter inconsciente. Com o trabalho do psicólogo / psicanalista na função possível de mediador junto aos operadores do Direito, abrem-se novos e promissores caminhos na necessidade de trabalho interdisciplinar visando à proteção e ao respeito aos filhos, atendendo ao melhor interesse da criança e do adolescente. Nos casos de alienação parental, é essencial o psicólogo / analista, entre outros profissionais que atendem demandas parentais em relação aos filhos, acolher e escutar o sujeito criança/adolescente sem querer investigar a versão mais coerente e verdadeira do desentendimento entre seus pais. O importante é dar voz a esse sujeito, dar a possibilidade de expressar e comunicar suas angústias e sentimentos sobre a situação em que, necessariamente, está envolvido, apostando na sua posição de sujeito de desejo e de direito.
1 Parte deste artigo foi originalmente apresentada no VII Congresso Nacional de Direito de Família do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Belo Horizonte, em outubro de 2009; no Seminário da Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ), em novembro de 2013e no I Congresso Luso-brasileiro sobre Alienação Parental, no Fórum de Lisboa, Portugal, em janeiro de 2015. 2 Para a psicanálise, o mito é uma maneira de dizer o que não pode ser dito de outro modo, apresentando-se como uma linguagem, uma narrativa atemporal e com caráter de ficção que tem como função transmitir uma verdade. 3 Trauma: acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização psíquica. Em termos econômicos, o traumatismo caracteriza-se por um afluxo de excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de dominar e elaborar psiquicamente estas excitações. (LAPLANCHE e PONTALIS, 1991, p. 522-527) 4 Termo usado também na psicanálise por Lacan (1996a), quando descreve as operações de alienação e separação como constituintes do sujeito. Capturado pelo significante, o sujeito funda-se no simbólico, na linguagem e no desejo do Outro (mãe, pai ou substituto). 5 O nome dado à criança no caso apresentado é fictício, assim como foram retiradas informações que possibilitassem a identificação dos protagonistas da história familiar. Esse caso faz parte do meu livro A guarda dos filhos na família em litígio: uma interlocução da Psicanálise com o Direito. 4ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. 6 Nota do organizador: Este termo vem do grego agalma, que Lacan introduz no seminário A Transferência (Seminário 8, 1960-61) para reformular a relação do sujeito inconsciente com o objeto de seu desejo. Lacan retira o termo de O Banquete, de Platão, a propósito do elogio de Alcebíades a Sócrates, destacando o seu caráter não somente de objeto precioso, mas também de objeto escondido no “interior” e de objeto de oferenda capaz de captar a atenção divina. Na condução do tratamento clínico, o psicanalista é, através da transferência, implicado no lugar daquele que contém o agalma, mas que não o possui. Se Sócrates designa Agatão como o verdadeiro portador do agalma almejado por Alcebíades, segundo Lacan, foi para indicar que o objeto é sempre parcial, renovando, assim, a busca de um desejo insatisfeito por excelência. 7 Nota do organizador: “Che vuoi?” é uma expressão de Lacan retirada do conto de J. Cazzote, O Diabo amoroso, que em italiano quer dizer “o que queres?”. Serve para designar a relação do sujeito com o desejo do Outro, cujo enigma é respondido através da fantasia primordial que servirá de matriz para o desenvolvimento de suas relações com os semelhantes e o mundo a sua volta.
8 Nota do organizador: O Desejo do Analista é o conceito criado por Lacan para designar o pivô do tratamento. Na relação transferencial, o analista ocupa o lugar de suposto saber para o analisando. Uma vez instalado nesse lugar, o analista não deve atender à demanda amorosa do analisando para, assim, permitir que a função do desejo, como proveniente do lugar do Outro, possa se manifestar. Logo, o desejo do analista corresponde a uma função de operação sobre o tratamento, pois, ao tombar do lugar idealizado que lhe é conferido na transferência, o analista transforma-se no suporte daquilo que causa o analisando em seu desejo. 9 Nota do organizador: A Lei 11.698/08, altera alguns artigos do Código Civil para instituir e disciplinar a guarda compartilhada, e a segunda, Lei 13.058/14, altera os mesmos arts. para estabelecer o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispor sobre sua aplicação. Referências ALTOÉ, Sônia (Org.). Sujeito do direito, sujeito do desejo. Direito e Psicanálise. Rio de Janeiro: Revinter, 1999. __(Org.). Guarda compartilhada: aspectos psicológicos e jurídicos. Porto Alegre: Equilíbrio, 2005. __. Síndrome da alienação parental e a tirania do guardião: aspectos psicológicos, sociais e jurídicos. Porto Alegre: Equilíbrio, 2007. AZEVEDO, André Gomma de (Org.). Manual de mediação judicial. Ministério da Justiça. Brasília: Gráfica Teixeira, 2009. BARBOSA, Águida A. Mediação familiar: uma vivência interdisciplinar. In: GROENINGA, Giselle C.; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito de Família e psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003. BRANDÃO, Eduardo; SIGNORINI, Hebe (Orgs.). Psicologia jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: NAU, 2011. BRASIL. Código civil brasileiro. Lei 3.071/1916. __. Código civil brasileiro. Lei 10.406/2002. __. Constituição (1988). __. Lei da Guarda Compartilhada. Lei 11.698 de 13 de junho de 2008. __. Lei da Guarda Compartilhada. Lei 13.058 de 23 de dezembro de 2014. CALÇADA, Andreia. Falsas acusações de abuso sexual e a implantação de falsas memórias. Porto Alegre: Equilíbrio / APASE (Org.), 2008. DIAS, Maria Berenice. Incesto e alienação parental: realidades que a Justiça insiste em não ver. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
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Possuímos uma vaga impressão das consequências duradouras que decorrem das avaliações dos psicólogos e das equipes técnicas que assessoram e orientam os operadores do Direito nas decisões relativas aos processos de guarda de filhos, regulamentação de convivência, adoção, medidas socioeducativas, entre outras. São decisões que, na melhor das hipóteses, podem organizar as balizas que situam o sujeito na linhagem familiar ou fazê-lo ressignificar seus atos sobre os quais recaem sanções judiciais. Em contrapartida, há aquelas que abolem qualquer rastro de subjetividade que embaralha a objetividade requerida pelo direito na solução de uma lide. São decisões que podem aprisionar, afastar, segregar, isolar, ferir, emudecer e mortificar o sujeito e aqueles em seu entorno. Reconhecida a gravidade dessas decisões que recaem sobre o fluxo de vidas que se entrecruzam e ficam à espera de atos decisórios capazes de mudar os seus destinos, é fundamental interrogarmo-nos sobre a formação daqueles que auxiliam os juízes, seja como peritos, mediadores ou assistentes técnicos. Tal formação deve fazer frente à tendência geral de vilipendiar uma ética do cuidado que, por seu turno, faz-se necessária a cada vez que acolhemos, orientamos e também avaliamos a criança supostamente vítima de abuso, negligência ou abandono, o filho do qual se diz “alienado” ao guardião, o pai acusado de incapaz de cuidar da prole, a mulher questionada moralmente em seus atributos ideais de maternidade, o adolescente visto como indisciplinado, o apenado, entre outras tantas personagens que são forjadas cotidianamente nas cenas e nas narrativas jurídicas. Não é difícil imaginarmos que a palavra escrita ou proferida por aquele que atende o jurisdicionado produza efeitos simbólicos e concretos na vida de quem a lê ou escuta. Por que, então, a psicanálise? Ora, não são poucas as contribuições que ela pode oferecer. A subversão do sujeito, introduzida pelo conceito de inconsciente desde Freud, é algo que se procura abolir nas múltiplas estratégias de adaptação aos costumes e às regras morais, de medicalização dos sintomas, de imperativo para a felicidade pessoal e o bem-estar social, de ideal burguês de família e casamento, da perseguição e punição sobre os anormais; estratégias que, vale dizer, fracassam na medida em que procuram regular aquilo que Lacan chamou de gozo. Ora, o gozo tem por hábito retornar sob a face cruel e obscena da lei, quando não ferozmente, por meio de atos violentos e escândalos sexuais. Portanto, vale revisitar criticamente os dispositivos judiciais à luz da psicanálise, especialmente para além da tradicional articulação teórica entre as leis jurídicas e a Lei centrada no Édipo. Em contrapartida, trata-se de fazer igualmente com que a psicanálise se abra aos desafios imediatos e espinhosos que assolam os tribunais e demais aparelhos jurídicos. Feito esse preâmbulo, debrucemo-nos agora sobre as questões ligadas especificamente às Varas de Família. Sobre o sintoma da criança
Para tanto, retornemos a um ponto anterior: como dissemos, o direito pode ter a função de garantir as fronteiras de parentesco frente aos excessos dos conflitos conjugais, mais precisamente, das vicissitudes do desejo e do gozo. Numa visão inspirada em Pierre Legendre, tanto o direito quanto a psicanálise têm o encargo de organizar as balizas da linhagem familiar, sem a qual a criança não poderá se constituir como sujeito, sequer como ser vivente. Ombro a ombro com a psicanálise, compete ao direito apontar e desembaraçar os nós em que a combinatória da cadeia de filiação, profundamente marcada pelo interdito fundamental, é colocada em risco (LEGENDRE, 1999). Donde a crença na “função clínica” do direito, observada em muitos casos nos quais a entrada da lei jurídica tem como desdobramento a produção de sentido por parte do sujeito, reconduzindo-o ao campo simbólico e, logo, à responsabilidade por seu ato (FERRARI, 2012). Em suma, a inscrição da lei jurídica pode ter efeito de estrutura para o sujeito. Tal perspectiva é importante se pensarmos que o perito (ou a quem o juiz encaminha casos para avaliação ou acompanhamento) poderá ocupar o lugar de suposto “saber” na transferência que o jurisdicionado lhe endereça em sua demanda, mesmo que marcada pela face sancionadora da lei. Nesse contexto de discussão, Caffé (2003) afirma que o psi não deve suprimir o caráter normatizador e sancionador outorgado a esse lugar transferencial, mas sim colocá-lo a seu serviço. Para tanto, ele deve lançar mão da escuta analítica de tal maneira que possa indicar algo da posição do sujeito na cena jurídica. A história singular do sujeito no litígio determina não somente o modo como ele se inscreve na cena judiciária, mas também a maneira com que esta última é recriada na transferência. Frente a esse panorama, conclui a autora, a intervenção do psi deve construir uma nova versão de ambas as cenas, deslocando a tradução jurídica da questão familiar para a fala dos envolvidos, que passam a se expressar sem o intermédio dos operadores do Direito, recolocando-os na autoria de suas falas. A partir da transferência, as intervenções do analista podem incidir, sobretudo, na espinha dorsal das disputas do par familiar: o sintoma da criança. Ora, normalmente os pais inquietam-se e acusam-se reciprocamente em relação à criança que modifica a sua conduta. Em dado momento, ela se torna mais agitada ou retraída, passa a se masturbar, demonstra certa hostilidade ou, enfim, começa a recusar a aproximação do pai a ponto de chegar ao extremo de querer riscar o próprio patronímico. Tratam-se de sintomas dos quais inúmeras crianças são portadoras em meio às disputas em Varas de Família, apressadamente descritos como sinais de “abuso” ou “alienação”, embora sugiram ser em grande parte fobias infantis que, a princípio, poderiam ser apenas transitórias. Em sendo o sintoma infantil o palco principal dos embates (que, por sua vez, são compostos pelo modo com que cada sujeito do casal parental se inscreve na cena jurídica), convém determo-nos em seu conceito, especialmente a partir da leitura de Lacan.
Nas conhecidas Duas notas sobre a criança, de 1969, Lacan afirma que o sintoma da criança apresenta uma forma particular de articulação cuja verdade é “capaz de responder pelo que há de sintomático na estrutura familiar”, representando a “verdade do par familiar” (LACAN, 2003, p. 369). Essa primeira definição do sintoma tem a lei do interdito do incesto como uma de suas variantes, na qual se inscreve o significante paterno como aquele que conjuga lei e desejo. Em outras palavras, existe uma articulação significante que sobredetermina o sintoma infantil que, por seu turno, por se referir à verdade do casal parental, está ligado à metáfora paterna que lhe dá acesso à significação fálica. Nesse contexto, a criança responde com o sintoma para fazer face ao desejo materno que, desde a sua origem, está articulado à metáfora paterna. Mas, indaguemos, que verdade é essa que se trata do par familiar? A verdade da relação entre os pais é que um faz do outro seu sintoma e que ele não funciona bem, ou seja, falha. Logo, a verdade do par familiar é que não há relação sexual. (NOMINÉ apud PACHECO, 2012, p. 119-120) A “não existência da relação sexual” é o que Lacan desenvolve no final dos anos sessenta a propósito do efeito da castração simbólica na partilha entre os sexos. Tal partilha divide-se em duas modalidades de gozo possíveis (todo fálico ou não todo fálico), onde se inscreve o ser falante, e assinala, principalmente, a dessimetria fundamental na relação entre homem e mulher. Melhor dizendo, a questão da diferença sexual é repensada por Lacan em termos da diferença de gozo masculino e feminino, correspondendo a posições do sujeito passíveis de serem ocupadas tanto por homens quanto por mulheres. No campo do masculino, o sujeito se especifica por manter uma relação com o gozo estritamente no campo do gozo fálico, limitado; já o sujeito posicionado no feminino frequenta não só o gozo fálico, mas um além dele denominado de gozo do Outro, ilimitado. Quando Lacan (1985) formula que “a mulher não existe”, significa que não existe ninguém que frequente exclusivamente o campo do feminino, e sim que homens e mulheres, necessariamente, frequentam o campo do gozo fálico. Se a mulher é tomada por um homem enquanto objeto causa de desejo, por um lado, por outro, ela mesma, enquanto sujeito, toma a criança como objeto em sua fantasia. Logo, a criança dá à mãe “aquilo que falta ao sujeito masculino: o próprio objeto de sua existência, aparecendo no real.” (PACHECO, 2012, p. 19) Seguindo esse raciocínio, a criança está forçosamente alienada ao discurso materno e, como diz Melman, “deve tentar realizar com ela esse casal mãefilho feliz que se entende perfeitamente, contrariamente ao casal que a mãe faz com seu marido” (MELMAN, 2005, p. 46). Sabemos que há inúmeros casos em que a mãe não quer ser privada do filho e se engaja num amor tão grande por ele como meio de protegê-lo da inconsistência do Outro. Nesse panorama, “essa mensagem da mãe vem no lugar de um Outro, do grande Outro que não quer nada de mim, que não me diz nada e no qual nenhum sentido me espera.” (ibidem, p. 47)
Nesse contexto, a criança busca uma resposta frente ao enigmático desejo do Outro, que, inicialmente localizado no desejo materno, fornece uma pista de como a criança se coloca como objeto desejável em sua própria fantasia. A criança se torna o objeto enganador, fazendo-se de falo imaginário, como sendo aquele capaz de saciar o que a rigor é insaciável, a saber, o desejo materno. Ela não sabe o lugar que ocupa neste último e, para não arriscar a sua existência subjetiva, acena para a mãe com a realidade do falo imaginário, realizando o que Lacan chama de “dialética intersubjetiva do engodo”, substituída mais tarde pela ideia de semblante. Há um engano do lado da criança e ao mesmo tempo um engano do lado da mãe, que não pode ser completada pelo falo. Nesse jogo de trapaça, a criança se torna amável em sua fantasia, ao mesmo tempo em que, num certo limite, apazigua a mãe. Entre a SAP e a alienação fundamental É importante destacarmos como tal leitura se distancia insofismavelmente dos discursos que gravitam em torno da chamada Síndrome de Alienação Parental (SAP), inventada pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner. Tecida nas fronteiras entre a medicina e as práticas jurídicas, a ideia da SAP ultrapassou os limites da pseudociência de Gardner e embasou o surgimento de leis que, entre outras, inflam as alianças familiares com o discurso jurídico e punitivo. No Brasil, tomamos de empréstimo o conceito para sancionar a Lei 12.318/10 (“Lei da Alienação Parental”), que pune a conduta de pais e parentes alienadores – estabelecendo advertência, multa, perda da guarda ou suspensão da autoridade parental, assim como a fixação cautelar do domicílio da criança ou adolescente. Sem dúvida, a criação da lei delimita situações que passaram a ser tipificadas como abuso familiar e frente as quais os operadores do Direito costumavam recuar. Num contexto global em que a guarda deixou de ser atribuída exclusivamente à mulher, vista historicamente como cuidadora natural dos filhos, e passou a ser requisitada pelos homens que, tardiamente, voltaram-se ao espaço doméstico familiar, exigiu-se a reorganização de saberes e de práticas reguladores das alianças entre pais e filhos (BRANDÃO, 2009). Ora, podemos supor que os discursos sobre a SAP inexistiriam se os homens não começassem a se insurgir contra as tradicionais atribuições de “pais de fim de semana”, provedores e fiscais das mães mulheres. Todavia, assistimos hoje em dia à inconveniente banalização da ideia da SAP, transformando-se num operador discursivo privilegiado de regulação dos conflitos de guarda e regulamentação de convivência. Atualmente, não é raro o pai ou a mãe que, no contexto do litígio, reduz os impasses das relações amorosas, do exercício próprio da parentalidade e dos conflitos em relação à diferença sexual – no sentido psicanalítico do termo – a uma “síndrome” cuja resolução depende, paradoxalmente, do controle e das sanções judiciais. Segundo a psicanálise, existe uma alienação original do sujeito ao Outro materno que não passa pela campanha voluntária e ostensiva deste último, mas sim pelo desejo, mesmo que não se diga uma palavra sobre o mesmo.
Ora, não é difícil encontrarmos situações nas quais o responsável (mãe ou pai) é altamente permissivo ou ambíguo em face da obrigação do filho de encontrar o outro genitor, embora nunca o diga expressamente e quase sempre se inquiete com as repetidas negativas da criança / adolescente. Muitas vezes tal pai ou mãe prefere que a convivência com o outro fique por conta do desejo do filho, sob a aparência de uma livre escolha que a criança supostamente seria capaz de formular. Não obstante, trata-se de uma falsa livre escolha, haja vista a injunção obscena do supereu ¹ que recai sobre ela. Nesse caso, o genitor priva a criança até de sua liberdade interior, prescrevendo não só o que deve fazer, mas o que deve querer fazer (ZIZEK, 2010). A criança responde ao desejo desse outro parental mesmo que este não o diga expressamente, pois ao não dizê-lo tal desejo recai como um imperativo à criança. Todavia, lançar mão indiscriminadamente de sanções e ameaças judiciais para refrear tal situação tem seus riscos. Um deles é o fato de que os sintomas infantis são em geral polimorfos e transitórios, ao passo que a disputa acusatória entre os pais e a judicialização de seus impasses podem aprisionar a criança no sintoma, sem dar muitas chances de ressignificação do mesmo. Não se pode esquecer igualmente que ela encontra no sintoma não apenas todo um conjunto de benefícios secundários, mas também a garantia da preservação de sua existência subjetiva. Portanto, tentar erradicar o sintoma da criança de forma truculenta pode ser uma tarefa inglória ou, na pior das hipóteses, levá-la a uma situação catastrófica. É preciso uma operação muito sofisticada para que, não sem o trabalho de escuta e as intervenções do analista no lugar de perito, a entrada da lei jurídica realize um corte entre o Outro materno e a criança. É por meio desse corte que a criança poderá enunciar o seu sintoma para além ou aquém dos ditos formulados a seu respeito. Em meio à querela das acusações judiciais, fica-se admirado com o fato de que raramente se leve em conta que as crianças não são tolas; elas mentem e sabem aproveitar as brechas desejantes que ligam e separam os adultos que delas se ocupam. E, se elas o fazem, sabemos desde Freud que a raiz de suas mentiras está fincada no complexo de Édipo. Em outras palavras, os crimes fundamentais de parricídio e de incesto, assim como o sentimento de culpa dos quais são oriundos, encontram-se na origem de certas mentiras infantis. Se consideramos a criança como sujeito do inconsciente, não podemos ignorar que existe nela a vocação humana pelo proibido, pelo ato infrator (FERRARI, 2012). Donde podemos suspeitar da capacidade de a criança enunciar alguma verdade sem levar em conta as chamadas “forças motivadoras”, ou seja, a sua fantasia através da qual ela se situa no desejo conflitivo dos pais. De certo modo, poderíamos acrescentar que a mentira infantil é expressão de uma verdade, cujo caráter inconsciente, não obstante, em nada se aproxima da verdade requerida pelas práticas e formas jurídicas. Em face desse panorama, Freud (1913) lamentava que as mentiras infantis eram mal compreendidas pela pessoa a quem a criança dirigia seu amor incestuoso, de tal modo que recebia uma reprimenda tão dura a ponto de se transformar num fato desencadeador de neurose na vida adulta.
A suposição de abuso e o Depoimento sem dano É temeroso quando se tenta abolir a fantasia, e logo o sujeito, em certos dispositivos judiciais, especialmente aqueles ligados às suspeitas e práticas de sedução e abusos sexuais infantis, chamados “Depoimento sem dano” (DALTOÉ, 2007) ou “Inquirição especial” ² . De forma geral, tais dispositivos parecem buscar a extração da verdade por meio de uma comprovação empírica, sendo necessário para tanto substituir a arte da escuta pela técnica de depoimento e varrer a realidade psíquica que tanto obscurece a objetividade aspirada pelo direito. Não são raros os casos em que a criança diz algo (por exemplo, a respeito do pai ou padrasto) que deixa uma ampla margem de dúvida se a sua conduta corresponde a um gesto de ternura, a um cuidado com a higiene íntima ou a um ato intencionalmente abusivo, situações diante das quais a criança não possui recursos subjetivos para enfrentar. Num contexto de fermentação discursiva a respeito do abuso infantil (que ganhou proporções planetárias desde aproximadamente os anos 1980), é previsível que hoje em dia genitores, responsáveis e educadores se inclinem a interpretar a fala infantil como signo de violência sexual. Logo, dificilmente uma mãe, por exemplo, levará em conta a possibilidade de que o filho localiza e atende ao seu desejo, ocupando lugar especial em seu fantasma, à medida que confirma as suas suspeições. Sobre esse roteiro no qual se inscreve o sintoma da criança, surgem os mencionados dispositivos judiciais que o recobrem, transformando o depoimento da criança num confessionário condenatório que tende a afastar qualquer representação razoável da lei. Tal parafernália procura poupar a criança do confronto em relação à dor e ao desprazer – que, em última instância, articula-se com o que Lacan denomina de gozo. Assim, subjaz nesses dispositivos a promessa de colher o depoimento da criança de uma forma econômica e eficaz, sem lançá-la na temida “vitimização secundária”, evitando, assim, a repetição de situações traumáticas. Ora, sabemos que as sanções proferidas num tribunal de Justiça podem transformar aquilo que chamamos de ‘tribunal interno’ do sujeito (FERRARI, 2012) num verdadeiro tribunal inquisitorial. Então por que afinal de contas, acredita-se que o depoimento, cuja resolução depende da condenação do pai ou de outra figura de importância, seja “sem dano”? Ao contrário de uma suposta função clínica do direito sobre a qual falávamos anteriormente, convém apontar os riscos de quando se pretende avizinhar campos tão díspares que são a psicanálise e os procedimentos judiciais. O ato de denunciar, revelar, acusar, depor e punir agressores ou abusadores, ou seja, o ato de querer “cumprir a lei e fazer justiça” em nada pressupõe que seja restaurado o lugar do sujeito na cadeia simbólica de filiação e parentesco. Convém perguntarmos sobre o lugar reservado à psicanálise, assim como à psicologia em geral, nesse panorama. Haverá ainda espaço para a escuta de uma criança enquanto sujeito do inconsciente, ou seja, com todos os enganos de uma subjetividade para a qual a realidade é, por definição,
psíquica e, assim, povoada por fantasias, desejos e pulsões? Realidade que, vale lembrar, é de caráter infantil, sendo endereçada aos seus pais e demais figuras de referência? Não há como tratar disso, seriamente, sem querer substituir as técnicas de interrogatório investigativo pelo trabalho laborioso e sofisticado de escuta. É urgente interrogarmos se, afinal, o remédio administrado não prolonga a doença, considerando o modo como, desde a modernidade, os poderes disciplinares e normalizantes se impõem sobre a sexualidade (FOUCAULT, 1994) e as alianças (BRANDÃO, 2012), cujo arco de controle se amplia cada vez mais sobre a vida humana, do indivíduo à população em geral. As controvérsias ligadas ao abuso sexual e aos procedimentos que giram ao seu redor não se encerram aqui, cabendo questionar outros pontos não menos importantes. Para começar, ao ser notificada a denúncia, é despertada, com misto de indignação e repulsa, no espírito dos operadores do Direito e das equipes interprofissionais, a precipitação em afastar a criança daquele que a viola – embora, ao afastá-la do suposto abusador, poderá ser cometida contra ela, inversamente, outra violência, dessa vez com anuência do Estado. A acusação de abuso costuma ser devastadora para o acusado, assim como para seus próximos, afastando-o, frequentemente, de forma definitiva da prole, mesmo que nada seja provado contra ele ou quando até mesmo ele consiga provar o contrário. Ademais, existe o desastrado costume de encaminhar a criança ao exame de corpo de delito, mesmo que o relato do suposto abuso se refira, como ocorre de hábito, a manipulações e seduções que não deixam nenhum registro material no corpo. A princípio, a prática do Depoimento sem dano / Inquirição especial não consegue contornar esse problema. Por fim, um problema central é o fato de que a suposição de abuso abre um continente difícil de ser suportado pelo direito: a incerteza, a indecidibilidade, o não saber. Em parte significativa das situações geradoras de denúncias e notificações, surgem indícios, alguns mais fortes, outros mais fracos, e nada mais! É curioso como psicólogos, assim como assistentes sociais, juízes, promotores, lidam com essa fratura no campo do saber. De um lado, há aqueles que se tornam agentes de vigilância e punição e querem afastar a figura desprezível do abusador a qualquer custo, cuja palavra passa a ser escutada com extrema desconfiança ou, até mesmo, desdém. De outro lado, há aqueles que se aferram tanto aos pressupostos da alienação parental que parecem desconhecer a possibilidade de existirem, de fato, pais que queiram passar ao ato e, pior, que o fazem por várias vezes. Sobre a segunda definição de sintoma Em contraponto às tentativas de aproximação entre psicanálise e direito, ou entre o sujeito requerido por um e por outro, fazemos eco à crítica que Miranda Júnior dirige à teoria de Legendre, que [...] parece acreditar que o direito seria o campo da possibilidade de lidar satisfatoriamente com aquilo que escapa constantemente à regulação: o gozo. É como se o simbólico pudesse dar conta do campo do real. [...] Ao ignorar o real em jogo, Legendre retorna à própria exigência superegóica de
uma referência absoluta que exige submissão ao preço da promessa de regulação. (MIRANDA JÚNIOR, 2010, p. 187-188) Seguindo esse raciocínio, a depender do lugar que a criança ocupa e manifesta o seu sintoma, seja como significante fálico, seja como objeto de gozo, a intervenção judicial terá diferentes desdobramentos. No mesmo texto a que aludimos anteriormente, Duas notas sobre a criança, Lacan lança luz sobre um segundo tipo de articulação do sintoma da criança, no qual esta “se torna objeto da mãe e não tem outra função que a de revelar a verdade desse objeto”. Nesse tipo de articulação, a criança satura a falta em que se apoia o desejo do Outro materno, deixando-a “aberta a todas as capturas fantasmáticas” (LACAN, 2003). Dito de outro modo, ela ocupa um lugar condensador de gozo, realizando a presença do objeto a (objeto mais gozar) na fantasia materna. “Ela”, a criança, “aliena em si qualquer acesso possível da mãe a sua própria verdade, dando-lhe corpo, existência e até exigência de ser protegida.” (ibidem, p. 370). Com efeito, a criança empresta seu corpo para que a verdade do Outro goze por meio de seus sintomas. (SOLER, 2005) Nesse caso, não é mais a ordem simbólica que fornece a prova da verdade, e sim o objeto pequeno a, sendo aquele que delimita o gozo desarrazoado do Outro. Segundo Laurent (2007), a maternidade com a qual a mulher se ocupa e por meio da qual se atormenta com os filhos é uma atividade propriamente sexual que se manteve velada entre os pós-freudianos que tanto se fascinaram pela relação mãe-filho. Foi Lacan quem assinalou que nessa relação há algo aquém e além da equivalência fálica que faz a criança oscilar entre o amor fetichista e o amor louco do sujeito mulher. No esforço do sujeito feminino em encontrar no Outro o que seria o significante desse objeto impossível que lhe foi privado, algo não se apazigua e faz prolongar sua exigência amorosa ao infinito. Em face dessa dispersão rumo ao infinito, o objeto a funciona como limite, diferente da medida fálica. Nessa etapa de sua obra, Lacan diz que um pai só tem direito ao respeito e amor se estes forem “pai-versamente” orientados: quer dizer que o pai faz de uma mulher sua causa e que ele não é nenhum ideal. Dito de outro modo, um pai deve sua existência ao fato de ter enfrentado a questão do gozo de uma mulher e ter feito dela o objeto a que causa seu desejo, levando-o até o fim nos torneios amorosos.
Cabe destacar que o texto das Duas notas sobre a criança, de 1969, é contemporâneo à alocução final nas Jornadas sobre a infância alienada, Radiofonia, ao prefácio à tese de Anika Lemaire e ao seminário O avesso da psicanálise, num momento em que se percebe uma mudança significativa no ensino de Lacan. Nessa etapa do pensamento, o autor situa-se para além do Édipo na medida em que enfatiza a dimensão do gozo, indo de encontro com sua doutrina clássica da relação do sujeito com o falo e, logo, com a metáfora paterna, o Nome do Pai e o lugar do Outro simbólico. Como diz Soler (FINGERMANN, 2014), se Lacan fazia explicitamente do Pai um significante da lei no Outro, ele conclui nesse momento que “não há Outro do Outro”, de tal forma que o modelo paterno não deixa de ser outra coisa senão uma versão entre outras possíveis de desejo e de gozo. Por fim, a experiência analítica demonstra que o sujeito criança é indissociável do discurso dos pais, cabendo à clínica discriminar os discursos moralizantes em torno da família e o lugar que ela ocupa – seja na ordem simbólica, onde o desejo do Outro e o Nome do Pai estão articulados na estrutura, seja como objeto condensador de gozo. Assim, se a criança necessariamente se aliena ao Outro, sem dúvida é preciso que ela depois se separe, embora não sem o sofisticado trabalho de escuta ao qual aludimos anteriormente. Duvidamos da eficácia dessa separação por via pura e simples da imposição judicial, ao menos, para todo e qualquer caso. É certo que, em algumas situações, como foi dito de início, a entrada da lei jurídica poderá ter efeito de estrutura sobre a criança e, assim, organizar as balizas que situam o sujeito na linhagem familiar. Nesse diapasão, o sujeito criança poderá retomar tudo que recebeu do Outro por sua própria conta e risco. Contudo, acreditamos que a entrada atabalhoada da lei, ignorando o lugar de gozo ocupado pela criança e procurando eliminá-lo na tentativa de restaurar um “pai”, pode ter efeitos desastrados e indeléveis para o sujeito criança. 1 O Supereu é a instância psíquica originalmente descrita por Freud no quadro da sua segunda tópica, a partir de 1923, cujo papel é assimilável ao de um juiz ou de um censor inexorável em relação ao Eu. 2 Nota do organizador: sobre o Depoimento sem dano, remeto o leitor ao artigo de Esther M. M. Arantes, “Duas décadas e meia de vigência da Convenção sobre os Direitos da Criança: algumas considerações”. Referências BRANDÃO, Eduardo Ponte. Por uma ética e política da convivência: um breve exame da “Síndrome de Alienação Parental” à luz da genealogia de Foucault. 13/10/2009. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/artigos/ autor/Eduardo%20Ponte%20Brand%C3%A3o > Acesso em: 09/06/15. __. Sexualidade e aliança na contemporaneidade: Nem Édipo, nem barbárie: uma contribuição genealógica ao debate psicanalítico. Curitiba: Juruá, 2012. CAFFÉ, Mara. Psicanálise e Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2003.
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sabedoria, e a razão tomava consciência da loucura. A loucura é a “força viva e secreta da razão” para os renascentistas, por exemplo. (FOUCAULT, 1972, p. 31) A modernidade, no entanto, em um verdadeiro salto epistêmico, cunha um novo discurso, da ciência, e com o mesmo passo inaugura a loucura como alvo de intervenção médica e, em seguida, farmacológica. Após abandonar as regiões em que até então estava situada, a loucura passa a ser relacionada com a aparência de um crime, um atentado à razão. Sua seriedade dramática só existe na medida em que se trata de um falso drama. “A partir dela [da modernidade], a ilusão se desfaz.” (ibidem, p. 40). O real da morte, para o qual a loucura apontava da antiguidade até a Idade Média, fora trocado pela ilusão, pela desrazão. No Brasil, hoje, o chamado louco infrator é absolvido de seu ato por não ter “discernimento” da ilicitude deste, nem “capacidade de autodeterminação” no momento do cometimento do crime. Nesses casos, ele é considerado incapaz de receber uma pena. Esta, então, é substituída por uma sanção prevista no Código Penal denominada “medida de segurança”, tendo como fundamento a noção cunhada pela psiquiatria de “periculosidade” e implicando a prescrição de um tratamento compulsório por tempo indeterminado – que pode resultar, concretamente, em uma condenação perpétua. Embora não tenhamos, na legislação brasileira, a previsão de prisão perpétua, essa possibilidade na práxis judiciária permaneceu praticamente inalterada desde seus primórdios (em 1830, no Código Penal do Império e, mais tarde, no Código Penal de 1940) até os dias atuais. Houve apenas uma alteração a ser destacada: se inicialmente o sistema sequer previa uma porta de saída desses manicômios, a partir dos anos 1940 há o chamado “exame de cessação de periculosidade”, laudo privativo de um perito psiquiatra ¹ . Porém, com o isolamento do paciente da comunidade em que vive, da família e, na verdade, de todo laço social, e ainda, como a lei não prevê um tempo máximo de duração da medida, há sempre a abertura para que o psicótico infrator permaneça indefinidamente sob a custódia do poder público, alijado da comunidade dos homens. A absolvição de seu ato e a aplicação da medida de segurança têm como consequência ser vedado ao psicótico infrator todo dever de responder pelo ato do qual, apesar de tudo, é o autor. Sua palavra não tem lugar no processo, de tal modo que nada que disser do mesmo interessa ao Judiciário, a princípio. Tal “medida de segurança” segue na esteira da experiência engendrada pelo cogito cartesiano: se sou onde penso, então não sou onde não penso ² – portanto, não há ato, nem mesmo crime, sequer há sujeito onde a racionalidade consciente não se encontra presente ³ . A articulação entre sujeito e responsabilidade ocorre, portanto, exclusivamente no campo da razão. Além disso, diante de uma concepção utilitarista e sanitária da penologia, como ensina Lacan em seu trabalho escrito com o jurista Michel Cenac, a possibilidade da não responsabilização do louco se baseia, ainda, no pressuposto de que, não havendo razão na loucura, não haveria finalidade para a pena, já que esta, além de encarnar a
punição, justifica-se ante “a consciência pesada” do legislador por um projeto pedagógico de retificação da conduta do sujeito e de dissuasão da comissão do ato criminoso. (LACAN, 1995, p. 139) Uma civilização cujos ideais sejam cada vez mais utilitários, empenhada como está no movimento acelerado da produção, nada mais pode conhecer da significação expiatória do castigo. Se ela conserva seu peso exemplar, é tendendo a absorvê-lo em seu fim correcional. E além do mais, este muda imperceptivelmente de objeto. Os ideais do humanismo se resolvem no utilitarismo do grupo. E, como o grupo que faz a lei não está, por razões sociais, completamente seguro da justiça dos fundamentos de seu poder, ele se remete a um humanitarismo em que se exprimem igualmente a revolta dos explorados e a consciência pesada dos exploradores, para os quais a noção de castigo tornou-se igualmente insuportável. A antinomia ideológica reflete, aqui como em outros aspectos, o mal-estar social. Ela agora busca sua solução numa formulação científica do problema, isto é, numa análise psiquiátrica do criminoso a que deve reportar-se, após examinar todas as medidas de prevenção contra o crime e de proteção contra sua recidiva, o que podemos designar como uma concepção sanitária da penologia. (ibidem, p. 139) Jeremy Bentham (1843, p. 383) chega a dizer que, nesses casos, a pena seria “pura perda”, sem nenhuma utilidade. Deixamos aqui o registro, apenas, de que a mesma expressão, pura perda, é utilizada por Lacan (2005, p. 10) quando se refere ao gozo como realização paradoxal do desejo, para além do princípio do prazer – como aquilo, justamente, que, independentemente da estrutura, e embora visado, “não serve para nada”. Ora, não é esta, paradoxalmente, exatamente a dimensão despercebida pelo utilitarismo, e mesmo pelo Direito em geral? E, quando discernida, logo associada à doença e ao perigo? Associando a loucura ao perigo e à doença, a modernidade logo entende haver uma necessidade de exclusão securitária e sanitarista do convívio social. Quase naturalmente, nesses casos, o Direito desliza sem resistência de seu lugar de terceiro, e de exercício de um juízo a posteriori, e se vê instado a ocupar o lugar sedutor de médico do corpo social, utilizando-se dos ideais positivistas para almejar a prevenção da sociedade em relação a futuros riscos. Mas por que esse lugar é sedutor? Trocar o real indomável, veículo da categoria lógica do impossível (ineliminável de nossa condição humana), que até então a loucura encarnava, trocar esse real pela promessa da legalidade científica, coercitiva e indiscutível, tornou-se uma troca sedutora, ao passo que apontava ao Direito a miragem da supressão do fundo de incerteza e de inconclusão cabal em sua seara; em outras palavras, o fundo de disputatio que compunha o seu estatuto de terceiro simbólico.
Como resistir ao poder da ciência e ao fascínio da miragem de uma possível resposta, que afinal de contas é a mais remota e primitiva demanda humana? A ampliação constante do campo do saber pela ciência, e sobretudo sua instrumentalidade traduzida em produtos como as tecnologias incrivelmente performáticas, fazem-nos crer que o que resta de insabido, não dominado ou a conquistar deve-se apenas a uma questão de tempo. Pela mesma vertente, a ciência produz um efeito muito radical na cultura: o real como impossível fica mascarado, ou seja, a divulgação do discurso da ciência na cultura cria uma miragem de completude possível, ainda que virtualmente projetada no futuro. Ora, para a psicanálise, o real é definido precisamente como impossível, como o que necessariamente fura a pretensão de completude do simbólico, o que sob o fundo do que se diz, permanece como o que não pode ser completamente simbolizado na palavra ou na escrita, e por isso não cessa de não se escrever (LACAN, 1985, p. 127). Ele, o real, ainda é pensado, por exemplo, como uma mancha que vem cortar a ilusão da boa forma da imagem (o que, nos termos da psicologia da percepção, diz-se que deixa a gestalt aberta). Pois bem, para a psicanálise, essa condição é estruturante na formação do sujeito como desejante, pois quer queira, quer não, sua condição é inapelavelmente desejante. Mesmo “desejar não desejar” é desejar. Não existe a possibilidade, a rigor, de nada desejar, pois seria, antes, desejar nada, nesse caso. Em contrapartida, a miragem produzida como efeito da ciência tem como corolário a promessa que responderia ao anseio de evacuação final e definitiva de todo e qualquer limite, apagando o confronto necessário com o caráter decepcionante do simbólico e das leis da linguagem que nos constituem ⁴ . Podemos inferir que tal deriva responde, em última instância, à demanda de supressão de todo e qualquer conflito, de todo limite, vai de encontro ao voto de supressão de toda excitação e inconclusão; em última instância, responde à pulsão de morte. Arendt (1972) ensina-nos que, a partir da entrada da ciência como valor legitimador e como modelo em seu caráter pragmático, operatório, é possível verificarmos sérias consequências sobre o campo do Direito, fazendo-o deslocar-se em relação à sustentação lógica e estrutural no laço social. É como se visasse funcionar não mais sustentado estruturalmente no discurso do Mestre, mas, antes, a partir do lugar desse “mestre decaído da modernidade”, como se refere Lacan ao discurso Universitário substituto do discurso do Mestre ⁵ . Promovendo a lei da ciência como modelo de legalidade, a modernidade foi capaz de praticamente abolir a diferença que Kant (1993) apontava entre o campo dos Costumes (campo das demandas de satisfação) e a ordem da lei – ou, se quisermos, do interdito à completude do mundo da demanda, hiato que cunhava, justamente, o lugar do Direito. Abolindo esse hiato incômodo, a modernidade seduziria, iludiria e arrastaria consigo as forças políticas por inteiro, inclusive as jurídicas, em função da promessa evidentemente ilusória de satisfazer o voto, o anseio, de todos. Bem sabemos, desde Freud (1989), que essa satisfação plena implica uma deriva mortal. No nosso campo, o dos pacientes sob medida de segurança, falamos do voto, ou da demanda securitária, sem restos.
A questão, desde então, evidentemente não pode ser a de restaurar uma ordem perdida, até porque nossa realidade complexa atual não permitiria que os juristas abrissem mão do auxílio dos peritos e cientistas (como julgar, por exemplo, um acidente nuclear sem o auxílio de um perito em física nuclear?). Mas é importantíssimo estarmos advertidos e atentos para os deveres éticos que a nova ordem nos impõe, sobretudo com relação às consequências que não podemos nos eximir de extrair. Uma das proposições em debate atualmente no Brasil leva essa advertência em consideração. Em casos complexos, nos quais há a suspeita de transtorno mental por parte de um autor de ato infrator, a proposta considera que as perícias forenses não mais fiquem a cargo exclusivamente de uma única disciplina (como ocorre atualmente com as perícias psiquiátricas, que, como dissemos, pautam-se fundamentalmente no conceito de periculosidade), mas, antes, que sejam constituídas por uma equipe multidisciplinar, dando chances para que haja um parecer aprofundado e debatido entre distintos saberes. Isso porque, para o modelo atual de perícia forense, psiquiátrica, o que pauta o parecer é a suposição de periculosidade, de um potencial criminoso. Ainda em nossos dias, tal ideia se sustenta numa biologia radicalmente positivista através do conceito obsoleto de degenerescência ⁶ . Em consequência, o dispositivo destinado a tais pacientes é coerente com a doutrina que o embasa: um híbrido de intervenção psiquiátrica, farmacológica, com práticas correcionais normatizadoras, tendo a prisão como modelo. Nos manicômios judiciários, atualmente denominados de Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico – que, apesar da mudança de nomenclatura, pouco se diferenciam daqueles ⁷ – há a presença de agentes penitenciários nos diversos espaços do hospital, o uso de viaturas do tipo camburão para deslocamento dos pacientes (muitas vezes, algemados), a prática usual da chamada “tranca” ou isolamento como punição informal, enfim, um grande aparato prisional, cuja lógica carcerária é associada à da psiquiatria farmacológica. Como então tratar se, ao mesmo tempo em que a incidência da responsabilidade é subtraída do paciente, nenhuma instância social a recobre, isolando-o da Cidade, alijando-o do contato com o Outro? Como tratar se a resposta social oferecida assume caráter de exclusão radical, retirando-lhe inclusive qualquer eventual endereçamento de sua própria palavra, já que foi anulado o peso jurídico do ato? Para a psicanálise, não há como dissociar ato e responsabilidade, como faz o Direito, na medida em que o que constitui o ato, propriamente dito, diz respeito, malgrado a presença ou ausência de intencionalidade consciente, a certa dimensão alargada de responsabilidade ⁸ . Ao se referir a um saber que orienta e determina os atos do sujeito, mesmo além do campo da consciência, é sempre possível pensar que, pela palavra e a posteriori, o sujeito possa vir a dizer “eu” onde estava seu ato. Mas, nesse sentido, a experiência da responsabilidade para a psicanálise difere da imputação jurídica; ela é consequência de um trabalho ético do sujeito. Vejamos. Freud (2011) dá o exemplo de um sonho imoral ou criminoso. Ele se pergunta: devemos nos responsabilizar pelos nossos sonhos imorais? Quem
mais poderia fazê-lo? Há, contudo, o trabalho de o sujeito advir a este lugar, onde emana o móvel do sonho (imoral que seja), tomando para si a responsabilidade, inclusive acerca das consequências de seu ato – o sonhar, no caso (malgrado o fato de, a princípio, o sujeito, ou sua consciência, não estarem presentes). Não se trata, portanto, de uma imputação por parte do analista, do exterior, ainda que auxiliado pelo dispositivo clínico que faz retornar a si sua própria palavra no a posteriori. A menos que o sujeito, ele próprio, faça esse trabalho ético, restará sempre como exterior, e provavelmente, a partir do inconsciente, o que está em jogo no sonho insistirá e, sem elaboração, vai se repetir, tentando se fazer ouvir. Entendemos que nos atos de pacientes psicóticos, mesmo os mais graves, há uma lógica subjacente, mesmo quando se trata de ato cujo móvel se mostre o mais diretamente pulsional (portanto, surreal); se seguirmos o recurso de Lacan (1998, p. 161) aos surrealistas para dar conta do circuito da pulsão, ainda assim, entendemos estar em jogo um meandro lógico, embora não a lógica da consciência, partilhada pelo sentido comum. O estudo aprofundado do caso das irmãs Papin feito por Lacan (1975) – crime retratado na peça teatral de Jean Genet (2001), as Criadas – revela, ao contrário da perspectiva meramente ideológica que havia à época, uma lógica clínica estrita e rigorosa, inclusive no uso da arma do crime e na escolha das vítimas, mãe e filha, que espelhavam o par de irmãs em sua “folie a deux” – enfim, diversos aspectos atinentes à forma como o crime é realizado. Há, digamos, uma constelação simbólica, que diz respeito ao sujeito que passa ao ato, no real do crime. A experiência analítica ensina que, em alguns casos, o sujeito, ainda que instalado na psicose, pode vir em alguma medida a se posicionar diferentemente com relação ao gozo implicado em sua posição, bordejando-o junto aos profissionais da rede de saúde mental e aos operadores do Direito. Porém, ainda que esse trabalho seja sem garantias de sucesso a priori, algo é certo: ele somente é possível quando o paciente está inserido em um laço discursivo, social. A reclusão, seja ela de curta duração ou definitiva, bem como a exclusão do laço social, cronificam (tornam crônico) o sujeito, impedindo qualquer movimento subjetivo com relação a sua posição, qualquer relação com sua parte eventual de responsabilidade quanto a seu ato. Isso porque o sujeito não é autofundado, nem tampouco associal ou visto como indivíduo isolado. Reconhecendo nossa dependência da linguagem e de suas leis que conferem a condição de nossa humanidade, a psicanálise revela que somos falados, nomeados antes mesmo de nascermos, e determinados dialética entre o mais singular e próprio da resposta ímpar de cada sujeito à existência, e o campo sociocultural, discursivo, partilhado pelo geral. A psicanálise reconhece também, na instituição das leis coletivas, uma atualização, em cada cultura (sempre parcial, no sentido de uma certa porção), do universal das leis da linguagem que nos impõem subtrair em cada um as pretensões da onipotência infantil e mortífera, em prol do pacto de habitar a comunidade dos homens. Este processo de humanização se concretiza em um discurso partilhado por determinado campo social.
Ainda que haja um largo espaço de sustentação desejante que não concerne a ninguém a não ser ao próprio sujeito, é necessário trabalhar para promover um espaço de inscrição simbólica desse sujeito no meio social (em vez de retirá-lo do mesmo) e para diminuir a necessidade de intervenções como a prisão e o asilo psiquiátrico, cujos espaços de exílio e segregação são, além de ineficazes, dessubjetivantes e cronificantes. Minha experiência no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Henrique Roxo (Niterói, RJ) e também no Hospital Estadual de Atenções Clínicas do Espírito Santo (HEAC/ES), de internações psiquiátricas, ambos com pacientes que já haviam obtido laudo de cessação de periculosidade, é farta em exemplos de cronificações desse tipo. Advertidos dessa realidade, fundamos, em 2011, juntamente com alunos da graduação em Psicologia e da pós-graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo, aliados inicialmente à Secretaria de Estado de Justiça do Espírito Santo e, depois de dois anos, também com o apoio do Tribunal de Justiça, do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Secretaria de Saúde do mesmo estado, um projeto-piloto, “Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Autor de ato previsto como Criminoso”, conhecido como PAI-PAC/ES. ⁹ A proposta é promover o acesso à rede pública de saúde, bem como o acompanhamento jurídico e social de forma interdisciplinar, visando a atenção integral do caso, para além da simples aplicação de procedimentos judiciais. Esse trabalho se faz sob uma diretriz clínica e ética de escuta de cada caso em sua singularidade, sem que, no entanto, possa ser oferecida uma garantia prévia de sucesso, uma vez que depende do próprio sujeito empreender o pesado e árduo trabalho psíquico em direção a alguma ancoragem ou da possibilidade de cada um em obter algum efeito de borda no extravasamento pulsional. Há sempre, portanto, como pano de fundo, esse trabalho ético, subjetivo, ímpar, de ascese a algum nível de responsabilidade (mesmo que pontual ou precária) de um sujeito instalado estruturalmente na psicose. Porém, se esse trabalho é por um lado irremediavelmente singular, ou seja, se ele não pode dispensar uma resposta do sujeito (portanto, correndo-se o risco de ela não ser dada), por outro lado ele é favorecido pelo fato de o paciente saber-se acompanhado, sustentado por uma rede. Em alguma medida, o paciente experimenta que não está isolado, mas que um a um, cada profissional em cada setor envolvido, toma para si, junto ao paciente, parte do encargo da resposta por esse ato problemático. Nosso programa, PAI-PAC/ES, bem como o programa pioneiro no Brasil, do Tribunal de Justiça mineiro, “Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário” (PAI-PJ/MG) – a partir do qual iniciamos interlocução na fundação do nosso programa no Espírito Santo – e também o goiano “Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator” (PAI-LI/GO), bem como o “Programa de reorientação do modelo de atenção à pessoa portadora de transtorno mental em conflito com a lei”, do Rio de Janeiro, todos têm em comum fazer o trabalho de conexão entre a rede de saúde mental e os sistemas de justiça e de assistência social, entre outros.
Alguma percepção, então, sempre surge desse acompanhamento integral, dessa conexão sustentada entre os diversos setores. Como consequência, algo se configura para o paciente, facilitando o trabalho que o permite inventar, na medida do possível, uma resposta própria ao seu ato. Embora sejam, por vezes, invenções aparentemente muito simples, o fato de não ter seu ato foracluído da cena social e nem ter sido silenciado, além de ter seus recursos próprios, subjetivos, levados em conta, tudo isso faz com que essas possíveis invenções – que constituirão sua resposta ao social de seu ato infrator – correspondam a efeitos clínicos que pacificam de forma duradoura. Com efeito, temos encontrado em nossa clínica, ¹⁰ na contracorrente da instituição que os prende e os coloca na condição de incapazes de produzir qualquer saber de sujeito, um testemunho insistente de seu saber junto ao analista (sabemos que o psicótico é “aquele que sabe”) e, com o auxílio deste, também junto ao campo jurídico. Percebemos que, de alguma forma, o analista se situa para o sujeito no lugar daquele que sobrevive ao testemunho, que suporta ouvir sobre o impossível instaurador do trauma. Gagnebin (2009, p. 57), falando sobre o historiador benjaminiano, evoca algo que nos parece muito presente na nossa clínica: [...] a testemunha não seria somente aquele que viu com seus próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente (grifos nossos). Como dizíamos, o que se percebe com os resultados dessa experiência clínica ¹¹ é que, embora sem garantia prévia de segurança e ausência de risco total, como exigem as demandas sociais, este resultado é preciso: menos de 1% de reincidência em casos de pequeno potencial ofensivo ¹² . Essa experiência exitosa deu ensejo a uma política pública federal que instituiu serviços conectores como os mencionados ¹³ . Hoje, temos no Brasil diversos estados instituindo uma nova práxis no campo. ¹⁴ Neste ponto, há uma questão sobre a qual nos debruçamos atualmente, em pesquisa de pós-doutorado: embora o Espírito Santo estivesse entre os primeiros estados na pauta federal passíveis de recebimento dos recursos previstos nas portarias interministeriais que instituem a nova política, ¹⁵ por diversos fatores que ainda nos escapam, houve um receio importante da Secretaria de Saúde para garantir a adesão à nova política, por certo envolvendo questões como capacidade insuficiente dos equipamentos da rede de saúde mental, formação dos profissionais e, possivelmente, em muito, por recear uma reação geral contrária. Há muito o que fazer, e malgrado as dificuldades, temos avançado paulatinamente. A experiência mineira nos ensina que em alguma medida aconteceu uma transmissão ética naquele estado que permite que cada um tome para si
parte do encargo (que, no fundo, é sempre em uma medida, não apenas, mas também social e coletiva) pelo crime de um sujeito, tanto mais quando há um transtorno mental. Também aprendemos com transmissões semelhantes em cada estado onde há a adesão da nova política pública federal. Concluímos que isolar, excluir o sujeito de alguma inserção e circulação no laço com a Cidade simplesmente inviabiliza de todo que haja alguma possibilidade de o sujeito dizer eu lá onde seu ato estava. Essa é uma questão dos âmbitos individual e coletivo da responsabilidade, que a própria etimologia do termo carrega – respondeo, em latim, significando “responder diante do Outro”, ou ainda a figura tipo para o homem responsável, o sponsor, o esponsal que responde por um Outro diante de um Outro ¹⁶ . A responsabilidade então buscada concerne tanto ao sujeito convocado a responder por seus atos na cena social quanto ao trabalho de cada profissional em promover e sustentar um espaço de escuta desse sujeito. O que exige, evidentemente, uma formação contínua e um trabalho em rede, com a manutenção do diálogo próximo entre os operadores do direito, da Saúde Pública e Assistência Social, além da sociedade civil e das famílias. Por fim, verificamos que esse campo problemático atinge um alcance muito mais amplo ainda quando percebemos que o tratamento reservado ao louco criminoso se estende, hoje, a todas as parcelas do corpo social que, segundo estudos estatísticos auxiliares da criminologia contemporânea, seriam passíveis de apresentar risco à ordem pública ¹⁷ . Para autores como o jurista Denis Salas (2005) ou o filósofo Giorgio Agamben (2003), a extensão da questão policialesca do risco para o campo jurídico coloca em perigo o próprio “equilíbrio do arranjo político democrático que levamos séculos para conquistar”. Consideramos relevante, portanto, nossa tarefa de cunhar um lugar razoável de sustentação do louco no laço social para, em vez de supor necessariamente sua periculosidade, apostar em uma certa “suposição de sociabilidade”, como sugere Barros-Brisset (2011). Desde as experiências interdisciplinares em rede de atenção integral, discursivas e em meio aberto, comprovadamente exitosas que dispomos hoje no Brasil, dar lugar a esse resto do discurso contemporâneo é, a rigor, trabalhar para a cultura de sustentação do próprio laço social. É esse mesmo ponto de impossível no pacto social – que estes fatos sociais presentes em todas as culturas, ¹⁸ como o crime e também a loucura – o ponto de transmissão da Lei. 1 Cf. Gomes, 2013. 2 Parafraseando Lacan, ao falar do inconsciente freudiano em seu “penso onde não sou” e “sou onde não penso” (LACAN, 1966, p. 517 e Ornicar, n. 29, p. 13 e ss.) 3 Cf. Luiz, 2012. 4 Cf. Lebrun, 2004. 5 Sobre o discurso jurídico pensado nos termos dos discursos elaborados por Lacan. Cf. Costa-Moura, 2003.
6 Cf. Barros-Brisset, 2011 e Foucault, 2004. 7 Cf. Costa-Moura e Silva, 2013. 8 Cf. Costa-Moura, R., 2001 e LUIZ, N. E. V. N., 2012. 9 O PAI-PAC / ES iniciou sua operação em 2011, vinculado à Secretaria Estadual de Justiça do Espírito Santo e à Universidade Federal do Espírito Santo. Hoje, além destas, e malgrado resistências locais (tema objeto de minha atual pesquisa), temos o apoio do Ministério da Saúde e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e, no Estado, de diversas Secretarias Municipais de Saúde, como a de Vitória e a de Vila Velha, além da Secretaria de Assistência Social e também, paulatinamente, da Secretaria de Estado de Saúde, atualmente sob nova orientação de governo, portanto ainda iniciando o estudo da proposta (< http://cnj.jusbrasil.com.br/ noticias/2428651/evento-debate-politica-de-atencao-ao-louco-infrator-noespirito-santo >). 10 Cf. Relatório PAI-PAC/ES, disponível na biblioteca do NPA-UFES, na do Conselho Nacional de Justiça e também em Documentos do Observatório de Direitos Humanos e Justiça Criminal do Espírito Santo (< https:// odhesufes.wordpress.com >). Cf. Costa-Moura, R. 2001. 11 Iniciada em 1995 no Centre Hospitalier Saint-Anne e na Prisão de FleuryMérogis- durante pesquisa de doutorado na Universidade de Paris 7). 12 Cf. TJ-MG / PAI-PJ, 2011. “Pode-se dizer que não existe reincidência nos casos assistidos pelo PAI-PJ, em funcionamento há dez anos.” Cf. Desembargador Sérgio Antônio de Resende, Presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais- in: Barros-Bisset, F. O. (< http://www8.tjmg.jus.br/ presidencia/programanovosrumos/paipj/livretopai.pdf >) p. 7. 13 Cf. Brasil, 2014a e 2014b. 14 Cf. Rede de Observatórios de Justiça, da qual fazem parte o Observatório Nacional de Saúde Mental e Justiça Criminal (< http:// www.observasmjc.uff.br >), o Observatório Nacional do Sistema Prisional (ONASP) (< https://www.ufmg.br/ead/onasp/index.html >), o Observatório Goiano de Direitos Humanos (< https://www.facebook.com/ observatoriogoianodedireitoshumanos >) e o Observatório de Direitos Humanos e Justiça Criminal do Espírito Santo / UFES (< https:// odhesufes.wordpress.com >) site em construção. 15 Possivelmente pela existência de nosso projeto-piloto, PAI-PAC/ES, com o apoio decidido do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo e da Secretaria de Estado de Justiça, além da vinculação do programa à Universidade Federal do Espírito Santo, com apoio da Reitoria e da Próreitoria de Extensão, com pesquisas e estágios envolvendo alunos de graduação em Psicologia e de pós-graduação em Psicologia Institucional e Direito. 16 Cf. Villey, 1977.
17 Temos visto uma deriva radical e totalitária se reeditar no mundo e no Brasil em meio a atos de exclusão das vidas que, como diziam os médicos nazistas, eram vidas “que não merecem ser vividas”. 18 Cf. Durkheim (1960 e 1970), ao concluir que o crime é um fato social normal, já que é universal, presente em toda sociedade; também conforme o sociólogo da saúde Allan Horwitz (1982, p. 15): “Tendo em vista que a atribuição de sentido socialmente definido à ação é um pré-requisito fundamental de cada interação social, não é surpreendente que o fato de identificar a doença mental seja universal.” E, ainda, Lacan (1948, p. 52-54) : “Je dirai, pour opposer ma thèse à ce qu’a dit M. Ey, que la folie est très précisément un état du drame humain, qu’elle s’y insère entièrement. Elle est une forme de la condition humaine, comme le rêve en un autre sens. Il ne faut pas l’exclure de l’humain pas plus que l’amour ou la fureur. Qu’elle soit un état du drame humain, ceci est dialectiquement formulé dans Hegel.” (Eu diria, em oposição a minha tese sobre M. Ey, que a loucura é mais precisamente um estado do drama humano, no qual ela se insere inteiramente. Ela é uma forma de condição humana, como o sonho em outro sentido. Não é necessário excluí-lo do humano mais que o amor ou o ódio. Que ela seja um estado do drama humano, isso é dialeticamente formulado em Hegel). Referências AGAMBEN, G. Etat d’exception. Paris: Seuil, 2003. ARENDT, H. La crise de la culture. Paris: Gallimard, 1972. BARROS-BRISSET, F. O. Genealogia do conceito de periculosidade. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Revista Responsabilidades, Belo Horizonte, v.1, n1, p. 109-131, mar/ago 2011. BARROS-BRISSET, F. O. Por uma política de atenção integral ao louco infrator. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 2010. BENTHAM, J. The works of Jeremy Bentham: Principles of Morals and Legislation, Fragment on Government, Civil Code, Penal Law. v. 1, 1843. Disponível em: < http://oll.libertyfund.org/index.php? option=com_staticxt&staticfile=show.php%3Ftitle=2009&Itemid=27 >. Acesso em: 24 mar. 2015. BRASIL. 2015. Código Penal (CP). Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Artigos 26 e 96. Rio de Janeiro, dez. 1940. Disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm >. Acesso em: 24 mar. 2015. _. Legislação em Saúde no Sistema Penitenciário. Brasília: Ministério da saúde, 2010. Disponível em: < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/ legislacaosaudesistemapenitenciario.pdf >. Acesso em: 24 mar. 2015. _. Portaria interministerial n. 1, de 2 de janeiro de 2014. Institui a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
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O visitante deve abrir a boca e botar a língua para fora. No caso das mulheres, a abertura dos lábios vaginais com os dedos é comumente solicitada, enquanto um espelho é colocado no chão, de modo que se possa visualizar a vagina. O procedimento pode ser feito individualmente ou em grupos de visitantes. As crianças podem estar presentes, junto com as mães, e fraldas de bebês são comumente revistadas. Os visitantes, homens ou mulheres, devem ficar nus e virar de costas (o motivo alegado é o de que drogas poderiam estar presas às costas com fita adesiva); o ânus, em especial no caso dos homens, é examinado, incluindo-se também agachamentos e / ou pulos repetidos (que, imagina-se, farão com que um objeto escondido apareça). É de se notar que são admitidos aos presídios como visitantes apenas cônjuges de sexos diferentes (casados ou em união estável), filhos e irmãos, embora a lei de execução penal mencione parentes e amigos. A maioria dos visitantes é composta de mulheres, sendo, portanto, a maior parte dessas revistas realizada em visitantes do sexo feminino. Em alguns estabelecimentos é verificado se há sangue na vagina ou no ânus – procedimento que parece desconhecer a fisiologia humana, pois a presença de sangue nessas áreas pode ter outras causas bem mais plausíveis. Médicos têm apontado a inutilidade dos agachamentos e dos pulos e também a possibilidade reduzida de sucesso em esconder objetos nas partes íntimas do corpo (DUTRA, 2008). Todo o procedimento é justificado em nome da segurança, mas parece não ter sido capaz, como é notório, de impedir a entrada quer de drogas, quer de celulares ou mesmo de armas nos presídios. É sabido, há muitos anos, que, na maior parte dos casos, os responsáveis pela entrada de drogas e celulares nos presídios são agentes penitenciários, que podem até mesmo pertencer a facções criminosas. É notória a corrupção interna dos funcionários dos presídios, o que pode também explicar a entrada desses itens e até de armas nos estabelecimentos, além de saídas especiais para alguns presos, entradas de mulheres, entre outras infrações do regulamento penitenciário com frequência divulgadas pelos meios de comunicação. Entre as infrações, a comida fornecida pelo governo aos presídios é frequentemente desviada, bem como medicamentos (ibidem, p. 79). Tais denúncias são monotonamente feitas há décadas. Alguns desses casos resultam em inquéritos administrativos e até processos criminais, levando à prisão de alguns responsáveis. Nosso propósito neste artigo não é tanto o de denunciar o mau funcionamento da prisão tal como a conhecemos no Brasil atual, mas o de revelar nesse funcionamento uma utilidade estratégica. Seguindo a primorosa análise de Foucault (1977) sobre a prisão, feita na terceira parte de Vigiar e Punir, pretendemos fazer o esforço de enxergar no seu funcionamento, e em particular na revista vexatória, uma “positividade”. São frequentes as análises que apontam para um fracasso contínuo da prisão, para uma negatividade que nela se faria presente de modo inexorável; porém Foucault nos convida a fazer o exercício inverso: o de enxergar uma positividade nesse contínuo fracassar da prisão.
Partimos do princípio presente na filosofia de Spinoza (2008) e compartilhado por Foucault de que tudo o que existe, existe necessariamente ¹ – o que quer dizer que, se algo existe, é porque foi produzido por causas que estão neste mundo. O mundo deveria ser de outra maneira? Sim, todos gostaríamos, mas esse “dever ser”, essa atitude de julgamento, não é suficiente para transformá-lo. Só temos um mundo para viver e se queremos que ele seja diferente do que é, só nos resta compreender as causas dos fenômenos que nele se verificam hoje e agir sobre elas. Uma multiplicidade de fatores altamente complexos só poderá ser compreendida por meio de um pensamento altamente complexo. No entanto, muitas simplificações estão presentes nas análises televisivas sobre o crime e também em teorias ditas científicas, atribuindo-o a causas internas individuais, tendências negativas, fatores genéticos, etc. Se um procedimento como a revista vexatória tem durado, não obstante o seu inegável fracasso no que tange aos objetivos de segurança, é preciso enxergar nele uma utilidade inconfessável. Há uma crítica repetitiva da corrupção que sempre leva a pedidos de prisão – o que é um incrível paradoxo, já que a corrupção é a essência do próprio funcionamento prisional. Na verdade, não há nada no funcionamento prisional que já não esteja presente no mundo fora da prisão, ou que não esteja presente noutras instituições da rede de instituições disciplinares ² da qual a prisão faz parte. Se a prisão é mundo perverso, não devemos esquecer que essa perversidade é, de qualquer forma, demasiado humana, para parafrasear Nietzsche. O fracasso da prisão tem sido apontado desde o seu surgimento, no contexto das sociedades disciplinares. Autoridades judiciárias, penitenciárias, políticos, jornais, todos discutem o fracasso da prisão, quase sempre propondo algum tipo de reforma da mesma, o que garante sua continuidade até nossos dias, quando a quantidade de pessoas presas parece ter atingido níveis inusitados. Segundo Salo de Carvalho (2015), o Brasil provavelmente chegará ao bicentenário de sua independência (2022) com um milhão de presos, sendo hoje a quarta população carcerária do mundo. Atualmente, a prisão parece estar na moda. Há mesmo uma militância de juízes e promotores no sentido do encarceramento, levando a que muitos permaneçam por longos períodos nas prisões, como no caso dos presos provisórios, que ainda aguardam julgamento, ou mesmo aqueles que cometeram os chamados “delitos de bagatela” (o roubo de um xampu, um pacote de manteiga, suficientes para manter alguém preso por anos, como em alguns casos conhecidos). Pretendemos aqui analisar a eficácia da revista vexatória – não no que diz respeito aos seus objetivos de segurança, mas analisá-la em sua eficácia política, em sua positividade, como mencionamos. Essa positividade não se revela de imediato, mas se insere na lógica das engrenagens carcerárias. Já foi apontado que a pena de prisão se estende aos familiares dos presos; sabemos que os efeitos do encarceramento se fazem sentir não apenas sobre o apenado, mas também sobre sua família. A mancha da prisão se estende, dessa forma, para o campo social, em sua vocação para produzir dor. Ao examinar os efeitos da revista vexatória, talvez possamos ampliar nossa visão sobre os mecanismos que, intervindo sobre o campo da subjetividade, concorrem para uma extensão dos efeitos da prisão sobre o campo social. Se
pudermos recusar a visão de que existe uma tendência inata ou constitucional para o crime (que desde a criminologia positivista do fim do século XIX faz escola ³ ), podemos lançar alguma luz sobre as estruturas que fazem com que a mancha da prisão se estenda para o campo social, fazendo da reincidência uma consequência quase inevitável do encarceramento. A revista vexatória, com certeza, é um modo de estender a pena a esse grupo mais amplo de pessoas que não cometeu qualquer delito. Mas não seria justamente essa a principal função da prisão? Estender mais e mais sua ação de controle sobre o campo social, auxiliada por uma rede de vigilância e de produção de estigmas? Ao analisar a produção da delinquência como efeito da prisão, como fez Foucault (1977), podemos entender por que ela produz alguns seres inadaptáveis, que terão dificuldade de trabalhar e de se reinserir socialmente por causa da sua folha de antecedentes criminais, por terem passado grandes períodos em companhia de outros condenados com os quais estabeleceram inevitáveis laços de convivência, ao passo que foram se distanciando de sua família ou de outros grupos com os quais conviviam; por terem deixado de trabalhar enquanto o mercado de trabalho se tornava mais e mais competitivo... Todos esses fenômenos que marcam a vida do expresidiário farão, muitas vezes, com que ele retorne ao crime (se ainda tiver forças, depois de viver as terríveis condições de nossos presídios) – e, por isso mesmo, o Judiciário e a polícia são autorizados a vigiá-lo e a persegui-lo. Uma das funções maiores da produção da delinquência é autorizar, como se vê, que a polícia e hoje também a guarda municipal e as seguranças privadas mantenham sob vigilância toda a população da cidade, com ênfase nas áreas pobres, tudo a título de nossa proteção. Dizer que a prisão produz o delinquente diz respeito a reconhecer que o que ela faz é um certo tipo de gestão do coletivo, fazendo pairar sobre todo tipo de conflito social o estigma do crime. Qualquer tipo de oposição à lei pode ser, a partir da noção de delinquência, criminalizada. O crime se torna, nesse contexto, muito mais que uma infração à lei. Por certo há grandes diferenças entre roubar para comer, quebrar uma janela, matar para roubar, matar por raiva ou ciúme e matar em série. Porém, quando o crime se torna uma abstração, torna-se possível também generalizar os sentimentos de condenação dirigidos a quem o comete, independente do tipo de crime. “São todos bandidos”, como repete com insistência o noticiário televisivo, em sua sangrenta monotonia. O crime passa a ser sintoma de uma anormalidade que mobilizará grande número de técnicos dispostos a diagnosticá-la, multiplicando seus efeitos em diversos ambientes, como no interior das escolas, por exemplo (no Rio de Janeiro, hoje, muitas contam com a presença da polícia e com uma arquitetura que lembra muito a prisão, com grades e portões trancados, em especial as escolas públicas). A prisão realiza certo tipo de gestão do conflito social sempre associada à criminalização e à punição, e esse processo não se dá somente no interior da prisão, mas se estende numa rede institucional que denominamos “engrenagens carcerárias” – que incluem, por exemplo, a mídia, a chamada opinião pública, o sistema socioeducativo, a escola, etc.
Como atuam as engrenagens carcerárias? Pensamos que a intervenção dessa rede se dá privilegiadamente e de modo a produzir a dissolução e o enfraquecimento dos laços que os indivíduos podem estabelecer entre si, e que constituem a multidão. Trabalhando com o conceito de multidão de Spinoza, Bove (2010) aponta que sob todas as instituições está a multidão, enquanto uma dimensão que não pode nunca ser inteiramente controlada ou calada. Ainda que as engrenagens carcerárias nos pareçam fortes e onipresentes no mundo atual, elas devem ser pensadas numa correlação de forças. Nas prisões brasileiras existe quase sempre um pequeno número de agentes penitenciários em proporção ao número de presos, o que nos leva sempre à pergunta: por que eles não se revoltam? É a mesma pergunta que podemos fazer a respeito do nosso modo de vida no capitalismo atual: vivemos sempre com muitas pessoas em imensas cidades, sob condições semelhantes; muitos têm que viajar horas para chegar ao trabalho, em trens, barcas, metrôs ou ônibus lotados e caros. Mas por que são tão raras as ocasiões de sublevação? Antes de responder a essas indagações, retornemos ao conceito de multidão. O estado de multidão se configura a partir dos laços de natureza afetiva que estabelecemos com aqueles a quem consideramos nossos semelhantes. São laços que se dão por contágio, por imitação, dizem Spinoza (2008) e Gabriel Tarde (1901). Essas relações que criamos com aqueles a quem consideramos semelhantes nos levam a constituir com eles um corpo comum, que pode nos levar a pensar e agir como se fôssemos um só. As engrenagens carcerárias, no entanto, agem no sentido inverso: o de desfazer essa possibilidade, dificultando o contágio afetivo, que poderia ser capaz de produzir um pensamento e uma ação comuns diante da experiência de viver situações semelhantes de opressão e injustiça. Retornemos à revista vexatória: como parte que é das engrenagens carcerárias, uma de suas utilidades é a de minar as relações de solidariedade que podem se estabelecer entre quem está preso e quem não está, ou seja, entre as famílias e aqueles com quem possuem fortes laços afetivos e, por isso, reúnem-se para visitá-los: um pai, um filho, um irmão preso. De que modo funciona esse dispositivo? Um dos argumentos para a manutenção desse procedimento é o fato de que “alguns” visitantes tentam entrar com drogas. Muitos familiares se queixam desses que “agem errado” e fazem com que os demais paguem pelo erro. É o mesmo mecanismo que leva a família, ao passar pela revista vexatória e outras experiências de humilhação quando da visitação, a culpar seu familiar preso por fazê-la passar por isso. A experiência de se desnudar diante de estranhos e em presença de filhos e filhas em idade infantil foi descrita por um familiar como comparável a “estar morrendo” (DUTRA, 2008). Alguns familiares escondem das crianças o que está acontecendo, dizendo que se trata de um exame médico. O que torna essa situação tão insuportável para muitos e capaz de gerar efeitos que interferem nas relações entre familiares e presos? Em nossa cultura judaico-cristã bem descrita na psicanálise freudiana, pudor, repugnância e moral ⁴ se opõem como barreiras à sexualidade. Essas barreiras fazem com que a sexualidade seja algo delicado, cercado de
múltiplos significados. Desnudar-se e, mais do que isso, expor seus órgãos sexuais a pessoas estranhas, com utilização de espelhos e outros objetos, não é algo banal. É preciso considerar inicialmente que nada que diga respeito à sexualidade pode ser banal, embora haja toda uma produção midiática em torno dela que nos leva a crer que o sexo é algo liberado, que não existem mais tabus, etc. Assim, não existiriam mais tantos pudores em relação ao sexo e, portanto, a revista vexatória seria apenas um “desconforto necessário”. Recordemos também que, para Freud, Eros é uma força gregária, que leva os homens a estabelecerem laços entre si. Desse modo, intervir sobre a sexualidade é intervir sobre o coletivo, sobre a constituição desses laços afetivos que unem ou desunem as pessoas, no mesmo sentido do que sublinhamos no que diz respeito ao conceito de multidão em Spinoza. Não é à toa que muitas mulheres de presos passem a não mais visitá-los, preferindo buscar um companheiro que não esteja preso (ibidem, p. 108). A intervenção da instituição penal no corpo da família dos prisioneiros, assim como no deles próprios quando saem e retornam ao presídio, é uma demonstração por parte da instituição de que o preso (e agora seu familiar, que não cometeu crime) não dispõe de nenhuma privacidade ou controle sobre o próprio corpo. Recordemos Kafka (1998), em seu conto A colônia penal: ali é narrado o funcionamento de uma sangrenta engenhoca cuja finalidade era a de escrever a lei no corpo do condenado. Não lhe era informado o conteúdo de sua sentença, isso não era importante; o importante era que ele experimentasse a lei esculpida no próprio corpo. Algo semelhante se dá na revista vexatória: proibições, pudores, tudo é letra morta. O que importa é mostrar que a instituição tudo pode e que não resta nenhuma parte do corpo deixada em claro pelo dispositivo de poder. A nudez é também exigida em procedimentos hoje comuns nos presídios, nos quais os presos são mantidos despidos, deitados ou acocorados por longos períodos. Esses procedimentos ensinam ao preso que ele nada pode diante do poder irrestrito da engrenagem. Da mesma forma que no conto de Kafka, isso não é expresso apenas por palavras, mas pela experiência corporal. Temos que compreender a revista vexatória no interior das estratégias de que se valem as engrenagens carcerárias para minar, tanto quanto possível, as possibilidades de resistência coletiva, considerando, como já mencionamos, que todas as instituições se apoiam sobre a multidão, dela emanando seu poder, como um poder confiscado (LORDON, 2010, p. 21). Recordemos que a prisão moderna se associa ao projeto de tornar toda oposição à ordem capitalista crime, fazendo confundir todo tipo de ilegalidade popular com a expressão de uma anormalidade que pode afetar indivíduos e coletividades: a delinquência. Uma das funções das engrenagens carcerárias é, pois, o esvaziamento do coletivo. Não esqueçamos que os agentes penitenciários (ou guardas) são geralmente de origem popular. Com frequência serão encontradas no cárcere, como guarda ou como preso, pessoas que têm a mesma origem e muitos hábitos em comum, o mesmo se dando no caso do policial (profissão na qual a quantidade de negros é, ao menos no Rio de Janeiro, mais elevada que noutras e que se apresenta como uma possibilidade de ascensão social para muitos jovens pobres). ⁵ No entanto, essa origem comum será gerida pelas
engrenagens carcerárias de modo a produzir separação e desfazer possíveis alianças, manipulando justamente esse desejo de ascensão e fazendo transformar a solidariedade em competição, sentimento de superioridade e ódio. A transformação de amor e outros sentimentos gregários em ódio é uma possibilidade sempre presente na economia dos afetos, tal como Reich (2001) mostrou quando analisou a Psicologia das massas do fascismo. O asco ou nojo com relação aos órgãos sexuais deve ser superado pelo jovem para que possa chegar a ter relacionamentos sexuais e amorosos. No caso da revista vexatória, o nojo e o asco são trabalhados no sentido inverso, ou seja, no de sua intensificação. Tais sentimentos, acreditamos, podem ganhar facilmente um novo alvo, passando a ser dirigidos contra o preso. Assim, a eficácia da revista vexatória diz respeito à carga de afeto que é capaz de mobilizar ao interferir sobre a sexualidade. Essa carga de afeto pode ser transformada em ódio e outros sentimentos negativos dirigidos ao parente preso, ou contra si próprio, sob a forma de sentimentos de humilhação, culpa e menos valia. Tive oportunidade de atender como psicóloga, atuando na equipe do Grupo Tortura Nunca Mais – RJ, a mãe de um ex-presidiário. Dona Dulce ⁶ era uma mulher negra, em torno de 45 anos de idade, mãe de João, um rapaz de cerca de 20 anos que fora preso pelo roubo de um carro. Um jovem negro de classe média, morador de um subúrbio do Rio de Janeiro. A mãe era funcionária pública; o pai, motorista de uma empresa, com muitos anos de trabalho. Como dizia sua mãe, “ele não precisava roubar, pois tinha tudo”. Costumava frequentar uma casa noturna de samba e, certo dia, quis aparecer motorizado para melhor impressionar as moças. Não era estudioso, fizera algumas tentativas de trabalho sem sucesso. Gostava mesmo era de garotas, festas, ver televisão, ouvir música, fumar maconha. Desde antes do ocorrido, os pais o consideravam um problema, “um rapaz mimado”, segundo eles próprios reconheciam, que não se interessava por nada. A mãe se orgulhava de pertencer a uma família negra trabalhadora e honesta, mas seu filho era diferente. Junto com um amigo, tentou fazer uma ligação direta num carro estacionado. No momento em que o roubo se dava, passava uma patrulha da polícia pela rua, tendo João sido preso imediatamente após, sem nem ter tempo de curtir o carro no tal samba. Foi levado para um quartel da PM próximo ao local, onde foi submetido a uma tortura que consistia num “corredor polonês”, em que uma fila de jovens soldados o espancava, estando ele encapuzado. João ficou preso por cerca de dois anos e meio e foi solto em livramento condicional, graças ao advogado que os pais pagaram. A razão pela qual D. Dulce fora encaminhada para atendimento era que não conseguia livrar-se das memórias do que passara no período da prisão de seu filho e retomar sua vida. Em especial, ela não conseguia esquecer o cheiro da prisão. Era um cheiro que lhe invadia as narinas nos locais mais inusitados. Sua mãe, segundo ela, tivera sua morte apressada também por causa da prisão do neto. Os dias de visita eram dias de calvário: ficar horas ao sol, na fila, e depois a revista: desnudar as partes íntimas, agachar-se, ouvir os comentários das guardas sobre o cheiro que sentiam, além do tratamento em geral grosseiro recebido durante as visitas. Até sua mãe fora submetida a esse procedimento quando visitou o neto. Para ela própria, tornou-se uma rotina semanal, mesmo porque estava sempre preocupada
com a sorte do filho na prisão e, por isso, não podia descuidar de visitá-lo. Lembra com horror o dia em que chegou para a visita e ele tinha desaparecido, reaparecendo na semana seguinte, sem nenhuma explicação. Imaginou que ele estava morto, mas depois pensou que essa pode ter sido uma forma de chantagem. O casal tinha um pequeno negócio, um bar, no bairro em que morava; teve que vendê-lo para pagar a propina que garantiu melhoria das condições carcerárias do filho (uma alimentação melhor, um colchão, medicamentos). Todo esse conjunto de experiências vividas por D. Dulce constituía um trauma de difícil elaboração. Sua vida se dividia entre antes e depois dessas experiências, o que é apontado pela psicanalista Françoise Sironi (1999) como uma experiência comumente vivida por pessoas que sofreram tortura. Quando comecei a atendê-la, o filho já havia sido solto há algum tempo, mas ela me confessou que não conseguia mais suportá-lo. O nojo, o cheiro da prisão se estenderam a ele, como fui percebendo. O pai também compareceu, dizendo que a vida dos dois já não era a mesma. Lembravam-se do passado com saudade, da vida boa que tinham e que não podiam ter mais. Dona Dulce perdera a alegria de viver, não tinha mais interesse no trabalho e culpava o filho por isso. Pouco tempo depois, João saiu de casa para morar com amigos, um deles seu companheiro na prisão. Tentou trabalhar, a princípio como pedreiro, depois numa empresa de mototáxi. Tentava continuar a vida, mas o ódio que a mãe passara a ter dele o empurrava para a marginalidade. A mãe chegava a lhe negar comida e impedir sua entrada em casa, para logo em seguida passar noites em claro, culpada. O atendimento ficou inconcluso, pois creio que vir ao consultório falar desse assunto era penoso demais para ela, pois fazia com que se lembrasse da experiência de ir ao presídio semanalmente. O ódio do filho e o afastamento dele pareciam ser para ela o único caminho de recuperação da própria vida – mas, naturalmente, tal caminho não estava se mostrando frutífero, pois ao mesmo tempo ela não aceitava esse sentimento, sendo torturada pela sua culpa. Entendemos que a “revista íntima” (como era chamada nos presídios cariocas) ou revista vexatória, como preferimos chamar, está na raiz da produção do ódio de D. Dulce pelo próprio filho, bem como dos sentimentos negativos que a impossibilitaram de seguir com sua vida depois das experiências vividas na prisão. Em conjunto com outros procedimentos que ocorrem nas visitas, a revista vexatória torna-se uma arma poderosa para a exacerbação de todo tipo de “afetos tristes”, no sentido spinozista. Spinoza os descreve como uma variedade de afetos tais como ódio, culpa, ressentimento, inveja, espírito de vingança, etc. Todos eles correspondem à despotencialização: quando estamos dominados por esses sentimentos, pensamos e agimos pior, tendemos a não confiar em ninguém e perdemos a alegria de viver. Podemos considerar a revista vexatória como uma tecnologia que age no sentido de multiplicar sentimentos negativos. Ao interferir no campo da sexualidade, ela mobiliza intensos afetos, trabalhando com os sentimentos negativos que comumente cercam a sexualidade, como o nojo, o asco, a culpa, e que provêm justamente das proibições sexuais impostas ao homem dito
civilizado. Ou seja, a revista vexatória intensifica e agrava o problema que já existe, realizando uma gestão da afetividade que leva ao afastamento do outro. O campo da sexualidade é também aquele no qual se tornam visíveis os costumes de um povo, traduzidos como regras passadas de geração em geração. Talvez não haja nenhum povo na face da Terra que não tenha regras que cerquem e regulem a atividade sexual, embora a culpa e o pecado, o asco e a repugnância geralmente relacionados ao sexo sejam características mais marcantes nas sociedades judaico-cristãs. Há outros meios técnicos muitíssimo mais eficazes para impedir a entrada de objetos indesejáveis no estabelecimento prisional. Por que não são usados? Responder a essa pergunta nos recorda do “a mais” de violência que é característico dos sistemas totalitários. Há uma série de procedimentos inúteis realizados nos cárceres, alguns violentos, que se mantêm um tanto misteriosamente. Uma violência inútil, totalmente irracional, mas, ainda assim, praticada. Primo Levi (1997) se debruçou sobre essa questão ao analisar, por exemplo, o transporte de prisioneiros nos trens de carga para os campos de concentração durante o nazismo. Por que os nazistas exigiam que mesmo os velhos quase moribundos fossem assim transportados, apenas para morrer no caminho? Por que era exigido do prisioneiro que mantivesse sua cama impecavelmente arrumada, mesmo que fosse ser em breve executado? Creio que a revista vexatória se inclui entre essas aparentes irracionalidades das instituições totalitárias. No entanto, é possível enxergar nesses procedimentos uma racionalidade: desse ponto de vista, ela se revela um mecanismo “inteligente”, pois interfere sobre as famílias no sentido de dissolver ou minimizar os laços de solidariedade e de amor familiar que persistem, mesmo quando o membro de uma família é preso. Não é à toa que as prisões brasileiras hoje tendem a proibir visitas de parentes não consanguíneos, como genros, tios ou primos mais distantes, assim como amigos, apesar de sabermos que a família extensa é uma forma de organização familiar que ainda persiste em nossas camadas populares. Foucault (1977) menciona como um dos pilares da construção da prisão moderna, inserida nas redes do poder disciplinar, essa “inteligência” capaz de desfazer possíveis laços de solidariedade entre aqueles que cometem delitos e a sociedade em geral e de produzir a figura do crime como um amálgama composto dos vários tipos de ilegalidade popular, como se todos fossem uma coisa só. Ainda que se possa perceber facilmente, no Brasil e na América Latina, que aqueles que vão presos são geralmente os mais pobres (e entre esses os mais pretos, ou os mais indígenas, conforme a região), há que se ter um mecanismo que dificulte os sentimentos de solidariedade que possam surgir – por exemplo, num momento como a visita, que é uma experiência coletiva, já que ali estão também os familiares de outros presos. Nada é tão evitado, tão dificultado nos presídios quanto a experiência coletiva. Bem sabem disso os psicólogos e professores, que costumam enfrentar muitas dificuldades para ali desenvolver atividades em grupo, por
quebrarem as rotinas de isolamento a que estão submetidos os presos, em nome da segurança. São impressionantes os índices de tuberculose nos cárceres cariocas ⁷ e para a manutenção desse flagelo existem também alguns procedimentos inúteis e irracionais, conforme mostrou Diuana (2008, p. 106-109). Agentes penitenciários não costumam zelar para que o preso continue a tomar o medicamento contra tuberculose uma vez iniciado o tratamento, pois experimentam uma espécie de “desonra” ao fazê-lo, alegando que não são “babás de preso”. Por essas e outras razões (incluindo procedimentos de segurança nos quais todos os pertences do preso, mesmo medicamentos, podem ser confiscados e destruídos), os altos índices de interrupção do tratamento se mantêm. No entanto, prender a respiração e falar à distância do preso são procedimentos de que se valem os agentes para se proteger do contágio. Procedimentos inúteis, mas que podem revelar outro tipo de utilidade: a de dificultar ainda mais o convívio entre guardas e presos nos cárceres. (ibidem, p. 109) Uma espécie de fantasmática prisional faz crer a muitos profissionais e autoridades que atuam nos cárceres que não existem outros meios para impedir a entrada de drogas e celulares nesses estabelecimentos. Muitas outras limitações impostas à entrada de visitantes aos presídios revelam esse alto grau de irracionalidade, e por outro lado, uma positividade, uma utilidade no sentido de dificultar os laços afetivos entre presos e não presos e de impor um “a mais” de sofrimento a familiares e presos. Mas, apesar de todos esses procedimentos, ainda é possível ouvir, “sob os múltiplos dispositivos de encarceramento, [...] o ronco surdo da batalha”, como afirmou Foucault (1977, p. 279) na página de encerramento de Vigiar e Punir. ⁸ 1 Na proposição 33, Spinoza (2008) diz que as coisas não podem ser diferentes do que são, uma vez que expressam a potência de Deus. Ou, como aparece na proposição 34: Deus é causa de si mesmo e de todas as coisas. O deus spinozista é um plano único a partir do qual tudo que existe é engendrado, não existindo nesse processo nenhum valor prévio, nem mesmo o bem e nenhuma finalidade. 2 A denominação “instituição disciplinar” foi ampliada pelas noções de biopoder e de sociedades de controle, descritas por Foucault e Deleuze. As engrenagens disciplinares são compostas por uma rede de instituições: a escola, o quartel, o hospital, a prisão, etc. No capitalismo avançado atual, verificamos uma desorganização de alguns “dentes” dessas engrenagens, com a entrada em cena de outras modalidades de controle que atuam de modo conjugado, nos pontos claros deixados pela maquinaria disciplinar. Assim, não é preciso pensar no fim das disciplinas para falar de controle, opondo um tipo de controle a outro. (RAUTER, 2012, p. 69-76) 3 Para o criminólogo italiano Enrico Ferri (1907), por exemplo, havia uma tendência criminosa inata, mas que poderia se conjugar com fatores ambientais, que ele denominava o “caldo de cultura” da criminalidade.
4 Freud se refere a esses três elementos como constituintes das barreiras que se opõem à sexualidade humana, erigidas a partir da moral familiar e da escola, principalmente. 5 Nota do editor: a Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro tem cerca de 60% de negros nos seus quadros, e é a maior empregadora de afrodescendentes no serviço público estadual. A constatação foi feita pelo jornalista Carlos Nobre, em sua dissertação de mestrado, O negro na Polícia Militar: cor, crime e carreira no estado do Rio de Janeiro < http:// www.asfunrio.org.br/editorias2008/jornal2008/junho/junho5.htm >. 6 Nomes fictícios. 7 Em 2008, a incidência nesses locais era 36 vezes maior do que a na população em geral. 8 Em 20 de maio de 2015 deu-se a aprovação do Projeto de Lei 77/2015, pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, de autoria dos deputados Marcelo Freixo, Jorge Picciani e André Ceciliano, que proíbe a revista íntima e determina o uso de outros métodos e ferramentas, como detector de metais e scanner corporal, para a realização de revistas nos presídios. Uma importante vitória, fruto da militância de familiares de presos e militantes de direitos humanos. Mas certamente a luta não chegou ao fim, pois apesar de oficialmente proibida em vários estados brasileiros, em muitos estabelecimentos prisionais ela ainda se realiza, o que nos autoriza a seguir pensando em sua inconfessável utilidade. Referências BOVE, Laurent. Espinosa e a psicologia social: ensaios de ontologia política e antropogênese. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. CARVALHO, Salo de. Se Cadeia Resolvesse, o Brasil seria exemplar. Revista Carta Capital, Ed. 838, 03 de março de 2015. DIUANA, Vilma et al. Saúde em prisões: representações e práticas dos agentes de segurança penitenciária no Rio de Janeiro, Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(X):XXX-XXX, xxx, pp.105-113, 2008. DUTRA, Yuri Frederico. Como se estivesse Morrendo: a prisão e a revista íntima em familiares de reclusos em Florianópolis. 2008. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, 2008. FERRI, Enrico. Sociologia criminal. (1884). Madrid: Góngora, 1907. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade, 1. A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999. __. O nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. __. Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1977.
FREUD, Sigmund. Three Essays on the Theory of Sexuality. [1905]. v. VII, p. 135-222. Standard Edition of The Complete Psychological Work of Sigmund Freud. London: The Hogarth Press and The Institute of Psycho-Analysis, 1975. KAFKA, Franz. O Veredicto / Na Colônia Penal. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. LEVI, Primo. A trégua. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. LORDON, Fréderic. La puissance des institutions. Revue du Mauss permanente. 2010. Disponível em < http://hyperspinoza.caute.lautre.net/ >. Acesso em: 21 out. 2015. RAUTER, Cristina. Do medo do crime à rebelião: algumas indicações para pensar a experiência coletiva brasileira a partir da filosofia de Spinoza. Revista Polis e Psique, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 2013, v. 3, n. 2, p. 151-161. __. O Estado Penal, as disciplinas e o biopoder. In: Loic Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012. REICH, Wilhelm. Psicologia das massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001. SIRONI, F. Bourreaux et Victimes: psychologie de la torture. Paris: Odile Jacob, 1999. SPINOZA, B. Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. TARDE, Gabriel. L’Opinion et la Foule. Paris: Sandre, 1901. Violência e direitos humanos Maria Márcia Badaró Bandeira O tema “violência e direitos humanos” é muito amplo e cada um de nós, certamente, tem algo a dizer sobre isso a partir de suas experiências pessoais e profissionais. Vivemos um tempo em que, em nome dos direitos humanos, são cometidas as maiores arbitrariedades e violências, o que nos faz pensar sobre o que queremos dizer quando mencionamos a expressão “direitos humanos” e, mais que isso, para quais humanos dirigimos nossas práticas, entre elas a prática psicológica. Somos cotidianamente bombardeados pela mídia com cenas de extrema violência que nos deixam perplexos diante dos paradoxos da natureza humana, capaz de produzir dor e sofrimento com torturas físicas e psicológicas e, ao mesmo tempo, criar práticas na direção de uma sociedade mais justa e solidária, mais humana, onde a liberdade é o seu bem maior! Como diz o professor de psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Pedro Paulo Bicalho, presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP na gestão de 2011-2013, “direitos humanos são práticas que buscam garantir direitos para todos os humanos, onde quer que eles estejam.”
Nesse amplo espectro da violência e, principalmente, da violência de Estado, quero chamar a atenção para um segmento de nossa sociedade, de pouco interesse e pouca visibilidade na mídia, mas que cada vez mais bate à nossa porta dizendo: “somos frutos de uma sociedade perversamente desigual que nos excluiu do direito de sermos cidadãos e agora nos encarcera para nos afastar do incômodo de se deparar com os efeitos de sua própria produção”. É o criador frente a sua criatura! Refiro-me à população encarcerada de nosso país. O Brasil chegou à marca de 567.655 pessoas presas, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de junho de 2014. É o quarto país do mundo que mais encarcera (primeiro: EUA; segundo: China; terceiro: Rússia). Dos brasileiros encarcerados, 41% são presos provisórios, ou seja, pessoas que estão presas sem sequer terem sido julgadas e sentenciadas. A população carcerária neste país só ganha visibilidade por ocasião das chacinas, rebeliões e motins, como o episódio ocorrido em janeiro de 2014 no presídio de Pedrinhas, no Maranhão ¹ ; em agosto do mesmo ano, na Penitenciária Industrial de Guarapuava ² (uma unidade privatizada ³ ), ou no presídio de Cascavel ⁴ , ambas no Paraná. Segundo a mídia ⁵ , os presos reivindicavam melhoria da comida e mais celeridade na progressão de regime, dentre outros – todos direitos garantidos pela Lei de Execução Penal (LEP/1984), cabendo ao Estado o seu cumprimento; infelizmente, num apelo desesperado, recorrem à barbárie para tentar obter seus direitos legais. No caso de Guarapuava, é bom destacar que, mesmo sendo privatizada, tal fato não impede que esse tipo de rebelião aconteça. Como diz o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), juiz Douglas Martins, Nos locais onde localizamos mutirões e há presídios privados não encontramos condições vantajosas como as que são anunciadas normalmente. A situação não é melhor nem pior [do que nos presídios públicos]. Não há nenhum estudo provando que a reincidência ou a reinserção social sejam mais altas ou mais baixas. O número de pessoas trabalhando [nos privados] é até menor do que no sistema público. As empresas têm até certa resistência em contratar presos para os serviços internos, como o de cozinha e lavanderia. (OLIVEIRA, 2014) Infelizmente, parece que este tem sido o rumo nacional da política penitenciária: a privatização dos presídios. Os primeiros presídios privados surgiram no Brasil há cerca de dez anos. Atualmente, empresas dividem a administração com o Poder Público em 22 penitenciárias, localizadas nos estados de Santa Catarina, Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais, Tocantins, Alagoas e Amazonas. Em breve, São Paulo e Rio de Janeiro devem ganhar seus primeiros estabelecimentos privados. As associações com a iniciativa privada já ocorrem pela via da terceirização de alguns serviços, tais como alimentação, cuidados médicos, trabalho e educação, ou transferência total da administração, no qual prevalece o modelo das parcerias públicoprivadas (PPP).
Não pretendo discorrer sobre o problema da privatização das prisões, mas é preciso destacar que este tema traz à tona questões diretamente relacionadas com a violação dos direitos humanos. Conforme Lemgruber (2001), no que se refere à violação de direitos legais, [...] os defensores das prisões privadas não estão preocupados com questões legais, éticas ou morais, e procuram justificar a privatização com o argumento de que a iniciativa privada teria capacidade de gerir prisões com mais eficácia, oferecendo um serviço de melhor qualidade a custos menores. Segundo a socióloga, as companhias que constroem e operam prisões tem um lucro fabuloso e seus executivos alardeiam que o crime compensa e que têm nas mãos um negócio “hoteleiro” fantástico, com garantia de 100% de ocupação permanente. O negócio das prisões privadas nos EUA no final da década de 1990, por exemplo, já se tornava tão lucrativo que companhias contratavam brokers (agenciadores) que negociam lugares nas prisões entre estados interessados. Mas, questiona, qual a estratégia para manter a todo vapor esse negócio fabuloso? Não é difícil imaginar que há muitas estratégias institucionais destinadas a manter o lucro dessas empresas norte-americanas – como, por exemplo, pressão sobre funcionários para punir os presos com mais rigor, prejudicando assim a concessão do livramento condicional, entre outras. É a privatização de prisões ameaçando o cumprimento da pena dentro da legalidade; quanto mais “hóspedes”, mais lucros (ibidem). Além de não existirem estudos demonstrando serem as prisões privadas [nos Estados Unidos] menos caras, como também qualquer indicação de que estas prestem um serviço de melhor qualidade. Ao contrário, inspeções realizadas por agências governamentais indicaram que a necessidade de reduzir custos para tornar a operação dessas prisões mais lucrativa estava levando seus administradores a cortar pessoal e pagar salários menores, o que provoca um alto grau de rotatividade do corpo funcional, comprometendo seriamente o trabalho desenvolvido. Relatórios demonstraram que o nível de violência em alguns estabelecimentos privados, sobretudo em razão da falta de experiência de seus profissionais, é muito superior ao encontrado nas unidades públicas. (ibidem, p. 17-18) Será este o caso da penitenciária privada de Guarapuava? Além das questões apontadas, o fenômeno do encarceramento maciço, principalmente das camadas mais pobres da população, está relacionado com a política de “tolerância zero” do modelo neoliberal norte-americano, cada vez mais tida pelos políticos como “a solução mágica para o crucial problema da violência criminal” (WACQUANT, 2001) – e, com ela, há um número maior de prisões. Desse modo, acreditam haver mais segurança para a população; no entanto, aqueles que são críticos das privatizações afirmam que o real benefício da construção das prisões é “a transferência maciça de recursos públicos para os que exploram a chamada ‘indústria do crime’, pois ‘quanto mais repressivo o sistema, mais ela cresce’”. (LEMGRUBER, 2001)
Em entrevista publicada em 19 de outubro de 2014 no site do jornal O Globo com o título “Velhas panacéias para segurança pública”, Lemgruber (2014) reafirma as questões já apontadas em 2001 sobre os ganhos e os lucros das prisões privatizadas e tece comentários sobre a redução da maioridade penal, dizendo: Países que reduziram a maioridade penal não viram suas taxas de criminalidade violenta decrescer. Alguns, inclusive, já revogaram essa decisão, por constatar que é absolutamente inócua. [...] No Uruguai, o plebiscito realizado no mesmo dia das nossas eleições sobre a redução da maioridade penal apontou a recusa da sociedade uruguaia a essa política. Quero lembrar que, além do lucro com a construção de prisões, há o lucro obtido pelas empresas que implantam suas oficinas no interior das mesmas – embora poucas, tais empresas lucram com a boa qualidade da mão de obra barata e se recusam a dar emprego a essas mesmas pessoas quando saem da prisão, como ocorre no Rio de Janeiro. ⁶ No 1º Congresso Nacional de Egressos e Afins ⁷ , realizado em outubro de 2014 no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pudemos debater sobre alguns dilemas e as principais reivindicações dos egressos, relatados por eles próprios: Muitos têm seus documentos rasgados pelos policiais no ato da prisão, o que dificulta a obtenção de emprego por ocasião do regime semiaberto, no qual têm o direito ao trabalho extramuros (TEM) ou quando saem em liberdade condicional. Além disso, eles ficam vulneráveis às abordagens policiais nas ruas em razão da falta de documentos. Muitas vezes o único documento que lhes resta é o alvará de soltura, mas, ao apresentá-lo em uma abordagem policial, tornam-se alvos fáceis de todos os tipos de preconceitos e retaliações; A grande maioria das pessoas presas não tem documentos e o sistema prisional não viabiliza a sua obtenção. De vez em quando o Patronato, unidade de assistência ao egresso e afins, realiza uma ação social com essa finalidade – o que deveria ser uma rotina no ingresso do preso na instituição prisional, e não apenas quando este obtém o livramento condicional; Muitas empresas exigem o título de eleitor para que o candidato possa concorrer a uma vaga de emprego, mas a maioria dos presos não tem esse documento. Sem a apresentação do título, os egressos e apenados perdem a chance de emprego. É preciso que as autoridades atentem para esse fato. ⁸ “Precisamos de acompanhamento”, disseram os egressos. “Acompanhamento” foi a palavra mais mencionada por eles, referindo-se tanto à necessidade de acompanhamento psicossocial pela área técnica como ao aumento da oferta de trabalho e de atividades educacionais durante o cumprimento da pena, pois consideram que essas ações os preparam para o momento de saída da prisão. Ou seja, foi destacada a importância do funcionamento e do acesso às Assistências previstas na Lei de Execução Penal (LEP). ⁹ Os egressos fizeram críticas ao exame criminológico como um instrumento que pretende avaliar se a pessoa presa está em condições ou não de viver em liberdade somente por ocasião de sua saída da prisão, não
levando em consideração o que a instituição prisional deixou de oferecer durante a execução da pena (como, por exemplo, o acompanhamento psicossocial suficiente ¹⁰ , trabalho e educação, direitos que deveriam ser garantidos pelo Estado, conforme diz a LEP). Ao saírem da prisão, os egressos não dispõem de qualquer dinheiro para alimentação e transporte até suas residências, o que muitas vezes faz com que fiquem pelas ruas, quiçá retornando aos meios ilícitos para sua sobrevivência ou até mesmo sendo novamente abordados por policiais, correndo o risco de serem tidos como supostos infratores. Citaram que, muitas vezes, nesse momento são vistos como “experts no crime” e são abordados pelo “comando” do tráfico de drogas, que lhes oferece um “posto” maior, já que se aperfeiçoaram na “escola do crime”. Portanto, para minimizar tais riscos, reivindicaram auxílio transporte e alimentação no momento de saída da prisão. Cabe recorrermos ao Código de Ética Profissional dos Psicólogos, onde identificamos, de imediato, nos seus Princípios Fundamentais, nosso compromisso com os direitos humanos e com práticas que contribuam para a eliminação de qualquer forma de violência e opressão. Diz o Código: I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. II. O psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. III. O psicólogo atuará com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2015) Contudo, não apenas o Código de Ética nos impõe cuidados e orienta nossas práticas, mas também as resoluções do Conselho Federal de Psicologia (CFP), como, por exemplo, a Resolução 012/2011, ¹¹ que regulamenta a atuação do psicólogo no âmbito do sistema prisional. Essa resolução é fruto de intensos debates com os profissionais que trabalham no sistema prisional brasileiro desde 2004, quando vários encontros foram realizados pelos Conselhos Regionais de Psicologia com os psicólogos do sistema penitenciário, o que resultou no 1º Encontro Nacional, em novembro de 2005, promovido pelo CFP e o Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). ¹² Já naquela ocasião, e também nos debates de 2010 e 2011, evidenciou-se o quanto ainda é presente a crença de que nós, psicólogos, ocupamos um lugar de saber-poder capaz de produzir verdades sobre o outro e definir destinos de vida e de morte por meio dos pareceres solicitados pelo Judiciário.
No caso do sistema penitenciário, isso se dá por meio do exame criminológico, uma prática criada pelo direito penal em conjunto com a psiquiatria forense e que fez com que a psicologia fosse inserida no campo jurídico, a reboque do pensamento positivista que reinava nos diferentes campos de saber, contribuindo com suas técnicas classificatórias e estigmatizantes, que tanto marcaram a psicologia do século XX e que se encontra presente entre nós até hoje. Como diz Foucault (2001, p. 154), “nele [no exame] vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade. [...] nessa técnica delicada estão comprometidos todo um campo de saber, todo um tipo de poder”. A partir de 1984, com a LEP, ficou claro o lugar destinado aos psicólogos: o de participar das Comissões Técnicas de Classificação (CTCs) ¹³ e fazer exame criminológico. ¹⁴ A assistência psicológica sequer é citada como uma das Assistências a que os presos têm direito. Estamos no momento de reformulação da LEP. Encontra-se em tramitação no Senado para votação ¹⁵ o projeto de lei para alteração da LEP – PL 513/2003, que tem recebido contribuições de diversos segmentos da sociedade civil organizada afetos ao tema. Dentre essas contribuições temos as sugestões dos Conselhos Regionais, reunidas e enviadas pelo CFP. Uma das sugestões já enviada por diversos segmentos do campo do Direito se refere à extinção do exame criminológico para fins de livramento condicional e progressão de regime, sendo essa, porém, uma questão polêmica no Judiciário e até mesmo entre os psicólogos. Na Resolução CFP 012/2011, a expressão “exame criminológico” foi substituída por “perícia psicológica”, já que essa é uma das práticas reconhecidas pela especialidade da psicologia jurídica. A mudança do nome não é meramente figurativa, mas implica mudanças conceituais, teóricas e técnicas do que é considerado, pela Psicologia, uma perícia psicológica. No Rio de janeiro, no entanto, a palavra no Judiciário e entre os próprios psicólogos continua sendo “exame criminológico” e a prática permanece a mesma, ou seja, são feitos exames de modo indiscriminado na expectativa de que a psicologia possa dizer em seus pareceres se a pessoa presa está ou não em condições de viver em liberdade, se voltará ou não a cometer delitos. Com a superpopulação carcerária, o número de exames criminológicos vem aumentando assustadoramente, chegando ao absurdo de mil exames por mês, conforme pude constatar em visita recente ¹⁶ a uma unidade de regime semiaberto no Complexo Penitenciário de Gericinó, em Bangu. Segundo informações de funcionários locais, a capacidade da unidade é de 1500 presos, mas abriga cerca de três mil. Em outros estados já não se exige o “exame criminológico” em massa, mas apenas nos casos considerados mais graves pelos juízes, como é o caso de Minas Gerais. ¹⁷ Outro documento importante publicado pelo CFP/CREPOP em 2012, fruto de pesquisas entre os psicólogos do sistema prisional brasileiro, é o intitulado “Referências Técnicas para a atuação das(os) psicólogas(os) no Sistema Prisional”. ¹⁸ A pergunta central é: para que serve a psicologia na prisão?
Podemos pensar em dois caminhos para essa resposta: “para ‘proteger’ a sociedade, legitimando os modos de separação e fortalecendo os níveis de exclusão com base em conceitos como ‘conduta desviante’ e ‘graus de periculosidade’” (CFP e CREPOP, 2012, p. 37) ou “para produzir uma intervenção em diferentes níveis, desde a promoção da acessibilidade a recursos para tratamento do sofrimento decorrente da experiência do cárcere, até a desconstrução das necessidades históricas, sociais e ideológicas que tem sustentado a sua existência”. (idem) Esses caminhos nos remetem ao pensamento reflexivo e crítico sobre os conceitos de justiça e o conceito de pena. Se optarmos pela primeira resposta, certamente estaremos reproduzindo o discurso hegemônico de nossa sociedade. Porém, se trilharmos o segundo caminho, poderemos fazer diferença nesse campo desumano da prisão. Criar, inventar outras práticas para dar passagem à singularidade de cada um dos que estão em situação de total submissão é uma estratégia de resistência na perspectiva da redução dos danos causados pelo confinamento. A experiência que tive a oportunidade de realizar com homens e mulheres em unidades prisionais, com práticas de leitura e Oficinas de Contação de histórias entre os anos de 2004 e 2007, foi a saída que encontrei para que as pessoas presas pudessem falar (não apenas sobre suas histórias de vida) sem a preocupação de estarem sendo “examinadas”, e também para interferir no olhar institucional sobre aqueles sujeitos tão marcados pelos estigmas da prisão. ¹⁹ Para concluir este artigo, trago uma fala de Foucault (apud RODRIGUES, 1998) sobre a importância de colocarmos em análise as demandas que nos chegam, principalmente do Judiciário, foco deste encontro. Ao se referir às chamadas “relações teoria-prática”, o autor nos alerta: “[...] uma atitude indagadora prudente, experimental, é necessária; a cada momento, a cada passo, devemos confrontar o que estamos pensando e dizendo com o que estamos fazendo, com o que estamos sendo”. 1 Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/ 2014/01/1394160-presos-filmam-decapitados-em-penitenciaria-no-maranhaoveja-video.shtml > e < https://www.youtube.com/watch?v=LBl_rFu0o-0 >. Acessos em: 27 set. 2015. 2 Disponível em: < http://g1.globo.com/pr/parana/bom-dia-pr/videos/t/ edicoes/v/rebeliao-em-presidio-de-guarapuava-ja-passa-das-40-horas/ 3697597/ >. Acesso em: 27 set. 2015. 3 Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ ff1803200110.htm >. Sobre o tema da privatização das prisões, ver: Trulio, 2009. 4 Disponível em: < http://oglobo.globo.com/brasil/rebeliao-em-presidio-decascavel-deixa-quatro-mortos-dois-deles-decapitados-13714756 >. Acesso em: 27 set. 2015. 5 Disponível em: < http://g1.globo.com/pr/campos-gerais-sul/noticia/ 2014/10/terceiro-dia-de-rebeliao-tem-nove-agentes-refens-em-
guarapuava.html > e < http://www.brasilpost.com.br/2014/08/24/rebeliaocascavel-decapitadosn5705433.html >. Acessos em: 24 fev. 2015. 6 Apesar da Lei Estadual 6.346, de 23 de novembro de 2012, aprovada na ALERJ, determinar no seu Art. 2º a “reserva de 5% das vagas de empregos dos prestadores de serviços ao Estado do Rio de Janeiro para detentos, egressos do sistema penitenciário e cumpridores de medidas alternativas”, ela ainda precisa ser regulamentada pelo Poder Executivo, o que até o momento não foi feito. 7 Por “afins” entende-se as pessoas que estão em cumprimento de Liberdade Condicional (LC), Sursi, Prisão Albergue Domiciliar (PAD), Prisão Albergue Domiciliar Monitorada (PADM), Limitação de Final de Semana (LFS) e Prestação de Serviços à Comunidade (PSC). 8 Segundo a presidente do Conselho Penitenciário do RJ (CP-RJ), a advogada Maíra Fernandes, essa questão foi levada por ofício e pessoalmente ao presidente do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) que, em reunião, solicitou a emissão de título de eleitor para os apenados que se encontram em situação de livramento condicional, monitoramento eletrônico, regime de prisão albergue domiciliar ou aberto e que desejam ingressar no mercado de trabalho. No entanto, segundo Maíra, foi dito, de imediato, que não seria possível atender a essa reivindicação, pois o sistema informatizado não a aceitava. Dias depois, o CP-RJ recebeu um ofício dizendo que enquanto os presos não terminassem de cumprir integralmente suas penas, não poderiam receber inscrição no TRE, em contrariedade às suas reivindicações. Não satisfeita com a resposta, a advogada informou que encaminhará a questão ao Tribunal Superior Eleitoral. 9 Ver Brasil, 1984 (Capítulo II – Da Assistência, Arts. 10 ao 27). 10 No caso dos psicólogos, segundo a Coordenação de Psicologia da Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro, existiam, no final do ano de 2014, 82 profissionais para atender cerca de 39 mil presos. Desses 82 psicólogos, 28 foram contratados temporariamente e 54 eram efetivos, todos distribuídos entre unidades prisionais e o trabalho na Coordenação. A maioria dos que se encontram nas unidades se ocupa, prioritariamente, dos inúmeros pedidos de exames criminológicos, restando pouco tempo para a assistência psicológica. 11 Disponível em: < http://www.crprj.org.br/legislacao/documentos/ resolucao_012-11.pdf >. Acesso em: 27 set. 2015. 12 Esse evento resultou na publicação da cartilha Diretrizes para atuação e formação dos psicólogos do sistema prisional brasileiro. Ver: CFP e DEPEN, 2007. 13 Sobre as CTCs, ver Bandeira, 2003. 14 Sobre exame criminológico, ver Bandeira, Camuri e Nascimento, 2011. 15 Sites onde é possível acompanhar o andamento do PL: < http:// www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/115665 > e < http://
www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/12/13/reforma-do-codigopenal-e-da-lei-de-execucao-atualiza-legislacao-criminal >. 16 Realizada em setembro de 2014. 17 Conforme informaram os psicólogos na capacitação promovida pelo órgão gestor do sistema prisional mineiro, à qual fui convidada a participar como palestrante em junho de 2013. 18 Participei de sua construção em conjunto com psicólogos dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. 19 Essa experiência pode ser encontrada em Bandeira, 2012 (fruto da minha Dissertação de Mestrado defendida em 2010 no curso de Pós-graduação em Psicologia Social da UERJ). Sobre outras experiências no sistema prisional do Rio de Janeiro, ver Bandeira, Almeida e Santos, 2014. Referências BANDEIRA, M. M. B. “Seu castigo é este”: comissão técnica de classificação, gestão prisional e prática (interdisciplinar?) do psicólogo. 2003. Monografia (Especialização em Psicologia Jurídica) – Instituto de Psicologia, Centro de Educação e Humanidades, Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, 2003. __. Sistema prisional:contando e recontando histórias: as oficinas de leitura e de contação de histórias como processos inventivos de intervenção. Curitiba: Juruá, 2012. BANDEIRA, M. M. B.; ALMEIDA, O. T.; SANTOS, V. A inserção, trajetória e práticas dos psicólogos do sistema prisional do Rio de Janeiro: um resgate histórico. São Paulo: Lexia, 2014. BANDEIRA, M. M. B.; CAMURI, A. C.; NASCIMENTO, A. R. Exame criminológico: uma questão ética para a psicologia e para os psicólogos. Revista Eletrônica Mnemosine, v. 7, n. 1, p. 27-61, 2011. Disponível em: < http://mnemosine.com.br/ojs/index.php/mnemosine/article/view/213 >. Acesso em: 28 out. 2014. BRASIL. Lei no 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Diário Oficial [da República Federativa do Brasil], Brasília, DF, jul. 1984. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7210.htm >. Acesso em: 28 out. 2014. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP); CENTRO DE REFERÊNCIAS TÉCNICAS EM PSICOLOGIA E POLÍTICAS PÚBLICAS (CREPOP) (Orgs). Referências técnicas para a atuação das(os) psicólogas(os) no Sistema Prisional. Brasília: CFP, 2012. 65 p. Disponível em: < http://site.cfp.org.br/ wp-content/uploads/2012/11/AFSistemaPrisional-11.pdf >. Acesso em: 28 out. 2014. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP); DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL (DEPEN). Diretrizes para atuação e formação
dos psicólogos do sistema prisional brasileiro. Brasília, DF, 2007. Disponível em: < http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/depen_cartilha.pdf >. Acesso em: 28 out. 2014. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Resolução no 010 de 21 de julho de 2005. Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília, DF, jul. 2015. Disponível em: < http://www.crp11.org.br/legislacao/ codigodeetica/codigo_etica.pdf >. Acesso em: 28 out. 2014. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Rio de Janeiro: Vozes, 2001. LEMGRUBER, Julita. Controle da criminalidade: mitos e fatos. Revista Think Tank. Instituto Liberal do Rio de Janeiro. São Paulo, 2001. Disponível em: < http://www.observatoriodeseguranca.org/files/ Controle%20da%20criminalidademitos%20e%20fatosLemgruber.pdf >. Acesso em: 28 out. 2014. __. Velhas panaceias para segurança pública. 19/10/2014. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/opiniao/velhas-panaceias-para-segurancapublica-14286925#ixzz3HRES6QWI >. Acesso em: 28 out. 2014.
OLIVEIRA, Sérgio Rodas. Presídios privados não são melhores do que os públicos, dizem especialistas. Especial Situação Prisional. 11/01/2014. Disponível em: < http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/68491/ presidios+privados+nao+sao+melhores+do+que+os+publicos+dizem+especialistas.sh >. Acesso em: 28 out. 2014. RODRIGUES, H. B. C. Quando Clio encontra Psyché: pistas para um (des)caminho formativo. Cadernos Transdisciplinares, n. 1, p. 42, 1998. TRULIO, Maria Cristina de Souza. Privatização dos estabelecimentos prisionais no Brasil: uma reavaliação da proposta após experimentação em alguns estados ante a sua pretensão em contribuir para o desenvolvimento humano. 2009. 146 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: < http:// www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp109051.pdf >. Acesso em: 28 out. 2014. WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. O psicólogo na Defensoria Pública do Rio de Janeiro: para além de assistente técnico, um mediador Silvia Ignez Silva Ramos Em seis de abril de 2014, pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), foi realizado o primeiro concurso público para Psicólogos e Assistentes Sociais da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro (DPGERJ). Os aprovados tomaram posse em julho do mesmo ano e, desde então, as atribuições desses servidores vêm sendo desenhadas e problematizadas. Assim, num primeiro momento, foram lotadas uma psicóloga na Coordenadoria da Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Cdedica) e uma psicóloga e uma assistente social no Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh). Além do Rio de Janeiro, há psicólogos concursados nas Defensorias Públicas estaduais do Paraná, de São Paulo, do Rio Grande do Sul e, a partir de 2015, também no Mato Grosso. O psicólogo na DPGERJ Iniciemos este texto cartográfico ¹ com a intenção de acompanhar o processo da chegada da psicologia no contexto da DPGERJ, convidando o leitor para compreender a oportunidade endereçada aos profissionais de articularem a prática psi para além do trabalho como assistente técnico (AT). Antes, no entanto, faz-se mister explicar o que é o trabalho do AT, suas diferenças e semelhanças com o trabalho do Perito. Na área da Infância, Juventude e Família, é comum o juiz buscar apoio interdisciplinar para subsidiar sua sentença. Apesar do juiz não estar adstrito ² a esse trabalho, o psicólogo que compõe a equipe interdisciplinar pode ser nomeado de cinco maneiras, como está organizado no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: Ad hoc, profissional autônomo externo ao quadro e nomeado para atuação em um processo específico; Psicólogo concursado, um analista judiciário que faz parte do quadro do Poder Judiciário; Terceirizado, por intermédio de contrato do Tribunal com Organizações Não Governamentais (ONGs); Concursado de nível médio, Técnico Judiciário, desviado de função por ter a formação em Psicologia (aconteceu no passado no Rio de Janeiro) e, por fim, Extraquadro, como Perito, cadastrado no Serviço de Perícias Judiciais (SEJUD). ³ Nessa última hipótese, a remuneração se dá a título de ajuda de custo, pois peritos são auxiliares da justiça em processos de justiça gratuita (JG). Esse psicólogo é nomeado como Perito do juízo para realizar os atendimentos por meio de referencial teórico-ético-científico da Psicologia, elaborando, ao final, um Laudo ou Relatório Psicológico que será juntado aos autos do processo trabalhado. Paralelamente, as partes do processo – autor(a) e réu / ré – podem indicar psicólogos que são chamados de Assistentes Técnicos. Diferente do Perito, seu trabalho resulta não em um Laudo ou Relatório, mas em um Parecer. ⁴ O Parecer do AT é realizado a partir do Laudo do Perito. Entretanto, apesar de ocuparem lugares diferentes, alguns autores e profissionais também designam o AT de Perito Assistente.
Para compreendermos melhor essas diferenças, pesquisemos a Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2003, p.7), que diz que o Laudo ou Relatório Psicológico tem como finalidade: [...] apresentar os procedimentos e conclusões gerados pelo processo da avaliação psicológica, relatando sobre o encaminhamento, as intervenções, o diagnóstico, o prognóstico e evolução do caso, orientação e sugestão de projeto terapêutico, bem como, caso necessário, solicitação de acompanhamento psicológico, limitando-se a fornecer somente as informações necessárias relacionadas à demanda, solicitação ou petição. Por sua vez, o Parecer Psicológico “tem como finalidade apresentar resposta esclarecedora, [...] de uma “questão-problema”, visando a dirimir dúvidas que estão interferindo na decisão, sendo, portanto, uma resposta a uma consulta [...]” (ibidem, p. 9). O trabalho do Perito se inicia com os quesitos dos ATs e / ou dos advogados de ambas as partes. No universo pericial, “quesitos” são perguntas voltadas ao Perito – a quem cabe entregar as respostas junto com o Laudo ou Relatório, ao final de seu trabalho. Após o início da Perícia há um novo momento em que os ATs podem encaminhar “quesitos suplementares”. Para facilitar a compreensão, analisemos o desenho desse circuito pericial:
É comum encontrar quesitos sem respostas, e muitas vezes isso ocorre por um excessivo cuidado com o “sigilo profissional” do psicólogo, fruto do desconhecimento do campo jurídico – o que é diferente da ausência de resposta aos quesitos em razão de formulação inadequada. A Resolução indica que: Havendo quesitos, o psicólogo deve respondê-los de forma sintética e convincente, não deixando nenhum quesito sem resposta. Quando não houver dados para a resposta ou quando o psicólogo não puder ser
categórico, deve-se utilizar a expressão “sem elementos de convicção”. Se o quesito estiver mal formulado, pode-se afirmar “prejudicado”, “sem elementos” ou “aguarda evolução.” (ibidem, p. 10) O lugar profissional do psicólogo enquanto AT, até este primeiro concurso da Defensoria no Rio de Janeiro, existia a partir de quatro possibilidades: Ad hoc, por contratação particular (geralmente por meio dos advogados das partes, pagando honorários); Psicólogo concursado, por intermédio de psicólogos servidores de outros órgãos cedidos à Defensoria Pública; Terceirizado, por intermédio de psicólogos contratados por convênios realizados junto à Defensoria ou por psicólogos autônomos ocupantes de cargo em Comissão na Defensoria Pública. A partir do concurso é a primeira vez, no Rio de Janeiro ⁵ , que passa a haver o servidor público “Psicólogo” na Defensoria, e que tem como uma de suas atividades a função de AT. Essa função, hoje, talvez seja a maior demanda ao psicólogo na Defensoria do Rio de Janeiro. Este artigo propõe pensar outros possíveis lugares desse Psicólogo, para além da função de assistente técnico. Existem alguns dispositivos normativos que prescrevem os trabalhos do Perito e do AT. O novo Código de Processo Civil (CPC), Lei 13.105/2015, é um dos dispositivos que normatizam essas práticas do campo pericial. O CPC institui essas atividades em sua Seção X – Da Prova Pericial, do Art. 464 ao Art. 480. O início dos trabalhos está norteado da seguinte forma: Art. 465. O juiz nomeará perito especializado no objeto da perícia e fixará de imediato o prazo para a entrega do laudo. § 1o Incumbe às partes, dentro de 15 (quinze) dias contados da intimação do despacho de nomeação do perito: I–arguir o impedimento ou a suspeição do perito, se for o caso; II–indicar assistente técnico; III–apresentar quesitos. (BRASIL, 2015) Há outros dois dispositivos que partem do CFP, que são as Resoluções 008/2010 e 017/2012. A primeira apresenta em dois artigos as especificidades dos campos de atuação: Art. 7º: Em seu relatório, o psicólogo perito apresentará indicativos pertinentes à sua investigação que possam diretamente subsidiar o Juiz na solicitação realizada, reconhecendo os limites legais de sua atuação profissional, sem adentrar nas decisões, que são exclusivas às atribuições dos magistrados. Art. 8º: O assistente técnico, profissional capacitado para questionar tecnicamente a análise e as conclusões realizadas pelo psicólogo perito, restringirá sua análise ao estudo psicológico resultante da perícia,
elaborando quesitos que venham a esclarecer pontos não contemplados ou contraditórios, identificados a partir de criteriosa análise. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2010) Dentro de uma perspectiva ética e cuidadosa, tanto o Perito como o AT devem trabalhar atentos aos efeitos de suas intervenções na vida da pessoa que está sendo atendida. Cuidar para não investir em uma atuação adversarial e levar em conta seus espaços profissionais, como aponta o Art. 5º da Resolução 017/2012: Art. 5º: O psicólogo perito poderá atuar em equipe multiprofissional desde que preserve sua especificidade e limite de intervenção, não se subordinando técnica e profissionalmente a outras áreas. Parágrafo único: A relação entre os profissionais envolvidos no contexto da perícia deve se pautar no respeito e colaboração, cada qual exercendo suas competências, respeitadas as atribuições privativas de cada categoria profissional. (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2012) É importante que o psicólogo que atua ou que queira atuar nesses campos se debruce nessas leituras das Resoluções do CFP, do Código de Ética Profissional e do CPC, e que busque pesquisadores e profissionais da psicologia que estudem e problematizem essas questões. Aqui fizemos apenas algumas pontuações iniciais, importantes de serem aprofundadas. Vamos retomar o assunto sobre articular o lugar do psicólogo na Defensoria para além de AT. Para isso é necessário “sair do eixo”, melhor dizendo, trabalhar não apenas no eixo da defesa e do controle (mais afeito ao campo judiciário), mas pelo viés do extrajudicial ⁶ e pelo eixo da promoção dos direitos humanos e da prevenção. Sabemos que os eixos da promoção, controle e defesa compõem o Sistema de Garantia de Direitos (SGD), onde a palavra Sistema pressupõe articulação entre esses eixos. Como sugere Ramos (2010, p. 35), “diversas práticas [buscam] assegurar a sua articulação, como a [...] criação de redes de informação que unificam os dados relevantes para a atuação do Sistema”. E, para além das redes virtuais, promover a articulação presencial das equipes interdisciplinares, não apenas (re)produzindo laudos que muitas vezes litigam, mas para ao vivo e em cores construir parcerias que visem de fato efeitos reais para a vida do usuário, beneficiário e / ou assistido. Comecemos analisando a prova da FGV, do Rio de Janeiro, por seu conteúdo programático. No edital, ficou evidente a ênfase em uma psicologia social crítica, direcionada às dimensões éticas, históricas e socioculturais, e não tanto numa psicologia voltada aos prognósticos e diagnósticos psicopatológicos. As bancas de concurso público influenciam na classificação de profissionais criando determinado perfil, desenhando sua práxis, sua bagagem teórica e sua postura ética. Eis a dimensão política dos psicólogos que elaboram a prova e que revelam uma indagação: Que psicologia queremos para dar fundamentação à prática psi?, tal como nos sugere JacóVilela (1999, p. 17):
A questão que permanece, neste momento de expansão da área de psicologia jurídica para além da Justiça Criminal, envolvendo principalmente família, infância e adolescência, refere-se à maneira como o psicólogo aceitará/atuará frente a este encargo: será o estrito avaliador da intimidade, aperfeiçoando seus métodos de exame? Ou lembrar-se-á que este sujeitosingular também é sujeito-cidadão, cujos direitos e deveres se constituem no espaço público, território onde perpassam outros discursos e práticas que não o exclusivamente psicológico? Sigamos as possíveis pistas que direcionam as ações e problematizações para um trabalho psi mais investido na ética do que na técnica. Vejamos o conteúdo específico do edital da FGV para a carreira na DPGERJ (conhecimentos básicos, Técnico Superior Especializado em Psicologia): 1. Código de ética profissional do psicólogo e resoluções do Conselho Federal de Psicologia. 2. Psicodiagnóstico e elaboração de documentos decorrentes de avaliações psicológicas. 3. Psicologia do desenvolvimento e teorias da personalidade – infância, adolescência e maturidade. Famílias. 4. Psicopatologia: funções psíquicas e suas alterações. Classificação e tratamentos dos transtornos mentais e do comportamento. Dependência química: diagnóstico e tratamento. 5. Psicologia social: a análise institucional e instituições do direito. Subjetividade e Sociedade. 6. Psicologia jurídica – áreas de interesse especial: psicologia no Direito de Família, psicologia no Direito da Infância, da Juventude e do Idoso, o adolescente em conflito com a lei, violência doméstica e contra a mulher. (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2014) Chama a atenção a não linearidade na apresentação das demandas institucionais (FGV e DPGERJ). Por exemplo, o conteúdo da prova não tem uma relação direta com o nome do cargo que enfatiza o vocábulo “Técnico”. Enquanto a direção do conteúdo da prova leva a uma psicologia menos positivista, mais voltada aos direitos humanos, o nome do cargo direciona a uma psicologia tecnicista. A técnica é endereçada à categoria dos objetos, pois ela é simplesmente aplicada; quando endereçada a sujeitos, não atua no plano da imposição, de uma simples incidência, mas no plano da ética, por implicar o encontro de subjetividades. E é essa a marca que define o lugar e o fazer da prática psi (GONDAR, 2004, p. 32). A questão é que, frente à polifonia dos significados de “psicologia(s)”, sempre temos que nos interpelar de que ética e de que sujeito estamos falando, já que entendemos aqui que não há nem sujeito e nem psicologia universais. Porém, é nesse acaso da demanda, nessa não linearidade, que se constroem linhas de fuga – as quais, segundo Deleuze (1998, p. 101), “traçam pequenas modificações, fazem desvios, delineiam quedas ou impulsos: não são, entretanto, menos precisas; elas dirigem até mesmo processos irreversíveis” que abrem espaços para novas práticas. Ao invés de enfatizar a contradição dessas demandas – e dessas linhas duras e de fuga –, vale criar um agir potente a partir delas. Se o instituído é muito controlado e regrado, geralmente as linhas de fuga ficam invisíveis ou são dificilmente acessíveis. Nesse sentido, as linhas duras, segmentárias, apareceriam intensas, controlando desde a prova até as demandas institucionais internas. Na
DPGERJ, essas linhas de fuga aparecem oportunizando a desterritorialização – não é que inexistam segmentaridades bem definidas, mas essas se colocam numa possível dinâmica, numa perspectiva flexível, instituinte de fuga. A linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem do que se trata. Evidentemente, eles fogem como todo mundo, mas acham que fugir é sair do mundo, mística ou arte, ou então que é algo covarde, porque se escapa aos compromissos e às responsabilidades. Fugir não é absolutamente renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do imaginário. É igualmente fazer fugir, não obrigatoriamente os outros, mas fazer fugir algo, fazer fugir um sistema como se arrebenta um tubo... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. (ZOURABICHVILI, 2004, p. 29) Depois de compreendermos o quanto a entrada da psicologia na Defensoria via concurso público potencializou linhas de fuga, caminhemos brevemente pela história da instituição para explorarmos essas oportunidades abertas entre a chegada do psicólogo, a história da instituição e as possíveis construções no campo psi a partir desse início. Traçando as linhas da história da DPGERJ A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPGERJ) foi a primeira do seu gênero no Brasil, e existe desde 5 de maio de 1897, a partir de um Decreto que institucionalizou a Assistência Judiciária no Distrito Federal, capital da República, que naquela época era situada na cidade do Rio de Janeiro. Primeiramente a DPGERJ foi ligada à Procuradoria Geral da Justiça a partir da Lei Estadual n° 2.188, de 21 de julho de 1954. Em um segundo momento, a partir de 20 de julho de 1958, a Lei Federal n° 3.434 realizou os serviços de assistência judiciária no Distrito Federal e Territórios, sendo que os Defensores Públicos estavam ligados à carreira do Ministério Público Federal. Quando da mudança da capital federal para Brasília, o sistema foi legado ao Ministério Público do antigo estado da Guanabara, mantendo-se até a integração deste com o antigo estado do Rio de Janeiro, e depois até a fusão destes dois estados em 1974. A Lei n° 5.111, de 08 de dezembro de 1962, designada Lei Orgânica do Ministério Público e da Assistência Judiciária, criou o Quadro do Ministério Público usando duas letras: “A” e “B”. “A” correspondia ao Ministério Público, em sentido estrito, e “B” correspondia à Assistência Judiciária (hoje, Defensoria Pública). No site da DPGERJ, deparamo-nos com o seguinte texto: A Defensoria Pública é o órgão estatal que cumpre o DEVER CONSTITUCIONAL DO ESTADO de prestar assistência jurídica integral e gratuita à população que não tenha condições financeiras de pagar as despesas destes serviços. Isto porque a assistência jurídica integral e gratuita aos hipossuficientes é direito e garantia fundamental de cidadania, inserido no art. 5° da Constituição da República, inciso LXXIV. (DPGERJ) É importante salientar que os considerados “hipossuficientes” não são apenas aqueles que têm um salário considerado baixo, mas todos que
ganham o insuficiente para prover necessidades básicas próprias e para o sustento dos seus dependentes. Por isso, “o importante não é o valor do salário da pessoa, mas se as despesas dela e de sua família permitem a contratação de advogado ou permitem que ela pague por documentos, certidões, etc”. (DPGERJ) Muitas vezes, o que se percebe no Núcleo do Consumidor (Nudecon), na Defensoria do Rio de Janeiro, especificamente na área de superendividados, é que os assistidos na DPGERJ muitas vezes se tornaram hipossuficientes em razão de propostas de consumo sem fim que incidiam sobre sua renda, que, ainda que razoável, é finita. Nesse sentido, não estamos falando apenas dos cidadãos com baixos salários, que necessitam de assistência social, mas também dos cidadãos com altos salários, porém com suas rendas inteiramente comprometidas por dívidas bancárias. Essa cooptação se dá não apenas porque os bancos têm estratégias perfeitas de marketing para alcançar as “pobres vítimas” que consumirão sem poder fazê-lo, mas também pela dificuldade de boa parte dos humanos, em especial os ocidentais, em lidarem com uma flutuação arcaica entre prazer-desprazer e realidade (FREUD, 1911). Na contemporaneidade, o sujeito humano é estimulado pela velocidade dos acontecimentos, que não só incidem no alívio da tensão, como reforçam uma crença na possibilidade de eliminação dessa tensão de forma imediata e infinita (FERREIRA, 2008). Contudo, nossa intenção não é desenvolver o tema dos superendividados e sim apresentar o quanto a Defensoria lida com questões sociais que não são apenas fruto da falta de políticas públicas sociais, mas de fatores outros que fluem da condição humana ⁷ e que interessam ao campo psi. Voltando ao tema da assistência jurídica integral, é importante compreendermos que o trabalho desenvolvido na Defensoria é considerado mais do que assistência judiciária, já que, para além da defesa em processo judicial, há também a esfera extrajudicial. Discutiremos esse tema em tópico próprio mais adiante. Outro ponto relevante é que esse serviço público não está acessível apenas às pessoas físicas, mas também às pessoas jurídicas, às sociedades sem fins lucrativos e às associações comunitárias que apresentem impossibilidade de arcar com as custas de um advogado particular (DPGERJ). Percebem-se na Defensoria alguns espaços para a inserção do psicólogo em áreas pouco exploradas, como no Núcleo do Consumidor, no Núcleo da Diversidade Sexual e dos Direitos Homoafetivos, no Núcleo Contra a Desigualdade Racial e no Núcleo de Atendimento à Pessoa com Deficiência. O portal da DPGERJ informa também que, com base nos dados do IBGE, mais de 70 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza, reclamando a urgente adoção de políticas públicas que visem a solucionar esse lamentável quadro social. Uma dessas políticas seria a própria instalação das Defensorias Públicas nos estados que ainda não atenderam à imposição constitucional, bem como o fortalecimento daquelas já existentes. Outra informação importante, que tem relação com a informação supracitada, é que em cerca de 80% dos processos ativos no Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro há o envolvimento da Defensoria Pública, que atua em todas as instâncias judiciais, junto aos órgãos do Poder Judiciário;
também em Núcleos regionais para primeiro atendimento e aconselhamento jurídico, além dos Núcleos Especializados para o atendimento em temas específicos. Ao analisarmos a falta de políticas públicas apontadas e pleiteadas como prioridade no site da instituição (assim como a necessidade de instalação de “novas” Defensorias Públicas e o “fortalecimento” das já existentes), percebemos uma orientação para o eixo do controle e da defesa do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) – e, por mais que isso possa parecer óbvio, por uma questão teleológica, no caso do papel da Defensoria parece faltar foco no eixo da promoção do SGD. Eixo esse que tem relação com a execução das políticas públicas, com a execução daquilo que está declarado na lei. Melhor dizendo, o SGD se constitui a partir destes três eixos: promoção, defesa e controle. No Brasil, há um maior investimento no controle e na defesa do que na promoção, sendo por essa escolha de investimento que “engrossamos o caldo” da judicialização e, assim, a necessidade de ampliação de Defensorias (advogados públicos para defenderem os cidadãos que não têm acesso aos direitos sociais). Em contrapartida, se fortalecêssemos a política pública no eixo da promoção de direitos sociais, seria cada vez mais desnecessária a ampliação da Defensoria por falta desses direitos nos campos da saúde, da educação, etc. Com essa mudança de direcionamento, acreditamos que seria aberto um espaço para uma Defensoria mais forte nas mediações extrajudiciais. Pensando, por exemplo, no âmbito da Infância e Juventude, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu artigo 87, delineia as ações de políticas públicas que fazem parte do eixo da promoção (e da prevenção): Art. 87 – São as linhas de ação dessa política de atendimento: I–Políticas sociais básicas, como saúde, educação, assistência social e geração de renda e emprego; II–Políticas e programas de assistência social em caráter supletivo para aqueles que delas necessitem; III–Serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão; IV–Serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos; V–Proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente. (BRASIL, 1990) No entanto, o que vem acontecendo cada vez mais é que essas políticas de atendimento não são executadas a contento – o que o Poder Executivo geralmente justifica pela “falta de orçamento” – e é isso que leva os cidadãos a buscarem a Defensoria e o Poder Judiciário para garantir seus direitos sociais. Mesmo assim, muitas vezes o Sistema de Justiça defere os pedidos e
determina o “cumpra-se” – e o cidadão então retorna ao Executivo, apenas supostamente tendo alcançado o seu objetivo. Num olhar distante da sala de audiências, repleta de processos, papéis, gravatas e tailleurs, longe da articulação e da negociação tête-à-tête, surge a pergunta: o que de fato se consegue com esse “cumpra-se” do Sistema de Justiça? Se há um planejamento orçamentário federal, estadual e municipal, que apresenta seus limites e não privilegia as políticas públicas necessárias, o que significa, para o Poder Executivo, o cidadão sair da audiência com a suposta garantia de que o serviço será “executado”? A mensagem transmitida aos que aguardam na fila do Executivo é: “busquem o Judiciário, pois é por lá que a política será garantida” (!). Fica naturalizada a invasão de um poder pelo outro... Eis aí a judicialização da política, que, segundo Rodrigo Brandão (2013, p. 175-220), é [...] o processo pelo qual as Cortes e os juízes passam a dominar progressivamente a produção de políticas públicas e de normas que antes vinham sendo decididas (ou, como é amplamente aceito, que devem ser decididas) por outros departamentos estatais, especialmente o Legislativo e o Executivo. Cuida-se, portanto, de processo de transferência do poder de tomar decisões sobre questões de alta conotação política dos detentores de mandatos eletivos (legisladores e chefes do Executivo) para juízes. Talvez tenhamos dados importantes ao pesquisarmos os impactos das sentenças (do “cumpra-se”) no orçamento e no planejamento da execução das políticas públicas nas três esferas da federação. Em especial em processos que envolvem os direitos fundamentais. A judicialização da política engorda por sua vez a institucionalização da judicialização da vida, que de acordo com Correia Jr. (2011), é: [...] um fenômeno global e complexo [...] em que o judiciário ganha enorme participação sobre o modo de subjetivação dos indivíduos, produzindo subjetividades judicializadas e judicializantes. Entendemos que as subjetividades judicializadas referem-se ao modo de pensar e agir baseados nas normas e leis, e as subjetividades judicializantes dizem respeito à produção de um modo de vida judicializado, ao qual a todo tempo e momento o judiciário é acionado para resolver os mais diversos conflitos das relações humanas. Os meios alternativos de resolução de conflitos Num movimento de resistência, na direção contrária da judicialização da vida, vêm sendo estabelecidas, por meio da Organização das Nações Unidas (ONU) em parceria com o Ministério da Justiça (ABDALA, 2009) e no próprio Poder Judiciário, na Defensoria Pública e em outros órgãos governamentais e não governamentais, técnicas intituladas de mediação de conflitos, de conciliações, de negociações, etc. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, lançou o prêmio Conciliar é Legal a partir de práticas de conciliação individuais ou em grupos, apresentadas por magistrados e tribunais: “Essa ação, que faz parte da Semana Nacional de Conciliação promovida pelo CNJ, identifica, premia e dissemina práticas que contribuem para a pacificação de conflitos e para a
celeridade e eficiência da justiça brasileira” (CNJ, 2010). Enfim, os meios alternativos de resolução de conflitos, por meio de ações judiciais e extrajudiciais, têm nadado no sentido contrário dos eixos do controle e da defesa. A mediação ⁸ como ação judicial vem se instituindo no Brasil desde 1990. Segundo Brandão (2014), as instituições jurídicas brasileiras mais antigas são o Instituto de Mediação e Arbitragem no Brasil (IMAB) e o Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem (CONIMA). A ideia aqui não é elencar todas as atividades e leis que existiram e existem, mas atualizar algumas ações e normas nesse âmbito, como a Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 125, que institui a Política Judiciária de tratamento de conflitos de interesses: Art. 1º–Fica instituída a Política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesses, tendente a assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade. Parágrafo único. Aos órgãos judiciários incumbe oferecer mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão. Nas hipóteses em que este atendimento de cidadania não for imediatamente implantado, esses serviços devem ser gradativamente ofertados no prazo de 12 (doze) meses. (CNJ, 2010) A Lei 13.140/2015, vigente desde 26 de dezembro último, dispõe sobre a mediação entre particulares como o meio alternativo privilegiado de solução de controvérsias e sobre a composição de conflitos no âmbito da Administração Pública, alterando a Lei nº 9.469/97, o Decreto nº 70.235/72 e revogando o § 2º do Art. 6º da Lei nº 9.469/97. Nesse contexto, a Lei complementar da Defensoria Pública (Lei nº 80/1994) foi alterada em 2009, passando a apresentar como função institucional da Defensoria a promoção de soluções extrajudiciais: Art. 4º–São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: [...] II – promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009). [...] XXII–convocar audiências públicas para discutir matérias relacionadas às suas funções institucionais. (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009). § 4º. O instrumento de transação, mediação ou conciliação referendado pelo Defensor Público valerá como título executivo extrajudicial, inclusive quando celebrado com a pessoa jurídica de direito público. (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009). (BRASIL, 1994)
Essa temática está voltando com força à pauta da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro, pois se apresenta como plataforma da gestão que iniciou em janeiro de 2015, liderada pelo Defensor André Castro. Um exemplo que dá visibilidade a essa retomada foi a reunião na sede da DPGERJ, no dia 28 de janeiro de 2015, que teve como tema a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, na qual a responsável pela Coordenação dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cdedica/DPGERJ), Eufrásia Maria Souza das Virgens, e a então Presidente do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedca), Mônica Alkmim Moreira Nunes, discutiram o tema da solução extrajudicial de conflitos com representantes de instituições e entidades que atuam no sistema de defesa da população. Naquele encontro, o Desembargador Siro Darlan, então Presidente das Comissões de Família, Infância e Juventude e de Adoção Internacional do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, anunciou: “Vamos criar uma câmara permanente para apontar os problemas e buscar soluções para esse problema”. (DPGERJ). O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também passou por eleição de seu presidente, no fim de 2014, e o desembargador eleito trouxe também como pauta os meios alternativos de resolução de conflitos. Em entrevista a um jornal de grande circulação carioca, o desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho afirmou que há que se “impedir a tsunami de novos processos e desemperrar outros 9,5 milhões em tramitação [através de] um projeto pioneiro: criar núcleos de mediação e conciliação em bairros da capital.” (CRUZ, 2014). Onde seriam criados tais núcleos? Em bairros da capital, municípios da Baixada Fluminense, nos lugares com grandes demandas. Dos 9,5 milhões de processos no Judiciário, 70% são de Direito do Consumidor. Vamos chamar as 20 empresas mais acionadas no judiciário, a Defensoria Pública, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e criar uma comissão aqui no tribunal para analisar a melhor forma de implantar os núcleos. (ibidem) Desde julho de 2014, com a entrada dos primeiros psicólogos concursados na DPGERJ, vem acontecendo uma reflexão crítica sobre a perspectiva de a equipe interdisciplinar investir nas composições coletivas, promovendo diálogos, mediações e funcionar menos como assistente “técnico” ⁹ que se enleia muitas vezes em duelos de laudos com peritos, servidores ou contratados do campo psi. A proposta é produzir encontros e diálogos com esses psicólogos, seja no judiciário, na área de educação ou na clínica. O Código de ética profissional do psicólogo, aprovado a partir da Resolução CFP n. 010/2005, em seu Art. 7º enfatiza que (CFP, 2005): O psicólogo poderá intervir na prestação de serviços psicológicos que estejam sendo efetuados por outro profissional, nas seguintes situações: A pedido do profissional responsável pelo serviço; Em caso de emergência ou risco ao beneficiário ou usuário do serviço, quando dará imediata ciência ao profissional; Quando informado expressamente, por qualquer uma das partes, da interrupção voluntária e definitiva do serviço;
Quando se tratar de trabalho multiprofissional e a intervenção fizer parte da metodologia adotada. (grifos nossos) Podemos pensar nas composições coletivas (tal qual o trabalho “multiprofissional”, sugerido na alínea “d” do Art. 7º) como um convite ao diálogo ético, levando em conta o trabalho do psicólogo anterior, e não para funcionar como um executor das tarefas que chegam à sua responsabilidade, atendendo a um burocrático “cumpra-se”. Como apresentamos no início deste artigo, a Resolução do CFP n. 008/2010 é categórica ao dizer que os psicólogos peritos e assistentes técnicos não devem interferir no trabalho um do outro ao ponto de impedir a autonomia teórico-técnica e ético-profissional, mas que ambos podem atuar em equipe multiprofissional. Isto é, atuar em um modelo de participação ativa e não em um modelo adversarial (Justiça retributiva), que muitas vezes amplia o litígio, como sugere a Justiça Restaurativa de Howard Zehr (2008). Segundo Vivian Gama (2014), que coordena o projeto no Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA), a partir da metodologia restaurativa, esta pode ser uma abordagem complementar ou paralela, isto é, pode acontecer extrajudicial ou judicialmente, no curso do processo. Afirma também que a Justiça Restaurativa parece recolocar no centro as “dimensões interpessoais do conflito” e não os mediadores ou facilitadores, e nem a apuração da verdade, da culpa ou do problema. A ofensa e o dano são definidos em termos éticos, políticos, sociais e econômicos, não apenas em termos técnicos e jurídicos. (idem). Nessa perspectiva extrajudicial, restaurativa, mediadora, o psicólogo, ao receber uma demanda de trabalho, inicia uma análise da produção da demanda ¹⁰ com a pergunta: Quem pede? Depois: por que pede aquilo e daquela forma? Como? Abrindo a escuta (que é mais do que usar o aparelho auditivo) para compreender quais as expectativas que acompanham aquele pedido; problematizando suas escolhas na direção do trabalho. Repetindo isso em cada trabalho, mesmo em casos supostamente semelhantes (nunca serão iguais) e, por isso, tratados singularmente, desde o primeiro atendimento até a produção de qualquer documento escrito (Resolução CFP nº 007/2003). Essa perspectiva ética já endereça o psi à análise das implicações, que é a sua responsabilização na escolha das técnicas, das teorias, dos instrumentos e dos modos de se relacionar com a prática. É comum que profissionais de qualquer área científica se embebedem da “ciência” como verdade e, por isso, façam um uso instrumental dela, sem questioná-la, sem contextualizá-la em sua origem no tempo e no espaço e sem analisá-la em seus efeitos. Por isso, a escolha desse caminho está para além de um trabalho técnico, pois envolve uma análise que é necessariamente ética e singular. (LOURAU, 1993; GONDAR, 1999; BAREMBLITT, 2002; ARANTES, 2011; RAMOS, 2012) Considerações momentâneas A maneira como ocorreu a entrada do campo psi na DPGERJ; a finalidade e história desse órgão; os agenciamentos atuais sobre medidas alternativas de resolução de conflitos entre os atores do Sistema de Garantia de Direitos e
do Sistema de Justiça apontam para uma direção que desvia da judicialização da vida e da política. É preciso cada vez mais incrementar, na prática, essa diretriz de trabalho por meio de real vontade política, articulando ações, teorias e legislação que invistam mais no eixo da promoção das políticas públicas, assim como da mediação e da justiça restaurativa, e menos no controle e na punição que assoberbam o judiciário, tornando-o moroso, preso a dissensos sem fim e soluções muitas vezes tardias, que ampliam o conflito. Igualmente, é preciso aproveitar este momento de legitimação do psicólogo na Defensoria para investirmos em um viés profissional-ético-político que dê ênfase a uma articulação multiprofissional mais no campo da mediação do que no campo da judicialização da vida e da política. Isso será muito importante para os cidadãos que esperam desses serviços públicos a promoção da justiça e da paz social. 1 “Cartografar é habitar um território existencial”. “Acompanhar processos e não representar um objeto”. (ALVAREZ, 2009, p. 131-149; PASSOS, 2009) 2 Código de Processo Civil (Lei 5.869/73, Art. 436): “o juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo formar a sua convicção com outros elementos ou fatos provados nos autos.” 3 O SEJUD é a antiga Divisão de Perícias Judiciais (DIPEJ) do TJ/RJ. Disponível em: < http://www.TJ/RJ.jus.br/web/guest/institucional/dir-gerais/ dgjur/deinp/sejud >. Acesso em: 20 fev. 2015. 4 A Resolução do CFP nº 007/2003 institui o Manual de Elaboração de Documentos Escritos produzidos pelo psicólogo, decorrentes de avaliação psicológica. Disponível em: < http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/ 2003/06/resolucao2003_7.pdf > Acesso em: 20 fev. 2015. 5 No início deste artigo elencamos outros estados, além do Rio de Janeiro, que têm psicólogos concursados em suas Defensorias Públicas estaduais. 6 Aqui estamos usando o vocábulo extrajudicial de acordo com o seu sentido denotativo: “que não ocorre por vias judiciais”. (HOUAISS, 2009, p. 332) 7 De acordo com o pensamento de Arendt (2010), a concepção de condição humana está empregada aqui não como sinônimo de natureza humana (que se apresenta com características fixas, imutáveis), mas como uma concepção de existência que admite mudanças e transformações da pessoa humana. 8 Para mais informações sobre o funcionamento desses meios alternativos de resolução de conflitos, ver Brandão (2014, p. 73-139), que faz uma análise bastante cuidadosa e pormenorizada sobre as diferenças e interseções entre as técnicas de mediação, conciliação e arbitragem, entre outras questões afetas à matéria. 9 Gondar (2004, p. 32) afirma que “o lugar do psicólogo é necessariamente ético, e não técnico”. Gondar enfatiza que o técnico endereça seu trabalho a um objeto; o psicólogo, a um sujeito. Muito curioso notarmos que, em muitas
instituições públicas e privadas no Brasil, o psicólogo é nomeado como “técnico”. Importante problematizarmos a representação desse significante para o psicólogo. 10 O Movimento Institucionalista vem mostrar que “os coletivos têm perdido, têm alienado o saber acerca de sua própria vida, o saber acerca de suas reais necessidades, de seus desejos, de suas demandas, de suas limitações e das causas que determinam estas necessidades e estas limitações.” (BAREMBLITT, 2002, p.17) Referências ABDALA, Vitor. Projeto de mediação de conflitos da ONU será implantado em três cidades brasileiras. 26/10/2009. Disponível em: < http:// memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2009-10-26/projeto-de-mediacaode-conflitos-da-onu-sera-implantado-em-tres-cidades-brasileiras >. Acesso em: 08 jan. 2015. ALVAREZ, J.; PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. da (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. ARANTES, E. M. M. Pensando a psicologia aplicada à justiça. In: BRANDÃO, E. P.; GONÇALVES, H. S. (Orgs.) Psicologia jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: NAU, 2011. p. 11-42. ARENDT, H. A condição humana. Tradução: Roberto Raposo. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BAREMBLITT, G. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e prática. Belo Horizonte: Instituto Felix Guattari, 2002. BRANDÃO, E. P. A interlocução com o Direito à luz das práticas psicológicas em Varas de Família. In: BRANDÃO, E. P.; GONÇALVES, H. S. (Orgs.) Psicologia jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: NAU, 2014. BRANDÃO, R. A judicialização da política: teorias, condições e o caso brasileiro. RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 263, 2013. BRASIL. Código de Processo Civil (CPC). Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Brasília, 2015. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil03/ Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm >. Acesso em: 24 mar. 2015. _. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990.Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Presidência da República. Brasília, 1990. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil03/Leis/ L8069.htm >. Acesso em: 24 mar. 2015. _. Lei complementar nº 80. Brasília, 1994. Disponível em: < http:// www.planalto.gov.br/ccivil03/leis/LCP/Lcp80.htm >. Acesso em: 24 mar. 2015.
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Os amantes se amam cruelmente e com se amarem tanto não se veem. Um se beija no outro, refletido. Dois amantes que são? Dois inimigos. (DRUMMOND DE ANDRADE, 1973) Esse belíssimo poema nos incita a refletir sobre um potencial efeito desagregador presente nos relacionamentos – ao contrário de união e apaziguamento, tal efeito pode nos remeter a uma crise, já que o deparar-se com um “outro” pode implicar o encontro / confronto com a diferença e o novo. Na hipótese do encontro efetivamente acontecer, podem ser questionadas certezas já construídas, trazendo à baila inquietações e angústias sobre concepções tão estruturantes quanto a própria identidade de si e do outro. O direito, conhecimento tradicional e secular sobre o comportamento social e os seus regramentos e sentidos, lança-se por seu próprio traço constitutivo a encontros diversos. De que ordem serão eles é questão a ser investigada, sendo possível, em princípio, afirmar que existe no direito uma “vocação para relação”, na medida em que o direito de um sujeito encontra forçosamente limite no direito de outro. Interessante que à ciência jurídica também se recorra no rompimento de alianças, sejam elas conjugais, comerciais ou até diplomáticas, aparentemente na contramão do aspecto relacional assinalado anteriormente. Ao postular voluntariamente uma ação judicial, o sujeito humano demarca o retraimento de sua capacidade decisória, já que, abandonando, ainda que provisoriamente, sua autoria na relação que leva ao arbítrio do julgador, submete-se ao poder decisório de um terceiro – no caso, o magistrado. Também não são desprezíveis as relações que se constituem no próprio Poder Judiciário, quando expertises alheias ao direito são chamadas a atuar como auxiliares do Juízo, seja na função de assistentes técnicos contratados pelas partes nos processos, seja na de peritos nomeados pelos juízes. Em meio às redes de alianças e rupturas que chegam à cena jurídica, podemos lembrar que diversos autores ¹ discutem sobre a aproximação política ou teórica de seu campo com o poder dominante (na perpetuação do status quo) ou a aliança com potenciais linhas de fuga, expressando uma chance de ruptura com o establishment. O direito pode tanto produzir discursos de aproximação com a estrutura hegemônica, consolidando por meio das normas jurídicas modelos de sujeição aos interesses em voga, como também pode se aliar a práticas que escapem aos dizeres hegemônicos, no reconhecimento das múltiplas realidades sociais, culturais e subjetivas que estão sempre em constante transformação. Na primeira hipótese verificamos que, historicamente, o direito, além de justificar o poder na constituição das sociedades modernas, identificou-se
com ele, na “mistura” entre legalidade, soberania e legitimidade. Segundo Foucault (2005, p. 30-31): Desde a Idade Média a elaboração do pensamento jurídico se fez essencialmente em torno do poder régio [...]. O papel essencial da teoria do direito [...] é fixar a legitimidade do poder: o problema maior, central, em torno do qual se organiza toda a teoria do direito é o problema da soberania. Dizer o problema central do direito nas sociedades ocidentais significa dizer que o discurso e a técnica do direito tiveram essencialmente como função dissolver, no interior do poder, o fato da dominação, para fazer que aparecessem no lugar dessa dominação, que se queria reduzir ou mascarar, duas coisas: de um lado, os direitos legítimos da soberania, do outro, a obrigação legal da obediência. Por outro aspecto, ao longo do tempo, a relação entre direito e produção de saberes também vem se configurando como essencial, apresentando-se como um discurso extremamente potente para produzir e fazer proliferar outros saberes teóricos desde o século XIX. Assim, alguns autores aproximam, por exemplo, as primeiras pesquisas em psicologia (ainda no século XIX) às demandas e aos questionamentos jurídicos, considerando que, naquela época, a validade do testemunho judicial se constituía como campo importante para o direito, o qual demandava a produção de um saber específico sobre a subjetividade que pudesse dizer sobre o “testemunho”, a “anormalidade”, o “criminoso”. Interessante refletir sobre a história dessa relação inicial entre direito e psicologia, pois hoje assistimos, de forma preocupante, a judicialização das relações sociais, na submissão das ciências humanas ao discurso jurídico. A mídia, em aliança potente com os discursos jurídicos hegemônicos, vem reproduzindo a supremacia do direito sobre os demais campos de conhecimento, por meio da despotencialização política dos outros discursos, na expressão de interesses próprios da ideologia neoliberalista. O sistema de direito e o campo judiciário são o veículo permanente de relações de dominação, de técnicas de sujeição polimorfas. O direito, é preciso examiná-lo, creio eu, não sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática. Logo a questão [...] é curto-circuitar ou evitar esse problema, central para o direito, da soberania e da obediência dos indivíduos submetidos a essa soberania, e fazer com que apareça, no lugar da soberania e da obediência, o problema da dominação e da sujeição. (ibidem, p. 32) Em O nascimento da biopolítica, Foucault (2008, p. 213) adverte que o neoliberalismo se caracterizaria principalmente pela “forma-empresa” que se multiplicaria, generalizaria e difundiria infinitamente, implicando, no extremo, a contratualização de qualquer interação social. Nessa perspectiva, a difusão do formato de contrato nos encontros sociais exigiria reguladores especializados para resolver as contendas e divergências entre as partes contratantes. Assim, o Judiciário é alçado à protagonista principal desta mediação, inclusive, por meio da capilarização de suas práticas sob a forma de mecanismos como mediação, conciliação e arbitragem. “Sociedade
indexada à empresa e sociedade enquadrada por uma multiplicidade de instituições judiciárias são as duas faces de um mesmo fenômeno.” (ibidem, p. 204) Cabe questionar, em meio à hegemonia do capitalismo neoliberal globalizado: como a psicologia pode apontar outros caminhos nas práticas contratualistas e judicializantes? Talvez pelo conhecimento de sua própria história no Poder Judiciário fluminense. Trajetórias construídas pelos psicólogos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro A criação do cargo de psicólogo no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ/RJ) e a nomeação dos primeiros “psis” para início do exercício profissional em fevereiro de 1999 explicita uma importante trajetória de lutas e agenciamentos ético-políticos na conflituosa seara jurídica. Naquele momento, o TJ/RJ mostrava-se particularmente receptivo ao ingresso desses profissionais em Varas de Família, nas Varas de Infância e Juventude (VIJ) ² e na Vara de Execuções Penais (VEP) (não casualmente essas Varas já possuíam leis que mencionavam a importância da expertise psicológica nos processos – como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente, que expressamente institui a necessidade de que cada Vara de Infância tenha equipe interprofissional). Ademais, igualmente repercutiam junto ao Tribunal de Justiça os resultados advindos do trabalho desenvolvido pelo Núcleo de Psicologia da 2ª Vara da Infância e Juventude da capital, inaugurado em 1992, com psicólogos em “desvio da função” para os cargos para os quais haviam prestado concurso no TJ/RJ (como comissários da infância, técnicos e analistas judiciários). Também naquele período, diversos eventos haviam sido realizados na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), em parceria com o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro e o curso de Especialização em Psicologia Jurídica da UERJ (primeiro curso sobre o tema no estado). É importante destacar que, após o concurso, o cotidiano laboral dos psicólogos do Judiciário vem consistindo majoritariamente na escuta das histórias das pessoas que são partes nos processos das diversas Varas em que os psicólogos foram lotados (CPMA, VIJI, VEP, Varas de Família e, mais recentemente, ETIC). Essas histórias subjetivas, narradas aos psicólogos, por sua vez, não estão dissociadas do contexto histórico, social e político no qual estão imersas… Nas Centrais de Pena e Medidas Alternativas (CPMA), o trabalho dos psicólogos se relaciona à escuta e elaboração de estudos com os autores de crimes que tenham sido submetidos a medidas alternativas como sanção pelos atos praticados. Nas Varas da Infância, da Juventude e do Idoso (VIJI), as demandas processuais mais recorrentes são de acolhimento institucional, habilitação para adoção, adoção, auto de infração de ato infracional. Na Vara de Execuções Penais (VEP), é avaliado o comportamento dos indivíduos submetidos a penas privativas de liberdade pelo sistema penal. Nas Varas de Família, as demandas mais recorrentes são de pedidos de guarda ou visitação de crianças em função de conflitos derivados do fim da relação conjugal.
As Equipes Técnicas Interdisciplinares (ETIC) refletem uma escolha política do TJ/RJ que, em 2009, retirou a lotação original ³ dos psicólogos que atuavam em Varas de Família ou em Varas Únicas no interior do estado, sob alegação de necessidade de multiplicação da força laborativa dos profissionais, inserindo-os em uma rotina de trabalho regional. Ou seja, diversamente do que ocorria antes, quando os psicólogos trabalhavam em uma única Vara, os profissionais submetidos à rotina das ETIC passaram a atender todas as Varas de sua região – o que na prática significa dizer que alguns profissionais trabalham em diversas cidades diferentes, atendendo a todas as Varas dessas localidades (destaque-se que algumas ETIC atendem até 13 comarcas, o que inviabiliza qualquer trabalho de qualidade). Muito embora a intenção original do TJ/RJ tenha sido no sentido de alocar também as equipes técnicas das VIJI nas ETIC, a lei especial em vigor, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), expressamente vetou esse desejo, já que determina que exista equipe técnica lotada especificamente nas VIJI, bem como também assim indica a Resolução n. 2 de 2006 do Conselho Nacional de Justiça para todo o território brasileiro. Apesar do campo psicológico se caracterizar predominantemente pela escuta de histórias e enredos subjetivos que são narrados pelo sujeito, a atenção ao processo histórico e social é pouco visível no campo de nossas práticas, sendo pouco problematizados pelos psicólogos os fenômenos sociais que contornam e, várias vezes, produzem as demandas que chegam ao Judiciário. ⁴ Psicologia e práticas sociais dirigidas à infância Como já mencionado, a entrada dos psicólogos no TJ/RJ deveu-se também ao reconhecimento legal trazido pelo ECA acerca da importância do olhar psi nos processos que tramitam em Varas de Infância e Juventude. De fato, podemos considerar que as intervenções frente a este público-alvo não são recentes, sendo detectáveis desde a promulgação do primeiro Código de Menores que vigorou em nosso país, em 1927. As primeiras referências à utilização do discurso “psi” na sociedade brasileira datam das primeiras décadas do século XX, pouco após a promulgação do Código de Menores de 1927, na corrente de preocupações com o destino que deveria ser dado à “infância desadaptada” e às “crianças difíceis”. A partir de então, os instrumentos de avaliação e diagnóstico psicológicos foram sendo paulatinamente incorporados pelas instituições de abrigo e / ou correção de menores, a despeito da própria profissão de psicólogo não ser ainda reconhecida à época. (SANTOS, 2011) Sabemos que as demandas amplamente dirigidas à psicologia desde o início do século XIX sobre crianças e adolescentes pauperizados, sob a égide das então existentes Varas de Menores, circunscrevia como responsabilidade individual daqueles atores as dificuldades pelas quais passavam. Dessa forma, muitos ditos “menores” foram classificados pelos saberes psi como “difíceis” e “inadaptados”, de forma a justificar sua colocação ou permanência em instituições totais. Não podemos esquecer que as primeiras discussões sobre a promulgação de uma lei especial para crianças e adolescentes pobres (então nomeados como
“menores”) remontam ao fim do século XIX, pouco após a abolição da escravatura, e expressavam os temores das classes dominantes dos potenciais riscos que o significativo contingente populacional de ex-escravos poderia representar socialmente. Naquele contexto, em meio ao surgimento e consolidação do capitalismo na Primeira República Brasileira, foram forjados, como estratégia de controle, dois importantes instrumentos de contenção e controle das classes pobres, massivamente constituídas por descendentes de ex-escravos: as grandes instituições que funcionavam como “depósitos de menores” e o aparato escolar brasileiro. Por meio do primeiro dispositivo, assistimos à retirada das ruas dos “indesejáveis” para o estado, como, por exemplo, os ditos “menores”, sendo também, por extensão, exercido importante controle sobre suas famílias. Graças às escolas, com a valorização das disciplinas de “moral e cívica” (importante aliada na edificação do reconhecimento do Estado como referência máxima, bem como do relevo, demarcação e valorização dos papeis familiares – pai, mãe e filho – ou ainda na difusão da “necessária” submissão do gênero feminino ao masculino) e “educação física” (disciplina útil para submissão e controle do corpo às rotinas valiosas para o incipiente capitalismo brasileiro, como as rotinas laborativas, escolares, militares, etc.), diversas gerações aprenderam a se relacionar, trabalhar, consumir, etc. Sabemos ainda que esses processos históricos incidiram hegemonicamente sobre a população infanto-juvenil pauperizada durante a égide dos dois Códigos de Menores (1927 e 1979) que vigoraram em nosso país. Em contrapartida, outras composições de força permitiram a produção normativa do Estatuto da Criança e do Adolescente (em 1990), como as críticas e oposições de diversos atores sociais, como, por exemplo, movimentos mais progressistas da Igreja Católica (como a Pastoral do Menor), o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, ou ainda de alguns juristas que denunciavam o teor excludente e segregador das leis menoristas. Entretanto, apesar do inegável ineditismo da lei especial hoje em vigor (ECA, Lei 8.069/90), significativos impasses são identificados com relação às políticas dirigidas à infância e adolescência no Brasil – dentre os quais, especialmente, destacamos as duas estratégias já mencionadas: a “política de acolhimento” dos “depósitos de menores” e o aparato escolar brasileiro. Identificamos que, desde a promulgação do Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, em 2006, diversas instituições de acolhimento fecharam suas portas, encerrando suas atividades. Consideramos que esse fenômeno se justifica principalmente por duas razões: a maior exigência feita pelo Ministério Público sobre o adequado funcionamento dessas instituições mas, principalmente, a desvalorização ideológica do modelo de acolhimento tradicional. A baixa qualidade de muitos serviços de acolhimento institucional que atuaram como “meros depósitos’ ao longo do século XX cedeu lugar ao investimento no modelo de acolhimento familiar, considerado supostamente como mais singularizado. De fato, avaliamos que
a última década pode ser evocada como um período de desmonte expressivo das políticas de acolhimento tradicional dirigidas às crianças e adolescentes, ao menos no estado do Rio de Janeiro. Com relação a esse fato, é importante fazer algumas ponderações, pois, muito embora a modalidade de acolhimento familiar seja evocada como alternativa mais eficiente e adequada à rede de instituições tradicionais, o fato é que, enquanto as “famílias acolhedoras” se mostram mais receptivas ao recebimento de crianças pequenas, o mesmo não ocorre com adolescentes, mormente do sexo masculino, que, diante da inexistência de espaços de acolhimento, muitas vezes permanecem nas ruas, onde se tornam alvos mais vulneráveis das políticas de extermínio – práticas muitas vezes invisíveis ao Estado – ou onde se aliam à baixa criminalidade, praticando ilícitos de toda a sorte (dinâmica esta fartamente alardeada pela mídia). Além disso, vem sendo considerado por diversos atores sociais que a mera inserção de crianças no programa de acolhimento familiar já garante o direito à convivência em família, e que a permanência e circulação entre diversas “famílias acolhedoras”, que também são modalidades de acolhimento previstas na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais – Resolução 109 do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), invisibiliza o fato de que muitas crianças estão crescendo em lares acolhedores sem que sua situação jurídica seja definida (seja para retorno à família biológica, seja para sua inserção em famílias substitutas). Frente ao exposto, consideramos que o desmantelamento das políticas de acolhimento representa grave violação dos cuidados desses meninos, já que esta modalidade de atendimento é ainda bastante necessária para tal população. Como chave de compreensão da dinâmica atual, podemos analisar comparativamente o que houve no passado, entendendo que o investimento na política de acolhimento tradicional se revelou particularmente importante para um Estado que buscava se fortalecer por meio de um aparato institucional mais sólido e estruturado, como foi o caso da Primeira República Brasileira. Atualmente, assistimos à despotencialização do Estado como referência primária, ao mesmo tempo em que o mercado desponta como paradigma de comando. Assim, nos ditames e interesses da globalização econômica e do capitalismo transnacional, as políticas de saúde, educação e trabalho passam a ser consideradas como responsabilidade de cada “sujeitoempreendedor” – que deverá se qualificar para conseguir êxito no competitivo mercado de trabalho, precisará se exercitar e alimentar adequadamente para prevenir doenças que diminuam sua capacidade laborativa, necessitará assumir os ônus de pagar planos de previdência privada e planos de saúde particulares de forma a não onerar os cofres públicos com gastos previdenciários e de saúde... No contexto das novas pressões do capitalismo neoliberal, financeiro e globalizado, o Estado, que durante as primeiras décadas do século XX se caracterizou pelas políticas de bem-estar social (na saúde, trabalho e educação), assume notadamente feições de caráter penal e policial.
A análise comparada da evolução da penalidade nos países avançados durante a década [de 1970] evidencia, de um lado, um estreito laço entre a escalada do neoliberalismo como projeto ideológico e a prática de governo que determina a submissão ao ‘livre-mercado’ e a celebração da ‘responsabilidade individual’ em todos os domínios e, do outro, o desenvolvimento de políticas de segurança ativas e punitivas, centradas na delinquência de rua e nas categorias situadas nas fissuras e nas margens da nova ordem econômica e moral que se estabelece sob o império conjunto do capital financeiro e do assalariamento flexível. (WACQUANT, 2007, p. 25) Sobre a estratégia da política escolar, temos um fenômeno social particularmente significativo para a infância, desenvolvido há cerca de vinte anos no Brasil: o projeto de aprovação automática nas escolas pelos gestores do sistema educacional brasileiro. Essa prática, derivada de interesses políticos relacionados a acordos internacionais durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, busca apresentar elevação dos índices de aprovação entre os escolares brasileiros, segundo indicadores mundiais, com vistas à subvenção econômica e recebimento de capital estrangeiro (KOPEZKY, 2012). Entretanto, apesar do pactuado pelo Estado brasileiro, a maior aprovação entre os estudantes não ocorreu devido à melhoria da qualidade de ensino, e a aprovação automática se revelou estratégia potente para “maquiar” os dados indicativos de suposto aumento na qualidade, por meio do maior percentual de progressão escolar. A aprovação automática foi um processo de desincentivo para muitos alunos, que permanecem durante anos nos bancos escolares (mobilizados principalmente pelo pagamento das políticas de transferência de renda, como o programa Bolsa Família), mas sem conseguir aprender, sequer a ler fluentemente. Para estes estudantes, a educação formal acaba sendo identificada como um processo ilógico e que não produz efetivamente nenhuma transformação positiva para os que a ela se submetem. (MACHADO, 2013) Se em épocas de capitalismo globalizado a educação é cada vez mais considerada como responsabilidade do indivíduo, que deve competir para ingressar no mercado de trabalho, por sua vez, a desoneração do Estado do processo educacional, revelada através da oferta de educação de péssima qualidade, tem consequências sérias para o campo social. Logo, devemos considerar que populações subescolarizadas terão enorme dificuldade para ingressar no mercado de trabalho. (VERGILIO, 2009) Segundo Machado (2013, p. 3), os novos processos pedagógicos trazidos pela organização escolar em ciclos se aproximam sobremaneira dos processos industriais toyotistas em ascensão, pois ambos estimulam a competitividade e a individualidade extremada, valorizando que o empregado e o aluno assumam “multitarefas.” ⁵ Essas dinâmicas se articulam a um projeto político e econômico específico, “pois a empregabilidade desejada pelo neoliberalismo não necessita de competência técnico-profissional, mas de ‘competências sociais’, especialmente para o desemprego estrutural.” ⁶ (ibidem, p. 5) A que se aliam as práticas da psicologia em Varas de Infância?
Vamos recordar de uma situação emblemática oriunda de um processo que acompanhamos em 2013, numa VIJI do estado do Rio de Janeiro, onde a municipalidade implementou um projeto de aprovação automática desde 1998 (agora nomeado como “não retenção de ciclos”). A situação consistia, em resumo, na denúncia feita pelo Conselho Tutelar local de privação de uma adolescente à rede escolar, posto que a mesma jamais havia sido inserida por sua família no sistema de ensino, sendo absolutamente analfabeta. Frente ao descumprimento do dever educacional, o juiz realizou audiência de admoestação com os responsáveis, determinando imediata matrícula da jovem na rede pública municipal de educação. Diante da determinação judicial, a Secretaria Municipal de Educação procedeu rapidamente à matrícula da adolescente no 5º ano do ensino fundamental (apesar dela ser analfabeta), alegando que este seria o nível de escolarização mais próximo do esperado para a sua idade. Em intervenções com a adolescente, alguns meses depois, ela nos apresentou seu caderno escolar, repleto de anotações – entretanto, ao lhe perguntarmos o que estava escrito, ela nos confessou, entre lágrimas, que não compreendia o significado das palavras que grafara no papel, limitando-se a copiar do quadro, ou seja, desenhando no papel o que a professora ordenara... No atendimento a casos semelhantes, pudemos observar os efeitos psicológicos que essa política desenvolve: baixa autoestima (pois o estudante atribui a si a incapacidade de não conseguir aprender, não sendo capaz de inferir que seu não aprendizado é decorrente de uma má gestão educacional), desinteresse pela educação (pois ele não consegue identificar positivamente um processo no qual nada faz sentido devido ao não aprendizado, mesmo após anos de frequência na rede) e evasão escolar (mesmo diante das pressões de permanência em sala de aula produzidas pelas políticas de transferência de renda), dentre outros. No caso em questão, o estudo psicológico que produzimos para o processo foi contundente sobre os efeitos deletérios que a política educacional estava produzindo sobre a jovem. Desindividualizamos a responsabilidade pela problemática, vinculando-a às políticas educacionais vigentes. Em meio às intervenções com a família, buscamos potencializar os pais a exigirem o cumprimento efetivo do direito à educação de qualidade para a adolescente, questionando junto à escola o projeto pedagógico em desenvolvimento com ela (muito embora, como já exposto, essa família não vislumbrasse sentido no processo de escolarização, tendo se desresponsabilizado, durante anos, por matricular a menina na rede escolar). A própria recusa da família já pode ser expressão da desvalorização social do processo educacional, não percebido como algo potente e transformador, mas identificado como algo que não produz nenhum efeito positivo sobre os que a ele se submetem. Por outro aspecto, na análise da mesma problemática, verifica-se que os profissionais submetidos à atual política educacional revelam extremo desgaste, pois participam da exaustiva rotina de aulas em várias turmas, sendo mal remunerados pelo trabalho que exercem (de forma gritante no estado do Rio de Janeiro, o piso regional, por exemplo, da categoria das empregadas domésticas, foi muito superior durante anos ao do professor, sendo que, apenas no ano de 2014, o piso dos professores se aproximou do daquelas profissionais, apesar de continuar inferior). Além disso, os
professores são pressionados pela gestão escolar a aprovar os alunos que não adquiriram as mínimas competências exigidas durante o ano letivo e têm que administrar turmas que não enxergam razão para estudar. Como os alunos, grande parte do corpo docente se sente desmotivado, desvalorizado e não identifica sentido no que está fazendo. Nesse viés, consideramos que o trabalho do psicólogo em Varas da Infância pode ser um instrumento valioso de diagnóstico da qualidade das políticas sociais, pois, além dos estudos psicológicos que podem colocar em análise os efeitos de determinadas intervenções sobre as subjetividades humanas, sua participação pode ecoar nas diretrizes governamentais. Por exemplo, o estudo psicológico pode suscitar questionamentos sobre o encaminhamento para adoção de filhos de mães usuárias de drogas em situação de rua, sem que políticas de assistência social e saúde sejam criadas para este públicoalvo. Nesse sentido, interlocuções potentes podem ser realizadas sobre a importância de espaços onde mãe e bebê possam ser acolhidos conjuntamente ou sobre a extensão e qualidade da rede terapêutica dirigida a essas pessoas (consultório de rua, ambulatório e internação). Dessa forma, é pensado o próprio sistema de atendimento à criança e sua família, sem individualizar restritivamente uma problemática que tem largo alcance social. De fato, trabalhamos com diversas urgências: o direito da mãe de ser reconhecida como cidadã e ser referida a políticas de qualidade, o direito do bebê de ser protegido e cuidado, o direito das pessoas de viverem em uma sociedade mais digna, justa e igualitária – como proposto, aliás, pelo próprio texto constitucional. Na crença de que podemos nos aliar como profissionais a práticas psicológicas de encontro e afirmação da vida e da potência do humano, finalizamos com as palavras de Jurandir Freire Costa (1994, p. 83): Certas ideias, disse uma vez Borges, nascem doces e envelhecem ferozes. Outras, diria, já são ferozes ao nascer. Ensinar e fazer crer aos homens que eles nada mais são do que seres de aquisição, consumo, fabricação e competição tem um preço. [...] É amedrontador constatar a ausência de uma instância normativa capaz de impor ideais éticos consensualmente aceitos. A violência tomou o lugar da persuasão e da solidariedade. O interesse particular sobrepôs-se ao interesse público, mostrando que, sem uma ética do bem comum, nenhuma moral privativa pode construir um mundo humano para todos. 1 Cf. Foucault, 2005; Zaffaroni e Batista, 2003; Cerqueira Filho, 2002. 2 Naquele momento as Varas de Infância e Juventude (VIJ) ainda não possuíam a atribuição de intervenção em processos de idosos, incorporada em 2007 àquelas Varas que passaram a ser nomeadas como VIJI (Vara de Infância, Juventude e Idoso). 3 A definição do local de trabalho em varas específicas impera como regra para quase todos os cargos funcionais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (juízes, analistas judiciários sem especialidade e técnicos judiciários). Destaque-se, inclusive, que se os juízes acumularem mais de
uma vara fazem jus à gratificação em função dessa sobrecarga de trabalho. Entretanto, na incorporação da ótica do sucateamento do trabalho e da exploração da força de trabalho, o TJ/RJ introduziu a rotina das ETIC (Equipes técnicas Interdisciplinares Cíveis) para psicólogos e assistentes sociais e as Centrais Únicas de Mandados para oficiais de justiça, de forma a que estes profissionais tenham que atender a demanda de diversas varas, inclusive em comarcas muito distantes entre si. 4 A mim, particularmente, interessam muito as mudanças no Sistema de Garantias de Direito envolvendo a população alvo das ações que tramitam em Varas da Infância, da Juventude e do Idoso (a atribuição do “Idoso” foi inserida na competência das Varas de Infância e Juventude em 2007), posto que atuo há dezesseis anos, desde meu ingresso no TJ/RJ, em Varas de Infância e Juventude. Considero ainda essencial desenvolvermos maior consciência das práticas e alianças realizadas pela psicologia no passado para melhor pensarmos o presente. 5 Segundo Machado, a escola seriada tradicional atendeu exemplarmente às demandas da divisão social do trabalho e do desenvolvimento das forças capitalistas típicas da produção manufatureira fordista, pois a fragmentação curricular e a separação do conhecimento em disciplinas isoladas atuavam como treinos para a produção padronizada e fragmentada daquele modelo industrial. Atualmente, todavia, as transformações toyotistas no mundo do trabalho exigem que os indivíduos sejam preparados para a real possibilidade de desemprego estrutural. Na pedagogia escolar em ciclos se visa educar não para o emprego, como no auge da tecnologia fordista, mas para a “empregabilidade”, no desenvolvimento de habilidades de adaptação para mudanças, de trabalho em equipe, de comunicação criativa e de capacidade de empreender individualmente. 6 Algumas teorias psicológicas vêm legitimando a eliminação de multidões do mercado de trabalho, por meio da atribuição a cada indivíduo de responsabilidades que possuem causas históricas, sociais e econômicas, naquilo que Guareschi (2011) nomeia como “individualização do social e endeusamento do individual”. Para o autor, “a modernidade confinou-nos em uma ética individualista, uma microética que nos impede de pedir, ou sequer pensar, responsabilidades globais, como a exclusão de milhões.” (ibidem, p. 152) Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião (10 livros de poesia). Rio de Janeiro: José Olympio,1973. CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Sobre a intolerância. In: Discursos Sediciosos, n. 12. Rio de Janeiro: Revan, 2002. COSTA, Jurandir Freire. A ética e o espelho da cultura. Rio de janeiro: Rocco, 1994. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
__. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1988. __. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GUARESCHI, Pedrinho A. Pressupostos psicossociais da exclusão: competitividade e culpabilização. In: As artimanhas da exclusão. Petrópolis: Vozes, 2011. KOPEZKY, Waldyr. A origem da progressão continuada. 2012. Disponível em: < http://jornalggn.com.br/blog/luisnassif/a-origem-da-progressao-continuada >. Acesso em: 25 mar. 2015. MACHADO, Vagno Emygdio. Progressão continuada como promoção automática. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 49, p. 322-333, mar 2013. Disponível em: < https://www.fe.unicamp.br/revistas/ged/histedbr/ article/viewFile/5353/4276 >. Acesso em: 25 mar. 2015. SANTOS, Érika Piedade da Silva. Desconstruindo a menoridade: a psicologia e a construção da categoria “menor”. In: BRANDÃO, E. P.; SIGNORINI, H. (Orgs.) Psicologia jurídica no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: NAU, 2011. VERGILIO, Soraya Sampaio. Elevando a tensão geral: o aumento da escolaridade de adolescentes autores de atos infracionais em medida de internação provisória no Estado do Rio de Janeiro. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2009. WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Revan, 2007. ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003. Um lugar de palavra para adolescentes em situações de violência Paula Mancini C. M. Ribeiro Para abordar alguns pontos da clínica, hoje, com adolescentes em situações de violência doméstica e / ou risco social, faz-se necessário iniciar apresentando o trabalho do Núcleo de Atenção à Violência – NAV ¹ . O Núcleo de Atenção à Violência O NAV é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) que, desde 1996, atua oferecendo atendimento psicoterapêutico, orientado pela psicanálise, a crianças, adolescentes e autores de agressão em situações de violência. Além do atendimento e do acompanhamento dos pais dessas crianças e adolescentes, também oferece capacitação para profissionais das redes de saúde, educação, assistência social e de conselhos tutelares. No NAV trabalhamos inseridos em uma rede que ajudamos a construir e sustentar em torno de cada caso. Os casos podem chegar das formas mais variadas, encaminhados por profissionais de conselhos tutelares, abrigos,
pela Vara da Infância e Juventude, escolas e postos de saúde. Mas, chegando ao NAV, o tratamento propriamente dito tem suas condições particulares e sua função, sendo totalmente diferente de uma medida socioeducativa. O trabalho começou na década do Estatuto da Criança e do Adolescente, quando se enfatizava – com o novo paradigma da proteção integral – a criança e o adolescente como sujeitos de direitos. O NAV abria um lugar de atendimento desvinculado da instância jurídica ou do atendimento médico, que se propunha a receber e escutar de outro modo os envolvidos. Escutar o que é conflituoso, doloroso, o que cada um pudesse dizer, mesmo que não fosse possível compreender. Desde o começo do trabalho, a decisão de abrir um lugar de escuta para a criança, para o adolescente, para seus familiares e / ou pessoas de referência e também para os autores de agressão não dependia da confirmação da violência, mas do modo como a situação estivesse desorganizando e impedindo a vida de cada um. Víamos, inclusive, que a simples suspeita podia trazer graves consequências para os envolvidos. E o fato do trabalho não ser investigativo abria espaço para que outras coisas surgissem. O ato de falar pode desencadear um questionamento sobre a ocorrência da situação e as implicações na vida de cada um, assim como sobre a responsabilidade de cada sujeito em relação a ela. Desde então, tem sido surpreendente constatar o que pode acontecer e se desdobrar quando cada um que chega se sente escutado. O contexto hoje Da década de 1990 até hoje, muita coisa mudou, e podemos dizer que vivemos em um mundo que cada vez menos dá lugar à palavra. Um mundo cada vez mais automatizado, objetivado, positivado, banalizado, superficial, menos humano. Um mundo onde as famílias têm mais dificuldades de sustentar, com suas crianças, um lugar de referência. Um mundo onde os adolescentes estão perdidos, à deriva, cada vez mais cedo envolvidos em situações de conflito com a lei, consumindo drogas e em situações de rua. Um mundo onde a transmissão da lei vem enfraquecendo e onde inúmeras situações que antes eram resolvidas no âmbito familiar, privado (devido à presença de uma relação com os responsáveis em que a autoridade da palavra funcionava), vão parar na instância jurídica, por precisarem de algum outro para mediar o que não vai bem, o que não está funcionando. Hoje vemos como em inúmeras ocasiões não vale o que está instituído, pactuado, mas o que está sendo vigiado, controlado. É nesse contexto em que a lei e a palavra se encontram enfraquecidas que estamos inseridos, imersos, vivendo. E em situações de violência doméstica vemos o agravamento disso, vemos o esgarçamento ou anulação do valor da palavra e da lei. E, nesse caso, com um agravante: a violência está acontecendo com uma criança ou adolescente que ainda está formando sua subjetividade. Quando um pai ou uma mãe passam ao ato violento (pode ser uma violência física, sexual ou psicológica – não vamos entrar aqui nas diferenças entre elas), a palavra não está funcionando; ou quando se demitem (de suas funções simbólicas) e estamos diante de situações graves de negligência e abandono, a palavra pode nem ter entrado em funcionamento.
Mas é pela palavra que damos lugar às coisas e aos lugares que cada um ocupa na família e no mundo. É com a palavra dirigida à criança que ela entra no registro próprio do humano, marcado pela falha inerente à estrutura da linguagem. E aí começam a se esboçar as respostas que ela vai dirigir a quem cuida dela. Assim como os sentimentos vão ganhando existência, os lugares vão se marcando, delimitando-se. O lugar de quem cuida, o lugar de quem dá os limites, etc. Enfim, numa situação de violência doméstica os responsáveis estão com dificuldades de ocupar seus lugares de cuidados e de transmissão dos limites necessários para uma criança se estruturar, encontrar um lugar no mundo e se relacionar com os outros. Nesses casos, é de quem a criança esperaria essa transmissão que vem o ato violento, de transgressão de um pacto, que ao invés de lhe dar um lugar de sujeito, a coloca em lugar de objeto – que pode ser objeto de satisfação ou de desprezo. A transmissão dos limites (que vem marcar que não há objeto que possa preencher a falha intrínseca à condição humana) depende da possibilidade de quem transmite viver essa impossibilidade de completude. Passa pelo que se faz, pelo testemunho, pelo que se vive. Se na infância a forma como a família ocupa seus lugares é relevante, na adolescência, os modos de relação constituídos até então se estendem para o social, que adquire novo peso. Ao falar de uma nova economia psíquica em seu livro O homem sem gravidade, Charles Melman marca que a decepção, em nossos dias, sempre aparece como um dolo. “Essa falta é doravante relegada a um puro acidente, a uma insuficiência momentânea, circunstancial, e é a imagem perfeita, outrora ideal, que é tornada realidade.” (MELMAN, 2002, p. 45-46) Desse modo, a falta constitutiva dos pais não é ratificada pelo social, o que pode dificultar muito que o adolescente possa assumi-la em seu nome na entrada da vida adulta. Vemos e convivemos com uma economia social que é a da permissividade, daí a dificuldade dos pais ou responsáveis de se autorizar, ocupar seus lugares e dar lugar a seus filhos, de pagar o preço do que está em jogo na transmissão da lei, pois eles próprios podem compartilhar, hoje, menos o interdito e mais o excesso. Nas palavras de Melman (2009, p. 380): Evidentemente, essa permissividade infiltra o meio familiar e, se até aqui a vida familiar era o campo de provas onde a criança era introduzida à lei, à regra e, em particular, a esse interdito de que eu falava, hoje em dia o que a criança, mas também seus pais, trazem para o meio familiar são, forçosamente, as incidências dessa permissividade social. Vemos nesse contexto que o aumento de situações que são remetidas à instância jurídica, em que se apela à lei positiva, é proporcional ao enfraquecimento do valor da lei simbólica, dessa lei que vale pelos valores que nos foram transmitidos, que não precisa estar escrita. É impressionante a diversidade de questões e dificuldades que hoje vão parar na justiça e não é só quem quer denunciar que procura o Conselho Tutelar, por exemplo, mas também quem quer se isentar de alguma responsabilidade ou se defender, sem acreditar que possa fazer algo ou sustentar na palavra qualquer coisa, como se tudo dependesse do aval positivo para valer.
Recentemente chegou ao NAV o caso de um adolescente, trazido pelos seus pais. O filho, de 15 anos, estava sendo acusado por vizinhos de ter abusado sexualmente de uma menina de cinco anos. Os vizinhos viram essa criança no colo do rapaz, na laje, e começaram a chamá-lo de “estuprador”. Os pais contam que, resolvendo se antecipar, foram ao Conselho Tutelar para dizer que o filho era inocente. E foi assim que se abriu um processo contra esse rapaz. Esta é uma situação que merece nossa atenção. O medo dos pais era de que os vizinhos resolvessem “fazer justiça com as próprias mãos”, mesmo tendo ouvido do filho e também da criança que nada havia acontecido. Não é sem consequências para esse adolescente que os próprios pais tenham feito o registro dessa situação. O que podemos destacar? Primeiramente, nem toda situação sexual que envolva um adolescente deve ser antecipadamente encarada como uma violência gravíssima a ser notificada, reparada ou punida. Não podemos equiparar uma situação entre adolescentes, nem mesmo algumas situações entre um adolescente e uma criança, a uma violência entre um adulto e uma criança ² . É fundamental que a temporalidade seja levada em conta, ou seja, em que momento de construção e acesso ao que é da ordem do sexual cada um se encontra. A presença da sexualidade em algumas brincadeiras entre crianças pode ser absolutamente compatível com seu momento de constituição, assim como algumas situações entre adolescentes. Já uma situação entre um adolescente e uma criança pode ter mais chance de portar algo de excessivo que a criança não esteja em condições de elaborar, mas isso também depende do modo como o adolescente vivenciou a situação. Então, vale atentar para as consequências advindas da indistinção desses momentos radicalmente diferentes, que podem ser vistas na atribuição de uma significação de grave violência a qualquer situação que envolva o sexual. Há alguns anos, uma situação sexual entre duas crianças ou mesmo entre um adolescente e uma criança era mais facilmente interrompida pela presença de um adulto, que ao considerar a situação excessiva ou inadequada, poderia dizer “Parem! Isso não pode acontecer”, e uma intervenção – fundamental nesses momentos distintos de estruturação – tinha seus efeitos. Nesse caso específico, a reação dos pais traz, talvez, o lado oposto a uma permissividade total, pois porta uma rigidez que, de forma diferente, também nos remete à falta de peso e valor dado à palavra. O modo como recorreram imediatamente a alguma instância que pudesse ajudá-los a se defender, fazendo em primeira mão o registro dessa denúncia, incluía um horror a qualquer coisa que remetesse ao sexual e era explícita uma negação absoluta em considerar qualquer hipótese de presença de um mínimo traço disso, que não fosse imediatamente condenável e que, por isso, não necessitasse de todo um aparato de defesa.
Estamos tratando aqui da clínica com adolescentes e, como dissemos, é nesse momento que o processo de acesso à sexualidade ganha nova força e traz especificidades que precisam ser levadas em conta nesses casos. “Adolescere” é brotar, crescer, fortificar-se, ultrapassar a idade de tutela. E esse ultrapassar que cabe ao adolescente se refere a um posicionamento relacionado à sua identidade sexual e sua possibilidade de vir a se exercer e se responsabilizar por seu desejo, que de certo modo porta sempre a transposição de um interdito. Então, em relação ao contexto atual, vale marcar que, se por um lado o apagamento das diferenças de lugares e a permissividade infiltram o meio familiar, banalizando situações violentas, por outro lado vemos situações banais sendo elevadas ao status de grave violência. Algumas observações da clínica Analisando alguns dados relativos aos adolescentes que temos em atendimento no NAV ³ , o exemplo mencionado demonstra uma das formas como um adolescente pode chegar para tratamento. Eles podem chegar por terem cometido algum ato violento ou por terem sofrido uma violência. No momento, pelo projeto Lugar de Palavra, dos 120 casos em atendimento, 44 são casos de adolescentes (dos quais apenas dois chegaram por suspeita de terem cometido uma violência sexual e 42 por terem vivido uma violência). Destes, a maioria envolve situações de abuso sexual (40%); depois, de violência psicológica (27%). A maioria dos adolescentes veio encaminhada por abrigos (38%) e por Conselhos Tutelares (33%); os outros 29% vieram encaminhados pela Vara da Infância, por Escolas Municipais ou pelo CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social. Vale dizer que 51% desses meninos estão acolhidos institucionalmente ou em família substituta, ou seja, não estão com seus pais ou responsáveis diretos. Esse dado lança luz a essas situações de violência psicológica e também sexual, que podem levar – por diversas e diferentes razões – a uma separação da família de origem. Se por um lado podemos dizer que tanto em uma situação de violência psicológica quanto em uma situação de violência sexual podemos ver os efeitos diretos da dificuldade dos pais ou responsáveis em ocuparem suas funções, de se fazerem presentes em uma dissimetria e se acreditarem fundamentais no desenvolvimento e estruturação de seus filhos, por outro lado existem especificidades que diferenciam tais situações e as consequências também são sempre singulares.
Muitos casos podem chegar com a marca de uma violência sexual, mas é importante dizer que a própria definição dessa violência abrange uma variedade de situações, que vão desde o ato sexual propriamente dito (com ou sem força física) até carícias e toques que podem ser acompanhados ou não de sedução. Situações que podem acontecer entre um adulto e uma criança, ou entre adolescentes e crianças. Também podem ser acontecimentos pontuais e casuais ou repetidos e premeditados. Em cada caso, o contexto tem suas particularidades, sendo fundamental escutar o que houve de violento, ou seja, o que houve de excessivo para cada um dos envolvidos. Faz diferença a relação com o autor da agressão, o modo como a situação aconteceu, a frequência, a diferença de idade, como os familiares e profissionais lidaram com a situação e, principalmente, o que cada um pode dizer do que viveu. Vamos trazer, então, alguns recortes de casos que ilustram o que são as condições de início de um tratamento e, ainda, a importância e especificidade, no tratamento do adolescente, de sua relação com a lei, com o outro / Outro ⁴ e com a palavra. Discutíamos na supervisão do NAV, outro dia, o caso de um adolescente de 17 anos trazido pelo Conselho Tutelar por ter sido acusado de ter abusado de dois irmãos menores. Esse rapaz, que vive em uma situação muito precária (não apenas social e economicamente, mas subjetivamente), não foi cuidado por sua mãe, e vive hoje com o avô paterno. Seu pai mora num mesmo terreno com uma mulher e muitos filhos, e há uns sete anos esse pai foi impedido pela Justiça de ter contato com uma filha de quem abusava sexualmente. O adolescente chegou a viver um tempo em abrigo, junto com essa irmã, depois de vir à tona o abuso que ela sofria. O rapaz chegou ao NAV agora, quase sete anos depois desse tempo em que esteve abrigado, encaminhado como autor de agressão, e isso não é sem consequências. Não é a mesma coisa um adolescente chegar encaminhado como aquele que passou por uma situação de violência, ou como aquele que é autor de uma violência, mesmo que seja uma suspeita. Não é sem consequências para ele, nem para as condições de início de um tratamento propriamente dito – que não tem nem uma visada punitiva nem educativa, e depende de um questionamento por parte do sujeito de alguma implicação com o que lhe acontece. Não é raro, em situações de violência, observarmos a presença de uma dicotomia estanque entre esses dois lugares, e é sempre um trabalho, do lado de quem escuta, desvincular o adolescente de um lugar fixo, muitas vezes já identificado ou como vítima ou como agressor. Apesar da enorme dificuldade do adolescente de falar, de se endereçar, observamos efeitos surpreendentes quando a pessoa que escuta pode acolher seu modo de chegar, a partir de uma posição “descolada” do fato violento que fez com que aquele menino fosse encaminhado. Nesse caso sobre o qual discutíamos, o adolescente, dentre as poucas coisas que conseguiu dizer, falou: “eu não fiz isso”. No tratamento, não está em jogo avaliarmos se aconteceu ou não, se ele é culpado ou inocente, se está dizendo a verdade ou mentindo. Então, como escutar essa frase? O que está em jogo no tratamento? Podemos dizer que se trata da abertura e sustentação de um lugar de palavra, de escuta do que
lhe for possível dizer (e que, seja o que for, porta uma verdade que não está sendo escondida, mas que poderá advir). Poderá advir a partir do que lhe for possível falar, refletir sobre suas questões, sua história, como um primeiro passo para que possa interrogar aquilo que o representa no mundo. Essa frase, “eu não fiz isso”, pode nos indicar, por exemplo, que algo não pôde ser simbolizado. A negação presente em sua fala pode mostrar que, subjetivamente, ele não estava lá, mesmo que a situação se confirme. De acordo com a descoberta freudiana, todos funcionamos com essa clivagem entre uma parte que funciona no campo das representações e outra que funciona em outro espaço, onde o desejo se exprime. E não é sem um trabalho subjetivo, sem uma possibilidade de acesso à articulação entre o simbólico e o real, que se acede à responsabilidade também pelo que se passa fora do campo das representações. Abrindo parênteses para trazer o que está em questão para qualquer adolescente, podemos dizer que o mesmo vive, na nossa cultura, uma discordância entre o estatuto biológico e o estatuto social e subjetivo ⁵ . Se biologicamente ele já se encontra maduro, às voltas com desejos sexuais, socialmente ele pode ainda não ter os meios de sustentar sua sobrevivência, e ser subestimado no que diz respeito ao seu reconhecimento enquanto alguém que pode se responsabilizar por sua implicação na vida sexual. Essa discordância pode levá-lo a produzir atos. Faz diferença se esses atos são lidos como endereçados a alguém, como pedidos de ajuda, ou se são lidos como atos sem transferência, ou seja, ações que mostram que, da parte do adolescente, não há mais nada a esperar de ninguém. Então, nos casos dos adolescentes que chegam encaminhados pela instância jurídica ou Conselhos Tutelares, o ponto de partida do trabalho clínico é outro. Desvinculando o espaço do atendimento de qualquer avaliação objetiva ou moral, faz-se necessária uma leitura do que se passou, que só se faz a partir da escuta do modo como o adolescente pode se endereçar no atendimento e do modo como se posiciona em relação a seu ato. Um tratamento, para começar, precisa partir da angústia que se desdobra em uma demanda do próprio sujeito. Enquanto o sujeito está ali se defendendo ou visando cumprir um encaminhamento, com o objetivo de mostrar um bom comportamento, não estão postas as condições para a sua palavra vir de outro lugar: lugar de implicação, de questão, de incômodo com o que está vivendo, e que possa portar algum pedido de ajuda. Nem sempre isso acontece, e quando isso não acontece, as entrevistas não vão adiante e o tratamento não se inicia. Mas, quando isso acontece, vemos, a posteriori, não apenas que esse tempo inicial foi decisivo na construção de um vínculo de confiança, mas também que, contando com esse lugar de endereçamento da palavra, o risco de marginalização a que o adolescente é levado por seus atos diminui. Os atos podem ganhar outra dimensão – a dimensão de um dizer – a partir do momento em que são recolhidos na transferência, ou seja, no laço com quem escuta. No atendimento, o que está em jogo é a possibilidade do sujeito falar sem a preocupação de saber ou entender o que está dizendo e se encontrar com a sua palavra, que possa nascer ali, e pela qual poderá vir a se responsabilizar.
Chamamos no NAV alguém que comete um ato violento (ou que é suspeito disso) de autor de agressão. Não chamamos de agressor porque não reduzimos a pessoa a seu ato, ela não se resume a isso. Isso é uma condição importante que pode favorecer que a pessoa fale do que está passando, do que a incomoda naquilo mesmo que pode ter feito. A responsabilização tem mais chance de acontecer se não estamos na dicotomia culpabilização versus vitimização. Dicotomia entre considerar aquele adolescente que comete um ato violento alguém que é um agressor, que não tem jeito, ou alguém que deve ser antecipadamente desculpado, alguém que, pelas condições em que vive e / ou pelo fato de ainda se encontrar em um tempo de estruturação da sua subjetividade, só precisa de assistência e cuidados. Além do mais, temos visto que, principalmente em casos de adolescentes, mesmo esse cuidado de não o nomear agressor e sim autor, separando-o de seu ato, poderia ser suspenso. Nesse caso, por exemplo, do rapaz que diz “eu não fiz isso”, a autoria dessa violência sexual em relação aos irmãos, mesmo que isso tenha acontecido, não é óbvia. O contexto em cada situação é sempre muito peculiar. Houve uma transgressão? A inscrição da lei se deu para esse rapaz? Podemos falar em transgressão se não tiver havido inscrição de uma lei? ⁶ Não é indiferente se houve ou não para um adolescente a inscrição da lei, se ele recebeu do pai (ou de alguém que exerça essa função) o ensinamento de que existem impossibilidades a que estamos todos submetidos, ou se isso não se deu e se ele desconhece totalmente isso que marca a nossa humanidade. Então, a própria possibilidade dele vir a construir as condições de se reconhecer autor de alguma coisa depende de certa relação e articulação entre o simbólico e o real. E isso, muitas vezes, pode vir a acontecer como ponto de chegada de um trabalho subjetivo. Para ilustrar esse ponto de chegada e, ainda, o cuidado necessário para que estejam devidamente colocadas as condições de início desse trabalho clínico, vamos trazer mais dois recortes de casos. J., 14 anos, não chegou como autor, veio encaminhado pela escola em razão da dificuldade de se relacionar, com muitos episódios de agressividade e brigas, e também de aprender. Pôde aparecer logo, pelo relato da mãe, a gravidade da situação de violência psicológica e física que vivia em casa, seja pelo relacionamento conturbado entre os pais, seja pela agressão que sofria por parte do pai e também pela “cola” ou posição identificada com sua mãe, objeto de desejo. No atendimento começaram a aparecer situações de risco. Isso é muito comum no NAV. O adolescente que ainda tem vínculos familiares, mesmo estando muitas vezes em abrigos, vem por estar envolvido em uma situação de violência e / ou por estar se colocando em situações de conflito com a lei. A possibilidade de o tratamento ser indicado antes do caso chegar à Justiça pode trazer efeitos subjetivos importantes. Nesse caso, o grude do rapaz com a mãe e a destituição que faz do pai aparece na sessão. Ele diz: “quando o meu pai fala, eu nem ligo”. A relação do adolescente com a palavra do pai é uma questão para o tratamento. Uma direção de trabalho é, a partir do vínculo construído no atendimento, de
dentro desse laço, poder aparecer e ter alguma incidência para ele a sua relação com os lugares – para além da forma como estão sendo ocupados. É grave a situação de violência a que chega o pai em casa: ele dispara um tiro tentando acertar a mãe do menino, que diz no atendimento que queria pegar uma arma e matar o pai. O risco do lugar de referência ser destituído junto com esse pai aparece, nesse caso, pelas consequências não apenas subjetivas, mas sociais e cognitivas. Não é sem relação com essa ausência de referências a dificuldade que esse rapaz tem de simbolizar e aprender, por exemplo. Mas ele tem podido falar do que pensa em fazer, dirigir isso ao tratamento, escutar o que ele próprio diz e também o que vem do outro. E é esse canal aberto de endereçamento que vai poder mudar a gravidade da situação. É pela mediação trazida pela palavra que um ato impulsivo pode deixar de se colocar. Se já é marca da dificuldade fundamental do adolescente seu confronto com o Outro, que o leva à precipitação que se dá sem a ação mediadora do simbólico, com base na negação do diálogo e da palavra, essa dificuldade é incrementada nesses casos em que está presente a violência vivida por ele na relação com seus pais. Em casos assim, esses meninos vivem mergulhados em um cotidiano regido por ações violentas, por uma lógica de organização de acesso ao mundo que não se dá pelo símbolo, mas de forma direta. Nos exemplos citados, é possível a um pai (ou àquele(a) que ocupa esse lugar e função) não barrar seu impulso e passar ao ato violento, assim como é possível a uma mãe ou se eximir totalmente de seus cuidados maternos ou tentar fazer de seu filho uma extensão sua, ficando em uma posição também impeditiva para a entrada do adolescente na vida adulta. Então, as situações são sempre muito complexas e singulares. O fato em si não diz da gravidade da situação, que depende, entre vários fatores, do modo como cada um está se relacionando com seu ato. É totalmente diferente se um adolescente chega assustado com o que se passou, sem saber bem o que está acontecendo, ou se ele chega mostrando de alguma forma saber da gravidade de seu ato, mas sem nenhum constrangimento. Trazemos, para concluir, o caso de um adolescente que chegou por ter abusado sexualmente de uma criança. Na ocasião do atendimento, houve um encontro muito importante com seu pai. Esse pai, com quem tinha pouco contato, foi chamado ao Conselho Tutelar. E esse rapaz, por sua vez, chegou ao NAV espantado com o que tinha feito e muito aberto a falar, tamanha a perplexidade em que se encontrava. Ele chegou a dizer que parecia que o menino também estava “gostando”, como se a brincadeira tivesse tomado uma proporção que ele não havia premeditado, que não esperava. E aí, outro acontecimento surpreendente foi o desdobramento que houve na sua relação com seu pai. Eles puderam se aproximar e em um determinado momento ele conta, no seu atendimento, o que ouviu do pai. Seu pai lhe disse o seguinte: “isso não podia acontecer e mesmo sem você ter tido a intenção, você é responsável pelo que você fez”. Isso foi um marco para esse menino, ele conta isso impactado.
Foi como se essa intervenção trouxesse, mesmo que de forma enigmática, a articulação que lhe faltava para aceder a uma responsabilização. Articulação que amarra a complexidade do que está em jogo nessa clivagem entre o campo das representações e esse outro campo, onde se exprime o desejo, que é ele próprio a transposição da lei. Com essa incidência houve mudança no modo como esse rapaz passou a se responsabilizar pelas coisas, uma mudança no modo como se relacionava com os outros e no trabalho. O chamado do Conselho Tutelar possibilitou uma entrada da lei, que nesse caso passou pela presença e sustentação do pai, que trouxe outro peso a esse acontecimento. Nem sempre é assim. A entrada da lei positiva, por si só, não garante a entrada da lei simbólica e essa possibilidade de reposicionamento do sujeito. Faz diferença se isso pode se dar com a presença de alguém que ocupa um lugar de referência na família ou não. Mas também pode acontecer via incidência de um juiz. Já recebemos um menino que ouviu do juiz que ele tinha que pagar pelo que havia feito (era uma medida socioeducativa), e esse pagamento teve uma incidência que foi além daquilo que ele, pagando, estaria livre, pois trouxe algo da dívida simbólica, de deveres que temos com o Outro – instância para além de nós e de nossa vida privada. Conclusão Desde a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o adolescente, assim como a criança, é sujeito de direitos e precisa de proteção e cuidados nesse momento de estruturação subjetiva. Mas essa estruturação, na melhor das hipóteses, acontece quando esse sujeito pode ser marcado pela transmissão da lei simbólica, que também coloca deveres, limites e impossibilidades. No NAV, a aposta do tratamento com o adolescente é essa. Se o ato específico do adolescente / autor tende a se situar na margem da dimensão da palavra, podemos dizer que sua ação violenta (ou tentativa de apropriação do outro pela violência), em alguns casos, pode ser lida como uma busca de aquisição de uma insígnia paterna que lhe foi precariamente transmitida. Então, se a violência aparece a partir do momento em que as palavras não têm mais eficácia, a direção do tratamento é que os adolescentes possam falar e que possam ser reconhecidos – o que restitui à palavra seu valor. Um valor que não tem nada a ver com o valor de resposta a uma pergunta, ou de esclarecimento de um fato, mas o valor de instituir lugares, a partir dos quais o adolescente possa se situar e construir um percurso que venha a dar lugar à dimensão simbólica, sem a qual pode ser difícil outro caminho que não o da marginalidade. 1 Para mais informações e / ou acesso às publicações, acessar: www.nav.org.br . 2 Não é à toa que Melman (2009, p. 377) nos lembra que a concepção de Lacan quanto ao incesto consiste em dizer, por razões de estrutura, que o incesto é o que se produz quando as relações sexuais sobrevêm entre pessoas que pertencem a gerações diferentes.
3 Dados do projeto Lugar de Palavra, desenvolvido em Nova Iguaçu com o patrocínio da Petrobras, de março de 2007 a março de 2015. Com esse projeto, o NAV atendeu no total 980 casos e manteve em atendimento, ao longo desses oito anos, 120 crianças, adolescentes e autores de agressão. 4 Com o outro enquanto semelhante, e com o Outro enquanto instância simbólica. Ver capítulo intitulado “A importância do social no momento da adolescência”, em Ribeiro, 2006, p. 78. 5 Cf. Melman, 1999. 6 Ver a diferença entre a transposição de um interdito presente a cada autorização do desejo e uma transgressão. “Enquanto a transposição depende da aceitação da falta do Outro – o que implica uma ultrapassagem em que o sujeito arrisca sua pele –, a transgressão decorre da recusa dessa falta constitutiva e visa a uma apreensão, “na marra”, de algo que é irredutível.” (RIBEIRO,2006, p. 78) Referências MANFRONI, Ana Cristina. O adolescente: entre a violência e a palavra. In: GRYNER, Simone; RIBEIRO, Paula Mancini; OLIVEIRA, Raquel (Org.). Lugar de Palavra. Rio de Janeiro: Núcleo de Atenção à Violência, 2003. MELMAN, Charles. Os adolescentes estão sempre confrontados com o minotauro. In: Adolescência: entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999. __. L’Homme sans gravité. Paris: Denoël, 2002. __. A propósito do incesto. In: Para introduzir a psicanálise nos dias de hoje: seminário 2001-2002. Porto Alegre: CMC, 2009. RIBEIRO, Paula Mancini. Um real em jogo: a função do pai e o sujeito na clínica. 2006. Tese (Doutorado em Psicologia) – Departamento de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Rio de Janeiro, 2006. Psicanálise, educação e direito da infância e da juventude: uma reflexão sobre a normatização, a sexualidade e o saber na clínica com adolescentes Aline Bemfica Marcone Mello Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais. Clarice Lispector
Os temas dessa reflexão foram levantados na construção de um estágio em Psicologia (UNIPAC / Barbacena), em parceria com o Conselho Tutelar e escolas municipais no interior de Minas Gerais. Em nosso percurso de trabalho, fizemos fronteira com os campos do direito da infância e da juventude, da educação e da psicanálise, confrontando os saberes construídos pelos parceiros e trabalhando a partir das reflexões suscitadas durante o acompanhamento desse adolescente. Na criação do citado estágio, a primeira ação foi propor uma reunião com os professores e diretores da escola da rede pública a fim de compreender o que movia o excesso de encaminhamento de casos ao Conselho Tutelar. Paralelamente, fizemos um levantamento dos casos do conselho com o intuito de delimitar quais o estágio em psicologia iria acompanhar e quais requeriam uma parceria de trabalho entre o Conselho Tutelar e a escola. Esse levantamento inicial produziu a demanda de encontros para discussão dos casos, iniciando-se, assim, o trabalho de supervisão em grupo. Conforme adverte Arantes [2007], a existência de uma proporcionalidade entre a demanda feita à psicologia e a judicialização das relações sociais requer, se queremos sustentar uma prática crítica e não alienada à demanda, localizar nossa proposta de parceria de trabalho a partir de duas perguntas: qual o mal-estar em questão na demanda apresentada? Estaríamos, mais uma vez, sendo convocados ao trabalho de sequestrar e confiscar as subjetividades? Este ensaio segue ora o formato de relato de experiência, ora o formato dissertativo. Buscamos o confronto constante entre prática e teoria a fim de apresentar as delicadezas do ofício da psicologia / psicanálise na interface com outros campos de saber. Surpreendemo-nos com a variedade e com o excesso de casos de “adolescentes problemáticos”. Dessa surpresa surgiu, primeiramente, a necessidade de dialogar com o Conselho Tutelar, assim como com professores, sobre a especificidade de suas funções e ações. Qual era o problema desses adolescentes considerados “problemáticos”? A fim de verificar qual questão envolvida na demanda apresentada e qual encaminhamento mais pertinente, inserimos mais algumas perguntas: o que perturbava os professores que constantemente se queixavam dos jovens? Por que tantos encaminhamentos ao Conselho Tutelar? O que se entendia por violação de direitos? Não haveria nesse excesso de encaminhamentos uma faceta da judicialização da vida? Para tentar responder a essas questões, apostamos no desafio de construção do trabalho em rede, na qual cada parte (professores, conselheiros, pais, mães e jovens) tem sua parcela de implicação na produção de subjetividades. A psicanálise sempre fez fronteira com outros campos de saber, tais como a literatura, as artes, o direito, a educação, a antropologia, a sociologia, entre outros. Entre esses, a educação foi confrontada na psicanálise freudiana a partir das investigações sobre o sexual, o suicídio e o ingovernável. Freud (1914) chega a mencionar a função educativa da prática psicanalítica e nos convida à reflexão ao dizer da responsabilidade dos professores e da necessidade de se ocuparem dos jovens para que eles não se suicidem.
Entendemos a orientação freudiana da seguinte maneira: a autoridade e os ideais são questionados arduamente nessa etapa da vida. Os pais já não correspondem aos anseios juvenis e não têm as respostas para bendizer o encontro do jovem com o corpo púbere – encontro este que é sempre maldito. Entretanto, isso não quer dizer que o adolescente possa prescindir deles e da presença de pessoas que possam auxiliá-lo na construção de novos pontos de ancoragem para seu ser. Estaria aí a crucial importância do educador em relação à transmissão do desejo de saber? Conforme afirma Diniz (2006) em reflexão tecida sobre o estatuto do saber na psicanálise, “a relação de um sujeito com o saber, além de incorporar os aspectos objetivos (conhecimento) presentes nos processos educativos e socioculturais, supõe, também, aspectos subjetivos marcados pela incidência do inconsciente”. Seguindo o rumo apresentado pela autora, reportamo-nos à leitura da análise biográfica do mestre da renascença italiana, Leonardo da Vinci, feita por Freud em 1910. Nesse ensaio, a investigação sexual infantil foi comparada pelo saber psicanalítico com a prática artística e a produção no campo da investigação científica. Primeiramente, Freud aborda a sede insaciável de saber do artista pela referência ao “inacabado” (condição de muitas de suas obras) e, em segundo lugar, em relação à sua restrição afetiva no campo amoroso e sexual. Freud explora a referência ao “inacabado” como condição própria do processo artístico e se arrisca na leitura clínica do artista em sua vida, articulando a sexualidade, a arte e o amor. Essa articulação reenvia Freud à reflexão sobre a primeira atividade investigativa das crianças, a pesquisa sexual infantil, inserindo duas novas referências em sua teorização que gostaríamos de acentuar, o circunlóquio e a “pergunta que nunca se faz”: A curiosidade das crianças pequenas se manifesta no prazer incansável que sentem em fazer perguntas; isso deixa o adulto perplexo até vir a compreender que todas essas perguntas não passam de meros circunlóquios que nunca cessam, pois a criança os está usando em substituição àquela única pergunta que nunca se faz. (FREUD, 1910, p. 86) Circunlóquio é um “rodeio”, ação de quem diz sobre algo de maneira pouco direta, fugindo do foco da mensagem devido ao excesso no discurso. O que a psicanálise acentua é que, no campo da investigação sexual, algo permanece obscuro e até mesmo impossível de saber, pois os modos de viver a sexualidade são, desde a mais tenra infância, um grande enigma. O primeiro enigma da sexualidade infantil refere-se à pergunta “de onde vêm os bebês?”, seguido pelo enigma em torno da diferença sexual (FREUD, 1908). Esses dois enigmas são propulsores das teorias sexuais infantis e fonte de profunda angústia para a criança ávida de encontrar palavras para traduzir essa diferença. As teorias sexuais infantis têm a mesma estrutura dos mitos e dos contos de fadas. Elas tentam dar conta das questões sobre a origem do ser, especialmente quando o nascimento de um novo bebê dispara a curiosidade sexual infantil juntamente com o medo da perda do amor dos pais, movimentando a criança na direção de novas investigações. Contudo, a diferença sexual é ineliminável e porta a dimensão da alteridade para o
sujeito, produzindo formas subjetivas específicas para cada sexo. É em relação ao despertar da sexualidade e à ausência de harmonia na relação entre os seres que se apresentam – de forma aguçada – os conflitos da adolescência no encontro com a puberdade, pois esse encontro é um grande desencontro... Para a psicanálise (FREUD, 1930), educar e psicanalisar, juntamente com a arte de governar, defrontam-se com o mesmo impasse: há um mal-estar ineliminável no seio da civilização. Mal-estar devido à necessidade de renúncia à satisfação da pulsão em prol da civilização, mal-estar referido à constante castração que a relação com o outro nos lança, mal-estar devido à relação do sujeito com seu corpo. A educação tem, no escopo de suas inúmeras funções, uma característica repressiva e inibitória. A sugestão freudiana de que os professores fossem analisados passava pela ideia de que, assim, a educação poderia se fazer menos maléfica. Há uma íntima relação entre a forma como é acolhida a investigação da criança sobre o sexual e o banimento ou não da vontade de saber. Em Recordar, repetir e elaborar, Freud (1914) menciona o caso de um paciente e seus impasses no campo da sexualidade, dos quais o paciente não se recorda com clareza, mas que não deixam de encontrar ressonâncias em seus confusos sonhos, no insucesso no campo do trabalho e na impossibilidade de levar adiante os projetos iniciados. O compromisso sintomático apresentado pelo paciente inclui o “não-saber” sobre a sexualidade recalcada e o impossível de saber, próprio ao encontro com o sexual, acarretando efeitos inibitórios no campo do trabalho. Em nossa experiência com as escolas municipais de Minas Gerais, os professores, quando atordoados com os comportamentos juvenis, empregavam medidas disciplinares. E, em alguns casos, visto que chamar os pais não produzia consequências, especialmente porque esses não compareciam à escola, a tendência era solicitar a intervenção do Conselho Tutelar. O intuito era pressionar os pais em relação a sua responsabilidade e intervir de forma normativa nos transbordamentos da sexualidade dos adolescentes. Entendemos que essa delicada questão apresenta a íntima relação entre a educação, o poder e a sexualidade. E, dando um passo atrás, logo de saída, recuamos diante da ideia de que um adolescente deve “ter obrigatoriamente o direito de ser escutado”. Se levarmos em consideração o campo ético da psicologia em geral e da psicanálise em particular, verificamos que tal composição gramatical é contraditória, pois não há o direito (assegurado como dever) de ser escutado no campo analítico, mas há o desejo de falar. Acolher o desejo de falar não é impositivo. Não se trata de impor sobre o sujeito, especialmente a partir da ideia de uma suposta escuta especializada, a obrigatoriedade da fala ou de que seu comportamento inadequado seja falado, produzindo, na melhor das hipóteses, uma elaboração acerca de seus atos. Há, sim, o direito de ser escutado no campo do direito da infância e da juventude. Dessa particularidade apresentada no encontro com as instituições, produzimos a
demarcação e a distinção dos campos, possibilitando a oferta de atendimento individual de orientação psicanalítica na rede de serviços em sua particularidade. Nas reuniões com os professores, verificamos que o excesso de encaminhamento de casos respondia a uma tentativa de enquadramento da sexualidade, mas também, especialmente, ao desamparo por não saberem como lidar com a manifestação da sexualidade dos jovens alunos. Os adolescentes “se pegavam nos corredores”, “não tinham limites”. “É menino com menina, menina com menina, menino com menino. Um horror”. O horror relatado apresenta o sexual em sua vertente traumática. Nesse sentido, foi fundamental ofertarmos um espaço aos professores para circular a palavra ali onde a ação tendia a um movimento compulsório do encaminhamento de adolescentes para a rede de serviços do município e, muito especialmente, para o Conselho Tutelar. A denominação “meninos problemas” era uma nomenclatura que conduzia os educadores a pensar pelo viés do paradigma da proteção e a atualizar o velho paradigma da punição. Essa nomeação dificultava a escuta das questões que afetavam os corpos juvenis. A partir de alguns encontros e do fortalecimento da parceria de trabalho, esclarecemos o seguinte aspecto: o horror que causava nos professores os comportamentos sexualizados dos jovens e a dificuldade de sustentar uma postura de autoridade culminava no exercício do autoritarismo, impondo como solução os equivocados encaminhamentos compulsórios realizados em nome do “bem-querer” para o adolescente. Pequena nota sobre o Conselho Tutelar e os encaminhamentos O Conselho Tutelar foi criado conjuntamente com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990). É um órgão municipal, autônomo, não jurisdicional e que possui como objetivo maior resguardar os direitos das crianças e adolescentes em situação de direitos violados. Suas ações consistem no acolhimento das denúncias realizadas pela comunidade, aplicação de medidas protetivas, orientação e encaminhamento de crianças adolescentes e familiares para a rede de serviços de seu município. Sua equipe de trabalho é formada por membros eleitos pela comunidade (conselheiros tutelares), que permanecem no mandato por três anos e devem se orientar pelo paradigma da proteção integral. O Conselho Tutelar, mesmo não sendo um órgão jurisdicional, pode utilizar todos os instrumentos jurídicos na defesa dos direitos da criança e adolescente, apurando irregularidades contra as mesmas e, quando necessário, encaminhando os casos ao Ministério Público. Em encontros quinzenais com os parceiros da escola e do Conselho Tutelar, trabalhamos com a distinção entre dois registros do saber circulantes na rede de serviços: o registro do saber especializado (superposto ao sujeito) e o registro do saber articulado (suposto ao sujeito) a partir da singularidade dos casos. Mas, como pode se dar a passagem de um saber a outro? Quando cada interlocutor toma a palavra e a faz circular, torna-se possível tensionar o estigma impresso sobre os casos, deixando aparecer suas
variáveis. A inserção de um intervalo no campo do saber instituído pode abrir espaço para a construção de outras referências nominativas, fruto dessa mobilidade no campo discursivo. Na medida em que o saber superposto em camadas não deixa espaço para a escuta das subjetividades em questão, fica em cena o “caso problema” impossível de solucionar. Nesse campo predicativo, Lacadèe (2011, p. 11) nos oferece um precioso exemplo a partir dos perigos da mídia em seu discurso emitido sobre os jovens da periferia na França. Jovens que foram denominados como racaille, ¹ contribuindo para sua estigmatização: “uma vez nomeados com essa ponta de desprezo paternalista, eles próprios tomariam violentamente consciência da imagem que o Outro fazia deles e de sua diferença”. Na mesma direção crítica, Arantes (2007), na esteira da leitura foucaultiana, retoma o necessário posicionamento político contra o governo da individualização, ou seja, acentua a necessidade de nos colocarmos contra as práticas discursivas que marcam pela identidade o indivíduo, enclausurando-o em um só nome. Na medida em que a nomeação predicativa apresenta a existência de uma rigidez do pensamento, é fundamental alargar a trama discursiva, espaçando-a na articulação necessária entre psicologia e política: “A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças.” (ARENDT, 2007, p. 22). É o que nos ensina também Edgar Morin (2013), ao enfatizar a necessidade de evitarmos o reducionismo do humano, inserindo o pensamento complexo que não elimina nem a incerteza, nem a insuficiência. Respaldados por essas orientações, apostamos na promoção de confrontos discursivos. Esses confrontos possibilitaram a apresentação das dificuldades comuns e particulares às instituições aqui trabalhadas, demarcando-se os territórios e as funções das respectivas instituições. Em relação aos casos que seriam realmente encaminhados ao Conselho Tutelar, procedemos da seguinte forma: acolhimento, definição do acompanhamento ou encaminhamento para a rede de serviços e supervisão dos casos acompanhados. Ao final, uma devolutiva era dada aos pais e às instituições envolvidas no caso, mantendo-se o cuidado com a rede e a parceria de trabalho. Dos casos acompanhados pelo Conselho Tutelar A seguinte particularidade se apresentava entre os conselheiros: não havia na concepção dos mesmos um modelo rígido de família e, portanto, eles reconheciam a importância da solidariedade, do afeto e de limites para as crianças e os adolescentes, mesmo que a ideia de família fugisse aos padrões. Esse dado nos parecia interessante, especialmente por contrastar com a costumeira postura de destituição do poder familiar entre as classes pobres, tal como especificado nos casos em que “a mãe não se enquadrava em qualquer modelo idealizado de parentalidade.” (ARANTES, 2007, p. 5) Para a psicanálise lacaniana, além da ideia de família padrão importa a estrutura que os semblantes familiares transmitem na sustentação de um
“desejo que não seja anônimo” (LACAN, 1969, p. 369). Ou seja, trata-se da sustentação do interesse particularizado dos pais pelo seu filho. Interesse entendido como singularidade do desejo de vida, e não aprisionado à ideia de família conjugal ou de outro modelo qualquer. A significação de “anônimo” (FERREIRA, 1999, p. 146) refere-se, primeiramente, à falta de nomeação e de assinatura do autor, sem denominação. Tem também o caráter de obscuridade, ocultação, referindo-se àquele que oculta seu nome ou que é sem nome ou renome. Denominar o outro como desejado e, portanto, desejante, não se refere, necessariamente, à transmissão do lugar tradicional da família (o que apontaria para um conservadorismo caduco), mas às particularidades das funções paterna e materna articuladas ao desejo, ao amor e à interdição. Mas, o que significa sustentar as funções paternas e maternas? Na leitura psicanalítica lacaniana, os espaços subjetivos construídos a partir das funções paterna e materna articulam-se ao processo de constituição do sujeito, fundamentados nos processos de alienação e separação em face ao desejo do Outro e respaldados por suas raízes e referências históricas e transgeracionais. (LACAN, 1964) A ideia de separação encontra suas raízes na primeira grande aquisição cultural da criança, possibilitada pela simbolização da presença-ausência da mãe, tal como observada e interpretada por Freud. A partir da observação da brincadeira infantil de seu neto, denominada como jogo do fort-da (FREUD, 1919-1920), um jogo de desaparecimento e retorno do objeto, Freud esclarece o ganho civilizatório da criança ao consentir com a renúncia à partida da mãe. Na primeira interpretação freudiana, a reincidência dessa atividade lúdica responderia ao sentimento de vingança devido à ausência da mãe, ao apoderamento da situação desprazerosa e à transformação da vivência aflitiva do desamparo. Mas, fundamentalmente, verificou-se que a atividade lúdica infantil que consistia na repetição de uma sensação desagradável ao psiquismo possibilitava também, paradoxalmente, uma satisfação de outra ordem (ibidem, p. 143): a satisfação na própria repetição, incluindo uma parcela de desprazer e outra de prazer em relação à presença-ausência do objeto, que é o próprio sujeito. A ênfase freudiana recai nesse processo de constituição do eu diferenciado do outro, pautado na necessidade de separação entre o campo interno e externo. Mas, ao mesmo tempo, tal separação é da ordem do impossível, em face da dimensão do estranho (ibidem), do que é estrangeiro ao sujeito, ao mesmo tempo em que lhe é muito familiar. Em 1919, enquanto redigia seus primeiros rascunhos da obra Além do Princípio do Prazer, Freud escrevia seu ensaio sobre o estranho, introduzindo a partir da literatura fantástica o tema da compulsão à repetição. Ao se utilizar da ferramenta literária e do exame do uso linguístico do termo estranho, Freud abordou o heimlich (também traduzido como inquietante estranheza) a partir dos excertos apresentados pelo Dr. Theodor Reik, demonstrando a imparidade e o paradoxo do “estranho” para além das qualidades estéticas do sentir – belo, atraente, medo, horror. O acompanhamento do adolescente que relataremos a seguir apresenta a relação entre o “estranho”, o risco e o desejo não anônimo no campo da
parentalidade. Em alguns casos, o “colocar-se em risco” na adolescência aparece articulado à necessidade de encontrar para si um lugar no desejo do Outro (LACADÈE, 2011). Desse modo, o desejo de desaparecimento por parte do adolescente pode corresponder ao anonimato do desejo parental, ou seja, “ao modo como uma criança foi amada por sua mãe e, também, o modo pelo qual o pai exerce a sua função.” (DOS SANTOS, 2007, p. 24). Partindo da vinheta clínica a seguir, nossa hipótese é que o risco no qual o adolescente se coloca responde ao sentimento de não existência no desejo do Outro, mas, paradoxalmente, possibilita ao adolescente sentir-se vivo, visto que o que está em jogo é um apelo ao Outro no qual tenta inscrever algo de seu corpo e de seu ser. Pequeno recorte clínico e algumas considerações Pedro tem doze anos e se pergunta sobre seu lugar na vida das pessoas, pois conhece de perto o abandono e o anonimato. E Pedro quer saber – ao mesmo tempo em que não quer saber – das meninas. Ele chega ao Conselho Tutelar devido à situação denominada como “ameaça de morte” na escola. Segundo informações, ele portava um canivete e havia ameaçado uma colega de sala. O pai diz não saber mais o que fazer em relação aos maus comportamentos de seu filho e aciona o Conselho Tutelar para fins de encaminhamento para tratamento psicológico. Na primeira entrevista, o pai diz que assumiu a guarda de Pedro por este ter sido abandonado pela mãe e pai biológicos. Ele apresenta algumas dificuldades no exercício de sua função: “o menino não faz as coisas que eu mando” (acompanhá-lo no serviço rural, por exemplo), afirmando que seu filho não gosta de limpar “o resto do outro”, “não gosta de limpar o curral”. Segundo informações do Conselho Tutelar, Pedro viveu até os quatro anos com uma senhora que era sua vizinha e em situação de extrema negligência e maus tratos. Verificadas as denúncias feitas pelos vizinhos, esta senhora perde a guarda de Pedro. Nessa mesma época foi realizado seu encaminhamento para uma família que não tinha filhos e aguardava na fila de adoção. Pedro diz o seu incômodo com as meninas: elas são chatas, amolam. Não quer falar delas. Quer falar de seu pai. Não tem lembranças de seus pais biológicos. E também não se lembra do rosto da primeira mulher que assumiu sua guarda. Ela era “uma velha sem rosto”, alguém que apresentava a ele apenas o registro do anonimato. Em relação a seu pai, Pedro diz se esforçar para fazer a coisa certa. Mas, acaba sempre fazendo a coisa errada. Não quer ficar limpando o resto do outro. Por isso fica agressivo. Não é mais criança. Não sabe o que acontece. Ele considera estranho seu comportamento de se colocar em risco, ou seja, à mercê de situações nas quais pode se ferir. Nesse contexto, traz um sonho: uma senhora está batendo nele e seus pais tentam defendê-lo. Ele acorda sempre com muitas dores: nas pernas, no braço, dor de cabeça. Diz que na escola é sempre agredido pelos colegas. Na verdade, às vezes é batido, às vezes é defendido por algum amigo mais velho.
Em outro sonho, Pedro diz que é agredido e entregue à polícia pela sua mãe. Acha que tem esses sonhos porque era espancado com um mês de idade pelos pais biológicos. Em relação a esse lugar de objeto do capricho do Outro, Pedro introduz um elemento importante: a instância jurídica como mediadora. Ele afirma que, naquela época, o Juiz foi chamado. “Porque as crianças não podem ser batidas e é o juiz quem intervém colocando ordem nas coisas”, diz ele. Em sua fala, ao introduzir a instância jurídica reguladora, Pedro parece colocar um limite ao capricho do Outro que pode querê-lo ou não, amá-lo ou não, espancá-lo ou não, abandoná-lo ou não. A partir do sucinto relato desse acompanhamento, questionamos: o erro (lembrando que Pedro é aquele “que faz tudo errado”) não portaria na vida do rapaz a dimensão da alteridade? Não seria uma forma de inserir sua diferença? Aprendemos com a psicanálise que a agressividade é uma resposta que corresponde ao eixo especular entre um e outro. Se entre um e outro não há separação, há agressividade. Em nossa leitura, arriscamos a hipótese na qual o fazer errado, fazer o que não deveria ser feito aos olhos do pai, é uma resposta que apresenta o sujeito em sua divisão e em sua potência inovadora. Mas, para que Pedro possa sustentar seu processo de separação, é preciso que ele possa contar com a herança paterna do amor que o particulariza, na contramão do desejo anônimo que o aprisiona. O estranhamento em relação ao seu “comportamento de risco” é devido, especialmente, à repetição desses comportamentos contra a sua vontade. Pedro é um jovem curioso em relação às formações do inconsciente, ao não sabido que age em seu corpo. Seu corpo batido no sonho permanece dolorido ao acordar, denunciando a presença do real que o sonho pretende contornar. Ficaremos por aqui, limitando-nos a essas poucas e primeiras reflexões suscitadas pelo acompanhamento desse jovem. Em relação às contribuições no campo da clínica, sabemos que ofertamos ao leitor apenas uma leitura parcial e inicial, mas concluímos este trabalho enfatizando a importância de um lugar para a fala de cada adolescente em suas delicadas e diárias construções de vida. 1 Nota do editor: termo que em português podemos traduzir como ralé. Referências ARANTES, E. M. de M. Mediante quais práticas a Psicologia e o Direito pretendem discutir a relação? Anotações sobre o mal-estar. [2007]. Disponível em: < http://www.crprj.org.br/documentos/2007artigo-estherarantes.pdf >. Acesso em: 23 jan. 2015. ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. DINIZ, Margareth. A relação com o saber para a psicanálise. In: Psicanálise, educação e transmissão, 6, 2006, São Paulo. Disponível em: < http:// www.proceedings.scielo.br/scielo.php? script=sci_arttext&pid=MSC0000000032006000100049&lng=en&nrm=abn >. Acesso em: 23 jan. 2015.
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NEGRI, María Inés. Nuevos lazos familiares: patologías de identificación en los lazos familiares y sociales. Buenos Aires, 2007. Condições de trabalho: o cotidiano laboral de assistentes sociais e psicólogos no TJ/RJ Érika Piedade da Silva Santos Lindomar Expedito S. Darós Introdução O presente artigo deriva de uma reflexão ético-política referente à prática profissional de assistentes sociais e psicólogos que atuam no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ/RJ), tendo como pano de fundo uma pesquisa realizada junto às referidas categorias profissionais nos meses de junho a agosto de 2012. É necessário pontuar que nessa instituição há assistentes sociais e psicólogos concursados e terceirizados. Há ainda que ser considerado que, entre os concursados, há consideráveis desníveis salariais, o que não deixa de produzir delicados efeitos. Digno de nota ainda que, não obstante a lei 12.317/2010, que estabelece carga horária máxima de 30 horas semanais para assistentes sociais, o TJ/RJ alegou que, no seu quadro funcional, os profissionais são analistas judiciários, não psicólogos ou assistentes sociais estrito senso e que, portanto, a aplicação dessa lei não é cabível. Premente ainda pontuar que a pesquisa foi realizada a partir de demanda dos próprios trabalhadores. As dificuldades vivenciadas pelos assistentes sociais e psicólogos no âmbito do TJ/RJ fez com que essas categorias profissionais se articulassem com o Sindicato dos Servidores do TJ/RJ (SindJustiça). A partir de uma assembleia sindical dos assistentes sociais e psicólogos, foi decidido que uma comissão mapearia as condições de trabalho das duas categorias profissionais, no âmbito do TJ/RJ, com vistas a buscar intervir junto às estruturas de poder para transformá-las e, assim, beneficiar tanto os trabalhadores quanto os jurisdicionados. O Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro (CRESS/RJ) e o Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP/RJ) foram convidados a atuar em parceria com o Sind-Justiça para se pensar as condições de trabalho, na perspectiva de se colocar em análise não apenas as condições de trabalho e seus efeitos na vida do trabalhador, mas também a dimensão ético-política do exercício profissional das referidas profissões regulamentadas – as quais, conforme determinam seus respectivos códigos de ética, têm que atuar a partir da defesa dos direitos humanos de todo e qualquer usuário. Naquele momento, o movimento sindical dos trabalhadores do TJ/RJ encontrava-se deveras fragilizado, visto que houve uma longa greve no ano anterior, a qual culminou com o corte de ponto e a perda da remuneração nos meses de dezembro de 2010 e janeiro de 2011 para aqueles que permaneceram até o final da greve. Posteriormente, os salários foram pagos.
Essas questões nos possibilitam colocar em análise os instrumentos de luta da classe trabalhadora em tempos de um capitalismo tardio e avassalador, o qual ataca direitos que haviam sido consagrados em lei; direitos estes duramente conquistados, com trágicas lutas no enfrentamento à força do capital. (HARVEY, 2011) Pontuamos ainda que as reflexões produzidas a partir dos ricos debates nas aulas da disciplina Teorias da Formação Humana no PPFH/UERJ ¹ contribuíram de modo decisivo para a escrita deste artigo, que propõe um texto-intervenção, visando servir de instrumento de luta para todos os trabalhadores, não apenas assistentes sociais e psicólogos do TJ/RJ. Assim, considerando a trajetória da pesquisa, construída a partir da demanda dos trabalhadores, dos debates em sala de aula, com enormes contribuições dos professores responsáveis (Deise Mancebo e Floriano Godinho) e de todos os pós-graduandos, faz-se necessário pontuar que este artigo tem uma dimensão autoral coletiva, no que pese ser dos autores a responsabilidade por eventuais equívocos narrativos. Metodologia A partir da decisão da assembleia dos trabalhadores, constituiu-se a comissão que levou a termo o mapeamento das condições de trabalho. Tal comissão foi formada por duas assistentes sociais (Ana Cristina Cavalcante de Araújo e Andréa Cristina Alves Pequeno) e dois psicólogos (Érika Piedade da Silva Santos e Lindomar Expedito S. Darós) ² pertencentes ao quadro de trabalhadores concursados do TJ/RJ; participaram ainda mais três membros: um representante da diretoria do Sind-Justiça (José Carlos Arruda), um representante do CRESS/RJ (Charles Toniolo de Sousa) e um representante do CRP/RJ (André Souza Martins). Constituída a comissão, elaboramos um questionário com 33 questões e as duas categorias profissionais foram convidadas a respondê-lo durante a realização de seminários. Tais seminários propiciaram debates sobre as condições de trabalho e as competências institucionais do Sind-Justiça, do CRESS/RJ e do CRP/RJ. As três instituições parceiras organizaram, no total, 11 seminários, que ocorreram durante o mês de junho de 2012, contando sempre com o representante da direção sindical. Quanto aos representantes do CRESS/RJ e do CRP/RJ, revezavam-se nos encontros. Foram respondidos 165 questionários, sendo que no período em que se fez o levantamento havia 480 assistentes sociais e psicólogos atuando no TJ/RJ, na condição de trabalhadores públicos concursados. Destaque-se que, além dos concursados, profissionais contratados (lotados majoritariamente nas CPMA, VEP e VIJI ³ ) também foram convidados a participar da pesquisa. Os trabalhadores do TJ/RJ que constituíram a comissão responsável pela pesquisa também responderam ao questionário durante a realização dos seminários que serviram de pano de fundo para sua aplicação. Ressaltamos que escolhemos este caminho, posto que apostamos na pesquisa intervenção (PASSOS e BENEVIDES, 2009) – afinal, apreendemos a realidade e a produção do conhecimento como processualidades que se forjam na troca cotidiana, sem hierarquias entre pesquisadores e pesquisados:
[...] não há neutralidade na produção de nossos conhecimentos; somos parte do fenômeno analisado e ele é parte de nós mesmos. A realidade é uma construção coletiva cotidiana, na qual indivíduos e sociedade se transformam mutuamente no curso de uma inevitável interação [...]. (MANCEBO, 2004, p. 44) Pontuamos que não realizamos pré-teste do questionário aplicado, visto que a pesquisa não teve por escopo uma análise estatística exaustiva, mas um panorama do cotidiano de trabalho. Entretanto, na fase de análise dos dados, verificamos que seria necessário excluir oito questões, a fim de garantir rigor metodológico. As questões excluídas foram: 4, 5, 10, 11, 12, 14, 15 e 16. As questões 30 e 31 referiam-se à disponibilidade dos respondentes para participar de uma assembleia para a restituição do trabalho realizado. Verificamos que 90,6% dos respondentes mostraram-se disponíveis, 7,5% responderam que não participariam de uma restituição da pesquisa e apenas 1,9% dos participantes não responderam a essas perguntas. Ponderamos que, quanto às questões de 20 a 30, apenas os trabalhadores que atuam em Equipes Técnicas Interprofissionais Cíveis (ETIC) ⁴ deveriam responder. Porém, assistentes sociais e psicólogos que trabalham em outras lotações também responderam a essas perguntas específicas. No intuito de apresentarmos uma análise encarnada das condições de trabalho no âmbito do TJ/RJ e das especificidades daqueles que trabalham em ETIC, consideramos apenas as respostas dos trabalhadores lotados nestas. Convém ressaltar que os trabalhadores, majoritariamente, não responderam as questões que se referiam a seus fazeres específicos, tendo focado nas condições de trabalho. Isto nos faz pensar se a dificuldade de dizer sobre seus fazeres teria relação com a ausência de espaços coletivos para discutir as práticas que realizam (o que, por sua vez, pode estar associado à sobrecarga de trabalho). Procedemos ainda a uma assembleia de restituição do trabalho realizado, em coerência com a proposta de uma pesquisa intervenção, momento no qual se deliberou sobre os destinos a serem dados aos resultados da pesquisa. Nova comissão foi instituída ⁵ , objetivando-se o cumprimento de algumas estratégias devolutivas do material da pesquisa junto a desembargadores mais progressistas e também junto aos Serviços de Apoio às categorias profissionais. Ressaltamos que não obtivemos muitos avanços junto às estruturas de poder do TJ/RJ. Não obstante os entraves, faz-se premente assumir de pronto a dimensão política dessa pesquisa, na busca de garantia de melhores condições de trabalho para os profissionais do TJ/RJ, bem como na defesa dos direitos humanos dos trabalhadores que são assistidos nas políticas públicas estatais a cargo do Poder Judiciário fluminense. Assistentes sociais e psicólogos e a prática sociojurídica no TJ/RJ O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal 8.069/1990, diz da necessidade dos tribunais estaduais instituírem em seus quadros
funcionais equipes interprofissionais ⁶ , as quais têm diversas atribuições, destacando-se o assessoramento às autoridades judiciais ⁷ . As equipes interprofissionais, também nomeadas por equipes técnicas nas varas com competência em matéria de criança e adolescente, majoritariamente são constituídas por assistentes sociais e psicólogos. Há tribunais que agregam às equipes técnicas outras categorias profissionais, o que não é o caso do TJ/ RJ. Os assistentes sociais e psicólogos no TJ/RJ, para além das VIJI ⁸ , também atuam em nas Centrais de Penas e Medidas Alternativas à Prisão (CPMA), Juizado Especial Criminal (JECRIM), Varas de Execução Penal (VEP) ⁹ , Juizados de Violência Doméstica (JVDOM) e Varas de Família (VF). Importante situar que os profissionais em epígrafe eram lotados nas varas onde exerciam suas atividades laborais, até o momento em que se criaram as ETIC. Isto se deu porque o quantitativo de assistentes sociais e psicólogos não era suficiente para cobrir a totalidade das varas que demandavam suas atuações. Devido à insuficiência de profissionais, era praxe que trabalhadores lotados em suas serventias fossem designados a prestar auxílio em outras varas. Porém, isso denunciava a necessidade de concurso público para lotar todas as serventias que demandavam intervenções técnicas de assistentes sociais e psicólogos. Assim, a Corregedoria Geral da Justiça (CGJ) do TJ/RJ anunciou que todos assistentes sociais e psicólogos perderiam suas lotações originais e seriam aglutinados em ETIC, as quais cobririam todas as demandas em serviço social e psicologia do judiciário fluminense: “O cobertor é curto, mas tem que cobrir a todos.” ¹⁰ Destaque-se ainda que, pouco antes da criação das ETIC, foi cogitada a realização de concurso profissional para ampliar a quantidade de profissionais das duas categorias, mas tal concurso não foi realizado – embora naquela época tenha havido elevação salarial dos juízes e desembargadores (que obtiveram o aumento expressivo de 25% em seus salários), possivelmente comprometendo o orçamento para a realização do concurso. Houve movimento de resistência de alguns profissionais das duas categorias em relevo, os quais se ancoraram em normativas legais que preveem que as VIJI, CPMA, VEP e JVDOM tenham equipes técnicas próprias ¹¹ . Assim, as referidas serventias tiveram suas equipes técnicas preservadas. No entanto, os profissionais das VF perderam suas lotações originais e passaram a constituir as ETIC. As ETIC romperam com a lógica de intervenções técnicas por parte de profissionais que conhecem e atuam no território dos usuários. Desse modo, os assistentes sociais e psicólogos passaram a transitar entre diversos fóruns e comarcas, o que, em muitas situações, requer percorrer longos trajetos, significando, para considerável quantitativo de trabalhadores, permanecer muitas horas em trânsito. Esse fato tem onerado o trabalhador, tanto em uma dimensão do cuidado de si quanto em termos pecuniários, visto que o custeio com os gastos do traslado, no mais das vezes, cabe a ele – o que acaba por adoecê-lo, em função da exaustão física e emocional.
Talvez, mais grave que a precarização das condições de trabalho, seja o fato de que as ETIC inviabilizam intervenções técnicas cunhadas na busca por atender os jurisdicionados para além da lógica binária, meramente diagnóstico-avaliativa. Premissas ético-políticas da psicologia e do serviço social apostam na defesa dos direitos humanos dos jurisdicionados, em seus diversos modo de ser. Assim, inserir os usuários, sempre que necessário, em políticas públicas existentes nas municipalidades onde residem, deveria ser a tônica das intervenções, bem como denunciar suas ausências – e não a mera produção de laudos para subsidiar decisões judiciais. Desse modo, seriam rompidos os processos individualizantes e culpabilizantes em curso. A inserção de assistentes sociais e psicólogos no quadro de trabalhadores concursados do TJ/RJ tem trajetórias diversas. Os primeiros datam de 1988, ao passo que os segundos tiveram o primeiro concurso público apenas no ano de 1998, com a primeira convocatória em fevereiro de 1999. Quanto aos assistentes sociais, houve em 1996 o segundo concurso público. No ano de 2004 houve dois concursos públicos: o segundo para psicólogos e o terceiro para assistentes sociais. Novo concurso, para as duas categorias profissionais, aconteceu também em 2012. Porém, há que salientar que, sempre com número de vagas e convocações de concursados aquém da demanda de trabalho, no que pese haver enorme quantitativo de assistentes sociais e psicólogos com contratos precários, essa situação nos remete às reflexões de Giovanni Alves (2011, p. 113): [...] Na verdade, a vigência do trabalho imaterial explicita tão somente o novo trabalhador coletivo sob o espírito da ‘integração orgânica’ do toyotismo. Entretanto, o que é ‘integração orgânica’ para o capital, unidade orgânica de pensamento e ação no local de trabalho, é expressão de ‘fragmentação sistêmica’ para a classe (e consciência de classe) dos trabalhadores assalariados e para os seus estatutos salariais (com a constituição de um precário mundo do trabalho pela proliferação de contratos de trabalho temporários e do trabalho atípico). Cabe lembrar que as duas categorias profissionais contam com Serviços de Apoio. Houve um tempo em que esses serviços eram nomeados por coordenações, sendo digno de nota que a mudança de nomenclatura coincide com a implementação das ETIC. No momento, há uma (supra)coordenação (que, de acordo com a compreensão institucional, não precisa ser necessariamente ocupada por assistentes sociais ou psicólogos) que coordena os serviços de apoio aos assistentes sociais e psicólogos. O referido dispositivo de controle coordena ainda o grupo de comissários de infância, juventude e idoso ¹² . Não podemos deixar de sinalizar que assistentes sociais e psicólogos se constituíam como cargos singulares no âmbito do TJ/RJ, ou seja, cargos que, por exigirem formações extrajurídicas, eram considerados singularmente para efeitos de promoções e progressões funcionais. Atualmente, os cargos de nível superior são considerados globalmente como de analistas judiciários, com especialidade (nos casos de psicologia e serviço social) ou sem especialidade. A ruptura com os cargos singulares, ao que parece, tem
estreita relação com o processo de sucateamento das profissões regulamentadas dentro da estrutura do TJ/RJ ¹³ . Importante dizer que os profissionais que entraram no concurso de 2004 iniciaram a carreira vários níveis abaixo daqueles originários de concursos anteriores ¹⁴ . A homogeneização dos cargos singulares, segundo nossa análise, tem relação com a precarização do trabalho (ANTUNES, 2013) , uma vez que anula as especificidades e iguala a todos por baixo, desconsiderando o grau de exigências inerente ao exercício de determinadas profissões. Situamos que a diluição das especificidades, em uma análise desavisada, pode parecer uma aposta na perspectiva transdisciplinar de intervenção; porém, necessário salientar que transdisciplinaridade não implica anular especificidades e diferenças, mas apostar no encontro, sem prevalência de saberes / fazeres: Transdisciplinarizar, transitar por uma terra às escuras sem pretensão de iluminação ou de identificação da filiação, posto ser terra bastarda. Plano de onde advêm objetos, sujeitos e mundos em zonas onde inesgotável, diferenciada e (in)disciplinadamente, nascem novas atualidades. Transdisciplinarizar na pesquisa, produzir o real, pôr-se sensível aos processos de singularização. Implodir a cisão entre sujeito e objeto, entre falso e verdadeiro, promovendo dessubstancializações e outras figurações, fazendo emergir novas formas de mundo e de viver. (FONSECA, NASCIMENTO e MARASCHIN, 2012, p. 4) Ressaltamos que não se pode deixar de considerar que os assistentes sociais e psicólogos são profissionais que, à semelhança dos juízes, promotores e advogados / defensores, emitem laudos e pareceres nos processos, ou seja, após uma série de intervenções técnicas, têm que anexar avaliações técnicas fundamentadas. As intervenções e exigências éticas e técnicas dos profissionais assistentes sociais e psicólogos são bastante diferenciadas dos demais profissionais que atuam nos autos processuais, já que os cartorários são responsáveis pelo andamento do processo, juntando peças e documentos. Ressaltamos que não há aqui uma desqualificação dos fazeres do trabalhador cartorário, apenas a explicação do que é requerido de cada profissional. Devemos lembrar, inclusive, que os assistentes sociais e psicólogos respondem junto aos respectivos Conselhos de Classe por quaisquer deslizes ético-técnicos. Em meio ao levantamento de informações sobre as condições de trabalho de psicólogos e assistentes sociais no TJ/RJ, buscamos primeiramente os Serviços de Apoio dessas categorias, mas, frente à recusa de publicização de dados sobre lotações e adoecimentos pelos Serviços, a comissão realizou um primeiro trabalho de campo, telefonando para cada serventia, tendo constatado preliminarmente que mais de 50% dos profissionais entraram ou tinham entrado em licença médica, revelando alto índice de adoecimento entre os assistentes sociais e psicólogos do quadro. Isso nos faz pensar sobre as condições de trabalho e sua relação com o adoecer: A reestruturação produtiva do país, a incorporação de novas tecnologias, a precarização das relações de trabalho, a intensificação do ritmo, a diminuição de postos de trabalho, a sobrecarga e a exigência de polivalência
dos que permanecem trabalhando têm ampliado e agravado o quadro de doenças e de riscos de acidentes. (LANCMAN, 2004, p. 29) Lembramos que foram requisitados aos Serviços apenas os dados quantitativos sobre lotações e adoecimentos – não a identificação dos trabalhadores –, mas mesmo assim os ocupantes dos Serviços se recusaram a informar tais dados, alegando que seriam sigilosos. Há que se colocar em análise que tipo de aliança corresponde à recusa de divulgação de dados referentes à saúde / doença dos trabalhadores pelos ditos Serviços de Apoio aos psicólogos e assistentes sociais. Segundo o planejamento administrativo inicial da Corregedoria, as ETIC seriam o único modelo de atuação para psicólogos e assistentes sociais no âmbito do TJ/RJ. Porém, articulações políticas, a partir de resistências dos próprios trabalhadores, preservaram as equipes das VIJI, CPMA, JECRIM, JVDOM. Há que considerar ainda que, nas comarcas em que não há varas especializadas ¹⁵ , as ETIC são responsáveis pelas naturezas processuais atinentes às especificidades das referidas serventias (situação que tende a prejudicar ainda mais os usuários e as condições de trabalho), bem como pela saúde das duas categorias profissionais – o que implica desrespeito flagrante ao instituído em lei pelo próprio Poder Judiciário. Dados produzidos: breves análises O maior número de respondentes, não casualmente, foi de profissionais que atuam em ETIC (58,79%), já que essa modalidade de serviço é a que concentra maior número de profissionais (e também os que estão mais sobrecarregados); depois dos respondentes das ETIC, tivemos: VIJI (24,85%), CPMA (9,7%), JVDOM (6,06%) e outras lotações (0,6%). Não houve respondentes da VEP nem da VIJ ¹⁶ . Também não houve respondentes que atuavam nas três VIJI então existentes na comarca da capital ¹⁷ . No tocante àqueles que trabalhavam com interditados (que não têm curadores) na capital, houve apenas um questionário respondido, tendo como referência a curadoria geral, com abrangência estadual. Apesar das ETIC já pressuporem o atendimento de várias varas e / ou em várias comarcas, 69% dos profissionais lotados em ETIC já tiveram que prestar auxílio a varas e / ou comarcas não cobertas por suas ETIC originais. Além disso, algumas ETIC acumulam as Varas com competência de família com o trabalho desenvolvido nas CPMA e VIJI, na dupla sobrecarga de trabalho. Assim, 8% dos profissionais laboram em ETIC + CPMA (8%) enquanto 22% atuam em ETIC+CPMA+VIJI. Em 59% das ETIC, os profissionais circulam entre vários fóruns e / ou comarcas, enquanto em apenas 6% os processos são centralizados em um único fórum e os profissionais não circulam; em 11% dos casos as duas dinâmicas se alternam, para 23% as dinâmicas são outras e 1% não respondeu. Considerando a necessidade de locomoção dos profissionais, 18,31% dos respondentes não informaram o tempo de locomoção. Porém, 14,08% permanecem por mais de três horas em trânsito; 12,68% destinam entre duas e três horas por dia para chegar aos destinos laborais; 46,48% gastam
entre uma e duas horas na locomoção até o trabalho; apenas 8,45% dos assistentes sociais respondentes que atuam na modalidade de ETIC levam menos de uma hora para chegar aos locais de trabalho. A partir da implementação das ETIC, considerando a centralização dos processos em um único fórum, 19,7% disseram que se leva em torno de 15 dias para o primeiro atendimento ao jurisdicionado, desde a remessa do processo pelo fórum de origem; 11,1% pontuaram que o usuário esperaria pelo primeiro atendimento entre 16 e 30 dias; para outros 11,11%, esse tempo de espera seria entre 31 e 60 dias; outros 11.1% dos respondentes disseram que o jurisdicionado esperaria entre 61 e 90 dias. Importante destacar que 47% dos assistentes sociais e psicólogos não responderam a essa questão. A rotina administrativa implementada com as ETIC implica prejuízos nas atividades e projetos profissionais para 71% dos entrevistados; 7% deles consideraram que houve prejuízos e melhorias; para 6%, não houve alteração, e para 3% desses profissionais, ocorreram melhorias. 13% não responderam. O atendimento ao público sofreu prejuízo, após as ETIC, segundo 70% dos entrevistados; 23% destes não responderam; para 6%, não houve alteração, sendo que para 1% houve melhoria. Os prejuízos ampliados apresentados após a formação das ETIC são: prejuízos no atendimento ao público (22,8%); sobrecarga de trabalho (20,67%); deslocamento entre comarcas (16,77%); inarticulação com a rede (10,05%); dificuldades administrativas diversas (8,38%); burocratização / fragmentação do trabalho / autoritarismo da gestão (6,79%); estresse / adoecimento (5,08%); perda de referência aos juízes que atuam sobre os processos (2,8%). 6,66% não responderam. Com relação às dificuldades enfrentadas pelos profissionais que não estão lotados em ETIC, 44,61% destacaram a falta de infraestrutura; para 27,69%, a sobrecarga de trabalho / falta de profissionais; para 7,69%, o deslocamento; para 6,15%, as demandas de trabalho incompatíveis com as atribuições (inquirições, fiscalizações, oitivas); para outros 6,15%, a dificuldade na aproximação com o magistrado; para 4,61%, a falta de reconhecimento profissional; para 3,1%, a precarização das condições de trabalho. De acordo com a pesquisa, 76% dos profissionais souberam de licença para tratamento de saúde por parte de seus colegas ou eles mesmos se afastaram por motivo de adoecimento nos últimos dois anos. Do total, 71% consideram que há relação entre o adoecimento dos trabalhadores e as condições de trabalho a que vêm sendo submetidos, 2% consideram que não existe qualquer relação entre adoecimento e condições de trabalho e 19% não sabia responder. 8% não responderam. Considerando níveis de satisfação ou insatisfação com o trabalho, 68% dos profissionais se identificaram com a faixa “de pouco satisfeitos a muito insatisfeitos”, que apresentava três níveis, da seguinte forma: 41% se
declararam pouco satisfeitos, 19% se consideram insatisfeitos e 8%, muito insatisfeitos. Já 28% se declararam entre muito satisfeitos e satisfeitos (satisfeitos: 26%; muito satisfeitos: 2%). 4% não responderam. Para 48,7% dos respondentes, os Serviços de Apoio não seriam parceiros no cotidiano laboral, tendo apenas uma dimensão fiscalizadora – notadamente a partir da exigência do preenchimento dos formulários de estatísticas (os quais não fariam sentido para o coletivo de trabalhadores, tendo apenas uma dimensão panóptica (Foucault, 1991) a serviço das estruturas de poder instituídas). No entanto, 29,8% dos respondentes compreendem os Serviços como sendo um dispositivo potente no cotidiano de trabalho. 21,5% dos participantes não se manifestaram sobre os Serviços. Foi questionado se os trabalhadores teriam conhecimento da implementação do dispositivo conhecido como Depoimento sem dano (DSD) nas serventias em que atuam, em todo o âmbito do TJ/RJ. Apenas 2,5% dos respondentes disseram que têm conhecimento do DSD, enquanto 91,3% disseram que não (6,2% não responderam). Ressaltamos tratar-se o DSD de atribuição diversa às competências profissionais de assistentes sociais e psicólogos. O Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP) baixaram resoluções proibindo que assistentes sociais e psicólogos trabalhassem com DSD, visto tratar-se de prática inquisitiva e que, inclusive, é exercida por policiais em vários países. Tal prática é nitidamente contrária à ética que pauta os fazeres em serviço social e psicologia. Em função de alianças políticas que atravessam a judicialização do cotidiano e a construção do Estado Penal, as aludidas resoluções ¹⁸ foram caçadas pela Justiça Federal. Cabe situar que existem reflexões sérias sobre os efeitos prejudiciais de inquirições com infantes, notadamente quando mais novos. ¹⁹ Considerações finais A partir da análise preliminar dos dados coletados, evidencia-se que a constituição de ETIC deteriorou expressivamente o trabalho desenvolvido pelas equipes técnicas interprofissionais, implicando prejuízos ao público e ao trabalhador. Foi-nos possível depreender que todas as equipes, em maior ou menor grau, encontram-se sobrecarregadas. As dificuldades não dizem respeito apenas à quantidade excessiva de processos atendidos, mas também aos enormes deslocamentos para diversas comarcas ou até mesmo cidades e à submissão a várias rotinas administrativas (um mesmo profissional tem que se submeter a demandas judiciais diferentes, com chefes de cartórios diferentes, com necessidades de construção de rede diferentes, etc). Há ainda a dimensão trágica que atravessa as vidas daqueles que protagonizam as tramas em análise, o que também se constitui fator considerável no que tange aos limites emocionais dos trabalhadores em seus cotidianos laborais. Assim, há que se considerar a imperiosa necessidade da construção de coletivos que possam produzir sentido às intervenções técnicas e, assim, diluir as tensões inerentes ao cotidiano do trabalho dos assistentes sociais e psicólogos do TJ/RJ, independente de suas lotações. Afinal, durante a
assembleia de restituição, pôde-se notar que as equipes que lidam de modo mais fluido com as dificuldades laborais são aquelas que produziram espaços coletivos e sistemáticos para discutir a prática profissional. Porém, isso não é comum em ETIC, mas nas equipes que têm lotação por serventia. Os dispositivos de discussão não permitem “confundir” o trabalho transdisciplinar com a aniquilação das especificidades / diferenças da atividade laboral, mas apostam no encontro potente de diferentes práticas profissionais. Conforme a pesquisa, para os profissionais entrevistados, a invisibilização da questão da falta de profissionais, os gastos com o traslado, a sobrecarga de trabalho; a exaustão física derivada de inúmeros deslocamentos, o adoecimento físico e psíquico do trabalhador, a necessidade de realização de concurso para as duas categorias; a inarticulação com a rede (e, portanto, a impossibilidade de remetimento do usuário para as políticas públicas existentes), a falta de tempo para uma escuta que potencialize os sujeitos a buscarem soluções para os seus conflitos, para além da dimensão diagnóstica / avaliativa e o maior espaçamento para agendar os atendimentos com o público teriam relação direta com a constituição das ETIC. Obviamente, compreendemos que a precarização das condições de trabalho se associa a complexas relações políticas e econômicas, expressando a incorporação de tecnologias de maximização da exploração do trabalhador por meio da sobrecarga e da elevação de exigências no trabalho. O projeto das ETIC se insere, portanto, em uma rotina laborativa atravessada por importantes transformações na forma da organização produtiva, na gestão do trabalho e nas relações com a sociedade. Em meio a um processo de redução do papel do Estado nas políticas públicas, vimos percebendo inequivocamente que novas formas de gestão da administração pública, importadas acriticamente da lógica empresarial, estão subordinando a efetiva realização da prestação de uma Justiça de qualidade, que atenda as necessidades sociais, à pretensa lógica da redução de gastos, sob alegação de que uma menor relação custo / benefício otimizaria a qualidade do trabalho – o que, como provado, não corresponde à realidade. Ressalte-se, porém, que tal análise crítica não é dimensionada pela administração. Não podemos perder de vista que, no âmbito do TJ/RJ, como em outras instituições laborais, a lógica da vigilância e controle é difusa, e que os trabalhadores que vigiam normalmente não têm consciência da vigilância e controle a que também estão submetidos. O desenvolvimento da lógica produtivista no TJ/RJ tem contribuído para a sobrecarga de trabalho, intensificação do ritmo de execução das tarefas e exigência de desempenho de produtividade por parte dos trabalhadores públicos, juntamente com a limitação de concursos públicos, realização de mutirões, implementação de políticas de reposição do déficit do quadro de pessoal com base na terceirização e na contratação de estagiários e, em geral, para a precarização da prestação dos serviços. Esta lógica dá ênfase em um reordenamento institucional que se sobrepõe às preocupações com as condições de trabalho e às implicações na efetiva
qualidade dos serviços prestados à população. Mais que um levantamento quantitativo, a análise dos dados da pesquisa aponta para equívocos desse modelo de gestão “do homem que trabalha” – que vem impactando de forma insidiosa, traiçoeira e constante a população e os trabalhadores públicos que atendem às pessoas que “demandam” esses serviços essenciais. 1 Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; professores doutores Deise Mancebo e Floriano Godinho. 2 A psicóloga Damiana de Oliveira participou de parte do trabalho realizado pela comissão, tendo se ausentado no final das intervenções. 3 Centrais de Penas e Medidas Alternativas à Prisão, Varas de Execuções Penais e Varas de Infância, Juventude e Idoso, respectivamente. 4 Nota do organizador: sobre as ETIC, remeto o leitor também ao capítulo intitulado “As equipes técnicas no Judiciário: que relação é esta?”. 5 Com as assistentes sociais Patrícia Valéria, Márcia Barroso e Ana Cristina Cavalcanti e os psicólogos Lindomar Darós, Erika Piedade e Márcia Guinâncio. 6 Art. 150: cabe ao Poder Judiciário, na elaboração de sua proposta orçamentária, prever recursos para manutenção de equipe interprofissional, destinada a assessorar a Justiça da Infância e da Juventude. 7 Art. 151: compete à equipe interprofissional, dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico. 8 Desde o ano de 2005, com a publicação do Estatuto do Idoso, as Varas de Infância e Juventude passaram a assumir também as demandas processuais referentes aos idosos em situações de vulnerabilidade. O acúmulo de competência não se desdobrou em aumento do quantitativo de trabalhadores, quer nas equipes técnicas, quer nos cartórios das respectivas serventias judiciais. 9 A Vara de Execuções Penais tem abrangência estadual. 10 Fala do juiz auxiliar da CGJ do TJ/RJ durante a reunião que comunicou aos trabalhadores as mudanças na organização dos serviços, em 2009. 11 Art. 150 do ECA; art. 29 da Lei 11.340/2006; artigos 5, 10 e ss.) da Lei 7.210/1984. 12 Cargo ocupado por várias formações de nível superior: serviço social, administração de empresas, direito, pedagogia, psicologia, dentre outras, o que sofre alterações a cada edital para novo concurso.
13 As alterações no plano de cargos, carreira e salários do TJ/RJ deram-se pela Lei 4.620/2005. 14 Assistentes sociais e psicólogos iniciavam a carreira no índice 1.800; com as alterações, passaram a ingressar no índice 1.400, o que equivale a uma considerável perda salarial. Atualmente, os cargos de nível superior são divididos nas categorias A, B e C, variando de A1 a C12. Para maior aprofundamento, consultar a Lei 4.620/2005. 15 Ou seja, varas com competências específicas para processos de infância e juventude (VIJI), ou processos atendidos pelas Centrais de Penas e Medidas Alternativas, Juizados Especiais Criminais ou Juizados de Violência Doméstica – dinâmicas relativamente comuns no interior do estado do Rio de Janeiro. 16 Vara de Infância e Juventude, com competência estrita para matéria de adolescentes em conflito com a lei – por isso VIJ, não VIJI (que também tem a competência de atuar em processos de idosos). Não atende crianças, apenas adolescentes acusados de prática de ato infracional. 17 Foi criada mais uma VIJI em janeiro de 2015. 18 Conselho Federal de Serviço Social e Conselho Federal de Psicologia. Ver Resolução CFESS nº 554/2009 e Resolução CFP Nº 010/2010. 19 Para aprofundar a questão, ver Arantes (2009), Azambuja (2009) e Brito (2009). Nota do organizador: sobre as críticas pertinentes ao DSD, remeto o leitor ao texto “Duas décadas e meia de vigência da Convenção sobre os Direitos da Criança: algumas considerações”, item – O debate no Brasil. Referências ALVES, G. O novo metabolismo social do trabalho e a precarização do homem que trabalha. In: __. Dimensão da Precarização do Trabalho: Ensaios de Sociologia do Trabalho. Bauru: Projeto Editorial Práxis, 2013. __. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011. ANTUNES, R. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. v. II. São Paulo: Boitempo, 2013. ARANTES, M. de M. Pensando a proteção integral: contribuições ao debate sobre proposta de inquirição judicial de crianças e adolescentes como vítimas e testemunhas de crimes. In: Falando sério sobre a escuta de crianças e adolescentes em situação de violência e a rede de proteção: propostas do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Brasília: CFP, 2009. p. 79-100.
AZAMBUJA, R. F. de. A inquirição da vítima de violência sexual intrafamiliar à luz do melhor interesse da criança. In: Falando sério sobre a escuta de crianças e adolescentes em situação de violência e a rede de proteção: propostas do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Brasília: CFP, 2009, p. 27-70. BRITO, L. M. T. de. Diga-me agora... O Depoimento sem Dano em análise. In: Falando sério sobre a escuta de crianças e adolescentes em situação de violência e a rede de proteção: propostas do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Brasília: CFP, 2009, p. 123-138. FONSECA, T.G.M.; NASCIMENTO, M.L. do, MARASCHIN, C. Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. FOUCAUT, M. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1991. HARVEY, D. O. O enigma do capital e as crises do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2011. LANCMAN, S. Prefácio e Apresentação. In: LANCMAN, S.; SZNELWAR, L. (Orgs.) Christophe Djours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004, p. 17-36. MANCEBO, D. Indivíduo e Psicologia: gênese e desenvolvimentos atuais. In: MANCEDO, D. ; VILELA, A. M. J. (Orgs.). Psicologia Social: abordagens sócio-históricas e desafios contemporâneos. 2. ed. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2004, p. 35-48. PASSOS, E.; BENEVIDES, R. Por uma política da narrativa. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; DA ESCÓSSIA, L. (Orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Salina, 2009. Sobre os autores Aline Bemfica–Psicanalista. Doutoranda em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É coordenadora metodológica do projeto “Já é” (UFMG). Publicações: BEMFICA, A. Psicologia jurídica: ética, transmissão e política (Org.) Rio de Janeiro: Imago, 2011. E-mail: [email protected] Cristina Rauter–Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (1975). Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) (1982). Doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) (1998). Pós-doutorado em Filosofia no Programa de pós-graduação em Filosofia da UFRJ (2010) e na Université de Picardie Jules Verne, França (2011). É professora titular de Psicologia Social e Institucional do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF),
onde atua na graduação e na pós-graduação, e coordena o Núcleo Transdisciplinar Subjetividades, Violências e Criminalidade (TRANSCRIM). Atualmente dedica-se ao campo da violência e dos processos de criminalização contemporâneos e à questão da corporeidade com enfoque transdisciplinar. E-mail: [email protected] Eduardo Ponte Brandão–Psicólogo, Psicanalista. Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (1993). Mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) (1997). Doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ (2008). Professor do curso presencial de pós-graduação em Psicologia Jurídica e de graduação à distância em Pedagogia da Faculdade Integrada A Vez do Mestre (AVM). Professor do módulo de Psicologia Jurídica da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Professor do curso de especialização de psicanálise com crianças–intervenção precoce do instituto São Zacharias. Foi professor de psicologia jurídica e supervisor clínico do núcleo de psicanálise (SPA) da Universidade Laureate / Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação (IBMR) (2006-2013). Foi Orientador Educacional do Colégio São Vicente de Paulo (2013-2015). Foi banca de diversos concursos públicos no Brasil, especialmente na área jurídica. É psicólogo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro desde 1999. Ganhador do Prêmio Monográfico Madre Cristina Sodré Dória (categoria Psicólogo), organizado pelo Conselho Federal de Psicologia (dez. 1997), com o título “Sobre a ética das práticas Psi: felicidade e cidadania”. Publicações: 1) BRANDÃO, E.; GONÇALVES, H. (Orgs.). Psicologia Jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: NAU, 2011. 2) BRANDÃO, E. Nem Édipo, nem barbárie: genealogia dos laços entre Aliança e Sexualidade. Curitiba: Juruá, 2012. 3) BRANDÃO, E. Sobre a ética das práticas Psi: felicidade e cidadania. Revista Psicologia: ciência e profissão, 1998, 18, (1). E-mails: [email protected] [email protected] Erika Piedade da Silva Santos–Graduação em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-graduação em Psicologia Jurídica pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e em Psicologia Junguiana pelo Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação (IBMR). Mestrado em Direito da Cidade pela UERJ. Doutorado em Estudos da Subjetividade e Política pela UFF. É professora do curso presencial de pós-graduação em Psicologia Jurídica da Faculdade Integrada A Vez do Mestre (AVM) e psicóloga do TJ/RJ desde 1999. E-mail: [email protected] Esther Maria de Magalhães Arantes–Normalista pelo Instituto de Educação de Goiás (1967). Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (1971) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (1972). Mestrado em Educação pela Boston University (1976). Doutorado em Educação pela Boston University (1981). Pós-doutorado pela UFRJ (2011). Professora do Programa de pós-graduação em Políticas
Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Foi Coordenadora Adjunta do Programa de pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ (2008-2010). Foi conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) pelo biênio 2013-2014, representando o CFP, e do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro (CEDCA/RJ) (2009-2010). Coordenou a Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO) – Regional Rio e a Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Foi membro colaborador da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, membro do Grupo de Trabalho sobre crianças e adolescentes do CFP e membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura no ano de 2012. Recebeu a Medalha EMERJ (10 dez. 2014). Atualmente dedica-se a estudos e pesquisas nas áreas da história da assistência à infância no Brasil e das políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes, bem como estudos na área de Psicologia e Direitos Humanos. E-mail: [email protected] Lenita Pacheco Lemos Duarte–Psicóloga, Psicanalista. Graduação em Psicologia pela Faculdade de Humanidades Pedro II. Pós-graduação em Psicanálise pela Universidade Estácio de Sá (UNESA) e em Mediação de Conflitos com ênfase em família pela Universidade Cândido Mendes (UCAM). Mestrado em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É membro da Escola de Psicanálise Fóruns do Campo Lacaniano – Brasil (EPFCL), do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro consultivo do Instituto Proteger. Publicações: 1) DUARTE, Lenita P. L. A guarda dos filhos na família em litígio: uma interlocução da Psicanálise com o Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012; 2) DUARTE, Lenita P. L. A Angústia das crianças diante dos desenlaces parentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Autora de diversos artigos publicados em revistas e livros das áreas da Psicanálise e Direito. E-mail: [email protected] Lindomar Expedito S. Darós–Doutorando em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestrado em Psicologia Social pela Universidade Gama Filho (UGF). É psicólogo concursado do TJ/RJ. E-mail: [email protected] Márcia Arán (in memorian)– Psicanalista. Graduação em Psicologia pela Universidade de Caxias do Sul (1986). Professora visitante do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Foi psicóloga do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Marcone Mello–Graduação em Psicologia pela Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC) – Barbacena / MG.
E-mail: [email protected] Maria Helena Zamora–Doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) (1999). Professora do Programa de pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-Rio desde 2012. Professora convidada da National / Global Advisory Board for Faith and Justice in Community and Society (USA) desde 2011. Foi professora do Mestrado em Psicologia Social da UNIVERSO (04/2010-08/2012). Atuou em seis pós-graduações lato sensu em Psicologia Jurídica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Psicologia da Saúde (PUC-Rio) e outras. Consultora da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude (ABMP) de 2008 a 2009 e da organização Médicos Sem Fronteiras no mesmo período. É membro do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescentes (CEDECA-Rio) desde 2013. E-mail: [email protected] Maria Márcia Badaró Bandeira–Pós-graduação em Psicologia Jurídica e Mestrado em Psicologia Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Psicóloga aposentada da Secretaria de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP). Publicações: BANDEIRA, Maria M. B. Sistema prisional – contando e recontando histórias: as Oficinas de Leitura como processos inventivos de intervenção. Curitiba: Juruá, 2012. E-mail: [email protected] Paula Mancini Cordeiro de Mello Ribeiro–Psicanalista. Pós-doutoranda do Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC/RJ, mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, especializada em Psicologia Clínica pela PUC/RJ, graduação em psicologia na PUC/RJ (1991) e Vice Presidente do Núcleo de Atenção à Violência. É professora do curso presencial de pós-graduação em Psicologia Jurídica da Faculdade Integrada A Vez do Mestre (AVM). É membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica e vice-presidente do Núcleo de Atenção à Violência (NAV). E-mail: [email protected] Pedro Paulo Gastalho de Bicalho–Graduação em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-graduação em Psicologia Jurídica pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Mestrado e Doutorado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado do Instituto de Psicologia, do Programa de pósgraduação em Psicologia e do Programa de pós-graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ. Professor visitante do curso presencial de pós-graduação em Psicologia Jurídica da Faculdade Integrada A Vez do Mestre (AVM). Foi professor visitante da Universidad de la Republica (Uruguai), pelo convênio CAPES/UdelaR. Atuou como conselheiro efetivo do Conselho Nacional de Segurança Pública e do Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, do Ministério da Justiça. Coordenou a Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. É bolsista de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Jovem Cientista do Nosso Estado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). E-mail: [email protected] Renata Costa-Moura–Doutorado em Psicopatologia Clínica e Psicanálise pela Université de Paris 7 Dennis-Diderot. Pós-doutorado em Clínica e Pesquisa em Psicanálise pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Professora do Departamento de Psicologia e Programa de pós-graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenadora do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Autor de ato previsto como Criminoso (PAI-PAC/ES). Fundadora e coordenadora geral do Observatório de Direitos Humanos e Justiça Criminal do Espírito Santo–ODHES-UFES–parte da Rede Nacional de Observatórios de Direitos Humanos, Saúde e Justiça. Cocoordenadora do Grupo de Pesquisa do CNPq, Laboratório “Políticas, Direitos, Éticas” do Laboratório Interinstitucional de Pesquisa em Direitos Humanos. Presidente de honra da Associação FrancoBrasileira de Direito e Psicanálise (AFBDP). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Publicações: 1) COSTA-MOURA, R. Les rapports du sujet à la loi lors des passages à l`acte criminel: un approche psychanalytique. Lille: ANRT, 2001. 2) COSTA-MOURA, R.; BOUVILLE, JeanMarc; IUCKSCH, M.; PETITOT, F. (Orgs.) Des Jeunes face à la loi. 89 ed. v. 1. Paris: INJEP, 2007. E-mail: [email protected] Sidney Shine–Graduação, Mestrado e Doutorado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduação em Psicologia Clínica e Jurídica pelo CRP-06. Professor em cursos de Psicologia Jurídica. Ex-Clinical Associate na Clínica de Tavistock (Londres, Reino Unido). É psicanalista com atuação clínica em consultório particular. Psicólogo judiciário do Tribunal de Justiça de São Paulo. Publicações: 1) SHINE, S. A espada de Salomão: a psicologia e a disputa de guarda de filhos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. 2) SHINE, S. Psicopatia. Coleção Clínica Psicanalítica. 4ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. 3) SHINE, S. Avaliação psicológica e lei: adoção, vitimização, separação conjugal, dano psíquico e outros temas. (Org.) São Paulo: Casa do Psicólogo, 2014. E-mail: [email protected] Silvia Ignez Silva Ramos–Doutoranda do Programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do curso presencial de pós-graduação em Psicologia Jurídica da Faculdade Integrada A Vez do Mestre (AVM). É psicóloga da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected] Taysa Schiocchet–Doutorado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com período de estudos doutorais na Université Paris I – Panthéon Sorbonne (França) e na Facultad Latinoamericana de Ciencias
Sociales (FLACSO) (Argentina). Pós-doutorado em Direito pela Universidad Autónoma de Madrid (UAM) (Espanha). Professora do Programa de pósgraduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (PPGD / UNISINOS) e professora visitante da Université Paris X. Líder do Grupo de Pesquisa BioTecJus – Estudos Avançados em Direito, Tecnociência e Biopolítica, vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e ao PPGD / UNISINOS. E-mail: [email protected] Table of Contents Capa Rosto Créditos Sumário Epígrafe Apresentação Prefácio Da execução à construção das leis: a psicologia jurídica no legislativo brasileiro Uma leitura da genealogia dos poderes sobre a perícia psicológica e a crise atual na psicologia jurídica Duas décadas e meia de vigência da Convenção sobre os Direitos da Criança: algumas considerações Conselhos tutelares: defesa de direitos ou práticas de controle das famílias pobres? A lógica interventiva nas perícias em meio às disputas de famílias Homoparentalidade e modos de vida A dimensão trágica da alienação parental nos conflitos familiares: fragmentos da clínica Psicanálise e as questões da perícia em meio às disputas familiares Responsabilidade: laço entre a Cidade e o paciente judiciário A “revista vexatória” e sua “utilidade” inconfessável no sistema penal brasileiro Violência e direitos humanos
O psicólogo na Defensoria Pública do Rio de Janeiro: para além de assistente técnico, um mediador As equipes técnicas no Judiciário: que relação é esta? Um lugar de palavra para adolescentes em situações de violência Psicanálise, educação e direito da infância e da juventude: uma reflexão sobre a normatização, a sexualidade e o saber na clínica com adolescentes Condições de trabalho: o cotidiano laboral de assistentes sociais e psicólogos no TJ/RJ Sobre os autores Landmarks Cover Title-Page Table of Contents Preface