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Portuguese Pages 224 [225] Year 2019
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Luís Cláudio Pereira Symanski e Flávio dos Santos Gomes
Arqueologias da escravidão e liberdade: senzalas, cultura material e pós-emancipação na Fazenda do Colégio, Campos dos Goytacazes, séculos XVIII a XX
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) BIBLIOTECÁRIA: MARIA ISABEL SCHIAVON KINASZ, CRB9 / 626
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Arqueologias da escravidão e liberdade: senzalas, cultura material e pós-emancipação na Fazenda do Colégio, Campos dos Goytacazes, séculos XVIII a XX / Luís Cláudio Pereira Symanski, Flávio dos Santos Gomes (Orgs.). – Curitiba: Brazil Publishing, 2019. [recurso eletrônico]
ISBN 978-65-5016-272-6
1. Escravidão – Brasil – História – Séc. XVIII a XX. 2. Pesquisa arqueológica. 3. Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes. I. II. Título.
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APRESENTAÇÃO DA SÉRIE ESTUDOS AFRICANOS DO CEA/UFMG O Centro de Estudos Africanos da UFMG foi criado oficialmente em 2012, e tem como missão promover o encontro de pesquisadores que trabalham com a África e divulgar os resultados das pesquisas desenvolvidas sobre o tema no âmbito da UFMG, em outros centros de pesquisa no Brasil e no mundo, contribuindo assim para o estabelecimento da área de pesquisa no interior de nossa instituição e para a consolidação dos estudos africanos no País. As parcerias com universidades e outras instituições de ensino e pesquisa têm como objetivo a realização de atividades conjuntas, o intercâmbio de publicações e projetos de mobilidade acadêmica de estudantes e professores. Por meio de acordos internacionais, estudantes e pesquisadores da UFMG já puderam cursar disciplinas de sua área no exterior e alunos estrangeiros vieram à UFMG com o mesmo intuito. Nos primeiros anos de existência, o CEA também promoveu conferências e seminários em torno de temas relacionados à África, além de receber professores estrangeiros para ministrar disciplinas em nossos programas de Pós-Graduação. A Série Estudos Africanos do CEA/UFMG nasce com o objetivo de publicar obras que envolvam redes de pesquisadores, brasileiros e estrangeiros, filiados ou não a instituições de ensino superior, e que desenvolvem trabalhos com diferentes perspectivas, visando a formação de um pensamento multidisciplinar, contemplando a diversidade étnica característica de nossos povos. Organizado por Luís Cláudio Pereira Symanski e Flávio dos Santos Gomes, o livro Arqueologias da Escravidão e Liberdade: Senzalas, Cultura Material e Pós-Emancipação na Fazenda do Colégio, Campos dos Goytacazes, Séculos XVIII a XX, é o décimo título da Coleção Estudos Africanos do CEA/UFMG. Vanicléia Silva Santos Universidade Federal de Minas Gerais
Os trabalhos de campo e análises de laboratório que resultaram na publicação deste livro foram realizados com o suporte do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), sob o número de processo 472181/2011-4, e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), sob o número de processo APQ-01789-14.
Apresentação Diásporas, arqueologias e protagonismos negros: por uma memória das experiências da escravidão e da pós-emancipação Flávio dos Santos Gomes Este livro apresenta ensaios e investigações de projetos que reuniram arqueólogos e historiadores – com financiamentos do Fapemig, Fapesp e CNPq – em diferentes etapas da pesquisa entre 2012 e 2018. As ideias para esta colaboração acadêmica surgiram exatamente há uma década. Em abril de 2009 – com apoio do CNPq – eu, Olivia Cunha e Dale Tomich organizamos o Seminário Internacional Repensando a Plantation: paisagens simbólicas, sociais e materiais, no Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com expectativas multidisciplinares, reunimos antropólogos, arqueólogos e historiadores para explorar com seus estudos o que avaliávamos como tempos, materiais e espaços da (na) plantation sob dimensões atlânticas. Entre os convidados estava Luís Claudio Symanski, que já desenvolvia pesquisas importantes e pioneiras sobre arqueologia, escravidão e diáspora. Para além do seminário houve uma mobilização intelectual nossa de testarmos formas de interlocução e colaboração institucionais, visando escavações arqueológicas. Já havia iniciativas nacionais com quilombos e fazendas, porém poucas investindo em contextos de senzalas. Entre as possibilidades inicialmente levantadas a respeito de áreas do vale do Paraíba cafeeiro ou as planícies açucareiras do norte fluminense, resolvemos realizar sondagens. Uma ideia inicial que logo nos entusiasmaria era escavar antigas senzalas de fazendas de jesuítas e beneditinos, localizadas respectivamente nos distritos de Goitacazes e Mussurepe, distantes de 15 a 25 quilômetros do centro do município de Campos de Goitacazes. Era uma ideia remota, muita antiga e que tinha história própria. Foi em 1987 – primeiro ano de graduação em Ciências Sociais na UFRJ – que entrevistei Seu Oto, filho do escravizado Amâncio, ofício de carpinteiro, que pertenceu à fazenda São Bento, propriedade dos monges beneditinos. Parecia “desconfiado”, indagando por que eu vivia à procura
– com gravador e filmadora – de memórias da escravidão. Eram relatos e memórias que fascinavam. Ouvindo tentava fazer uma viagem através da imaginação. Às vezes parecia mesmo que eu queria me transformar em um escravizado, voltando aquele tempo. É claro que eu não era nenhum masoquista; talvez quisesse reviver um escravizado rebelde, não alguém apanhando no tronco ou trabalhando incessantemente na lavoura, mas sim, um cativo que fugia (de preferência para os quilombos, um tema que já era uma obssessão) em uma vida heróica de aventuras. O fato é que as memórias de Oto, Valdomira, Manoel Bentinho, Antônio, Inácio, Geraldo, Estelita, Boaventura e outros tantos octogenários – me fazia mergulhar na escravidão. Mais do que relatos sobre as suas infâncias, narravam estórias que seus pais – estes sim escravizados – haviam contado. Começaria a perceber que as tais viagens que eu pensava estar fazendo sozinho, eram também feitas por eles. Isso mesmo! Através das estórias que contavam, eles também viajavam ao tempo da escravidão. Havia mesmo um recontar e reinventar memórias – com outras versões, ricas em detalhes – que pareciam terem sido vividas. Meu interesse pelo estudo da escravidão no Brasil seria avassalador a partir daquele ano de 1987. Mas a vontade de ouvir memórias do cativeiro era mais antiga. Ainda crianças, eu e minha irmã Olivia – não sei precisar em que época – já ouvíamos com muito “interesse” e “curiosidade” as estórias de Tia Bá ali em São Bento. Enquanto preparava a comida, num improvisado fogão à lenha, nos seus já 90 anos rememorava sozinha e em voz alta – como se tivesse vasculhando um velho baú – estórias que os seus pais lhe contaram, ou então que ouviu, na infância, da primeira geração de libertos no início do século XX. Posteriormente, identifiquei nos Arquivos da Ordem Beneditina de São Bento no Rio de Janeiro que Tia Bá era prima-irmã da minha bisavó, uma crioula escravizada de nome Dionísia – apelidada Indundê – neta da africana Martinha, do gentio da Guiné, que morreu em 1742. Essas estórias – um repertório de memórias – ficaram presas na minha mente. E as pesquisas arqueológicas; as diversas equipes de graduandos, mestrandos e doutorandos; os financiamentos de agências de fomento etc. ajudaram a libertar enquanto pontos de partida para estas e outras pesquisas. Sempre me lembrava o quanto às estórias de Tia Bá – e
outros tantos – eram profundas. Mais do que reminiscências da escravidão, podiam se tornar ferramentas imprescindíveis para mergulharmos nos arquivos e também nos registros da cultura material nos contextos das vidas, das famílias e das comunidades de escravizados e libertos – em Brasis, das escravidões e das emancipações – ao longo dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX. Enfim, as estórias de Tia Bá embalaram os primeiros sonhos e serviram de atalhos diante de caminhos para penetrarmos nos mundos da escravidão pensando na arqueologia histórica.
Apresentação Arqueologias da escravidão e liberdade na Fazenda do Colégio Luís Cláudio Pereira Symanski Este livro apresenta os resultados das pesquisas arqueológicas e históricas sobre a comunidade de senzala que viveu no Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes entre os séculos XVII e XIX. A pesquisa no Colégio emergiu do nosso interesse em investigar o cotidiano e a vida material dos grupos escravizados nas plantations da Região Sudeste, considerando as formas como se organizaram, se relacionaram e interagiram entre si, com a população indígena e com a população luso-brasileira. O Colégio se apresentou como o principal sítio de investigações por várias razões, que incluem sua significância histórica, como o principal estabelecimento jesuítico do norte fluminense, a densidade populacional da sua comunidade de senzala, que chegou, em fins do século XVIII, a contar com cerca de dois mil cativos, e a profundidade temporal de sua ocupação, que remonta a meados do século XVII. Essa profundidade temporal teria o potencial de propiciar investigações que contemplassem o papel de indígenas e africanos na construção da comunidade de senzala durante os primeiros cem anos de ocupação do sítio, dado que, no período jesuítico, ambos os componentes teriam compartilhado desse espaço. Um importante fator adicional foi a facilidade logística, pois a sede do Colégio abriga, desde o ano de 2001, o Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho, o qual guarda um importante acervo documental sobre o norte fluminense, que inclui documentos sobre a própria Fazenda do Colégio, também denominada Fazenda de Nossa Senhora da Conceição e Santo Inácio. A administração do Arquivo incentivou e deu o apoio logístico necessário aos trabalhos de campo, que ocorreram em temporadas de um mês nos anos de 2012, 2014 e 2016. As pesquisas arqueológicas que deram origem a este livro foram iniciadas em julho de 2012, dentro dos quadros do projeto Café com
açúcar: arqueologia da escravidão em uma perspectiva comparativa no Sudeste rural escravista – séculos XVIII e XIX, financiado pelo CNPq.1 O projeto, coordenado pelos organizadores deste livro, tinha por foco o estudo de senzalas de engenhos de açúcar e fazendas de café, que são contextos ainda pouco explorados nas pesquisas arqueológicas históricas na Região Sudeste.2 Essa ausência de pesquisas arqueológicas contrastava com a densa produção historiográfica sobre a escravidão nessa região, com foco em temáticas como o cotidiano, a economia, as práticas de resistência, a conformação da família escrava, a religiosidade, e a reconstrução de identidades em cenários urbanos e rurais. Havia, assim, um descompasso, entre a produção baseada em fontes escritas, que foram produzidas pelos segmentos politicamente dominantes, e aquela baseada em fontes materiais, referentes aos resíduos deixados pela própria população escravizada na execução de suas práticas cotidianas. Esse descompasso gerava uma lacuna na compreensão da vida material dessa população, que era somente suprida pelas fontes iconográficas, sendo essas também, porém, produzidas pelo olhar dominante. O nosso interesse voltou-se, assim, para a caracterização da vida material dessas populações, de suas especificidades, mudanças e continuidades, não somente por meio do tempo, mas também do espaço, por meio de uma perspectiva comparativa entre unidades de produção de açúcar, do norte fluminense, e de café, do vale do Paraíba,3 com o fim de obter informações sobre as diversificadas configurações econômicas, sociais e culturais desenvolvidas pelos grupos escravizados em função tanto da estrutura produtiva quanto da composição cultural diferenciada das senzalas.4 1 Projeto submetido ao Edital Universal 14/11 do Conselho do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e aprovado sob o número de processo 472181/2011-4. 2 A única pesquisa arqueológica até então realizada em um contexto de senzala na região Sudeste havia sido na Fazenda São Fernando, no município de Vassouras, no ano de 1992. Ver LIMA, Tania A.; BRUNO, Maria C.; FONSECA, Marta. Sintomas do modo de vida burguês no vale do Paraíba, século XIX: a fazenda São Fernando, Vassouras, RJ. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, n. 1, p. 170-206, 1993. 3 Além do Colégio dos Jesuítas foram realizadas escavações em espaços de senzala na fazenda São Bento, em Campos dos Goytacazes (RJ), na fazenda Santa Teresa, em Valença (RJ), e na fazenda Santa Clara, em Santa Rita do Jacutinga (MG). 4 Alguns resultados dessa perspectiva comparativa são apresentados em SYMANSKI, Luís C. P. e GOMES, Flávio S. Iron cosmology, slavery and social control: the materiality of rebellion
O Colégio dos Jesuítas foi o primeiro sítio escavado nos quadros do projeto em questão. A primeira temporada de campo, em julho de 2012, contemplou uma área do espaço da senzala, que formava uma grande quadra de cerca de 160 por 230 metros em frente ao convento (também denominado solar), situada a cerca de 80 metros a noroeste do mesmo (denominada área NW), assim como uma área de deposição de refugo dos proprietários. O intervalo de ocupação desse espaço da senzala foi estimado entre 1790 e 1850, sendo, portanto, posterior ao período jesuítico. A temporada de campo de julho de 2014 contemplou um espaço no outro extremo da senzala, a cerca de 100 metros a sudeste do convento (denominado área SE). Nesse caso o intervalo de ocupação foi estimado entre 1835 e 1950. Nessas duas temporadas, portanto, não tivemos sucesso em encontrar contextos referentes ao período jesuítico, o que somente foi realizado na terceira temporada de campo, em julho de 2016, já nos quadros de outro projeto, o Arqueologia das Ordens Religiosas do Norte Fluminense: o Colégio dos Jesuítas e a Fazenda dos Beneditinos de Campos dos Goytacazes (RJ), financiado pela FAPEMIG.5 Nesse caso foi aberta uma área de escavação a cerca de 150 metros a nordeste do convento (denominada área NE), a qual apresentou contextos bem definidos de deposição de material, se estendendo do final do século XVII ao começo do XX. Maiores detalhes sobre a escavação são fornecidos no capítulo 2. Para o caso deste livro, as contribuições se atêm aos contextos pesquisados em 2012 e 2014, com foco, assim, na dinâmica da comunidade de senzala no século XIX, dado que o material da temporada de campo de 2016 está em processo final de análise. Os capítulos aqui presentes compreendem pesquisas documentais, que detalham o contexto da escravidão no norte fluminense, em seus mais amplos aspectos econômicos, sociais e culturais, e que se mostram, desse modo, fundain the coffee plantations of the Paraíba valley, Southeastern Brazil. Journal of African Diaspora Archaeology and Heritage, v.5, n.2: 174-197, 2016. 5 Projeto submetido ao Edital Universal 01/14 Demanda Universal, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), e aprovado sob o número de processo APQ01789-14. Teve por propósito investigar o processo de crioulização entre africanos e indígenas no espaço das senzalas do Colégio e da fazenda São Bento, assim como discutir de que modo as práticas e crenças religiosas impostas pelos padres de ambas as ordens foram incorporadas e transfiguradas nas senzalas.
mentais para a compreensão e interpretação dos vestígios arqueológicos. Além desses aspectos mais amplos as fontes documentais, tanto primárias quanto secundárias, fornecem informações mais pontuais sobre as práticas produtivas, a alimentação, vestuário, ornamentação e socialização da população escravizada de Campos que são contrastadas com o quadro delineado pelas pesquisas arqueológicas, levando, desse modo, a novas vias de entendimento sobre a vida e a dinâmica das práticas sociais no espaço da senzala. Os capítulos do livro abordam as seguintes categorias materiais: louças, cerâmicas torneadas, cerâmicas artesanais, restos faunísticos, e ornamentos de vidro e cobre. É considerada a distribuição espacial e temporal desses itens nos espaços da senzala e, assim, as implicações da variabilidade dos mesmos em termos de práticas cotidianas, subsistência, e processos identitários vinculados tanto a diferentes formas de produção, consumo e auto expressão, quanto a crenças e às relações de poder em que esses grupos estavam imersos. Nesse sentido, os capítulos se complementam, ao abordarem as diferentes facetas da vida material dessa comunidade e as formas como as mesmas se articulavam. No capítulo 1, Flávio dos Santos Gomes caracteriza o contexto histórico da escravidão em Campos dos Goytacazes do período colonial à pós-emancipação. O autor discute, com base em ampla pesquisa documental, a dinâmica demográfica africana na região nos séculos XVIII e XIX, detalhando as origens e os padrões matrimoniais dessa população que compunha a maioria do contingente populacional dos engenhos. Indo além das senzalas, ele aborda ainda o processo de formação e expansão dos quilombos na região, que começaram a se formar no final século XVII. Por fim, entra no período pós-emancipatório, no qual micro-sociedades camponesas negras, com nítidos antecedentes quilombolas, começam a se formar nas franjas das fazendas. Esses grupos mantinham altos padrões de mobilidade, migrando frequentemente em busca de trabalho e, quando possível se estabelecendo nas grandes propriedades rurais da região, como era o caso do Colégio. O capítulo de Gomes serve como um suporte para os subsequentes, na medida que detalha as origens do substrato africano que gerou a comunidade escravizada da fazenda do Colégio no século
XIX, cuja materialidade, evidenciada pelas pesquisas arqueológicas, é o foco nas demais contribuições do livro. O capítulo 2, de autoria de Luís Cláudio Symanski, detalha as pesquisas arqueológicas realizadas no Colégio nas temporadas de campo de 2012, 2014 e 2016. São fornecidas informações, plantas e fotografias sobre os diferentes contextos escavados, bem como sobre a cronologia de ocupação dos mesmos. Pelo fato dos capítulos seguintes adotarem uma perspectiva comparativa sobre esses contextos, todos remetem às plantas e imagens apresentadas neste capítulo. O capítulo 3, também de autoria de Symanski, aborda a variabilidade cerâmica em duas áreas de senzala e em uma área de deposição de refugo dos ocupantes do solar, discutindo as similaridades e diferenças entre as porcelanas, louças finas, louças portuguesas coloniais, cerâmicas torneadas simples e vidradas, e cerâmicas artesanais presentes nesses contextos. A variabilidade observada é discutida em termos da construção de universos materiais e culturais distintos, fortemente delimitadores de fronteiras entre a casa grande e a senzala, e das formas como os mesmos foram incorporados no habitus6 das pessoas que viveram e transitaram nesses espaços. O autor destaca o papel dos intermediários culturais na permeabilização dessas fronteiras e como esses podem ter utilizado a cultura material em um processo de construção de identidades próprias que dialogavam tanto com a cultura da casa grande quanto da senzala e que se fiavam em critérios relacionados à cor da pele e à ocupação. O capítulo 4, de autoria de Maurício Hepp, Paula Azevedo e Victor Monteiro, discute a variabilidade da cerâmica artesanal de uma das áreas da senzala do Colégio.7 Trata-se de uma tradição tecnológica de herança africana e indígena que foi abandonada nessa região do norte fluminense no século XX. Os autores discutem aspectos tecnológicos, funcionais e morfológicos dessa categoria e a vinculam à prática da cocção 6 O conceito de habitus é definido por Pierre Bourdieu (Outline of a Theory of Practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1977), como os princípios inconscientemente aprendidos através do processo de socialização que geram e organizam tanto as práticas quanto as representações. 7 O estudo dessa categoria material está sendo aprofundado na pesquisa de mestrado de Paula Azevedo, que contempla as três áreas escavadas na senzala e as mudanças e continuidades na produção e uso dessas peças no espaço do Colégio entre o final do século XVII e o começo do XX.
de alimentos pelas unidades familiares que compunham a senzala, destacando o importante papel desses artefatos na criação de um senso de identidade no interior daquela comunidade. No capítulo 5, Geraldo Pereira de Morais Junior aborda, com base na análise dos restos faunísticos, as diferenças e similaridades nos padrões de consumo de proteína animal entre os grupos que viveram em dois setores distintos da senzala durante o século XIX. A variação observada demonstra tanto o fornecimento de cortes bovinos e suínos pobres em carne, como patas, provavelmente distribuídos pelos proprietários, quanto a provável prática da caça e da pesca pelos escravizados, adotadas como uma forma de diversificar a dieta. O autor considera ainda, as diferenças no acesso a esses recursos, demonstrando que os ocupantes de uma das áreas mantiveram uma dieta mais diversificada que os da outra. Isabela Suguimatsu discute, no capítulo 6, os processos de construção identitária e de autoexpressão corporal dos escravizados do Colégio com base nas contas de colares, nos botões, nas pulseiras e anéis de cobre, crucifixos e medalhas de santos encontrados em duas áreas da senzala. A autora funda sua interpretação no diálogo entre essas fontes materiais e as documentais, como anúncios de jornais de época e relatos de viajantes. Cabe, por fim, considerar a materialidade do próprio convento, que se mantém imponente na paisagem campista, atuando como uma âncora temporal e exibindo, assim, uma enorme carga simbólica, que remete a memórias, representações e idealizações de diferentes agentes e grupos. Dentre esses, o mais expressivo é aquele formado pela comunidade descendente da senzala, a qual se manteve atrelada a esse lugar até o começo da década de 1980, vivendo em habitações na mesma quadra que seus antepassados dos séculos XVIII e XIX. As percepções, memórias e representações deste grupo sobre o “arruamento do Colégio”, são abordadas por Fernando Myashita no capítulo 7. Essas narrativas, como bem demonstra o trabalho de Myashita, se revelaram fundamentais para uma melhor compreensão não somente da significância da pesquisa arqueológica como produtora de conhecimento histórico e cultural, mas também como potencializadora de múltiplas vozes – acadêmicas e locais –, cujo diálogo pode levar à construção de passados mais inclusivos e que servem, assim, para fortalecer laços identitários no presente.
Por fim, mas não menos importante, cabe destacar que as pesquisas aqui apresentadas somente foram concretizadas devido à participação voluntária de um grande número de estudantes dos cursos de ciências sociais e de arqueologia das seguintes universidades: UFPR, UFMG, USP, UFPEL, FURG, UFPI, PUC-GO e UFSE. Agradecemos, assim a Bárbara de Ridder Barros, Caetano Tocchetto, Carlos Eduardo Lançoni, Cibele da Rocha, Daniele Jesus, Fernando Cantele, Fernando Myashita, Isabela Suguimatsu, Jean Lovato, Kendra Andrade, Luara Stollmeier, Lucas Roahny da Silva, Monique Seidel, Patrícia Marinho, Sabrina Andrade, Irislane Moraes, Suzana Munsberg, Tamires Lico, Luciana Costa, Geraldo Morais Junior, Lara Espechit Gomes, Patrícia Letro, Johni Cesar dos Santos, André Siqueira, Will Pena, Angela Varela, Nathalia Rodrigues, Bruno Sanches Ranzini, Eduarda Rippel, Victória Ulguim, Letícia Miranda, Leonardo Pimenta, Camila Silveira, Thaila Baiense, Maria Heloisa Curado, Karla Bianca Oliveira, Maurício Hepp, Elber Lima, Laura Machado, Clarice Linhales, José Reno, Bárbara Quintino, Nilmara Pereira, Paula Azevedo e Edilaine Souza. À Sheila Felix, pelo carinho em forma de comida que fez dos nossos intervalos para o almoço momentos sempre agradáveis e aprazíveis. Agradecimentos especiais ao diretor do Arquivo Público Municipal de Campos dos Goytacazes, Carlos Roberto Freitas, por todo o apoio e incentivo às pesquisas, bem como às funcionárias Rafaela Machado e Larissa Manhães Ferreira.
Abstract During the 1970’s the historical archaeologist James Deetz urged the scholars to change the focus of their investigations to what people of the past had been done, rather than keep constructing historical narratives based only on written sources. According to Deetz, those remains, left by people of the past, could be very informative about their unconscious expressions. In such way, the analysis could bring to comprehension of the mental templates that guided the use of material goods. Although the structuralist premise behind this approach have been, over the years, subject to several criticism, it is undeniable that it has a high potential of the historical archaeology to build alternative historical narratives, which complement and potentialize the field research. In this sense, the slave quarters archaeology, by penetrating in these stigmatized places by the dominant gaze and recovering the remains of the daily lives of a population that very rarely was able to leave written notes about itself, can reveal facets still unknown about these groups’ experience, such as their foodways, consumption patterns, aesthetic conceptions and religiosity. The study of the variation over time and space of the material culture present in these contexts rejects the stereotype of slave quarters as uniformed places, in which enslaved people passively assimilated the planters’ material impositions. Rather, the material diversity approached in this book clearly demonstrates the agency of the enslaved groups, expressed in their effort to build material and domestic world of their own, characterized by unique body ornaments, by refined wares that appealed to their own sense of aesthetic, by a handcraft pottery production based on ancestors’ traditions, and by the practice of hunting and fishing as strategies to complement the meager ration of animal protein furnished by the planters.
Palavras-chave Planícies Goitacazes, séculos XVIII e XIX: da escravidão africana atlântica ao campesinato no imediato pós-abolição
Campos dos Goytacazes, história, escravidão, pós-emancipação, engenhos;
As pesquisas arqueológicas no Colégio dos Jesuítas
Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, senzalas, arqueologia, cultura material;
Cerâmicas, linhas de cor e a negociação do espaço social no Colégio dos Jesuítas
Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, senzala, cultura material, identidade, racialização;
Práticas e usos da cerâmica artesanal na senzala do Colégio dos Jesuítas
Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, senzalas, cerâmica artesanal, práticas cotidianas;
Vestígios faunísticos e práticas relacionadas à alimentação na senzala do Colégio dos Jesuítas (RJ)
Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, senzalas, zooarqueologia, hábitos alimentares;
Para além de algemas e grilhões: os objetos de vestuário e ornamentação dos escravos
Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, senzalas, ornamentos, corporalidade;
Entre jongos e coisas esquecidas: por uma arqueologia da memória na Fazenda do Colégio
Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, cultura afro-brasileira, memória, arqueologia participativa.
Sumário Capítulo 1 Planícies Goitacazes, séculos XVIII e XIX: da escravidão africana atlântica ao campesinato no imediato pós-abolição 21 Capítulo 2 As pesquisas arqueológicas no Colégio dos Jesuítas
51
Capítulo 3 Cerâmicas, linhas de cor e a negociação do espaço social no Colégio dos Jesuítas
61
Capítulo 4 Práticas e usos da cerâmica artesanal na senzala do Colégio dos Jesuítas 96 Capítulo 5 Vestígios faunísticos e práticas relacionadas à alimentação na senzala do Colégio dos Jesuítas (RJ) 126 Capítulo 6 Para além de algemas e grilhões: os objetos de vestuário e ornamentação dos escravos 146 Capítulo 7 Entre jongos e coisas esquecidas: por uma arqueologia da memória na Fazenda do Colégio
183
Sobre os autores
222
Capítulo 1 Planícies Goitacazes, séculos XVIII e XIX: da escravidão africana atlântica ao campesinato no imediato pós-abolição Flávio dos Santos Gomes Para o período colonial o estudo mais importante foi realizado por Sheila Faria, analisando todo o sistema da montagem escravista, padrão de posse, formas de enriquecimento, pobreza, hierarquias e estrutura social em Campos dos Goitacazes.8 Essa vasta região – áreas ao norte da Capitania do Rio de Janeiro – começou a ser ocupada nas primeiras décadas do século XVII. Uma vez habitada por micro sociedades indígenas – em especial os índios Goitacás, considerados “ferozes e bravios” – havia dificuldade de interiorização de colonos e o estabelecimento de propriedades. Os jesuítas começaram se instalar no primeiro quartel do século XVII com currais nas áreas de Campo Limpo. Em 1652 eles começaram a construção do Solar do Colégio que seria a sede da fazenda. Ali teriam muitos escravizados. Em 1759, os jesuítas foram expulsos e tiveram seus bens – incluindo os escravizados – sequestrados. Em 1781 a Fazenda do Solar do Colégio foi leiloada em hasta pública, sendo “arrematada pelo abastado comerciante de escravos, o português Joaquim Vicente dos Reis”. Com a sua morte em 1813, a fazenda ficou sob controle de seu genro Sebastião Gomes Barroso, e depois com os descendentes dele.9 Em Campos dos Goitacazes, até o início do século XVIII, predominou a atividade criatória de gado. Posteriormente, desenvolveu-se a cultura de cana-de-açúcar. Com a franca expansão, o número de fábricas se multiplicou. Em 1737 havia 34 engenhos de açúcar, mas entre 1750 e 1770 pularia de 50 para 113. Já em 1779 existiam 179 fábricas de 8 FARIA, Sheila Siqueira de Castro. A Colônia em Movimento. Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998 9 FERREIRA, Larissa Manhães. O Solar do Colégio, da fazenda jesuítica a Arquivo: uma análise das políticas culturais em Campos dos Goitacazes de 1977 a 2001. Dissertação de Mestrado em Políticas Sociais, UENF, 2014
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açúcar, sendo que em 1785 a quantidade de engenhos e engenhocas de aguardente alcançaria quase 300 unidades.10 Para os anos de 1779 a 1789, o Marquês do Lavradio anotou que ali os engenhos produziam açúcar “em maior abundância que o dos engenhos da capital e seu recôncavo”. Segundo Corcino, em 1769 havia na baixada Goitacazes 55 engenhos; em 1778, 168; em 1783, 278; em 1800, 324; 1810, 400 e em 1828 esse número chegaria a 700.11 Com o desenvolvimento açucareiro, Campos alcançaria o índice de 52% dos engenhos do Rio de Janeiro colonial, concentrando 43,6% da população de escravizados. Nos derradeiros anos dos setecentos existiam 324 engenhos, mais da metade dos 616 engenhos de açúcar de toda a Capitania.12 A região produzia cerca de 128.580 arrobas de açúcar e 55.905 “medidas” de aguardente. Outras atividades econômicas também mostravam força, como 218 currais com 55.672 mil cabeças de gado bovino e 13.201 mil de gado cavalar, além de lavouras de alimentos: 12.032 alqueires de feijão, 55.109 de farinha, 17.102 de milho e 4.458 de arroz. Sabia-se ainda que eram colhidas 2.772 arrobas de algodão, existindo na região 99 teares, além de 51 olarias. A consequência dessa expansão econômica foi o aumento da demanda de mão de obra africana para trabalhar nas lavouras. Existiam quatro latifúndios escravistas na planície Goitacazes: a) fazenda de São Bento, da Ordem Beneditina; b) fazenda do Visconde de Asseca, descendentes de Salvador Correia de Sá; c) fazenda do Morgado, herdeiros de Miguel Ayres Maldonado e de sua mulher Barbara Pinto de Castilhos; e d) fazenda do Collegio, dos jesuítas. No final do século XVIII a população total da Capitania do Rio de Janeiro era de 179.595 pessoas, sendo 52,5% livres e 47,5% escravizados. Em Campos havia 21.905 habitantes, representando 12,4%. A população escravizada predominava. Enquanto que na Vila de São Salvador a porcentagem de escravizados era de 59%, nas freguesias prósperas como São Gonçalo e 10 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 130-1 11 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, pp. 131. SANTOS, Corcino Medeiros dos. O Rio de Janeiro..., p. 56. Ver também: CLEVELAND, Donald. Slavery and Abolition in Campos, Brazil, 1830-1888, Cornell University, 1973, p. 21 12 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 132 e SANTOS, Corcino Medeiros dos. O Rio de Janeiro, p. 57 e CLEVELAND, Donald. Slavery and Abolition, pp. 21
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Santo Antônio de Guarulhos alcançava 62,1% e 77,9% respectivamente. No conjunto, manteria um dos maiores contingentes de escravizados da Capitania, só perdendo para as áreas do recôncavo da Guanabara.13 Tabela 1 - Movimento da População escravizada em Campos dos Goytacazes, 1785-1850 Anos
# escravizados
% escravizados
1785
11.862
73,6
1789
12.288
56,1
1790
12.216
55,8
1799
19.058
56,9
1816
17.357
54,3
1821
19.234
53,7
1836
30.595
59,2
1850
37.747
54,5
Fonte: Márcio de Sousa Soares. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravizados nos Campos de Goitacases, c.1750- c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009
Entre o último quartel do século XVIII e a primeira metade do século XIX, a população escravizada se manteve numa média de quase 60%. A maior incidência ocorreu em 1785 e a menor em 1821. Ainda assim em números absolutos, o número de escravizados mais que triplicou entre 1785 e 1850. As maiores elevações apareceram em 1799 quando aumentou 156 % e em 1836 quando houve uma variação recorde de 159%.14
Sertões de açúcar e de Áfricas Podemos considerar o impacto africano em Campos dos Goytacazes entre as últimas décadas do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Dos passaportes para escravizados – especialmente os pretos novos, qual sejam, os africanos recém desembarcados – enviados da Corte para várias regiões do interior do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, 13 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 134, 136 e sgs. 14 SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos escravizados nos Campos de Goitacases, c.1750- c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.
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na primeira metade do século XIX, a região de Campos recebeu de 39,2% alcançando 52,7% no período de 1824 a 1830. Quem eram estes africanos escravizados que vinham para Campos? Numa amostra de inventários para o período de 1750 a 1831, Soares destacou que 90% a 97% vinha da região de embarque da África Central, 2% a 7% da África Ocidental e 1% a 6% da África Oriental. Já numa amostra de batizados, entre 1800 a 1801, estes números passariam para 97,8% de africanos centrais, 1,2% de africanos ocidentais e 1% de africanos orientais.15 Com base numa investigação sistemática em registros de batizados e de casamentos de escravizados africanos, sugerimos movimentos da demografia africana para a planície Goitacases. Primeiramente, consideramos 29.006 registros de batizados entre 1786 a 1850.16 Em aproximadamente 17,7% dos assentos não há informações a respeito da naturalidade dos batizados, determinando se africano ou crioulo. Ainda assim, encontramos batizados para 6.760 africanos, sendo que desses sabemos a naturalidade – grandes áreas de embarque – de 5.089. Tabela 1.2 – Origens dos escravizados africanos batizados em Campos, São Salvador, 1786-1850 Nações
#
%
Angola
4599
90,37
Cabinda
219
4,30
Mina
90
1,76
Congo
73
1,43
Moçambique
48
0,94
Benguela
37
0,72
Monjolo
7
0,13
Rebolo
7
0,13
Cabundá
2
0,03
Cassange
2
0,03
Ganguela
2
0,03
15 SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro 16 Não foram registrados os dados dos anos de 1832 e 1833
24
Nações
#
%
Inhanbane
2
0,03
Quissama
1
0,01
Total
5089
100
Fonte: Registros de Batizados de escravizados da Paróquia da São Salvador, 1786-1850
Africanos centrais – denominados Angola, Cabinda e Congo – são destaque, também aparecendo os africanos ocidentais (identificados como Minas) e os africanos orientais (chamados de Moçambique). Tal impacto demográfico africano tinha outro componente. Eram majoritariamente de sexo masculino; entre os Angolas, por exemplo, homens alcançavam 67,2%. Já entre os africanos ocidentais era de 76,6% enquanto que nos africanos orientais 64,5%. As indicações sobre a faixa etária são escassas, pois a maioria dos africanos foi batizada como adulto. Para 72 registros de africanos batizados com a informação sobre a idade temos uma média de 14 anos, sendo que há tantos africanos batizados com 6 a 7 anos como aqueles de 40 anos. Com algumas variações isolamos os dados sobre as mães africanas que aparecem nos registros de batismos. Embora estes dados possam ser sobre representados (uma vez que uma mesma mulher africana podia batizar vários filhos ao longo de duas décadas ou mais), sugerem indicações importantes, até porque não sabemos quantos africanos introduzidos nas áreas norte fluminense já tinham sido batizados nos portos de desembarque, principalmente nas paróquias centrais da Corte ou mesmo se aqueles entrados ilegalmente (1831-1850) foram sequer batizados. O perfil das mães ajuda na identificação dos perfis e padrões dos africanos introduzidos – de fato – nestas planícies fluminenses, assim como mudanças nas nomenclaturas. Vejamos os registros de 6.621 mulheres, mães africanas. Tabela 1.3 – Origem das mães africanas nos batizados de crioulos, Campos de Goytacazes, Paróquia da São Salvador de Campos, 1786-1850 Nações
#
%
Angola
6.503
98,29
Benguela
60
0,90
Congo
24
0,36
25
Nações
#
%
Cabinda
16
0,24
Moçambique
5
0,07
Monjolo
3
0,04
Luanda
1
0,01
Ganguela
1
0,01
Cassange
1
0,01
Calabar
1
0,01
Cabundá
1
0,01
Total
6.616
100
Fonte: Registros de Batizados de escravizados da Paróquia da São Salvador, 1786-1850
As tendências de concentração dos africanos centrais – denominados Angolas – mudam pouco, surgindo também ás nomenclaturas Calabar (africano ocidental) e Luanda (africano central). Além disso, muitos africanos batizados como Angolas podiam ser nomeados depois – e aparecerem assim em outras fontes – como Luanda, Ganguela, Monjolo e Rebolo. Assim como africanos ocidentais genericamente chamados de Minas puderam posteriormente aparecer como Calabar. Também podemos inferir o impacto africano para planície campista através da identificação da origem dos escravizados despachados entre 1809 e 1831. Temos uma amostra de 2.725 africanos remetidos, sendo 2008 (73,7%) africanos centrais, 515 (18,9%) africanos orientais e 202 (7,4%) africanos ocidentais. Tabela 1.4 - Quantidade de africanos centrais despachados para Campos dos Goitacases do Rio de Janeiro, 1809-1831 Congo 306
Angola 376
Mossumbe 2
Mojumbe 1
Massangana 3
Camundá 5
Songo 12
Muxicongo 1
Mossanje 1
Mogumbe 6
Luanda 5
Cabundá 4
Rebolo 166
Mussumbe 1
Cassange 146
Mofumbe 1
Ganguela 20
Benguela 466
Quissama 15
Monjolo 64
Cabinda 388
Moange 8
Camundongo 10
Baca 1
Fontes: ANRJ, Códices 390, 411, 421, 424 e 425
26
Africanos com as nomenclaturas Angola (376) representavam 18,7%, enquanto aqueles, Congo e Cabinda (694) – norte de Angola – somavam 34,6%. Já os africanos com nomenclaturas Benguela (466) ficavam com 23,2%. Essas quatro denominações juntas (1536) representavam 76,5% dos africanos centrais. As nomenclaturas Rebolo (166), Monjolo (64) e Cassange (146) somavam mais 18,7%. Ou seja, de 24 nomenclaturas de origens dos africanos centrais, sete somavam 95,2% dos africanos centrais. Já os africanos orientais vão aparecer em quatro nomenclaturas (Quilimane, Mucena, Inhambane e Moçambique), estando concentrados com 91,6% com a terminologia Moçambique. Das sete nomenclaturas para os africanos ocidentais, destacam-se os Minas, concentrando 72,3%, e os Calabar com 14,8%. Cerca de 3,4% (7) dos africanos ocidentais remetidos para Campos aparecem como Hausá, portanto africanos islamizados.17 Outro interessante fator de identificação dos africanos e também com impacto nas nomenclaturas, nas formas de identidades e na relação interétnica aparece nos registros de casamentos. Verificamos africanos com as mesmas nomenclaturas de origem ou procedências (áreas e portos de embarque) casando entre si. Também localizamos tanto casamentos envolvendo africanos com nomenclaturas distintas, como com crioulos. Analisamos 3.372 casamentos entre 1760 a 1880, nos quais participaram 6.304 africanos, sendo que nos enlaces matrimoniais de africanos, 93,47% envolviam os dois conjugues africanos. Os demais cônjuges não africanos são 24 homens, entre crioulos e cabras, e 416 mulheres entre pardas, mulatas, crioulas e cabras. O primeiro padrão apontado é que dos casamentos envolvendo um dos cônjuges não africano, 94,54% era de mulheres não africanas. Do universo de africanos com origem determinada, nesses casamentos temos um total de 4.871 africanos, sendo 53,3 % de homens e 46,7 % de mulheres. 17 Os estudos pioneiros sobre tráfico atlântico, abordando os perfis dos africanos remetidos para o Rio de Janeiro entre os últimos anos do século XVIII e as primeiras décadas Oitocentista são da década de 1970. Ver: KLEIN, Herbert. O tráfico de escravos africanos para o porto do Rio de Janeiro, 1825-1830. Anais de História, Assis, 1973, p. 85-101; KLEIN, Herbert. Shipping patterns and mortality in the african slave trade to Rio de Janeiro, 1825-1830. In The Middle Passage (comparative studies in the Atlantic slave trade). New Jersey, Princeton University Press, 1978, p. 73-93 e KLEIN, Herbert. “The trade in African slaves to Rio de Janeiro, 1795-1811”. In The Middle Passage (comparative studies in the Atlantic slave trade). New Jersey, Princeton University Press, 1978, p. 181-212.
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Tabela 1.5 - Origens dos africanos nos casamentos de escravizados, Campos de Goytacazes, Paróquia de São Salvador, 1760-1880 Nação
Homem # %
Mulher # %
Total # %
Angola
2561 (53,3)
2242 (46,7)
4803 (98,6)
Benguela
16 (59,3)
11 (40,7)
27 (0,55)
Cabinda
6 (66,6)
3 (33,4)
9 (0,18)
Congo
8 (66,6)
4 (33,4)
12 (0,24)
Mina
2 (28,6)
5 (71,4)
7 (0,14)
Ganguela
1 (14,3)
6 (85,7)
7 (0,14)
Mofumbe
1 (50)
1 (50)
2 (0,04)
Cassange
2 (50)
2 (50)
4 (0,08)
Cobu
1 (100)
0 (0)
1 (0,02)
Cabundá
1 (100)
0 (0)
1 (0,02)
Monjolo
0 (0)
1 (100)
1 (0,02)
Rebolo
0 (0)
1 (100)
1 (0,02)
Cabinda
2 (100)
0 (0)
2 (0,04)
Total
2600 (53,3)
2271 (46,7)
4871
Fonte: Registros de Casamentos de escravizados da Paróquia da São Salvador, 1786-1850
Os dados sobre as origens dos batizados – leia-se aqui nomenclaturas e classificações e não necessariamente identidades étnicas – para a paróquia de São Salvador são demasiadamente concentrados, especialmente para as classificações Angola. É certo que a presença de africanos centrais era preponderante, mas certamente, assim como os dados para o Vale do Paraíba cafeeiro, muitos dos africanos em Campos dos Goytacazes eram também Benguelas (sul de Angola) além de Cabindas e Congos (norte de Angola). Mesmo com tal concentração de Angolas, 13,3 % dos homens Angola casaram com mulheres não Angola, com destaque para 97,6% de mulheres crioulas, cabras, pardas e mulatas. Já as mulheres Angolas que não casaram com homens Angolas, o fizeram em 90,4% dos casos com homens cabras e crioulos. Certamente essa população de crioulos que casava com os Angolas – principalmente as mulheres – era filha da primeira ou segunda geração de africanos centrais que 28
chegaram e, portanto, da mesma origem dos cônjuges africanos. Com números limitados verificam-se indicações de padrões diferentes para outros africanos. Por exemplo, 60% dos homens Benguela casavam com mulheres não Benguela, sendo que 50% delas era de crioulas e a outra metade de africanas de outras origens. Já as mulheres Benguela em casamentos exogâmicos em termos de origens aparecem apenas com 10%. Também a maior parte dos homens Congos (62,5%) e Cabindas (66%) casava com mulheres de outra origem. As mulheres destas “nações” faziam o inverso e casavam somente 25% e 30% com homens de diferentes origens africanas. Verifica-se aqui um mercado matrimonial orientado pela demografia africana e suas conexões com as montagens geracionais de africanos e suas respectivas gerações de crioulos. Mulheres africanas podiam estar – como sugere Slenes (1999) e ao contrário de análises quantitativas – controlando tais escolhas, embora os padrões etários precisem ser verificados.18 Já as mulheres crioulas podiam passar de escolhidas para aquelas que escolhiam os homens africanos, quem sabe orientadas por seus pais, especialmente suas mães africanas ou crioulas da primeira geração. Mercado matrimonial, escolhas conjugais e padrões de compadrio e parentesco nem sempre estiveram sobre o controle remoto – supostamente inexorável e racional das políticas senhoriais ou reflexo quantitativo da demografia – como alguns estudos sugeriram. Padrões e escolhas – exogâmicos ou endogâmicos – para arranjos conjugais podiam estar sendo orientados por preferências identitárias, étnicas e culturais, funcionando como um complemento fundamental para as primeiras gerações de crioulos, especialmente aqueles que viviam em comunidades sob o forte impacto da introdução reiterada de africanos, jovens e de sexo masculino. Talvez, como em nenhuma outra região do sudeste escravista na passagem do século XVIII para o XIX, o impacto da demografia africana foi tão considerável como em Campos dos Goytacazes. Mas como viviam estes escravizados? Em grandes ou pequenas propriedades? Comparada com outras regiões açucareiras coloniais – Capitanias de Pernambuco, Bahia e mesmo São Paulo – a estrutura de posse de escravizados em Campos era menos concentrada em grandes e médias propriedades. Em 18 SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, cap.1.
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1779, apenas cinco engenhos funcionavam com mais de 100 escravizados. Nessas propriedades incluíam-se a fazenda dos jesuítas com 1.400 cativos e a fazenda dos beneditinos com cerca 430. Havia mais cinco grandes fazendas com cerca de 50 a 100 escravizados. A maioria das fazendas e engenhos contava com menos de 50 cativos, sendo a média de 15 escravizados por plantel.19 Com base em registros de inventários post mortem, Soares abordou a estrutura de posse dos escravizados entre 1750 a 1831. Ele reuniu inventários relativos a 485 senhores que contavam com 8.234 escravizados. Até 1789, 90% dos escravizados viviam em escravarias de um a 49 cativos, sendo que destes 30% vivia em escravarias com até 10 escravizados. Somente 8% viviam em escravarias com mais de 50 cativos. Entre 1790 e 1808, essas tendências apareceram invertidas com mais de 48% dos escravizados em grandes escravarias. No período de 1809 a 1825, tais tendências seriam novamente reequilibradas com quase 40% trabalhando em escravarias de 20 a 49 escravizados. No período de 1826 a 1831, o impacto do tráfico na concentração escravizada voltaria a se destacar com quase 70% deles vivendo em escravarias de mais de 50 escravizados. No século XIX haveria os seguintes padrões ali: alta incidência de africanos centrais, homens, jovens, médias escravarias. Em 1826 a população escravizada já era de 52,5%, sendo que pardos e pretos livres (muitos dos quais libertos) perfaziam 73,8% da população total. Sabemos pouco, porém, sobre o impacto africano na estrutura de posse, mas é possível supor – até pelas transformações e concentração de posse em meados do século XIX – que quanto maiores fossem as escravarias, mas elas estariam repletas de africanos.
Campos dos quilombolas Nesta vasta planície açucareira se estabeleceram comunidades de fugitivos – mocambos e quilombos – desde o final do século XVII. No sertão do rio Ururaí, por exemplo, havia uma localidade conhecida como “sertão do Calhambola”. Em 1751, o Senado da Câmara da Vila de São Salvador, admitindo que o problema dos quilombos, além de crônico 19 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 136
30
parecia fugir ao controle – uma vez que eram constantes as denúncias de roubos, assassinatos e sequestro de mulheres – conclamava através de Edital a “todos os moradores e capitães-do-mato para que dessem nos quilombos”.20 Mocambos pareciam ser o principal problema da planície Goitacazes que já dava sinais de franco desenvolvimento econômico, com a expansão da cultura de cana de açúcar no último quartel Setecentista. Além de fugitivos, a região era conhecida por refúgio de criminosos. O Marquês do Lavradio afirmaria em 1779 que a região era por “muitos anos” um “asilo de todos os malfeitores, ladrões e assassinos, que ali se recolhiam vivendo com um despotismo e liberdade” e que “todos viviam em bastante ociosidade, contentando-se só de cultivarem pouco mais do que lhes era preciso para sua sustentação”.21 Além das providências costumeiras, autoridades procuravam, na medida do possível, aumentar o alcance da repressão. Segundo Sílvia Lara houve “medidas de tal amplitude, como autorização do uso de armas, isenção de penas para as mortes de fugitivos renitentes, exposição exemplar de cabeças [dos quilombolas] e financiamento das expedições, parecem, entretanto, não ter tido os resultados desejados”. Sabe-se que em 1769 foi preparada uma grande expedição para “dar nos quilombos dos pretos fugidos” a ser comandada pelo Mestre-de-Campo João José de Barcelos. Em 1792, o vice-rei escreveria à Câmara da Vila de São Salvador ressaltando a repressão efetiva a ser dada aos “quilombos que existem nos sertões deste distrito”. Nesse mesmo ano, foi realizada uma diligência, utilizando-se para isso mais de 200 homens. Vários mocambos foram atacados, sendo que se conseguiu na ocasião “não só arrasá-los como prender muitos dos seus moradores”.22 Em confrontos cotidianos, fugitivos se movimentavam gerando tensões. Em fins de 1796, acabou sendo cercada e invadida a senzala do pardo Joaquim, pertencente ao Alferes Miguel de Morais Peçanha onde foram encontrados dois fugitivos. Joaquim acabou condenado “pelo uso de armas curtas e acoitador e induzidor de escravizados fugidos” e remetido para a cadeia da Relação do Rio de Janeiro. Houve mesmo ocasiões 20 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência, p. 194 e 300 21 ANRJ, Arquivos Particulares, Marques do Lavradio, Códice 1095 e 1096 22 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência, p. 305 e 307
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em que a repressão anti-mocambo serviu para justificar arbitrariedades e mortes. Foi o que aconteceu em 1807, mais propriamente no sertão próximo ao rio Muriaé, onde Angélica, preta escravizada de Manoel Pereira da Fonseca apareceu morta. Instaurou-se uma devassa, sendo ouvidas 15 testemunhas. Os acusados do assassinato foram João Fernandes e José Monteiro, esse último, feitor de uma fazenda vizinha. Alegando inocência dos acusados uma testemunha declarou que estes estando a margem do rio perceberam que a preta Angélica “havia de ir para o quilombo, o que ele [ João Fernandes] não quis assentir e por isso lhe fizera os ferimentos com que a mesma apareceu morta”.23 Campos ficaria verdadeiramente – desde a segunda metade do século XVIII – “infestada” de mocambos e quilombos. Entre 1759 e 1805, registros prisionais da Vila de São Salvador indicavam 222 fugidos capturados. Porém, apenas 11%, ou seja 25, foram presos com a indicação específica de “quilombola” ou “preso no quilombo”. Para Goitacazes colonial Sílvia Lara destacou a existência de três níveis diferenciados de atuação contra fugitivos e mocambos. O primeiro seria a repressão levada à cabo pelos capitães-do-mato e seus auxiliares. Era uma prática situada entre a esfera pública e a privada, uma vez que, apesar de ser instituída pelo poder público, quem pagava todas as despesas eram os proprietários em questão. A segunda seria efetivada diretamente pelos fazendeiros. Não foram raras as ocasiões em que planejaram, prepararam e armaram agregados e capitães-do-mato para efetuarem diligências contra mocambos. O último nível de prática repressiva era aquele de natureza militar e administrativa. Também foram várias as ocasiões em que a Coroa tomava para si a responsabilidade de perseguir quilombolas, não só legislando a respeito, como igualmente financiando e preparando expedições militares. A atuação da Coroa nesse contexto, via de regra, parece ter estado “diretamente relacionada ao grau de periculosidade e resistência dos fugitivos ou à negligência e despreparo das forças repressivas locais”.24 Os mocambos da planície Goitacazes estavam localizados tanto em áreas de terras devolutas e fronteiras abertas – nos “sertões” – como nas 23 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 239-240 e 320-321 24 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 310 e 317
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margens de fazendas, currais e engenhos.25 Era fato que as principais regiões coloniais para o estabelecimento de mocambos e quilombos mais populosos na Capitania do Rio de Janeiro eram Campos de Goitacazes, Cabo Frio, Saquarema e o recôncavo da Guanabara. Eram sobretudo áreas produtoras de açúcar (algumas em franca expansão e outras de ocupação mais antiga), aguardente e principalmente de gêneros para o abastecimento, como aquelas do recôncavo. Com base nas informações do Marquês do Lavradio no final do século XVIII, havia terras devolutas por toda a parte. De Saquarema dizia-se que “no campo de Bacaxá tem o Capitão José Antônio Barbosa uma légua de terra, onde já teve gado, escravizados, e culturas, e de presentemente não tem, e só moram na terra algumas pessoas, sem foro nem pensão; todos os sertões estão por cultivar”.26 Já de Campos dos Goitacazes informava-se que no “rio Imbé, para cima de uma posse que tem a Fazenda d’El-Rey, seguem muitas terras devolutas, sem senhorios em que proximamente se tem pedido três sesmarias, que ainda não vieram, e são em terras, que dizia Diogo Álvares havia muito ouro”.27 Tabela 1.6 - Mocambos e quilombos em Campos dos Goitacazes (1750-1807) Datas
Localizações
1750
Sertões de Macaé
1751
Campos dos Goitacazes
1769
Sertões do Imbé
1792
Campos dos Goitacazes e Recôncavo da Guanabara
1807
Muriaé e Campos dos Goitacazes
Fontes: Diversas.
Na planície Goitacazes os mocambos ficariam isolados? Pouco sabemos, embora procurassem proteção geográfica enquanto estratégia permanecendo mais próximos de engenhos, fazendas, estradas e/ou às áreas economicamente ativas. Assim, poderiam garantir conexões e trocas 25 GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José. Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 1996. 26 Cf. “Relações parciais apresentadas do Marques do Lavradio...”, p. 308-309 27 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 344
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mercantis, representando ainda mais solidariedade com taberneiros e os cativos junto às plantações. Para Campos, a tentativa de interiorização pode ter sido dificultada pela existência de micro sociedades indígenas – consideradas hostis – que ocupavam vários sertões destas regiões. A barreira indígena pode ter dificultado, inclusive, a ampliação e interiorização da repressão. Ou mesmo a colonização do Rio de Janeiro nos séculos XVI e XVII conheceu uma resistência indígena ainda pouco estudada. Quem sabe mais tarde os quilombolas não procuraram tirar proveito destas experiências? Em 1801, os africanos Francisco e Domingos, de nação Angola permaneceram oito meses fugidos no sertão de São Fidélis. Consta que estavam embrenhados nos matos, vivendo “com a gentilidade”, isto é, com os indígenas.28 No início do século XIX as notícias sobre mocambos aumentaram, ou pelo menos se tornaram mais frequentes. Em 1807, alguns lavradores – procurando desbravar o sertão do rio Imbé – descobriram “da parte dos Campos cinco Quilombos de negros”.29 Em 1810 é enviada uma petição ao Corregedor de Crime da Corte pedindo-se a soltura de Caetano, de nação “Guiné”. Argumentava-se que ele – com mais de 60 anos, capturado no “quilombo d’Macabu” – já estava preso há quatro anos sem que seu senhor solicitasse sua soltura.30 Em 1814 dizia-se que cinco quilombolas capturados na Corte e acusados de homicídios desde 1810, estavam “apodrecendo” na cadeia sem que fossem enviados para trabalharem em presídios.31 Em setembro de 1808, noticiava-se que diligências seguidas contra os quilombos de Macaé conseguiram capturar quarenta negros, entre mulheres, homens e crianças. Ordenava-se que as expedições continuassem. O Intendente Fernandes Viana informou ao Governador Rodrigo de Sousa Coutinho das suas providências e das dificuldades encontradas. Dizia que algumas expedições eram fracassadas, uma vez que os quilombolas “observam todos os movimentos, inutilizam as diligências”. Lembrava ainda que existiam tanto mocambos pequenos de “cinco 28 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, pp. 242 29 BNRJ, Seção de Manuscritos, Códice 20, 4, 2 n. 31, 24/04/1807 30 ANRJ, Corregedoria de Polícia. Caixa 774, Petição enviada para o Corregedor do Crime da Corte e Casa Francisco Loppes de Souza, 03/11/1810, pacote 3 31 ANRJ, Corregedoria de Polícia Caixa 774, Ofício do Corregedor do Crime da Corte e Casa, 15/06/1814
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negros” como aqueles “grandes”.32 Também em setembro as autoridades tentam perseguir os quilombolas de Campos dos Goitacazes. Em outubro é a vez de novos ataques aos mocambos de Macacu.33
Ocupação de terra e comunidades de senzalas Em Campos dos Goitacazes, para além do abolicionismo radical da década de 1880, houve movimentos originais de ocupação – a partir de grupos de refugiados – nas próprias terras onde trabalhavam como cativos. O episódio mais interessante aconteceu com o famoso quilombo da Loanda, situado no interior da fazenda do mesmo nome, nas margens do Rio Paraíba. Bem próximo à cidade de Campos, há muito tempo causava “terror” aos habitantes locais, segundo o noticiário local. Tendo falecido a proprietária da fazenda, libertos e escravizados que ali trabalhavam resolveram ocupá-la, expulsando os administradores, uma vez insatisfeitos com a venda que dela se fizera. João Ferreira Tinoco, que a havia comprado dos herdeiros da falecida no início de 1878, não conseguiu tomar posse, de fato, da fazenda, que era rechaçado desde 1877.34 Em 4 de janeiro de 1878, o Monitor Campista publicou o seguinte anúncio de venda: Fazenda da Loanda – vende-se esta fazenda, sua à margem do Parahyba, distante da cidade de Campos légua e meia, tendo de testada 700 braços e meio légua de fundos ou 160 alqueires de terras no seu todo, apropriadas para a cultura de cana, e pastagens nas terras planas e nos altos e montanhosos para a cultura de mandioca e café, quem bem quiser estabelecer-se compre-as a Julião B. P. de Almeida, residente em Santa Cruz.
O anúncio não fazia nenhuma menção sequer da existência de escravizados refugiados ou aquilombados ali. Várias diligências enviadas 32 BNRJ, Seção de Manuscritos, Códice I-33, 30, 19 n. 2, Ofício do Intendente de Polícia Paulo Fernandes Viana enviado para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, 19/09/1808 33 ANRJ, Códice 318, Registro de Avisos, Portarias e Ofícios da Polícia (1808-1809), Ofícios do Intendente de Polícia Paulo Fernandes Viana expedidos para as autoridades de Campos, Macaé e Macacu: 01/09/1808, fl. 68v; 01/09/1808, fl. 69v; 21/09/1808, fl. 77v; 08/10/1808, fl. 84; 18/10/1808, fl. 91 e 29/10/1808, fl. 93 34 Jornal da Província, Campos, Rio de Janeiro, 6.7.1879
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para “bater” as matas conheceriam o fracasso.35 Ainda em 1877, o chefe de Polícia, Cavalcanti de Albuquerque, por ordem do presidente de Província, comandou pessoalmente uma expedição, enviando cerca de “50 praças”. Os aquilombados receberam a tropa com “franqueza”, declarando “que não entregavam e que estavam prontos para a luta”. Houve recuo sobre uma imediata intervenção militar, embora se destacasse a respeito de um “grave o caso pelo exemplo para os muitos escravos que existem neste município”. Seria solicitada autorização expressa para “fazer fogo contra os mesmos escravos no caso continuar a resistência que fazem e visto que declaram que não se entregam por outra forma”.36 Houve surpresas quanto as proporções e os desdobramentos daquela ocupação. Havia sido tentado um acordo para que se entregassem. Mas os aquilombados de Loanda não quiseram, acreditando que, com a morte da senhora, tinham ficado livres. Assim poderiam continuar trabalhando e administrando as terras para si próprios. Com o malogro inicial da repressão inicial, o chefe de Polícia decidiu aguardar novas determinações do Governo Provincial. Por sua vez, o presidente da Província, Francisco Antônio de Souza evitou uma invasão direta à fazenda, mas determinou que fosse cercada com vistas a cortar todo e qualquer abastecimento. A ideia era minar a disposição deles em se manter acantonados nas terras daquela fazenda. Com a preocupação em desocupar a propriedade, optava-se por vencer os aquilombados pela fome e pelo cansaço. Impossibilitados de cultivarem suas lavouras – já que ficariam à mercê da tropa – ou de comerciarem com outros escravizados e vendeiros, os aquilombados, expostos a privações, acabariam se entregando.37 Mas, ao que parece, aquilombados resistiriam por mais algum tempo ao bloqueio. Durante quase quatro anos – de 1877 a 1880 – fazendeiros ali desfrutaram da vizinhança daquela ocupação de terra sob forma de quilombo. Fato interessante foi que, enquanto alguns aquilombados construíram ranchos nas matas daquela propriedade, outros, ao que se sabe, continuaram a habitar nas próprias 35 Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Fundo SSP, Coleção 165, pasta 3, documento 32 e o Monitor Campista, 4 de janeiro de 1878 36 ANRJ, IJ1 Maço 493, Ofício de Presidentes de Província (RJ), cópia do telegrama do Chefe de Polícia enviado ao Presidente da Província (RJ), 18.9.1877 37 ANRJ, IJ1 Maço 493, cópia do telegrama do Presidente de Província (RJ) enviado Chefe de Polícia, 18.9.1877 (telegrama resposta)
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senzalas. Na planície Goitacazes, se tratava, sem dúvida, de um peculiar aquilombamento que ampliava as dimensões políticas de protesto daqueles cativos, já que ocupavam os próprios prédios da fazenda, assumindo o direito de serem livres e trabalharem para si.38 Em meados de 1880 – não se sabe como – o suplente do delegado de Polícia de Campos, Luiz Carlos de Lacerda acompanhado por apenas seis soldados, prendeu 53 aquilombados da fazenda da Loanda, que, segundo informações, estavam armados e municiados.39 O Monitor Campista, descreveu a ação: Chegando ali às cinco horas, de improviso deram sobre o quilombo, e com tão bem calculado plano que sem haver disparar-se nem um tiro, capturou-se toda a gente que estava no quilombo, sendo cinco homens, compreendidos os dois cabeças, e 18 mulheres e as crianças em número de 28 de 14 anos de idade para baixo.40
Qual teria sido o “tão bem calculado plano” para “destruir” esse quilombo em 1880, desocupando a fazenda sem encontrar oposição dos escravizados? O mesmo aquilombamento nessa fazenda vinha resistindo desde 1877. A maior parte dos capturados em 1880 – conforme o próprio noticiário – era de mulheres e crianças. Havia apenas cinco homens. É possível avaliar que estes aquilombados, sem condições de garantirem sobrevivência, uma vez cercados na fazenda, optaram por se entregarem, pelo menos provisoriamente. Ou, quem sabe, havia mais homens na fazenda que escaparam durante a batida policial? O “apadrinhamento” pode ter feito parte da economia política desses aquilombados que, talvez, se viram sem recursos para continuar a enfrentar as forças policiais enviadas. O presidente da Província, Francisco Antonio de Souza, em 1877 determinou que o cerco da fazenda fosse reforçado “com força e paisanos, até que os pretos se rendam [por] faltas de recursos”.41 38 Jornal da Província, Campos, Rio de Janeiro, 18.9.1879, p. 3 e Monitor Campista, 5 e 6.7.1880, p. 2 39 LIMA, Lana Lage da Gama, Rebeldia Negra e Abolicionismo, Rio de Janeiro, Achiamé, 1981, p. 84-141 e OSCAR, João, Escravidão e engenhos. Campos, Macaé, São João da Barra e João Fidélis. Rio de Janeiro, Achiamé, 1985, esp. “Radicalização abolicionista”, p. 213-232. 40 Monitor Campista, 5 e 6.7.1880, p. 2; ver também, Jornal da Província, Campos, Rio de Janeiro, 5 e 6.7.1880, p. 1. 41 ANRJ, IJ1 Maço 493, Ofícios de Presidentes de Província (RJ), cópia do telegrama citado, 18.9.1877 (telegrama resposta).
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Dispomos de poucas evidências sobre esse episódio do quilombo da Loanda, em 1880. Isolar quilombolas das infinitas redes de proteção e cumplicidades que os cercavam era uma das estratégias para capturá-los Porém, se resistiram ao cerco por quase três anos, possuíam uma base econômica considerável para se manter. Uma alternativa era abandonar a fazenda e se internar nas matas. Por que não o fizeram? A crença de que tinham “direitos” parecia mais forte e assim preferiram se manter juntos dentro da própria fazenda e assim foram presos. Deixaram-se prender? Negociaram a rendição? Luiz Carlos de Lacerda, o suplente de delegado que efetuou o “tão bem calculado plano” de captura na fazenda da Loanda, ao que tudo indica, deve ter sido louvado pelos habitantes de Campos, principalmente pelos fazendeiros e autoridades. Dois meses depois era condecorado com a Ordem da Rosa do Império, em virtude daquela “façanha”. Afinal, tinha acabado de vez com o famoso “quilombo da Loanda”.42 Seis anos mais tarde, ou seja, em 1886, o agora Comendador Luiz Carlos de Lacerda era considerado o líder “radical” da campanha abolicionista da região. Mediante comícios e editoriais inflamados – publicados em seu jornal, o Vinte e Cinco de Março – desenvolvia intensa propaganda abolicionista, alarmando a população de Campos.43 Pela imprensa local conservadora, grandes fazendeiros replicavam aos ataques de Luiz Carlos de Lacerda e dos simpatizantes de sua campanha. O periódico A Evolução, ferrenho opositor, atacava-o com frequência os abolicionistas. As críticas eram sempre as mesmas: abolicionistas manipulavam e induziam os cativos da região a fugir e até mesmo a formarem quilombos. Afinal o que aconteceu? Tudo indica que os aquilombados da Fazenda da Loanda se deixaram capturar. Se acreditarmos no que a própria matéria destaca, eram, na maioria, velhos, mulheres e crianças. Onde estavam os homens? Teriam eles tentado ir à Corte reivindicar junto às autoridades sua condição de “livres” e de que não aceitavam que a fazenda da Loanda fosse vendida? Ou estariam escondidos em matas próximas? Teriam permitido que mulheres, velhos e crianças se 42 ANRJ, Decretos Honoríficos, Caixa 789 B (1878-1889), 25.9.1880. 43 LIMA, Lana Lage da Gama, Rebeldia negra, p. 84-141 e OSCAR, João, Escravidão e engenhos, p. 205-232.
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entregassem à justiça, já que havia problemas de abastecimento em virtude do cerco iniciado desde 1877? Pouco sabemos. E o suposto “tão bem calculado plano” de Lacerda não teve nada de heróico, epopeia militar e façanhas?44 É mais provável que tenha sido fruto de agenciamentos e conflitos entre os aquilombados, o novo proprietário da Fazenda da Loanda – que poderia nem estar mais preocupado com a posse dos cativos, mas sim com a desocupação de sua nova propriedade. De qualquer modo, o episódio da fazenda da Loanda, em Campos de Goitacases, nos revela como escravizados podiam formar comunidades e a partir dos seus próprios interesses, forjarem e experimentarem significados diversos para as suas visões de liberdade, escravidão, conflito, autonomia e negociação. Ocupando terras e fazendas – na condição de aquilombados -- procuravam reverter, na medida do possível, várias situações que pontuavam os mundos do trabalho à sua volta.45 Ali, depois da morte de seu senhor não aceitavam que a propriedade fosse vendida, o que poderia significar, além da mudança de costumes, a destruição de arranjos familiares, já que muitos cativos poderiam ser separados. Existiam também libertos trabalhando ali e alimentavam possivelmente a expectativa de obterem alforrias incondicionais ou manterem arranjos sociais conquistados junto à ex-senhora falecida, que com certeza acabariam desrespeitados pelo novo proprietário da fazenda.46 44 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. “Batismo da liberdade: os abolicionistas e o destino do negro”. Histórias, Questões e Debates, v. 9, n. 16, janeiro de 1988, p. 38-65. 45 GOMES, Flávio dos Santos. Repensando a construção de símbolos de identidade étnica no Brasil. In: FRY, Peter; REIS, Elisa; ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. Política e Cultura. Visões do passado e perspectivas contemporâneas. São Paulo, Hucitec/ANPOCS, 1996, p. 197-221. 46 Sobre economia própria dos escravos e as formações camponesas ver: BARICKMAN, B. J. “’A bit of land, wich they call a roça’: slave provision grounds in the Bahia Recôncavo, 1780-1860”. Hispanic American Historical Review, v. 74, n. 4, p. 649-687; BERLIN, Ira e MORGAN, Philip D. “Introduction”. Slavery & Abolition, v. 12, n. 1, 1991 (número especial: The Slaves Economy Independent Production by Slaves in the Americas), p. 1-27; CARDOSO, Ciro Flamarion S. Escravo ou Camponês? O Protocampesinato Negro nas Américas. São Paulo, Brasiliense, 1987; GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos Viveres de Afrodescendentes na Escravidão e no PósEmancipação. Família, trabalho, Terra e conflito ( Juiz de Fora, MG, 1828-1928). São Paulo, AnnaBlume, Juiz Fora, Funalfa Edições, 2006; JOHNSON, Howard. “The emergence of a peasantry in the Bahamas during slavery”. Slavery & Abolition, v. 10, n. 2, 1989, p. 172-186; MACHADO, Maria Helena P. T. Vivendo na mais perfeita desordem: os libertos e o modo de vida camponês na província de São Paulo do século XIX. Estudos Afro-Asiáticos, número 25, 1993; MACHADO, Maria Helena P. T. Em torno da autonomia escrava : uma nova direção
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Migrações e vésperas da Abolição Para a região de Campos dos Goitacazes há vários registros de quilombos volantes na última década da escravidão. Destaque para aqueles que se formaram na localidade de Travessão. Vários anúncios de fugas – destacadamente no Monitor Campista – mencionavam o fluxo de fugitivos para esta região. Da freguesia Morro do Coco, 1877, tinha fugido o crioulo Zacarias e constava que teria passado no início de 1878 para os “lados da Lagoa da Saudade, no Travessão”. Em 1880, era mencionado o fugido José, pardo que andava pelos “arrabaldes de Travessão”.47 Entre os anos de 1879 a 1884, os quilombolas do Travessão foram temas diários da imprensa de Campos – dividida entre facções abolicionistas e fazendeiros escravistas – com denúncias e repressão. Nas retóricas jornalísticas – de terror e denúncias – percebe-se que a acusação principal a esses quilombos eram as suas supostas atividades de roubos e assassinatos. Os quilombolas – conheciam-se seus nomes próprios – eram mesmos classificados como bandidos comuns e salteadores.48 Muitos outros quilombos – volantes e combinados com deserções em massa e migrações de grupos familiares – surgiriam em Campos, principalmente nas áreas de Pádua, São João da Barra, Miracema e Itabapoana, quase nas fronteiras com o Espírito Santo.49 Em 1883, o foco era no distrito de Miracema onde “andam diversos escravizados fugidos, os quais tem dado o que fazer aos lavradores”.50 Ainda no final de 1884, surgiriam na freguesia de Guarulhos “vários quilombos”, sendo que uma expedição contra “um desses quilompara a história social da escravidão. Revista Brasileira de História, volume 8, número 16, 1988, p. 143-160; MINTZ, Sidney W. Slavery and the rise of peasantries. Historical Reflections, v. 6, n. 1, 1979, p. 213-253; MINTZ, Sidney W. Caribbean Transformations. Baltimore, The Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1974 e PALACIOS, Guilhermo. Campesinato e Escravidão: Uma proposta de periodização para a história dos cultivadores pobres livres no Nordeste Oriental do Brasil, C. 1700-1875. DADOS, Revista de Ciências Sociais, v. 30, n. 3, 1987, p. 325-356 47 Monitor Campista, 07.02.1878 e 04.03.1880 48 Ver Monitor Campista, 02.09.1879; 30.09.1883; 12.03.1884; 01.04.1884; 25.03.1884 e 21.11.1884 49 Para a abolição e o pós-emancipação na Província do Espirito Santo, ver: ALMADA, Vilma Paraíso Ferreira de. Escravismo e Transição: O Espírito Santo (1850/1888). Rio de Janeiro, Graal, 1984 e MARTINS, Robson Luís Machado. Os caminhos da Liberdade. Abolicionistas, escravos e senhores na Província do Espírito Santo (1884-1888). Campinas, Centro de Memória/Unicamp, 2005. 50 Correio de Pádua, 13.09.1883
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bos” conseguiu “apreender 11 indivíduos, tendo fugido mais de 30”.51 Da mesma forma, o Correio de Pádua, em agosto de 1885, publicaria que um grupo de quilombolas estava escondido “na mata que circunda” a fazenda do Comendador Francisco Thomaz Leite Ribeiro”. Entre os quilombolas havia “alguns indivíduos forros que convivem com eles e assistem aos seus misteriosos canjerês”.52 No ano seguinte era noticiado o envio de tropas para São João da Barra, para “ser dispersado um quilombo que ali tem praticado muitos furtos e raptado mulheres brancas que encontram nas suas excursões”.53 A ação repressiva duraria todo o mês de janeiro, sendo invadido um grande quilombo onde “encontraram cinco casas de palha, sendo uma delas grande e bem feita, um forno e mais utensílios de fazer farinha, umas gamelas de pão, espingarda e grande plantação de mandioca e milho”. A tropa teria “incendiado e devastado” tudo.54 Os noticiários sobre os quilombos tanto chamavam a atenção para os ataques, assassinatos e roubos que supostamente realizavam os quilombolas, como destacavam a estrutura da sua organização social em pequenas comunidades agrárias com casas e plantações de farinha. Enfim, o que tudo isso sugere é que era pouco provável que fossem apenas bandos de salteadores. Em Morro do Coco, tentava-se prender dois cativos fugidos acusados de assassinatos, que se ocultavam em ranchos no lugar denominado Vila Nova.55 Na localidade de Guaxindiba, em Itabapoana, seria desencadeada repressão contra os “quilombolas que tem atacado os viandantes”.56 Na mesma região, na fazenda do Limão, pertencente ao Tenente-Coronel José Fernandes Lima, aconteceria o assassinato do seu administrador, “crime perpetrado a foice por quilombolas que se acham foragidos nas matas da mesma fazenda”.57 Certamente, em termos de atmosfera e percepção política, a formação de quilombos volantes, aquilombamentos em fazendas, deslocamentos, migrações e fugas em massa se articulavam. Nos derradeiros 51 Monitor Campista, 21.11.1884 52 Correio de Pádua, 23.08.1885 53 Monitor Campista, 24.01.1886 54 Monitor Campista, 31.01.1886 55 Monitor Campista, 08.04.1886 56 O Progressista, 26.05.1887 57 O Progressista, 23.06.1887
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anos de 1887 e 1888 – o cenário foi também da movimentação de “retirantes”, isto é libertos alforriados que agiam coletivamente. Autoridades, fazendeiros e mesmo abolicionistas tentavam garantir o controle sobre o processo de abolição na região. O “fantasma da desordem” – entre o fim inevitável e ao mesmo tempo imprevisível da escravidão – aparecia em diferentes narrativas e argumentos. Foram pioneiros os estudos de Lana Lage sobre o abolicionismo e o de Hebe Mattos em abordar a atmosfera da região – tendo como contraponto áreas e periódicos de Minas Gerais – articulando inclusive com as repercussões – publicadas nos jornais – dos episódios que ocorriam em São Paulo.58 Mas de uma maneira geral, a historiografia analisou tal processo muito mais como uma disputa pela memória da abolição e das primeiras décadas do pós-emancipação.59 Mas quais os significados destes movimentos e deslocamentos que envolviam assenzalados, aquilombados, libertos e “retirantes” de fazendas? Para Campos dos Goitacazes é possível propor uma interpretação que articule os movimentos de deserção, quilombos volantes e deslocamentos de recém alforriados que suplanta a memória abolicionista construída por meio da imprensa local. Embora alardeada pela imprensa, talvez a abolição – definitiva e incondicional – não fosse um fato consumado. Além disso, poderia haver um cenário dialógico entre essas ocorrências e os episódios do Oeste paulista, que também eram noticiados no Rio de Janeiro. É interessante verificar como as notícias sobre os “quilombos” e seus supostos crimes desaparecem dos jornais em 1888 e 1889 ao mesmo tempo em que, em Campos, os fazendeiros realizaram congressos agrícolas e transcreveram nos jornais suas atas e discussões. Tais posicionamentos podem ter espelhado mais um discurso pedagógico para os próprios fazendeiros – suas expectativas de manter a estrutura de trabalho feitorizado, parceria, meação e salários – do que um diagnóstico da situação ainda em 1888. Destacamos aqui a série de reportagens já bastante utilizada por Sheila Faria e Hebe Mattos sobre a “Lavoura no Estado do Rio 58 MACHADO, Maria Helena P. T. O Plano e o Pânico. Os movimentos sociais na Década da Abolição. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ/EDUSP, 1994. 59 LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia Negra e MATTOS, Hebe M. de. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil, Século XIX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998
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de Janeiro”, assinadas por Arrigo de Zetirry, publicadas no Jornal do Commércio, no segundo semestre de 1894.60 Tais reportagens descreviam, além de Campos, vários municípios de fronteiras abertas no Norte fluminense, como Itaperuna, São João da Barra e localidades de Carangola e Muriaé. Nessas, seu autor, entre observador e analista, “relatando as condições em que atualmente se acham o trabalho e o trabalhador, a lavoura e o produto”, destacaria como os libertos tinham abandonado as senzalas e procuravam negociar novas formas de trabalho, que incluía a retirada da mulher e dos filhos nas empreitadas nas lavouras.61 Na divisa do norte fluminense com Minas Gerais, na fazenda de Três Barras, Arrigo de Zetirry encontrou 128 famílias de trabalhadores, sendo 73 delas de libertos, entre as quais 11 eram de libertos oriundos de outras propriedades. Ali trabalhavam como meeiros, plantando café e com inúmeras roças de milho e feijão. Comparando com as condições de trabalho em São Paulo com a utilização de imigrantes italianos criticaria os libertos por se recusarem ao trabalho familiar pois “acharemos as mulheres dos negros sentadas á porta, com as mãos no colo, mulheres tão fortes como os homens, completamente inertes”. Além disso, acrescentava o autor, “o nacional, especialmente liberto, parece ignorar que possa haver no coração humano um desejo de mudar de vida, de melhorar de posição social”.62 Outras transcrições poderiam ser feitas das observações daquele cronista, todas oscilando entre o abandono das fazendas, a falta de interesse dos libertos, sua rejeição ao trabalho na grande lavoura em detrimento as suas roças de alimentos e as comparações com trabalhadores chineses e com outros cenários do Norte fluminense. Como especulação analítica seria interessante pensar o que Zetirry não viu na sua viagem. Ao contrário da imprensa em 1887 e 1888 – antes do 13 de maio – que produzia uma narrativa pedagógica, articulando acontecimentos, cenários e expectativas sobre Norte fluminense e o Oeste paulista através de rumores, indícios e denúncias, Zetirry em 1894 – através do Jornal do Commércio – propunha uma ava60 FARIA, Sheila de Castro. Terra e Trabalho em Campos dos Goytacazes, Mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, UFF, 1986 e MATTOS, Hebe M. de. Das Cores do Silêncio, 1998. 61 Jornal do Commércio, 20.06.1894 62 Jornal do Commércio, 28.07.1894
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liação sobre a lavoura fluminense, colocando como exemplo a ser seguido aquela de São Paulo, com a extensa utilização de trabalho imigrante sendo arregimentado nas frentes de trabalho. Assim escolheria como modelo para a região de Campos as grandes fazendas articuladas às usinas. O que aconteceria em outras áreas? Argumentamos – levantando hipótese – que o que ele não viu foi o esparramar de micro-sociedades camponesas negras – organizadas em núcleos familiares e muitas das quais invisíveis – que podiam estar nas franjas de algumas fazendas e/ou nas fronteiras, sem falar da migração constante. Qual seja, as “grandes propriedades que existiam ao tempo da escravidão” estavam “desde anos completamente abandonadas ou tratadas por um limitadíssimo número de trabalhadores libertos” mas outros tantos povoados negros – de um campesinato itinerante – ainda existiam fornecendo mão de obra de jornaleiros ou trabalhadores sazonais. Inclusive os libertos que formavam tais povoados negros tinham tanto “internado-se” para Minas, enquanto outros tantos viviam de produção familiar de alimentos. 63 O cronista acaba sugerindo o seguinte quadro desalentador para a grande propriedade e para a usina: de um lado libertos, individualmente ou em famílias, ora ausentes, ora em população rarefeita devido a arregimentação de outros municípios que os recompensavam melhor, de outro lado, colônias de libertos de parceria ou de meação, dedicadas a uma agricultura familiar, arruinavam os interesses da economia açucareira e as usinas vizinhas. Comentou Zetirry a respeito dos trabalhadores de uma fazenda articulada a Usina das Dores: “Os libertos, como a generalidade deles aqui no município, trabalham para e quanto é preciso a subsistência, não manifestam empenho em querer melhorar a própria condição, nem amor a economia”.64 Consideramos que parte desse processo de carência de mão de obra de libertos arregimentados em sistemas de trabalho tutelados e de disciplina férrea, similar ao da escravidão, foi também motivado por ou surgiu como um desdobramento da movimentação, deslocamento e migrações de escravizados, retirantes, aquilombados, e das fugas em massa da década da abolição. 63 Jornal do Commércio, 21.10.1894. 64 Jornal do Commércio, 04.08.1894
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Anatomias de crioulização entre gerações africanas: sugestões e hipóteses para mais investigações Micro comunidades camponesas negras que se espalharam na região, migrando constantemente a procura de trabalho e terra, constituíram-se a partir de um processo complexo, do qual ainda conhecemos pouco. Esse certamente foi o caso da antiga Fazenda do Collegio. Com a emancipação os libertos permaneceram morando com famílias. Em agosto de 1894, Zetirry igualmente produziu um olhar sobre uma comunidade camponesa negra.65 Na sua descrição, ficava a “dois terços de légua das duas estações consecutivas de S. Gonçalo e Campos Limpos, no ramal de S. Sebastião, território da freguesia de S. Gonçalo e do terceiro distrito do município” Situava-se a “fazenda do Collegio, antiga propriedade dos padres da Companhia de Jesus”, sendo que o “Sr. João Batista de Paula Barroso e parentes seus são os atuais donos – quartos herdeiros de geração em geração”. Se havia gerações e gerações de proprietários – depois da administração jesuítica finalizada em 1755 – certamente devia existir gerações e gerações de escravizados e depois libertos que continuariam morando naquela propriedade quase no alvorecer do século XX. Para Zetirry a fazenda do Collegio era “um admirável exemplo de resistência”. Segundo ele, o “sistema ali seguido pelos jesuítas no século passado foi, quanto era possível, conservado; a educação religiosa sempre de um indubitável e benéfico poder moral sobre as classes menos cultas, da sociedade continuou a exercer o seu influxo sobre a colônia da fazenda de Collegio”. Listaria as consequências dessa tradição e costume, destacando o “grande número de ex-escravos e ex-escravas do Collegio que nunca, depois da abolição, abandonaram os seus antigos senhores”. Zetirry ao que parece colheu detalhes que nos leva exatamente às condições daquela propriedade nas vésperas da Abolição. Segundo ele, ali “havia no dia 12 de Maio de 1888 - 68 escravos e 80 escravas”, sendo que “desses só 5 homens e 3 mulheres abandonaram a fazenda depois da abolição e não voltaram mais”. E que teria acontecido com os libertos da fazenda do Collegio? Zetirry conseguiu verificar que “todos os outros, e não foram 65 Jornal do Commércio, 13.08.1894
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muitos, se saíram, voltaram quase imediatamente”, sendo que “depois da abolição morreram 8 homens e 4 mulheres”. Zetirry forneceria um verdadeiro censo daquela antiga propriedade jesuítica, nas primeiras décadas da emancipação. Em 1894 “ainda existem e trabalham nos canaviais” 242 “trabalhadores”, sendo 55 “ex escravos do Collegio”, 73 “ex escravas do Collegio”, 37 “ex escravos de outros proprietários”, 31 “ex escravas de outros proprietário”, além de 28 “homens nascidos livres” e 18 “mulheres nascidas livres”. Na contagem de Zetirry havia então ali uma comunidade com 53% de antigos escravizados. Dessa comunidade havia ainda 28% de libertos de outras propriedades. Qual seja, seria possível pensar em migrações camponesas no pós-abolição e o recrutamento de mão de obra para grandes propriedades. Na contagem de Zetirry as mulheres sobressaíam-se pois representavam 53% da população de libertos, sendo que para os antigos escravizados da Fazenda do Collegio esse índice subia para 57%. Tal concentração feminina tinha um impacto nos mundos do trabalho ali. Ao contrário de outras fazendas, no pós emancipação, na Fazenda do Collegio o trabalho feminino predominava. Segundo Zetirry outra vantagem notável que a colônia do Collegio oferece é a seguinte: muitas, uma grande parte mesmo das mulheres libertas que ali existem, trabalham na roça e no engenho. O caso é mais único que raro, porque nos lugares onde ela se dá é só uma ou outra mulher liberta que trabalha.
ali pois
Ele ainda apresentaria informações sobre a estrutura de trabalho no Collegio, vinte mulheres ajudam os homens nos trabalhos do engenho quando ele funciona, e a maior parte delas e mais outras ocupam-se dos trabalhos de limpa e corte de canas” e uma “mulher que foi escrava, não do Collegio e que é colona há anos, deu no ano passado 90 carros de cana.
Ela “trabalhou sozinha e o canavial, quando lhe foi entregue para roçá-lo, estava coberto por um espesso capinzal de Angola que é conhe46
cido por um dos mais difíceis de arrancar”. O cenário do pós-abolição na antiga fazenda do Collegio era mesmo original: Mas o que mais nos interessou foi a comovedora cena de dois velhos esposos libertos que surpreendemos no ato de trabalhar de enxada. Ele um ancião ainda forte de 76 anos, ela com 70. O terreno do canavial estava tão bem limpo, tão bem roçado, como melhor não saberiam fazê-lo os robustos braços do mais abalizado colono.
Esses libertos “tinham sido escravos do falecido pai do atual proprietário que eles chamam de “senhor moço”. Zetirry disse mais que “interrogados sobre o tempo da escravidão, responderam com a mais explícita convicção: “a liberdade não ter para eles modificado em nada o regime de vida; estarem tão satisfeitos agora como então, porque apesar de escravos sempre foram amoravelmente tratados pelo senhor, e nunca uma só vez, nos longos anos de cativeiro o chicote do feitor roçou-lhe as costas”. Os libertos ali trabalhavam em um regime de meação pois “entregam 40 carros de canas, das quais a metade lhes pertence. Plantam muita mandioca para o consumo doméstico”. Ainda assim Zetirry faria críticas aos libertos ali pois a “família do liberto no Collegio, como em outras partes, desorganizada. Unem-se hoje em concubinato para separar-se daqui a poucos dias e juntar-se diferentemente. No entanto há numerosos exemplos de união legítima”.66 Com essa descrição de Zetirry podemos voltar ao passado colonial dessa fazenda. Não sabemos nada da composição das primeiras escravarias em Campos de Goitacazes. Os primeiros engenhos ali foram instalados entre 1650 e 1653, certamente com mão de obra indígena.67 E a escravaria original dos jesuítas ali desenvolveram sobretudo atividade criatória de gado e depois expandiram sua produção açucareira? Ao considerarmos os estudos de Viana, Graham, Schwartz e Engemann – e também Lima – para as fazendas jesuíticas é possível considerar que as primeiras gerações de escravizados foram de indígenas escravizados, 66 Jornal do Commércio, 13.08.1894. Ver: SCHWENINGER, Loren. Prosperous Blacks in the South. The American Historical Review, v. 95, n. 1, 1990, p. 31-59. 67 OSCAR, João. Escravidão e Engenhos, p. 6
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indígenas livres e iniciais contingentes de africanos.68 Houve mudanças diferentes para vários contextos dessas fazendas imediatamente antes e depois da expulsão dos jesuítas. Novas gerações de escravizados africanos seriam incorporados numa população majoritariamente crioula, inclusive descendentes de indígenas. Em Campos de Goitacazes com a expansão açucareira do último quartel setecentista e as primeiras décadas do Oitocentos pode ter sido modificado o perfil – em proporções diferentes – da população escravizada de várias fazendas, incluindo a Fazenda do Collegio. Em 1780 falava-se em 1.483 escravizados nela. Em 1781 Monsenhor Pizarro falaria em 1.600 enquanto a fazenda dos Asseca tinha 500, a do Morgado 200 e a dos beneditinos 600 escravizados. Em 1818, Saint-Hilaire visitando a região anotou haver 1.500 escravizados trabalhando no engenho de açúcar e habitando em casinhas de tijolos e telhas ou “cobertas de capim”.69 Quem seriam? Mais crioulos? Descendentes de africanos mas também de indígenas? Analisando os registros de batizados – paróquia de São Salvador – de escravizados da família Gomes Barroso temos um interessante perfil da escravaria e seus possíveis impactos africanos numa estrutura fortemente crioulizada da população cativa ali.70 Consideramos 524 registros de batizados no período de 1813 a 1870. Do total há 241 registros de batizados de crioulos e 107 registros de africanos. Qual seja, para 176 (33,6%) não sabemos se eram africanos ou crioulos. Detalhe: para 328 registros, há indicações de quem são os batizandos, filhos naturais (63,1%) ou filhos legítimos (38,9%), no caso os pais casados pelo sacramento da Igreja. Mas considerando o conjunto de 348 batizados com naturalidade temos 69,2% de crioulos e 30,2% de africanos. Dos 107 registros de africanos batizados temos 62,6% de homens e 37,4% (40) mulheres. Desse total 68 SCHWARTZ, Stuart B., Segredos Internos: engenhos e escravos na socieda, de colonial - 15501835. São Paulo, Companhia das Letras, 1988; VIANA, Sônia Bayão Rodrigues. A Fazenda de Santa Cruz e a Política Real e Imperial em Relação ao Desenvolvimento Brasileiro, 1790-1850. Dissertação (Mestrado), Niterói, ICHF/UFF, 1974; ENGEMANN, Carlos. De laços e de nós. Rio de Janeiro, Ateliê Editora, 2008; GRAHAM, Richard. “A família escrava no Brasil Colonial”, In: Escravismo, reforma e imperialismo. São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 41-57e LIMA, Solimar Oliveira. Braço Forte: trabalho escravo nas fazendas da Nação do Piauí (1822-1871). Passo Fundo, UFP, 2005 69 OSCAR, João. Escravidão e Engenhos, p. 55-56 70 Consideramos batizados de escravos dos seguintes proprietários: Vitorino Gomes Barroso, Sebastião Gomes Barroso, Manoel Domingues Gomes Barroso, José Gomes Barroso, João Gomes Barroso. Francisco de Paula Gomes Barroso e Domingos Gomes Barroso.
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de africanos, 36,4% (39) aparece somente com a nomenclatura “nação”, enquanto que o restante são 51,4% (55) com a nomenclatura Angola e 7,4% (8) com a denominação Benguela. Para o conjunto de pais e mães dos batizados inocentes encontramos cerca de 227 registros com as classificações da naturalidade dos mesmos. Para os pais (sempre registros de batizados considerados legítimos) verificamos 60 denominações: “africano” (33,3%), Angola (25%), “nação” (23,3%), crioulo (16,6%) e Cabinda (1,6%). Enquanto para as mães dos batizados temos 167 denominações, sendo “brasileira” ou crioula 33,5%, 28,1% “africana”, 22,1% “nação”, 24,3% Angola e 0,6% Benguela. Para as classificações dos padrinhos e madrinhas dos batizados só encontramos 47 registros, sendo 40,4% de “brasileiro”, “brasileira”, crioulo e crioula; 27,7% “nação”; 14,9% “africano” e “africana”; 6,4% Benguela; 6,4% Cabinda e 4,3% Angola. É pouco provável que os africanos tenham se transformado em maioria. A quantidade de escravizado ali era muito grande e portanto novas aquisições de escravizados africanos podem ter sido frequentes, mas nunca produziriam impactos demográficos africanos relevantes. Portanto essa fazenda – assim como a dos beneditinos não muito distante, manteve uma população africana fortemente crioulizada da segunda e terceira geração. Dizer isso não significaria afirmar que a presença africana ali teria desaparecido. Propriedades vizinhas à fazenda do Collegio – de fazendeiros que arrendavam terras, portanto, não eram proprietários de terra mas sim de escravizados – certamente receberam muitos africanos na primeira metade do século XIX. Isso sem falar do tráfico ilegal que despejou africanos escravizados – via litoral alcançando toda costa – no norte fluminense – até 1856.71 Assim, teríamos tanto a fazenda do Collegio permanecendo uma grande “ilha crioula”72 em uma atmosfera de circunvizinhança de inúmeras médias e pequenas – cerca de 10 a 40 escravizados majoritariamente africanos ou crioulos da primeira geração – fazendas.73 Aliás desde o século XVIII havia muitos arrendatários escravistas – qual seja proprietários de escravos mas não de terras – nas fazendas dos religiosos beneditinos e jesuítas. Tal prática deve ter continuado com a fazenda sob a administração leiga. 71 OSCAR, João. Escravidão e Engenhos, p. 73 a 82 72 TROUILLOT, Michel-Rolph. “Culture in the Edges: creolization in the plantation context. Plantation Society in the Americas, vol. V, n. 1, verão 1998, p. 8-28. 73 BARICKMAN, B. J. E se a casa-grande não fosse tão grande? Uma freguesia açucareira no Recôncavo baiano em 1835. Afro-Ásia, n. 29 e 30, 2003, p. 79-132.
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Se a nossa hipótese não estiver muito errada, explicar-se-ia tanto a falta de informação sobre a naturalidade e identidade dos escravizados da Fazenda do Collegio em meados do século XIX, como a sua formação comunitária sugerida por Zetirry quase no alvorecer do século XX. No final do século XIX, nos primeiros anos, ele viu uma comunidade crioula naquela fazenda, cercada por populações de libertos de outras fazendas no pós-abolição, que migrava a procura de trabalho. Seriam novos formatos de migrações e ocupação de terra – vimos em alguns episódios de aquilombados e em quilombos volantes – de comunidades camponesas negras. Mais pesquisas arquivistas, demografia, memória oral e cotejamento com os registros da cultura material poderão ampliar mais sugestões.
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Capítulo 2 As pesquisas arqueológicas no Colégio dos Jesuítas Luís Cláudio Pereira Symanski
Introdução Este capítulo fornece informações gerais sobre as pesquisas arqueológicas no Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes. Essas pesquisas foram desenvolvidas no quadro dos projetos Café com Açúcar: arqueologia da escravidão em uma perspectiva comparativa no Sudeste rural escravista – séculos XVIII e XIX, financiado pelo CNPq,74 e Arqueologia das Ordens Religiosas do Norte Fluminense: o Colégio dos Jesuítas e a Fazenda dos Beneditinos de Campos dos Goytacazes (RJ), financiado pela Fapemig.75 Ambos os projetos contaram com a co-coordenação de Flávio Gomes. O Café com Açúcar teve por propósito o estudo comparativo de contextos referentes a diferentes unidades de produção de açúcar e de café da região sudeste, com o objetivo de obter informações sobre a dinâmica cultural dos grupos escravizados africanos e afrodescendentes, visando entender os modos como eles agenciaram suas vidas nessas diferentes unidades de produção em suas similaridades e diferenças, bem como os mecanismos de construção e reconstrução de identidades de matriz africana. O projeto Arqueologia das Ordens Religiosas do Norte Fluminense, visou aprofundar as investigações nas fazendas das ordens dos Jesuítas e dos Beneditinos, as quais mantiveram as maiores senzalas da região de Campos. Nesse caso, o objetivo central foi abordar como se deu o processo de crioulização – de formação de identidades mais inclusivas – no espaço da senzala entre africanos e indígenas, bem como discutir as formas como as rígidas normas impostas pelos beneditinos e jesuítas, que incluíam as práticas e crenças religiosas europeia-ocidentais, foram apropriadas e reconfiguradas na senzala. 74 Projeto submetido ao Edital Universal 14/11 do Conselho do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e aprovado sob o número de processo 472181/2011-4. 75 Projeto submetido ao Edital Universal 01/14 Demanda Universal, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), e aprovado sob o número de processo APQ01789-14.
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O Colégio dos Jesuítas foi objeto de três temporadas de escavações arqueológicas, nos anos de 2012, 2014 e 2016. Em cada temporada o foco recaiu sobre uma área diferente do espaço da senzala. Essa amostragem de três áreas da senzala tem permitido abordar diferentes facetas da vida material, das práticas sociais e do universo cultural dos escravizados do Colégio tanto em uma perspectiva diacrônica, que se estende do começo do século XVIII ao período do pós-emancipação quanto sincrônica, nesse caso considerando as similaridades e diferenças no conteúdo material dessas três áreas naqueles períodos em que foram simultaneamente ocupadas. Nesse sentido, as pesquisas têm revelado um quadro extremamente dinâmico da vida cotidiana dessa população, suas similaridades e diferenças em termos de práticas de consumo, hábitos alimentares, crenças e corporalidade, conforme demonstram os estudos publicados neste volume.
O Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes O Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes foi fundado em meados do século XVII pelos padres da Companhia de Jesus, que desenvolveram, inicialmente, a atividade criatória de gado, e, posteriormente, o cultivo e processamento da cana de açúcar. Com a expulsão dos jesuítas da colônia, em 1759, a propriedade passou para o controle da coroa portuguesa. Em 1781, o comerciante português Joaquim Vicente dos Reis arrematou a propriedade com “[...] todos os seus pertences, casa, Igreja, engenho, seus acessórios, escravos, terras, e todas mais coisas e posses com que a possuíram os denominados jesuítas”. Nessa época, a fazenda mantinha quase 1.500 cativos, consistindo na maior propriedade existente em Campos.76 Com a morte de Joaquim Vicente, em 1818, a propriedade foi herdada por seu genro Sebastião Gomes Barroso, casado com Joana Bernardina.77 Em 1843 a fazenda foi herdada por seu filho, o tenente-coronel Francisco de Paula Gomes Barroso (1822-1892), passando, depois, para o seu filho, João Baptista de Paula Barroso.78 A fazenda permaneceu 76 GUGLIELMO, Mariana G. As múltiplas facetas do vassalo “mais rico e poderoso do Brasil”: Joaquim Vicente dos Reis e sua atuação em Campos dos Goytacazes (1781-1813). Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. p. 27. 77 Idem, p. 77-79. 78 LAMEGO, Alberto. A planície do solar e da senzala. Rio de Janeiro: Livraria Católica, 1934. p. 37.
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nas mãos dos descendentes de Joaquim Vicente até sua desapropriação pelo governo do estado. Seu último proprietário, João Batista Barroso, viveu na fazenda até sua morte, em 1980.79 Até essa data, uma comunidade descendente direta dos cativos que viveram na fazenda se manteve agregada à propriedade, ocupando a mesma quadra que conformava a senzala desde o período colonial. A sede da propriedade hoje abriga o Arquivo Público Municipal de Campos, sendo uma das mais antigas construções de Campos dos Goytacazes.
O trabalho de campo As pesquisas arqueológicas no Colégio dos Jesuítas foram realizadas em três etapas nos anos de 2012, 2014 e 2016, durante o mês de julho (Figura 2.1). Informações mais detalhadas sobre os contextos escavados podem ser encontradas em trabalhos anteriores.80 As intervenções arqueológicas envolveram os seguintes procedimentos: 1. Demarcação de um ponto-zero para a malha de quadriculamento, tendo como referência a quina nordeste da sede do Colégio. O ponto-zero foi implantado a 10 metros a leste da referida quina, em alinhamento com a parede norte do solar (Figura 2.1). 2. Lançamento de duas linhas-eixo, uma orientada no sentido norte-sul e a outra no sentido Leste-Oeste, as quais foram demarcadas a intervalos de 10 metros, tendo como início o ponto-zero. Essas linhas foram identificadas por coordenadas cardeais, como linhas Norte, Sul, Leste e Oeste, e sequencialmente numeradas, em ordem crescente, a partir do ponto-zero. 79 FERREIRA, Larissa. O solar do colégio e as políticas culturais: a preservação deste patrimônio e a sua ressignificação. Manuscrito não publicado, 14 pags, s.d. 80 Ver SYMANSKI, Luís C. P.; Gomes Flávio dos Santos. Arqueologia da escravidão em fazendas jesuíticas: primeiras notícias da pesquisa. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, n. 19, p. 309-317, 2012; SYMANSKI, Luís C. P.; SUGUIMATSU, Isabela. Atividades cotidianas, deposição de refugo e ação do arado: processos de formação do registro arqueológico no espaço de uma senzala de Campos dos Goytacazes (RJ). Clio. Série Arqueológica, Recife, v. 30, p.38-76, 2015; SYMANSKI, Luís C. P.; SUGUIMATSU, Isabela; GOMES, Flávio dos Santos. Práticas de Descarte de Refugo em uma Plantation Escravista: O Caso da Fazenda do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes. Revista de Arqueologia, São Paulo, v. 28, p. 93-122, 2015.
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3. Demarcação de quadras de 10x10 metros com base nas linhas-eixo. 4. Abertura de trincheiras nas áreas que apresentaram material de superfície nas áreas selecionadas para escavação. 5. Expansão das trincheiras de acordo com a densidade de material evidenciado em cada uma, vindo a constituir áreas amplas de escavação.
Figura 2.1 - Planta do Colégio dos Jesuítas, com indicação das áreas escavadas. Fonte: Autoria própria.
Na primeira etapa, (em 2012) foram contemplados dois setores: um de deposição de refugo referente aos ocupantes do solar, situado cerca de 45 metros a Noroeste dessa edificação, e o outro, a 80 metros a Norte do mesmo, referente à extremidade Noroeste da senzala em conformação de U situada de frente para a sede, cujas extremidades originalmente ultrapassavam a linha da parede frontal da 54
sede da fazenda em aproximadamente 10 metros, formando uma praça de cerca de 160 x 230 metros (Figura 2.2). Nesse segundo setor foram abertas duas áreas de escavação, sendo uma referente a um espaço de uso cotidiano atrás da linha da senzala (unidade Leste, NW8.1), na qual foi evidenciada uma estrutura de combustão, e a outra (unidade Oeste, NW8.3) consistindo em um espaço destinado exclusivamente à deposição de refugo, o qual era regularmente coberto com fragmentos de telhas (Figura 2.3). Essas duas unidades totalizaram 48m2 de área escavada. Ambas foram rebaixadas até atingir a base do depósito arqueológico, entre 40 e 50 cm de profundidade. As louças da área NW8.1 apresentam estilos e técnicas de decoração que apontam para uma ocupação concentrada na primeira metade do século XIX, com um intervalo de deposição concentrado entre 1820 e 1850. Na área NW8.3 o intervalo de deposição se deu entre 1790 e 1860. A deposição do material se deu de forma gradual nas duas áreas, de modo que a sobreposição dos níveis escavados apresenta uma boa coerência cronológica (Tabela 2.1). Tabela 2.1 - Intervalo de deposição dos níveis das unidades leste e oeste Área NW8.1 Nível 1 (0-20cm)
1850-1860
Nível 1/2 (0-30 cm)
1835-1850
Níveis 3+4 (30-50 cm)
1820-1835
Fonte: Autoria própria.
Área NW8.3
1790-1820
Na área de deposição do solar foram abertos 9 metros quadrados, em duas áreas de escavação, nas quadras NW 2.8 e NW 3.8, com profundidade média de 40 cm (Figura 2.2). Foi recuperada, assim, uma amostra referente ao período entre o início e o último quartel do século XIX, incluindo uma grande quantidade de porcelanas europeias, louças inglesas e restos alimentares, predominando ossos de bois. Na área NW 2.8 foi evidenciada, a partir dos 25 cm de profundidade, outra camada de telhas. Essa camada apresentou uma espessura média de 5 cm, e, do mesmo modo como aquela evidenciada na área NW8.3, 55
teve o propósito de encobrir o refugo que havia sido diretamente depositado sobre a superfície (Figura 2.3). Na segunda etapa, (em 2014) foi aberta uma área de escavação imediatamente atrás do arruamento da senzala a sudeste do solar, denominada SE8.8 (Figuras 2.1 e 2.2). Foi marcada, inicialmente, uma trincheira de 9 metros de comprimento por 1 de largura, orientada no sentido Oeste para Leste. Na sétima quadrícula da trincheira, aos 50 centímetros de profundidade, uma mancha preta, a qual foi evidenciada pela abertura de uma quadra de 3x3m. Verificou tratar-se de uma estrutura de deposição, que foi escavada no sedimento argiloso e preenchida com refugo, incluindo uma grande quantidade de material orgânico (Figura 2.3). Essa estrutura apresentou uma conformação irregular e uma superfície de base irregular, apresentando, em sua profundida máxima, 1 metro em relação ao nível da superfície. Com relação aos níveis superiores dessa área, até os 30 centímetros de profundidade verificou-se um intenso revolvimento do solo, ocasionado pela ação do arado mas também pela intensidade da ocupação, que estendeu-se até o início da década de 1980. Os níveis entre 30 e 50 centímetros não chegaram a ser afetados por esta ação humana mais tardia, contendo material exclusivamente referente ao século XIX. As louças da mancha preta indicaram um intervalo de deposição entre 1835 e 1850, e os dois níveis imediatamente superiores (níveis 4 e 5), um intervalo entre 1850 e 1870.
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Figura 2.2 - Fotografia de satélite do Colégio dos Jesuítas. Fonte: Google Earth. A edificação originalmente mantinha outra seção ao norte da capela que espelhava a seção sul. O tracejado representa a quadra da senzala. 1- áreas de escavação NW 8.1 e, imediatamente a oeste, NW 8.3. 2- áreas NW 2.8 e, imediatamente ao norte, NW 3.8; 3- área SE 8.8; 4- área NE 5.13.
Na terceira etapa, (em 2016) foi aberta uma área de 31m a cerca de 150 metros a nordeste do solar (Figuras 2.1 e 2.2). Foi aberta, inicialmente, uma trincheira de 10 x 1 metros orientada no sentido Sul-Norte. Aos 20 centímetros de profundidade começou a ser evidenciada uma feição de telhas quebradas do mesmo padrão daquela presente na área NW8.3, indicando tratar-se de outra área de deposição de refugo (Feição 1) (Figura 2.4). Do mesmo modo que a da área 8.3, essa feição apresentava, imediatamente abaixo ou embrenhado com as telhas quebradas, uma significativa quantidade de material arqueológico. Foi assim aberta uma área ampla de 6 x 3 metros visando expor a superfície dessa feição. Foi ainda aberta outra trincheira de 6 x 0,5 metros no sentido Leste-Oeste, visando determinar o limite Oeste da feição, constatando-se que a mesma avançava além da área escavada para todos os lados. A preponderância de faiança colonial portuguesa embrenhada com os fragmentos de telhas da feição sugere que essa foi depositada no início do século XIX. 57
Figura 2.3 - Da esquerda para a direita no sentido horário: área de deposição de refugo da NW8.3; estrutura de combustão da área NW8.1; mancha preta da área SE8.8; área de deposição de refugo da sede. Fonte: Autoria própria.
Imediatamente abaixo da Feição 1, foi exposta uma fina camada de sedimentos, variando em espessura entre 3 e 5 centímetros. Esta camada, referente ao final do século XVIII, apresentou uma significativa quantidade de material arqueológico. Abaixo dessa camada foi evidenciada outra feição de telhas quebradas, denominada Feição 2. Trata-se de um nível de deposição de meados do século XVIII. Por fim, abaixo dessa, a uma profundidade média de 40 centímetros, estava o último nível de ocupação (camada III), estendendo-se até a base do depósito arqueológico, a uma profundidade média de 50 centímetros. Esse nível é referente ao final do século XVII e início do XVIII. Essa área, aparentemente, foi sujeita a uma deposição de material de modo contínuo até o início do século XIX, quando foi recoberta pela segunda camada de telhas, a qual selou o depósito. A partir de então, foi utilizada para descarte eventual até meados do século XX. 58
Figura 2.4 - Superfície evidenciada da feição 1 da área NE 5.13. Fonte: Autoria própria.
O potencial das amostras As três áreas escavadas da senzala apresentaram uma significativa amostra arqueológica, composta por 48.392 fragmentos de ossos de animais, e 27.648 fragmentos de artefatos cerâmicos, representados por porcelanas, louças finas, faianças, cerâmicas torneadas, cerâmicas vidradas, grés, e de vidros. Fragmentos de itens de ferro e de cobre foram também 59
recuperados. A predominância dos restos faunísticos é indicativa das atividades domésticas centradas no preparo e consumo de alimentos, conforme abordado no capítulo de Moraes e também discutido por outros autores do volume. Dentre as categorias cerâmicas destacaram-se, em termos quantitativos, as torneadas, provavelmente foram produzidas na própria olaria do Colégio. Essas categorias são discutidas no capítulo de Symanski, ao passo que as cerâmicas artesanais são abordadas no capítulo de Hepp, Azevedo e Monteiro. Ornamentos de vidro, ossos e metal, compuseram uma categoria pouco representativa, porém altamente significativa, conforme discutido no capítulo de Suguimatsu. Por fim, uma arqueologia da memória e do lugar, considerando as percepções dos descendentes da comunidade da senzala, é apresentada no capítulo de Myashita. A pesquisa arqueológica no Colégio dos Jesuítas tem propiciado uma série de discussões sobre a vida dos escravizados, envolvendo práticas de descarte de refugo, padrões de consumo, hábitos alimentares, corporalidade e autoapresentação, saúde e cuidados com o corpo, práticas lúdicas, religiosidade e memória. Algumas das principais contribuições são apresentadas nos capítulos deste livro. Outras estão sendo desenvolvidas em monografias, dissertações e teses dos estudantes envolvidos no projeto. Desse modo, os trabalhos aqui apresentados estão longe de esgotar o potencial informativo presente no material arqueológico, o qual deverá ainda revelar muitas nuances do cotidiano e da vida material dessa população que formou as raízes da cultura afro-campista.
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Capítulo 3 Cerâmicas, linhas de cor e a negociação do espaço social no Colégio dos Jesuítas Luís Cláudio Pereira Symanski
Introdução Este trabalho tem por meta discutir a dinâmica das relações sociais na comunidade da senzala e entre essa e a sede da fazenda do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes, com base nas louças e cerâmicas recuperadas em dois espaços da senzala e em uma área de despejo do solar. A teoria social contemporânea tem reconhecido que as relações humanas são simultaneamente sociais e materiais, de modo que a cultura material, a configuração do espaço e os hábitos de vida são fundamentais para a reprodução social e, assim, indissociáveis das relações sociais e das estruturas cognitivas e simbólicas.81 O foco, nesse caso, recai na questão da agência dos grupos escravizados. Considerando o marco teórico da teoria da prática, a agência é simultaneamente produto e produtora da estrutura. As condições estruturais, por sua vez, consistem em recursos materiais e simbólicos. Esses recursos compõem um campo de possibilidades que são reproduzidas por meio das práticas, intencionais e não-intencionais, que eles medeiam.82 Nas últimas décadas, teóricos da prática têm devotado uma atenção crescente às relações de poder e de desigualdade, aos modos como estas são reproduzidas e desafiadas na prática, de modo que a dominação é permeada por ambiguidades, contradições e lacunas.83 Este fato leva à constatação de que a reprodução social nunca é total, sendo 81 GOSDEN, Christopher. Anthropology and Archaeology: a Changing Relationship. Londres e Nova York: Routledge, 1999; McCALL, John. Structure, agency, and the locus of the social: why poststructural theory is good for archaeology. In: ROBB, JOHN (Org.). Material Symbols: Culture and Economy in Pre-History. Carbondale: Southern Illinois University, 1999. p. 16-20. 82 BARRET, John. Agency, the duality of structure, and the problem of the archaeological record. In: HODDER, Ian (Org.). Archaeological Theory Today. Cambridge: Polity Press, 2001. p. 141-164. 83 Sobre a questão das relações de poder na teoria da prática ver DECERTEAU, Michael. The Practice of Everyday Life. Berkeley: University of California Press, 1984; SCOTT, James. Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts. Londres: Yale University Press, 1990; ORTNER, Sherry. Anthropology and Social Theory: Culture, Power and the Acting Subject. Durham: Duke University Press, 2006.
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sempre “[...] imperfeita e vulnerável às pressões e instabilidades inerentes em qualquer situação de poder desigual.”84 Nesse sentido, a agência não é somente cultural e historicamente construída, mas também diferencialmente conformada sob diferentes regimes de poder.85 Com base, portanto, nesses pressupostos teóricos, este estudo parte da premissa que as louças e cerâmicas do Colégio dos Jesuítas foram ativamente empregadas em estratégias de negociação social pelos proprietários e pela população escravizada, e assim exerceram um papel fundamental na construção e manutenção de diferenças e de fronteiras sociais e culturais não somente entre esses dois grupos, mas também no próprio espaço senzala. Nesse sentido, essa cultura material foi imbuída de valores sociais e simbólicos, de estéticas e de aspirações que realçavam as categorias estruturantes da sociedade de plantation, sobretudo aquelas sociais, entre senhores e escravos, e raciais, entre brancos, pardos, cabras e crioulos. Para abordar essas questões foi necessário, primeiramente, considerar as formas de aquisição das louças pela senzala, bem como as implicações econômicas e sociais relacionadas à diversidade decorativa e qualitativa desses itens. Essa diversidade, por sua vez, tem implicações relacionadas às motivações, de ordem social e cultural, que guiaram as escolhas e que, por um lado, apontam para concepções estéticas mais generalizadas no espaço da senzala e, por outro, para aspirações e formas de construção da diferença no interior dessa comunidade. Essas diferenças se tornam mais evidentes por meio da análise diacrônica do conteúdo material dos espaços da senzala e demonstram concepções cambiáveis nos valores, estéticas e aspirações e, assim, no próprio processo de negociação da identidade entre os grupos escravizados.
Cativos e proprietários do Colégio dos Jesuítas O Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes foi fundado em meados do século XVII pelos padres da Companhia de Jesus, que desenvolveram, inicialmente, a atividade criatória de gado, e, posteriormente, o cultivo e processamento da cana de açúcar. Com a expulsão dos 84 Ibidem. p. 7. 85 Ibidem. p. 137.
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jesuítas da colônia, em 1759, a propriedade passou para o controle da coroa portuguesa. Em 1781 o comerciante português Joaquim Vicente dos Reis arrematou, na praça do Rio de Janeiro, a propriedade, com todos os seus pertences, incluindo seus quase que 1.500 cativos.86 Com a morte de Joaquim Vicente, em 1818, o seu vasto patrimônio foi herdado por suas três filhas, Maria Joaquina dos Nascimento, Ana Bernardina do Nascimento Reis e Joana Bernardina do Nascimento Reis. O maior beneficiário, contudo, foi o seu genro Sebastião Gomes Barroso, casado com Joana Bernardina, o quais deteve a propriedade da fazenda.87 Ele manteve a propriedade até a sua morte, em 1843, quando a fazenda foi herdada por seu filho, o tenente-coronel Francisco de Paula Gomes Barroso (18221892).88 João Baptista de Paula Barroso, filho de Francisco de Paula, foi o próximo proprietário. A fazenda permaneceu nas mãos dos seus descendentes da família até a década de 1970, quando foi desapropriada pelo Governo do Estado, o que não impediu que seu último proprietário, João Batista Barroso, continuasse nela vivendo até a sua morte, em 1980.89 Até essa data, uma comunidade descendente da senzala se manteve agregada à propriedade, ocupando parte da mesma quadra que originalmente conformava essa estrutura. Até o momento não dispomos de informações sobre o perfil da comunidade escravizada da fazenda no período dos inacianos. É sabido, contudo, que esses exploraram largamente o trabalho escravizado, sobretudo nas atividades relacionadas com o cultivo e processamento da cana-de-açúcar. No século XVI os jesuítas receberam, em Angola, terras do conquistador Paulo Dias de Novais, e passaram a se valer das condições de vassalidade das populações conquistadas para financiar a empresa evangelizadora, o que incluía, além de outros tributos, a recepção de escravos. Passaram, assim, a se engajar ativamente no tráfico de escravizados, tanto 86 GUGLIELMO, Mariana G. As múltiplas facetas do vassalo “mais rico e poderoso do Brasil”: Joaquim Vicente dos Reis e sua atuação em Campos dos Goytacazes (1781-1813). Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. p. 27 87 GUGLIELMO, Mariana. op cit. p. 77-79. 88 LAMEGO, Alberto. A planície do solar e da senzala. Rio de Janeiro: Livraria Católica, 1934. p.37. 89 FERREIRA, Larissa. O solar do colégio e as políticas culturais: a preservação deste patrimônio e a sua ressignificação. Manuscrito não publicado.
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em Angola quanto no Congo e em São Tomé.90 Estabeleceram, ainda, uma complementaridade econômica entre seus estabelecimentos em Angola e no Brasil, na qual os escravizados eram encaminhados de Angola em troca de alimentos, cachaça e tabaco produzidos no Brasil com o uso dos mesmos.91 Cabe ainda destacar que eram comuns as uniões conjugais entre africanos e indígenas, não somente nos estabelecimentos religiosos mas também nas demais fazendas do Rio de Janeiro.92 No ano de 1819 Saint-Hilaire visitou o Colégio dos Jesuítas, fornecendo as seguintes informações sobre sua história: Esse imenso domínio foi durante muito tempo dedicado à criação do gado, tendo-se mesmo queimado as matas para formar pastagens. Foi somente poucos anos antes da supressão da ordem que os jesuítas começaram a cultivar a cana em Colégio e aí construíram uma usina. Após a expulsão dos padres da Companhia a fazenda foi a princípio administrada por conta do rei; mas em 1781 foi posta em leilão e vendida por 500 mil cruzados (1 milhão e 500 mil francos). O comprador [ Joaquim Vicente dos Reis] tinha falecido pouco tempo antes da minha estada ali...93
Com relação à estrutura da fazenda, Saint-Hilaire deixou a seguinte descrição: A fazenda do Colégio possui vários milhares de cabeça de gado, 1.500 escravos e tem cerca de 9 léguas quadradas de terreno, estendendo-se até ao [Rio] Macaé. [...] Em Colégio seguiram um plano de construção idêntico ao de S. Bento, porém em maiores proporções. Casas de negros, feitas de tijolos e cobertas de telhas, formam aqui os três lados de um pátio que tem cerca de 360 passos de comprimento por 250 de largura. Uma fachada comum à igreja e ao convento forma um dos pequenos lados do pátio, e, no meio deste há uma casa, sem dúvida construída 90 ZENON, C. Linha de fé: a Companhia de Jesus e a escravidão no processo de formação da sociedade colonial (Brasil, séculos XVI e XVII). São Paulo: EDUSP, 2011. p.170-173. 91 Ibidem, p.172. 92 AMANTINO, Marcia. Relações sociais entre negros e índios nas fazendas inacianas – Rio de Janeiro, século XVIII. Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. CD-ROM. 93 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941. p. 415-416.
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pelos jesuítas para recreio dos índios e dos negros. Comparado ao resto do estabelecimento, o monastério propriamente dito não tem grande extensão; a igreja separa-o em duas partes e, de cada lado desta última [p. 417] existe um pátio comprido, entre ela e o convento. O engenho de açúcar dá para o pátio. Atrás das casas que o cercam há uma fileira exterior de casinhas igualmente destinadas aos escravos, porém na maioria cobertas de capim, e construídas com menos cuidado e ordem que as do pátio. Em um dos lados da fazenda há uma olaria e a alguma distância, um edifício inteiramente isolado onde tratam dos doentes.94
Couto Reis, em um detalhado relato sobre a região de Campos dos Goytacazes realizado no ano de 1785, notificava que a propriedade de Joaquim Vicente dos Reis mantinha um total de 1482 cativos, sendo 765 crianças, 340 homens e 377 mulheres.95 Esse perfil da senzala do Colégio era muito contrastante com as demais propriedades rurais da região, que tendiam a apresentar uma taxa muito mais elevada de masculinidade e um número reduzido de crianças. É condizente, contudo, com um padrão de reprodução natural, sem a introdução de novos cativos pelo tráfico. De fato, a taxa de legitimidade – de pais casados perante a Igreja – dessa comunidade era muito elevada, compondo 77% no ano de 1782.96 Guglielmo observou que os casamentos, nesse período (1782-1783), ocorriam quase que integralmente entre os membros da dita comunidade, e que, na grande maioria dos casos, o compadrio estabelecido era com padrinhos e madrinhas da mesma comunidade.97 Portanto, no final do século XVIII os arranjos familiares caracterizavam a senzala da fazenda do Colégio. Tais arranjos levaram, nesse período, a taxas elevadas de reprodução natural. Apenas entre o início de 1782 e o final de 1783 foram registrados 123 nascimentos na capela da propriedade. Assim, no ano de 1796, a fazenda já contava com quase 2.000 cativos.98 Essa população, contudo, já no começo do século XIX, deixa de apresentar níveis ascendentes e decai sensivelmente, a confiar na informa94 Ibidem, p. 416-417. 95 REIS, Manuel Martins do Couto. Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reys, 1785. Rio de Janeiro: APERJ, 1997. 96 GUGLIELMO, M. op cit. p. 29. 97 Ibidem, p.29-30. 98 Ibidem, p. 30.
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ção de Saint-Hilaire sobre o número de 1.500 cativos vivendo no Colégio no ano de 1819. Essa informação torna-se mais consistente ao se analisar o próximo documento que informa sobre essa população cativa: o inventário de Sebastião Gomes Barroso, datado de 184399. Neste documento são listados 1.111 cativos. Há, assim, um declínio de cerca de 45% na população escravizada entre os anos de 1796 e 1843. São necessárias pesquisas mais detalhadas para entender as causas desse declínio, mas estão provavelmente relacionadas à partilha, entre os herdeiros, do patrimônio de Joaquim Vicente dos Reis após sua morte. Com relação ao perfil demográfico da comunidade escravizada em 1843, essa era composta por 579 mulheres e 532 homens. Esse equilíbrio entre os sexos é condizente com uma continuidade no padrão de reprodução natural dessa comunidade, a qual é ainda sugerida pelo grande número de crianças e jovens com a indicação de ambos os pais no inventário. Cabe destacar que os africanos, com uma única exceção, estão ausentes desse documento, indicando que durante o período de Sebastião Gomes não foram introduzidos novos cativos na fazenda via tráfico atlântico. De fato, as informações disponíveis fortemente sugerem que a introdução de africanos na fazenda após expulsão dos jesuítas, em 1759, se chegou a ocorrer, foi rara. Isso significa que essa população, já no final do século XVIII, era essencialmente crioula, no sentido de nascida no seio da própria comunidade, sobretudo em arranjos familiares. Este padrão prosseguiu por toda a primeira metade do século XIX e, muito provavelmente, até a emancipação, em 1888, dada a proibição do tráfico atlântico em 1850. Um próximo documento bastante elucidativo da dinâmica da comunidade escravizada do Colégio, é o relato do funcionário do governo italiano Arrigo de Zetirry, datado de 1894.100 O autor informava que a fazenda do Colégio era um notável exemplo de resistência à crise econômica pela qual vinham passando os grandes estabelecimentos rurais nesse período, o que ele atribuía à continuidade da educação religiosa sobre 99 Inventário de Sebastião Gomes Barroso. Ano: 1843. Arquivo Público de Campos dos Goytacazes. 100 ZETIRRY, Arrigo de. A lavoura no Estado do Rio de Janeiro. Jornal do Comércio, ano 72, n. 169, 1894.
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a comunidade emancipada do Colégio, que exerceria “[...] um indubitável e benéfico poder moral sobre as classes menos cultas”. Ele colocava como uma das provas de tal asserção o grande número de ex-escravizados que optou por permanecer vivendo no Colégio após a abolição. Segundo Zetirry, em 12 de maio de 1888 a população escravizada na fazenda perfazia 68 homens e 80 mulheres, sendo que somente cinco homens e três mulheres teriam partido após a abolição. Segundo o autor, em 1894 havia 242 trabalhadores no colégio, assim caracterizados: ex-escravizados do Colégio: 55; ex-escravizadas do Colégio: 73; ex-escravizados de outros proprietários: 37; ex-escravizadas de outros proprietários: 31; homens nascidos livres: 28; mulheres nascidas livres: 18. Ele observava ainda que a maior parte das mulheres libertas trabalhava tanto na lavoura canavieira quanto no engenho. Sobre o regime de trabalho, Zetirry dá indícios de que esses libertos viviam na fazenda na condição de agregados, dado que mantinham suas próprias áreas de cultivo de cana e concediam a metade de sua produção ao proprietário. Ele se refere ao caso de um casal de idosos, tendo o homem 76 anos e sua esposa 70, que haviam sido escravos do falecido pai do atual proprietário. Este casal teria produzido, naquele ano, 40 carros de canas, “das quais a metade lhes pertence”. Por fim, Zetirry discorre sobre as relações familiares desses libertos, considerando as famílias como mantendo uma organização inconstante: “Unem-se hoje em concubinato para separar-se daqui a poucos dias e juntar-se diferentemente”. O autor, no entanto, logo em seguida se contradiz, ao observar que havia numerosos exemplos de união legítima, de modo que a sua visão de uma suposta inconstância familiar pode ter sido mais produto de uma visão etnocêntrica, de reproduzir os estereótipos sobre a organização familiar nas comunidades emancipadas, do que refletir a realidade, ainda mais considerando os antecedentes históricos que apontam para sólidas organizações familiares entre os cativos na fazenda do Colégio. Constata-se que, pelo relato de Zetirry entre 1843 e 1888 houve outra dramática queda no número da população afrodescendente vivendo no Colégio, que foi de 1.111 para 148 indivíduos. As causas para este 67
declínio podem incluir de uma possível venda de parte dos cativos pelos proprietários até o abandono da fazenda por aqueles previamente emancipados pela Lei do Ventre Livre (1871) e pela Lei dos Sexagenários (1885). Em todo o caso, aqueles que permaneceram na fazenda após a emancipação aparentemente continuaram mantendo padrões de arranjos familiares que provinham dos meados do século XVIII. Parte dos descendentes da comunidade escravizada continuaram vivendo no Colégio até 1980. A memória desses descendentes e suas implicações com relação à pesquisa arqueológica é abordada no capítulo de Fernando Myashita. Entrevistas iniciais com três remanescentes dessa comunidade forneceram informações sobre algumas das práticas sociais mantidas pela comunidade, como o jongo e a festa do boi malhadinho. Esta ocorria na noite de 12 para 13 de maio. A comunidade se reunia em torno de um grande flamboyant localizado no centro do pátio, de onde, à meia-noite saiam seguindo um homem fantasiado de boi. Davam, então uma volta na quadra atrás do boi e depois iam para a frente do sobrado, aonde vendiam o boi para o proprietário. Além dos arranjos familiares, outra feição que parece ter sido comum à comunidade escravizada, pelo menos desde o período de Joaquim Vicente dos Reis, foi a manutenção de roças para o próprio cultivo. Guglielmo observa que neste período os cativos eram sustentados e vestidos pelo proprietário, o qual ainda lhes concedia um dia da semana e o domingo para trabalharem para o seu sustento e o de suas famílias. Tal possibilidade concedia aos cativos algum grau de independência econômica, dado que os produtos da roça poderiam não somente servir para complementar a alimentação mas também gerar alguma renda, ao serem comercializados em mercados locais ou vendidos ao proprietário.101 Para o período do pós-emancipação, Zetirry observa que, além do cultivo da cana, os libertos também mantinham roças, sobretudo de mandioca, para o consumo doméstico.102 Do mesmo modo, os cativos com ofícios especializados, como pedreiros, marceneiros e costureiros, poderiam executar serviços mediante pagamento à população livre. Este é um aspecto importante a ser considera101 GUGLIELMO, M. op cit. p. 31. 102 ZETIRRY, A. op cit.
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do, dadas as implicações sobre o conteúdo material encontrado nos espaços da senzala, conforme serão desenvolvidos abaixo. Assim, a comunidade escravizada da Fazenda do Colégio caracterizava-se, pelo menos desde meados do século XVIII, pela organização em arranjos familiares, por padrões endógenos de reprodução natural, e por manter, ao lado da produção destinada aos proprietários, uma economia de subsistência que envolvia o cultivo e, conforme os dados arqueológicos discutidos no capítulo de Geraldo Pereira Junior, a caça e a pesca.
Louças, cerâmicas e a dinâmica da vida material no Colégio dos Jesuítas Um dos propósitos centrais da pesquisa no Colégio dos Jesuítas tem sido caracterizar as condições materiais de vida dos cativos. As pesquisas têm demonstrado um quadro dinâmico da vida dessa comunidade, expressa nas marcantes diferenças na distribuição da cultura material através do espaço e do tempo. Neste item a meta será apresentar essa variabilidade e discutir suas implicações sobretudo em termos das escolhas que os cativos realizaram. Tais escolhas dizem respeito à capacidade de agência desses grupos, e, nesse sentido, podem ter expressado gostos, sensibilidades e valores próprios, fundados em referenciais culturais distintos, assim como formas de negociação social, tanto no interior da senzala quanto com a sede da fazenda e a sociedade envolvente. Para abordar tais questões é necessário, antes de tudo, discutir as formas como esses grupos tiveram acesso a bens materiais como louças e cerâmicas.
A aquisição das louças pelos cativos Os estudos que abordam a variabilidade das louças presentes em contextos de senzala invariavelmente consideram os modos como os cativos tiveram acesso a esses itens, que poderiam ser concedidos pelos proprietários, em um mecanismo de redistribuição em que estes controlavam essa faceta da vida material da comunidade,103 ou adqui103 Ver exemplos em FAIRBANKS, Charles. The Kingsley Slave Cabins in Duval County, Florida. The Conference on Historic Site Archaeology Papers, v. 7, p. 62-93, 1972; OTTO, J. Cannon’s
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ridos de forma autônoma pelos próprios cativos.104 Determinar como se deu o acesso a esses itens é fundamental para considerar não somente as alternativas de auto expressão material dos grupos escravizados, mas também a dinâmica das relações de poder nesses espaços. Nessa perspectiva, os artefatos cerâmicos obtidos no mercado são considerados commodities - os bens e serviços que foram produzidos para um mercado e que são comercializados sem referência à matriz social na qual eles foram produzidos.105 No sistema capitalista, os commodities tornam-se medidores da dignidade das pessoas, sendo, assim, centrais para a manutenção da ideologia de classe, que sustenta e reproduz as desigualdades.106 Cabe, contudo, considerar, como defende Kopytoff,107 que o valor de comércio é apenas uma dimensão da biografia cultural das coisas, dado que essas detêm uma natureza dinâmica, podendo ser tratadas como commodities em um determinado momento e não em outro, bem como serem assim qualificadas por uma pessoa e não por outra. Assim, grupos distintos podem atribuir significados diferentes a artefatos similares, de modo que visões de mundo e valores culturalmente específicos precisam ser levados em conta. Desse modo, se busca ir além das questões da funcionalidade e do valor econômico desses itens para considerar os efeitos da produção e do consumo soPoint Plantation – 1794-1860. Living conditions and status patterns in the Old South. Academic Press Inc: Orlando, San Diego, San Francisco, New York, 1984; THOMAS, Brian. Power and community: the archaeology of slavery at the Hermitage Plantation, American Antiquity v. 63, n. 4, p. 531-555, 1998; SYMANSKI, Luís C. P. Slaves and planters in Western Brazil: material culture, identity and power. Tese (Doutorado em Antropologia). Departamento de Antropologia, Universidade da Florida, Gainesville, 2006. p.205-208. 104 Ver exemplos em ADAMS, William; BOLING, Sara. Status and Ceramics for Planters and Slaves on Three Georgia Coastal Plantations, Historical Archaeology, v. 23, n. 1, p. 69-96, 1989; WILKIE, Laurie. Culture bought: evidence of creolization in the consumer goods of an enslaved Bahamian family. Historical Archaeology, v. 34, n. 3, p. 10-26, 2000; SYMANSKI, Luis C. P. Slaves and Planters. p. 213-214; AUCOIN, Rebecca. Ceramic diversity and its relation to access to market for slaves on a plantation. Monografia (Bacharelado em Antropologia). Departamento de Antropologia e Sociologia, Universidade do Sul do Mississipi, Hattiesburg, 2016. 105 WOLF, Eric. Europe and the people without history. University of California Press: Berkeley. p. 310. 106 PLATTNER. S. Marxism. In:_____(Org.) Economic Anthropology. Stanford: Stanford University Press, 1989. p. 379-396. 107 KOPYTOFF, Igor. The cultural biography of things: commoditization as process. In: APPADURAI, A. (Org.). The social life of things: commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. p. 64.
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bre a identidade, conforme propõe Kearney.108 Nessa perspectiva, os indivíduos são tidos como transformadores do valor e do poder, de modo que eles próprios são transformados no processo, à medida que atribuem a determinadas categorias de artefatos um valor simbólico, o qual é determinante para a formação de consciência e afirmação de identidades. Desse modo, o consumo de tais itens se dá de acordo com estratégias de resistência.109 Assim, o primeiro passo é determinar como se deu a aquisição desses commodities pelos cativos do Colégio e, a seguir, analisar mais detalhadamente as semelhanças e diferenças entre esses itens, de modo a discutir como as escolhas realizadas pelos membros dessa comunidade podem ter expressado os valores desses grupos. Se os proprietários foram responsáveis pelo fornecimento de louça à senzala, isso poderia se dar de duas formas, não necessariamente excludentes: pela transferência de peças velhas e danificadas da sede da fazenda à senzala, à medida que novos estilos eram comprados pelos proprietários, como Fairbanks110 sugere para o caso da plantation Kingsley, na Florida; ou pela compra de lotes especificamente destinados aos cativos, como sugere Otto,111 para o caso da plantation Cannon’s Point, na Georgia, e Thomas,112 para o caso da plantation Hermitage, no Tenessee. No primeiro caso, a expectativa seria de os mesmos tipos de louça estarem presentes tanto nos espaços da senzala quanto nos contextos de deposição da sede da fazenda, com a inexistência de tipos exclusivos, conforme verificado no Engenho do Rio da Casca, em Mato Grosso.113 Já para o segundo caso, se poderia esperar diferenças tipológicas entre a senzala e a sede da fazenda, porém com um baixo grau de diferença entre as louças de diferentes setores da senzala. Do mesmo modo, seria sensato supor que os lotes de louça destinados aos cativos seriam dos tipos mais baratos existentes no mercado. 108 KEARNEY, M. Reconceptualizing the peasantry. Anthropology in global perspective. Boulder: Westview Press, 1996. p. 148-149. 109 Ibidem, p. 168-169. 110 FAIRBANKS, Charles. op cit. p. 82. 111 OTTO, J. op cit. 112 THOMAS, B. op cit. 113 SYMANSKI, Luis C. P. Slaves and planters. p. 206.
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Por outro lado, se os cativos puderam escolher esses itens isso implicaria na possibilidade de que eles tivessem mantido alguma forma de renda, e assim participado do mercado na qualidade de consumidores ativos. A fonte de renda poderia vir de roças utilizadas para cultivo próprio, como no caso da plantation Clift em Nassau,114 do próprio Colégio e de vários estabelecimentos produtivos do Brasil. Em alguns casos os cativos tinham a oportunidade de comercializar a produção excedente, o que lhes garantiria um pecúlio que poderia ser economizado para a compra da própria liberdade.115 Do mesmo modo, os cativos com ofícios especializados, como pedreiros, ferreiros, marceneiros e alfaiates poderiam, em algumas ocasiões, prestar serviços externos à plantation, e assim obter algum dinheiro que poderia ser utilizado para fins diversos. Este foi o caso do pardo Antônio Francisco Granjeiro, alfaiate do Colégio no período de Joaquim Vicente dos Reis, que, visando obter sua liberdade para se livrar dos “violentos tratos” de seu senhor, com o apoio de sua mulher trabalhou tanto que conseguiu adquirir dinheiro suficiente para o seu resgate. O desfecho da história, bem aprofundada por Guglielmo,116 foi a rejeição do pedido de liberdade e o encaminhamento do alfaiate para Angola, aonde foi doado à Santa Casa de Misericórdia. Esse caso claramente se contrapõe ao discurso de benevolência dos proprietários do Colégio, reproduzido pela historiografia tradicional. Nesses casos em que os escravizados poderiam manter algum grau de autonomia econômica, a expectativa é que tenham tido a possibilidade de escolher seus bens de consumo, o que pode se expressar pela presença de tipos exclusivos de louças na senzala bem como por um significativo grau de variação tipológica em diferentes áreas de deposição, relacionadas a diferentes unidades de ocupação, desse espaço.
114 WILKIE, Laurie. op cit. p. 12. 115 Sobre esta questão na historiografia ver SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: EDUSC, 2001; BARICKMAN, Bert. “A bit of land which they call roça”: slave provision grounds on sugar plantations and cane farms in the Bahian Recôncavo, 1780-1860. Hispanic Amercian Historical Review, v. 74, n. 4, 1994. p. 649-687. 116 GUGLIELMO, M. op cit.
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Foram analisadas três categorias de louças: faianças,117 faianças finas118 e porcelanas.119 A análise comparativa dos tipos de louças presentes na sede da fazenda e nos dois setores escavados da senzala (NW e SE – ver Figura 2.1) demonstrou um baixo grau de compartilhamento de tipos. De um universo de 109 tipos de louças e porcelanas identificados, somente 9,17% são comuns às três áreas. Por outro lado, há um alto grau de exclusividade de tipos de louças em ambos os setores da senzala, consistindo em 29,35% daquelas da senzala SE e 22,93% das da senzala NW (Figura 3.1). Com relação ao grau de similaridade entre as áreas, este é maior entre as louças dos dois setores da senzala (NW e SE), consistindo em 28,8% em uma amostra de 90 tipos, do que entre a sede da fazenda e as senzalas. Neste último caso, há uma maior similaridade de tipos entre a sede da fazenda e a senzala SE, consistindo em 20,23% de tipos compartilhados em uma amostra de 86 tipos, do que entre àquela e a senzala NW, representada por somente 12,98%, em uma amostra de 77 tipos. Considerando uma ordem de afinidade material temos, em primeiro lugar, os dois espaços da senzala e, a seguir, entre a sede da fazenda e a senzala SE, com a senzala NW apresentando o menor grau similaridades com a sede da fazenda. Por fim, o alto grau de diferença entre as amostras é um forte indicativo de que os cativos do Colégio tiveram acesso ao mercado e, assim, foram aptos a fazer escolhas próprias.
117 A faiança é uma cerâmica feita de terracota, coberta de um esmalte estanífero branco opaco, pintada ou esmaltada com vidrado transparente plumbífero ou alcalino. BANDEIRA, Beatriz. A faiança portuguesa entre os séculos XVII e XIX. Vestígios (Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica), v. 7, n. 2, 2013. p. 109-144. 118 A faiança fina foi a classe de louça doméstica mais popular no Brasil oitocentista, tendo sido despejado em larga escala no mercado, sobretudo pela Inglaterra, após a abertura dos portos (1808). Era comumente denominada como louça pó de pedra. Trata-se, de acordo com Worthy, uma louça com a pasta permeável, opaca, de textura granular e quebra irregular que, para se tornar impermeável a líquidos, deve ser coberta com um esmalte Sua temperatura de queima varia entre 600º C e 1150º C. Ver WORTHY, Linda. Classification and interpretation of late nineteenth and early twentieth-century ceramics. In: DICKENS, Jr.; ROY, S. (Orgs.). Archaeology of Urban America. The Search for Patterns and Process. Nova York: Academic Press, 1982. p. 329-359. 119 A porcelana é uma louça branca, vitrificada e translúcida, descoberta na China durante a dinastia Tang (618-906 d. C.), cuja alta temperatura de queima, entre 1300º C e 1450º C elimina o limite entre a pasta e o esmalte. BRANCANTE, Eldino. O Brasil e a Cerâmica Antiga. São Paulo: Cia Litográfica Ypiranga, 1981. p. 156; WORTHY, Linda. op cit. p. 337.
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Figura 3.1 - Distribuição dos tipos de louça nos espaços do Colégio. Fonte: Autoria própria.
A variabilidade das categorias cerâmicas na senzala e na sede da fazenda Outro aspecto importante de se abordar nessa discussão diz respeito ao conteúdo material cerâmico geral presente nesses três contextos. Para fins de análise esse conteúdo foi separado em duas categorias mais amplas: louças e cerâmicas. As louças englobam as categorias faiança, faiança fina e porcelana, consistindo em sua grande maioria, em peças de mesa industrializadas de produção europeia. As cerâmicas englobam as categorias torneada simples, torneada vidrada e artesanal, e consistem sobretudo, em panelas e vasilhames para estocagem de água e gêneros alimentícios, com uma pequena proporção destinadas ao serviço e consumo, na forma de tigelas e pratos (Figura 3.2). É provável que muitas das cerâmicas torneadas fossem produzidas na própria olaria do Colégio, mencionada no relato de Saint Hilaire transcrito anteriormente. No inventário de 1843 cinco cativos são descritos como mantendo a ocupação de oleiros, demonstrando que até aquele ano a olaria continuava ativa. As cerâmicas artesanais são de produção doméstica, prova74
velmente feitas no próprio espaço da senzala. Em uma pesquisa anterior, foi possível constatar que uma panela de cerâmica artesanal, em Cuiabá no ano de 1832, custava 50 mil réis, um valor quatro vezes inferior ao de um prato branco de faiança fina, que era uma das louças mais baratas disponíveis no mercado.120 Tratam-se, portanto, de itens de valor econômico sensivelmente inferior aos das louças. Nesse sentido, alguns pesquisadores defendem que uma grande proporção dessas peças em espaços de senzala seria uma indicação de baixa acessibilidade ao mercado por parte dos cativos.121
Figura 3.2 - Exemplares de cerâmicas do espaço da senzala. Topo: prato de cerâmica torneada; lado inferior esquerdo: panela de cerâmica artesanal de produção doméstica; lado inferior direito: tigela de cerâmica torneada vidrada. Fonte: Autoria própria.
A figura 3.3 apresenta a proporção das seis referidas categorias cerâmicas na sede da fazenda e nos dois espaços da senzala. Verifica-se 120 SYMANSKI, Luís C. P. Slaves and planters. p. 205. 121 Ver KOWAL, Amy. Autonomous but shackled: a community model of slave life and its archaeological testing. The African Diaspora Archaeology Network, v. 10, n. 1, 2007. p. 1-15.
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que há uma marcante diferença qualitativa na sede da fazenda, onde fortemente predominam as louças, compondo 87,7% da amostra, representada, sobretudo, por faianças finas (70,4%) e porcelanas (15,5%), ao passo que na senzala essa categoria varia entre 36,1% (senzala SE) e 45% (senzala NW ). Outra nítida inversão diz respeito às porcelanas e às faianças portuguesas, com as primeiras sendo muito mais frequentes na sede da fazenda enquanto que as últimas nos espaços da senzala. A porcelana consistiu na categoria de louça de maior valor econômico, ao passo que as faianças portuguesas saíram de moda no início do século XIX, sendo substituídas pelas faianças finas europeias, de qualidade mais elevada. Ao se considerar as implicações puramente econômicas dessa distribuição estamos diante de um quadro em que os escravizados optaram pelas categorias mais baratas das cerâmicas, de produção local e regional, e dispuseram de uma ínfima proporção daquelas de maior valor econômico, que eram as porcelanas. Se faz, contudo, necessário discutir as possíveis vias de acesso bem como as motivações que justificariam a presença dessas peças de alto valor econômico na senzala. Antes, porém, convém analisar mais detalhadamente as características estilísticas das faianças finas presentes nesses contextos, pois, assumindo que foram escolhas dos próprios cativos, podem informar sobre suas concepções estéticas.
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Figura 3.3 - Frequência das louças e cerâmicas nos contextos do Colégio dos Jesuítas. Fonte: Autoria própria.
A Escala Econômica de Miller e a diversidade decorativa das faianças finas Ao se analisar as amostras de faianças finas com base na escala econômica de Miller122, verifica-se que a sede da fazenda privilegiou as louças de maior valor, impressas, que compõem 54,3% daquela amostra, ao passo que os dois espaços da senzala privilegiaram as brancas não decoradas, que compuseram 61,2% na área SE e 50,69% na área NW (Figuras 3.4 e 3.5). Em ambos os casos, as louças impressas não chegaram a atingir sequer um terço da proporção que essa categoria manteve na sede da fazenda (Figura 3.6). Esses dois extremos apontam 122 George Miller, ao estudar catálogos de faianças finas dos fabricantes de Stafordshire para o período entre 1787 e 1880, verificou que a técnica de aplicação da decoração foi o fator determinante para a atribuição de preço, com as brancas, sem decoração sendo as mais baratas, seguidas pelas minimamente decoradas, pelas pintadas a mão e, com o valor mais elevado, as impressas. Ver MILLER, George. Classification and economic scaling of 19 th. century ceramics. Historical Archaeology, n. 14, 1980. p. 1-40; e MILLER, George. A revised set of cc index values for classification and economic scaling of English ceramics from 1787 to 1880. Historical Archaeology, v.25, n. 1, 1991. p. 1-25.
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para escolhas economicamente orientadas, com os proprietários optando sobretudo pelas faianças finas de maior valor disponíveis no mercado e os cativos por aquelas de valor mais baixo. Essa inversão repete aquela já observada entre as porcelanas da sede da fazenda versus as faianças portuguesas das áreas das senzalas.
Figura 3.4 - Louças presentes nos contextos da senzala e da sede da fazenda: a) faiança portuguesa, senzala NW8.3; b) faiança fina dipped ware, minimamente decorada, senzala SE8.8; c) faiança fina spatterware e spongeware, minimamente decoradas, senzala SE8.8; d) faiança fina branca, padrão Royal Rim e Shell Edegd, minimamente decorado, senzala SE8.8; e) porcelana européia, sede da fazenda. Fonte: Autoria própria.
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Figura 3.5 - Louças da senzala SE8.8, mancha preta (1835-1850) e níveis 4/5 (18501870). Esquerda: molheira e prato de porcelana com motivos decorativos em dourado; direita: louças impressas. Fonte: Autoria própria.
Figura 3.6 - Níveis de preços das faianças finas nos contextos do Colégio dos Jesuítas. Fonte: Autoria própria. 79
Dipped ware, spongeware e spatterware e a estética das faianças finas da senzala Embora a escolha por louças brancas pelos escravizados dos dois setores da senzala possa ter sido pautada por critérios econômicos, este não deve ter sido o caso para a escolha das louças decoradas. É necessário, assim, ir além da classificação mais generalista da escala de Miller, que engloba uma diversidade de tipos em apenas quatro categorias pautadas na decoração, e considerar tipos mais específicos de louça. Nesse aspecto, há três categorias, todas dentro das minimamente decoradas, que se destacam por serem praticamente exclusivas da senzala, estando ausentes ou tendo uma baixíssima incidência na amostra da sede da fazenda. Este é o caso das louças Shell Edged, dipped ware e spatterware/spongeware (Figura 3.4). Para o caso das louças Shell Edged, enquanto que nas senzalas apresentam-se nove tipos dessa categoria, na sede da fazenda há apenas um tipo, representado por duas peças. Se pode, contudo, considerar que esta diferença pode ter sido acarretada por fatores cronológicos, pois essa categoria de louça foi mais popular entre o final do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, tendendo a abranger portanto, somente o início do depósito escavado da sede da fazenda. Para as demais categorias, porém, o fator cronológico não se sustenta. As louças dipped foram comuns durante todo o intervalo cronológico abrangido pelas amostras, ao passo que as spatter e sponge predominaram entre 1830 e 1860,123 que foi um período de contemporaneidade entre as três unidades estudadas. Desse modo temos, na senzala, uma preferência estética por louças dipped e spatter/sponge. As louças dipped são particularmente interessantes de se considerar. A predominância dessa categoria de faiança fina vem sendo já há bastante tempo observada em senzalas dos Estados Unidos e Caribe.124 123 STELLE, Lenville. An archaeological guide to historic artifacts of the upper Sangamon basin, Central Illinois, USA. Disponível em http://virtual.parkland.edu/lstelle1/len/archguide/ documents/arcguide.htm>. Acesso em 02 maio 2015. 124 Ver MOORE, S. Social and economic status on the coastal plantation: an archaeological perspective. In: SINGLETON, Theresa (Org.). The Archaeology of Slavery and Plantation Life. Orlando: Academic Press, 1985; OTTO, John. Cannon’s Point Plantation – 1794-1860. Living Conditions and Status Patterns in the Old South. Orlando, San Diego: Academic Press, 1984;
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Otto125 observa que essas louças, que são predominantemente decoradas com faixas, eram menos sensíveis à mudanças da moda do que as impressas. Por serem louças utilitárias baratas não satisfaziam aos padrões de gosto mais sofisticados. Ele observa ainda que esse estilo tinha um maior apelo para populações tradicionais, tendo sido produzidas pelas indústrias inglesas para atender a demanda de grupos como os camponeses britânicos e africanos, assim como dos escravizados. No caso da senzala da Clift Plantation, nas Bahamas, Wilkie126 observa que essa categoria de louças foi privilegiada pelos cativos por refletir influências culturais africanas, associadas com as tradições artísticas dos Bakongo, que enfatizam elementos organizados em faixas concêntricas, dentro das quais são adicionados motivos como pontos, ziguezagues e cruzes. Para o contexto de Campos dos Goytacazes convém lembrar que centro-africanos provenientes do Congo e Angola dominaram a demografia da escravidão nos séculos XVIII e XIX, de modo que a preferência por essas louças pode, igualmente, estar relacionada à manutenção de uma estética fundada em referências centro-africanas que se mantiveram entre os escravizados crioulos do século XIX. A estética das louças spongeware/spatterware também pode ter tido um apelo especial para esses grupos. Um olhar mais atento para essa amostra demonstra que tratam-se, em muitos casos, de louças bicrômicas, como azul com verde, ou monocromáticas em cores berrantes, como o rosa. Acompanham, assim, a policromia de parte das louças dipped e de parte das louças pintadas a mão, que também apresentam um grau bem maior de diversidade no espaço das senzalas do que na sede da fazenda. Um ponto importante nessa discussão diz respeito à quase ausência das louças dessas categorias de decoração entre os proprietários. A exclusão dessas categorias da tralha doméstica da sede da fazenda foi, provavelmente, intencional, relacionada a uma percepção, entre os proprietários, de que essas louças remetiam a uma estética relacionada aos escravizados, com a qual eles não buscavam se identificar. WILKIE, Laurie. Culture bought: evidence of creolization in the consumer goods of an enslaved Bahamian family. Historical Archaeology, v. 34, n.3, 2000. p. 10-26. 125 OTTO, John. op cit. p. 65. 126 WILKIE, Laurie. op cit. p. 12.
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Cerâmicas, ambiente material e fronteiras sociais Podemos, portanto, imaginar o ambiente material da senzala como dominantemente composto por cerâmicas torneadas simples e vidradas, na forma de potes, bilhas e tigelas, cuja grande maioria foi provavelmente produzida na olaria da própria fazenda; por panelas cerâmicas artesanais, provavelmente referentes a uma produção doméstica da senzala; por velhas louças portuguesas do tempo da colônia, na forma de pratos fundos e tigelas; por um razoável número de faianças finas brancas, dos tipos mais baratos do mercado, na forma de pratos e tigelas; e por um número inferior de faianças finas decoradas, em uma paleta de cores diversificada, nas formas de pratos, tigelas, malgas, pires e chícaras. Todo esse aparato compunha um ambiente material próprio da senzala exercendo, assim, um papel endoculturador no seio da comunidade escravizada, como suporte para a manutenção e reprodução de práticas, valores, gostos e estéticas próprias desses grupos. Em outros termos, esse universo material era incorporado no habitus127 dos habitantes da senzala, marcando, dessa forma, o senso de identidade familiar e de grupo. É quase que desnecessário dizer que tratava-se de um ambiente material extremamente distinto daquele da sede da fazenda, que mantinha uma mobília de alto valor, diversificada de acordo com a especialização de cada recinto – sala de visitas, sala de jantar, escritório, quartos de dormir etc. – com cerâmicas torneadas e artesanais restritas ao espaço da cozinha, e com uma grande quantidade de porcelanas européias em jogos com o brasão da família, e de louças inglesas impressas, monocromáticas e com o predomínio do azul, que eram exibidas em refeições na sala de jantar. Os antagonismos observados nas louças e cerâmicas entre a sede da fazenda e a senzala atuaram, portanto, como fortes marcadores de fronteiras sociais e culturais entre esses dois grupos. Nesse sentido, a presença, no espaço das senzalas, de louças com uma estética própria, policrômicas e monocrômicas em uma paleta de cores diversificada, destacando aquelas 127 Habitus são as ações cotidianas inconscientes, que atuam como elemento mediador entre o pensamento e a ação. Consistem nos princípios inconscientemente aprendidos através do processo de socialização que geram e organizam tanto as práticas quanto as representações. BOURDIEU, Pierre. Outline of a Theory of Practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1977.
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dipped e spatter/sponge, apontam para uma intencionalidade dos escravizados em manter essas fronteiras, reproduzindo gostos e valores que lhes eram próprios.
As mudanças na vida material no espaço da senzala Até o momento abordamos o conteúdo material do Colégio de uma forma sincrônica, considerando os amplos intervalos de ocupação de cada área. A análise diacrônica, considerando a superposição de níveis e camadas arqueológicas, permite vislumbrar as mudanças através do tempo na vida material dos ocupantes da senzala. Para o caso da senzala NW não se verificou uma variação estratigráfica expressiva, com a escavação se dando por níveis arbitrários de 10 centímetros, sendo que o nível superior, alterado pelo arado, foi aprofundado em 20 centímetros. Devido à baixa quantidade de material do nível de base, optamos por agrupar as amostras dos níveis 3 e 4. Do mesmo modo, agrupamos o material dos níveis 1 e 2 da NW 8.1, pelo fato de apresentarem um alto grau de similaridade tipológica. No caso da área SE 8.8, a divisão se deu entre a mancha preta - um buraco escavado na base argilosa do depósito arqueológico e que foi utilizado para a deposição de refugo – e os níveis 4 e 5, que são imediatamente superiores à essa, os quais foram igualmente agrupados. O níveis 1, 2 e 3 foram excluídos da análise por terem sofrido um alto grau de revolvimento pelo arado, misturando material dos séculos XIX e XX.128 Cabe, portanto, prosseguir a discussão sobre as louças escolhidas pelos escravizados sob um olhar diacrônico. A Figura 3.7 apresenta a variação das quatro categorias da escala de Miller através do tempo no espaço das senzalas NW e SE. A fim de vislumbrar as diferenças entre as duas áreas optamos pela organização dos dados com base na diacronia específica de cada área. Observa-se que na área NW há um expressivo aumento nas louças impressas nos níveis superiores, a partir de 1835, com um sensível declínio das louças brancas e a adoção das louças pintadas a mão, inexistentes nos níveis inferiores. Na área SE, por sua vez, há um dramático aumento das louças impressas no período tardio (1850-1870), 128 O maior detalhamento sobre esses contextos foi fornecido no capítulo 2.
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sendo o único contexto em que essa categoria ultrapassa as louças brancas. Se considerarmos, de uma forma geral, a diacronia da senzala como um todo, há uma tendência para o aumento das louças impressas através do tempo, concorrente com um declínio das louças brancas. Essa variação é bastante significativa, pois demonstra nítidas mudanças na escolha das louças pelos escravizados através do tempo, com uma gradual ênfase nas decoradas, sobretudo as impressas, justamente as mais caras disponíveis no mercado.
Figura 3.7 - Níveis de preços das faianças finas nos contextos das senzalas NW e SE. Fonte: Autoria própria.
Essa diversificação sugere uma mudança nas concepções estéticas dos escravizados em meados do século XIX, bem marcada justamente nos contextos NW8.3n1 e SE8.8n4/5, que aparentemente se aproxima daquela da sede da fazenda, com sua forte ênfase nas louças impressas. Para esse caso, é mais adequado analisar a situação específica da área SE, que apresenta as mudanças mais dramáticas entre os dois períodos expressos. Devemos lembrar que a análise do grau de similaridade entre as amostras, acima discutidas, aquelas da área SE, ficaram mais próximas da sede da fazenda. Um aspecto adicional da variação nesta área diz respeito à presença de porcelanas, em número de três peças do mesmo estilo, que 84
se distribuem entre a camada preta (1835-18850) e os níveis 4/5 (18501870) (Figura 3.5). Se considerarmos que a cultura material atuou na manutenção de fronteiras sociais entre esses grupos, conforme discutido acima, podemos concluir que o contexto da área SE, sobretudo o tardio, sugere uma maior permeabilidade entre essas fronteiras do que nos períodos anteriores. Nesse sentido, a opção por louças, e mesmo porcelanas, com uma estética compatível a da sede da fazenda pode ser indicativa de uma tentativa, por parte dos escravizados que viveram nessa unidade, de diminuir essas fronteiras sociais. Gibb129 observa que a constelação de artefatos em posse de um grupo doméstico representa a visão que esse grupo tem de si próprio, de modo que aquisições excepcionais podem criar a ilusão de que um ideal está sendo alcançado, representando um esforço para a redefinição do grupo. Este parece ter sido o caso dos ocupantes da área SE, sobretudo no terceiro quarto do século XIX. As escolhas desse grupo sugerem aspirações a um estilo de vida que buscava, de alguma forma, se aproximar ao da sede da fazenda, bem como afirmar uma posição social diferenciada frente a outros grupos da senzala. Este grupo fez isso substituindo as até então dominantes faianças finas brancas, provavelmente as mais abundantes em todas as unidades da senzala, por louças decoradas diversificadas, com ênfase na categoria de maior valor, as impressas. Concorrentemente adquiriram peças de porcelana, as quais, embora em número reduzido, poderiam causar uma forte impressão, dado o seu alto preço. Em suma, essa mudança qualitativa no período tardio da senzala SE pode estar relacionada a três implicações não excludentes: aspirações, por parte desse grupo, a um ideal de vida típico dos segmentos livres de posses; um empenho em permeabilizar as fronteiras com a sede da fazenda, a partir de uma aproximação estética com aquela; e competição social, pela adoção de uma cultura material diferenciada que indicaria melhores condições econômicas desse grupo na comunidade escravizada. Devemos considerar, assim, a possibilidade de os cativos estarem engajados em um processo de construção e de manutenção da diferença social no espaço da senzala. Para avançar nesse tema precisamos recorrer às fontes documentais. 129 GIBB, James. The Archaeology of Wealth: Consumer Behavior in English America. Nova York: Plenum Press, 1996, p. 25.
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Linhas de cor e escolhas matrimoniais na senzala do Colégio No ano de 1843 morreu o segundo proprietário da Fazenda do Colégio, Sebastião Gomes Barroso. Diferentemente do proprietário anterior, seu genro Joaquim Vicente dos Reis, para esse caso foi possível localizar o inventário post-mortem, o qual fornece uma listagem detalhada da tralha doméstica da sede, dos animais de criação da fazenda e de outras propriedades, e, sobretudo, da senzala, composta por 1.111 cativos.130 É este último item que nos interessa. No inventário, os cativos são ordenadamente descritos por arranjos familiares, contendo, em primeiro lugar, o nome do pai, da mãe, dos filhos e, em alguns casos, do avô ou, mais comumente, da avó. Também são comuns os arranjos familiares encabeçados por viúvas e mães solteiras. Outras informações relevantes dizem respeito à cor da pele, à idade, e, em vários casos, à ocupação de cada indivíduo. Esse documento, portanto, informa sobre quatro atributos considerados relevantes pelos proprietários para categorizar e avaliar os cativos: idade, gênero, cor da pele e ocupação. Podemos, assim, explorar quais desses elementos podem ter sido considerados significativos na estruturação da comunidade escravizada. Conforme já discutido, as informações disponíveis fortemente sugerem que a introdução de africanos na fazenda após a expulsão dos jesuítas, em 1759, foi rara. Isso significa que essa população, já no final do século XVIII, era essencialmente crioula, no sentido de nascida no seio da própria comunidade, sobretudo em arranjos familiares, conforme bem expresso no inventário de 1843. Observa-se, nesse sentido, um certo equilíbrio entre os sexos no perfil demográfico da comunidade, com 579 mulheres e 532 homens. Tal equilíbrio é condizente com uma continuidade no padrão de reprodução natural da senzala, a qual é ainda sugerida pelo grande número de crianças e jovens com a indicação de ambos os pais no inventário. Vamos começar pela cor da pele e suas relações com os arranjos familiares. Três categorias de cor são listadas no inventário: crioulo, cabra e pardo. A maioria da população é descrita como crioula (56,37%), seguida por 130 Inventário de Sebastião Gomes Barroso. Ano: 1843. Arquivo Público de Campos dos Goytacazes.
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cabra (25,70%), e pardo (17,85%). De acordo com Karasch,131 o termo crioulo era empregado no Brasil para os escravos considerados como de ascendência africana direta tanto por parte de pai quanto de mãe. O termo pardo era usado ao lado de mulato para escravos de ascendência mista europeia e africana.132 Já o termo cabra era, segundo Moura,133 um designativo utilizado para aqueles filhos de negros com mulatos, como foi o caso do Colégio, embora também tenha sido empregado para os filhos de índios com africanos. É, por sinal, provável que parte da população escravizada mais antiga do Colégio designada por esse termo tivesse uma ascendência indígena, decorrente de uma possível mestiçagem entre esses dois componentes durante o período jesuítico. Cabe destacar que essas categorias foram empregadas pelos inventariantes considerando mais o critério de cor da pele do que ascendência. Deste modo, há na listagem alguns casos de crioulos que são filhos de pardos com crioulos, bem como de cabras que são filhos de pardos, demonstrando a subjetividade dessa classificação de tonalidades de pele. Não obstante, os extremos pardo/ crioulo aparentemente atuaram como princípios estruturantes da organização da senzala, como sugerem as escolhas matrimoniais. No inventário são identificados 88 casais, totalizando, assim, 176 indivíduos casados. Estes representam 15,84% da população da senzala. Considerando o elevado número de crianças e adolescentes presentes na listagem, bem como 44 viúvas, se constata que a instituição do casamento era bastante comum nessa comunidade. O que chama a atenção, dentre aqueles casados, é o alto grau de endogamia, dado que, desses 88 casamentos, 50 (65,90%) foram entre casais enquadrados nas mesmas categorias de cor. Na Figura 3.8 podem ser observadas a distribuição das escolhas matrimoniais com base no critério de cor da pele. Há uma nítida tendência dos pardos privilegiarem aqueles com a mesma cor em suas escolhas, seguidos por cabras e, em uma proporção muito reduzida (11,42% dos casos), crioulos. Já com os crioulos ocorre uma distribuição inversa, optando, em 80% dos casos, em casar com crioulos/crioulas, sendo muito raros os casamentos com pardos (4,12%). 131 KARASCH, Mary. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 37. 132 Ibidem. p. 38 133 MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2004. p. 75.
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Figura 3.8 - Escolhas matrimoniais de pardos, cabras e crioulos do Colégio dos Jesuítas, 1843. Fonte: Autoria própria.
A tendência à endogamia se torna ainda mais expressiva quando se contrasta as escolhas matrimoniais com a proporção das três categorias de cor em questão. Nesse caso, calculou-se a razão de endogamia de cada grupo dividindo-se o percentual de casamentos intragrupais pelo percentual representado pelo grupo na escravaria. Nesse sentido, quanto mais acima de 1 for o resultado, maior a tendência à endogamia no grupo. Verifica-se, nesse sentido, que os pardos, que compuseram 17,95% da população escravizada, casaram entre si em 57,14% dos casos, resultando na razão de 3,18. Em outras palavras, aproximadamente três entre quatro pardos optaram por casar com outro pardo. Os cabras, que compuseram 25,70%, casaram entre si em 40,9% dos casos, resultando em uma razão de 1,59, ou seja, cerca de dois a cada três cabras optaram por casar com outro cabra. Por fim, os crioulos, que compuseram 56,37%, casaram entre si em 80,41% dos casos, resultando em uma razão de 1,42 (Figura 3.9). A endogamia, portanto, foi comum em todos os grupos, porém bem mais acentuada entre pardos do que entre cabras e crioulos. 88
Figura 3.9 - Razão de endogamia de pardos, cabras e crioulos no Colégio dos Jesuítas, 1843. Fonte: Autoria própria.
Cabe destacar que essa tendência à endogamia entre escravizados pardos não foi exclusiva do Colégio dos Jesuítas. Schwartz134 observou uma situação similar nos engenhos de açúcar do Recôncavo Baiano durante o século XVIII, constatando que uma hierarquia de cor, inicialmente imposta pelos senhores, foi operante nas escolhas matrimoniais dos escravizados. Moura,135 ao discutir a ausência de rebeliões de escravizados na cidade do Rio de Janeiro, destaca como razões as divisões dentro dessa população, relacionadas a rivalidades étnicas e diferenças de cor, nesse último caso verificadas entre pardos e crioulos. Em suma, nas escolhas matrimoniais da senzala do Colégio, os pardos optaram, na grande maioria dos casos, em casar com outros pardos, assim como evitaram casamentos com crioulos. Embora a recíproca possa ter sido verdadeira, o grau de endogamia entre os crioulos foi o menor entre os três grupos. Desse modo, constata-se que a cor da pele consistiu em um princípio estruturante da organização da senzala, embora tenha 134 SCHWARTZ, Stuart. Sugar Plantations in the Formation of Brazilian Society, 1550-1835. Cambridge: Cambridge University Press. p. 391-392. 135 MOURA, Clóvis. op cit. p. 354.
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sido mais significativa para um grupo – os pardos – do que para os demais. Assim, a maior parte dos cativos classificados como pardos, bem como uma parte dos chamados cabras, adotaram essas categorias de cor de pele como uma feição de suas identidades, provavelmente com um uso instrumental, passível de lhes render vantagens na arena social, bem como atuar como um princípio de coesão de grupo. Para o caso do Colégio, essas diferenças de cor foram realçadas pelos proprietários, não na maioria dos ofícios que envolviam o trabalho cotidiano em uma grande plantation, tais como os de marceneiro, pedreiro, ferreiro, carpinteiro, curraleiro etc., para os quais não há evidências consistentes de seleção com base em critérios de cor, mas no trabalho doméstico realizado no interior da sede da fazenda pelas mucamas e pajens, e no trabalho no engenho de açúcar. Todas as onze mucamas descritas no inventário são pardas. Dos cinco pajens, por sua vez, três são descritos como pardos e dois como cabras. Na cozinha, um espaço adjacente ao da sede da fazenda, a situação não foi muito diferente, dado que dos cinco cozinheiros listados quatro são identificados como cabras e apenas um como crioulo. Na sede da fazenda, portanto, o trabalho foi realizado quase que exclusivamente por pardos e cabras. Por outro lado, o trabalho no engenho de açúcar foi realizado exclusivamente pelos crioulos. Uma implicação dessa divisão do trabalho diz respeito a uma possível visão de hierarquia da senzala mantida pelos proprietários, à medida que eram esses que concediam a prerrogativa do trabalho doméstico, de mais alto status, aos pardos e, em menor escala, aos cabras. No clássico Casa Grande e Senzala Freyre136 já se referia à hierarquia entre a população escravizada das fazendas e engenhos do Brasil, na qual os que atuavam no serviço doméstico estavam no topo. Na visão hierárquica racializada dos proprietários do Colégio, os pardos situavam-se no topo e os crioulos na base. Assim, cabia a esses últimos a exclusividade no trabalho no espaço do engenho, considerado como o mais penoso em uma plantation, e aos primeiros, a do serviço doméstico na sede da fazenda, o qual implicaria em um convívio mais íntimo de um grupo seleto de escravizados com os proprietários. É lógico que no espaço da senzala a percepção poderia ter 136 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 51ª ed. São Paulo: Global Editora, 2006. p. 567.
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sido diferente, com o prestígio sendo atribuído às pessoas com base em valores alternativos, fundados em conhecimentos, qualidades e realizações apreciadas no seio daquela comunidade. De qualquer forma, conforme indicam os padrões de casamento, heranças e valores culturais próprios da senzala não foram o suficiente para impedir uma tendência à segmentação, naquele espaço, baseada no princípio da cor da pele.
Voltando às louças da senzala: valores, estéticas e a negociação da identidade Aquela pequena parcela de pardos e cabras inseridos na sede da fazenda como serviçais domésticos teve um convívio íntimo com um ambiente social extremamente diversificado daquele da senzala, expresso por práticas, hábitos, costumes, valores e crenças da elite branca. Esse ambiente social era sustentado por um ambiente material que dava suporte a essas práticas e representações, expresso pela mobília doméstica especializada, que marcava a função de cada cenário da sede da fazenda, e pela parafernália que era empregada nos rituais que envolviam as refeições domésticas e o consumo social do chá, que tinha como atores centrais os aparelhos de porcelana e de louças impressas europeias, com sua grande diversidade de formas e de funções especializadas. Essa diversidade morfológica/funcional expressava uma complexa gramática, cujas regras de uso eram naturalmente dominadas somente por aqueles endoculturados nesse ambiente, consistindo, assim, em um importante componente do habitus das elites senhoriais.137 As mucamas e os pajens atuaram no espaço opressivo da sede da fazenda, onde estavam sujeitos a toda sorte de abusos e de intimidações, assim como no espaço mais acolhedor da senzala, onde teriam a oportunidade de se reunir com suas famílias nucleares e ampliadas. O trânsito entre esses dois espaços lhes levou a dominar as regras e as convenções que caracterizavam o convívio social nesses dois universos antagônicos. 137 Sobre os usos social e cerimonial das louças nas refeições sociais e no consumo do chá ver LIMA, Tania. Pratos e mais pratos: louças domésticas, divisões culturais e limites sociais no Rio de Janeiro, século XIX. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v.3, p. 129-191, 1996; Chá e simpatia: uma estratégia de gênero no Rio de Janeiro oitocentista. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material, v. 5, p. 93-129, 1997.
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Em outros termos, o aprendizado das regras de comportamento adequadas nas diferentes práticas e cenários com os quais se engajavam se dava pela incorporação de parte do habitus da sede da fazenda. Dominavam, assim, ainda que parcialmente, essa gramática que era totalmente distinta daquela das convenções sociais da senzala, dado que essa última já havia sido naturalmente incorporada, desde o nascimento, no processo de socialização naquele espaço. Contudo, é pouco provável que a incorporação parcial do habitus da sede da fazenda tenha implicado em uma adesão passiva aos valores dos proprietários. Afinal, o aprendizado de regras por um agente não implica, necessariamente, na aceitação dessas regras como consistindo na ordem natural do mundo. Nesse sentido, a adesão a tais valores pode ter sido seletiva e com propósitos instrumentais, sendo, assim, melhor vista como um repertório de recursos que poderiam ser vantajosamente empregados no jogo das relações sociais, sendo mobilizados tanto nas relações com os proprietários quanto com os membros de seu próprio grupo. Gruzinski, ao discutir a mistura de seres humanos e imaginários definida como mestiçagem na história da colonização das Américas, chama a atenção para aqueles agentes situados entre culturas diferentes, que promovem a mediação entre elas, transitando entre os grandes blocos que tendemos a considerar como monolíticos, como é o caso do colonizador e do colonizado.138 Se pensarmos no caso do Colégio, os agentes que mais intensamente faziam essa intermediação – os serviçais domésticos – eram justamente aqueles aos quais se poderia atribuir algum grau de ascendência europeia, expressa na cor parda da pele. Situavam-se, assim, em uma condição ambígua, entre europeu e africano, condição essa que permitia, a um grupo seleto desses, transitar entre a sede da fazenda e a senzala e, assim, permeabilizar as fronteiras entre esses espaços, tornando-as porosas e flexíveis. Retornando à questão das louças, um aspecto a ser considerado diz respeito às motivações das escolhas pelos grupos da senzala. Conforme já discutido, as evidências sugerem que esses grupos puderam escolher 138 GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 42-48.
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essas peças, provavelmente por meio do acesso direto ao mercado. Essas escolhas, portanto, foram pautadas por motivações, que poderiam, por um lado, levar à opção por peças mais baratas, que se enquadravam em um gosto tradicional da senzala (como as dipped ware, spatter e sponge anteriormente discutidas) e, por outro, por peças mais caras, que sinalizavam projetos, aspirações e vontades (caso das porcelanas e louças impressas). As motivações não emergem do nada, mas são determinadas por relacionamentos. Para o caso dos ocupantes do espaço da senzala SE no período tardio (1850-1870), a escolha por peças mais caras quando poderiam ter optado por correlatas bem mais baratas que exerceriam exatamente as mesmas funções, como, de fato, haviam feito no período anterior, demonstra que eles atribuíram a essas louças impressas e porcelanas uma significância especial. Essa significância muito provavelmente dialogava com aquela que a sede da fazenda dava a tais itens, sugerindo que intermediários culturais possam ter sido os agentes desse espaço da senzala que escolheram as louças em questão. Seria precipitado, contudo, imediatamente concluir que tais escolhas implicavam em uma adoção passiva dos valores da sede da fazenda. Antes, a adoção de uma cultura material associada a valores hegemônicos pode implicar em uma forma de resistência, como abordado por Mullins ao discutir como objetos ornamentais produzidos em massa, como estatuetas e vasos, destinadas ao consumo dos brancos de classe média, no final do século XIX, foi apropriada por grupos afro-americanos como uma forma de desafiar a exclusividade dos brancos no consumo desses itens, usando-os, assim, como um veículo de crítica social.139 No caso da senzala SE, a escolha por louças mais caras, com uma estética compatível com a da sede da fazenda, certamente não implicou em uma mimetização dos usos e valores que a classe senhorial atribuía a esses itens, mas sim em apropriação e adaptação. Isso provavelmente envolveu um processo de ressignificação em que o significante pode ter mantido parte de seu significado original, relacionado aquele atribuído pela cultura hegemônica, ao 139 MULLINS, Paul. Racializing the parlor: race and Victorian bric-a-brac consumption. In: ORSER JR., Charles (Org.). Race and the Archaeology of Identity. Salt Lake City: University of Utah Press, 2001. p.158-176.
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mesmo tempo em que lhe foram atribuídas novas propriedades, conteúdos e usos sociais. Nesse sentido, as porcelanas e louças impressas podem ter sido destinadas aos indivíduos de maior prestígio dentro do grupo, como uma forma de respeito e apreciação. Em uma passagem do romance O Cortiço, escrito em 1881, Aluízio Azevedo descreve essa apropriação, por grupos populares, de itens valorizados pela cultura hegemônica, ao se referir a Dona Isabel e sua filha Pombinha, moradoras do cortiço, as quais, embora miseráveis, mantinham uma “xícara especial de porcelana” com a qual serviam café às visitas ilustres. Cabe ser lembrado que, concorrente com essas louças mais caras, este espaço manteve uma cultura material tradicional, típica da senzala, representada por uma profusão de vasilhames cerâmicos torneados, de panelas artesanais de produção doméstica e de velhas faianças portuguesas. Em um trabalho anterior140 discutimos as práticas relacionadas à alimentação mantidas pelo grupo que ocupou a senzala NW nas primeiras décadas do século XIX. Verificamos que muitas das práticas relacionadas ao preparo e consumo de alimentos foram realizadas em volta de uma fogueira, provavelmente situada atrás da casa de senzala. Nesse espaço os cativos tenderam a consumir os alimentos, que eram preparados em panelas cerâmicas artesanais, em louças velhas, muitas das quais faianças portuguesas do século XVIII. Notamos que muitas dessas louças velhas poderiam ter sido as mesmas nas quais seus pais e avós - muitos dos quais já mortos e, assim, presentes na comunidade como espíritos ancestrais – fizeram suas refeições em volta de outras fogueiras no pátio da senzala. Vale lembrar que a ancestralidade tinha uma importância fundamental nas sociedades centro-africanas matrizes desses grupos diaspóricos, consistindo em uma das diversas forças espirituais que atuavam diretamente sobre todas as facetas do cotidiano desses grupos.141 A socialização, 140 SYMANSKI, Luis C. P.; PEREIRA JÚNIOR, Geraldo. Alimentação, socialização e reprodução cultural na comunidade escravizada do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes (RJ). In: SOARES, Fernanda (Org.). Comida, Cultura e Sociedade. Arqueologia da Alimentação no Mundo Moderno. Recife: Editora Universitária UFPE, 2016. p. 95-112. 141 Ver SWEET, James. Recreating Africa: Culture, Kinship and Religion in the AfricanPortuguese World – 1471-1770. Chapel Hill: The University of Carolina Press, 2003; THORNTON, John. Religious and ceremonial life in the Kongo and Mbundu areas, 1500-1700. In: HEYWOOD, Linda (Org.). Central Africans and Cultural transformations in the American
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neste caso, ia além das relações horizontais, entre os vivos coparticipantes da refeição, envolvendo também as relações verticais com os ancestrais, com aqueles que no passado haviam compartilhado das refeições com os membros mais velhos do grupo. Nesse contexto particular, a manutenção dessas louças antiquadas implicava em uma forma de resistência cultural, relacionada à manutenção da tradição e de práticas e valores culturais próprios desses grupos. Ortner142 nos lembra que a agência é sempre desigualmente distribuída e interativamente negociada, dado que os indivíduos são sempre envolvidos em teias de relações, sejam de afeição e solidariedade ou de poder e rivalidade, ou, mais frequentemente, em uma mistura das duas. Como seres sociais, os indivíduos podem somente operar dentro das muitas teias de relações que fazem seus mundos sociais. Para o caso do contexto tardio do espaço da senzala SE, o ambiente material constituído pelo conjunto de louças e cerâmicas aponta para uma imbricação entre o tradicional e o novo, entre o valor econômico que sinaliza status e aspirações a um modo de vida quase que inalcançável e o valor simbólico que sinaliza tradição e ancestralidade; entre a panela de barro produzida pela mãe ou pela avó e os pratos e a molheira de porcelana com decoração dourada, que poderiam exibir uma condição diferencial desse grupo na comunidade da senzala – talvez como uma família parda, com alguns membros atuando como domésticos da sede da fazenda – mas que, mesmo assim, não o eximia da sua condição de escravizado. Apesar dessa condição, essas pessoas foram aptas a utilizar os recursos que lhes foram cabíveis para construir, em meio a uma estrutura extremamente opressiva e exploratória, uma vida em que sonhos, aspirações, e ideais pudessem ter um lugar.
Diaspora. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 71-90. 142 ORTNER, Sherry, op cit. p.152.
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Capítulo 4 Práticas e usos da cerâmica artesanal na senzala do Colégio dos Jesuítas Maurício Hepp Paula de Aguiar Silva Azevedo Victor Gomes Monteiro
Introdução Neste capítulo abordaremos a cerâmica artesanal da área NW da senzala do Colégio dos Jesuítas. A proposta aqui é apresentar os resultados obtidos sob uma perspectiva tecno-tipológica e aprofundar as discussões sobre o potencial dessa categoria no estudo de unidades domésticas de contextos de senzala. Pesquisas em tais contextos tendem a propiciar uma amostra de material que pode ser trabalhado considerando diferentes perspectivas de entendimento do modo de vida da população escravizada. Unidades domésticas são apresentam um alto potencial informativo, sobretudo no que diz respeito às práticas alimentares e de produção de utensílios para esse fins, que podem, muitas vezes, indicar tanto a manutenção quanto mudanças de hábitos e de padrões culturais. As cerâmicas artesanais são aquelas prioritariamente produzidas para o consumo de unidades domésticas e dentro das comunidades locais, conforme consideram Zanettini & Wichers.143 As técnicas de produção e as particularidades desse material muitas vezes são decorrentes de matrizes culturais antigas, transmitidas através das gerações, sendo produtos de conhecimentos locais. A cerâmica proveniente da área NW (ver Figuras 2.1 e 2.2) diz respeito a uma unidade doméstica inserida na quadra da senzala do Colégio dos Jesuítas. O contexto em questão consiste de duas áreas, uma associada a atividades cotidianas centralizadas no preparo e consumo de 143 ZANETTINI, P.; WICHERS, C. A. M. A cerâmica de produção local/regional em São Paulo colonial. In: MORALES, W. F.; MOI, F. P. (Org.). Cenários Regionais em Arqueologia Brasileira. São Paulo: Annablume, 2009.
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alimentos (área NW8.1), e a outra específica para o descarte (área NW 8.3).144 Em ambos os contextos foi recuperada uma grande quantidade de material, entre louças, ossos, telhas, cerâmicas torneadas e, essencialmente pertinente a este capítulo, cerâmicas de produção artesanal. Os vestígios arqueológicos relacionados à contextos de fazendas escravistas, como o caso do Colégio dos Jesuítas, tendem a apresentar uma variabilidade significativa de tipos cerâmicos, que vão da porcelana à faiança fina e à cerâmica vidrada. Ainda que esses objetos tenham um maior apelo estético e funcional, a cerâmica artesanal é mantida em uso pela população escravizada. No caso em questão, sua frequência oscila através do tempo, declinando à medida que as cerâmicas torneadas, simples e vidradas, se tornam mais populares, porém aumentando em proporção no contexto mais tardio da área NW, referente a meados do século XIX. Essa retomada pode estar relacionada a questões de acessibilidade aos mercados locais, à aquisição de outros tipos de bens de consumo, ou também uma reafirmação de tradições e práticas relacionadas à ancestralidade. Nossa pesquisa busca demonstrar que a cerâmica artesanal evidenciada no contexto doméstico da senzala se insere na perspectiva das práticas cotidianas, alimentares e também nas relações de resistência às imposições materiais, que são marcantes no processo de escravização. Buscamos também rever como as pesquisas de Arqueologia Histórica têm abordado a questão da cerâmica artesanal em contexto similares e como uma perspectiva através da variabilidade (ou a falta dela) nos propicia reflexões sobre as práticas cotidianas dos grupos escravizados. Ademais, discutiremos que a produção artesanal das cerâmicas também pode ser entendida como um elemento importante de reconhecimento do grupo e que perfaz estratégias de manutenção de valores herdados da ascendência africana dentro dessa fazenda escravista. 144 SUGUIMATSU, I. C.; SYMANSKI, L. C. Atividades cotidianas, deposição de refugo e ação do arado: processo de formação do registro arqueológico no espaço de uma senzala de Campos dos Goytacazes (RJ). Clio Arqueológica, V. 30, n. 1., 2015, p. 38-76. SYMANSKI, L. C. P.; GOMES, F. S.; SUGUIMATSU, I. C. Práticas de descarte de refugo em uma plantation escravista: o caso da Fazenda do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes. Revista de Arqueologia, v. 28, n. 1, 2015, p. 93-122. SYMANSKI, L. C. P.; MORAIS JUNIOR, G. P. Alimentação, socialização e reprodução cultural na comunidade escravizada do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes (RJ). In: SOARES, F. C. Comida, Cultura e Sociedade Arqueologia da Alimentação no Mundo Moderno. Estudos Contemporâneos na Arqueologia 2. Recife: Editora Universitária UFPE, 2016, p. 95-112.
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A cerâmica artesanal em contextos de senzala no Brasil A Arqueologia Histórica no Brasil teve um crescimento exponencial a partir da década de 1980. Inicialmente focada em estudos de sítios missioneiros e de contato euro-indígena (principalmente no que se refere à estudos de cerâmica do período colonial), as pesquisas começaram a incluir os segmentos oprimidos da sociedade, como a população ocupante de quilombos, aldeamentos pós-missioneiros e arraiais145. Essa perspectiva se consolidou a partir da década seguinte, abrangendo contextos até então considerados de pouco interesse, mas que demonstravam a diversidade e complexidade das populações do Brasil colônia e império146. Contudo, os estudos com foco em unidades de senzalas e em contextos com cerâmica artesanal produzida por grupos escravizados somente começaram a ganhar proeminência no começo do século XXI. As pesquisas direcionadas à cerâmica utilitária ainda têm contemplado poucos contextos identificados como áreas de senzalas, talvez pela preferência por áreas melhor preservadas ou visivelmente mais atraentes, como é o caso das casas grandes, sobrados e fortificações. A despeito da potencialidade de tais contextos, senzalas comumente apresentam contextos amplos e variados, que podem revelar inúmeros elementos da vida material e das práticas culturais da população escravizada. Ainda que a cerâmica sempre tivesse figurado um papel de destaque nas pesquisas da Arqueologia Histórica, o desdobramento de reflexões sobre a sua variabilidade e os contextos em que estavam inseridas nem sempre foram tidas como o cerne dessas pesquisas. A abordagem histórico-culturalista, que predominou no cenário arqueológico brasileiro até a década de 1980, acabou limitando muitos trabalhos à caracterização dos conjuntos materiais, com ênfase na identificação e delimitação espaço-temporal através de estudos comparativos. Ainda que produtivos dentro do cenário daquele período, as pesquisas mantiveram um caráter 145 SYMANSKI, Luís Claudio P. Arqueologia Histórica no Brasil: Uma revisão dos últimos vinte anos. In: MORALES, Wagner F. e MOI, Flávia P. (ed.). Cenários Regionais em Arqueologia Brasileira. São Paulo: Annablume, 2009, p. 279-310. 146 SYMANSKI, Luís Claudio P. op cit.
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descritivo, ainda que, em alguns casos processos de aculturação tenham sido contemplados.147 O interesse nas reflexões iniciais sobre os regionalismos da então chamada cerâmica simples suscitou mais questões do que respostas para esses conjuntos materiais. A cerâmica do período colonial passou a ser enquadrada em uma categoria que foi chamada “neobrasileira”, uma conceituação que pode ser entendida como generalista, incluindo termos como “cabocla” e “colonial”, e atribuindo a confecção dessa a grupos familiares “com técnicas indígenas e de outras procedências”.148 Embora essa definição não desconsiderasse a amplitude dessa cerâmica, também não contemplava a sua variabilidade em termos mais específicos, generalizando o conjunto material a uma reflexão que excluía questões mais complexas envolvendo diferentes grupos humanos, perspectivas socioeconômicas distintas e, principalmente, problemas maiores sobre o conflito dessa população dentro da sociedade colonial. Todo esse arcabouço conceitual, ainda não fazia uma menção melhor elaborada para a cerâmica que proveniente de contextos relacionados à diáspora africana. A cerâmica classificada como Tradição Neobrasileira acabou se limitando a identificar os materiais que eram caboclos, indígenas, africanos e europeus sem discorrer profundamente sobre as influências, apropriações e significados, e tampouco em buscar compreender o que a produção daquele material significava para as comunidades locais149. Uma alternativa a essa suposta hibridação da “cerâmica do período colonial” foi a proposta de caracterização dos conjuntos materiais como uma cerâmica de produção local/regional,150 o que acabou sendo uma conceituação bem aceita, principalmente por suprir as particularidades que essa cerâmica apresentava em determinados contextos. Embora os problemas com a terminologia não tivessem sido sanados, as críticas sempre pontuaram o 147 SYMANSKI, Luís Claudio P. op cit. 148 CHMYZ, I. (Ed.). Terminologia Arqueológica Brasileira para a Cerâmica. Cadernos de Arqueologia. Ano I, n. 1. Museu de Arqueologia e Artes Populares. Paranaguá, 1976, p. 145. 149 SOUZA, Marcos A. T. Esencializando las Cerámicas: Culturas Nacionales y Prácticas Arqueológicas em América. In: ACUTO, Félix; ZARANKIN, Andrés (eds.). Sed nos Satiata II: acercamientos sociales en la arqueologia latino-americana. Buenos Aires, Encuentro Grupo Editor, 2008. 150 ZANETTINI, P.; WICHERS, C. A. M. op cit.
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que se pode considerar o caráter anacrônico desses termos, seja por não capturar as particularidades regionais, ou por não apresentar a alteridade dos grupos que viveram na sociedade colonial.151 Essa problematização reflete diretamente no cenário de estudo dos contextos de senzala. Enquanto a conceituação tradicional dificultava o entendimento das interações culturais, os dados empíricos coletados pelos arqueológicos indicavam outra direção. Os trabalhos de Dias Jr.152 podem ser considerados as primeiras pesquisas a tentar entender as características da cerâmica artesanal do período colonial. Embora adotasse o conceito de Tradição Neobrasileira e usasse uma abordagem histórico-cultural, as sínteses criadas e as questões levantadas contribuíram para o avanço nos cenários de pesquisas posteriores. Lima e suas colaboradoras153 inauguraram a pesquisa arqueológica em áreas de senzalas, tendo contudo pouco sucesso na caracterização da vida material dos segmentos escravizados devido à escassez de material com a qual se depararam. É somente com a pesquisa de Jacobus154 em meados dos anos 1990 que podemos elencar um redirecionamento nas perspectivas que buscaram compreender quais eram às influências na produção da cerâmica artesanal (tendo em vista principalmente os motivos decorativos) pelos grupos cativos. A busca por estabelecer padrões para enquadrar as cerâmicas ditas “populares” em fases locais para a região sul do Rio Grande do Sul, levou o pesquisador a relacioná-las com uma origem africana.155 A partir de um estudo da significância das formas dos vasilhames, enquanto indicadores comportamentais, Jacobus apontava para a origem “africana” destas cerâmicas, expressa nos padrões decorativos com incisões (que seriam semelhantes aos praticados nas cerâmicas africanas pelos falantes do tronco linguístico Banto). 151 SOUZA, Marcos A. T. op cit., p. 147. 152 DIAS Jr., Ondemar F. A Cerâmica Neobrasileira. Arqueo-IAB. Textos avulsos 01, Rio de Janeiro: IAB, 1988. 153 LIMA, T. A.; BRUNO, M. C. O.; FONSECA, M. P. R. Sintomas do modode vida burguêsno Vale do Paraíba, Séc.XIX: Fazenda São Fernando, Vassouras, RJ. Anais do Museu Paulista, Nova Série, n. 1, 1993, pp. 179-308. 154 JACOBUS, André Luiz. Louças e cerâmicas no sul do Brasil no século XVIII: o registro de Viamão como estudo de caso. Revista do Cepa, Unisinos, 1996. 155 JACOBUS, André Luiz. op cit.
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O interesse dos contextos de senzalas e, principalmente, para o conjunto material cerâmico contribuiu para o avanço de pesquisas voltadas para questões que foram se distanciando de um viés puramente descritivo e inserindo abordagens oriundas de uma arqueologia contextual.156 Com o foco na cerâmica (e também em outras categorias materiais), as pesquisas começaram a trabalhar diferentes perspectivas, até então pouco exploradas, como identidades étnicas e interações culturais. Nessa linha, pode-se citar o trabalho de Morales,157 que direcionou as abordagens para o estudo de aspectos tecnológicos, decorativos e morfológicos, produzindo uma interpretação a partir de três elementos distintos – indígena, africano e europeu – a qual pautou-se na interação desses componentes étnicos e que estaria refletido na cerâmica local.158 Essa perspectiva apresentou um rompimento com a ideia de aculturação e passou a utilizar de uma abordagem de reformulação e transformação nos padrões culturais verificados na cerâmica local. Nos anos que se seguiram podemos observar uma constante mudança no paradigma dos estudos da cerâmica do período colonial, a qual apresentou cada vez mais perspectivas de análise dos contextos da população escravizada.159 Essas pesquisas passaram a incorporar uma série de interpretações para responder às perguntas que o modelo descritivo ou a conceituação da cerâmica Neobrasileira não conseguia comportar. 156 SYMANSKI, Luís Claudio P. op cit. 157 MORALES, Walter F. A cerâmica “neo-brasileira” nas terras paulistas: um estudo sobre as possibilidades de identificação cultural através dos vestígios materiais na vila de Jundiaí do século XVIII. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 77, 2001, pp. 165-187. 158 MORALES, Walter F. Op. Cit, p. 167. 159 SOUZA, M. A. T.; SYMANSKI, L. C. P. Slave Communities and Pottery Variability in Western Brazil: The Plantations of Chapada dos Guimarães. Historical Archaeology, n. 13, 2009, pp. 513-548. AGOSTINI, C. Cultura material e a experiência africana no sudeste oitocentista: cachimbos de escravos em imagens, histórias, estilos e listagens. Topoi, v. 10, n. 18, jan.-jun. 2009, p. 3947. AGOSTINI, C. Panelas e paneleiras de São Sebastião: um núcleo produtor e a dinâmica social e simbólica de sua produção nos séculos XIX e XX. Vestígios (Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica), v. 4, n.2, 2010, p.125-144. AGOSTINI, C. À sombra da clandestinidade: práticas religiosas e encontro cultural no tempo do tráfico ilegal de escravos. Vestígios (Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica), v. 7, n.1, 2013, p.75-105. AGOSTINI, C. SOUZA, M. A. T. Body Marks, Pots, and Pipes: Some Correlations between African Scarifications and Pottery Decoration in Eighteenth1 - and Nineteenth-Century Brazil. Historical Archaeology, v. 46, n. 3, 2012, p.102-123. SOUZA, M. A. T. When all bases are flat: central Africans and situated practices in the eighteenth-century Brazil. FUNARI, P, P, A.; ORSER, C. (Orgs.). Current perspectives on the Archaeology of African Slavery in Latin America. Springer Briefs in Archaeology, 2016, p. 77-97.
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Trabalhos realizados nessas novas perspectivas passaram a propor interpretações fora do segmento exclusivo da casa grande e desenvolver análises da variabilidade material (incluindo a cerâmica) nos contextos identificados de senzalas. Symanski160 apresenta uma densa pesquisa em que a análise da variabilidade cerâmica identificou características que foram utilizadas pela população escravizada para expressar identidade e significados da sua cultura originária. Essa perspectiva considerou tanto a análise dos aspectos decorativos da cerâmica produzida em contextos de senzala, quanto o entendimento das práticas realizadas por esses grupos e das estratégias utilizadas para lidar com as relações de poder, identidade e na manutenção de seus referenciais culturais dentro do contexto de violência em que estavam inseridos.161 Com perspectiva teórica semelhante, Souza162 trabalhou com a relação da cerâmica utilitária encontrada no Brasil Central e na África Central de modo a problematizar as mudanças que a diáspora africana e as relações coloniais submeteram ao contingente escravizado. Mantendo a mesma perspectiva de variações estilísticas, Souza163 traçou uma comparação entre determinados vasilhames comuns nos contextos setecentistas do Brasil Central e peças similares de amplo uso na África Central, destacando as formas como, no contexto colonial brasileiro, tais peças foram reconfiguradas a partir de novas influências e relações sociais. Agostini164 e Agostini & Souza165 abordaram a cerâmica da população escravizada sob um viés simbólico, com uma abordagem mais relacionada à iconografia e aos motivos decorativos da cerâmica. Enquanto a primeira pesquisa trabalhou com a apropriação dos motivos decorativos “africanos” por uma população caiçara (ribeirinha e não-escrava), o segundo trabalho desenvolveu interpretações sobre a reprodução/replicação de 160 SYMANSKI, L. C. Slaves and planters in Western Brazil: material culture, identity and power. Tese de Doutorado. Gainesville: University of Florida, 2006. 161 SYMANSKI, Luís. Claudio. P. Cerâmicas, identidades escravas e crioulização nos engenhos de Chapada dos Guimarães (MT). História Unisinos, 14 (3), Setembro/Dezembro 2010, p. 295-312. SOUZA, M. A. T. SYMANSKI, L. C. op cit. 162 SOUZA, M. A. T. op cit. 163 SOUZA, M. A. T. op cit. 164 AGOSTINI, C. op cit. 165 AGOSTINI, C. SOUZA, M. A. T. op cit.
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escarificações corporais em vasilhames e cachimbos cerâmicos no Brasil nos séculos XVIII e XIX, no qual esses signos foram recontextualizados por escravos brasileiros na construção de novas identidades diaspóricas.166 Embora as pesquisas desses contextos tenham maior direcionamento nas regiões Sudeste e Centro Oeste do Brasil, nos últimos anos Costa167 e Martins168 têm levado a discussão para a região Amazônica. A partir da escavação do Engenho de Murutucu foram apresentados dados da análise cerâmica que demonstraram a distinção de contextos de ocupações por componentes étnicos distintos na área que correspondia a senzala. A variabilidade de elementos técnicos e de produção (pasta e manufatura) chamou a atenção para o compartilhamento de espaços e até mesmo para a sucessão de ocupações por diferentes grupos étnicos (indígenas e africanos).169 O que as pesquisas acima têm demonstrado é que a temática sobre a cerâmica nos contextos de senzala do Brasil é um segmento com grande potencial e em franco crescimento, que têm gerado contribuições significativas no estudo da diáspora africana. Percebe-se, ainda, que há uma preocupação por parte dos pesquisadores não apenas em definir as características da cerâmica que podem estar associadas à população escravizada, mas também em entender os modos como esse material pode ter mediado relações entre práticas e significados. Um dos pontos de crítica que observamos nessas pesquisas reside na abdicação do uso de modelos que se propõem a entender exclusivamente as “continuidades africanas” ou que fazem uma busca por “marcadores étnicos” por si só, de modo a tentar encontrar um elemento que pudesse ser chamado de “africano”. Muitos pesquisadores têm caído numa armadilha de um essencialismo cultural e de criar preconcepções dos artefatos que os dissociam dos contextos em que deveriam ser observados. Allen170 chama a atenção para o que ele aponta como “afrofatos”, cujos 166 AGOSTINI, C. SOUZA, M. A. T. op cit., p. 103. 167 COSTA, D, M. Archaeology of the African Slaves in the Amazon. Journal of African Diaspora Archaeology and Heritage, v. 5, n. 2, 2016, p. 198-221. 168 MARTINS, I. F. de O. Arqueologia e Etnicidade na Amazônia Oriental: O caso do Engenho Murutucu em Belém do Pará. Dissertação de Mestrado (Programa de Pós-graduação em Antropologia). Universidade Federal do Pará: Belém, 2015. 169 MARTINS, I. F. op cit. 170 ALLEN, Scott J. Afrofatos. Vestígios, Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, v.
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objetos arqueológicos são associados diretamente a grupos africanos, pautados principalmente em analogias sem se ater a sua contextualização. A busca por “conexões africanas” também levou alguns pesquisadores a subestimar o papel que outras culturas desempenharam na história colonial171 e criaram uma simplificação na identificação de conjuntos materiais. Essa busca por identidades não é uma prática a ser criticada, contudo as atribuições de como se procederam as premissas adotadas devem ser cuidadosamente consideradas. Africanos escravizados nas Américas afetaram e foram afetados decisivamente pelas relações coloniais.172 Isto não significa que a população escravizada tenha perdido seus referenciais culturais, apenas alerta para o fato de que a diáspora impõe uma série de limitações e novas experiências a essas pessoas, que foram decisivamente e constantemente modificadoras de seu “background” cultural. Pesquisas direcionadas a contextos de senzala têm grande potencial afirmativo nessa perspectiva, como visto em alguns trabalhos citados e como buscamos propor no presente estudo.
A senzala do Colégio dos Jesuítas e os relatos da atividade oleira O contexto de que provém a cerâmica analisada neste capítulo encontra-se em uma das extremidades da área da senzala, disposta em forma de “U” à frente da igreja. A área foi escavada em 2012, à noroeste da igreja. Essa disposição da senzala foi considerada a partir dos relatos de Saint-Hilaire que, em sua visita a Fazenda do Colégio, fez uma descrição onde menciona as “casas de negros, feitas de tijolos e cobertas de telhas, formam aqui os três lados de um pátio que tem cerca de 360 passos de comprimento por 250 de largura” (cerca de 230 por 160 metros).173 Embora seja a única descrição que abrange a senzala, o relato apresenta um arranjo onde foi possível pontuar áreas para os trabalhos de inves10, n. 1, jan./jun., 2016, p. 93-105. 171 MOUER, L. Daniel et al. Colonoware Pottery, Chesapeake Pipes, and “Uncritical Assumptions”. In: SINGLETON, Thereza (ed.). “I, too, Am America”: Archaeological Studies of African-American Life. Charlottesville: University Press of Virginia, 1999, p. 83-115. 172 SOUZA, M. A. T. SYMANSKI, L. C. op cit. 173 SAINT-HILAIRE, A. Viajens pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. v. 2 , Paris, 1833. Tradução de Leonam de Azevedo Pena. Companhia Editora Nacional, 1941, p. 416..
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tigação, assim como para entender a espacialidade e, especificamente, o contexto que será aqui abordado. Os relatos históricos que fazem menção à região de Campos dos Goytacazes, eventualmente citam a Fazenda do Colégio. Um dos pontos que pode ser destacado, reside nas breves informações de que os cativos estivessem diretamente ligados ao trabalho em olarias. Além disso, eles também estariam se abastecendo dos produtos localmente manufaturados, como as panelas de barro feitas artesanalmente. Contudo, essas fontes pouco abordam sobre o cotidiano dos residentes da senzala e menos ainda sobre as relações que os mesmos estabeleceram com a materialidade. Além disso, a maioria desses relatos remonta ao início do século XIX, época em que a Fazenda do Colégio já havia sido passada a outros proprietários, e foca em um apanhado histórico sobre a ocupação e economia da região, deixando transparecer, raramente, algumas características da vida da população escravizada de Campos dos Goytacazes. Araújo174 relata que, em 1814, as terras então chamadas de São Salvador dos Campos Goytacazes possuíam 30 léguas pela costa do mar, desde o Rio Macaé até o Rio Camapuã. Entre as notáveis propriedades observadas por ele estava a Fazenda do Colégio, uma grande extensão de terra vendida em 1781 a Joaquim Vicente dos Reis, com 1.600 cativos. Além do engenho de açúcar, a propriedade contava com uma fábrica de louça175 e uma capela bem paramentada. Ainda descrevendo a região de Campos, Araújo176 observou algumas olarias nas quais se trabalhava o barro para telhas e outras “manufaturas próprias ao uso dos Engenhos, e das casas particulares”. Os escravizados teriam sido o maior contingente dessas fábricas onde “elles absorvem a parte mais considerável do producto territorial”.177 Esses apontamentos demonstram que parte do contingente escravizado era utilizado no trabalho das olarias e que os cativos abarcavam 174 ARAUJO, J. de S. A. Pizarro e. Memórias Históricas do Rio de Janeiro e das províncias anexas a jurisdicção do Vicer-Rei do Estado do Brasil. Tomo III. Rio de Janeiro. Na Impressão Regia. 1820, p. 145. 175 Grifo nosso. 176 Ibidem, p.124. 177 ARAUJO, J. de S. A. P. loc cit.
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grande parte do que era produzido na região, o que sugere atividades destinadas a um mercado de bens locais, possivelmente fomentado também pela troca tanto por grupos cativos quanto por trabalhadores livres. Essa informação é de considerável importância para o entendimento das dinâmicas de produção cerâmica na região, visto que lança luz para a compreensão não apenas das relações de trabalho quanto para o mercado consumidor desses bens. Muniz de Souza,178 outro visitante da região, notou que muitas das olarias de Campos produziam “louça grossa, como fôrmas de assucar, cântaros, panellas e telhas e tijolos”. Também fez uma referência a escravos com ofícios específicos da olaria na fazenda Engenho de Manoel Pinto Netto Cruz.179 Esse relato traz, em especial, um apontamento para ser considerado: a referência à escravizados com o ofício específico de oleiros. Embora grande parte dessas oficinas estivesse ligada à produção de bens como tijolos e telhas, elas também produziam bens utilitários, como vasilhames que, como já apontado, seriam absorvidos em parte pela própria comunidade local. Esse trabalho parece estar associado a um certo grau de especialização na produção de bens, com base no trabalho de oficinas e, talvez, com certo nível de padronização dos bens produzidos, o que propiciaria menor variabilidade dos vasilhames.180 Contudo, a partir desses relatos históricos, observa-se a ausência de referência a uma produção doméstica da cerâmica. O que se apresentou claramente foi a produção de bens padronizados em olarias que constituem, em sua maioria, de materiais construtivos (tijolos e telhas). Eventualmente, houve referência a louças de barro, produzidas nesses mesmos espaços e possivelmente associada a manufaturas com o uso do torno e sem a especifi178 SOUZA, Antônio Muniz de. Viagens e Observações de hum brasileiro que desejando ser útil a sua Pátria, se dedicou a estudar os usos e costumes dos seos Patrícios, e os três reinos da Natureza, em vários lugares e sertões do Brasil, oferecidas á NAÇÃO BRASILEIRA: Tomo Primeiro. Rio de Janeiro, Typographia Americana, 1834, p. 127. 179 Ibidem, p. 143. 180 RICE, Prudence M. Pottery Analysis: A Sourcebook. Chicago: The University of Chicago Press, 1987. LONGACRE, William A. Standardization and Specialization: What’s The Link? In: SKIBO, James M. e FEINMAN, Gary M. Pottery and People: A Dynamic Interaction. Foundations of Archaeology Inquiry. Salt Lake City: The University of Utah Press, 1999, p. 44-58. ZANETTINI, P.; WICHERS, C. A. M. op cit.
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cação de suas características. De outra forma, temos no contexto arqueológico da senzala com um considerável número de cerâmica artesanal (acordelada) que não se enquadra no tipo manufaturado das olarias. À vista disso, pauta-se a hipótese de que a cerâmica artesanal da área NW (Noroeste) da senzala do Colégio dos Jesuítas foi produzida em contexto doméstico, sob determinada tradição, e utilizada para fins ligados à práticas alimentares.
A cerâmica artesanal da área NW do Colégio dos Jesuítas A cerâmica artesanal do Colégio já foi abordada em pesquisas anteriores.181 Contudo, em nenhum desses estudos, aprofundou-se sobre suas características e outras implicações no contexto em que foram recuperadas. Um dos trabalhos desenvolvidos nesse âmbito e relevante para o presente livro foi a caracterização das práticas de descarte dos refugos provenientes da senzala do Colégio dos Jesuítas. Nesse, foram identificadas três formas de deposição dos materiais na área NW, relacionados aos ossos, cerâmicas e louças: a primeira diz respeito à abertura de buracos no solo, onde o refugo era encoberto por telhas, caracterizando uma prática de deposição higiênica; a segunda refere à deposição primária em um contexto de uma estrutura de combustão; e a terceira associa-se ao descarte nas proximidades do espaço doméstico em que foi produzido.182 A partir dessas três formas de deposição, pode-se verificar características deposicionais que sugerem práticas relacionadas às atividades cotidianas. Parte das cerâmicas artesanais estavam associadas à estrutura de fogueira, junto com os materiais ósseos, louças, telhas e a cerâmica torneada. A disposição desse material nesse contexto configurou um espaço relativo às atividades de processamento e consumo de alimentos que perdurou durante a primeira metade do século XIX.183 Associando-se as cerâmicas (sejam artesanais ou torneadas) com o preparo e a estocagem de alimentos, respectivamente, viu-se que a sua distribuição estava relacionada também às louças e aos ossos. Esses focos 181 SUGUIMATSU, I.; SYMANSKI, L. C. op cit.; SYMANSKI, L. C. P.; GOMES, F. S.; SUGUIMATSU, I. C. op cit.; SYMANSKI, L. C. P.; MORAIS JUNIOR, G. P. op cit. 182 SYMANSKI, L. C. P.; GOMES, F. S.; SUGUIMATSU, I. C. op cit. 183 SYMANSKI, L. C. P.; GOMES, F. S.; SUGUIMATSU, I. C. op cit., p. 103-104.
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de distribuição de material demonstraram que houve uma manutenção das áreas de atividades relativas à alimentação desse grupo ao longo do tempo.184 Outro padrão de distribuição coloca uma separação entre os núcleos de concentração das louças e das cerâmicas, apresentando-se em sentidos opostos, mas sobrepostos com a concentração de materiais ósseos. Esse padrão sugere distinção entre as duas áreas, onde o contexto com maior concentração de cerâmicas está relacionado ao preparo de alimentos e o de concentração das louças relacionadas com o consumo de alimento. Ressalta-se, ainda, que há documentos que registram esse tipo de atividade de modo semelhante entre os grupos Bakongo, da atual República Democrática do Congo, onde o espaço externo próximo das habitações era utilizado para o cozimento dos alimentos em fogueiras.185 Em outra pesquisa que trabalha o mesmo contexto de escavação, mas com um enfoque nos hábitos alimentares e nas práticas relacionadas à alimentação, foi considerado que o domínio da alimentação era central na existência desse grupo. Não apenas por questões de sobrevivência biológica, mas também devido à interação social e à reprodução cultural. O fato de esses grupos terem autonomia na preparação de suas próprias refeições demonstrava um controle sobre um domínio significativo de suas vidas, relacionadas à manutenção de suas expressões culturais.186 Um aspecto importante revelado pelas análises zooarqueológicas reside no fato de que, além de indicarem um espaço de alimentação, também demonstram quais alimentos eram introduzidos na dieta diária e como estavam sendo consumidos. A maioria dos ossos encontrados era de bovinos e suínos, e principalmente os cortes mais pobres em carne, “enquanto que nos porcos as vértebras compõem o elemento mais expressivo, no caso dos bois há uma forte predominância dos ossos referentes aos membros inferiores – falange, tarso, metacarpo, tíbia e paleta”.187 Assim sendo, caldos e ensopados seriam a forma mais efetiva de consumir essas partes. 184 SYMANSKI, L. C. P.; GOMES, F. S.; SUGUIMATSU, I. C. loc cit. 185 SYMANSKI, L. C. P.; GOMES, F. S.; SUGUIMATSU, I. C. loc cit. 186 SYMANSKI, L. C. P.; MORAIS JUNIOR, G. P. op cit. Ver também MORAIS JÚNIOR, neste volume. 187 Ibidem, p.106.
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O panorama apresentado aqui traz dois pontos interessantes às análises da amostra cerâmica. Um deles é a estrutura de fogueira utilizada para a preparação de alimentos, onde se tem um espaço relacionado à atividades domésticas bem definido. O segundo ponto é a preparação de ensopados como base da alimentação e, sendo assim, a necessidade de tipologias especificas de vasilhames cerâmicos para o preparo desses alimentos. Esses pontos serão discutidos a seguir, mas primeiramente, precisa-se olhar para a amostra da cerâmica artesanal recuperada nesse contexto. A amostra da cerâmica artesanal da área NW é composta por 1153 fragmentos. Desse total, 637 possuíam dimensões demasiadamente reduzidas para a análise (inferiores a 2 cm), sendo passíveis de produzir vieses na amostragem final, de modo que não foram considerados na análise de atributos, apenas quantificados. O restante da amostra, 516 fragmentos, foram considerados adequados para a análise tecno-tipológica. O universo analisado, contudo, apresentou uma baixa proporção de fragmentos diagnósticos para reconstituição e projeção de vasilhames. A maior parte da amostra é composta por fragmentos provenientes do bojo de recipientes (85.27%), sendo importante para a definição de elementos relacionados à manufatura e ao acabamento das peças. As bordas (9.11% do conjunto analisado), permitiram estimar o diâmetro de abertura e projetar a forma, tamanho e função dos vasilhames. A partir desta informação foi possível estabelecer uma proporcionalidade dos tipos de vasilhames que foram usados naquele contexto. O gráfico na Figura 4.1 apresenta a proporção de cada tipo de fragmento.
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Figura 4.1 - Tipos de fragmentos por seção de vasilhame (n=516). Fonte: Autoria Própria.
Grande parte dos vasilhames apresentaram espessuras das paredes entre 6 e 10 mm (Figura 4.2), o que pode indicar um padrão de recipientes de médio porte. Somado à média dos diâmetros da abertura de borda dos recipientes, que ficaram entre 15 a 30 cm, conformam-se, nessa perspectiva, vasilhames medianos, sem características que remetam à recipientes de grandes dimensões. Os fragmentos com maior espessura usualmente foram identificados junto aos apêndices (alças para mover e/ ou suspender o vasilhame) ou associados à base ou ao bojo na porção inferior do recipiente. Raros foram aqueles de maior espessura associáveis a vasilhames de maiores proporções.
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Figura 4.2 - Espessura média (em milímetros) dos fragmentos analisados (n=516). Fonte: Autoria Própria.
A técnica de manufatura que caracterizou o conjunto foi majoritariamente o acordelado,188 com alguns raros fragmentos atribuídos ao modo de produção por modelagem. A técnica, muito comum na cerâmica pré-histórica, representa um modo artesanal, com pouca influência de ferramentas de produção especializada, e que exigia um maior controle do artesão no que tange às dimensões e características físicas do vasilhame. Também por ser uma técnica que exige certa margem de tempo e perícia por parte do oleiro(a), diferente da cerâmica produzida em oficinas especializadas, pode-se pensar que não estaria amplamente difundido entre 188 Técnica de manufatura da cerâmica caracterizada pela sobreposição de cordéis de barros que são posteriormente unidos dando forma ao vasilhame.
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a população cativa, visto que a maioria dedicava-se ao labor na lavoura, e poucos poderiam ser detentores desse conhecimento herdado de antepassados. Essa produção, então, estaria relacionada a poucos indivíduos, talvez não os mesmos que trabalhassem nas olarias, o que pode ser pensado através da variabilidade que os vasilhames representariam dentro do universo total. A produção artesanal, em contrapartida do modelo padronizado das oficinas, resultaria em vasilhames com certo grau de diferenciação,189 alguns deles evidentes no tamanho e no acabamento da peça. Outra característica relevante diz respeito à escolha e preparação da pasta para manufatura dos recipientes e, posteriormente, ao tratamento dado à superfície do vasilhame, que indicariam, potencialmente, o uso para o qual foram manufaturados.190 De modo geral, observou-se um conjunto com grande grau de homogeneidade, marcado pela utilização do quartzo como antiplástico principal (Figura 4.3). Mesmo variando em menor ou maior grau, a inclusão do quartzo foi recorrente em praticamente toda a amostra analisada. Em grande parte, eram grãos triturados ou recolhidos com o barro. Também foi verificada a presença de areia, com grãos de quartzo pouco angulosos e retirados de outros contextos e aplicados à pasta. Outras ocorrências, ainda sempre ligadas à presença de quartzo, referem-se ao carvão, à mica, à hematita e ao feldspato. Com exceção da mica, os outros tipos eram sempre dispostos em baixíssima frequência, quando não ocorrendo em grãos raros ao longo da pasta, o que sugere a presença destes elementos associados à coleta do barro antes do que a uma inclusão proposital. A própria mica, sem antecedentes de que apresentaria uma qualidade como antiplástico, também pode estar associada ao contexto de coleta do barro, visto que aparece, majoritariamente, em pequenos grãos, muito comum no solo e em barreiros ainda existentes na região, e que pode ter sido resultado de uma mistura de terra para se obter equilíbrio e plasticidade na pasta. Atualmente, o município de Campos dos Goytacazes é reconhecidamente um produtor oleiro, com diversos locais destinados à produção de tijolos e telhas. Isso se reflete nas características pedológicas locais onde há abundância de argila devido aos sedimentos transportados pelo rio Paraíba do Sul no quaternário, e que formam uma planície delta-aluvial. Dos cinco tipos 189 LONGACRE, op cit. 190 SKIBO, J. M. Understanding Pottery Function. New York: Springer, 2013.
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de argilas encontradas na região, existe uma variação com índices maiores e menores de areia, sendo observados quartzo e mica em todos os tipos.191
Figura 4.3 - Tipos de elementos presentes na composição da pasta (n=516). Fonte: Autoria Própria.
Figura 4.4 - Tamanho do antiplástico identificado (n=516). Fonte: Autoria Própria. 191 Vieira, C. M., & Pinheiro, R. M. Avaliação de argilas cauliníticas de Campos dos Goytacazes utilizadas para fabricação de cerâmica vermelha. Cerâmica 57, 2011, pp. 319-323.
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Figura 4.5 - Frequência do antiplástico presente nos fragmentos (n=516). Fonte: Autoria Própria.
Um dos fatores que chamou a atenção durante a análise foi a distinção de dois tipos cerâmicos no contexto, marcados, principalmente, pela adição de um antiplástico mais grosseiro (grãos de quartzo e areia de maior tamanho e em maior frequência) em contrapartida à pastas mais homogêneas, com menor frequência de antiplástico. Infelizmente, para esses tipos cerâmicos de pasta grosseira, em menor quantidade, não houve fragmentos diagnósticos para se projetar formas de vasilhames, o que daria um ponto de comparação com o restante da amostra. Contudo, essa distinção foi levada em consideração pela proporção mais elevada do outro tipo cerâmico no conjunto, marcada principalmente pelas características de tratamento de superfície e formas dos vasilhames. Grande parte desse conjunto cerâmico recebeu como tratamento final um alisamento. Por vezes, esse alisamento era refinado e aplicado uma brunidura192 junto com o enegrecimento das paredes cerâmicas. Essa técnica, comum na parte externa do vasilhame, também foi verificada, em alguns casos raros, na parte interna de certo número de fragmentos. Outro ponto pertinente foi a presença de fragmentos de asas ou de porções de bojos contendo esses apêndices. Essa característica está associa192 Técnica de acabamento do vasilhame (e, por vezes, decorativo) em que se aplica um polimento intenso também podendo ser acompanhado de um enegrecimento da superfície, dando um aspecto escuro e lustro.
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da a uma funcionalidade de manuseabilidade do vasilhame, sendo possível movê-lo de uma posição a outra com facilidade. As alças surgem com maior frequência naqueles recipientes que necessitam de certo reposicionamento, comumente em contextos coloniais, destinados aos vasilhames de cocção. Além desse indicativo, uma considerável amostra de cacos apresentou sinais de usos (Figura 4.6) relacionados à depósitos carbonizados (31.13%), possivelmente ligados a restos de alimentos preparados nesses recipientes.193 Nesses casos, esses vasilhames estariam intimamente relacionados ao preparo de alimentos, e configurariam, juntamente com outros recipientes de preparo a frio e de serviço, as principais funções diretamente associadas aos contextos de produção e consumo de alimentos. No que tange à funcionalidade, a mesma foi atribuída aos fragmentos que propiciaram tanto a projeção de formas quanto àqueles que apresentaram restos carbonizados em suas paredes internas. Ainda que possa sugerir uma indicação precipitada, o contexto do qual esse conjunto é proveniente, principalmente, relaciona-se a uma deposição primária, associada à estrutura de combustão e também ao espaço de uso doméstico da senzala.194
Figura 4.6 - Marcas de uso verificadas nos fragmentos (n=106). Fonte: Autoria Própria. 193 SKIBO, J.M. op cit. EUMANN, Mariana Araújo. Ñande Rekó: Diferentes jeitos de ser Guarani. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. 194 SYMANSKI, L. C. P.; GOMES, F. S.; SUGUIMATSU, I. C. op cit.
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Do que foi observado nos dados analisados, tem-se uma grande proporção de cerâmica utilitária para fins de preparo e serviço de alimentos (Figura 4.7), com uma maior proporção de vasilhames destinados à cocção (Grupo 2, 71.25%, relacionados à panelas e outros tipos que são levados ao fogo) e de preparo a frio (Grupo 3, 15.00%, relacionados à tigelas e outros recipientes não expostos ao fogo), completando ainda com uma baixa frequência de tipos relacionados ao serviço (pratos e tigelas pequenas que conformaram o Grupo 4, com 11.25%). Mais de 95% dessa amostra pode ser atribuída a uma função relacionada ao uso doméstico e de preparação e consumo de alimentos. Esta informação se adiciona à estrutura de combustão e ao padrão da deposição de ossos para confirmar a área em questão como um local de atividades domésticas voltadas para o processamento e o consumo de alimentos. A baixa proporção de vasilhames atribuídos ao armazenamento, como talhas e jarros de grandes dimensões, e que representaram apenas 2.50% da amostra total (associados ao Grupo 1), indica que a cerâmica artesanal possuía um papel específico dentro desse contexto: a de suprir com vasilhames destinados ao preparo de alimentos. Outros tipos de materiais recorrentes no mesmo contexto estariam, então, destinados a usos distintos dentro do cotidiano, como as louças, as quais apresentam morfologias associadas ao serviço/consumo, como pratos e xícaras. A cerâmica torneada simples, atualmente em fase de análise, apresenta vasilhames com proporções bem maiores que aqueles da amostra aqui analisada, com a maioria associada aos vasilhames de armazenamento, como jarros e talhas, que são praticamente ausentes da amostra artesanal. Por fim, os tamanhos dos vasilhames, principalmente os destinados à cocção, conformaram, como já mencionado, com recipientes de médio porte, não superiores a 30 cm de abertura de boca (Figura 4.8). Esses dados condizem com panelas de limitado volume, e que poderiam estar sendo utilizadas para produzir alimentos para grupos pequenos de pessoas (entre 4 a 6 indivíduos). Além disso, as formas globulares e elipsoides desses recipientes, com bordas restritas, isto é, 116
menores que o diâmetro máximo do vasilhame,195 indicaria o uso no preparo de alimentos cozidos, propiciando uma maior eficiência na manutenção do calor e, possivelmente, associados sobretudo ao preparo de caldos e ensopados.196 Essa proposição também condiz com a perspectiva da amostra de ossos na área, que aponta para uma maior produção de cozidos a partir dos cortes de carne disponíveis e dos refugos dos ossos.197
Figura 4.7 - Funcionalidade dos vasilhames (n=80), definidas a partir de quatro grupos principais: Grupo 1 – armazenagem/transporte; Grupo 2 – cocção de alimentos; Grupo 3 – preparo de alimentos (sem levar ao fogo); e Grupo 4 – serviço/consumo.198 Fonte: Autoria Própria.
195 SHEPARD, A. O. Ceramics for the Archaeologist. Washington DC: Carnegie Institution of Washington, 1956. 196 RICE, Prudence M. op cit., p. 226-230. SKIBO, J.M. op cit., p 31-36. 197 SYMANSKI, L. C. P.; MORAIS JUNIOR, G. P. op cit; MORAIS JUNIOR, esse volume. 198 MORAES, Camila A., A Cerâmica Brasileira: princípios de análise. s/d.
117
Figura 4.8 - Diâmetro estimado da abertura dos recipientes a partir da borda (n=43). Fonte: Autoria própria.
118
Figura 4.9 - Formas dos vasilhames projetadas a partir dos fragmentos de bordas da área NW. Fonte: Paula de Aguiar Silva Azevedo.
Figura 4.10 - Fragmentos de bordas da área NW da senzala do Colégio dos Jesuítas. Fonte: Autoria própria. 119
Tabela 2.2 - Disposição dos arranjos familiares na Fazenda do Colégio dos Jesuítas. Arranjos familiares
Nº de arranjos
Nº total de membros
% total dos arranjos familiares
1 membro
55
55
19.37
2 membros
57
114
20.07
3 membros
30
90
10.56
4 membros
45
180
15.85
5 membros
29
145
10.21
6 membros
22
132
7.75
7 membros
17
119
5.99
8 membros
12
96
4.23
9 membros
6
54
2.11
10 membros
5
50
1.76
11 membros
2
22
0.70
12 membros
1
12
0.35
13 membros
1
13
0.35
14 membros
1
14
0.35
15 membros
1
15
0.35
1111
100
Total
Fonte: Autoria própria.
Esse padrão de arranjos domésticos da senzala do Colégio reflete-se, assim, no tamanho e na forma das cerâmicas artesanais, que são muito mais condizentes com grupos pequenos e medianos. Esses arranjos familiares, atingindo maior proporção em grupos de até 6 membros (Tabela 4.1), demonstram que a senzala estava muito mais propensa a dispor de unidades domésticas próprias às famílias do que a arranjos com maior número de pessoas, o que reflete também nas práticas de produção e consumo de alimentos. Além disso, essa população escravizada poderia estar reproduzindo elementos de sua herança ancestral, com práticas alimentares condizentes e mantendo uma produção de vasilhames cerâmicos artesanais que reforçavam uma tradição diferente dos hábitos observados na casa grande. 120
Variabilidade cerâmica e dinâmica social na senzala do Colégio Tendo por base os estudos anteriores que abordaram a temática da cerâmica artesanal em contextos de senzala, verifica-se que o Colégio dos Jesuítas possui algumas particularidades que devem ser destacadas. Enquanto muitas pesquisas destacam o papel da variabilidade, sobretudo decorativa, da cerâmica na cerâmica e seu papel na afirmação de grupos identitários,199 a cerâmica da senzala do Colégio apresenta-se discreta com relação a essa dimensão. Trata-se de um conjunto cerâmico com características similares, bastante uniformes, expressas sobretudo no tratamento de superfície e na morfologia, e produzido para o uso doméstico. Ao ampliar a perspectiva desse contexto doméstico para outras tipologias materiais e fontes documentais, foi possível fazer apontamentos que reforçaram as proposições de práticas específicas de interação e produção cerâmica doméstica por parte da população cativa. Inicialmente, faz-se necessário olhar para a cerâmica artesanal dentro de um contexto abrangente. Ao correlacionar esse material com outros bens de uso doméstico (cerâmica vidrada e torneada) associados ao contexto das senzalas (setores SE e NW ), e compreender sua distribuição em termos diacrônicos, é possível verificar uma curva na frequência dessa cerâmica que demonstra seu amplo uso em fins de século XVIII e início de século XIX, e gradativamente a diminuição de sua popularidade em detrimento da cerâmica vidrada e da cerâmica torneada.200 No entanto, a partir das primeiras décadas do século XIX, a cerâmica artesanal gradativamente ressurge nos contextos em maior frequência até a segunda metade do século XIX (Figura 4.11). Observa-se, então, que a produção e o uso desses vasilhames foi continuamente mantido pela população escravizada, sendo inclusive intensificadas no período tardio de ocupação, já na segunda metade do século XIX. Considerando a presença desse material nos contextos mais antigos até o momento escavados, na área NE, referentes à virada 199 AGOSTINI, C. SOUZA, M. A. T. op cit. 200 SYMANSKI, L. C., neste volume.
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do século XVII para o século XVIII, tem-se documentado quase 200 anos ininterruptos de uma tradição ceramista nessa comunidade.201
Figura 4.11 - Distribuição diacrônica dos materiais cerâmicos nas áreas NW e SE da senzala do Colégio dos Jesuítas. Fonte: Autoria própria.
Ainda que essa variação na frequência dos tipos cerâmicos ao longo do tempo possa sugerir mudanças significativas nas práticas e no acesso aos bens ao longo do século XIX, a cerâmica artesanal tinha sua produção estabelecida localmente e era, sobretudo, um bem material do contingente escravizado. Com a inserção em maior escala da cerâmica torneada produzida nas olarias da região e da própria fazenda, o acesso a esses bens pode ter se tornado mais comum, o que explicaria seu gradual aumento nas áreas de senzala no intervalo entre 1790 e 1850 e, consequentemente, seu gradual domínio sobre a cerâmica artesanal Nesse período de mudança na frequência das cerâmicas a propriedade também foi transmitida entre as gerações de proprietários. Em 1818, a fazenda foi herdada por Sebastião Gomes Barroso que a administrou até 1843, ano de 201 Essa variação diacrônica está sendo trabalhada na dissertação de mestrado de Paula Aguiar da Silva Azevedo, que deverá ser defendida no programa de pós-Graduação em Antropologia da UFMG no primeiro semestre de 2019.
122
seu falecimento.202 A variação na frequência e acesso a determinados bens, assim como a maior presença da cerâmica artesanal nos dois contextos mais tardios, pode estar associada a uma restrição na aquisição de bens manufaturados, que teria levado a população escravizada a negociar ou intensificar práticas artesanais tradicionais em função da sua relação com os novos proprietários. Isso fica mais evidente ao observarmos, na Figura 4.11, a frequência da cerâmica torneada simples, que tem um aumento na sua amostragem no período que compreende o falecimento de Sebastião Gomes Barroso. É possível, ainda, estabelecer certa correlação a partir da análise de exemplos de produção cerâmica que perduram na atualidade, como é o caso das paneleiras de Goiabeiras.203 Nesse local, homens e mulheres produzem vasilhames de uso doméstico há mais de 400 anos, perpassando ocupações indígenas, portuguesas e de populações escravizadas.204 Essa prática foi perpetuada ao longo do tempo, mesmo com a inclusão de outros bens, e apresenta um modo de fazer (uma tradição ceramista) ainda que alterado ao longo do tempo, com características intrínsecas à sua origem, onde ocorreu uma manutenção em nível regional.205 Embora a atual população afrodescendente de Campos dos Goytacazes não mantenha o conhecimento e a prática de produzir cerâmica, durante um longo período, a manutenção do ofício e a reprodução de técnicas de manufatura cerâmica constituíram elementos relevantes na construção de um sentido de grupo, em que essa materialidade e as práticas de alimentação desempenhavam um papel importante nas relações sociais. Além dessa perspectiva, a produção e o consumo de bens próprios destinados ao uso doméstico parece ter sido uma prática recorrente em fins de século XVIII e no início do século XIX. Isso pode estar relacionado à possibilidade da população cativa manter plantações e roças próprias, como uma forma de prover o próprio sustento e de assegurar recursos alimentares 202 SYMANSKI, L. C. P.; GOMES, F. S.; SUGUIMATSU, I. C. op cit. 203 As Paneleiras de Goiabeiras pertencem a uma comunidade do antigo bairro de Goiabeira Velha, na capital do Espírito Santo, Vitória. 204 MUNIZ, Geyza Dalmásio. Paneleiras de Goiabeiras & Paneleiros de Guarapari: Limites e influências entre patrimônio cultural, artesanato e mercado. 2014. 164f. Dissertação (Mestrado em Artes). Departamento de Artes, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2014. p. 13. 205 Ibidem.
123
extras.206 De modo similar, não seria difícil transpor essa perspectiva para a produção de tralha doméstica, já que alguns tipos de utensílios disponíveis no mercado local não poderiam estar de acordo com as práticas que esses grupos estariam empregando. A produção em âmbito local (doméstico) seria uma alternativa e uma forma de reafirmar tradições e costumes herdados. Ferguson,207 trabalhando com um contexto da Carolina do Sul (Estados Unidos) do século XVIII, levantou um conjunto cerâmico com grande similaridade nas formas e acabamentos dos vasilhames. A ideia apresentada foi de que a cerâmica estaria muito mais relacionada a enfatizar a similaridade dos escravos à sua herança comum do que em expressar segmentação ou hierarquias. Não apenas a sua produção era homogênea, mas os padrões nos quais se incluía, como a forma do vasilhame, a comida preparada, o modo de prepará-la e de consumi-la eram drasticamente diferenciadas do padrão dos moradores da casa grande, e muito similar ao verificado nos contextos da África Ocidental.208 Essa perspectiva pode apoiar as evidências observadas nessa amostra cerâmica do Colégio dos Jesuítas. A uniformidade observada entre os vasilhames e seu uso na alimentação, dizia respeito a práticas exclusivas da senzala. O ato de compartilhar a alimentação com a família, ou outras pessoas próximas, reforça a perspectiva de uma herança africana nos hábitos alimentares.209 A presença dessa cerâmica demonstra que a população escravizada não buscava emular os senhores nas práticas relacionadas à alimentação, mas, antes, manter seus próprios hábitos, que poderiam remeter, em parte, àqueles de seus ancestrais africanos.210 Nessa premissa, o domínio doméstico seria de grande importância para as relações estabelecidas entre a população cativa local, que já estava consolidada como um grupo endógamo, nativo da própria senzala.211 Esse domínio refletia-se no saber fazer da cerâmica, no controle sobre o 206 SOUZA, M. A. T. & GARDIMAN, G. G. A alimentação em dois engenhos brasileiros nos séculos 18 e 19: circulação, sujeitos e materialidades. In: SOARES, F. C. Comida, Cultura e Sociedade Arqueologia da alimentação no Mundo Moderno. Estudos Contemporâneos na Arqueologia 2. Recife: Editora Universitária UFPE, 2016, p. 75. 207 FERGUSON, L. Struggling with pots in colonial South Carolina. In.: McGUIRE, R. H. & PAYNTER, R. The archaeology of inequity. Oxford: Blackwell, 1991, p. 31-32. 208 Ibidem, p. 32. 209 SYMANSKI, L. C. P.; GOMES, F. S.; SUGUIMATSU, I. C. op cit., p. 104-105. 210 FERGUSON, L. op cit., p. 35. 211 GOMES, F. dos S.; SYMANSKI, L. C. op cit.
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domínio da alimentação e no uso do espaço de convivência, refletindo um sistema simbólico amplamente reforçado para constituir um ambiente que enfatizava as relações de reciprocidade e reforçava os laços com a cultura ancestral.212 De modo geral, em contraponto ao que a variabilidade da cerâmica poderia trazer,213 não seria a forma nem a decoração utilizadas para definir limites de individualidade e de identidade de grupo. Tampouco foram essas peças utilizadas como marcadores de status dentro da comunidade escravizada. O que essa reprodução de padrões enfatizava era, sobretudo, a similaridade e não diferença.214 Ainda existem outras perspectivas para serem abordadas nesse contexto e em outros provenientes de diferentes áreas do Colégio dos Jesuítas. A partir de algumas delas, podemos pressupor e formular as primeiras questões. Não se pretende aqui esgotar o tema, assim, outras perspectivas podem ser abordadas com relação à cerâmica artesanal do Colégio. Um dos pontos de discussão futura reside na relação com outras áreas da senzala, pensando a perspectiva de que existem diferenças e padrões da cerâmica artesanal que se repetem. Também deve-se levar em consideração se a população da senzala detinha tamanho grau de identificação comum ou se empregava estratégias diferenciadas, dado tratar-se de um contingente superior a mil pessoas. Outro fator abrange o contexto em que essa cerâmica artesanal era produzida e se esse conhecimento era difundido ou reservado a um grupo restrito de artesãos. E, por fim, como essa cerâmica artesanal se relacionava com os outros tipos de cerâmica, como a torneada e a vidrada, e como esses distintos materiais dialogavam na perspectiva de estarem compondo um conjunto material e quais práticas envolviam estas materialidades.
212 FERGUSON, L. op cit., p. 37. 213 SOUZA, M. A. T.; SYMANSKI, L. C. op cit. 214 FERGUSON, L. op cit.
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Capítulo 5 Vestígios faunísticos e práticas relacionadas à alimentação na senzala do Colégio dos Jesuítas (RJ) Geraldo Pereira de Morais Junior
Introdução Neste capítulo pretendo discutir os hábitos e as práticas relacionados à alimentação dos grupos escravizados que viveram na senzala do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes (RJ) entre o final do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Essa análise será feita com base nos vestígios faunísticos encontrados em dois setores da senzala. Serão abordadas as similaridades e diferenças nos hábitos alimentares entre os cativos que ocuparam esses setores bem como as táticas desenvolvidas por eles para lidar com as limitações impostas pelo sistema escravista.
Zooarqueologia e os hábitos alimentares dos escravizados No começo da década de 1970, Ascher & Fairbanks215 chamaram a atenção para a necessidade da arqueologia histórica de voltar o seu foco para os grupos subalternos – no caso, os escravizados –, que raramente tiveram a oportunidade de deixar registros escritos sobre si próprios. Os vestígios zooarqueológicos despontaram, assim, como uma rica fonte de informações para abordar aspectos pouco conhecidos da alimentação dos grupos escravizados. As pesquisas iniciais tiveram por propósito, por um lado, abordar como as famílias escravizadas complementaram a ração, muitas vezes subnutritiva, provida pelos proprietários, e por outro evidenciar os mecanismos de resistência às restrições impostas por estes.216 215 ASCHER, R.; FAIRBANKS, C. Excavation of a Slave Cabin: Georgia, U.S.A. Historical Archaeology, n. 5, p. 3-17, 1971. 216 HEINRICH, Adam. Some Comments on the Archaeology of Slave Diets and the Importance of Taphonomy to Historical Faunal Analyses. Journal of African Diaspora Archaeology and Heritage, n. 1, p. 9-40, 2012.
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No Brasil ainda são raros os estudos de zooarqueologia em espaços de senzala.217 Nos Estados Unidos e Caribe as pesquisas realizadas demonstram a recorrência, nesses espaços, de vestígios de determinadas espécies de mamíferos, aves e peixes, tanto domésticos quanto silvestres. Suínos e galináceos são os animais domésticos mais consumidos. Já a caça é predominantemente representada por animais de pequeno porte, como marsupiais, e de médio porte, como veados e jacarés. Há ainda presença de muitos animais aquáticos, incluindo peixes e moluscos. As peças relacionadas aos animais domésticos de maior porte, como bois, porcos e cabras, eram frequentemente fornecidas pela casa grande, predominando, em geral, os ossos inferiores das patas e as cabeças desses animais. Essas são justamente as partes mais pobres em carne e de menor valor nutricional.218 Como forma de potencializar o valor nutritivo desses cortes, os cativos poderiam quebrar os ossos para aproveitar o tutano no interior deles, o que explica o alto estado de fragmentação das amostras ósseas em contextos de senzala. Também era comum que fizessem ensopados, visando a aproveitar ao máximo a pouca quantidade de carne que lhes era fornecida.219 Vestígios de cavalos também têm sido encontrados, mas com uma menor frequência do que outros animais. Wallman220 sugere que os escravizados consumiam de forma esporádica cavalos que morreram de velhice ou que foram mortos. A caça e a pesca eram atividades extremamente importantes para os escravizados, pois implicavam na captação de alimentos através de ações independentes221, de modo a complementar e variar sua dieta. Ascher & Fairbanks222 destacam que uma importante classificação para 217 MORAIS JUNIOR, Geraldo Pereira de. A carne e os ossos da escravidão: Entendendo os hábitos alimentares de senhores e escravos com base em amostras zooarqueológicas do Colégio dos Jesuítas. Revista Três pontos, n. 12.1, p. 24, 2016. 218 KLIPEL, Walter. Sugar Monoculture, Bovid Skeletal Part Frequencies, and Stable Carbon Isotopes: Interpreting Enslaved African Diet at Brimstone Hill, St Kitts, West Indies. Journal of Archaeological Science, n. 28, p. 1191–1198, 2001. 219 SYMANSKI, Luís Cláudio Pereira; MORAIS JÚNIOR, Geraldo Pereira de. Alimentação, socialização e reprodução cultural na comunidade escravizada do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes (RJ). In: SOARES, Fernanda Codevilla (Org.), Comida, Cultura e Sociedade Arqueologia da alimentação no Mundo Moderno. Recife, Editora Universitária UFPE. 2016. 220 WALLMAN, Diane. Negotiating the Plantation Structure: An Archaeological Investigation of Slavery, Subsistence and Daily Practice at Habitation Crève Couer, Martinique, CA. 17601890. 2014. 611 f. Tese (Doutorado em Antropologia). University of South Carolina. 2014. 221 LEV-TOV, Justin. Implications of risk theory for understanding nineteenth century slave diets in the southern United States. In JONES, S.; NEER, W.; ERVYNCK, A. (Orgs.), Behaviour Behind Bones: The Zooarchaeology of Ritual, Religion, Status and Identity, UK, Oxbow Books. 2004. 222 ASCHER, R.; FAIRBANKS, C. op cit. p. 3-17.
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os cativos era a divisão do alimento distribuído pelo senhor e o alimento autonomamente obtido. Afinal, o fornecimento de animais domésticos por parte da casa grande não necessariamente significaria uma maior variedade de alimentos para os cativos. Portanto, os alimentos caçados e pescados eram vistos como um maior ganho.223 Luís da Câmara Cascudo224 nos lembra ainda de que na África a caça era, além de trabalho, um divertimento que inspirava orgulho e dignidade. De acordo com o autor, Congo quer dizer “caçador”, e vários animais, a exemplo do crocodilo, eram dignos de menção de consumo. Acerca dos animais caçados e pescados, Lev-Tov225 notou que fatores ambientais refletiram na alimentação dos grupos escravizados. Assim, os que viviam em sítios próximos à costa tiveram mais variedade de proteína animal do que aqueles do interior. Dentre as diferenças destacam-se a grande presença de animais marinhos e uma maior variedade de espécies de veados nos sítios costeiros. Nos sítios interioranos, por outro lado, há uma maior presença de aves e de animais selvagens de pequeno porte. Assim, escravizados na região costeira teriam atuado tanto na caça quanto na pesca, enquanto que no interior a atividade da caça teria fortemente predominado. Dentre os animais silvestres, os mais encontrados são os jacarés, os gambás e os lagartos. Relatos de escravizados da América do Norte demonstram um grande apreço pela carne de gambá.226 Fontes historiográficas informam que os cativos, em alguns casos, poderiam criar animais domésticos. Alguns senhores provisionavam os escravizados, enquanto outros os encorajavam a plantar, caçar e preparar seu próprio alimento.227 Para o caso do Brasil, Ciro Cardoso228 abordou a questão dos senhores concederem lotes para seus escravos para a produção de alimentos para consumo próprio, o que ele denominou como “brecha cam223 SLENES, R. Na Senzala uma Flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Segunda edição. Campinas, Editora da UNICAMP. 2011 224 CASCUDO, Luís da Camara. A História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global. 2011. 225 LEV-TOV, Justin. op cit. 226 ASCHER, R.; FAIRBANKS, C. op cit. p. 3-17 227 WALLMAN, Diane. Negotiating the Plantation Structure: An Archaeological Investigation of Slavery, Subsistence and Daily Practice at Habitation Crève Couer, Martinique, CA. 17601890. 2014. 611 f. Tese (Doutorado em Antropologia). University of South Carolina. 2014. 228 CARDOSO, Ciro. Escravo ou Camponês: O protocampesinato negro nas Américas. São Paulo: Brasiliense. 1987.
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ponesa”. Nesse sentido, a criação de animais demandava o cultivo de uma roça, para o fornecimento de ração para animais como galinhas e porcos. Havia ainda outros meios de suprir a escassez de alimentos. Ao analisar as idades dos animais domésticos alguns arqueólogos notaram que a maioria era abatida quando adultos, porém uma pequena parte, indicada pela presença de ossos não fusionados, era abatida ainda jovem.229 Uma explicação para esse fato seria a prática do furto de animais pelos cativos, dado que seria incoerente em termos econômicos sacrificar um animal ainda na sua infância.230 De fato, há vários relatos de senhores reclamando de animais terem sido furtados. Não há como, porém, afirmar com certeza se um dado animal fora mesmo furtado, pois não há diferença entre um osso de um animal furtado e outro que foi provisionado pelo senhor.231 Eduardo Frieiro232 descreve como eram tratados os escravizados em uma fazenda típica de Minas Gerais em meados do século XIX. O estabelecimento, pertencente ao Major Mascarenhas, chegou a possuir mais de uma centena e meia de cativos de ambos os sexos. Um sino os despertava antes do romper do sol. Formavam, então, uma fila no terreiro, e eram contados pelo feitor e por seus ajudantes. Logo a seguir rezavam uma oração. A seguir era feita a distribuição do alimento da manhã para cada cativo. Após comerem, partiam para as roças e imediatamente começavam o penoso labor. Às oito horas chegava o almoço, trazido por escravas, composto principalmente de feijão cozido com gordura e misturado com farinha de mandioca. Às duas da tarde era feito o jantar: feijão com angu e couve. Somente duas vezes por semana recebiam um pedaço de carne. Ao pôr do sol, eles regressavam à fazenda e, passada a revista pelo feitor, cada um recebia um prato de canjica com rapadura. Frieiro233 transcreve ainda outro relato, sobre a alimentação dos escravizados presente no Correio Oficial de Minas de outubro de 1859, tendo como provável autor o Conselheiro Francisco de Paula Candido: 229 CRADER, Diana. Slave Diet at Monticello. American Antiquity, n. 55, p. 690-717, 1990. 230 YOUNG, A. Risk Management Strategies among African-American Slaves at Locust Grove Plantation, International Journal of Historical Archaeology, v.1, n.1, p. 3-29. 1997. 231 LEV-TOV, Justin. op cit. 232 FRIEIRO, Eduardo. Feijão, Angu e Couve: Ensaio Sobre a Comida dos Mineiros. Belo Horizonte, Itatiaia. 1982. 233 FRIEIRO, Eduardo. op cit. p. 142.
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A base da alimentação escrava é o feijão, e esse pão de farinha de milho (fubá) sem fermento, a que damos a denominação pouco eufônica de – angu. O angu feito em um tacho com água quente, bem como feijão, é dado ao escravo à discrição, e há sempre tanta sobra que eles sustentam com ela seus cães. O toucinho também lhes é fornecido para adubar o feijão. O escravo tem, além disso, para seu alimento ervas, como mostarda e serralha que crescem espontaneamente em todas as roças, as frutas, especialmente a laranja, que é de tanta abundancia que apodrece desprezada debaixo dos pés. Têm muitas vezes carne, e quase sempre ele mesmo aumenta sua cozinha com a caça, palmito, mandioca, batatas etc. Quase todo escravo tem sua roça própria, que cultiva nos dias santos e outras vagas, da qual o mesmo senhor compra-lhe os produtos nos anos de ruim colheita. Outros plantam fumo ou algodão, que vendem para comprar roupas domingueiras e outras necessidades. Além desses lucros lícitos, por via de regra, todo escravo roubava de seu senhor.
Interessante notar nesse relato a menção à distribuição de carne (toucinho), pelos senhores, assim como a prática da caça e do furto, que condizem com os resultados das pesquisas zooarqueológicas realizadas nos contextos da senzala do Colégio. Outro dado interessante é a afirmação de que os escravos tinham cachorros. Essa informação demonstra que a posse de cães era uma possibilidade, e esses animais poderiam ser utilizados tanto como auxiliares na caça quanto como alimento, pois, conforme Cascudo234, a carne de cachorro era considerada um prato fino em toda a Costa do Ouro. Sendo assim, não é de se espantar que os escravizados africanos ou seus descendentes pudessem ter consumido esse animal.
Metodologia A metodologia de análise dos restos faunísticos foi baseada em manuais de zooarqueologia235 e passou por quatro etapas: limpeza, marcação com sistema de codificação, classificação/identificação dos ossos e análise quantitativa. 234 CASCUDO, Luís da Camara. A História da Alimentação no Brasil. São Paulo: Global. 2011. 235 Ver: KLEIN, Richard; CRUZ-URIBE, Kathryn. The Analysis of Animal Bones from Archaeological Sites. Chicago: University of Chicago Press. 1984; LYMAN, Lee. Quantitative units and terminology in zooarchaeology. American Antiquity, n. 59, p. 36-71. 1994; REITZ, Elizabeth; WING, Elizabeth. Zooarchaeology. 2ª edição, New York: Cambridge University Press, 2008.
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Para a análise foram selecionados somente os ossos passíveis de identificação. A análise diacrônica levou em conta a sobreposição dos níveis de escavação, cujo intervalo de ocupação foi estabelecido com base no período de produção conhecido das louças presentes em cada contexto236. Devido à indisponibilidade de uma coleção de referência, foram utilizados o atlas de morfologia dentária de Hillson237 para identificar os dentes e o atlas osteológico de France238 para identificar os ossos. A identificação do material contou com a ajuda de Mário Alberto Cozzuol, do Departamento de Zoologia da UFMG e Germán Arturo Bohórques, do Departamento de Morfologia da UFMG, bem como dos biólogos Rodrigo Parisi Dutra e Marcelo Greco. A identificação foi feita por comparação, com base na osteometria. Se buscou identificar o nível taxonômico mais próximo da espécie possível, que consistiu, na maioria dos casos, na família, sendo o gênero e a ordem identificados em raras situações. Foram ainda realizadas estimativas da idade a partir da análise do desgaste dos dentes e do fusionamento dos ossos, visando identificar padrões de consumo dos animais segundo a idade. Após a identificação foi feita a quantificação do número de peças identificadas (NPI), onde cada fragmento representa um animal. Essa quantificação tem o problema de superestimar a quantificação de animais, porém utilizei esse método para focar na parte esqueletal do fragmento dado que o NPI permite visualizar melhor qual parte do animal está sendo mais consumida em detrimento de outras. Cabe destacar que para a análise quantitativa das famílias, o critério definidor foram os dentes. As mandíbulas foram quantificadas como unidades, com cada uma representando somente um dente; isso foi feito devido à impossibilidade de identificar a lateralidade dos ossos, etapa importante para o cálculo do número mínimo de indivíduos (NMI). Embora haja o risco dessa quantificação não representar a significância numérica 236 Ver Symanski este volume 237 HILLSON, Simon. Teeth: Cambridge Manuals in Archaeology. Cambridge University Press. 2005. 238 FRANCE, Diane L. Human and Nonhuman Bone Identification: A Color Atlas. Boca Ratón: CRC Press, 2008.
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de cada família identificada, observamos que há uma forte correlação entre a popularidade dos dentes com as demais partes ósseas referentes a cada família presente na amostra. Os peixes foram quantificados separadamente dos outros animais. Nesse caso, a quantificação foi feita pelo NPI, sendo considerado todos os ossos presentes na amostra. A partir dos dados da quantificação, foi realizada a análise geral do material das duas áreas da senzala, assim como uma análise detalhada de cada área, de modo a comparar os dados em termos espaciais e temporais.
Obtenção e consumo da carne pelos escravizados do Colégio dos Jesuítas A amostra analisada é proveniente das escavações que foram realizadas em dois pontos distintos da senzala, as áreas Noroeste (NW) e Sudeste (SE) (ver Figuras 2.1 e 2.2). Os vestígios faunísticos permitem comparar aspectos dos hábitos alimentares dos cativos que residiram nesses diferentes setores da senzala. Os mesmos tipos de animais foram identificados em ambas as áreas, com exceção dos tatus (Dasypodidae) e sapos ou rãs (Anura), presentes somente na área SE (Tabela 2.3). Tabela 2.3 - Animais identificados nas duas áreas escavadas. Presença de animais
Área NW
Área SE
Caprinae
x
x
Bovinae
x
x
Suidae
x
x
Equidae
x
x
Didelphidae
x
x
Canidae
x
x
Rodentia
x
x
Alligatoridae
x
x
Dasypodidae
x
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Presença de animais
Área NW
Área SE
Anura
x
Sauria
x
x
Aves
x
x
Fonte: Autoria própria.
Vale dizer que a presença de roedores (Rodentia) e de tatu pode ser intrusiva, já que foram encontrados poucos exemplares. Por outro lado, o único osso de sapo ou rã (Anura) encontrado apresenta sinais de ter sido cozido a baixa temperatura.239 Apesar desse acesso aos mesmos recursos faunísticos, uma análise mais detalhada revela diferenças na frequência com que cada animal foi consumido em cada área (Figura 5.1). Na área SE, quase metade dos ossos são de suínos, seguidos pelos bovinos. Isso demonstra a forte dominância dos animais domésticos nessa área, constituindo 95% dessa amostra.
Figura 5.1 - Frequência de animais encontrados na área SE. Fonte: Autoria própria.
Deve ser considerada a possibilidade dos escravizados terem tido 239 Esses sinais consistem em uma tonalidade mais amarelada e um aspecto translúcido. Ver: SOLARI, A.; OLIVERA,D.; GORDILLO, I.; BOSCH, P.; FETTER, G.; LARA, V. H.; NOVELO, O. Cooked Bones? Method and Practice for Identifying Bones Treated at Low Temperature. International Journal of Osteoarchaeology, n. 25, p. 426–440. 2013.
133
acesso independente à carne desses animais, por meio de criação própria. Porém, embora tenha sido possível que, em alguns casos, eles criassem seus próprios bois, essa era uma prática pouco usual. Por outro lado, a criação de porcos era viável, sobretudo para aqueles cativos que tinham acesso a lotes de terra para cultivar suas próprias hortas. No Brasil, conforme discutido, o cultivo próprio foi uma prática comum entre grupos escravizados. De fato, sabemos que os cativos do Colégio, pelo menos desde o tempo do primeiro proprietário, Joaquim Vicente dos Reis, tinham o dia de domingo destinado para o seu sustento próprio. Portanto, a criação de porcos por eles poderia ser uma hipótese viável para explicar a alta popularidade dos ossos da família Suidae no espaço da senzala. Porém, se este tivesse sido o caso, esses animais deveriam estar representados por ossos de todas as partes dos seus corpos. Isso não é o que ocorre, dado que vértebras e patas são os ossos fortemente dominantes, sugerindo o recebimento de cortes específicos, provavelmente fornecidos pelos proprietários. Com relação aos ossos de bovinos, enquanto que na área NW temos a presença apenas dos ossos inferiores das patas (falanges, metatarsos e metacarpos), na SE, além desses, foram encontrados também fragmentos de fêmur, úmero e ossos pélvicos, embora em uma proporção reduzida em relação aos ossos inferiores das patas. A maior diversidade da carne de bovídeos nessa área sugere que esse grupo pode ter sido privilegiado pelos proprietários, no caso da redistribuição de ração, ou que foram aptos, por meio de seus próprios recursos, a acessar, em determinados momentos, cortes de melhor qualidade, mais ricos em carne. Apesar dessa variação, há um expressivo aspecto comum entre as duas áreas: a quase totalidade de ossos de boi é referente a patas e vértebras, que consistem nos cortes mais pobres em carne e em valor nutricional desses animais. Ou seja, os cativos estavam tendo acesso quase que exclusivamente a esses tipos de cortes, cujo consumo somente poderia ser potencializado através do cozimento na forma de caldos e ensopados.
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Figura 5.2 - Fragmento de metacarpo (à direita) e metatarso (à esquerda) de boi (gênero Bos). Fonte: Autoria própria.
No gráfico, a legenda do gênero Canidae está em vermelho, pois, embora não tenha presença de dentes, está representado por ossos. Embora tais ossos sejam escassos quando contrastados aos demais gêneros, esse é um dos poucos animais que têm uma grande porção do esqueleto representada (vértebras, escápula, metacarpos, falanges e fêmur). Esses ossos apresentam claras evidências de cocção, sugerindo o consumo de pelo menos um animal inteiro. Com relação à frequência de animais encontrados na área NW, percebemos uma pequena diferença a respeito dos animais domésticos (Figura 5.3). Enquanto na área SE os suínos são mais consumidos, na área NW temos um maior equilíbrio entre esses e os bovídeos. Podemos perceber também um maior consumo de animais silvestres, que correspondem a 16% da amostra. Esses dados evidenciam que, embora a área SE tenha uma maior variedade de animais, há uma menor procura por animais silvestres em relação à outra área. 135
Figura 5. 3 - Frequência de animais encontrados na área NW. Fonte: Autoria própria.
Talvez pelo fato dos escravizados da área SE terem obtido, em algumas circunstâncias, porções de animais domésticos mais ricas em carne, é possível que tenha diminuído a prática da caça em comparação ao grupo da área NW. Ou isso ainda pode ter sido resultado de outro fator: na área SE a presença de peixes é esmagadora em relação à NW, constituindo 73% da amostra total dessa categoria. Os escravizados desta área podem ter tido então, uma preferência pelo consumo de peixes, que poderia ter sido obtido pela pesca autônoma realizada nos rios e lagoas na região do entorno do Colégio, ou então no comércio com possíveis pescadores. Pode-se supor que a caça provavelmente era feita através de armadilhas, já que esse seria um método que demandaria menos tempo, sendo necessário apenas prepará-las e depois coletar o animal preso. Afinal, os cativos tinham que realizar o seu labor durante o dia. Talvez a exceção fosse no sábado, dia em que eram liberados. A pesca demandaria mais tempo. De acordo com Slenes,240 vários viajantes relataram que a caça e a pesca eram elementos importante na dieta dos cativos. No relato da Tschudi, citado por Slenes, há a menção de peixes, tatus, iguanas, pacas, capivaras e cotias em sua alimentação. Slenes também cita um relato de 240 SLENES, R. op cit.
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Rugendas que indica que os cativos realizavam coleta de frutos e legumes silvestres, além da caça. Eles não precisariam de armas de fogo para caçar pois os povos da África Central desenvolveram uma variedade de armadilhas de caça que poderiam ter sido adaptadas para o ambiente brasileiro. A disponibilidade da fauna, contudo, de forma alguma significa que os escravos comiam bem, pois o regime de trabalho nas fazendas não deixava muito tempo disponível para a caça e a pesca. Mas, de acordo com relato de Rugendas, os senhores se aproveitavam da fartura de animais silvestres para diminuir os alimentos que eram fornecidos aos escravizados. Os alimentos conseguidos de forma autônoma ainda poderiam estar sujeitos à partilha na senzala, com o casamento e o compadrio de batismo sendo fatores a atuar sobre essa distribuição. Dessa forma, os solteiros e aqueles menos vinculados a redes familiares e de compadrio teriam menos possibilidade de se beneficiar dessas formas de compartilhamento. Com relação aos animais silvestres terrestres, podemos analisar sua ocorrência mais detalhadamente nos gráficos que se seguem (Figuras 5.4 e 5.5).
Figura 5. 4 - Frequência dos animais silvestres nas áreas SE e NW. Fonte: Autoria própria.
Vemos na Figura 5.4, uma expressivamente maior proporção de jacarés (Alligatoridae) em relação às outras categorias (gambás em vermelho, lagartos em verde e roedores em roxo) na área SE. Os escravizados africanos já teriam afinidade com um animal similar em sua 137
terra natal, o crocodilo, o qual, segundo Cascudo,241 era comumente caçado, o que pode remeter a hábitos de consumo, e mesmo técnicas de caça, de origem africana. Para caçar os jacarés os escravizados teriam que explorar as lagoas da região, que são os habitats naturais desses animais. Coincidentemente, uma das lagoas próximas ao Colégio dos Jesuítas ainda hoje leva o nome de Ururaí, que significa jacaré em Goitacá, idioma dos indígenas que viviam na região antes da colonização. Isso indica também que pelo menos alguns cativos teriam certa autonomia para se locomover pela região. Essa mobilidade é ainda sugerida pela presença, nos contextos da senzala, de conchas de mariscos. Embora os peixes possam ter sido pescados nos rios e lagoas próximos à propriedade, esse não foi o caso dos mariscos, que consistem em um recurso coletado à beira-mar, cabendo destacar que a praia mais próxima situa-se à cerca de 30 quilômetros do Colégio. O acesso a esse tipo de recurso poderia ter se dado seja pelo comércio com pescadores, ou pela ação de determinados membros da comunidade escravizada, que teriam condições de circular, no mínimo, por sessenta quilômetros entre a jornada de ida e volta.242 Ao compararmos as amostras das duas áreas, percebemos que não há diferenças significativas, exceto por uma maior frequência de gambás (Didelphidae) na área Noroeste, com o jacaré consistindo na categoria mais frequente de animal silvestre em ambos os contextos. O gambá (Didelphidae) é um animal de hábitos noturnos; por essa razão, eles poderiam ser caçados com o uso de armadilhas, posto que deveria haver restrições com relação à mobilidade de escravizados durante a noite pelos arredores da fazenda.
241 CASCUDO, L. op cit. 242 SYMANSKI, Luís Cláudio Pereira; MORAIS JÚNIOR, Geraldo Pereira de. op cit.
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Figura 5.5 - Frequência de animais identificados por intervalo de tempo na área SE. Fonte: Autoria própria.
Ao analisarmos diacronicamente os dados de cada área, percebemos mudanças nos hábitos alimentares de cada grupo. Na Figura 5.5 observa-se as diferenças diacrônicas na amostra da área SE. A sigla MP refere-se a uma estrutura de deposição (mancha preta) com material depositado no intervalo entre 1835 e 1850. Já o N4/5 refere-se aos dois níveis imediatamente superiores à referida estrutura, de 10 centímetros cada, cujo intervalo de deposição se deu entre 1850 e 1870. A diferença se expressa nos animais domésticos. Enquanto no período entre 1835 e 1850 predominam os suínos, entre 1850 e 1870 esses declinam e aumenta a presença de bovinos. Cabe destacar que é justamente nesse intervalo mais tardio que ocorre a presença de cortes bovinos com uma maior quantidade de carne, o que pode ser sinal de privilégios concedidos a esse grupo. Apesar disso, não há variação na frequência de animais caçados. Com relação à área NW, temos quatro intervalos que abrangem do final do século XVIII à meados do século XIX (Figura 5.6), e que dizem respeito à sobreposição dos níveis da camada arqueológica nos dois locais escavados (áreas NW 8.1 e NW 8.3).243 Percebemos, nesse caso, que a categoria de animais silvestres realiza uma curva inversamente proporcional à dos ossos de bovinos. Isso indica que esse grupo intensificou o consumo de animais silvestres sobretudo no período intermediário de ocupação. O gráfico revela também um declínio brusco na caça no período mais tardio 243 A área NW 8.1 diz respeito a um espaço de atividades cotidianas, provavelmente nos fundos de uma estrutura de habitação da senzala. A área NW 8.3 refere-se a um local de deposição de refugo associado à mesma estrutura de habitação, e localizado a 15 metros a Oeste da NW 8.1.
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(1850-1860), assim como um aumento significativo na frequência da carne bovina. Essa variação pode sinalizar um período de perda ou restrição nos espaços de autonomia desses grupos, envolvendo as possíveis esferas de circulação onde atuavam, como a esfera da caça, na região adjacente ao Colégio, que incluiria as lagoas, bem como a mais dilatada esfera da coleta, que poderia chegar à costa, como atestado pela já discutida presença de mariscos nesses contextos. Esse declínio sugere, assim, uma menor autonomia dos escravizados sobre seus hábitos alimentares, à medida em que a caça é substituída pelos cortes fornecidos pela casa grande, indicado pelo intenso aumento na frequência da carne bovina. Como já discutido, nessa área, os cortes bovinos consistem apenas nas partes inferiores das patas, indicando uma menor diversidade na dieta desse grupo.
Figura 5.6 - Frequência de animais identificados por intervalo de tempo na área Noroeste. Fonte: Autoria própria.
Quando consideramos somente a distribuição diacrônica dos animais silvestres da área NW, essa hipótese é fortalecida (Figura 5.7). Percebemos como a procura por jacaré, animal preferido, vai aumentando com o tempo e bruscamente some no último intervalo. Ao mesmo tempo, o gambá, animal com hábitos noturnos que, quando acuado, se finge de morto, tornando sua captura relativamente fácil, se torna a única fonte de caça. Isso sugere que a autonomia para caçar pode ter sido restrita, se limitando sobretudo às áreas próximas à senzala onde seria possível montar armadilhas para a captura do gambá. 140
Figura 5.7 - Frequência de animais silvestres identificados por intervalo de tempo na área NW. Fonte: Autoria própria.
Retornando à área SE, nessa os restos faunísticos sugerem uma variação brusca na ocorrência da pesca. Durante o período entre 1835 e 1850 há uma escassez de ossos de peixes enquanto que no período entre 1850 e 1870 concentra-se a quase totalidade desses (96%). A pesca, conforme já afirmado, é uma atividade que demanda uma maior quantidade de tempo para ser realizada, além de um deslocamento aos riachos ou lagoas ou até mesmo ao mar. Isso sugere que esse grupo pode ter mantido uma maior autonomia em relação aos ocupantes da área NW, expressa por um maior grau de locomoção pela região, enquanto que esses últimos, conforme discutido, tiveram suas possibilidades de circulação mais restritas neste período tardio. A curva dos ossos de peixes (Figura 5.8) da área NW assemelha-se àquela dos animais silvestres (Figura 5.7). Isso indica que, nessa área, a prática da pesca se intensifica simultaneamente à caça, sendo que ocorre um forte declínio da primeira no intervalo mais tardio (1850-1860), corroborando a hipótese das restrições dos espaços de autonomia desse grupo neste período.
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Figura 5.8 - Frequência de peixes por intervalo de tempo na área Noroeste. Fonte: Autoria própria.
Um aspecto que cabe ser realçado é a maior presença, na área NW, de ossos de animais jovens (21 peças), não fusionados, bem como de dentes não desgastados em relação à área SE (12 peças) (Figura 5.9). A presença de ossos de animais jovens não é incomum nos contextos de senzala dos estados Unidos e do Caribe, e, como mencionado, têm sido interpretados como possíveis evidência de práticas de furto pelos cativos, dado que seria incoerente em termos econômicos sacrificar um animal ainda na sua infância.244 No colégio, essa prática também poderia ter se sucedido. Conforme o relato supracitado do Conselheiro Francisco de Paula Candido, essa não era uma prática incomum no Brasil. Esses ossos podem consistir, assim, em evidências de formas alternativas de complementação da dieta. A organização diacrônica dos contextos de deposição das duas áreas da senzala pode informar sobre algumas tendências mais amplas nos padrões de consumo de carne pelos escravizados do Colégio no período entre 1790 e 1870 (Figuras 5.10 e 5.11). Em termos gerais, observa-se que há um nítido declínio da caça na segunda metade do século XIX, sendo que a curva de animais silvestres é inversamente proporcional ao fornecimento de carne bovina pela casa grande (Figura 5.10). Do mesmo modo, os peixes apresentam uma distribuição similar à da caça, exceto no último intervalo da série, referente à situação excepcional, já discutida, do período tardio da área SE (Figura 5.11). 244 YOUNG, Amy. op cit.
142
Figura 5.9. Fragmento de metacarpo não fusionado (superior esquerdo), fragmento de vértebra não fusionado (superior direito), e fragmento de maxila de uma cabra jovem. Fonte: Autoria própria.
Figura 5.10 - Distribuição diacrônica dos restos faunísticos nas duas áreas da senzala. Fonte: Autoria própria. 143
Figura 5.11 - Distribuição diacrônica dos ossos de peixes. Fonte: Autoria própria.
O que aconteceu no setor Sudeste no período 1850-1870 pode ter sido o resultado de uma melhoria nas condições materiais de vida, proveniente da conquista de maiores espaços de autonomia. Essa melhoria está nitidamente expressa na maior presença, nesse contexto tardio, de louças de valor mais elevado, como faianças finas impressas e porcelanas, conforme discutido por Symanski neste volume. Nesse mesmo período, o grupo que vivia no setor NW, conforme demonstram as evidências, teve uma redução de sua autonomia e de acesso ao mercado. Porém, ainda assim, buscaram recursos alternativos através da provável caça furtiva do gambá, demonstrando mais uma vez serem, nas palavras de Paiva245, “responsáveis diretos pelo estabelecimento de padrões de sobrevivência e pela criação de sua própria cultura”.
Considerações finais Os cativos do Colégio dos Jesuítas se envolveram ativamente com a economia local e regional e foram, assim, aptos na conquista de espaços de autonomia. Os vestígios faunísticos sugerem a possibilidade de que os cortes de animais domésticos tenham sido fornecidos pela 245 PAIVA, Eduardo. Escravos e Libertos nas Minas Gerais do Século XVIII: Estratégias de Resistência Através de Testamentos. São Paulo, editora Annablume. 1995, p. 58.
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casa grande de forma distinta, privilegiando, em um determinado período, o grupo específico do setor SE, que recebeu cortes mais ricos em carne. Este mesmo grupo teve suas possibilidade de caça e, sobretudo de pesca, ampliadas através do tempo, no mesmo período em que aqueles que ocupavam a área NW sofriam restrições nessas atividades, o que os levou a reagir através da caça noturna, provavelmente feita de forma furtiva, e do provável furto de animais jovens, provavelmente da criação da própria fazenda. Este estudo demonstra, portanto, que os dois grupos de cativos do Colégio dos Jesuítas não se mantiveram passivos frente ao sistema escravista. Eles expressaram sua agência seja por meio da negociação com a casa grande, seja por meios de uma resistência oculta. A variação desse material entre as duas áreas da senzala e através do tempo também sugere que grupos distintos da senzala se engajaram em diferentes formas de negociação com os proprietários, refletindo em uma participação diferencial no mercado, na conquista de espaços de autonomia, e, assim, no acesso a uma alimentação mais diversificada.
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Capítulo 6 Para além de algemas e grilhões: os objetos de vestuário e ornamentação dos escravos Isabela Cristina Suguimatsu
Introdução A década de 1980 foi um marco nas pesquisas ligadas à escravidão no Brasil. O centenário da abolição (1988), a redemocratização política (1985) e a influência da historiografia desenvolvida nos Estados Unidos fixaram novas agendas para o estudo das experiências das populações escravizadas e de seus descendentes, sobretudo pelo rompimento do binômio opressão e/ou resistência que marcavam as análises anteriores. De maneira mais complexa, as relações entre senhores e escravos passaram a ser entendidas a partir da percepção das possibilidades de mobilidade, de constituição de famílias e de construção de identidades entre os escravos. Passado o desafio de negar a imobilidade desses grupos – e de reconhecer sua humanidade –, pesquisadores têm procurado entender o sentido que eles conferiam a suas práticas e lutas cotidianas, sem se limitar às leituras senhoriais e oficiais dessas situações. Ainda que, desde então, a produção historiográfica sobre a escravidão no Brasil tenha crescido qualitativa e quantitativamente, o vestuário e a ornamentação dos escravos receberam pouca atenção dos historiadores, com algumas exceções.246 A escassez de trabalhos se justifica, em grande parte, pela carência de documentação histórica. Afora os relatos de viajantes, poucas são as fontes escritas ou iconográficas em que essas informações são acessíveis – sem contar que os registros deixados por eles próprios são quase inexistentes no Brasil. Mais do que a carência, porém, 246 Cf. KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. 1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; LEITE, Miriam Moreira. A mulher no Rio de Janeiro do século XIX. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1982; FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. Tomo 1. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1977 [1936] e LARA, Silvia Hunold. Sedas, panos e balangandãs: o traje de senhoras e escravas nas cidades do Rio de Janeiro e de Salvador (Século XVIII). In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Org.). Brasil, Colonização e Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 177-191.
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o tema ainda enfrenta a barreira de ser considerado fútil, indigno e menos importante em relação a questões mais amplas da escravidão (econômicas e políticas) – apesar de, desde a década de 1960, o movimento da Nova História francesa já ter demonstrado que o vestuário estava diretamente conectado aos comportamentos, à economia e às hierarquias sociais.247 Ao “dar voz a minorias étnicas e a segmentos subalternos, oprimidos, desfavorecidos, ou marginais, que não puderam registrar sua história”248, a arqueologia teria o potencial de suprir as lacunas deixadas pela documentação escrita – sobretudo porque objetos de uso cotidiano, como os que compõem o vestuário e a ornamentação, são frequentemente recuperados em sítios arqueológicos. No entanto, também entre arqueólogos os chamados “pequenos achados” são subestimados como ferramentas interpretativas dentro da disciplina e por muito tempo, quando considerados, limitaram-se à simples classificação em categorias funcionais.249 Segundo notou Diana Loren, “presume-se frequentemente que, por serem itens pessoais, possuem 247 A escola dos Annales, também chamada Nova História, propôs à história “novos objetivos, problemas e abordagens” como o próprio título da coletânea organizada por Jaques Le Goff e Pierre Nora sugere. Essa nova perspectiva ampliou a noção de documento, incorporando a cultura material como fonte histórica, bem como os métodos de investigação. LE GOFF, Jaques; NORA, Pierre (Org.). História: Novos Problemas, Novas Abordagens, Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988 [1974]. Sobre o vestuário, cf. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Tomo I: As Estruturas do Cotidiano) e ROCHE, Daniel. A Cultura das Aparências: uma história da indumentária (séculos XVII- XVIII). São Paulo: Editora Senac, 2007. No Brasil, o trabalho de Gilda de Mello e Souza, originalmente defendido como tese de doutorado em Sociologia, em 1950, antecipou muitas das questões que seriam incorporadas apenas na década de 1980 pela historiografia brasileira, já sob influência da escola dos Annales. SOUZA, Gilda de Mello. O espírito das Roupas – a moda no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 248 LIMA, Tânia Andrade. Arqueologia histórica no Brasil: um balanço bibliográfico 19601991. Anais do Museu Paulista, v. 1, n. 1, 1993. p. 228. 249 Stanley South criou, na década de 1970, duas categorias de análise entre os “pequenos achados”: os artefatos de vestuário, que incluía botões, fivelas, colchetes e os artefatos pessoais, que abarcava contas de colar em vidro, cachimbos, anéis, braceletes, entre outros objetos. Em trabalho mais recente, Carolyn White e Mary Beaudry classificaram dentro dessa categoria: aqueles objetos usados por um grupo restrito; aqueles usados exclusivamente por um individuo ao longo de sua vida ou da vida útil do artefato e, por fim, aqueles usados por um indivíduo e passados para outros por meio da hereditariedade, ou seja, objetos que tiveram múltiplos e sucessivos proprietários. De maneira mais estrita, definem artefatos pessoais como os “artefatos usados por uma única pessoa sobre seu corpo”. SOUTH, Stanley. Method and Theory in Historical Archaeology. New York: Academic Press, 1977; WHITE, Carolyn; BEAUDRY, Mary. Artifact and personal identity. In: MAJEWSKI, Teresita; GAIMSTER, David (eds.). International Handbook of Historical Archaeology. New York: Springter, 2009. p. 213-214.
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funções já conhecidas”250: botões prendem roupas, medalhinhas e crucifixos indicam crenças religiosas e contas de vidro são itens de ornamentação. Para alguns arqueólogos (especialmente arqueólogas), porém, mais interessante do que identificar funções nesses objetos, é interpretar de que maneira eles estiveram envolvidos com a construção de si e das identidades sociais no passado.251 Aqui, há não somente uma diferença de objetivos entre essas duas perspectivas, mas também uma diferença epistemológica (marcada pelos verbos em itálico). Identificar pressupõe uma forma pré-cultural do mundo material, mundo que existe independente e fora dos sujeitos; interpretar é perceber um mundo de uma maneira específica, maneira essa sempre contingente e incompleta – a do intérprete. Nesse capítulo, utilizo os “artefatos pessoais” encontrados nas áreas de senzala da Fazenda do Colégio dos Jesuítas como potencial para pensar a relação das práticas de vestir-se e adornar-se com a construção identitária dos indivíduos escravizados que ali viveram. Os vestígios arqueológicos dos diferentes objetos que as pessoas usavam sobre o corpo, fosse para cobri-lo, protegê-lo ou enfeitá-lo, são fontes riquíssimas de informações sobre práticas diversas; do entendimento das contradições entre consumo e disponibilidade desses bens às maneiras pelas quais identidades foram construídas em relação à ordem oficial, ao contexto local e às ideias pessoais. Se a experiência humana acontece pelo engajamento 250 LOREN, Diana. The archaeology of clothing and bodily adornment in colonial America. Gainesville: University Press of Florida, 2010. p. 16. 251 Nessa perspectiva, destacam-se os trabalhos de DEAGAN, Kathleen. Artifacts of the Spanish Colonies of Florida and the Caribbean, 1500- 1800, v. 2. Personal Portable Possessions. Washington: Smithsonian Institution Press, 2002; WHITE, Carolyn L. American Artifacts of Personal Adornment, 1680-1820: a guide to identification and interpretation. Lanham, Maryland: AltaMira Press, 2005; BEAUDRY, Mary. Findings: The Material Culture of Needlework and Sewing. New Haven: Yale University Press, 2006. No Brasil, embora sejam poucas as pesquisas sobre o tema, cf.: TAVARES, Aurea Conceição Pereira. Vestígios materiais nos enterramentos na antiga Sé de Salvador: postura das instituições religiosas africanas frente à igreja católica em Salvador no período escravista. 2006. 124 f. Dissertação (Mestrado em História). Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006; BRITO, Patrícia. De conta em conta: rotas atlânticas e comércio no Rio de Janeiro oitocentista: o caso do Cais do Valongo. 2015. 230 f. Dissertação (Mestrado em Arqueologia). Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015 e SUGUIMATSU, Isabela C. Atrás dos Panos: Vestuário, Ornamentos e Identidades Escravas. Colégio dos Jesuítas, Campos dos Goytacazes, século XIX. 2016. 198 f. Dissertação (Mestrado em Arqueologia). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.
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físico com o mundo, ou seja, pela materialidade, é a “ênfase nas relações sujeito-objeto na prática diária que pode nos revelar maiores entendimentos sobre a vida dos indivíduos e as formas com que eles usaram a cultura material para constituírem a si mesmos e seus mundos”252 – e os objetos pessoais, usados cotidianamente sobre o corpo, talvez sejam os que melhor representem tais processos de construção identitária e dos sujeitos.
Identidades e artefatos pessoais Definir identidade é sempre uma “tarefa espinhosa”, como notou Carolyn White.253 Além de ser um conceito culturalmente localizado no tempo, sendo sempre perigoso transportá-lo para análises no passado, carrega a contradição de que pode tanto ser demarcada pelo indivíduo, quanto pela sociedade – e talvez por esse motivo a dificuldade apontada por White se justifique. Entende-se por identidade aquilo que define uma pessoa como parte de um grupo, como “um mesmo”; mas também, e ao mesmo tempo, como um “individuo diferente” num agrupamento mais amplo.254 Esse duplo caráter da construção identitária (interno e externo, individual e coletivo), por sua vez, é incorporado nos diferentes modos de aparecer e de se mostrar ao mundo, isto é, no conjunto de ações, gestos e nas maneiras de se vestir e se adornar. Identidades sociais não são criadas, portanto, de maneira isolada; antes, são resultado de interações que envolvem pessoas e coisas. Se essa relação nunca é a mesma em todos os momentos e lugares, significa dizer que as identidades dela resultantes podem ser assumidas, afirmadas e rejeitadas em diferentes situações. São fluidas e maleáveis, abertas a negociações – que são, em última instância, históricas e políticas. Isso é particularmente notável entre populações que passaram por processos diaspóricos, como as que foram forçosamente trazidas para o trabalho 252 LOREN, Diana. Material manipulations: beads and cloth in the French colonies. In: WHITE, Carolyn (ed.). The Materiality of Individuality: archaeological studies of individual lives. New York: Sprinter, 2009. p. 110. 253 WHITE, Carolyn. Introduction: Objects, Scale and Identity Entangled. In: ____ (ed.). The Materiality... op cit., p. 5. 254 Para melhor entendimento do conceito aqui utilizado, cf. WHITE, Carolyn; BEAUDRY, Mary. op cit., p. 210.
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escravo no Brasil durante os séculos XVIII e XIX. Ainda que, junto com as pessoas, uma bagagem (ou tradição) cultural tenha sido transportada na travessia do Atlântico, as identidades criadas no Brasil não foram exatamente as mesmas daquelas existentes anteriormente em África – e nem poderiam ser. Para Paul Gilroy, antes de significar “uma forma de dispersão catastrófica”, a diáspora é um conceito que “perturba a mecânica cultural e histórica do pertencimento” pois rompe “a sequência dos laços explicativos entre lugar, posição e consciência”; rompe, em outras palavras, “com o poder do território em determinar a identidade”.255 Sobre esse assunto, também Manuela Carneiro da Cunha argumentou que as identidades étnicas não são determinadas por uma tradição que se adapta a novos meios e se perpetua em diferentes contextos, mas, ao contrário, “a tradição cultural serve, por assim dizer, de reservatório onde se irão buscar, à medida das necessidades no novo meio, sinais diacríticos para uma identificação étnica. A tradição cultural seria, assim, seletivamente reconstruída, e não uma instância determinante”.256 Seletivamente, pois nem tudo o que constitui a cultura de um grupo, ou o que é para ele importante, pode ser transferido pela diáspora – paisagens, objetos, construções. Os traços diacríticos escolhidos como mais significantes para realçar diferenças “depende[m] de categorias comparáveis disponíveis na sociedade mais ampla com as quais poderão se contrapor e organizar sistemas. Poderão ser a religião, poderão ser as roupas características, línguas ou dialetos, ou muitas outras coisas”.257 A fluidez da identidade é tanto verdade para os indivíduos que tiveram a liberdade de definir a natureza de sua participação nas relações sociais – definindo-se a si mesmos –, como para os indivíduos escravizados. Pois mesmo eles, que viveram dentro de uma ordem regimentada e imposta por seus donos, encontraram formas de adquirir cultura material que foi utilizada para, entre outras finalidades, a construção e reprodução de identidades espe255 GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora 34; Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001. p. 18-19. 256 CUNHA, Manuela Carneiro. Cultura com Aspas. São Paulo: Cosac & Naify, 2009 [1977]. p. 226. 257 Ibidem, p. 240.
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cíficas. Assim, para além das identidades de grupo – entre, por exemplo, ser escravo africano ou nascido no Brasil, ser africano de nação Angola ou Congo, entre ser homem ou mulher – também criavam identidades individuais, a partir da manipulação do corpo e dos objetos sobre ele utilizados. Com “criar identidades” quero dizer que a maneira com que cada um cobre, adorna e mostra seu corpo não é apenas uma declaração identitária, mas uma importante forma de construção de si. Ou seja, não estou sugerindo simplesmente que roupas e ornamentos são uma forma de comunicação, que deixa transparecer uma cultura ou tradição anterior (e interior) ao mundo exterior. Mas que as coisas usadas sobre o corpo são fundamentais na construção da vida social e da experiência humana em seu engajamento com o mundo.258 Elementos importantes na relação entre artefatos pessoais e a construção identitária, portanto, são as noções de corporeidade (embodiment) e performatividade.259 A ideia de performatividade, como colocada por Judith Butler, seria o modo como identidades são incorporadas no eu (self) por meio de ações que ocorrem na superfície do corpo.260 Essas ações performáticas, ou seja, padrões de postura, gestos, movimentos, estilos e vestimentas, quando diariamente repetidas, são meios pelos quais um núcleo interno da identidade (de gênero, mas também de outras) é produzido. Significa dizer que é pelo corpo sensível e situado no mundo material que identidades são criadas, expressas e materializadas. Os vestígios dessa incorporação da identidade, bem como das experiências vividas no passado, estão associados às pequenas coisas que compõem a cultura material da vida diária, especialmente àquelas usadas sobre o corpo, de modo que “vestuário, corpo e self não são percebidos separadamente, mas simultaneamente, como uma totalidade”.261 258 Essa perspectiva tem sido adotada nos estudos da “materialidade”. Ver, por exemplo: MESKELL, Lynn. Object Worlds in Ancient Egypt: Material Biographies Past and Present. London: Berg. 2004 e MILLER, Daniel (ed.). Material Cultures: Why Some Things Matter. Chicago: University of Chicago Press, 1988. 259 Na falta de termo que melhor traduz embodiment, do inglês, utiliza-se comumente “corporeidade” (ver, por exemplo, a tradução de CSORDAS, Thomas. A Corporeidade como um Paradigma para a Antropologia. In: _____. Corpo/significado/cura. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2008. p. 101-146). Apesar de ter sido traduzida para o português como uma palavra substantivada, também designa, em inglês, uma ação: tornar algo físico, corporificar. 260 BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008 [1990]. p. 194. 261 ENTWISTLE, Joanne. Fashioned Body: Fashion, Dress, and Modern Social Teory. Cambridge: Polity Press, 2000. p. 10.
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Assim, “artefatos pessoais” são um conjunto de itens que podem ser incorporados ou inscritos no corpo de maneiras que variam de acordo com populações, momentos e lugares. Não podem ser considerados como o reflexo material de uma noção monolítica de identidade, tampouco em termos de uma função pré-estabelecida. Eles devem, antes, “ser entendidos em termos de seu uso na construção e reprodução de vários aspectos da identidade e em termos dos múltiplos sentidos que possuem para diferentes participantes na interação social”.262 Esses múltiplos sentidos dependem, portanto, dos contextos (também materiais) de seu uso.
O cenário material e o vestuário dos escravos As possibilidades de aquisição e acesso de materiais de vestuário e ornamentação aos escravos variavam, evidentemente, no tempo e espaço. Em termos estruturais, grandes mudanças no cenário material ocorreram na passagem do século XVIII para o XIX, mais especificamente, após a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, em 1808. Antes dessa data, a metrópole – fosse por grupos comerciais ou pela exploração direta do estado – detinha a exclusividade nas transações dos produtos demandados pela colônia. Importava-se de tudo: não somente os equipamentos de produção e artigos de necessidade mais imediata, mas também toda a sorte de manufaturas e gêneros alimentícios de luxo.263 Havia uma série de limitações à entrada (pela via legal ou pelo contrabando) de produtos manufaturados que não fossem de origem portuguesa, bem como proibições à produção de mercadorias e tecidos no interior da colônia. Segundo o Alvará de 1785, no entanto, a única exceção era a produção de “fazendas grossas de algodão, que servem para uso, e vestuário dos negros, para enfardar, empacotar fazendas, e para outros ministérios similhantes”.264 262 THOMAS, Brian; THOMAS, Larissa. Gender and the Presentation of self: an example from the Hermitage. In: GALLE, Jillian; YOUNG, Amy (ed.). Engendering African American Archaeology: a Southern perspective. Knowville: University of Tennessee Press, 2004. p. 102. 263 Cf. PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1957 [1942]. p. 230; ALENCASTRO, Luís Felipe. O trado dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 38 264 ALVARÁ de cinco de janeiro de 1785 prohibindo as Fábricas, e Manufacturas, no Brazil. In: SILVA, Antonio Delgado da [redator]. Collecção da Legislação Portugueza Desde a Ultima compilação das ordenações, legislação de 1775 a 1790. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828. p. 370-371.
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Esse conjunto de proibições evidencia ao menos duas questões: primeiro, havia um desejo explícito da metrópole em manter a colônia e a maioria de seus habitantes afastados de quaisquer melhorias materiais; segundo, aqueles que conseguiam ter acesso a esses produtos atribuíam-lhes grande valor. As roupas, tecidos e produtos manufaturados europeus foram referência de elegância e distinção durante todo o período colonial, sendo recorrentes os relatos em que os trajes eram vistos como demarcadores de origens e posições sociais.265 Não à toa, as rígidas leis suntuárias portuguesas, que desde pelo menos o século XV a meados do XVIII versavam sobre as interdições de certas vestimentas, tecidos e ornamentos a grupos restritos de pessoas, tornavam inacessíveis a grande parte da população alguns desses itens distintivos. Para Gilberto Freyre, essas proibições serviam “para ficar bem marcada no trajo a diferença de raça e de classe”.266 Na Carta Régia de fevereiro de 1696, por exemplo, já se proibira às escravas o uso de vestidos de seda, cambraias ou holandas, “nem também de guarnição alguma de ouro ou prata nos vestidos”.267 E na Pragmática de 24 de maio de 1749, D. João V advertia, como justificativa à regulação do consumo de produtos luxuosos entre seus vassalos, “o quanto lhes tem sido pernicioso o luxo que entre eles se tem introduzido algum tempo a esta parte”.268 Pois afora a simplicidade das roupas que muitos dos escravos usavam, também havia os que andavam luxuosamente vestidos – tendência mais comum entre os escravos domésticos ou ur265 Sobre a “linguagem visual” das roupas no período colonial brasileiro, ver: LARA, Silvia Hunold. op cit., p. 177-191. 266 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos... op cit., p. 101. 267 CARTA Régia de 20 de fevereiro de 1696, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, Brasil. Seção Manuscritos, Correspondência e Ofícios, II, 33, 29, 74 apud LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. p. 208. Entre as normativas que buscaram reprimir o luxo na colônia, mas com especial atenção àquele ostentado por negros ou mulatos, Silvia Lara também citou as legislações de 1703 e 1709. De maneira geral, todas restringiam o uso de alguns tecidos, bem como ornamentos de ouro e prata, sob penas de açoite, prisão ou mesmo degredo. 268 PRAGMÁTICA de 24 de maio de 1749, Appendix das Leys, 1789, p. 19-24, Biblioteca Nacional de Lisboa, Seção de Manuscritos Reservados, Coleção Josephina, PBA, Cod. 453, fls, 3542v apud LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos... op cit., p. 307-312. Ainda segundo Silvia Lara, foi a partir dessa Pragmática que passou a existir determinações de caráter geral para a regulação da roupa dos escravos. LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 94.
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banos, mucamas e pajens, aos quais muitas vezes eram permitidas algumas regalias na alimentação e no trajo.269 Durante o período colonial, aos senhores era atribuído o sustento de seus escravos, sobretudo quando ricos. “Assim como os escravos são obrigados a servirem a seus senhores, também esses têm obrigação de lhe darem o necessário para que não morram”, dizia a Carta Régia de 31 de janeiro de 1701.270 O rei ordenava, na mesma Carta, que “obrigueis aos senhores de engenho que ou deem aos seus escravos o sustento necessário, ou lhes deem um dia na semana para o poderem com a sua indústria granjear o que desta alternativa escolherem os ditos senhores de engenhos”. Baseada na fórmula panis, disciplina et opus servo, preconizada pelo jesuíta italiano Jorge Benci (1650-1708), a ordenação sustentava que em troca do trabalho, os senhores deveriam garantir os alimentos, vestimentas e o cuidado das enfermidades de seus escravos; se não em gênero, em tempo de trabalho.271 No mesmo sentido argumentava o também padre jesuíta João Antônio Andreoni (1650-1716): “no Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três P. P. P., a saber Pau, Pão e Pano”.272 Castigar para garantir a produção; vestir e alimentar os escravos para garantir sua existência. Mas vestir os escravos também tinha o objetivo de defender a decência contra os pecados da nudez. Ao cobrirem seus corpos à moda europeia, a moral cristã era não somente ensinada, mas incorporada. Pela roupa, inseria-se no universo europeu, em seus costumes e em suas visões de mundo. Sob panos da moral, também havia, implicitamente, o esforço de controlar as vontades, os gostos e as liberdades. Na tentativa de solapar as identidades anteriores ao cativeiro, as roupas usadas pelos escravos refletiam em grande medida as escolhas de seus próprios senhores: os tecidos grosseiros reafirmavam as diferenças sociais e reificavam a 269 KARASCH, Mary. op cit., p. 301. 270 CARTA Régia de 31 de janeiro de 1701, Arquivo Histórico Ultramarino, Registro de Cartas Régias Cod. 246, fl. 130v apud LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos... op cit., p. 215216. A mesma carta apresenta datação de 16 de novembro de 1701 no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Seção Manuscritos. 271 BENCI, Jorge. Economia cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1977 [1700]. p. 51. 272 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo: Edusp, 2007 [1711]. p. 100-1.
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“desumanidade” de seus escravos – não por acaso deveriam andar descalços. O cronista Luiz dos Santos Vilhena informou que, no meio rural, os senhores davam a cada escravo de trabalho “um par de camisas e saias ou calças feitas com tecidos bastante grosseiros, de algodão ou baeta, além de dois côvados e meio de baeta para dormirem”.273 É certo, no entanto, que um meandro de relações impedia que essas normativas fossem levadas à risca. Assim, à exceção das roupas dadas pelos senhores, os escravos procuraram outras formas de compor sua aparência. Essa constatação é clara para o ambiente urbano, onde “havia muitas oportunidades para comprar ou ‘obter’ artigos de vestuário” a partir da renda auferida pelos diferentes ofícios que a cidade demandava.274 Mas também no ambiente rural, a possibilidade de trabalhar em seu próprio terreno aos sábado dava aos escravos algum grau de independência econômica. Na Fazenda do Colégio não era diferente. Em 1796, já com 2000 escravos, o então proprietário Joaquim Vicente dos Reis “sustentava e vestia seus escravos, além de dar-lhes um dia na semana e o domingo para trabalharem para o seu sustento e de suas famílias”, segundo consta em ofício do Conde Vale de Reis.275 Caio Prado Jr. apontou que desde o século XVIII uma “pequena indústria de carpinteiros, ferreiros e outros, bem como frequentemente, até de manufaturas de pano e vestuário” já se fazia presente na colônia. Em geral, a fiação, tecelagem e costura eram produções domésticas e artesa273 VILHENA, Luiz dos Santos. Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas contidas em XX Cartas. Bahia, Imprensa Oficial do Estado, 1921 [1802]. p. 189 apud LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 208. 274 KARASCH, Mary. op cit., p. 301. Sobre o consumo dos escravos, Barbara Heath demonstrou que com a renda auferida na produção agrícola, e por meio de um intrincado sistema de alianças econômicas entre a comunidade, os escravos da fazenda de Thomas Jefferson, localizada no estado norte-americano da Virgínia, compravam nas lojas locais uma série de produtos, muitos dos quais ligados à aparência: roupas, tecidos, materiais de costura, pentes, lâminas de barbear estavam entre os itens mais consumidos. HEATH, Barbara. Slavery and Consumerism: a case study from Central Virginia. Africa Diaspora Archaeology Newsletter, v. 4, n. 2, dec. 1997. 275 OFICIO do conde de Vale de Reis a Luis Pinto de Sousa sobre o requerimento de Joaquim Vicente dos Reis e Companhia, Arquivo Histórico Ultramarino, Rio de Janeiro Avulsos, Cx. 159, D. 11956 apud GUGLIELMO, Mariana Gonçalves. As múltiplas facetas do vassalo “mais rico e poderoso do Brasil”: Joaquim Vicente dos Reis e sua atuação em Campos dos Goytacazes (17811813). 2011. 96f. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2011. p. 31.
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nais, entregues “aos escravos mais hábeis ou às mulheres da casa”.276 Sobre a prática da costura entre os escravos, o comerciante inglês John Luccock, em passagem pelo Brasil na primeira metade do século XIX, comentou que “em todas as famílias superiores a costura comum é feita por escravos, pois que essa é uma ocupação que a moda, aqui, como por toda parte, condenou absurdamente como degradante para os dedos de uma dama”.277 Em fazendas com grande número de escravos, como era o caso da Fazenda do Colégio, o tempo de trabalho e a mão de obra eram racionalmente utilizados. Silvia Hunold Lara mencionou um “Plano de Trabalho” elaborado em 1793 para uma fazenda em Campos, de propriedade do Tenente-Coronel Martins do Couto Reis. O Plano previa a distribuição dos escravos entre lavoura e outros serviços, como serraria, carpintaria, criação de animais, limpeza de valas etc. Nos dias de chuva, para não manter sua escravaria inutilizada, foi determinado empregar todos os escravos no “uso do fuso e da roca”: os “600 escravos (de ambos os sexos) teriam ‘no seu próprio domicílio’ a obrigação de dar diariamente (nos dias chuvosos) a tarefa de uma quarta de algodão fiado por pessoa”. No mesmo planejamento, Couto Reis direcionou 30 raparigas, com idade entre 10 e 14 anos, na fiação de algodão, “dando diariamente a tarefa de meia quarta de fio cada uma”.278 Na própria Fazenda do Colégio, quando ainda era propriedade de Joaquim Vicente dos Reis (de 1781 a 1818), sabemos da existência de pelo menos dois escravos especializados no corte e costura: Marta Soares, costureira, e Antônio Francisco Granjeiro, alfaiate.279 276 PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1957 [1942]. p. 218. 277 LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975 [1820]. p. 78. 278 LARA, Silvia Hunold. Campos da… op cit., p. 184. 279 Ambas as histórias são conhecidas por terem sido testemunhadas em processos de degredo, feitas pelo então proprietário da Fazenda, Joaquim Vicente dos Reis. Marta era casada com Inácio Gonsalves de Siqueira, cirurgião perito. Em 1770, após a Fazenda ser entregue à Coroa, Inácio foi levado para o Hospital Militar do Rio de Janeiro, onde fazia curativos e “se exercitava na arte da cirurgia”. Inácio retornou à Fazenda quando foi arrematada por Joaquim Vicente e lá trabalhou como cirurgião até 1796, quando fugiu e foi doado, juntamente com sua esposa, à Santa Casa de Misericórdia do Reino e Cidade de Angola. MOURA, Clovis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. p. 100. Antônio Francisco Granjeiro era alfaiate e com o trabalho da família, conseguiu juntar dinheiro necessário para
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Esses casos validam a ideia de que, se por um lado as vestes dos escravos eram controladas pelas leis coloniais e pelas escolhas dos senhores – esses responsáveis por providenciar-lhes o vestuário para o trabalho –, por outro, poderia haver alguma liberdade nas formas e modelos, já que eram eles quem as costuravam. Por meio do trabalho nas roças ou nas atividades urbanas, portanto, os escravos usavam o que conseguiam acumular para, entre outros destinos, comprar itens do vestuário e ornamentos. Pegavam roupas velhas dos senhores e as transformavam. Faziam suas próprias roupas e joias para além dos materiais que lhes eram dados. Combinavam as escolhas impostas pelos seus senhores às pessoais, essas muitas vezes guiadas por memórias e práticas de seus antepassados africanos. Com a transferência da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, grandes mudanças no cenário material ocorreram: abriram-se os portos às nações amigas, acabava-se com a exclusividade comercial da metrópole. Com uma rapidez nunca antes vista, novos produtos e novas modas penetravam nas casas e nos gostos dos brasileiros. Não somente tecidos, como seda, veludo e cetim, mas também uma variedade de peças prontas e demais manufaturas para o vestuário chegavam da Inglaterra ao porto do Rio de Janeiro. Eram xales, chapéus, sapatos, luvas, botões vindos de Manchester, Birmingham e Liverpool.280 Ainda que a chegada da Corte tenha impactado sobremaneira o Rio e Janeiro e seus habitantes, Campos não ficou à parte desse processo de mudança. A riqueza proporcionada pela produção açucareira fez despontar verdadeiros barões, que erguiam seus casarões, sobrados e solares por toda planície. Necessidades de mercadorias de consumo de luxo forçavam comerciantes a trazê-las do Rio de Janeiro: “a seda, os galões, o cetim, os veludos, comprar sua alforria. Joaquim Vicente, porém, resolveu mandá-lo para Angola e negou sua alforria. Antônio conseguiu reverter a decisão, mas, novamente, Joaquim Vicente pediu o cancelamento da alforria, argumentando que seu ex-escravo era “desobediente, temerário e réu de graves delitos” e que, quando pedira sua alforria já não era mais seu escravo, mas sim da Santa Casa de Misericórdia de Angola, para onde fora doado. Antônio foi preso e enviado para Angola, mesmo com falta de provas de seus supostos crimes. A história de Antônio foi pesquisada em detalhes por Mariana Gonçalves Guglielmo; as referências dos documentos podem ser ali consultadas. GUGLIELMO, Mariana Gonçalves. op cit., p. 34-43. 280 FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil: aspectos da influencia britânica sobre a vida, a paisagem e a cultura no Brasil. 3 ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000 [1948]. p. 158-160.
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os calçados, faziam parte dos hábitos e costumes daquelas gentes que o açúcar transformara”.281 Que os produtos ingleses e a moda francesa, a partir da abertura dos portos, entraram na vida dos brasileiros, bem como desestabilizaram os tradicionais costumes da Colônia – e a restrição dos signos distintivos de prestígio –, não há dúvidas. Afinal, usar algo da “última moda em Paris” era trazer um pouco dos valores burgueses a uma corte ainda baseada em antigos costumes.282 O duplo movimento de promoção econômica da burguesia, de um lado, e a “valorização do novo”, de outro, impulsionou a ruptura com as amarras da tradição. A primeira metade do século XIX foi, portanto, um período de transição: a tradição e o novo entravam em choque. Mas essa tensão impôs-se de maneira diferente sobre o modo de vestir dos escravos – e, ao mesmo tempo, sobre suas identidades. Como disse Mary Karasch, havia entre os escravos do Rio de Janeiro “uma mistura de trajes africanos e a última moda da Europa”.283 Entre eles, portanto, a tradição era menos a do Antigo Regime, do que de sua herança africana, de suas visões de mundo, de seus ancestrais. Uma mudança no cenário material implica, assim, uma mudança na relação das pessoas com a materialidade, e ao mesmo tempo, na relação das pessoas com o próprio corpo e o uso que dele se faz para interiorizar disposições físicas e mentais que, em última análise, faz de nós o que somos. No caso da Fazenda do Colégio dos Jesuítas, as mudanças no cenário material durante a primeira metade do século XIX, foram visivelmente percebidas na amostra dos artefatos pessoais. No entanto, essas mudanças não foram igualmente incorporadas pelos distintos grupos sociais da Fazenda. Afinal, estavam em jogo diferentes modos de se apresentar e de ser. 281 PINTO, Jorge R. P. O Ciclo do Açúcar em Campos. Campos dos Goytacazes: Erca, 1995. p. 74. 282 Na França, as leis suntuárias foram abolidas com a Revolução (1789-1799). Os valores revolucionários, entre eles a igualdade, buscavam solapar com privilégios e diferenças entre os grupos sociais; diferenças essas expressas no vestuário e ornamentação. Casas comerciais e profissionais franceses ligados à moda entraram no Brasil somente após o reestabelecimento das relações diplomáticas entre França e Portugal, em 1815. Sobre o assunto, cf. SILVA, Camila Borges. O Símbolo Indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro (1808-1821). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 2010. 283 KARASCH, Mary. op cit., p. 301.
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Artefatos pessoais da Fazenda do Colégio Entre os milhares de fragmentos e objetos recuperados nas escavações da Fazenda do Colégio, mais de uma centena são relacionados ao vestuário e ornamentação. Foram encontrados botões de diferentes materiais, fivelas, colchetes, contas de vidro, anéis, braceletes, correntes, medalhinhas e crucifixos religiosos, moedas perfuradas, brincos, argolas em diferentes áreas de escavação.284 Por um lado, a amostra possui itens representativos de tipos de artefatos pessoais comumente usados durante o século XIX, e também encontrados em contextos arqueológicos do mesmo período, tanto no Brasil, como em outras partes das Américas, a exemplo das contas de colar e botões de porcelana e metal. Por outro, inclui itens pouco conhecidos nos registros históricos e pouco presentes em sítios arqueológicos ligados à diáspora africana: botões e discos feitos em ossos, anéis e brincos em forma de argolas. Para além de trazer contribuições para o entendimento das formas com que muitos escravos construíam sua aparência na experiência no cativeiro, a amostra reflete as maneiras pelas quais utilizavam esses objetos para criarem identidades e pertencimentos de diferentes níveis em suas interações sociais (em linhas de gênero, raça, classe e etnicidade). Na análise que segue, procuro mostrar como alguns dos artefatos pessoais recuperados nas escavações arqueológicas do Colégio podem ser úteis para o entendimento das construções de identidade entre indivíduos escravizados no passado.
Botões De diferentes maneiras, botões eram objetos usados na negociação da aparência e da identidade individual, particularmente ao longo de linhas de gênero e classe, entre os habitantes da Fazenda do Colégio. Por serem comprados ou confeccionados separadamente dos tecidos usados para compor a peça de vestuário, havia uma ampla possibilidade de escolha em termos de estilo e valor – essas escolhas, evidentemente, seguiam 284 Das áreas ligadas à senzala, NW8.1 e SE8.8 correspondem a áreas adjacentes à unidade de habitação dos escravos, em extremidades opostas. NW8.3 refere-se a um depósito de refugo localizado próximo a essa habitação, portanto, também relacionado aos escravos. Por fim, as áreas NW 3.7 e N.W. 2.7 dizem respeito ao depósito de refugo referente aos habitantes do Solar.
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regras específicas para cada grupo social. Um total de sessenta e oito botões, de diferentes materiais, foram encontrados nas quatro áreas de escavação. Os botões feitos em ossos foram os mais expressivos da amostra (57,4%) e estiveram presentes em todas as camadas arqueológicas, desde a base do depósito até os níveis superiores, e em todos as áreas de escavação do sítio.285 Nos contextos ligados à senzala do Colégio, botões de ossos representaram 72,5% (37 unidades) da amostra. No depósito ligado ao Solar, por outro lado, apenas 2 exemplares foram encontrados (11,8%). Ao contrastarmos com os botões de porcelana286, percebemos um padrão completamente oposto: enquanto nas senzalas foram encontrados apenas 6 exemplares (11,8%), no setor do Solar representaram 76,4% (13 unidades) da amostra. Desde pelo menos a década de 1830, ao Rio de Janeiro chegavam carregamentos de botões de ossos vindos de diferentes portos do mundo. Em dezembro de 1834, vindo de Hamburgo, o navio dinamarquês Dania trazia em meio a espelhos, canários e flores, os primeiros “botões de ossos” noticiados nos jornais do Rio.287 Cinco anos mais tarde, de Trieste, e carregado com “1 barril de botões de ossos”, aportava o bergantim Maria Tereza.288 Entre os anos de 1847 a 1849, são citados entre os produtos confiscados pela Alfândega brasileira “80 grosas de botões de osso furados para paletós” vindos da Antuérpia289 e “66 grosas de botões de osso para japonas, vindos de Liverpool”.290 285 Botões de ossos são encontrados em contextos europeus e americanos. Os primeiros registros, de fins do século XVII e início do XVIII, caracterizavam-se por uma produção doméstica e artesanal. Em geral, feitos a partir de ossos de vaca cozidos em água ou no vapor, eram limpos e, em seguida, cortados em placas longitudinais, a partir das quais se tiravam discos em diferentes tamanhos por meio de uma serra circular. Por fim, eram polidos e perfurados (com 1, 2, 3, 4 ou 5 furos) para permitir a costura na peça de vestuário. LUSCOMB, Sally. The collector’s Encyclopedia of Buttons. Atglen: Schiffer Publishing, 2006 [1967]. p. 25. 286 Os primeiros botões de porcelana foram fabricados no século XVIII, na França. No início caros e luxuosos, popularizaram-se somente quando, em 1840, o inglês Richard Prosser patenteou um novo método com o qual foi possível produzi-los massivamente. Três anos mais tarde, o francês Jean-Felix Bapterosses, que trabalhou nas fábricas de Prosser, patenteou uma nova versão do processo e passou a produzi-los em sua terra natal, que se tornou, a partir de 1860, a principal produtora mundial de botões. SPRAGUE, Roderick. op cit., p. 114-115. 287 Jornal do Commercio, 5 de dezembro de 1834, p. 3. 288 Diário do Rio de Janeiro, 19 de setembro de 1839, p. 3. 289 Gazeta Official do Império do Brasil, 14 de abril de 1847, p. 4. 290 Gazeta Official do Império do Brasil, 19 de agosto de 1847, p. 4.
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A diversidade dos locais de origem desses navios mostra-nos que os botões de ossos eram itens comuns em meados do século XIX, pelo menos onde o comércio marítimo era vivo. Os baixos custos e a facilidade de manufatura permitiam que fossem feitos em qualquer lugar, por qualquer pessoa, desde que se tivesse acesso a alguma ferramenta, matéria prima e conhecimento. Conhecimento, aliás, existia no Rio de Janeiro; e tinha preço: o “preto que faz marcas de botões de ossos” estava à venda por 360$, segundo a notícia publicada no Diário do Rio de Janeiro, de 12 de janeiro de 1847. Alguns meses antes, o mesmo “preto” estava sendo anunciado como um “mestre de fazer botões de ossos”.291 Em geral, os botões de ossos importados eram vendidos em lojas de armarinhos, casas de comerciantes ou em leilões; os fabricados em casa, possivelmente eram consumidos pelos moradores da própria residência, ou destinados às vestimentas dos escravos. Em Campos, o armarinho A Constituição vendia, “chegado proximamente do Rio de Janeiro”, botões de ossos polidos para calças.292 Na praça principal da cidade, o Dr. Luiz Ritter também vendia seus “botões para casacas e botões de ossos para camisas”, trazidos de Hamburgo.293 E mesmo no final do século, em 1882, botões de ossos ainda estavam presentes nos anúncios do Monitor Campista. Na Casa da União, em frente à praça de S. Salvador, vendiam-se “botões de osso para calça”.294 Nessas notícias, além dos valores e dos locais de compra, também é possível constatar as finalidades: para paletó, japonas, casacas, camisas e calças. O edital do Conselho Administrativo para fornecimento do arsenal de guerra da Corte, publicado em agosto de 1854, é ainda mais detalhado. Demandavam “botões de ossos grandes para fardetas de brim e calças” e “botões de ossos pequenos para fardetas de brim, camizas e polainas”.295 De fato, vários anúncios de jornais brasileiros de meados do século XIX apontam que os botões de ossos eram mais comumente usados em calças e em camisas – no vestuário masculino, portanto. Mas não apenas; no vestuário masculino e dos escravos. 291 Diário do Rio de Janeiro, 29 de dezembro de 1846, p. 4. 292 Monitor Campista, 27 de agosto de 1841, p. 4. 293 Monitor Campista, 11 de dezembro de 1840, p. 4. 294 Monitor Campista, 12 de julho de 1882, p. 4. 295 Diário do Rio de Janeiro, 21 de agosto de 1854, p. 3.
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Em 7 de outubro de 1822, Miguel, um “moleque de 18 de idade”, fugiu da casa de seu dono, no Rio de Janeiro. Levou “calças de ganga, colete de pano alvadio sem botões, e camisa de linho cru, com botões de osso adiante”.296 Também o “moleque ladino”, de 15 anos de idade, levara consigo “camisa de brim fino, coletes de linha peta com botões de osso branco”.297 E com “umas calças abertas adiante, com botões de osso e curta nas pernas” fugiu Antônio, de nação Moçambique, da Casa do Hospício do Rio de Janeiro no dia 5 de agosto de 1839.298 Com efeito, botões de ossos eram o tipo mais comum usado pelos escravos em suas calças, camisas e coletes. Não à toa, os botões que a Fábrica de Pólvora do Rio de Janeiro demandava para o “vestuário dos africanos livres e escravos da nação” que ali passariam a trabalhar, eram os mesmos “botões de ossos furados” descritos nos anúncios de escravos foragidos. O fato de 37 dos 39 botões de ossos do sítio (cerca de 95%) terem sido encontrados nas áreas de senzala não é mera coincidência. Quanto aos botões de porcelana, em 1849, já há notícias de sua chegada nos portos brasileiros. Leiloavam-se do navio Ville de Rio, vindos do porto francês de Havre, “10 maços de botões de porcelana para camisas”.299 Um ano depois, já estavam à venda em armarinhos no centro do Rio de Janeiro: na rua São Pedro vendiam-se “grosas de botões de porcelana para camisas”.300 À exceção de serem usados em camisas masculinas, como sugerem os anúncios, Neal Ferris avalia que também eram presos em vestidos e em roupas infantis, embora em menor frequência.301 De fato, o aumento da produção e as sucessivas melhorias no processo produtivo a partir de 1860 na França, ampliou as possibilidades de uso para mulheres e crianças, já que, antes, usavam apenas laços e colchetes – estes últimos, importantes demarcadores da identidade feminina nos sítios arqueológicos anteriores àquela data.302 296 Diário do Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1822, p. 48. 297 Diário do Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1829, p. 4. 298 Jornal do Commercio, 6 de agosto de 1839, p. 4. 299 Correio Mercantil e Instructivo, Político, Universal, 4 de dezembro de 1849, p. 3. 300 Correio Mercantil e Instructivo, Político, Universal, 10 de julho de 1850, p. 3. 301 FERRIS, Neal. Buttons I have known. Newsletter of the London Chapter. Ontario Archaeological Society, 1984. p. 6. 302 WHITE, Carolyn. American Artifacts… op cit., p. 167.
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São raros, se não inexistentes, os anúncios em que escravos são descritos com botões de porcelana em suas vestes. Não que não os usassem, ou que não tivessem condições de comprá-los. Como vimos, as possibilidades de aquisição de itens de vestuário entre eles era comum, fosse pela compra propriamente dita ou pela reutilização de itens de seus senhores, por exemplo. O ponto, portanto, é que talvez não quisessem, não gostassem. E por vários motivos. Afirmar que os botões mais baratos eram mais comuns entre os escravos enquanto que os mais caros o eram entre os moradores da casa grande é, por certo, constatar o óbvio. Não há dúvidas de que os moradores da casa grande tinham acesso diferenciado aos itens mais valorizados e que as restrições impostas aos escravos refletiam em sua vida material. Entretanto, os gostos e as escolhas, como já argumentou Pierre Bourdieu, não são determinados apenas pelo capital econômico, mas por um feixe de condições específicas de socialização que passam, sim, pelas condições econômicas, mas também por práticas culturais e sociais vividas por cada sujeito ou grupo diferentemente.303 Essas práticas são, por sua vez, marcadas pelo processo de habituação, ambientado no grupo e na cultura (na qual a materialidade é central). Focar nas diferenças econômicas entre os itens presentes na senzala e na casa grande é olhar apenas para afirmação da estrutura de poder (econômico, mas também simbólico) na senzala. Mas é igualmente interessante perceber que essas diferenças indicam preferências, escolhas e gostos ligados a identidades. Se por um lado a presença de botões, tanto nas senzalas, quanto no Solar, “é uma marca forte da identidade masculina”304, como argumentou Carolyn White, por outro, a diferença entre o tipo de material majoritário em cada uma dessas áreas, de ossos ou porcelanas, indica que como e com o que se vestir era essencial nas percepções do ser senhor e do ser escravo.
303 BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma Teoria da Prática. In: ORTIZ, Renato (Org.). Sociologia. São Paulo: Ática, 1983 [1972]. p. 46-82; BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007 [1979]. 304 WHITE, Carolyn. Personal Adornment and Interlaced Identities at the Sherburne Site, Portsmouth, New Hampshire. Historical Archaeology, v. 42, n. 2, 2008. p. 27.
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Figura 6.1 - Botões de ossos e de porcelana da Fazenda do Colégio. Fonte: A Autora.
Contas de colar Dos pequenos artefatos encontrados em sítios arqueológicos relacionados à diáspora africana, as contas de colar foram as que mais receberam a atenção dos arqueólogos – seja pela maior quantidade com que são encontradas em relação aos demais artefatos pessoais, ou por sua dispersão intercontinental.305 Não é exagero afirmar que as contas tinham importante papel entre as populações de origem africana nos diversos contextos do Atlântico Negro, para usar a expressão de Paul Gilroy.306 São onipresentes nas descrições (escritas e imagéticas) de africanos e seus descendentes e recuperadas arqueologicamente em muitos sítios, na África e nas Américas. Diferente de grande parte dos contextos onde são frequentemente encontradas, as contas do Colégio dos Jesuítas não estavam rela305 Cf. SINGLETON, Theresa. The Archaeology of Slave Life. In: CAMPBELL, Edward; RICE, Kym (Eds.). Before Freedom Came: African-American Life in the Antebellum South. Charlottesville: University Press of Virginia, 1991. p. 155-175; YENTSCH, Anne. A Chesapeake Family and Their Slaves. Cambridge: Cambridge University Press, 1994; STINE, Linda F.; CABAK, Melanie A.; GROOVER, Mark D. Blue beads as African- American cultural symbols. Historical Archaeology, v. 30, 1996. p. 49-75; HEATH, Barbara. Buttons, Beads, and Buckles: Contextualizing Adornment within the Bounds of Slavery. In: FRANKLIN, Maria; FESLER, Garrett (Ed.). Historical Archaeology, Identity Formation, and the Interpretation of Identity. Richmond: Colonial Williamsburg Research Publications, Colonial Williamsburg Foundation, Dietz Press, 1999. p. 47-70. 306 GILROY, Paul. op cit.
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cionadas a sepultamentos. Foram localizadas individualmente em meio a outros materiais, tanto em áreas de depósito de lixo, como de convivência. Apesar da presença modesta no registro arqueológico – somaram 25 itens, em que a maioria foi encontrada nos setores ligados à senzala (76%) –, na “vida real”, as contas eram intensamente usadas pelas mulheres e homens escravizados e libertos no Brasil do século XIX em suas experiências diárias. Ao que parece, e sabemos que isso não era uma regra, eram usadas abertamente, sem que precisassem ser escondidas dos olhos de seus senhores – talvez por não desvendarem facilmente os significados e simbolismos a elas atribuídos.307 O volume de pesquisas realizadas nos Estados Unidos permite dizer que eram largamente acessíveis aos escravos, dependendo, é claro, da capacidade que tinham de acumular recursos e dos locais de moradia.308 No Brasil, essa ainda não é uma conclusão precisa, mas se supõe que o cenário não fosse muito distinto. Em pesquisa nos anúncios de jornais cariocas da primeira metade do século XIX, Patrícia Brito identificou 134 ocorrências de navios estrangeiros que desembarcaram com contas de vidro no Rio de Janeiro entre os anos e 1825 e 1850.309 Também em Campos, a oferta de contas era ampla, em grande medida devido à proximidade com o mercado carioca, mas também pela grande demanda. A economia açucareira no período encontrava-se em plena ebulição e crescimento, o que surtia efeitos sobre a demanda por mão-de-obra africana para o trabalho nas lavouras e engenhos. O Monitor Campista de 24 de agosto de 1841, por exemplo, anunciava a chegada de “grande sortimento de rosetas, corais, rosários de contas inglesas, missangas finas” na casa de negócios de Possidonio Pedro Torcatto.310 No armarinho de Clemente Magalhães Bastos, estavam à venda “contas finas douradas de vários tamanhos, coral fino e outras muitas miudezas, tudo por preço cômodo”.311 Nesses anúncios, é interessante notar o uso repetido da palavra “fino” para adjetivar as contas de vidro ou 307 YENTSCH, Anne. op cit., p. 191; LARA, Silvia H. Sedas, panos... op cit., p. 184. 308 THOMAS, Brian; THOMAS, Larissa. op cit., p. 112. 309 BRITO, Patrícia. op cit., p. 116. 310 Monitor Campista, 24 de agosto de 1841, p. 4. 311 Monitor Campista, 26 de agosto de 1835, p. 4.
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de coral, dando a entender que os objetos à venda seriam mais requintados e distintos de outros similares. Se havia a necessidade de qualificar as contas de vidro por sua fineza, era para que se diferenciassem de contas mais grosseiras também existentes no mercado, possivelmente usadas por um público também grosseiro aos olhos dos leitores do Monitor. Missangas finas eram destinadas às senhoras leitoras; “missangas de cor”, como as que estavam à venda na rua da Direita no Rio de Janeiro, eram “para negócio na Costa d’África”, segundo dizia um anúncio do Diário, publicado em 1835.312 Embora as contas de vidro coloridas não apareçam nos anúncios de venda dos armarinhos de Campos, pois, como sugerido, esses anúncios eram dirigidos ao seleto público alfabetizado, elas figuram em outro tipo de anúncio: de escravos fugidos. Mariana, nação Benguela, costumava vender agulhas e alfinetes antes de fugir com seu “colar de contas verdes no pescoço”.313 Paulina, também de nação Benguela, “levou unicamente vestida um pano em roda do corpo, no pescoço um colar de missangas de vidros e brincos do mesmo nas orelhas”.314 E também a preta Roza, levara “dois vestidos de chita, um pano da costa e uma missanga azul no pescoço”.315 Nos Estados Unidos, contas de colar azuis, como as usadas por Roza, são as mais comuns entre as recuperadas em sítios arqueológicos ligados a escravos. Linda Stine e colegas justificaram essa maior frequência com base nos significados simbólicos que os escravos afro-americanos, em sua maioria descendentes de africanos centrais e ocidentais, atribuíam à cor azul e às contas de colar: seriam uma forma de proteção física e espiritual contra diferentes males.316 A cor azul também foi predominante entre as contas de colar encontradas no Cais do Valongo, no Rio de Janeiro.317 Tânia Lima, Marcos Souza e Glaucia Sene sugeriram que a maior representatividade de uma dada cor de conta poderia estar relacionada com práticas religiosas do grupo africano predominante no contexto onde 312 Diário do Rio de Janeiro, 16 de julho de 1835, p. 2. 313 Diário do Rio de Janeiro, 13 de fevereiro de 1823, p. 4. 314 Diário do Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1827, p. 4. 315 Diário do Rio de Janeiro, 29 de maio de 1844, p. 4. 316 STINE, Linda F.; CABAK, Melanie A.; GROOVER, Mark D. op cit. 317 BRITO, Patrícia. op cit., p. 139.
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foram encontradas.318 Assim, a popularidade de contas azuis no Rio de Janeiro, em comparação com a maior representatividade de contas brancas encontradas na Sé de Salvador, na Bahia, poderia ser explicada pela maior presença de centro-africanos na primeira cidade e de africanos ocidentais na segunda. Sem querer encontrar raízes africanas para práticas verificadas no novo mundo, os autores atentaram para o fato de que as duas regiões brasileiras recebiam diferentes influências, determinadas tanto pela presença desigual de grupos africanos em cada uma delas, quanto pela disponibilidade de materiais que chegavam por rotas comerciais também particulares. Ainda que a hipótese precise ser verificada com exemplos de outros contextos, deve-se considerar que a disponibilidade de materiais e as redes comerciais que uniam outros continentes a essas duas regiões impactavam e eram impactadas pelas escolhas desses grupos. No caso da Fazenda do Colégio, contas brancas (n=9) e azuis (n=9) foram encontradas em igual quantidade, apesar da predominância de grupos centro-africanos na região de Campos – o que contestaria a sugestão levantada por Lima e colegas. Outras cores, como âmbar, vermelho e preto, não somaram mais que 5 itens. Deve-se considerar, porém, que tanto as contas de colar encontradas no Valongo, no Rio de Janeiro, como na Igreja da Sé, em Salvador, estavam associadas a escravos africanos. Esse dado é importante, pois talvez de fato existisse entre os escravos recém chegados da África certa preferência por uma cor específica de conta, relacionada com um sistema cosmológico também específico. No entanto, essa talvez não fosse a realidade nos contextos já bastante crioulizados, a exemplo da comunidade escravizada da Fazenda do Colégio. Para o contexto do Colégio, portanto, mais interessante do que perceber se as contas azuis ou brancas foram predominantes e a qual grupo africano elas estariam associadas, é verificar que o uso de contas de colar continuou entre os descendentes dos africanos que chegaram na Fazenda, embora não necessariamente da mesma forma ou com o mesmo sentido. Não que com isso se defenda uma suposta pureza da cultura africana que, 318 LIMA, Tânia; SOUZA, Marcos A.; SENE, Glaucia. Weaving the Second Skin: Protection Against Evil Among the Valongo Slaves in Nineteenth-century Rio de Janeiro. Journal of African Diaspora Archaeology & Heritage, v. 3, n. 2, nov., 2014. p. 113.
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por ser tradicional, manteve-se no tempo. De outra forma, sustento que se as contas de vidro foram encontradas nos contextos ligados à senzala do Colégio, era porque ainda fazia sentido usá-las na composição das experiências corporais e individuais diárias. Ainda que a amostra seja pequena para que maiores conclusões sejam tiradas, a análise por área da escavação pode indicar alguns padrões. Nas escavações de uma extremidade da senzala (áreas NW8.1 e NW8.3 – ver Figuras 2.1 e 2.2), cujo período deposicional data da primeira metade do século XIX, há predominância de contas médias e grandes, de formato esférico e cilíndrico. Por outro lado, na extremidade oposta (área SE8.8), datada da segunda metade daquele século, verifica-se maior diversidade de tipos, nos quais os de formato tubular e de tamanhos pequenos são dominantes. Esses dados podem indicar uma diferenciação no acesso às contas de vidro, pelos escravos, na primeira metade do século XIX e na segunda. Mas também podem demonstrar distinções no interior da comunidade escravizada da Fazenda, que, por estarem localizadas em partes diferentes da senzala, podem ter se agrupado segundo tendências (religiosas, culturais, raciais) distintas.
Figura 6.2 - Contas de colar representativas do sítio do Fazenda do Colégio. Fonte: A Autora
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Braceletes e anéis em cobre Na Fazenda do Colégio, placas e filetes feitos em metal martelado encontrados nas áreas da senzala podem ter sido usados como braceletes, pulseiras ou tornozeleiras. Não se exclui a possibilidade de terem sido usados para outros fins, no entanto, pela frequência com que aparecem nas descrições e representações dos escravos no Brasil, sobretudo na primeira metade do século XIX, é muito provável que tenham sido empregados na ornamentação pessoal. De produção simples e artesanal, podem ter sido feitos pelos próprios escravos a partir da reciclagem de outros objetos, principalmente tachos de cobre usados no engenho para a fabricação do açúcar. A preferência pelas ligas de cobre pode estar relacionada não apenas ao baixo valor econômico do metal – talvez mais acessível –, mas também aos significados simbólicos que lhe atribuíam muitas populações africanas e seus descendentes nas Américas. Ornamentos feitos em cobre possuem longa existência na África. Produzidos pela metalurgia local, ou adquiridos pelo comércio saariano, o cobre e o ferro eram produtos essenciais para muitas sociedades da chamada África Negra. Enquanto o ferro forneceu matéria prima para ferramentas e armas, o cobre era o metal mais apreciado para a realização de objetos de arte, de luxo e usado em rituais.319 Os sentidos que o ferro e o cobre tinham entre os africanos eram certamente muito distintos daqueles entre os povos europeus e árabes, que os viam como a base material para utensílios de uso diário, dando ao ouro e à prata o caráter precioso e, portanto, valorativo. Em verdade, o ouro tinha pouco efeito entre os africanos antes da chegada dos europeus no continente e somente com o estímulo da demanda externa é que passou a ser explorado e apreciado. No lugar do ouro, era o cobre o metal mais precioso no tradicional sistema de valores africano.320 Para Eugenia Herbert, a sacralização do cobre entre as sociedades africanas baseava-se, em primeiro lugar, na cor. O vermelho “carrega 319 Cf. DEVISSE, Jean; VANSINA, Jan. A África do século VII ao XI: cinco séculos formadores. In: EL FASI, Mohammed (Ed.). História geral da África, III: África do século VII ao XI. v. III, Brasília: Unesco, 2010. p. 903; HERBERT, Eugenia. Red Gold of Africa: copper in precolonial History and Culture. Londres: The University of Wisconsin Press, 1984. p. 19. 320 HERBERT, Eugenia. op cit., p. 10.
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as múltiplas conotações do sangue: sacrifício, execução, guerra por um lado, fertilidade e vitalidade por outro. [...] Sua presença é frequentemente uma declaração de agressividade, do poder de tirar a vida”.321 Da mesma maneira que a cor vermelha carrega a condição de ambiguidade (entre a vida e a morte), também o cobre, por sua cor, instaura as mesmas ambiguidades no contexto de seu uso – potencializa quem ataca e protege o atacado. Assim, o uso de objetos feitos em cobre responderia a duas preocupações inseparáveis: “adornar e proteger”.322 Braceletes e tornozeleiras, a forma mais comum de ornamentos usados pelos africanos, eram “formados pelo simples dobrar de uma haste na forma de um anel aberto ou fechado”.323 Dotavam de maior força física àqueles que os usavam – e é interessante que fossem usados justamente nos membros mais exigidos pela força, braços e pernas. Não é de se espantar, portanto, que em algumas regiões da África, fossem itens especialmente usados por caçadores, guerreiros e chefes locais.324 Em 1846, o viajante norte-americano Thomas Ewbank já conseguia identificar algumas “nações” de africanos no Rio de Janeiro pelo uso de objetos específicos – ou, nas palavras de Manuela Carneiro da Cunha, os sinais diacríticos escolhidos pelo grupo para se diferenciar dos demais. Apesar de ter ficado apenas 8 meses na cidade, percebeu que algumas lavadeiras, que usavam “um único vestimento, com muitos enfeites”, eram “jovens Minas e Moçambique, como se [via] por suas formas superiores e por seu amor aos adornos”.325 Também Jean Luis Agassiz e sua esposa 321 Ibidem, p. 279. 322 Ibidem, p. 264. Em artigo sobre arqueologia da religião entre os afro-americanos, Charles Orser também percebeu que braceletes e “alguns anéis podem ter tido funções duais”. Disse Orser que “se deve assumir que qualquer anel encontrado em um sítio ligado aos escravos pode ser de alguma forma relacionado ao sistema tradicional de crenças”. ORSER, Charles. The Archaeology of African-American Slave Religion in the Antebellum South. Cambridge Archaeological Journal, v. 4, n. 1, 1994, p. 41. 323 HERBERT, Eugenia. op cit., p. 76. 324 Godhi Bvocho notou que placas de cobre e bronze usadas em braceletes e anéis eram importantes símbolos de riqueza entre algumas comunidades do sul da África. BVOCHO, Godhi. Ornaments as social and chronological icons. A case study of southeastern Zimbabwe. Journal of Social Archaeology, v. 5, n. 3, 2005. p. 410. 325 EWBANK, Thomas. Vida no Brasil, ou Diário de uma visita à terra do cacaueiro e das palmeiras. Com um Apêndice, contendo ilustrações das artes sul-americanas antigas. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1976 [1856]. p. 93.
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Elizabeth assim descreveram uma jovem “mina” no Rio de Janeiro, em 1865: “cruzamos com uma preta toda vestida de branco, o colo e os braços nus, as mangas arregaçadas e presas em uma espécie de bracelete”.326 Para o casal, ela “fazia com certeza parte da aristocracia negra, porque do outro lado da rua, outra preta quase sem roupa, sentada nas pedras da calçada, com seu filho nu adormecido nos joelhos deixava luzir ao sol a pele escura e lustrosa”.327 Em outra passagem, também identificaram uma mulher mina pelo uso de ornamentos: ela “traz geralmente aos pulsos braceletes apertados, de missangas, cujas ricas cores dão realce à finura das mãos que se casam admiravelmente com o tom bronzeado e luzidio de sua pele”.328 Jean Baptiste Debret, algumas décadas antes, também descreveu as vestimentas de uma mulher livre vendedora de milho no Rio de Janeiro: “reconhece-se pelos seus braceletes de cobre, que é nação monjola”.329 O viajante não trouxe mais detalhes sobre o tal bracelete, nem explicou o porquê da associação com a dita “nação” – além do fato do bracelete ser feito em cobre. Mas deu pistas para entender que os ornamentos, se não eram usados conscientemente para demarcar identidades, eles de fato o faziam. A certeza de que a vendedora de milhos era uma monjola foi dada em grande medida pelos braceletes que usava. É evidente, no entanto, que no interior de uma mesma “nação” nem todos os indivíduos usavam os mesmos ornamentos ou da mesma maneira. Além da vendedora de milhos descrita pelo viajante, outros escravos foram retratados com pulseiras nos braços nos jornais cariocas da primeira metade do XIX. A escrava Maria, nação Benguela, tinha no “braço esquerdo uma argola de latão”.330 Rofino, um “preto cor fula”, costumava andar com uma “argola de aço no pulso direito”.331 Maria Rebola, de 19 anos, tinha “uma volta de missanga azul e argola de metal amarelo no braço direito”.332 Antonio, nação congo, levava “uma argola de ferro em 326 AGASSIZ, Luiz; AGASSIZ, Elizabeth C. Viagem ao Brasil (1865-1866). Belo Horizonte: Itatiaia, 1975 [1868]. p. 46. 327 Ibidem, p. 47. 328 Ibidem, p. 69. 329 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Martins, 1940 [1835]. p. 179. 330 Diário do Rio de Janeiro, 4 de setembro de 1825, p. 4. 331 Diário do Rio de Janeiro, 22 de maio de 1837, p. 4. 332 Diário do Rio de Janeiro, 12 de março de 1830, p. 1.
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um braço”.333 E em Campos, a escrava Larinia, de “cor fula”, levava uma “argola de aço no braço direito”, segundo anunciou o Monitor Campista.334 Pelos anúncios, o uso das argolas nos braços não parece ter sido exclusividade de homens ou de mulheres. Ao contrário, aparecem associadas a ambos. O que nos chama a atenção, no entanto, é que dos escravos que são denominados pela respectiva “nação”, todos são centro-africanos: Maria Benguela, Maria Rebola, Antônio Congo, além da negra livre monjola citada por Debret. Ainda que as informações contidas nos anúncios de escravos foragidos devam ser usadas “com a maior das cautelas”335, não sendo possível afirmar que braceletes de cobre eram usados apenas por escravos de origem banto, eles nos indicam certa tendência, que se soma, por sua vez, com as observações feitas pelo viajante francês.
Figura 6.3. Placas, anéis e argolas de cobre encontrados na senzala do Colégio dos Jesuítas. Fonte: A Autora. 333 Diário do Rio de Janeiro, 14 de fevereiro de 1822, p. 4. 334 Monitor Campista, 23 de setembro de 1878, p. 3 335 FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. 2 ed. São Paulo: Brasiliana, 1979 [1963]. Freyre chamou a atenção para as fraudes e maquiagens no processo de produção desses anúncios, embora considerasse pertinente o seu uso como fonte histórica para as interpretações de caráter antropológico. Também para Lilia Schwarcz, os anúncios e notícias de jornais não devem ser entendidos como fatos que “realmente aconteceram”, mas como “situações plenas de significação”, ou seja, como “produtos sociais” feitos de expectativas e representações específicas que comportam uma variedade de interpretações. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 [1987]. p. 9-10.
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Além das placas marteladas, outros adornos presentes na amostra foram dois anéis de cobre. A menção a anéis entre os escravos nos anúncios de jornais é bastante reduzida. Talvez por serem itens de menor destaque em comparação com roupas e demais ornamentos fossem desconsiderados pelos anunciantes na identificação de seus escravos fugidos. Alguns exemplos, no entanto, citam “uma argola de latão no dedo da mão esquerda”, usada por Manuel, nação monjolo336 e “uma argola amarela em um dos dedos de uma mão”, como a de Paulo, nação Moçambique.337 Ambos os anúncios referem-se a escravos homens. É possível, portanto, que tal como os braceletes, os anéis fossem usados sem distinção de gênero. Sobre a origem étnica, uma passagem do jornalista francês Charles Ribeyrolles pode ser interessante. Ao descrever a hierarquia entre as quitandeiras no mercado do Rio, percebeu que: “agachadas ou marchando atrás das senhoras vão as negras do Congo, Moçambique, Benguella, Anguiz. É o proletariado negro, em saias amarrotadas, bochechas tatuadas e anéis de cobre”.338 Em contraste com as negras mina, que para ele compunham “a aristocracia da barraca negra”, as negras do Congo, Moçambique e Benguela diferenciavam-se pelo pouco luxo ao trajar: e pelo uso de adornos em cobre. As descrições sobre os ornamentos usados pelos escravos presentes nos anúncios de jornais e nos relatos dos viajantes estrangeiros durante o século XIX, no Rio de Janeiro, indicam forte correlação entre os escravos centro-africanos e os ornamentos feitos em cobre. Os artefatos pessoais encontrados nas áreas da senzala do Colégio dos Jesuítas, em sua maioria feitos com esse material, podem ter sido conscientemente fabricados em vista do duplo sentido (de ornamentação e proteção) que possuíam entre aquelas sociedades tradicionais, considerando que esses grupos eram majoritários na região de Campos.
Argolas No Brasil, registros escritos e iconográficos confirmam o costume amplamente generalizado entre os escravos de portar objetos dos 336 Diário do Rio de Janeiro, 11 de janeiro de 1844, p. 4. 337 Diário do Rio de Janeiro, 29 de maio de 1844, p. 4. 338 RIBEYROLLES, Charles. Brasil pitoresco. Belo Horizonte: Itatiaia / São Paulo: Edusp, 1975 [1859]. p. 230.
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mais variados em suas orelhas. Em especial um tipo foi frequentemente listado nas descrições dos escravos fugidos nos anúncios do Diário do Rio de Janeiro: a argola.339 Ainda que esses anúncios informem sobre uma amostra bastante específica dos grupos escravizados – aqueles foragidos –, é interessante observar alguns padrões, que podem estar relacionados às identidades de grupo, étnicas (entre diferentes regiões da África) e raciais (entre africanos, crioulos e cabras, por exemplo). Entre os escravos da África Central, além de especificações sobre em quais orelhas traziam suas argolas, em geral na esquerda, havia certa preferência às argolas feitas em ouro ou metal amarelo. O “preto de ganho” Francisco, nação Monjolo, trazia “argola na orelha esquerda”.340 Igualmente na orelha esquerda, o “preto” José, de nação Congo, tinha “uma bixa de ouro”.341 Na impossibilidade de terem ouro em suas orelhas, alguns improvisavam com “uma argola de ouro falso”, como Pedro, nação Cabinda.342 Outros, carregavam pingentes pendurados nas argolas: eram figas, meia luas e corações. Feliciano, um “molecote de nação Cabinda”, tinha “a orelha esquerda furada, e nela uma argola de ouro com meia lua”.343 Também Cabinda, Antônio levava uma “bixa de ouro com coração” na orelha esquerda344 e Antônio, nação Ganguela, tinha uma “bixa na orelha com uma figa”.345 Além das argolas nas orelhas, Clementina, tinha “uma só bixa na orelha e duas contas azuis no braço esquerdo”346 e “uma preta” levava “argolas nas orelhas e na orelha esquerda um bocadinho menos, com uma conta de leite no pescoço”.347 Coincidência ou não, na imagem 339 Como as argolas do Colégio foram encontradas em depósitos da primeira metade do século XIX, os jornais consultados restringiu-se ao período de 1820 a 1845, em razão da disponibilidade dos números do Diário do Rio de Janeiro digitalizados pela Hemeroteca Digital Brasileira. A escolha do Diário baseia-se no fato de ainda não estar disponível os números do Monitor Campista desse mesmo período. 340 Diário do Rio de Janeiro, 17 de setembro, 1821, p. 4 341 Diário do Rio de Janeiro, 30 de outubro de 1822, p. 3. 342 Diário do Rio de Janeiro, 17 de abril de 1837, p. 4. 343 Diário do Rio de Janeiro, 6 de abril de 1832, p. 4. 344 Diário do Rio de Janeiro, 27 de setembro de 1837, p. 4. 345 Diário do Rio de Janeiro, 29 de janeiro de 1834, p. 4 346 Diário do Rio de Janeiro, 21 de novembro de 1831, p. 4. 347 Diário do Rio de Janeiro, 1 de outubro de 1821, p. 8.
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do escravo centro-africano (Congo) feita por Rugendas em sua passagem pelo Brasil, entre os anos de 1821 a 1825 (ver adiante), o detalhe está justamente no lado esquerdo. Os escravos vindos da Costa Ocidental, chamados de minas no Rio de Janeiro, também levavam mais comumente a argola na orelha esquerda, embora o ouro não fosse material tão recorrente como entre os africanos centro-ocidentais. Dizia o anúncio de 1824 que Manoel, “rapaz ainda sem barba, com sinais na cara e dentes limados”, tinha “argola na orelha esquerda”.348 Dois anos depois, José é descrito com “uma bixa muito fina na orelha esquerda”349 e Matheus, em 1827, também com “uma argola na orelha esquerda”.350 Além de homens, mulheres minas também usavam argolas nas orelhas. É recorrente, nos relatos de viajantes, a descrição de mulheres minas que, ornamentadas com brincos, pulseiras e colares, dedicavam-se ao trabalho de ganho, como verdureiras e quitandeiras. Charles Expilly, por exemplo, descreveu como a escrava mina Manuela conseguiu, pelo trabalho como quitandeira, “que o seu pescoço, as suas orelhas, os seus dedos se [cobrissem] de colares, brincos e anéis”.351
Figura 6.4 - Diferentes “nações” de escravos e seus ornamentos. Fonte: Rugendas, 1972.
Entre os africanos orientais, é comum encontrar anúncios que os descrevam com argolas em ambas as orelhas e, tal como entre os escravos 348 Diário do Rio de Janeiro, 7 de maio de 1824, p. 4. 349 Diário do Rio de Janeiro, 29 de setembro de 1826, p. 4. 350 Diário do Rio de Janeiro, 21 de julho de 1827, p. 4. 351 EXPILLY, Charles. Mulheres e Costumes do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1935 [1863]. p. 112.
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de nação Mina, não há clara preferência pelo ouro. Miguel, “moleque de nação Moçambique”, tinha estatura baixa, sinais miúdos de sua terra na testa e “ambas as orelhas furadas, e na esquerda uma argola com uma figa de ouro”.352 Antônio, “moleque Moçambique”, também tinha ambas as orelhas furadas e trazia “em uma delas uma bixa grande de latão”.353 Outro “preto de nação Moçambique” tinha “ambas as orelhas furadas, e uma argola em cada uma”.354 De nação Quelimane, um “moleque” carregava “argola de prata na orelha esquerda”355 e outro “preto, uma argola de latão com uma conta azul na orelha esquerda e umas contas enfiadas em arame de latão no pescoço”.356 Interessante que também no desenho de Rugendas o escravo de nação Moçambique apareça com argolas em ambas as orelhas, como os anúncios indicaram. Na Fazenda do Colégio, 8 argolas foram encontradas nas áreas ligadas à ocupação dos escravos. Como visto, eram itens de ornamentação usados por escravos de várias “nações” africanas no Rio de Janeiro. Mas não apenas. Em verdade, o uso de argolas nas orelhas era prática comum em várias outras sociedades e não necessariamente são evidências da continuidade de um costume africano entre os escravos brasileiros – sobretudo num contexto em que a totalidade dos escravos já eram nascidos no Brasil, como na Fazenda do Colégio. Na própria rua da Alfândega, no Rio de Janeiro, argolas eram vendidas aos centos e a varejo, bem como aplicadas “por preço módico”, segundo o anúncio publicado em setembro de 1843.357 Mais interessante do que discutir se a prática foi simplesmente reproduzida ou, de outra maneira, recriada no Brasil, é perceber que, de fato, continuou a existir entre os descendentes brasileiros dos escravos africanos, isto é, entre os escravos descritos como crioulos, pardos e cabras. A continuação das práticas de ornamentação, que não necessariamente precisa ser vista como um ato de resistência à dominação senhorial, foi um mecanismo através do qual os indivíduos escravizados criaram laços identitários gera352 Diário do Rio de Janeiro, 23 e junho de 1823, p. 4. 353 Diário do Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1832, p. 3. 354 Diário do Rio de Janeiro, 4 de março de 1829. p. 4. 355 Diário do Rio de Janeiro, 3 de março de 1823, p. 4. 356 Diário do Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 1831, p. 4. 357 Diário do Rio de Janeiro, 21 de setembro de 1843, p. 4.
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cionais. Dizia o anúncio de 20 de agosto de 1825 que Sebastião, “crioulo vindo do Maranhão”, tinha “uma argola de metal na orelha esquerda”.358 Como ele, o “crioulo Sebastião”, de apenas 10 anos, tinha “a orelha esquerda furada com argola de ouro”.359 Outros, como Manoel, “pardo escuro”, tinha uma “bixa na orelha”360 e o escravo, descrito como cabra, trazia uma “bixa a orelha esquerda”.361 Também Semiana, “crioula da Bahia”, tinha “bixa nas orelhas com corações nas mesmas”362, tal como os pingentes usados pelos escravos Cabindas descritos no mesmo jornal. Se a diferença no uso das argolas pôde ser verificada entre os escravos africanos – os que mais frequentemente apareciam nos anúncios de escravos foragidos – foi igualmente interessante perceber a continuidade da prática entre os escravos crioulos, pardos e cabras, como uma prática geracional que fazia sentido. Tal como os exemplos identificados, os escravos da fazenda do Colégio também podem tê-las usado para essa finalidade.
Moedas perfuradas Recuperadas em sítios arqueológicos nas Américas, moedas perfuradas são frequentemente associadas a práticas mágicas de origem africana.363 Na fazenda do Colégio, foram encontradas duas: uma datada de 1819 e outra possivelmente de 1821; ambas feitas em cobre. A perfuração indica – e isso é o que a torna interessante – que outros aspectos foram mais significativos para aquele que a modificou do que seu valor econômico. Charles Orser afirmou que eram usadas por ex-escravos da Geórgia “como amuletos para evitar o mal” e de Oklahoma “para se protegerem de vodus”.364 De acordo com Tereza Singleton, alguns escravos “usaram-nas para sorte e outros para prevenir reumatismo, mas a maioria usava moe358 Diário do Rio de Janeiro, 20 de agosto de 1825, p. 4. 359 Diário do Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1825, p. 4. 360 Diário do Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1834, p. 4. 361 Diário do Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1821, p.4. 362 Diário do Rio de Janeiro, 20 de janeiro de 1834, p. 6. 363 Embora seu uso não seja uma exclusividade da África, tendo sido presente na Europa desde pelo menos a Idade do Bronze, como demonstrou James Davidson, a prática foi rapidamente incorporada pelos africanos a partir do contato com os colonizadores europeus. DAVIDSON, James. Rituals Captured in Context and Time: Charm use in North Dallas Freedman’s Town (1869-1907), Dallas, Texas. Historical Archaeology, v. 38, n. 2, 2004. p. 27. 364 ORSER, Charles. op cit., p. 41.
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das para a proteção contra o mal”.365 Também Amy Young interpretou-as como amuletos usados pelas populações afro-americanas “para prevenir açoites e outros infortúnios, para atrair amantes, para cura e boa sorte”.366 Ao redor do pescoço e para o tratamento de doenças parece ter sido a forma mais comum de uso das moedas perfuradas entre os escravos norte-americanos e descendentes, segundo relatos de ex-escravos.367 Apesar de relatos semelhantes serem raros no Brasil, sobretudo os que se referem a objetos de uso cotidiano, o uso de moedas de cobre para fins medicinais está presente em manuais de medicina popular em vários estados brasileiros – resultantes de um processo de mistura de conhecimentos de diferentes origens. O Dicionário de Medicina Popular de Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, publicado em 1851, dizia que para conter hemorragias “interpõem-se ao aparelho peças de moeda que comprimem com muito mais força do que o pano”.368 O mesmo procedimento é descrito na medicina popular do Centro-Oeste: para feridas incuráveis e velhas (úlcera), “colocar em cima um pedaço de cobre (mesmo uma moeda) por bastante tempo”.369 E também no Nordeste: “para curar uma ferida, colocar-se sobre ela, amarrado, um dobrão (moeda antiga) de prata ou de cobre”.370 Especificamente sobre o Ceará, o Barão de Stuart relatou que “entre os muitos remédios de sua terapêutica de cascas e ervas”, o povo trazia como medicina preventiva “pendente ao pescoço até a região epigástrica um cordão em que estava enfiada uma moeda de cobre que chamavam xemxem [moeda de 10 réis]; algumas traziam-na atada às coixas”.371
365 SINGLETON, Tereza. The Archaeology of Slavery in North America. Annual Review of Anthropology, v. 23, 1995. p. 131. 366 YOUNG, Amy. Archaeological Evidence of African-Style Ritual and Healing Practices in the Upland South. Tennessee Anthropologist, v. 21, n. 2, 1996. p. 149. 367 LEE, Lori. Beads, Coins, and Charms at a Poplar Forest Slave Cabin (1833-1858). Northeast Historical Archaeology, v. 40, n. 1, 2011. p. 113-114. 368 CHERNOVIZ, Pedro Luiz Napoleão. Dicionário de medicina popular. Rio de Janeiro: Tipografia Laemmert, v. 2, 1851. p. 363. 369 ORTENCIO, Waldomiro Bariani. Medicina popular do Centro-Oeste. Brasília: Thesaurus, 1997. p. 186. 370 CAMPOS, Eduardo. Medicina popular do Nordeste: superstições, crendices e meizinhas. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1967. p. 72. 371 STUDART, Guilherme. Climatologia, Epidemias e Endemias do Ceará. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997. p. 59-60.
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Figura 6.5 - Placas e moedas perfuradas; placas com incisões; crucifixo e medalha de São Bernardo, com verso de Nossa Senhora encontrados na senzala Colégio dos Jesuítas. Fonte: O Autor.
Além de moedas e de outros objetos de metal circulares, foram encontradas placas com perfurações em diferentes formatos (quadrado, retangular, losangular) na amostra do Colégio. Ainda que não se possa afirmar que tenham sido utilizadas para a mesma finalidade ou que tiveram os mesmos sentidos, eram de cobre e foram modificadas da mesma maneira que as moedas, com um furo central. Para além dos sentidos mágicos, portanto, moedas e placas perfuradas encontradas em contextos escravos são exemplos de como subjetividades foram construídas nas práticas diárias e do papel da cultura material nessas práticas – entre as quais o cuidado medicinal com o corpo é apenas um exemplo. Menos do que saber se foram usadas como amuletos ou para curar feridas, penduradas no pescoço ou carregadas em outras partes do corpo, interessa-nos perceber por quem foram usadas e de que forma o seu uso demarcava fronteiras de diferentes níveis. As diversas alterações feitas nos objetos – marcações, perfurações e inscrições – são formas pelas quais objetos de uso cotidiano foram utilizados para a construção de identidades específicas. Além de identidades étnicas, as inscrições podem também indicar marcas individuais de personalização. Segundo argumentaram White e Beaudry, “em um nível 179
mais básico, a inscrição de nomes ou iniciais do proprietário em objetos cotidianos marcam um objeto como a posse de um indivíduo específico”.372 Nas áreas da senzala da Fazenda do Colégio, placas com inscrições podem ser interpretadas como exemplos de objetos por meio dos quais os discursos sobre a auto identidade e personalidade foram promulgadas. Em duas delas, especificamente, há incisões em forma quadrada e circular. Esses símbolos podem não necessariamente estar relacionados com a expressão religiosa ou de identidades grupais, mas com marcas individuais para tornar o objeto único e com sentido particular. Em outra, destaca-se a representação de uma estrela de seis pontas. Os chamados “signos de Salomão”, comumente associados à fé judaica e muçulmana, foram identificados por Tomas Ewbank entre os amuletos comumente usados no Rio de Janeiro oitocentista e que não necessariamente eram usados por seguidores daquelas religiões.373
Itens religiosos Outro tipo de artefato pessoal encontrado na área da senzala do Colégio dos Jesuítas foram itens católicos, mais especificamente um crucifixo e uma medalhinha com a representação de São Bernardo e, no verso, de Nossa Senhora. A adoção da fé católica entre os escravos da Fazenda do Colégio é, certamente, uma possibilidade. Afinal, a adaptação do escravo a sua nova condição passava pelo aprendizado “do idioma, da oração e do trabalho”, como lembrou Katia Mattoso.374 No entanto, o uso de itens católicos pelos escravos não pode ser lido em termos de uma conversão, no sentido de uma aceitação ou, ainda, imposição; mas como uma negociação, no caso, da identidade religiosa. Diana Loren também notou a elevada frequência de itens religiosos em sítios arqueológicos de contextos missionários norte-americanos. Mas para além de serem indicadores inequívocos de uma conversão ao catolicismo, “crucifixos e outros objetos religiosos são [para a autora] os resíduos das tentativas dos missionários em difundir a ideologia religiosa no Novo Mundo”.375 372 WHITE, Carolyn; BEAUDRY, Mary. op cit., p. 218. 373 EWBANK, Thomas. op cit., p. 104. 374 MATTOSO, Katia Q. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1990 [1982]. p. 107. 375 LOREN, Diana. The archaeology of clothing op cit., p. 65.
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Pois, como parte do processo de evangelização, missionários católicos distribuíam objetos religiosos às populações nativas para que a conversão pudesse ser visualmente e corporalmente efetiva. Apesar de afirmar que muitos nativos de fato incorporaram o cristianismo em suas vidas, o uso desses objetos não necessariamente significou que os sentidos religiosos a eles atrelados fossem assumidos; mas que eles poderiam pública e propositalmente estar “negociando o self no contexto de conversão religiosa”.376 Interpretação similar foi feita por Marina de Mello e Souza sobre a conversão, em 1491, do reino do Kongo ao cristianismo. Contestando a interpretação do cronista Rui de Pina, que teria presenciado os batismos da corte congolesa e visto a aceitação de itens religiosos católicos entre eles, a historiadora argumentou que: O que Rui de Pina não sabia é que, para muitos povos bantos, a cruz era um símbolo de especial importância nas relações entre o mundo natural e o sobrenatural e a representação básica da cosmogonia bakongo, organizada a partir da divisão entre o mundo dos vivos e o dos mortos, sendo um o reflexo do outro, e estando ambos separados pela água. Portanto, é importante ressaltar que, ao adotarem a cruz católica, os congoleses estavam expressando suas crenças tradicionais ao mesmo tempo em que levavam os portugueses a achar que abraçavam integralmente a nova fé.377
Da mesma maneira que no reino do Kongo a cruz, que foi incorporada junto com a fé católica, era também compatível com o sistema religioso local, talvez os objetos católicos encontrados entre os escravos do Colégio também foram usados como substitutos ou potencializadores de outros princípios e valores. O crucifixo e a medalha de Nossa Senhora encontrados na senzala do Colégio são exemplos de objetos diretamente associados à fé católica professada pela camada senhorial. No entanto, estavam estampadas em suportes de cobre, o que poderia ter intensificado o poder do amuleto religioso. Assim, mais do que uma dominação religiosa, o uso desses itens pode estar relacionado a estratégias criadas pelos escravos para a preservação de suas culturas e a construção de identidades no contexto da escravidão. 376 Ibidem, p. 66. 377 SOUZA, Marina de Mello. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002. p. 60.
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Considerações finais Apesar da grande produção historiográfica sobre a vida dos escravos no Brasil, para muitos, os objetos ícones da escravidão foram as algemas, as correntes e os “grilhões [que] não poupavam nenhuma idade e nenhum sexo”.378 Se eles serviram para demarcar quem era ou não escravo ou, mais especificamente, quem deles merecia ou não ser castigado, também marcaram no corpo modos específicos de ser e de se perceber. No entanto, também outros objetos, mais ordinários, e do uso cotidiano, foram tão importantes na construção de suas identidades quanto aqueles que doutrinavam e feriam. A cultura material usada sobre o corpo, essas pequenas e por vezes esquecidas coisas, são o nosso acesso à corporalidade, às identidades e à vida das pessoas no passado. No contexto da Fazenda do Colégio, os artefatos pessoais não podem ser entendidos fora da tensão entre senhores e escravos; e dos modos como essa tensão atuou sobre seus sistemas de crenças e formas de auto expressão. As pesquisas arqueológicas no Colégio têm demonstrado que pelo menos parte dos que ali foram escravizados tinha acesso a bens materiais que não se restringiam à produção local, entre os quais, itens pessoais de vestuário e ornamentação. Embora o consumo desses bens não tenha significado o controle sobre seu status legal, a cultura material foi um importante meio de mediação sobre diversos aspectos de suas vidas diárias. Em contraste com a definição anônima dada pelo vestuário de trabalho que lhes era cedido, puderam mobilizar a cultura material para definirem seu eu, fosse como tentativa de diferenciação – em relação aos senhores –, ou como meio de se envolver em práticas culturais compartilhadas. A presença marcante de contas de colar e ornamentos feitos em cobre, como os braceletes, anéis e brincos ou as moedas perfuradas e itens católicos, indicam não apenas a manutenção de uma visão de mundo tradicional de origem africana entre as diferentes gerações de escravos, mas o uso ativo da materialidade na construção de fronteiras identitárias em diferentes níveis (sociais, étnicas, de gênero). Apesar de permeáveis e fluidas, essas fronteiras foram tecidas pela incorporação – e também recusa – de objetos usados sobre o corpo.
378 EWBANK, Thomas. op cit., p. 94.
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Capítulo 7 Entre jongos e coisas esquecidas: por uma arqueologia da memória na Fazenda do Colégio Fernando Silva Myashita
Introdução A Fazenda do Colégio dos Jesuítas foi, no século XIX, uma das maiores fazendas do norte fluminense, e chegou a contabilizar mais de 1500 cativos.379 Desde 2012, pesquisas arqueológicas têm sido realizadas com a intenção de caracterizar a vida material dos escravos que nela moraram. O projeto tem envolvido escavações intensivas nas áreas adjacentes ao Solar,380 sede da fazenda, nas quais se localizavam as senzalas, segundo indicam relatos históricos. Em forma de quadra, as senzalas conformavam um imenso “U” na parte frontal do Solar. Vestígios da antiga quadra, algumas casas foram ocupadas até meados dos anos 1980, momento em que os trabalhadores da fazenda deixaram o lugar devido à morte do último proprietário ( João Batista Vianna Barroso) e à agregação das terras ao patrimônio do Estado do Rio de Janeiro em função do tombamento do Solar do Colégio. Quando iniciamos as pesquisas e na medida em que as escavações ganharam visibilidade no contexto local, pessoas passaram a nos procurar interessadas em conhecer o trabalho, bem como indicar que alguns dos ex-moradores da área, conhecida como o “arruamento do Colégio”, ainda viviam nas proximidades. Assim, nos encontramos com várias pessoas que tinham vínculos afetivos com o lugar, devido às vivências na infância, lembranças do trabalho e das festas embaladas pelo jongo “do Colégio”. Com efeito, muitos dos últimos moradores tinham recordações de ao menos duas gerações que viveram na Fazenda. Passamos, então, a realizar ativi379 SYMANSKI, Luís C. P.; GOMES, Flávio dos Santos. Arqueologia da escravidão em fazendas jesuíticas: primeiras notícias da pesquisa. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, supl., dez. p. 309-317, 2012. 380 Desde 2001, o Solar do Colégio, localizado na zona rural de Campos dos Goytacazes, abriga o Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho. Além disso, a capela de Santo Inágcio que faz parte do conjunto, recebe missas em uma quarta-feira do mês.
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dades com o objetivo de aproximar essas pessoas da pesquisa arqueológica, como entrevistas sobre sua história de vida no arruamento, suas memórias da vida comunitária e visitas à escavação e aos locais em que moraram. A ideia inicial se pautou pela possibilidade de recuperar as memórias dessas pessoas em relação aos materiais arqueológicos encontrados, que além dos vestígios associados às práticas de alimentação, como ossos, louças e cerâmicas, apresentava itens associados ao vestuário, religiosidade e de cuidados com o corpo. No entanto, à medida que as relações com os ex-moradores foram se estreitando, outras questões e interesses passaram a ser elaborados sobre a memória do lugar, algumas vezes com total menosprezo das “descobertas arqueológicas” e um marcado silêncio sobre aquilo que os arqueólogos consideravam importante para retratar o passado. Durante a etapa de escavação realizada no ano de 2014, de outra forma, procurou-se dar atenção mais detida à forma como o passado era relembrado, o que era considerado relevante nas narrativas de memória e a própria relação com a cultura material do passado. Seguiu-se uma abordagem informada por aquilo alguns pesquisadores têm definido como “etnografia arqueológica”.381 Ou seja, um espaço transcultural para encontros, conversações e intervenções centrados na materialidade e temporalidade, uma vez que não se podem ignorar os múltiplos encontros entre acadêmicos e vários públicos que ocorrem no e em volta do sítio arqueológico. No caso do Solar do Colégio, procurei centrar nas narrativas das pessoas que moraram e trabalharam na antiga fazenda, algumas delas sobre os lugares de ocupação mais antiga, relativa às senzalas.382 Assim, para além de considerar a memória de maneira instrumental – como recurso para informar as interpretações sobre o registro arqueológico – procurou-se explorar as possibilidades que a própria escavação arqueológica (e a cultura material enquanto “gatilho mnemônico”) 381 HAMILAKIS, Yannis; AGNOSTOPOULOS, Aris. What is archaeological ethnography?. Public Archaeology: Archaeological Ethnographies, v. 8, n. 2-3, p. 65-87, 2009; HAMILAKIS, Yannis. Archaeological Ethnography: a multitemporal meeting ground for archaeology and anthropology. Annual Review of Anthropology, v. 40, p. 399-414, 2011. 382 O que não menospreza a importância de se considerar os outros públicos que têm interagido com a pesquisa, como educadores, pesquisadores locais, funcionários do arquivo e pessoas interessadas na pesquisa arqueológica sem nenhum vínculo com o lugar. A mediação e reflexão sobre as formas de representação do passado da Fazenda do Colégio agenciavam por esses diversos agentes deve ser pensada nas ações de posterior musealização do patrimônio arqueológico.
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criara entre os ex-moradores do arruamento. O objetivo, portanto, foi o de permitir que falassem sobre suas lembranças do passado e das práticas cotidianas naqueles espaços, em um processo em que as narrativas sobre os “tempos antigos” permitissem discutir as relações entre as memórias e os esquecimentos relacionados à materialidade e à paisagem do arruamento. Neste capítulo, portanto, apresento algumas reflexões que a pesquisa de orientação etnográfica e arqueológica ensejou, no contexto de memórias relacionadas: 1) as formas de moradia, as práticas cotidianas do contexto de trabalho e os momentos festivos centrados no jongo; e 2) os usos do espaço e os “vínculos ancestrais” e afetivos com o lugar, tendo por base as interações dos ex-moradores do arruamento com a materialidade e o contexto arqueológico. Ao rastrear esses vínculos, procurei refletir sobre os dilemas e possibilidades que uma arqueologia do passado recente do arruamento gerou na sua relação com o passado “arqueológico” da senzala retratada até então. Além disso, esses diálogos entre diferentes temporalidades (dos vestígios arqueológicos e das memórias do passado e presente) permitiram experimentações reflexivas sobre o lugar da prática arqueológica no processo de construção de narrativas sobre o passado. Antes, convém apresentar algumas considerações sobre as maneiras como a arqueologia tem lidado com a memória social, bem como sobre o aspecto público e os dilemas da pesquisa entre terreno de fronteira, entre a arqueologia e a antropologia social.
As palavras ditas e as coisas esquecidas: tradição oral, arqueologia e comunidades descendentes Nos estudos historiográficos sobre o pós-abolição, o recurso às fontes orais têm sido uma das vias mais férteis para o entendimento das condições de produção e difusão de uma memória coletiva sobre o tempo do cativeiro, bem como para obter relatos de primeira mão sobre o modo de vida dos últimos cativos. A base para o tratamento metodológico das entrevistas, nesse contexto de pesquisa, foi a construção de genealogias, explorando as coincidências narrativas e as reminiscências do trabalho na infância383. Uma 383 RIOS, Ana Lugão; MATTOS, Hebe. Memórias do Cativeiro: família, trabalho e cidadania no
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das questões centrais dessa metodologia, adotada por Ana Rios e Hebe Mattos, pode ser pensada para contextos em que as genealogias da escravidão são traçadas em duas ou três gerações: “haveria uma memória coletiva sobre o processo de abolição e o cativeiro, próprias às famílias camponesas formadas a partir das últimas gerações de libertos?”384 questionaram-se as autoras. De qualquer maneira, abordar historicamente o próprio processo de produção da memória, implica em contextualizar o local de fala dos sujeitos, as trajetórias individuais, entre outros pontos. Um dos elementos que as autoras chamaram atenção diz respeito aos padrões de referência à escravidão pelos entrevistados: seria comum, pois, o uso dos termos “cativo” e “cativeiro” e “tempo do cativeiro”, sendo quase inexistente o termo “escravo” ou “escravidão”. Mário Maestri385 observou que esse vocabulário específico faz referência à forma como o processo de abolição foi percebido pelos cativos, tendo consequências nas gerações posteriores: enquanto no discurso da historiografia brasileira “aboliu-se a escravidão”, para os escravizados, por outro lado, teria-se “gritado” a “libertação dos cativos”386. Uma vez que o trabalho com histórias de vida pode colocar em sobreposição discursos e narrativas de diversos agentes sociais, há a necessidade de se atentar para as especificidades etnográficas que ele exige. Uma alternativa, portanto, seria tecer um quadro amplo que contemple, ao mesmo tempo, o tempo privado e geracional das memórias pessoais e familiares e as grandes narrativas baseadas no tempo público do processo de abolição. No contexto das pesquisas arqueológicas na Fazenda do Colégio dos Jesuítas, as discussões sobre as comunidades escravizadas não podem ser abordadas unicamente pelo prisma da cultura material, colocando o registro arqueológico como um discurso sobreposto aos relatos orais: outro vetor importante a se considerar no contexto do sítio diz respeito à memória afetiva das pessoas que habitaram aquele espaço. Até, pelo menos, o ano de 1980, morava na área da senzala da fazenda (conhecida como arruamento do Colégio), uma comunidade que tem sido rememopós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 32. 384 Ibidem, p. 33. 385 MAESTRI, Mário. Depoimentos de escravos brasileiros. São Paulo: Ícone, 1988. 386 Ibidem, p. 25.
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rada a partir da memória sobre o cotidiano do lugar. Seria possível, deixando de lado os marcos cronológicos arbitrários, observar mudanças ou continuidades em termos de práticas culturais na longa duração, levando em consideração as concepções locais sobre o passado? Nas pesquisas em arqueologia histórica, tomar a oralidade como forma de registro apenas recentemente tem sido uma preocupação entre os pesquisadores. Tal como apontou Elisabeth Purser387, a proeminência da tradição oral na arqueologia foi inicialmente discutida em estudos relacionados aos períodos pré-colonial e de contato no novo mundo. Isso porque um dos principais desafios da subdisciplina envolveria lidar com memória social e oral em um campo que é tradicionalmente definido e legitimado pela relação entre a cultura material e o registro escrito.388 Uma das primeiras investidas em direção ao uso da memória oral na arqueologia histórica foi realizada por Marley Brown III, num estudo de uma fazenda, ocupada desde o século XVII, em Rhode Island, Estados Unidos.389 Na discussão proposta pelo autor há a ideia de que a pesquisa etnográfica pode ser pensada para qualquer tipo de pesquisa com a cultura material – até então, essa abordagem era restrita ao estudo de sociedades não industriais. Brown390 sugeriu que a pesquisa de história oral, quando combinada com documentos e escavação, pode contribuir positivamente para a análise de mudanças e continuidades na padronização de ambientes materiais. Aliada a essa possibilidade, houve a ideia de que o campo de pesquisa oral ensejaria uma experimentação relacionada à participação de antigos arrendatários da fazenda na estratégia de escavação, num dos primeiros esforços “colaborativos” na arqueologia. Um ponto observado pelo autor no procedimento de recontar aspectos da vida doméstica diz respeito aos diversos lapsos de memória. Essa inabilidade seria justificável pela natureza rotinizada e inconsciente 387 PURSER, Elisabeth. Oral History and Historical Archaeology. In: LITTLE, Barbara (Ed.) Text-Aided Archaeology. CRC Press, Florida, 1992, p. 25-37. 388 JONES, Siân. & RUSSELL, Lynette. “Archaeology, memory and oral tradition: an introduction”. International Journal of Historical Archaeology, v. 16, issue 2, pp. 267-283, june, 2012. 389 BROWN, Marley, III. “The use of oral and documentar sources in Historical Archaeology: Ethnohistory at the Mott Farm”. Ethnohistory, v. 20, n. 4, p. 347-360, 1973. Disponível em: http:// www.jstor.org/stable/481485. Acesso em 22/04/2014. 390 Ibidem, p. 347.
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do comportamento envolvido nas narrativas.391 Com efeito, esse seria um problema de destaque em qualquer pesquisa que procura por memórias relacionadas à cultura material. Além disso, outros fatores que prejudicariam a pesquisa etnográfica seriam a idade dos interlocutores, algo que invariavelmente implica em pensar na extensão do tempo que separa a experiência vivida e sua narrativa. Em suma, as informações orais eram abordadas de duas formas: 1) localização de possíveis áreas de atividade, posições das estruturas antigas ou 2) o teste sobre a validade das inferências arqueológicas elaboradas sem auxílio dos relatos orais dessa forma. Essa forma oscilante de se tratar as fontes orais e documentais foi destacada por Robert Schuyler392 como um dos procedimentos a serem superados em vias de ampliar as possibilidades interpretativas da arqueologia histórica. O que Schuyler chama atenção é a possibilidade de analisar outras fontes dentro da nossa própria tradição disciplinar. A análise dos documentos não pode ser estruturada a partir unicamente das necessidades de entender o registro arqueológico – o mesmo deve servir, pois, para as informações orais.393 No trabalho de Douglas Scott394, dois sítios que envolvem eventos de guerra indígena são abordados levando em consideração os significados que cada grupo indígena atribuiu aos eventos passados e aos vestígios arqueológicos. As narrativas são sopesadas de acordo com a forma em que os significados são embasados ou contraditos ao que os achados arqueológicos oferecem395. Uma dessas narrativas diz respeito ao massacre de Sand Creek, em 1864, que envolveu os Cheyenne e os Arapaho contra a Cavalaria de Colorado; outra se refere à Batalha de Big Hole, travada em 1877 entre Nez Perce e a Sétima Infantaria dos Estados Unidos. A centralidade atribuída aos vestígios arqueológicos faz com que as fontes sejam postas em conflito e a versão dos interlocutores indígenas marginalizada na narrativa, uma vez que houve uma divergência quanto ao 391 Ibidem, p. 352. 392 SCHUYLER, Robert. Archaeological Remains, Documents and Anthropology: a call for a new cultural history. Historical Archaeology, v. 22, n. 1, p. 36-42, 1988. 393 Ibidem, p. 39. 394 SCOTT, Douglas D. Oral Tradition and Archeology: Conflict and Concordance Examples From To Indian War Sites. Historical Archaeology, v. 37, n. 3, p. 55-65, 2003. 395 Ibidem, p. 55.
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local específico do vilarejo atacado. O que Scott aponta na sequência é que haveria um “fracasso da memória” que não teria sido adequadamente transmitida através de três a cinco gerações – contrariando, dessa forma, a preponderância da “evidência científica”. Essa postura, que recusa a legitimidade dos registros orais estaria intimamente relacionada a uma forma específica de conceber a memória. Para Sian Jones e Lynette Russell, a emergência da arqueologia processual fez com que a confiabilidade na tradição oral (já oscilante) fosse menosprezada, sobretudo pela constatação de que raramente ela conforma com a linearidade cronológica e uma estrutura baseada em evidências tal como se embasa a arqueologia científica.396 Com isso, o uso da memória oral acabou sendo marginalizado uma vez que havia a premissa de encontrar a informação “fossilizada” sobre o passado acerca das funções dos objetos e localização de estruturas. Os autores alertaram que tal postura pode conduzir a uma abordagem enviesada, interessada somente na concordância ou verificação da tradição oral a partir da evidência arqueológica, o que faz perder o foco das formas como a oralidade é invariavelmente mediada em termos materiais.397 Por outro lado, ao reconhecer a importância e as inter-relações da tradição oral com o mundo material há que se ter cautela para evitar objetivá-la e romantizá-la. Isso porque muitas abordagens que equalizam memória e identidade social ou que idealizam as capacidades da memória de subverter as grandes narrativas das histórias nacionais – e que em maior ou menor grau compartilham da “desilusão pós-moderna” para com uma ideia de memória fixa ou objetiva – tendem a abordar a memória como um discurso autêntico e democrático. A ideia de que a memória seria um sítio de resistência subalterna incorre na perda da referência sobre a intersecção entre memória social e as trajetórias individuais, ao mesmo tempo em que naturaliza e romantiza a memória popular, reativando uma velha dicotomia entre história e memória. Alessandro Portelli já apontou que a simples dicotomia história/ memória oral não se sustenta na medida em que muitas fontes escritas são baseadas na oralidade, assim como a oralidade moderna é saturada de 396 JONES, Siân; RUSSELL, Lynette, op cit. 397 Ibidem, p. 272.
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referências escritas.398 Um dos trabalhos de destaque nesse âmbito foi desenvolvido por Paul Shackel em Harper Ferry, onde foi possível analisar as relações entre formas de memória elitistas e subordinadas.399 Além disso, há uma atenção para a forma como a memória foi modelada na paisagem americana e influenciada por questões de raça, classe e poder, bem como pela exclusão e esquecimento seletivos de passados alternativos. Nesse sentido, a arqueologia histórica tem sido pensada como uma importante ferramenta para desafiar as formas dominantes de memória social e promover histórias inclusivas associadas com grupos marginalizados. Os primeiros esforços no sentido de evitar dicotomias e concepções fossilizadas tendem a focar nos aspectos práticos e relacionais da memória: Dessa perspectiva memória não é algo que nós temos ou possuímos. Processos de lembrar e esquecer são associados com práticas e relações intersubjetivas particulares [...] produtos transitórios de atividades de lembrar e relembrar, que tomam lugar em contextos de interação social e nas interações entre pessoas e seus ambientes.400
Com efeito, são através dessas práticas e relações que o passado pode ser continuamente interpretado numa relação dialética com o presente. Outro ponto importante diz respeito à ideia de que invariavelmente a memória é mediada pela materialidade. Os chamados “suportes da memória” podem ser materiais e imateriais: mitos, imagens, lugares, objetos. O mundo material, seja nas formas de ruínas, monumentos, fotografias ou depósitos arqueológicos, sempre apresentam fragmentos ou ressonâncias de memórias sociais, apresentando diferenças quanto à distância em que as pessoas se encontram em relação à experiência direta desses eventos, pessoas e lugares. Para isso, pontuaram Jones e Russell, não se trata apenas de medir a distância cronológica da memória de maneira aritmética, mas de sopesar as experiências que a mediam.401Assim, a memória pode ser baseada: 1) em testemunhos de primeira mão; 2) em experiências de 398 PORTELLI, A. What makes oral history different? In: PERKS, R.; THOMSON, A. (Eds.), The Oral History Reader. London: Routledge, p. 63–74, 1998. 399 SHACKEL, Paul. Archaeology and Created Memory: Public History in a National Park. New York: Kluwer Academic Publishers, 2002. 400 JONES, Sian ; RUSSELL, Lynette, op cit., p. 270. Tradução do autor. 401 JONES, Sian ; RUSSELL, Lynette, op cit.
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outras pessoas com quem tinha intimidade, em laços transgeracionais diretos, em laços mais amplos de filiação comunitária ou 3) naquilo que Marianne Hirsch chamou de “pós-memória”402, que tem nas fotografias e na literatura os principais suportes da memória e meio de transmissão intergeracional da memória social.403 Atentar para as distinções entre as experiências que embasam a memória pode ser de suma importância no contexto do pós-abolição. É possível, assim, refletir sobre as experiências dissonantes que conformaram o chamado “legado da escravidão” – para além, pois, do contexto próximo dos marcos cronológicos estabelecidos (tal como a representação que envolve a data do treze de maio de 1888). Ao abordar o tema a partir da memória informada pela tradição oral das populações afrodescendentes, dois eixos temáticos são comuns no que diz respeito às relações entre memória, escravidão e formas de pertencimento: “[as pesquisas] abordam as releituras políticas da memória da escravidão no tempo presente, e a memória da escravidão enquanto presença do passado nas trajetórias de vida dos libertos e seus descendentes”.404 A relevância da oralidade e da palavra nas comunidades rurais negras é um aspecto importante a ser ressaltado na produção de memórias. Assim como o são as práticas culturais atualizadas por comunidades tradicionais e que apresentam registros de memórias corporais, expressas em danças e na gestualidade de jongos, calangos e folias de reis. Essas, muitas vezes negligenciadas ao serem apresentadas de maneira ilustrativa e episódica de “práticas culturais”. Atentar para essa outra forma de memória, expressa na prática, pode ser interessante no entendimento de aspectos da vida cotidiana, ao lado das possibilidades abertas pela cultura material – ou pela relação do registro arqueológico com memórias da vida no arruamento. Há, portanto, alguns entendimentos gerais sobre a memória social na relação com a materialidade, na medida em que seria uma forma de prática relacional localizada contextualmente, desigual e dissonante; são 402 A noção de “pós-memória” serve para descrever as lembranças de gerações não diretamente envolvidas com os fatos relembrados que antecederam seus nascimentos, em geral experiências traumáticas. 403 HIRSCH, Marianne. “The generation of Postmemory”. Poetics Today, v. 29, n. 1, p. 103128, 2008. 404 PARÉS, Luis Nicolau. “Escravidão, pós-abolição e a política da memória”. Afro-Ásia, v. 49, p. 353-364, 2014.
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compostas por fragmentos de histórias que rodeiam lugares e eventos. Não é homogênea nem incontestável, mas como apontaram Jones e Russell, “é um domínio de controvérsia, onde pessoas se engajam ativamente com o passado no presente, mobilizando a memória para interpretar relações e eventos presentes e para informar a produção da identidade e do lugar”405. As controvérsias sobre os usos contemporâneos do passado e as interações entre memória e cultura material fazem parte das reflexões sobre os aspectos sociopolíticos da disciplina. As populações contemporâneas não são vistas, nessa perspectiva, como “objetos” de pesquisa, mas como um público que participa ativamente na e para a pesquisa. Para a arqueologia norte-americana, Paul Shackel propôs que a chamada “arqueologia pública” tivesse como enfoque inicial o envolvimento e consideração dos interesses de comunidades indígenas na pesquisa.406 Essa mudança em grande parte ocorreu a partir das influências das discussões e conflitos sobre o controle e gestão do patrimônio das populações indígenas, que culminou com a formulação, nos Estados Unidos, do Native American Graves and Protection and Repatriation Act (NAGPRA), nos anos 1990.407 A condução da pesquisa no contexto do African Burial Ground (ABG) em Nova York pode ser tomada como uma das primeiras e mais emblemáticas situações na arqueologia afro-americana de participação da comunidade descendente.408 A pesquisa foi largamente influenciada e reorientada a partir da reação do público quanto à forma com que foi conduzida, bem como, quanto às implicações para a construção do patrimônio afro-americano na cidade.409 Ainda que o envolvimento público na arqueologia afro-americana e o chamado para a autorreflexão410 te405 JONES, Sian ; RUSSELL, Lynette, op cit., p. 271. 406 SHACKEL, Paul “Working with Communities: Heritage Development and Applied Archaeology”. In: SHACKEL, P.; CHAMBERS, Erve (eds) Places in Mind: Public Archaeology as Applied Anthropology London: Routledge, 2004, pp. 1- 15. 407 GOSDEN, Chris. “Postcolonial Archaeology: issues of culture, identity and Knowledge”. In: HODDER, I. (ed) Archaeological Theory Today. Cambrigde: Polity Press, 2001, p. 251. 408 LA ROCHE, Cheryl; BLAKEY, Michael. Seizing Intellectual Power: The Dialogue at the New York African Burial Ground. Historical Archaeology, v. 31, n. 3, p. 84-106, 1997. 409 LEONE, Mark; LA ROCHE, Cheryl; BABIARZ, Jennifer. The Archaeology of Black Americans in Recent Times. Annual Review of Anthropology, v. 34, 2005, p. 587. 410 POTTER, Parker. What is The Use of Plantation Archaeology?. Historical Archaeology, v. 25, n. 3, p. 94-107, 1991.
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nha permitido o desenvolvimento de abordagens marcadas pela consulta e inclusão das comunidades descendentes na pesquisa, o engajamento do público em pesquisas arqueológicas tem sido um dilema que se atualiza de acordo com o contexto de pesquisa. Se para a colaboração ativa das comunidades descendentes é necessária a reflexividade do pesquisador, essa consciência incide no reconhecimento de que a posição adotada (seja teórica, acadêmica ou do contexto de classe) requer uma avaliação crítica dos pressupostos e das bases do conhecimento.411 Ou, ainda, implica na abertura do pesquisador para novas interpretações, questionando as distinções entre “descoberta” e “interpretação”, a partir da associação das diversas perspectivas ou posicionamentos envolvidos no processo analítico e interpretativo. Nesse contexto, destaca-se a necessidade de estreitar laços com a etnografia para o entendimento das “vozes locais”.412 Mas não segundo as noções clássicas de etnoarqueologia e das analogias etnográficas, as quais têm objetivo de prover interpretações arqueológicas.413 De outra forma, é a partir do afastamento dessas noções que é possível pensar em como a etnografia pode ser utilizada numa prática híbrida, centrada nas apropriações e interpretações do passado e do patrimônio arqueológico.414 Apesar de algumas divergências terminológicas (etnografia arqueológica, arqueologia etnográfica ou mesmo etnoarqueologia do presente) há um consenso acerca de como a etnografia contribui para a arqueologia ao ser integrada nos processos e dinâmicas de maneira estratégica, com vistas a promovê-la como uma ciência social reflexiva. Yannis Hamilakis e Aris Anagnostopoulos, por exemplo, destacaram que a etnografia arqueológica não deve ser tomada como uma 411 HODDER, Ian. “Archaeological Reflexivity and the ‘local’ voice”. Anthropological Quarterly, v. 76, n. 1, 2003, p. 58. 412 HODDER, Ian. op cit., p. 65-66. 413 CASTAÑEDA, Quetzil.; MATTHEWS, Christopher. “Introduction: ethnography and the social construction of archaeology”. In: CASTAÑEDA, Q.; MATTHEWS, C. (eds.) Ethnographies Archaeologies: reflections on stakeholders and archaeological practices. New York: Altamira Press, p.1-24, 2008. 414 MESKELL, Lynn. “Archaeological ethnographic: conversations around Kruger National Park”. Archeologies, v. 1, n. 1, p. 81-100, august, 2005; CASTAÑEDA, Quetzil. “The ‘past’ as transcultural space: using ethnographic installation in the study of archaeology”. Public Archaeology: Archaeological ethnographies, v. 8, n. 2-3, p. 262-282, 2009, HAMILAKIS, Yannis; ANAGNOSTOPOULOS, Aris. op cit.
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panaceia na relação com os diversos públicos da pesquisa, mas como um esforço constante atualizado na prática, a partir da construção de um espaço para o diálogo sobre a coexistência de tempos e a materialidade dos vestígios arqueológicos.415 A base dessa proposição parte da ideia, inspirada pelas reflexões de Henri Bergson, de que a duração é uma das propriedades fundamentais da matéria – com isso, a materialidade teria a possibilidade de reencenar tempos múltiplos e coexistentes. Isso pode ser tomado como relevante em contextos em que a materialidade (sejam artefatos ou estruturas/construções) mesmo que criada em tempos antigos, é retrabalhada e remodelada nos tempos subsequentes, o que faz com que o arqueólogo tenha dificuldade em inseri-la nos processos convencionais de datação e tipologia. Esses artefatos teriam, nas palavras dos autores, “a habilidade de reencenar múltiplas temporalidades que coexistem, e podem ser reativadas através das práticas sensoriais e sensibilidades humanas”.416 Nesse sentido, o próprio trabalho de campo e o procedimento de escavação se tornam situações chave para a colaboração. Annelise Morris definiu esse momento como o ponto para o “diálogo etnográfico”, uma vez que o contato direto com a cultura material pode ser encarado como um convite para participação do processo de criação e compartilhamento do conhecimento.417 A natureza sensorial e física dos artefatos, assim, pode ser uma forma de se iniciar diálogos sem a necessidade de conceitos abstratos acadêmicos. Além disso, levar a sério os sentidos atribuídos aos vestígios de tempos antigos abre possibilidades para incluir outros saberes que emergem a partir das interações cotidianas com o público no campo.418 Ressalta-se, portanto, a importância do registro dos contatos e diálogos travados em campo, o desenvolvimento da relação entre pesquisadores e o público e o próprio processo de construção das interpretações. Essa estratégia se mostrou frutífera no contexto das escavações da Fazenda do Colégio, ainda que não tenha sido seguida desde o início da pesquisa, como se verá adiante. De qualquer 415 HAMILAKIS, Yannis; ANAGNOSTOPOULOS, Aris. op cit, p. 78. 416 HAMILAKIS, Yannis; ANAGNOSTOPOULOS, Aris. loc cit. 417 MORRIS, Annelise “Public Archaeology and Critical Histories: Collaborative Archaeology in Southern Illinois”. Journal of African Diaspora Archaeology and Heritage, v. 3, n. 2, 2014, p. 163. 418 AGOSTINI, Camilla. Cultura Material, memória e o lugar do outro na produção do conhecimento: sentidos e apropriações de ruínas do “tempo dos escravos”. Texto Inédito-versão maio 2015 (apresentado em oficina no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFMG), pp. 1-25.
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modo, são vias importantes para atentar às dinâmicas das memórias do tempo presente e passado.
O “tempo do arruamento”: lugares de moradia, espaços de lazer Ao se propor uma abordagem etnográfica com os ex-moradores do arruamento, procurou-se fazer com que as interações pudessem amadurecer para além das visitas esporádicas no trabalho de campo. Assim, desde julho de 2014, o engajamento etnográfico ocorreu no sentido de criar espaços para diálogos e proposições sobre as memórias dos antepassados, de um lado, e de acompanhar o desenvolvimento da pesquisa arqueológica, de outro. As irmãs Georgina dos Santos (Gina) e Jeni dos Santos foram as principais interlocutoras da pesquisa desde a primeira etapa, ocorrida em 2012. Ao tomarem conhecimento do início das escavações, por meio dos funcionários do Arquivo Público, prontamente se organizaram para acompanhar os trabalhos (Figura 7.1).
Figura 7.1. As irmãs Gina e Jeni, herdeiras do jongo do Colégio. Fonte: O Autor. 195
Por meio delas, conhecemos outros ex-moradores do arruamento do Colégio. Com experiências diversas no local, assim como Gina e Jeni, atualmente moram no distrito de Goitacazes, a alguns quilômetros do Solar do Colégio. Ataíde Trindade trabalhou como administrador da fazenda, ofício que “herdara” do pai, que ali teria trabalhado no início dos anos 1940; Magali foi uma das cozinheiras do Solar; Geraldo Gomes Rangel morou durante sua infância no Solar, na condição de agregado da família Viana Barroso; Gil Roberto foi morador de uma das casas de trabalhadores da fazenda, localizada fora do arruamento e Rubens dos Santos trabalhou na lavoura de cana. No início dos contatos em julho de 2014, visitei esses antigos moradores em suas casas para apresentar alguns resultados da pesquisa arqueológica iniciada em 2012, bem como para compartilhar as contribuições de suas memórias para a história do lugar e para lhes mostrar os vestígios do passado com os quais a arqueologia trabalha. Laurie Wilkie apontou que um dos desafios ao se provocar a lembrança dos contextos relacionados ao chamado “passado recente” é o de perceber como as diferentes gerações percebem o potencial da arqueologia e suas próprias conexões com o passado.419 O primeiro interlocutor foi o Sr. Rubens dos Santos, nascido em 1943. Rubens morou até os 20 anos de idade no vilarejo do Colégio, numa rua de casas situada no lado oposto ao do solar. Trabalhou na lavoura de cana da fazenda até os 16 anos, mas em função do envolvimento com o futebol nos últimos quatro anos que morou lá, dedicava-se mais ao “futebol de várzea” em times como o São José e o Santo Inácio Futebol Clube – este último formado pela comunidade do arruamento. Rubens comentou que tinha poucas lembranças dos seus avós além das reminiscências de suas figuras na infância. Seus pais, Olívio Ribeiro dos Santos (Neco) e Maria da Penha Gomes dos Santos também eram trabalhadores da Fazenda do Colégio e lá viviam desde aproximadamente 1920.420 As lembranças destacadas por Rubens da sua vivência no Colégio envolvem as atividades de sociabilidade da comunidade do arruamento, as 419 WILKIE, Laurie. Black sharecroppers and white frat boys: living communities and the appropriation of their archaeological pasts. In: BUCHLI, Victor; LUCAS, Gavin. Archaeology of the Contemporary Past. London: Routledge, 2001, p.108-118. 420 Entrevista realizada em 14 de julho de 2014 sem uso de gravador, sendo registrada no diário de campo.
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assim chamadas “brincadeiras”: entre cantorias de fado e a dança do jongo – em que se arriscava como violeiro, sob o olhar atento dos mais velhos, que “puxavam” e conheciam as danças nessas festas. Segundo ele, as filhas do Sr. Domineize (Gina e Jeni) são uma das poucas pessoas que conhecem os fados e jongos cantados na época. As festas no arruamento consistiam em grandes “eventos” da localidade, que atraia pessoas de outras fazendas e vilas. Apesar do arruamento abranger uma paisagem que ainda possui referências materiais (como o campo de futebol), as festas ocorriam em lugares específicos: em quintais em frente às casas, onde eram armadas barracas. A casa de Valdemar (pai de um dos últimos jongueiros do arruamento, Zé Embate, ambos já falecidos), por exemplo, era uma que recebia o fado. Essas festas, conhecidas como “Baile do Colégio”, eram realizadas nas casas de algumas pessoas. De fato, Rubens comentou que o fado e o jongo eram cultivados entre gerações no interior dessas famílias. Além de Domineize e Zé Embate, havia Biru, conhecido pela perspicácia em “tirar versos” de situações do dia-a-dia. Do contato inicial com Rubens, ouvi pela primeira vez uma expressão que se tornou recorrente no discurso de outros ex-moradores: o “tempo do Colégio”. Nesse “tempo” estavam presentes referências saudosas às festas e a uma vida comunitária centrada em espaços e lugares, em uma paisagem fragmentária do arruamento – e, para alguns, em ruínas. Nesse contexto, falar sobre as moradias existentes no arruamento foi um exercício que frequentemente dava oportunidade para o interlocutor “se localizar” na Fazenda do Colégio, indicando tanto o lugar exato onde morou, bem como sua história de vida naquele lugar. Ao conversar com Ataíde Trindade ainda em 2014421, os lugares onde morou na fazenda do Colégio demarcavam diferentes momentos de sua vida – bem como a posição social de sua família no contexto da fazenda. Quando nasceu, em 1941, seus pais moravam em uma casa distante da sede principal, mas ainda nas terras da fazenda. Pouco depois de completar um ano, seu pai, Sebastião Trindade, passou a trabalhar como encarregado422, o que fez 421 Entrevista gravada em vídeo no dia 15 de julho de 2014 em sua casa, no distrito de Goytacazes. 422 O ofício, como Ataíde dissera ter sido designado após o falecimento do pai, implicava numa espécie de “gerente” da fazenda, responsável por, entre outras coisas, organizar e supervisionar as turmas de trabalho na lavoura de cana e efetuar o pagamento dos trabalhadores.
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com que sua família se mudasse para uma casa no arruamento, construída a pedido de Sérgio Vianna Barroso (então responsável pela fazenda). Durante sua adolescência, lembra que se mudaram para outra casa (Figura 7.2), um pouco mais afastada do arruamento, onde podiam desfrutar de espaços maiores para cultivar frutas e uma roça.
Figura 7.2 - Última casa de Ataíde na fazenda do Colégio, fora do arruamento. Fonte: O Autor.
Em uma das visitas ao Solar do Colégio, em que convidei Ataíde para acompanhar os trabalhos da equipe de arqueologia423, ao andarmos pelo atual espaço nos arredores do solar era comum nos deparamos com referências mnemônicas, não só dos materiais fragmentados – que se para nós correspondem aos vestígios arqueológicos, para ele era a costumeira evidência dos antigos moradores da fazenda –, como de lugares com marcadas memórias afetivas. Pela descrição da localização e posterior visita 423 Nessa outra visita em julho de 2016, Ataíde também procurou indicar áreas específicas para a escavação fora do arruamento, em lugares que recordara haver casas, pomares e quintais – dinâmicas apresentadas mais detidamente na dissertação de mestrado.
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às escavações424, Ataíde observou que o lugar onde a equipe realizou as escavações em 2014 correspondia ao terreno dos fundos da sua casa, bem como se recordou de vizinhos e das outras moradias no arruamento que compunham a paisagem de sua infância e início da vida adulta: Fernando: O senhor lembra de 2014 que a gente tava trabalhando aqui? Será que o lugar que a gente tava escavando era perto onde o senhor morou, aqui no arruamento? Ataíde: Era perto, vocês estiveram nos fundos onde eu morei né. Eu vou mostrar a vocês aonde eu morei. Isso aqui antigamente, tinha uma casa de moradia e tinha uma venda, comércio, esse aqui... Tudo se acabando né. Eu na minha atitude tinha que conserva o que era dos antigo né, porque isso aí serve pra mostra pros novos... Os netos ir olhando, e dar valor... Olha, a casa que nós moremos era aqui, tinha duas casas aqui, nesse correio, garrada uma na outra. Fernando: É, porque a gente tava escavando bem aqui né? Ataíde: É, quando eu vim você tava bem aqui...eu tive conversando com você... Isabela: Eram duas casas? Ataíde: Eram duas, e lá na frente lá tinha mais duas...mais duas não, mais três casas ali. Aí tinha um arruamento lá onde tá aquele carro, um arruamento conjugado uma na outra... Fernando: Então a gente tava nos fundos da casa onde o senhor morou... Ataíde: Exatamente... Meu pai morou aqui, eu vim pra aqui eu tava novinho, com um ano e pouco... Aí depois devolveu pros patrão e fizeram ali... Aquela casa lá, daí nós fomos morar lá... Porque aqui não tinha espaço... Isso aí tudo era roça, plantação de cana... Aí não tinha espaço pra papai planta um pomar de laranja, nada disso.
424 A primeira visita, rápida, foi ainda em 2014, tendo o Sr. Ataíde participado mais ativamente das atividades de identificação de lugares de memória durante a etapa de julho de 2016 – ocasião em que Isabela Suguimatsu participou das atividades de caminhada pelos lugares em que ele morou.
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Fernando: E lá tinha? Ataíde: Tinha, lá, os donos aqui abriu mão pra ele. Lá nós tinha dois pomar de laranja seleta, legítima que hoje não tem mais... A gente chegava nessa época os pés de laranja tavam amarelinho... Cê vê como era o povo antigo, não vendia uma, você chegava lá com uns visitantes, saia de lá com um saco cheio, de tanta laranja, tanta fartura que tinha... Era gostoso. Fernando: foi naquela casa que o senhor disse que chegou a ter energia com cata-vento? Ataíde: Sim, lá nós fizemos... Aqui não tinha luz...aqui a luz veio faz poucos anos..naquele tempo nosso não. Ali no solar fornecia luz ali no motor, no arruamento aqui ninguém tinha... Naqueles anos passados a gente dizia, aqueles lampião de dois bicos, se alcançou isso? Eles penduravam porque havia muita festa aqui na frente, esse matagal não tinha, era tudo limpo. Tinha uma raia de corrida de cavalo ali, saia até lá... Aí todos domingos eram aquelas corridas de cavalo, vinha muita gente de fora. Aqui nessa frente tinha muita cavalgada, esse aqui era um lugar muito bom...Vou dizer uma coisa para você... Em Campos não tinha lugar nenhum igual esse aqui, pra se diverti... No mês de maio era festa o mês todinho... Isabela: Por que maio, o que que tinha em maio? Ataíde: O mês de Maria...Então havia festa o mês todinho aqui... Aí saia em procissão pela pista, vinha muita gente, o povo fazia aquelas barracas de lona, aí botava esse lampião de dois bico, clareava bem minha filha! Tinha boi pintadinho, aí tinha lugar que o povo fazia fado, jongo. Todo mundo aqui, o povo antigo gostava muito... Ali onde Magali morou, Magali morou ali na frente. Fernando: Ali depois desse pé de sombrio? Ataíde: Isso, vamo ali que eu vou mostrar pra vocês... O pai dela, ele tinha aqui uma moendazinha manual, pra tira caldo de cana, era muito bom, a gente plantava as cana tinha de tudo. Aí vinha na casa dele, ele tinha o maior prazer de ir lá na moenda e apanhava a cana, limpava e 200
metia na moenda... Aqui tinha, três ou quatro casas, nesse correio aqui [estrada] ó... Era por aqui... E a casa da Magali era da ponta, mais ou menos onde tá essa cerca pra lá...Você vê, se olha por cima ainda vê tijolo lá... Isso aí tudo deve ter o alicerce aí. Isabela: O campinho já tinha? Ataíde: o campinho não era aqui... Foi feito aqui depois de muitos anos. O campo era em frente aquela casa lá, fazia frente lá para a estrada. Depois fizeram esse aqui. O patrão deu essa área pra eles planta, faze o campo, ficou até melhor aqui... Né. Aí tinha o arrumento ali ia direto, casa conjugada uma na outra. Só casa antiga. Tudo se acaba né...425
A possibilidade de possuir um quintal para plantar árvores frutíferas e outros gêneros alimentícios era uma prerrogativa de apenas algumas pessoas no contexto da Fazenda do Colégio, como sugere Ataíde. Em uma das conversas em que perguntei sobre o que costumavam plantar no arruamento, quando era permitido, ele narrou um causo (na forma de um cautionary tale sobre o tema) muito conhecido por outros que viveram na localidade pelo desfecho tragicômico, que possibilita inferir a organização do espaço, a relação dos proprietários da fazenda no que diz respeito à criação de animais. Do “tempo” em que ele faz menção, a fazenda tinha como moradores e proprietários do solar os irmãos Sérgio, João Batista e Zulmira Viana Barroso; e a Dona Totó, que era lembrada pela janela que sempre ocupara, no segundo andar do prédio: Ataíde: O meu cunhado, que era motorista dos Barroso, muito depois, meu cunhado tinha uma lavourazinha ali nos fundos onde morou Magali... Ele plantou abobora, plantou milho, a cana... O velho Sérgio Barroso, sem ser o Sr. Barroso [ João Batista] era o Sergio né, eram irmãos. Deu coisa pra ele planta... Aí dona Totó soltou os porquinhos, eles foram lá andando na roça de Zé Maria e comeu. Zé Maria chegou, em vez de chama ela e fala foi direto com o dono, Sr. Sérgio. Aí seu Sérgio falou: apanha a espingarda vai lá e mata, eu já disse ela que não quero porco solto pra lá, ela tem onde cria aqui. Aí começou aquele bate papo, ela guardou opinião, por causa de Zé Maria vir cá e 425 Gravação de vídeo da conversa com Ataíde Trindade no arruamento em 20 de julho de 2016.
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falar com o outro. Passou outro dia os porcos foram lá e comeu...Ele veio aqui, passou a mão na espingarda e pá, matou. Chegou ali, ela soube que tinha matado, ficou esperando. Sabe o que ela fez? O urinol de fazer xixi, ela largou o urinol cheio de mijo de um dia para outro. Quando Zé Maria chegou e botou a cara assim pra cima, chamou ela, ela olhou viu que era Zé Maria e despejou o mijo na cara dele, aí foi aquele problema todo, discussão deles aí, ela morreu com raiva dele. E lá na primeira janela, era a dona de tudo aqui, Dona Zulmira. Ela tinha janela pra cá e janela pra lá. Ela olhava a fazenda toda por cima, com um binóculo, se tivesse uma pessoa lá no fundo da fazenda ela via.
Rubens426 também comentara que no tempo em que morava na fazenda “dos Barroso”, conforme dizia, era mais fácil plantar (feijão, cajá, laranja, abóbora, banana) e criar animais no quintal, quando em terreno cedido. As criações eram a “carne” da refeição em tempos que a carne do açougue era mais cara e os recursos eram escassos – se criavam somente porcos e galinhas. Além disso, com essas criações as famílias se ajudavam – quando se matava um porco, por exemplo, era dado um pedaço para cada uma das famílias do arruamento. Havia um açougue (Açougue do Irineu) no Colégio, próximo à casa de Getúlio, mas a carne era lá comprada apenas quando não havia criação ou outra fonte, pois a carne bovina era cara. Era comum, por exemplo, comer carne de caça: os animais caçados com mais frequência eram o preá (com arapuca), o gambá entre outros. A caça era realizada no período de corte da cana, quando os trabalhadores passavam mais tempo nos canaviais. Como o período da moagem da cana dava mais dinheiro, Rubens comentou que era maior o consumo de carnes do açougue. Essa estratégia de complemento da alimentação e de predileção pela carne de caça (devido não só às condições de acesso à carne de boi) já foi sugerida por Symanski e Morais Jr. para contextos da comunidade cativa ao longo do século XIX na mesma fazenda (ver também Morais Júnior, neste volume).427 Contudo, observa-se que em meados do século XX a prática da caça poderia estar mais atrelada ao calendário da lavoura 426 Entrevista realizada em 14 de julho de 2014, sem uso de gravador, sendo registrada no diário de campo. 427 SYMANSKI, Luís C. P.; MORAIS JR., Geraldo Pereira de. Alimentação, Socialização e Reprodução Cultural na comunidade escravizada do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes (RJ). In: SOARES, Fernanda Codevilla (Org.). Comida, cultura e sociedade: arqueologia da alimentação no mundo moderno. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2016, p. 95-112.
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de cana, uma vez que seriam nesses períodos que se abririam as “brechas” no cotidiano para montar armadilhas e rastrear a caça. A ausência de espaços fechados ou limitados por cercas no arruamento já havia sido comentado por outros interlocutores como característico do arruamento da fazenda do Colégio e do estilo de vida “comunitário” – no sentido de que as roças não precisavam de cercas que delimitassem propriedades individuais. Os quintais dos fundos, quando havia, eram utilizados para cultivos de unidades domésticas específicas como era o caso de Zé Maria e Ataíde, sendo a área em frente às casas usadas exclusivamente para atividades coletivas, como as festas. Como Ataíde destacou, apesar do espaço ter sofrido transformações ao longo do tempo em que morou no arruamento, as instalações de uso coletivo (como o campo de futebol ou raia de corrida de cavalos, hoje inexistente) permaneceram na área central por várias gerações. Os quintais de festas, por estarem associados às casas, foram gradativamente desaparecendo com as ruínas das moradias. A ideia de que em contextos de grandes fazendas marcadas pelo legado da escravidão, a criação de um espaço compartilhado tinha um papel crucial para a construção de um senso de comunidade foram exploradas por análises que consideram a importância da memória histórica para repensar contextos arqueológicos tradicionalmente conhecidos como slave quarters.428 As ressonâncias do passado num espaço como esse, além das evidências materiais, incluem memórias afetivas e legados familiares. As sucessivas menções às festividades e ao jongo da Fazenda do Colégio, podem ilustrar como uma prática realizada no contexto específico das moradias do arruamento foi herdada e atualizada como “patrimônio” da comunidade pelas gerações de descendentes. Nos primeiros contatos com as irmãs Gina e Jeni em 2014, as práticas relacionadas à música e dança do arruamento eram os “lugares de memória” por excelência nas narrativas de lembranças do “tempo do Colégio”. Isso porque aquele era o legado intimamente ligado às memórias do seu pai, um dos últimos jongueiros da localidade. 428 BATTLE, Whitney. A space of our own: redefining the enslaved household at Andrew Jackson’s Hermitage Plantation. In: BRANDON, Jamie & BARILE, Kerri. (Eds.). Household Chores and household choices: theorizing the domestic sphere in historical archaeology. Tuscaloosa, Alabama: The University of Alabama Press, 2004, p. 50-67.
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Jeni: Papai foi cedo, acho que tinha 60, ia fazer 60 anos. Papai era uma pessoa que era muito forte, nunca tinha ficado doente. Mas aí quando caiu, quando caí vai direto... Deixou um buraco no peito que não é brincadeira... Ele ensinou muita coisa para a gente. Ensinou a dançar, ensinou a tocar, ensinou a tudo. A cantar reis, as músicas que nós sabemos. Papai era aquela criatura alegre né, carinhoso. Aí quando meu pai morreu eu pensei, acabou, não vou ter forças para continuar... Mas graças a Deus, eu já trabalhava, já estava trabalhando no Rio de Janeiro quando ele faleceu, aí continuei trabalhando né até aposentar. Papai era aquela pessoa que quando alguém precisava dele ele tava ali. Se morria alguém então, tinha que passar a noite no velório contando história e animando... Gina: É, antigamente era animado os velórios, contavam piadas. Jeni: Podia morrer a hora que fosse meu pai era chamado para ficar ali, contando histórias, animando as pessoas... Usando aquela força interior que ele tinha só para dar, pra todo mundo, meu pai era muito querido, nossa senhora era uma coisa fora de série. Quando ele morreu os amigos que foram no velório foram muitos, muito triste, perderam o chão. Gina: É, porque ele que era o violeiro, ele que reunia os fados, ele que reunia pros bois, pintadinho, cavalinho, ele era pra tudo. Tanto que depois que ele morreu nós apanhamos a viola e os pandeiros e entregamos na casa daquele que tava tocando o tambor ali [refere-se a foto] e dali da casa dele sumiu tudo, destruiu tudo, conservou nada. A única coisa que restou foi o viramundo que tá lá na Fazenda do Colégio. Jeni: Corre-mundo, que viramundo o quê! Gina: Aé, corre-mundo. Aí toda vez que eu vou lá eu bato um cadinho pra matar a saudade.
A memória do jongo materializada no tambor corre-mundo, bem como o nosso interesse pelas memórias dos últimos moradores do arruamento, instigou as irmãs a organizarem um encontro no Solar, atividade que acompanhamos no ano de 2016, em situações ocorridas em 204
julho, setembro e outubro. Nesses encontros, também foram realizadas oficinas com os vestígios arqueológicos e um esboço de cartografia do arruamento, em que as pessoas assinalavam o lugar onde moraram, bem como indicavam outros espaços de memória em um rascunho de imagem do Google Earth. Em fins de setembro, em uma visita que fiz após um desses encontros, Gina nos trouxe várias folhas com letras de jongo, fados, “reis” e “cantorias”. Eram canções de Domineise, pai delas. Demorei para entender como fizeram aquele registro, haja vista que o pai morreu faz muito tempo e não teria escrito aquelas letras. Gina então explicou que as canções foram “registradas” quando elas iniciaram o processo de “levantar as raízes do Colégio” há quatro anos atrás – período que coincide, pois, com o início das pesquisas arqueológicas no Solar do Colégio. As “cópias” das letras de canções foram feitas para elas realizarem apresentações, sendo tiradas “de cabeça”, sem outra referência que a memória. Em alguns casos, como elas explicaram, os versos vinham de improviso, já que Jeni tinha habilidade para isso. Eram lembranças de infância, “viviam tudo isso”, como repetiu Gina ao longo da conversa. Esse processo de “levantar as raízes” ilustrara como, ao iniciarmos diálogos e conversações sobre o passado – com objetivo de aproximar os ex-moradores do lugar onde a arqueologia construía uma narrativa a partir dos vestígios materiais – ensejou uma dinâmica particular por parte delas de produção da narrativa do passado, com suas referências materiais específicas: o registro escrito dos jongos e fados e descrições dos contextos das práticas de dança e cantoria: Jeni: As vezes, quando uma pessoa levava um reis numa casa, se cantava muito, então vamo na casa de fulano e começava... Fernando: Aí os reis, era tudo do seu pai? Gina: Tudo, tudo isso é do meu pai, era ele que fazia, entendeu... Jeni: Meu pai era violeiro... Fernando: Mas o pai de vocês tinha isso anotado em algum lugar, que vocês foram ver? 205
Gina: Não, não, ele ia cantando... Fernando: Vocês lembraram... Gina: É, a gente era criança, gravava... Jeni: As vezes ele ia canta uma música ali, tocava, eu já saia cantando [...] Jeni: O jongo é assim... A pessoa pega e fica tocando, tocando assim, aí chega a pessoa, para o tambor e coloca um jongo, e bora bota outro... tira uma pessoa pra dança, a pessoa dançava depois que parava colocava outro jongo, podia ser um jongo normal, um jongo à mineira, jongo de qualquer maneira, tinha esse negócio de jongo e fado a noite inteira né. O pessoal começava muito cedo... Antigamente tinha isso, era só o time ganhar que entraram já cantando... Virava a noite [...] Jeni: Essa hora todo mundo dançava...Tinha uns guinado que papai tocava... Gina: Tem esse Felipe que não é jongo nem fado, é uma cantoria, que nessa hora cada um apanhava seu cavalheiro e saia dançando... Várias pessoas. Jeni: E era fácil de dança, porque o fado praticamente não era qualquer pessoa, só quem soubesse dançar, mas tinha muito serenado, aqueles menino mocinho também... Iam dançar... Gina: A tem esse também ó, que dançava todo mundo junto... Minha marreca, minha marreca rere, bota milho no terreiro, marreca não quer comer, ai minha marreca, ai que eu levo a breca, ai que eu levo a breca... Jeni: Essa marreca aí, quando tá dançando os homens geralmente ficam batendo palma, e as moças dançam umas com as outras [...] Gina: Então, tá entregue [se refere às letras de canções]. Se quiser devolver, devolve, se não quiser a gente sabe tudo de cor, a gente escreve tudo outra vez. Agora tem muito mais música, que quando lembra a gente pode ir tirando [...]
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Essas lembranças, tal como apontou Philipe Nora ao se refletir aos lugares de memória, “complicam o simples exercício da memória com um jogo de interrogação sobre a própria memória”429. Assim, importa menos desvelar aquilo que foi resgatado ou inventivamente recriado, mas a maneira como a memória é continuamente revista e remodelada. Aquilo que é comumente tomado como simples recordação pode ser entendido dentro da dinâmica de formação da memória social a partir de trajetórias individuais. Lynn Meskell já apontara que, ao instigar atos de rememorar, nós situamos imagens do passado em lugares específicos: essas imagens são provisórias e fragmentárias.430 Elas passam a ter coerência quando nós as projetamos em configurações concretas – tal como seria com o arruamento do Colégio como um sítio de lembranças. Assim, rememorar poderia ser tomado como um processo de imaginação reconstrutiva, em que nós integramos imagens específicas formuladas no presente com contextos particulares identificados no passado.431 Isso permite atentar para os elementos da prática cultural além dos retratos estereotipados daqueles que, à distância temporal e social, procuram representar um passado supostamente próximo e familiar. Em um dos raros relatos sobre a Fazenda do Colégio durante o século XX, Antogui Barroso March, descendente da última família proprietária do Solar, comentou sobre as festividades que presenciava entre as décadas de 1930 e 1940, além daquelas relacionadas ao calendário religioso, não deixando de tecer juízos de valor sobre as práticas recreativas daqueles que ele apontava serem “os descendentes dos últimos cativos”: [...] não nos esqueçamos das outras [festividades], as de cunho eminentemente popular comemorativas do treze de maio e nas quais o povo da fazenda esmerava-se no cumprimento do extenso pro429 NORA, Philippe. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, 1993, p. 19, tradução Yara Khouri. 430 MESKELL, Lynn Memory’s materiality: Ancestral Presence, Commemorative Practice and Disjunctive Locales. In: VAN DYKE, Ruth; ALCOCK, Susan. Archaeologies of Memory. Oxford: Blackwell, 2003, p. 34-55. 431 MESKELL, Lynn, op cit., p. 53.
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grama de cada ano. Era o jongo ao ritmo alucinado do tambor, arrastando o povaréu à desenfreada dança bárbara, enlouquecida sob o assédio das rodas cada vez mais apertadas. Era a mana chica, menos bárbara, mais dolente e harmônica, nas tiradas dos versos maliciosos, velhacos, brejeiros. E, nos salões – espremidas salas das velhas casas da senzala – à luz fumarenta das pinoias, os pares em espremeção sensual, deixando-se levar na cadência do fado tirado por velhas concertinas remendadas e estropiados cavaquinhos manchados de suor e cachaça.432
Toda arqueologia, segundo Hamilakis e Labanyi, é uma produção sobre memória, na medida em que a materialidade encorpa memória através da duração.433 Além disso, tal como é possível observar na narrativa de Gina e Jeni, questões relacionadas à produção de lembranças e esquecimentos são traduzidas na descrição de práticas sociais corporificadas, isto é, a memória é evocada através dos sentidos corporais das danças e canções. O registro visual dos encontros e oficinas do jongo, por exemplo, em que o tambor corre-mundo foi um pretexto para tocar o jongo (“da maneira antiga, como se viam fazer”, dizia Rubens), criou um contexto em que a materialidade do tambor ativara lembranças sedimentadas no corpo, na maneira como se segura o instrumento e se conduz a percussão (Figura 7.3).
432 MARCH, Antogui Barroso. Verde Planície, Velho Solar. Niteroi: Editora Cromos, 1988, p. 97. O autor, nascido em 1913, tece uma espécie de inventário sobre a vida cotidiana da fazenda, centrada no Solar do Colégio desde a ocupação jesuíta, passando pelas memórias de seus pais e avós, até o momento em que o solar se encontrada no fim dos anos 1980. 433 HAMILAKIS, Yannis; LABANYI, Jo. Introduction: Time, materiality, and the work of memory. History and Memory, v. 20, n. 2, Special Issue: Remembering and Forgetting on Europe’s Southern Periphery, p. 5-17, Fall/Winter, 2008.
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Figura 7.3. Encontro do Jongo, julho de 2016. Foto do autor. Fonte: O Autor.
O trabalho da memória envolveria também esquecimento, na medida em que os vestígios materiais que evocam e provocam lembranças, também evocam ausências e perdas – do terreiro de festas, dos jongueiros falecidos, dos pandeiros que acompanhavam o corremundo e que desapareceu entre desconhecidos. O encontro de ex-moradores e arqueólogos também envolveu outras ausências e esquecimentos, relacionados aos vestígios arqueológicos e a interação com outros tempos do (e no) arruamento do Colégio.
Sobre contextos e vestígios arqueológicos: entre ressonâncias, mistérios e múltiplas temporalidades Além dos contextos em que procurei seguir os interesses e questionamentos dos interlocutores sobre a memória relacionada ao arruamento enquanto lugar de moradia, os diálogos e conversações sobre os vestígios arqueológicos ocorreram na medida em que esse espaço passou a ser abordado como sítio arqueológico. A primeira interação no contexto da escavação arqueológica ocorreu ainda em 2014, quando as irmãs Gina e Jeni nos visitaram quando do retorno 209
da equipe de arqueologia ao Solar do Colégio. Apesar de não termos desenvolvido uma estrutura definida para aquela ocasião específica, foi organizado um breve roteiro: primeiro, uma roda de conversa com parte do grupo da pesquisa arqueológica no pátio do Solar, onde a equipe descansava durante a pausa do almoço, para depois irmos até o local da escavação, no arruamento. Com isso, a ideia de tomar o contexto da pesquisa como um “espaço” para diálogos e conversações centrados na materialidade poderia ser levada a cabo, envolvendo também o levantamento da genealogia familiar como um primeiro pretexto à prosa. A ideia da conversa partiu da arqueóloga Patrícia Marinho, interessada em conhecer a trajetória das irmãs no interior da Umbanda e as possibilidades de instigar as memórias das práticas religiosas no contexto da fazenda.434 Essa foi uma oportunidade para que se pudesse ter uma noção mais próxima da relação afetiva das irmãs com o lugar, uma vez que, apesar de nascidas na Fazenda do Colégio, mudaram-se para outra fazenda próxima ainda na infância. Essa relação afetiva foi marcante pois o arruamento foi o seu espaço de convivência até a adolescência; os pais ali tinham nascido e continuaram a manter relações de amizade e compadrio com os moradores do arruamento mesmo após se mudarem para outro local. Apesar de ambas serem mães de santo em um terreiro de Umbanda, Gina comentou sobre a rejeição de seus “dons” durante boa parte da sua vida, até se envolver plenamente na Umbanda: Gina: às vezes seu dom é bater o tambor, ser o rodante, que recebe os santos. E eu infelizmente nasci com esse dom, eu não, minha família toda... Mas eu não aceitei, até os 33 anos eu não aceitei...depois não teve jeito, ou ia pra ali ou ia para o sanatório...entre o sanatório e a macumba eu prefiro a macumba, que não é macumba é “bem cumba”... porque não faz maldade para ninguém, a gente só faz o bem né... Mas é dom né, todo mundo tem basta desenvolver.. às vezes a vida tá um nó, a gente não entende... 434 Interesse motivado pelas sua própria trajetória de pesquisa etnoarqueológica nos contextos de terreiro em São Paulo e Mato Grosso. Cf. CARVALHO, Patrícia Marinho. A travessia atlântica de árvores sagradas: estudos de paisagem e arqueologia em área remanescente de quilombo em Vila Bela/MT. Dissertação (Mestrado em Arqueologia) Museu de Arqueologia e Etnologia/ USP, São Paulo, 271 f., 2012. Na ocasião da roda de conversa participaram, além de Patrícia e eu, Luís Symanski e Delphine Fortier, cineasta martiniquense que realizava filmagens para um documentário sobre mulheres negras na diáspora, intitulado Afro-Trip Project: Brazil.
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A menção do dom espiritual como algo onipresente em sua família foi uma das poucas menções sobre religiosidade no contexto da Fazenda do Colégio. Não há informações de que no passado, nem atualmente, o lugar teria sido usado para celebrações específicas ou obrigações da Umbanda – em contraste com o papel das festividades católicas, sempre recordadas por diversos interlocutores. Ainda assim, o lugar e sua ancestralidade relacionada às pessoas mais antigas da fazenda teriam sim pertinência em suas experiências com a Umbanda, como a continuidade da conversa mais adiante, na escavação, iria sugerir. Autores como Maria de Lourdes Ribeiro e Robert Slenes, tem discutido as aproximações entre o universo do jongo e das religiosidades afro-brasileiras435 – indicando a importância que os referenciais culturais centro-africanos desempenham em ambas as práticas culturais. Ao falar sobre a genealogia familiar, o tema da escravidão se fez presente sem que fossem feitas questões específicas sobre o assunto. A memória dos antepassados no arruamento está atrelada à vida na Fazenda do Colégio: Jeni: Meu pai nasceu em 1902, Gina diz que ele era de 1910.. meu avô acredito que seja de 1800 e qualquer coisa... Luís: Então bota aí, seu bisavô pode ser de 1850 né... seria uma boa projeção. Gina: Por aí. Jeni: Diz que a minha bisa não aceitou ser escravizada... Gina: Que era índia né... Jeni: Diz que ela fez greve de fome, morreu e deixou o bebê, meu biso ficou bebê. Paty: Ah, então é a mãe do seu Bisavô... Vocês lembram o nome dela? 435 RIBEIRO, Maria de Lourdes Borges. O Jongo Cadernos do Folclore, 34. Rio de Janeiro:Funarte, 1984; SLENES, Robert. Eu venho de muito longe, eu venho cavando: jongueiros cumba na senzala centro-africana In: LARA, Silvia H.; PACHECO, Gustavo (Org.). Memória do Jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein, Vassouras, 1949. Rio de Janeiro: Folha Seca, 2007 p. 109-156.
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Gina: Dela não, dele [o bisavô] sim... Era tipo um capataz. Jeni: Diziam que ele era protegido, porque quem pegou ele para criar era um capataz... Tava mais perto do pessoal que tinha dinheiro. Luís: E a mulher que casou com ele? Gina: Isso não sei... Lembro do nome da minha vó, era Eugenia por parte de pai... Disseram que ela era descendente de africanos... deixavam na praia de Guaximdiba.436
Por outro lado, ao reconhecer a atuação de vários agentes na produção da memória, uma via frutífera para tal seria atentar para como o passado se “materializa” em um “sítio”.437 Quando fomos ao local das escavações, iniciadas havia pouco mais de uma semana, alguns contextos estavam sendo identificados em uma trincheira, e parte dos materiais encontrados estavam dispostos em uma espécie de exposição em campo, o que gerou situações de diálogos sobre a procedência, as funções e a antiguidades dos objetos. Fragmentos cerâmicos (como uma alça), louças e vidros de remédios (frasco de óleo de rícino, penicilina, tinteiro) serviram de gatilhos para memórias, bem como colocavam em questão a forma convencional de conceber a cronologia com base na sobreposição estratigráfica e datação relativa de louças, ainda que os processos pós-deposicionais fossem tomados em consideração. Ainda que façam referência a distintas temporalidades, os vestígios arqueológicos mediavam lembranças afetivas e memórias sensoriais de um passado recente na trajetória de vida das irmãs: Luís: Como é que vocês sabem que isso aqui [refere-se à alça em cerâmica] era para roça, porque tinha o que ficava em casa e que... [interrompido pela interlocutora] Gina: Mas o que ficava em casa tinha a talha de água, também de barro, enorme, e tinha a moringa. Moringa era para na hora que a 436 Gravação de vídeo realizada no dia 15 de julho de 2014. 437 MIXTER, David W.; HENRY, Edward R. Introduction of Webs of Memory, Frames of Power: collective remembering in the archaeological record. Journal of Archaeological Method And Theory, Feb. 2017, p. 1-9.
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visita chegasse, dava água na moringa, e a gente tomava da talha. E o moringo era pra roça, carrega na alcinha assim... Jeni: Vidro de óleo de rícino era comprado na farmácia para muita coisa. Tinha gente que botava no cabelo, era laxante, e tomavam quando criança..era usado para asma (esfregado nas costas)... Gina: Usava muito, nem se fala... Luís: E a mãe de vocês dava óleo de rícino, nesses frascos aqui? Gina: Dava, ainda mais eu que era alérgica, toda mudança de tempo me dava asma. Aí, era isso aí esfregava nas costas da gente, no peito e a colherada... ai, não gosto nem de lembrar... [...] Jeni: Ah isso aí foi o colar de alguma rainha aí que arrebentou... Gina: Pelo amor de Deus Jeni aqui não teve rainha não. Jeni: Isso você não sabe... Gina: Podia ter visitando né. Luís: Teve a rainha da congada né? Gina: Também, exatamente. Jeni: Aí para saber que tem esses anos todos você mete numa máquina é? Luís: Não, é porque é o seguinte, isso aí veio lá de baixo do buraco, e tem os objetos que a gente sabe, porque tem catálogo que sabe de quando é, e conforme a fundura do buraco...438
438 Gravação de vídeo realizada no dia 15 de julho de 2014.
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A relação com a cultura material em um contexto que evoca lembranças e um sentido de pertencimento ao arruamento envolve afetos ao lugar e os “efeitos” produzidos pela dinâmica de interação durante a pesquisa arqueológica. Dentre os materiais, chamava a atenção a diversidade de contas de vidro que estavam sendo evidenciadas, em tamanhos e cores variadas. O tema da religiosidade, então, voltara à discussão, com questionamentos sobre a associação de certas cores às guias de certos orixás, entre outras questões. Em uma dessas conversas, em que se questionava se um dos membros da equipe de pesquisa teria ou não um santo, Dona Gina recordou-se de uma situação ocorrida nas escavações em 2012, quando em outra área relacionada ao espaço da senzala439, foi encontrado um anel – que permitiu uma reflexão sobre seu lugar e a sua religiosidade naquele contexto, a partir do “mistério” que o vestígio arqueológico revelara: Gina: Olha Jeni, isso aí é uma miçanga de guia. Jeni: E a outra também parecidíssima... Gina: É, as sete linhas que daí representa todos os santos, a gente tem essa também, que ela leva 7 cores, ali representa todos os santos. Jeni: No caso de nós que temos os santos... Porque esse aqui [aponta para Luís] não tem. Gina: Claro que tem, todo mundo tem. É como diz, depende da evolução. Se você chega num terreiro de umbanda, eu vim aqui para joga, sabê se eu tenho santo se eu não tenho, se tiver o que que ele vai ser... Ele ali vai jogar e vai dizer tudo para você. Se não tá te prejudicando, você deixa para lá, cuida bem dele, cuida bem assim... Respeito, e deixa pra lá. Mas se disser: você tem que cuidar e você procura saber de que jeito você possa cuidar. Porque se você trabalha você não pode cuidar como nós que somos aposentadas podemos nos entregar mais. Então aí aquele lado de lá vai entender o teu lado, ela trabalha não vai poder tá aqui na hora que tem que começa... Então sempre tem um jeito pa pode satis439 SYMANSKI, Luís C.P.; GOMES, Flávio S. SUGUIMATSU, Isabela C. Práticas de descarte de refugo em uma plantation escravista: o caso da fazenda do Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes. Revista de Arqueologia, v. 28, n. 1, p. 93-122, 2015.
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faze a parte espiritual sem que ela te prejudique, entendeu? Mas através do jogo. E não é qualquer pessoa que joga não...porque meu pai de santo joga, mas...foi o primeiro, daqui. Porque eu passei lá pelo Rio em dois e nenhum conseguiu me desvendar o meu segredo, o meu mistério, a gente tem mistério! Seu Luís é que sabe o mistério. O senhor não lembra do anelzinho, que não deu no dedo de ninguém? Foi e entrou no meu dedo. Por quê? Eu tenho um pé aqui na cozinha, e as outras todas que tavam aqui ninguém tinha o pé na cozinha, entendeu? e a gente para pra analisar, não é aquela coisa assim...não deu em nenhuma de vocês, em mim...eu tenho um pé na cozinha. Quer dizer, isso não é pra gente levar e ficar...ah porquê...nada a gente pode ficar levar, ficar com caduquisse ou certas coisas. Mas pensando bem, funciona...440
Esse diálogo figura como um importante exemplo de como a cultura material pode ser mobilizada em uma narrativa que procura dar sentido à experiência individual – marcada por uma religiosidade intimamente relacionada à ancestralidade “localizada” na paisagem da Fazenda do Colégio; religiosidade essa marcada por ter “um pé na cozinha”. A experiência da escavação arqueológica ensejou situações que permitem observar a maneira com a memória não seria formada apenas nas situações de lembranças, mas criadas e transformadas em conversações e interações sociais. Esse aspecto interativo da memória em relação à materialidade, como já apontaram Sian Jones e Lynette Russell, tem pertinência na medida em que se valoriza a maneira como as pessoas se apropriam dos vestígios arqueológicos para falar e refletir sobre sua experiência no presente, a partir de uma concepção do passado daquele lugar.441 Durante as escavações em 2016, a experiência de acompanhar a escavação e visualizar não só os objetos em si, mas o material sendo evidenciado in loco, propiciou outras dinâmicas de relembranças com a cultura material. Ao observarem uma feição arqueológica (Figura 7.4) repleta de ossos bovinos (nesse contexto havia parte de uma cabeça e algumas patas de boi), Rubens e Gil Roberto lembraram sobre a infância e como aquela disposição dos ossos remetia a forma como comiam a carne cedida pelo açougue da fazenda: 440 Gravação de vídeo realizada no dia 15 de julho de 2014. 441 JONES, Siân; RUSSELL, Lynette, op cit.
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Gil: Isso aí que você tá mostrando, a cabeça do boi... Aí você tirava, depois que tirava a carne toda, abria a cabeça do boi pra tirar o miolo. Rubens: a gente era criado aqui... Pra come carne de boi fresca só assim... Luís: Fresca...só a cabeça e a pata... Rubens: A carne melhor do boi ia lá pra cidade... Gil: Outra coisa do boi também, que ele esqueceu de falar...o beiço do boi, a gente apanhava pra pôr no feijão... Gostoso demais... Luís: Tá, mas como é que fazia a pata do boi...que a gente tá encontrando muito... Rubens: Ah, isso aí a gente pegava uma machadinha, desse tamanho assim, aí cortava ela todinha, abria, cortava, picava, as vezes botava pra salgar num arame, deixava ali dois três dias, depois ia aproveitando no feijão, com osso e tudo.. Gil: Aí as criançada ficava chupando ali Rubens: O tutano do boi. Gil: O pé do boi também, a gente picava todinho e fazia, o mocotó... Luís: Agora vê né, porque é impressionante, aqui ó, a gente tá trabalhando, é de 200 anos atrás. A gente sabe que é de 200 anos porque isso aqui é louça do tempo dos portugueses, tem 200 anos essas louças.. então essa história que vocês tão nos contando, tá vendo que é coisa aqui, que os bisavós, avós de vocês tavam fazendo aqui.. Gil: Ó, o vô dele morou aqui ó (indica local próximo à escavação). Rubens: Meu avô morou aí né, agora é só mato... Ele gostava de toca um violão né, aí depois que a esposa dele faleceu, a minha vó, ele veio morar aqui sozinho, não queria morar com ninguém não.442 442 Gravação de vídeo da interação em campo de Gil Roberto e Rubens no dia 22/07/2016. Agradeço ao registro oportuno de Isabela Suguimatsu e Patrícia Letro.
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Figura 7.4 - Feição de deposição com ossos bovinos analisada por Gil e Rubens. Fonte: O Autor.
Além disso, a associação com materiais mais antigos indicara que aquela feição correspondia a um contexto de deposição mais antigo. Com efeito, aquele lugar em especial não era tomado como um contexto de deposição de lixo durante os anos em que os interlocutores viveram no arruamento. Em outro momento, Ataíde comentou que aquela área era mantida sem vegetação, pois se situava em frente às casas, onde se organizavam terreiros para festas, cavalhadas – além de estar muito próxima ao campo de futebol estabelecido em 1952 – de modo que o descarte de resíduos pode estar associado ao “tempo dos antigos”, como comentou Gil Roberto em outro contexto. Assim, se a feição arqueológica e as lembranças associadas a ela não permitem inferir um contexto de continuidade direta de práticas ao longo do tempo – na medida em que as referências mnemônicas são relativas ao vestígio de alimentação, e não ao contexto de deposição propriamente – por outro lado, ilustram como a materialidade (nesse caso, relacionada aos restos alimentares descartados) pode evocar múltiplas temporalidades, cujas ressonâncias se apresentam nas possibili217
dades de pensar que tanto no “tempos dos antigos” como no “tempo do arruamento” havia o consumo das partes menos nobres do boi. A reticência em tomar a narrativa sobre a forma de preparo e consumo do boi como analogia direta a um contexto mais antigo se faz pertinente pela necessidade de refletir acerca das conexões entre o contexto da senzala e o do arruamento – conexões nem sempre enunciadas pelos interlocutores, e que, portanto, devem ser sopesadas pela narrativa arqueológica. Scott Allen comentou que muito dos essencialismos que embasam os “afrofatos” implicam nas marcadas incongruências entre narrativas arqueológicas voltadas para a comunidade científica e aquelas voltadas para o público.443 Ainda que o contexto da Fazenda do Colégio tenha se favorecido pelas riquezas de fontes históricas e orais, várias lacunas precisam ser preenchidas para se entender as várias formas de se habitar a fazenda do Colégio (que envolvem caracterizar estruturas de moradia, quintais, roças), sobretudo quando retratamos ex-moradores, seus antepassados livres, libertos e cativos. Em uma das dinâmicas em campo para se localizar na paisagem do arruamento, Gil Roberto indicou uma área nos fundos do Solar do Colégio, distante do arruamento (ver figura 7.3). Nessa área, sua mãe e avó nasceram e viveram, de modo que a sucessão de gerações permitiu que Gil refletisse sobre a antiguidade da sua própria casa, a qual não conseguiu situar pela dificuldade do exercício de lembrar. Com efeito, os tijolos evidenciados nos arredores do Solar e no arruamento, fossem em superfície, ou em intervenções recentes no solo, foram uma das categorias materiais relacionadas às moradias que permitiram reflexões sobre as durações e continuidades em tempos distintos, esquecidos, mas que sempre ressoam na paisagem do Solar do Colégio: Gil: É... Aqui era um quintal... Tinha muita fruta, goiaba.. Fernando: Não tem tijolo na área? Gil: Isso aí arrancaram tudo... Tá vendo aquela cerca? Então, tinha duas casas aqui, uma pra cá e outra pra lá da cerca... A nossa era por aqui assim... Eu nasci e me criei aqui, sai com 20 anos. A minha vó morou 70 anos aqui. Uma área boa pra você trabalha... Você tá encon443 ALLEN, Scott. Afrofatos. Vestígios – Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica, v. 10, n. 1, jan./jun. . 2016, p. 102.
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trando lá né? [se refere às escavações] aqui ceis vai acha um absurdo! Uma área conforme essa aqui, que era tudo dos escravos... Gil: Aqui nos fundos tinha um despejo de muitas coisa aqui... Tinha um depósito aqui nos fundos, eles traziam a gente não sabia o que, não abriam pra gente vê. Ai tinha tudo aqui, aí tiraram não sei onde botaram. Fernando: Era do tempo do Barroso que tinha esse deposito aqui? Gil: Sérgio Viana Barroso, depois que veio o Sr. Barroso... Tá vendo essa tijolada, tinha casa aqui... Só tijolo maciço. Fernando: Mas era um depósito aqui? Gil: Era um depósito mas eu acredito que deveria ser dos escravos né? Porque tem um monte de escombro... os escravos não tinham grande valor aí jogavam em qualquer lugar... Isso aqui era serviço dos escravos né... [...] Fernando: então o senhor acha que a casa que o senhor morou era ali mesmo, aquela parte de trás ali... Gil: É, a parte de trás ali. Aqui tinha um acero e tinha uma cancela lá, nois vinha por aqui, entra na cancela e vinha embora pra nossa casa..aí tinha a nossa mais ou menos aqui e mais duas para o fundo... Entendeu? Tudo deles aí [dos Barroso] veja aí, minha vó veio morar aqui já tinha essa casa... ela morou aí uns 70 anos, a casa devia ter já uns cento e tantos anos.
Também nas memórias de Antogui March, tijolos como esses figuraram como evidências dos processos de remodelações do Solar do Colégio, que teve uma ala demolida em algum momento entre 1818 (ano em que Auguste de Saint-Hilaire retratou o Solar com duas alas simétricas que tomavam a capela como centro) e o início do século XX, momento em que o autor contava com a memória de suas vivências. Os adobes usados nos muros mais recentes mediriam 0,15x0,12x0,30m e tinham feitio mais achatado, além de serem mais quebradiços. Os tijolos mais maciços (0,2 x 219
0,2x x 0,3m) são similares aos evidenciados no arruamento, sugerindo que as casas reutilizadas eram feitas com os materiais das antigas senzalas e do Solar, construído pelos jesuítas nos fins do século XVII. 444
Considerações Finais Ao explorar os sentidos, as apropriações do passado e a relação com a materialidade entre os ex-moradores da comunidade do arruamento, o diálogo com os mais velhos foi, via de regra, a condição para entender os processos de ativação da memória, na medida em que “as pessoas constroem memórias sociais através dos seus engajamentos com outras pessoas (vivas bem como seus ancestrais) e através da interação com a cultura material”.445 Nesse processo, o sítio arqueológico enquanto um “sítio de memória” evocou lembranças e alocou materiais mnemônicos. Por outro lado, ao procurar levantar áreas de relevância enquanto lugares de memória da família e da trajetória de vida dos interlocutores, observei como os interesses do público interessado na pesquisa, que possuía vínculos geracionais com o local, pôde conduzir a pesquisa para outros caminhos – tanto no sentido de refletir sobre quais materialidades importavam como na definição de áreas de escavação relacionadas diretamente com suas vivências e moradias na fazenda. Compreender a distribuição espacial e temporal das práticas que produziram o registro arqueológico é uma etapa desse projeto de longo termo, fundamental para conectar memória e materialidade. Desse modo, o registro arqueológico e a memória das áreas de festa no arruamento permitiram entender como quintais e terreiros se articulavam no contexto das moradias dos trabalhadores da Fazenda do Colégio e as correlações temporais com a comunidade de senzala. Ainda, a possibilidade de tomar o jongo como uma forma de discurso histórico, que registra atividades dos jongueiros que viveram na Fazenda do Colégio, foi uma forma experimental de agregar outras narrativas sobre o cotidiano do arruamento nesse experimento etnográfico e arqueológico, bem como de valorizar as formas de expressões reconhecidas como patrimônio imaterial e instrumentos de lutas políticas e afirmações identitárias de várias comunidades negras no sudeste. 444 MARCH, op cit., p. 55. 445 HAMILAKIS, Yannis.; LABANYI, Jo., op cit., p. 13-14.
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Uma das últimas atividades que realizei no contexto do Colégio foi um encontro com uma mestra jongueira da geração de Gina e Jeni, conhecida como Noinha (Geneci Maria da Penha) e que em Campos tem sido a principal figura do jongo de raiz, baseado na herança familiar. A ideia era poder trocar experiências sobre o jongo e criar um espaço em que elas pudessem apresentar os jongos da fazenda do Colégio, bem como iniciar algumas tentativas de mobilizar outros agentes locais na prática pública e na forma como temos pensado em fazer arqueologia. Noinha nos trouxe uma série de jongos para compartilhar suas experiências como mestre jongueira com as pessoas que conheciam o jongo do Colégio. Na sua seleção (desafios, homenagens a antigos mestres), o último jongo,446 composto recentemente, foi o único que, em suas palavras, “destoava da caracterização mais comum do jongo”, ao retratar temas cotidianos. Apesar da escolha desse jongo não ter sido explicitada pela jongueira, tomo-o como referência a um passado comum, compartilhado pelos negros dos canaviais campistas. Ele permitiu gerar reflexões no público (que naquele contexto, eu fazia parte) sobre as fazendas e suas paisagens sonoras; sons, “esperanças e recordações” de outros tempos, que ainda ecoam das antigas áreas de senzalas: Meu bivô veio do Congo
Não esqueceu o seu tambor
Mas que pra aqui veio escravizado Onde lá era senhor
Mas entrou com Zacarias Perguntou por Jeremias
Ele então lhe respondeu: na senzala sim senhor. Mas a senzala está trancada, E lá dentro meu avô,
De tanto leva lambada, Está gemendo de dor,
Eu falei: bate o tambor,
Preto Congo, bate o tambor, E liberta meu avô.447
446 Jongo no Solar do Colégio #1. Disponível em: https://youtu.be/IsRVmS-N1iw. Acesso em: 15 maio. 2017. 447 Gravação da oficina do Jongo no Colégio em 14 de outubro de 2016.
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Sobre os autores Luís Cláudio Pereira Symanski Professor adjunto do Departamento de Antropologia e Arqueologia e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais. É professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Paraná. Possui mestrado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PhD em Antropologia-Arqueologia pela Universidade da Florida. Tem experiência na área de Arqueologia, com ênfase em Arqueologia Histórica, atuando principalmente nos seguintes temas: Arqueologia Histórica, Arqueologia da Diáspora Africana, Teoria da Prática, Teorias de Contato Cultural, Grupos Domésticos. Exerceu a função de Primeiro Secretário da Sociedade de Arqueologia Brasileira no biênio 2009-2011 e de Segundo Secretário no biênio 2011-2013. Foi professor adjunto do Departamento de Antropologia e do Programa de PósGraduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Paraná entre os anos de 2008 e 2012. Bolsista de produtividade do CNPq.
Flávio dos Santos Gomes Atua como Professor dos programas de pós-graduação em História Comparada (UFRJ) e História (UFBA). Possui licenciatura em Historia pela UERJ, bacharelado em Ciências Sociais pela UFRJ, mestrado em História Social do Trabalho e doutorado em História Social, ambas pela Unicamp. Tem publicado livros, coletâneas e artigos em periódicos nacionais e estrangeiros, atuando na área de Brasil colonial e pós-colonial, escravidão, Amazônia, fronteiras e campesinato negro. Em 2009 obteve a John Simon Guggenheim Foundation Fellowship. Foi pesquisador Cientista do Nosso Estado da FAPERJ (2013-2017). Desenvolve pesquisas em história comparada, cultura material, escravidão e pós-emancipação no Brasil, América Latina e Caribe, especialmente Venezuela, 222
Colômbia, Guiana Francesa e Cuba. Atua no Laboratório de Estudos de História Atlântica das sociedades coloniais e pós-coloniais (LEHA) do Instituto de História da UFRJ. Bolsista de produtividade do CNPq.
Maurício Hepp Doutorando em Antropologia (concentração em Arqueologia) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Paraná. Bacharel em História pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Atua na área de Arqueologia, dispondo de experiência em Arqueologia Pré-Histórica, Análise Cerâmica, Métodos e Técnicas de Pesquisa Arqueológica e Gestão do Patrimônio Arqueológico
Isabela Cristina Suguimatsu Mestre em Antropologia (concentração em Arqueologia) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná, com ênfase em Antropologia/Arqueologia. Tem experiência em Arqueologia, com foco em Arqueologia Histórica e da Escravidão.
Fernando Silva Myashita Mestre em Antropologia (concentração em Arqueologia) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia/Arqueologia pela Universidade Federal do Paraná. Possui experiência em Arqueologia, com ênfase em arqueologia histórica e em projetos de consultoria no âmbito do licenciamento ambiental.
Paula Aguiar da Silva Azevedo Mestre em Antropologia (concentração em Arqueologia) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal 223
de Minas Gerais. Bacharel em Conservação e Restauração de Bens Culturais pela Universidade Federal de Pelotas. Gestora de acervo antropológico do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Desenvolve pesquisas na área de preservação preventiva e arqueologia.
Victor Gomes Monteiro Doutorando em antropologia (concentração em Arqueologia) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Antropologia (concentração em arqueologia) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pelotas. Bacharel em História pela mesma universidade. Pesquisador colaborador do Laboratório de estudos Interdisciplinares sobre Cultura Material da UFPEL.
Geraldo Pereira de Morais Júnior Mestrando em Antropologia (concentração em Arqueologia) pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Antropologia pela mesma universidade. Desenvolve pesquisas na área de zooarqueologia histórica.
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