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Portuguese Pages 303 [306] Year 1994
ÍNDICE
UM PROGRAMA DE INVESTIGAÇÃO .................... …………………………1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 5
1. Alguns problemas prévios ................................................................ 5 a) Sobre os Cancioneiros ............................................................ 5 b) Sobre a delimitação do corpus satírico nos Cancioneiros 7 c) Sobr e o s texto s ................................ ...................... 9 d) So b r e a mú s i ca ................................ ..................... 10 2. O corpus satírico dos Cancioneiros: questões gerais .................. 13 a) Alguns números. ....................................................................... 13 b) Escárnio e maldizer: os géneros ............................................. 16 c) Dois séculos de poesia .............................................................. 18
I – AS RAÍZES I. UMA TRADIÇÃO SATÍRICA .................................................................... 23
1. Do rito à sátira: a tradição clássica .....................................24 2. Outras tradições .......................................................... 34 3. Aspetos da sátira medieval ............................................... 39 a) A tradição popular carnavalesca ............................................ 39 b) A literatura medieval de tipo carnavalesco ............................. 41 c) A tradição da sátira clássica ................................................. 43 d) Outras tradições ......................................................................... 48 4. Os Cancioneiros e as tradições satíricas .............................. 50 5. Uma questão de linguagem ............................................ 58
I I – O C A N C I O N E I R O S AT Í R I C O GALEGO-PORTUGUÊS
1. A ARTE DE TROVAR ............................................................................... 71
1. As categorias da «Arte de Trovar» .............................................. 73 a) O escárnio e o maldizer ......................................................... 75 b) Cantigas de «joguete de arteiro», cantigas «de risabelha»…. 86 c) Tenções ................................ ............................... 8 8 d) Cantigas de vilão s ..................................................... 89 e) Cantigas de seguir ................................................... 96 2. Outras categorias e recursos satíricos ....................................... 107 a) Sirventês ........................................................................ 108 b) De sco r d o ................................ ......................... .. 1 1 1
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c) Variações na invetiva .......................................................... 113 O maldizer aposto ............................................................ 1 1 3 A «defesa» do visado ......................................................... 1 3 5 d) Os ciclos narrativos ............................................... 137 e) A paródia ................................................................. 140 f) Outros recursos .................................................................. 151 O jogo com os limites de géneros .......................................... 151 Questões de linguagem ........................................................ 1 6 0 3. Da música e das formas de apresentação ............................... 165 II. O CORPUS SATÍRICO GALEGO -PORTUGUÊS .............................. 1 7 6 -
1 . Per so nagens e mo tivo s ................................ ............. 1 7 6 2 . Um u ni ver so d o q uo t id ia no ................................ ...... 1 8 7 a) As cantigas dirigidas a soldadeiras ............................... 189 b) Cantigas dirigidas a religiosas ...................................... 196 c) Cantigas dirigidas a criadas/alcoviteiras ....................... 199 d) Cantigas dirigidas a mulheres várias ........................ 2 0 0 e) Cantigas dirigidas a clérigos, ao alto clero e ao Papa ..... 205 f) Cantigas d ir igidas a Deus ................................ ..... 2 0 9 g) Cantigas dirigidas à alta nobreza e aos altos funcionários ....................................................................... 2 1 3 h) Cantigas dirigidas ao rei ........................................... 220 i) Cantigas dirigidas a ricos-homens e infanções, cavaleiros e escudeiros ..................................................... 2 2 4 j) Cantigas dirigidas aos cavaleiros das campanhas da Andaluzia ……………………………………………….231 l) Cantigas dirigidas aos alcaides aquando da deposição de D. Sancho II ................................................................ 2 3 4 m) Cantigas d ir igidas a ho mens d e leis ...................... 2 3 6 n) Cantigas dirigidas a médicos .................................. 2 3 7 o) Cantigas dirigidas a mercadores ............................. 2 3 9 p) Cantigas dirigidas a vilãos e burgueses ......................... 240 q) Cantigas dirigidas a castelhanos ................................ 246 r ) Cantigas dirigidas a j udeus ..................................... 2 4 7 s) Cantigas dirigidas a mouros .................................... 2 4 8 t) Cantigas dirigidas a personagens várias ......................... 252 u) Cantigas d e car á ter ger al ................................ ...... 2 5 6 v) Cantigas que trovadores e jograis mutuamente se dirigem ....................................................................................... 2 5 8 3. As constantes ............................................................................... 283 CONCLUSÃO ........................................................................................... 2 9 2
Os caminhos futuros ................................................................... 2 9 2
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................ 3 0 0
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UM PROGRAMA DE INVESTIGAÇÃO
A imagem que ainda hoje, em grande medida, prevalece da Idade Média é tributária do romantismo. E o menos que se pode dizer, sem com isto retirar o mérito ao grande trabalho romântico, é que é uma imagem incompleta. Ao nível da literatura, nomeadamente, a redescoberta dos primitivos Cancioneiros e a divulgação da extraordinária riqueza do lirismo galego-português, presente nas cantigas de amigo e nas cantigas de amor, deixou na sombra, quase até aos nossos dias, os textos que nesses Cancioneiros lhes fazem contraponto, as cantigas de escárnio e maldizer, cuja riqueza crítica e satírica não é, no entanto, menos extraordinária. Coadunando-se mal com a imagem de um primitivismo ingénuo e delicado, imagem em tudo adequada ao espírito romântico, os cantares satíricos, na sua rudeza muitas vezes obscena, constituíram, durante muito tempo, ou um obstáculo incómodo e silenciado, ou uma parte considerada menor e por isso menosprezada da nossa lírica primitiva. E no entanto, nos Cancioneiros medievais galego-portugueses, a sátira aparece em pé de igualdade com todas as outras formas poéticas. Não há, nestes Cancioneiros, géneros maiores ou menores. E ainda que nada saibamos de concreto sobre os critérios seletivos do seu compilador ou compiladores, o certo é que, à primeira vista, eles não parecem ter utilizado qualquer filtro seletivo de ordem moral. Isto faz com que, de um mesmo trovador, possam coexistir poemas do mais delicado lirismo a par das mais desbragadas cantigas satíricas, como é o caso, entre inúmeros outros, de Afonso X, o Sábio de Castela. Compilados provavelmente numa época próxima do florescimento da escola galego-portuguesa, os Cancioneiros refletem assim, na sua própria organização, o ambiente literário medieval – onde sátira e lirismo parecem ser indissociáveis. Situação que, como dissemos, não deixou de levantar até hoje inúmeras dificuldades. Assim, e apesar do notável esforço de Carolina Michaëlis de Vasconcelos
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que, desde os finais do século XIX, tinha vindo a editar uma parte das cantigas de escárnio e maldizer em revistas especializadas, só em 1965 o Prof. Rodrigues Lapa as reuniu em volume e as tornou acessíveis ao grande público. E desde então até agora, e se excetuarmos alguns estudos parcelares, o corpus satírico dos Cancioneiros não foi objeto de nenhum estudo global. A primeira intenção deste trabalho é iniciar esse estudo, indispensável para uma compreensão mais exata do que foi, no seu conjunto, a lírica galego-portuguesa. Mas as cantigas de escárnio e maldizer, para além de constituírem parte integrante (e considerável) da lírica medieval, com os seus temas e formas próprias – para além, pois, do seu valor poético e mesmo do seu valor como documentos históricoculturais –, são ainda importantes por outro motivo: é que elas permitem, ao mesmo tempo, definir o que poderemos designar como os bastidores dessa lírica, as suas condições, modos e formas de produção. De facto, há nestas cantigas inúmeras referências à arte de trovar, referências cuja importância já em 1929 Rodrigues Lapa salientava: «Nas cantigas de maldizer e nas tenções há muita nota dispersa sobre a arte jogralesca que conviria coligir em estudo separado, para se tirarem com segurança e serenidade as necessárias conclusões»1. Esta sugestão de Rodrigues Lapa norteia a segunda intenção deste trabalho: a de estudar essas referências que, conjuntamente com a «Arte de Trovar», o fragmentário tratado com que se inicia o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, e mais algumas raras referências exteriores, constituem os únicos documentos ao nosso alcance para a definição, ou, pelo menos, para uma aproximação do que foi a arte de trovar própria da escola galego-portuguesa. Como corretamente aponta Jean-Marie d’Heur no pequeno estudo que acompanha a sua edição da «Arte de Trovar»2 , na Idade Média ética e estética são questões dificilmente separáveis. As duas intenções deste trabalho, orientando-se para o que, à partida, parecem ser universos de estudo distintos, revelam-se, num segundo momento, complementares. Os poemas satíricos medievais, mesmo quando aparentemente afastados das questões que dizem respeito especificamente à arte trovadoresca, funcionam muitas vezes como o que Pierre Bec chama «contratextos»3, textos que, no
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Das origens da poesia lírica em Portugal, Lisboa 1929 «L’Art de Trouver du Chansonier Colocci-Brancuti. Edition et analyse» in Arquivos do Centro Cultural Português, t. IX, Paris 1975. 3 Burlesque et obscénité chez les troubadours, Paris, Stock Moyen Age, 1987. 2
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interior de um código literário específico, o desviam para fins lúdicos e burlescos, acrescentando-lhe um conteúdo marginal ou mesmo subversivo. Comentários subtis de uma arte poética mais geral, muitas das cantigas de escárnio e maldizer só ganham, pois, sentido quando lidas contra o pano de fundo de uma poética subjacente – que é, ao mesmo tempo, uma ética – na qual, por exemplo, as hierarquias sociais (como é o caso, entre outros, da diferença de estatutos entre trovadores e jograis) se encontravam em pleno funcionamento. Os textos satíricos em geral, quer contenham ou não referências explícitas à arte de trovar, são assim, no seu conjunto, documentos indispensáveis ao estudo da escola, que representa, a todos os títulos, um dos pontos mais altos da cultura portuguesa e peninsular. Duas palavras relacionadas com o presente trabalho. A primeira diz respeito às opções de investigação que tivemos necessariamente que fazer, dada a extensão do corpus aqui considerado. Uma delas, que se justifica, a nosso ver, pela inexistência de qualquer estudo geral sobre a matéria, foi exatamente a de considerarmos esse corpus na sua totalidade, procurando estudá-lo de uma forma sistemática, mas também, e dada a sua extensão, de uma forma global – procurando, pois, delimitar uma plataforma básica de entendimento sem a qual será difícil avançar para outros rumos. A necessidade de estudos monográficos sobre muitas das matérias aqui abordadas não deve deixar, no entanto, de ser sublinhada. Algumas das hipóteses que formulamos, por exemplo, necessitarão certamente de ser discutida e aprofundadas. As cantigas satíricas galego-portuguesas oferecem um imenso campo de investigação que começa, só agora, a ser abordado. Este trabalho, com a visão de conjunto que o enforma, não pretende senão ser um ponto de partida para tal tarefa. O tom geral de alguns dos seus capítulos encontra também aqui a sua justificação. Limitações de outra ordem dizem respeito às dificuldades (tanto pessoais, como de materiais disponíveis) em abordar determinados campos específicos, como sejam os da música ou mesmo o da poesia árabe peninsular. O risco de superficialidade a que nos expúnhamos entrando nestes campos pareceu-nos, no entanto, valer a pena ser corrido, já que o seu silenciamento equivaleria à caução e ao prolongamento de um hábito crítico que nos parece necessário transformar. A segunda observação, de natureza diferente, diz respeito à utilização, desde o início deste trabalho, da expressão «cantigas satíricas» para designar a matéria que
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aqui nos ocupa. A expressão, que não vai sem dificuldades de vária ordem, tem aqui, diga-se desde já, uma utilização mais pragmática do que propriamente teórica. De facto, nos Cancioneiros, os termos que aparecem a designar o tipo de cantigas que aqui nos ocupa (escárnio, maldizer, posfaçar, chufar, etc.) não o fazem, como veremos, nem de uma forma consistente, nem exclusiva. Assim, a necessidade de encontrar uma designação suficientemente genérica que pudesse dar conta da variedade de cantares aqui abordados está na raiz desta utilização do termo «satírico». Optando, pois, por empregá-lo desde o início desta forma pragmática, remetemos o leitor para o capítulo II, onde ele será mais especificamente discutido e (esperamos) justificado.
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INTRODUÇÃO
1. Alguns problemas prévios Abordar
a
poesia
satírica
galego-portuguesa
significa
defrontarmo-nos
imediatamente com um conjunto de questões de natureza muito geral, mas sem cuja clarificação se torna impossível qualquer posterior vontade de rigor. Um desses problemas, prévio a tudo o resto, é exatamente o da delimitação do corpus a que chamamos satírico, problema cuja resolução não é, como veremos, evidente. A definição das características genéricas deste corpus conduz também a questões de vária ordem, algumas delas de difícil ou mesmo impossível resolução, pelo menos no estado atual da investigação, como igualmente veremos. Esta introdução é também, por isso mesmo, a definição dos limites práticos deste estudo.
a) Sobre os Cancioneiros O nosso conhecimento do que foi a escola galego-portuguesa resume-se, como dissemos, aos textos que até nós chegaram, fundamentalmente através dos três Cancioneiros até agora conhecidos, o Cancioneiro da Ajuda (A), o Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa (B) e o Cancioneiro da Vaticana (V)1. Conservaram-se ainda, isoladamente, o que seriam dois fólios de cancioneiros desaparecidos, o Pergaminho Vindel e Pergaminho Sharrer, ambos descobertos, mais ou menos acidentalmente, já em pleno século XX – o primeiro, que transcreve sete cantigas de amigo do jogral galego Martim Codax, seis delas acompanhadas pela respetiva notação musical, descoberto em 1913, pelo livreiro madrileno Pedro Vindel (e atualmente na
1 Em 1983, reapareceu um outro cancioneiro, o Cancioneiro da Bancroft Library, dado a conhecer pelo Prof. Arthur Askins, da Universidade de Berkley, um manuscrito do séc. XVII que corresponde ao já referenciado mas desaparecido Cancioneiro de um Grande de Espanha, e que se limita a ser uma cópia quase literal de V.
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Pierpont Morgan Library, em Nova Iorque); o segundo, que contém 7 cantigas de amor de D. Dinis, também acompanhadas pela respetiva notação musical, apenas descoberto em 1990, pelo professor norte-americano Harvey Sharrer, na Torre do Tombo (onde se conserva). Ainda que constituindo fontes parciais, já que os textos neles recolhidos representam, quase certamente, apenas uma parte da produção dos trovadores e jograis galego-portugueses, os Cancioneiros são documentos únicos e insubstituíveis, e é, pois, neles que teremos de delimitar o objeto do nosso estudo1. Os problemas que os Cancioneiros colocam aos investigadores são, no entanto, numerosos. Embora não seja este o lugar para os abordar detalhadamente, alguns desses problemas, que, de uma forma ou de outra, se relacionam com o assunto deste estudo, merecem alguma atenção. Muito pouco sabemos de concreto, por exemplo, sobre o modo como se formou a tradição manuscrita galego-portuguesa, questão sobre a qual Carolina Michaëlis, Giuseppe Tavani ou, mais recentemente, Resende de Oliveira elaboraram as suas hipóteses, mais ou menos consistentes2 – pelo que desconhecemos os critérios que presidiram à primitiva compilação dos Cancioneiros. Não recolhendo, ao que tudo indica, todos os cantares da época3, não sabemos também assim se os textos que até nós chegaram representam apenas os textos a que os compiladores tiveram mais fácil acesso, ou, inclusivamente, se terá havido uma triagem na produção trovadoresca (e sobretudo jogralesca) disponível. Nesta última hipótese, que não é genericamente de excluir, a questão dos critérios é fundamental, sobretudo no que diz respeito à poesia satírica, a mais vulnerável a leituras orientadas por fatores exteriores ao domínio propriamente estético. Ainda que, em princípio, tudo pareça indicar uma compilação
1 Uma vez que os Pergaminhos Vindel e Sharrer não contêm cantigas de escárnio e maldizer, referir-nos-emos sempre, ao longo deste trabalho, e como fontes, aos Cancioneiros conservados. 2 Ver, sobre o estado da questão, Tavani, «A tradição manuscrita da lírica medieval» in Ensaios Portugueses, Lisboa, IN/CM, 1988. À data de publicação deste trabalho, está ainda inédita a tese de doutoramento de Resende de Oliveira, contributo valioso em inúmeros aspetos, tese intitulada «Depois do espectáculo trovadoresco. A estrutura dos cancioneiros peninsulares e as recolhas dos séc. XIII e XIV», Faculdade de Letras de Coimbra, 1992. 3 Por exemplo, numa das obras do castelhano D. Juan Manuel (Tratado de las Armas) citam-se dois versos de uma cantiga satírica galego-portuguesa contra o rei D. Jaime de Aragão, não incluída nos Cancioneiros. Também várias cantigas de escárnio e maldizer referem outras que não incluídas nos manuscritos sobreviventes. Teremos oportunidade de nos referirmos mais detalhadamente a estes assuntos.
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que se pretendia genericamente neutra (mais recolha que antologia1), deveremos, pois, ter em conta que, ao falarmos de sátira galego-portuguesa, nos estamos a referir aos textos que os Cancioneiros nos legaram, tal como eles no-los legaram, sem podermos com segurança garantir que esses textos forneçam a imagem exata da produção da escola galego-portuguesa no domínio da sátira. Um outro problema maior relacionado com os Cancioneiros diz respeito ao estado dos próprios textos, tal como chegaram até nós. Na verdade, para além das variantes serem numerosas entre os três manuscritos, os próprios manuscritos oferecem, como se sabe, sérias dificuldades de leitura, quer devido ao mau estado de conservação de certos fólios, quer devido às numerosas lacunas neles existentes, lacunas que fazem ainda com que, para além de cantigas desaparecidas, algumas outras nos tenham chegado incompletas e outras ainda num estado que torna muito difícil a sua reconstituição. O facto de dois dos manuscritos (B e V) serem, eles próprios, cópias quinhentistas, feitas em Itália, de um códice perdido – ainda que realizadas por, ou sob a direção de Angelo Colocci, um humanista de reconhecida competência e cultura – é uma dificuldade suplementar, uma vez que abre caminho a suposições variadas no que diz respeito às relações destes manuscritos com o perdido original. Um outro problema suplementar é também o que diz respeito à autoria dos textos, já que, pelo estado dos manuscritos ou mesmo por lapsos dos copistas, alguns textos continuam a ser de difícil ou, pelo menos, polémica atribuição. Não cabe no âmbito deste trabalho uma análise detalhada destas questões. No entanto, elas não podem deixar de ser referidas, já que representam uma primeira delimitação de ordem prática dos próprios materiais utilizados neste trabalho.
2) Sobre a delimitação de um corpus satírico nos Cancioneiros Um problema de outra ordem, mas igualmente complexo, é o que diz respeito à definição, dentro do corpus geral da poesia galego-portuguesa conservada nos Cancioneiros, do seu corpus especificamente satírico, objeto central deste estudo. As cantigas satíricas são, como é por demais sabido, matéria de definição explícita na «Arte de Trovar», que as classifica, genericamente, em dois grandes grupos, as cantigas de 1
Repare-se no que diz a rubrica que precede as cantigas do judeu Vidal: «E pero que é bem que o bem que home faz se nom perça, mandamo-lo screver...» (B 1605,V 1138).
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escárnio e as cantigas de maldizer. Nos Cancioneiros, algumas cantigas vêm também precedidas (ou, por vezes, seguidas) de rubricas que confirmam as razões do anónimo autor da «Arte de Trovar», e que as integram no respetivo género: «Esta outra cantiga é de maldizer dos que derom os castelos como nom deviam al rei Don Afonso» (B 1477, V 1088); «Esta cantiga fez Martim Soarez em maneira de tençom con Paai Soárez e é d'escarnho» (B 144). Mas a grande maioria das cantigas recolhidas nos Cancioneiros não vem acompanhada de nenhuma especificação, cabendo em geral ao leitor decidir em qual dos géneros a integrar. Em grande parte dos casos, o problema não é difícil, face às diferenças óbvias que separam as cantigas e, para o que nos interessa, ao evidente caráter satírico de muitas delas. Também a própria forma de compilação dos Cancioneiros parece, em princípio, facilitar a tarefa de delimitação dos géneros, já que o critério original de compilação parece ter sido o de ordenar as cantigas, distribuindo-as pelos três grandes géneros, apresentados sucessivamente: cantigas de amor, cantigas de amigo e, por último, cantigas de escárnio e maldizer. Assim, no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, uma rubrica indica explicitamente, antes do n" 1330, «aqui se começam as cantigas d'ercárnio e de mal dizer». O problema complica-se, no entanto, com o facto de esta ordenação não ser de modo nenhum nem rigorosa nem exclusiva, pelo menos em dois dos manuscritos que até nós chegaram (B e V). Na prática, os géneros misturam-se nesses Cancioneiros, havendo, no que diz respeito à matéria que nos ocupa, cantigas nitidamente satíricas na secção correspondente às cantigas de amigo, por exemplo, bem como cantigas de amigo na terceira secção das cantigas de escárnio e maldizer. A inclusão posterior de cancioneiros individuais no que é comum designar por primitivo arquétipo desaparecido, e que estaria ordenado nas três grandes secções citadas, poderá explicar este estado de certa forma desordenado dos manuscritos que chegaram até nós. Há, pois, muitas mais cantigas satíricas do que as incluídas na respetiva secção. Como dissemos, o evidente carácter satírico de muitas delas torna fácil a sua classificação. Mas, em relação a muitas outras, este caráter pode não ser tão evidente. Por outro lado, mesmo em A, cancioneiro que tem sido geralmente encarado como exclusivamente de amor, pode ser possível, como veremos, encontrar algumas composições de ambiguidade manifesta. A delimitação de um corpus satírico não é, pois, tão imediata como a rigorosa distinção de géneros feita pelo anónimo autor da «Arte de trovar» deixa pressupor.
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Apesar de tudo, o estudo das canções satíricas medievais da escola galegoportuguesa está hoje em dia grandemente facilitado graças ao notável trabalho de edição de Rodrigues Lapa a que nos referimos. Ao reuni-las em volume à parte, Rodrigues Lapa teve exatamente em conta esta flutuação de géneros de que falámos. Os critérios por ele seguidos na sua compilação são latos: «Deixámo-nos guiar por considerações de largueza, admitindo nesta coleção poesias que tanto caberiam aqui como em outro lado. Bastava que mostrassem uma ponta de humor, inconformidade ou displicência, para poderem aspirar a um lugar na colectânea». Na segunda edição das Cantigas d'escarnho e de mal dizer Rodrigues Lapa acrescentou ainda mais três cantares aos 428 da primeira, o que confirma o caráter de certa forma flutuante do género. O rigor do trabalho de Rodrigues Lapa faz com que os textos por ele reunidos possam constituir assim, grosso modo, a base de trabalho deste estudo. Estudo que, no entanto, não deixa de ter em consideração a restante produção trovadoresca, não só porque, na nossa opinião, alguns textos não coligidos por Rodrigues Lapa deverão acrescentar-se a este corpus, mas também porque há inclusivamente textos cuja subtileza põe em questão a própria divisão nos três géneros tradicionais. Teremos oportunidade de nos referirmos mais detalhadamente ao assunto.
c) Sobre os textos Delimitado, com maior ou menor rigor, o corpus satírico galego-português, um outro problema se nos depara é o que diz respeito aos próprios textos em si e às dificuldades de leitura que eles apresentam. Uma parte deste problema é de carácter geral e prende-se com as já citadas questões do mau estado de conservação de muitas das cantigas dos Cancioneiros, tornando a sua reconstituição difícil, quando não impossível. Sob este aspeto, a edição de Rodrigues Lapa, sem solucionar muitas das questões irresolúveis e optando, algumas vezes, por lições que podem ser discutíveis, constituiu, de novo, uma excelente base de trabalho (que foi confrontada, sempre que possível, com as edições dos cancioneiros individuais posteriormente publicadas)1.
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Na revisão geral deste trabalho agora apresentada (2018), os textos citados e transcritos tomam como referência a sua edição pela equipa da Base de Dados online Cantigas Medievais GalegoPortuguesas, um trabalho efetuado sob a minha coordenação.
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Mas, a este problema geral de leitura, as cantigas de escárnio e maldizer acrescentam um outro muito próprio. É que, mesmo quando verosimilmente reconstituídas do ponto de vista linguístíco, estas cantigas continuam a apresentar sérios problemas de leitura, não só porque a sátira, vivendo de uma linguagem quotidiana, utiliza frequentemente o calão e o jogo de palavras, recursos cujo sentido exato nem sempre é evidente para um leitor atual, mas também porque, vivendo ainda a sátira medieval quase sempre de alusões pessoais e diretas, e sobre circunstâncias particulares, muitos das cantigas estão construídos segundo uma espécie de universo à clé, cuja descodificação, em maior ou menor grau acessível aos contemporâneos, se revela praticamente impossível, uma vez perdida a chave em épocas posteriores. Relacionado com esta última dificuldade, há ainda todo o problema específico da identificação das personagens visadas nas cantigas, problema que, como é evidente, interfere muitas vezes diretamente na leitura, e para o qual as respostas são frequentemente insuficientes ou mesmo impossíveis1.
c) Sobre a música Finalmente, um quarto problema diz respeito a uma outra lacuna no nosso conhecimento da escola galego-portuguesa, essa quase absoluta: a da música das cantigas cujos textos os Cancioneiros fizeram chegar até nós. À primeira vista, esta é uma questão periférica e como tal geralmente esquecida. De facto, as questões relacionadas com a música trovadoresca não têm merecido, por parte dos investigadores de literatura medieval, geralmente filólogos, a atenção que merecem. E isto mesmo no que se refere à escola provençal, cujo panorama musical conservado é, no entanto, bastante diferente do da escola galego-portuguesa, já que uma parte considerável dos poemas nos chegou acompanhada da respetiva notação musical2. Relegada quase exclusivamente para estudos de âmbito especializado, a música trovadoresca perde assim, definitivamente, a relação intrínseca com a poesia, relação que constitui um dos
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Na referida Base de Dados, o leitor encontra novas respostas para estas questões, nas numerosas notas que acompanham as cantigas. 2 Das cerca de 2600 cantigas cantigas provençais conservadas, cerca de 250 estão acompanhadas de melodia. A totalidade destas melodias estão publicadas por Van der Werf e Gerald Bond, The extant Troubadour Melodie, 1986. Nota de 2018: para as melodias provençais, pode consultar a excelente Base de Dados Troubadour Melodies Database (http://troubadourmelodies.org/).
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aspetos mais marcantes da cultura medieval. Poesia que, como afirma Paul Zumthor, vive essencialmente da performance (voz e texto) e não da palavra escrita1, a poesia trovadoresca não pode, sob o risco de descaracterização, ser totalmente desligada da música que a suportava. No caso galego-português, este é um problema de difícil resolução, dada a quase inexistência de documentos que até nós fizessem chegar a notação musical dos poemas. Como se sabe, à exceção das Cantigas de Santa Maria de Afonso X, de âmbito diferente, os dois únicos documentos hoje existentes da música galego-portuguesa são o célebre Pergaminho Vindel, fólio isolado que contém, completo, o cancioneiro de Martim Codax (sete cantigas de amigo, seis com a respetiva notação musical), a que se juntou, mais recentemente, a descoberta, na capa de um livro de registos notariais do séc. XVI, de sete cantigas de amor de D. Dinis também com a respetiva notação musical. Toda a restante produção musical galego-portuguesa nos é desconhecida – o que é tanto mais lamentável quanto é sabido que o manuscrito da Ajuda comporta espaços ente os versos, destinados a serem posteriormente preenchidos com a notação musical dos poemas, espaços deixados em branco pela provável interrupção (por razões que desconhecemos) da feitura do manuscrito2. De uma maneira geral, podemos, pois, dizer que a música galego-portuguesa nos é desconhecida, bem como a capacidade criativa e técnica dos seus executantes. É-nos assim difícil, num primeiro tempo, avaliar plenamente as numerosas referências, feitas nas cantigas de escárnio e maldizer, ao assunto. Com efeito, a competência técnica de criação e execução musicais é um dos temas prediletos das críticas que os trovadores e jograis mutuamente se dirigem. Sátira e música mantêm aqui uma relação estreita, que é difícil, no estado atual dos nossos conhecimentos, avaliar. Mas esta relação funciona ainda a outro nível. Sabemos, da nossa própria experiência contemporânea, que do jogo entre palavras e música se podem tirar os mais diversos efeitos satíricos. Basta, por exemplo, que um determinado poema seja cantado
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La poésie et la voix dans la civilisation médiévale, Paris, PUF, 1984, p. 38 Como faz notar John Stevens, a existência de numerosos manuscritos que não incluem qualquer notação musical, bem como de diversos outros com os espaços para a música deixados em branco (o caso da Ajuda não é único) poderia sugerir que, pelo menos da parte dos mecenas sob cuja ordem foram coligidos, haveria um maior interesse pela conservação dos «poemas» do que propriamente das respetivas melodias. Mas, como acrescenta, «the 'blank' songs on the other hand could indicate that sometimes there was a shorter supply of music-scribes than of text-scribes, or that a musical source was not available at that particular moment, even though the scribe who ruled up the quire expected it would be». Words and Music in the Middle Ages, Cambridge University Press, 1986, p. 41. 2
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com uma música a que o auditório atribua uma conotação determinada para que o seu sentido seja imediatamente desviado. É o que acontece nas vulgares brincadeiras sobre os hinos nacionais, para dar um exemplo comum. Sabe-se que era este um dos processos vulgarmente utilizados pelos goliardos, nas suas paródias aos cânticos religiosos1. Como mais tarde fará Gil Vicente, a música pode ser, e é muitas vezes, parte integrante dos processos satíricos. Desconhecemos, como ficou dito, a música galegoportuguesa. Mas há vestígios, nos Cancioneiros, da utilização deste jogo com a música, ainda que não se possa garantir que a sua intenção fosse sempre satírica: são as chamadas «cantigas de seguir», objeto também de uma definição detalhada na «Arte de Trovar» de B, como teremos ocasião de analisar, genericamente cantigas feitas a partir de uma música anterior (que «seguiam»). Saber, hoje em dia, exatamente, quais as cantigas que nos Cancioneiros poderiam ser classificadas como «de seguir» é praticamente impossível. Não sabemos, portanto, se este era um processo exclusiva ou predominantemente satírico, ainda que o facto de, na «Arte de Trovar», a sua definição vir imediatamente a seguir à definição das cantigas de escárnio e de maldizer e à das chamadas «cantigas de vilãos» pareça apontar nesse sentido. Nos Cancioneiros, as duas únicas cantigas explicitamente referidas como «de seguir», ambas do escudeiro João de Gaia (B 1433, V 1043 e B 1452, V 1062) são, de facto, cantigas satíricas que buscam um efeito suplementar na utilização da música e do refrão de, respetivamente, uma cantiga de vilão e uma bailia, na crítica a um alfaiate feito cavaleiro e a um bispo amigo do vinho. A este problema específico das cantigas de seguir regressaremos mais tarde. Por agora, gostaríamos apenas de sublinhar que a precariedade do nossos conhecimentos sobre a música galego-portuguesa constitui também um dos mais sérios problemas que se colocam ao estudo da sátira medieval desta escola trovadoresca.
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Vide Suzanne Méjean, Les poésies satiriques et morales des troubadours du XII siècle à la fin du XIII siècle, Paris, A.G. Nizet, 1978. Albert Seay cita exemplos concretos destes «contrafacta» in Music in the Medieval World, New Jersey, Prentice-Hall, Inc., 1965, p. 61.
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2. O corpus satírico dos cancioneiros: questões gerais a) Alguns números Genericamente apresentados os principais problemas com que se depara um estudo desta natureza, e que marcam, de certa forma, os seus limites práticos, estamos agora em condições de nos debruçarmos, também ainda genericamente, sobre o corpus satírico dos Cancioneiros. Das 1679 cantigas que chegaram até nós através dos Cancioneiros galegoportugueses1, cerca de 465 podem (com a segurança permitida pelas flutuações de géneros acima referidas) ser agrupadas sob o nome genérico de cantigas satíricas. Ou seja, as cantigas satíricas representam cerca de um quarto (mesmo um pouco mais) da totalidade do corpus lírico galego-português. Um tão elevado número de cantigas confirma a importância deste género na cultura trovadoresca – importância atestada, aliás, como dissemos, pela sua própria preservação nos Cancioneiros, em pé de igualdade, com os outros dois géneros líricos considerados maiores. Poderá mesmo aventar-se a hipótese, como o faz Carolina Michaëlis, de ser esta substancial presença satírica, com as características genericamente apontadas de crueza e liberdade de linguagem, uma das razões para o ostracismo a que, durante séculos, os Cancioneiros foram votados2. De facto, ainda que a sátira permaneça viva nos séculos seguintes (nomeadamente, em Portugal, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende ou nos Autos vicentinos), raramente ela retoma, oficial e descobertamente, a violência verbal de que dão mostras muitos destes poemas medievais. De qualquer forma, estas 465 composições conservadas pelos Cancioneiros mostram-nos que as cantigas satíricas não são obras marginais na escola galego-portuguesa, nem se constituem ainda como uma literatura paralela, mais ou menos subterrânea, como será tantas vezes o caso mais tarde (o exemplo de Bocage será apenas o mais notório). A cultura trovadoresca desconhece
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Os números que se seguem, dadas as dificuldades apontadas, não devem ser tomados como definitivos. Eles pretendem sobretudo fornecer uma visão geral sobre o corpus satírico galego-português. 2 Diz Carolina Michaëlis sobre o eclipse de séculos do Cancioneiro da Ajuda (ainda que sublinhando que o seu registo é meramente especulativo): «Não admiraria portanto se também o Cancioneiro, saindo das mãos de um príncipe meticuloso, fosse açambarcado pelos zeladores da fé, espontaneamente ou porque a mesa censória o tivesse declarado perigoso e digno de severa reclusão, por causa de certas heresias de amor dos velhos trovadores», CA, II, p. 105.
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esta espécie de censura, quer seja institucional, estética ou pessoal. A importância numérica do corpus satírico galego-português é disso prova. Estes números não são, no entanto, os únicos a atestar esta importância. Um outro dado a ter em conta são os seus autores. Quem são, de facto, os autores destas 465 cantigas? Em termos absolutos, dos cerca de 154 trovadores e jograis representados nos Cancioneiros1, 93 são autores de cantigas satíricas, ou seja, em termos percentuais, cerca de 60% da totalidade dos autores aí representados. Esta percentagem deverá, no entanto, ainda ser lida tendo em conta que, no grupo dos 61 poetas restantes (não representados por este tipo de cantigas), se incluirem muitos autores igualmente mal representados nos outros géneros, ou seja, muitos poetas que, ou o foram esporadicamente, ou cujas obras em grande parte se perderam. Em relação, pois, a muitos destes 61 poetas talvez não possamos também garantir, com certeza absoluta, como parece fazer Carolina. Michaëlis2, que a ausência de cantigas satíricas signifique que eles se abstiveram de as compor – pode apenas significar que elas eventualmente se perderam3. De qualquer maneira, analisando o corpus satírico dos Cancioneiros do ponto de vista dos autores aí representados, é fácil verificar que nestes 93 poetas se incluem, com algumas exceções, os nomes mais importantes da lírica galego-portuguesa. As cantigas satíricas não constituíam, assim, uma qualquer forma de «especialização» poética. Em termos gerais, trovadores e jograis cultivavam, contínua ou esporadicamente, as formas poéticas da sátira, a par das outras formas líricas. Desta maneira se justifica que autores a quem se devem alguns dos mais belos textos líricos medievais, como é o caso de Afonso X ou Fernando Esquio, tenham igualmente produzido algumas das mais violentas (linguística e/ou tematicamente) cantigas satíricas dos Cancioneiros. Damos, neste momento, apenas dois exemplos. Do autor das Cantigas de Santa Maria (aliás, um dos trovadores mais produtivos no campo satírico, com cerca de 35 cantigas deste
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O número de autores não é seguro dada a existência de cantares anónimos. Para referências a outros trovadores e jograis que não figuram nos Cancioneiros vide CA, II, p. 181, onde Carolina Michaëlis apresenta uma lista dos que conseguiu detetar em várias fontes. 2 CA, II, p. 596 e 598. 3 Carolina Michaëlis sugere, a propósito do nome de um dos mais antigos trovadores, Vasco Fernandes Praga de Sandim, de quem só nos chegaram cantigas de amor e de amigo, que o nome Praga poderia ser uma alcunha relacionada com o facto de ter produzido numerosos textos satíricos que se teriam perdido (CA II, p. 296).
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género, e ainda quatro tenções1), os Cancioneiros transmitiram-nos uma das mais sacrílegas e blasfemas cantigas de todas as que até nós chegaram, cantiga onde se comparam, na voz de uma soldadeira, a sua «paixão» profana e sexual com a Paixão de Cristo na cruz. Transcrevemos a primeira estrofe (B 484, V 67) 2: Fui eu poer a mão noutro dia a ũa soldadeira no conom, e disse-m'ela: - Tolhed'alá, Dom [..............................................] ca nom é est'a de Nostro Senhor paixom, mais é-xe de mim, pecador, por muito mal que me lh'eu mereci. A cantiga continua neste tom, sempre mantendo um paralelismo próximo entre as fases da cruxificação e as fases da aventura sexual da soldadeira. De Fernando Esquio, o autor de uma das mais justamente célebres cantigas de amigo («Vaiamos, irmana, vaiamos dormir/ em las ribas do lago, u eu andar vi/ a las aves, meu amigo», B 1298, V 902), os Cancioneiros recolhem igualmente uma sátira de evidente violência verbal dirigida a uma abadessa (B 1604bis, V 1137): A vós, Dona abadessa, de mim, Dom Fernand'Esquio, estas doas vos envio, porque sei que sodes essa dona que as merecedes: quatro caralhos franceses e dous aa prioressa (...) . Não nos pronunciando, por agora, sobre a qualidade das sátiras trovadorescas, nem todas, como é evidente, tão imediatamente obscenas e violentas como os dois exemplos transcritos, há que reconhecer, no entanto, que nem a «qualidade» dos poetas, nem, em princípio, qualquer tipo de hierarquia social (entre trovadores e jograis, por exemplo) constituem critérios de género, e que, se a sátira faz parte integrante da escola galegoportuguesa, fá-lo pela voz de muitos dos seus mais notáveis poetas. A este nível o
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Contrastando com as suas quatro cantigas de amor e uma de amigo que os Cancioneiros recolhem. Por questões compreensíveis de espaço, de muitas das cantigas que iremos referir ao longo deste trabalho serão transcritas apenas a primeira ou as primeiras estrofes. O facto de as cantigas terem geralmente uma estrutura circular repetitiva, como veremos, poderá atenuar, até certo ponto, as limitações deste processo de citação. Nota de 2018: o leitor pode encontrar o texto completo das cantigas na Base de Dados online já referida, Cantigas Medievais Galego-Portuguesas. 2
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corpus satírico dos Cancioneiros não se distingue, essencialmente, do seu corpus propriamente lírico.
b) Escárnio e maldizer: os géneros Este corpus satírico está distribuído, na esmagadora maioria das suas composições, pelos dois principais tipos de cantigas do género, definidas na «Arte de Trovar»: as cantigas de escárnio e as cantigas de maldizer. Ainda que a distinção exata entre estas duas categorias levante inúmeras questões (que teremos ocasião, em seguida, de analisar em pormenor), de uma forma geral podemos dizer que cerca de 380 destas composições se podem incluir numa destas duas categorias. Há ainda 33 tenções, 14 sirventeses morais1 e 30 outras cantigas cujo caráter ambíguo lhes confere um estatuto particular2. Vendo de perto estes números, reconhece-se que a sátira pessoal e pessoalizada constitui de longe, e como tem sido apontado, a forma predileta da crítica trovadoresca. De facto, as cantigas de escárnio e de maldizer representam a esmagadora maioria das composições satíricas dos Cancioneiros e, independentemente da definição exata que se possa encontrar para qualquer uma destas categorias, o certo é que se trata, em ambos os casos, de composições visando alvos concretos, quer sejam ou não claramente enunciados os destinatários – e inclusivamente muitas das cantigas onde se omitem os nomes dos visados (o que torna praticamente impossível, hoje em dia, a sua identificação segura) deviam, na época ser facilmente descodificadas. De uma maneira geral, são, na sua maioria, cantigas circunstanciais, fruto, muitas vezes, de situações pontuais do quotidiano dos trovadores e jograis. O que não significa que, mesmo nas cantigas de escárnio ou de maldizer, não encontremos sátiras mais gerais, algumas de caráter político ou social mais lato, como veremos. Também não é de excluir a hipótese de muitas das sátiras pessoalizadas visarem, por vezes, objetivos mais subtis e políticos por detrás da simples ridicularização de pessoas singulares. De qualquer forma, o peso que as cantigas de escárnio e maldizer (a sátira pessoalizada) têm na sátira galego-portuguesa distingue-a bastante da sátira provençal, onde a crítica pessoalizada também existe, mas é geralmente ultrapassada pelo
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Este número e esta categoria serão igualmente discutidos mais tarde. Mais uma vez chamamos a atenção para o caráter puramente indicativo de alguns destes números, já que, como dissemos, nem sempre é fácil classificar rigorosamente algumas cantigas. 2
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sirventês, composição de caráter mais abrangente, em que a crítica de costumes adquire uma dimensão política ou moral mais vasta. Apesar de, curiosamente, o sirventês não ser uma categoria referida na «Arte de Trovar», encontramos, ainda assim, como dissemos, 14 composições deste género nos Cancioneiros – no que parece ser, de facto, uma nítida influência provençal. Quanto às tenções, que a Arte de Trovar diz que «se podem fazer d'amor ou d'amigo ou d'escárnio ou de maldizer», elas são, nos Cancioneiros, com raríssimas exceções, tenções satíricas1. Finalmente, nas 30 composições restantes englobam-se os textos, na sua maioria muito curiosos, onde a mistura dos géneros prevalece. Trata-se, em geral, de cantigas a que poderemos chamar, com Rodrigues Lapa, «escárnios de amor» e «escárnios de amigo», muitas delas verdadeiros «contratextos», que desviam notavelmente os esteriótipos da lírica trovadoresca. É neste tipo de cantigas que o corpus satírico pode ser mais flutuante – o que justifica que, para além das recolhidas por Rodrigues Lapa, consideremos ainda aqui algumas outras dispersas nos Cancioneiros. Mas é também nestas 30 cantigas que englobamos vários outros poemas originais e por isso mesmo de difícil classificação, como, por exemplo, as sete cantigas, de diversos autores, em que o objeto da maledicência é Deus. O corpus satírico dos Cancioneiros não coincide, pois, rigorosamente, com as categorias de poesia satírica definidas na «Arte deTrovar». E isto tanto por defeito como por excesso. Como teremos ocasião de ver em pormenor, há formas poéticas aí referidas que não se encontram nos Cancioneiros (ou que, pelo menos, são hoje impossíveis de determinar), como é o caso das chamadas cantigas «de joguete de artreiro», das cantigas «de risabelha» ou das cantigas «de vilãos». O mesmo se passa com as cantigas «de seguir», cujas «três maneiras», objeto de detalhada descrição na «Arte de Trovar», são quase impossíveis de relacionar com os dois únicos exemplares que podemos, com segurança, integrar neste género. Por outro lado, como vimos, há também cantigas nos Cancioneiros que saem fora dos estreitos limites definidos nessa mesma «Arte de Trovar». Ou porque são formas nitidamente importadas, como o sirventês moral, ou porque, como já apontava Rodrigues Lapa, o caráter de certa forma escolástico deste
1 São apenas três as tenções não satíricas dos Cancioneiros. Vide, a este respeito, Giuseppe Tavani, A poesia lírica galego-portuguesa, Vigo, Ed. Galaxia, 1986, pgs. 202-204. Tavani, no entanto, classifica aqui como tenções de amor duas das que Lapa inclui (quanto a nós corretamente) na sua recolha (B 416, V 27 e e B 1221, V 826).
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pequeno tratado de poética, não pode «recobrir a imensa variedade da nossa poesia satírica medieval»1.
c) Dois séculos de poesia Por variadas que sejam as formas satíricas nos Cancioneiros, o facto é que esta variedade parece não ter qualquer relação com a cronologia. Na generalidade, há, nos Cancioneiros, uma notória homogeneidade de formas, de tal maneira que é praticamente impossível detetar alterações significativas ao longo dos quase dois séculos de poesia que eles recobrem. Uma única exceção parece ser detetável: o das tenções, forma que parece ter conhecido, de facto, um florescimento significativo na corte de Afonso X (entre 1250 e 1280)2. Mas, de uma maneira geral, quer as formas poéticas, quer os temas, quer a linguagem, quer o tom satírico são muito semelhantes tanto nas composições que podemos, com alguma certeza, situar em finais do séc. XII, princípios do séc. XIII, como nas composições mais tardias de meados do séc. XIV. Assim, e ainda que o problema da datação das composições seja um dos mais complicados dos Cancioneiros (se bem que atenuado nas cantigas satíricas em virtude da maior quantidade de referências a factos concretos), e se torne, pois, muito difícil estabelecer uma cronologia exata das composições que nos chegaram, é possível ver, no entanto, que, entre Paio Soares de Taveirós ou Lopo Lias, trovadores ativos nas primeiras décadas so séc. XIII, e Estêvão da Guarda ou o Conde D. Pedro, trovadores ativos em meados do séc. XIV, ou seja, nos anos finais da escola, as diferenças, quer ao nível das estruturas poéticas, quer ao nível dos universos de sentido, não parecem ser significativas. Há pois, em traços gerais, uma tradição satírica que se mantém relativamente inalterada ao longo destes dois séculos, e que, curiosamente, não dá mesmo mostras de qualquer espécie de decadência nos anos terminais, como acontece na maioria das escolas literárias que a História conheceu. Poesia que vive essencialmente da competência na variação sobre modelos fixos, a poesia trovadoresca
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Cantigas..., op. cit., p. X Como nos diz Tavani, dos 30 poetas de quem nos chegaram tenções, 21 viveram, pelo menos durante algum tempo, na corte do rei sábio. A poesia lírica..., op. cit., p. 205. 2
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não morre por perda de vitalidade interna, mas, ao que se pode supor, por razões conjunturais e sociais exteriores1. Se, em linhas gerais, não há, portanto, grandes alterações ao longo dos dois séculos pelos quais se estende o corpus satírico dos Cancioneiros, há, no entanto um facto que merece ser salientado. Como acontece também na escola provençal, não deixa de ser curioso notar que os mais antigos textos que conhecemos da lírica trovadoresca peninsular sejam exatamente composições de caráter mais ou menos obviamente satírico. Na Provença, as composições do primeiro trovador de que há registo, Guilherme IX, duque da Aquitânia e conde de Poitiers (1071-1127), estão longe do que mais tarde vai constituir o conjunto de normas poéticas e culturais que ficou conhecido como o «amor cortês». Na maioria dos seus cantares – que estão, aliás, na origem das várias excomunhões de que foi alvo – encontramos antes um forte espírito satírico e libertino, servido por uma linguagem muitas vezes obscena, muito próxima do «realismo» da sátira galego-portuguesa2. É uma liberdade de expressão que vai sendo progressivamente domesticada pelas normas do amor cortês, desembocando, nomeadamente, a nível satírico, no sirventês – ainda que nunca seja por demais salientar que a herança de Guilherme de Poitiers nunca foi completamente abandonada e que também na Provença o canto do amor cortês nunca deixou de ser acompanhado por inúmeras cantigas cuja crueza de linguagem não se diferencia em nada da de alguns trovadores ibéricos. Na Península, as duas composições que com alguma segurança podem ser consideradas das mais antigas que até nós chegaram são, como é sabido, uma composição de João Soares de Paiva (B 1330bis, V 937) – datada de entre 1196 e 1200 – e a célebre «cantiga da garvaia», de Paio Soares de Taveirós (A 38) – que Carolina
1 Este desaparecimento, que parece demasiado súbito, da escola trovadoresca galego-portuguesa é, mesmo assim, estranho. Tavani procura explicá-lo, com algum detalhe e, a nosso ver, com alguma justificação, por uma série de circunstâncias históricas (a morte de D. Dinis e a dispersão da sua corte, a crise económica dos anos seguintes, a peste negra, etc.), Ibid., pp. 37-49 e 270-273. De qualquer forma, todos estes factos, de indiscutível peso, não nos parecem suficientes para explicar mais de um século sem traço de poetas portugueses. Sabemos, além disso, que a corte portuguesa continuava a apreciar a música (como é o caso de D. Pedro I, segundo Fernão Lopes) – dadas as estreitas relações entre poesia e música nesta época (questão que Tavani não tem em conta), o desaparecimento súbito de trovadores e jograis continua a parecer-nos deveras estranho. Retomaremos este assunto no último capítulo deste trabalho. 2 Vide Peter Dronk, Poetic Individuality in the Middle Ages, Oxford, Clarendon Press, 1970. Dronk defende aqui que não existe qualquer vestígio da teoria do amor cortês na obra do primeiro trovador provençal, antes ironia e paródia. O Duque Guilherme, para Dronke, é o senhor (e não o servo da senhora) que pensa o amor em termos puramente físicos.
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Michaëlis datou de 1198, mas que é certamente posterior1. Se o caráter de sátira política do primeiro é evidente, já que se trata, como afirma explicitamente a rubrica que o precede, de uma cantiga de maldizer contra o rei D. Sancho VII de Navarra, já o caráter satírico da segunda não é tão seguro. De qualquer forma, é uma cantiga que escapa a qualquer classificação, como em geral se reconhece, mas cujas referências demasiado concretas (não só ao nome da «senhor», a filha de um D. Paio Moniz2, mas também as referências a peças do vestuário, a cores, etc.) a afastam decididamente do espírito das cantigas de amor e a aproximam do espírito realista, se não das cantigas propriamente satíricas, pelo menos da tradição dos primeiros cantares de amor occitânicos. De resto, esta mistura de registos que encontramos na «cantiga da garvaia» está igualmente presente em várias cantigas de trovadores de cronologia mais recuada, como Airas Moniz de Asma ou Fernão Pais de Tamalhancos. Acerca da antiguidade assim comprovada dos cantares satíricos, que encontramos nos alvores da escola, não gostaríamos, por agora, de fazer grandes especulações – não deixa, no entanto, de ser curioso que seja este um facto sistematicamente ignorado, mesmo nas numerosíssimas polémicas em torno das origens da lírica galego-portuguesa. Para o que nos interessa de momento, esta antiguidade só vem reforçar o que dissemos sobre a importância do corpus satírico dos Cancioneiros, e a necessidade de ele ser tomado em linha de conta em todas as questões que dizem respeito à grande poesia ibérica medieval, de que faz parte intrínseca.
É este corpus satírico, genericamente definido e descrito, o objeto do presente estudo. A lírica galego-portuguesa tem sido encarada como uma preciosidade rara, um momento excecional, e por isso mesmo de certa forma inexplicável na literatura portuguesa e peninsular. Para além do facto de quase dois séculos de poesia não poderem ser encarados como um momento, este caráter de produto de exceção, que em nada parece relacionar-se com a rudeza guerreira e primitiva que a História nos
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Polémica tem sido a atribuição da «cantiga da garvaia», anónima no Cancioneiro da Ajuda, único a contê-la. Tavani, por exemplo, atribuiu-a a Martim Soares (A Poesia Lírica..., op. cit., p. 257, que inclui também indicações bibliográficas sobre a matéria). Também Tavani não exclui a hipótese de algumas cantigas de amigo, impossíveis de datar, poderem ser bastante antigas. Por não ser este o âmbito do nosso trabalho limitamo-nos ao facto de ambas as composições referidas serem, seguramente, dos mais antigos textos conservados. 2 Mas com este nome, Resende de Oliveira, in op. cit., p. 535, identifica pelo menos três indivíduos.
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transmite, é apenas o fruto de uma comum, mas nem por isso menos deturpada perspetiva histórica sobre a capacidade cultural de uma época que apenas não há muito tempo deixou de ser considerada como «de trevas». O corpus satírico conservado pelos Cancioneiros mostra-nos, pelo contrário, uma poesia em estreita relação com a sociedade do seu tempo, e nela ocupando um lugar que nenhuma outra escola poética voltaria a ocupar. Mostra-nos também uma cultura profana altamente elaborada, que radica numa sociedade civil humanamente multifacetada e em movimento, longe da imagem esteriotipada de imobilismo feudal e agrário, imagem que os documentos oriundos das instituições religiosas parecem, por vezes, facilitar. Tentar perceber essa cultura profana, tantas vezes em conflito direto com a cultura eclesiástica «oficial», passa por uma leitura atenta destes textos. Textos cuja complexidade linguística está também longe do balbuciar hesitante da prosa da época (pense-se na «Noticia de Torto» ou no testamento de D. Afonso II), e que nos comprovam ainda e finalmente a efetiva existência de uma competência cultural que não passava nem exclusivamente nem sobretudo pelos cartórios notariais ou pelos centros da cultura monástica, por mais notáveis que fossem (como é o caso entre nós, do mosteiro de Alcobaça).
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I
AS RAÍZES
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1. UMA TRADIÇÃO SATÍRICA
The lyrical repertoire that was largely shared by all medieval Europe (...) is thus the product of ancient and scarcely separable traditions of courtly, clerical and popular songs. We can only infer the richness and many-sidedness of these traditions from the fragmentary written evidente that survives. But the inference is certain enough, in my opinion, for us to reject any suggestion that the birth of secular vernacular lyric in western Europe was a sudden event, that took place (as many people still believe) at the end of the eleventh century1. Surgindo, num sentido genérico, no momento da formação da nacionalidade (ou das nacionalidades ibéricas), a poesia galego-portuguesa, é, por isso mesmo, geralmente considerada um ponto de partida para a literatura ou literaturas nacionais posteriores. Mas o facto é que, até pelo grau de elaboração de que dá mostras, ela não pode deixar de ser também encarada, como é evidente, como um ponto de chegada de tradições anteriores. As cantigas de escárnio e maldizer não escaparão à regra dos restantes géneros, ou seja, de alguma forma, elas continuarão e, à sua maneira, prolongarão tradições satíricas anteriores. As numerosas e nunca resolvidas polémicas em torno das origens da lírica galegoportuguesa têm tido como referências centrais as cantigas de amor e as cantigas de amigo. As cantigas de escárnio e maldizer não integram, como dissemos, o corpus destas polémicas. Assim, não existem praticamente estudos que nos dêem conta das raízes da pujante sátira trovadoresca (que, como é evidente, é muito dificil imaginar nascendo do nada e sem qualquer elo com o passado). E, no entanto, e se outros motivos não houvesse, a já citada existência precoce deste tipo de cantigas na escola galegoportuguesa deveria ser, por si só, um factor suficiente para um estudo desta natureza, que procurasse inteirar-se do que existia antes, até porque estas tradições terão certamente contribuído para desenhar o perfil próprio das cantigas de escárnio e de 1
Peter Dronke, The medieval lyric, London, Hutchinson University Library, 1968.
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maldizer galego-portuguesas, e serão, portanto, dados essenciais a ter em conta na análise do seu sentido e funções. A história da sátira, assunto que entre nós tem sido genericamente ignorado1, revela-se assim um instrumento indispensável não só para a discussão destas origens, mas também para uma melhor compreensão do próprio universo destas cantigas. É essa a matéria sobre a qual nos debruçaremos no presente capítulo.
1. Do rito à sátira: a tradição clássica A palavra «sátira» não faz parte do vocabulário dos Cancioneiros. Tão pouco aparece no pequeno tratado de arte poética de B, a «Arte de Trovar». Como tantas outras, ela é, no entanto, e enquanto designação de um género literário, uma palavra de origem latina, ainda que a sua etimologia pareça radicar no grego satyro. Saturae, assim se denominavam os versos cantados na altura das vindimas na primitiva sociedade romana. Estes versos deviam o seu nome à mistura (satura) de vinho novo que era bebida num vaso, o satura lanx. De facto, na raiz da palavra (saturae, satura) encontrase, muito provavelmente, o grego satyro2 – os sátiros, figuras mitológicas sobejamente conhecidas da corte do deus Pã, tinham como principal tarefa, exatamente, as vindimas. Parece ser, pois, da união destes dois sentidos, os saturae romanos e o satyro grego que nasce, por alturas do séc. I a.C., a palavra sátira com o sentido que ainda hoje lhe atribuímos. Foi Quintiliano o primeiro a utilizá-la com um sentido próximo daquele que se fixará logo a seguir nos textos clássicos de Horácio, Pérsio ou Juvenal. Diz Quintiliano, e com alguma razão, como veremos, «Satira tota nostra est»3. Mas já muito antes, na mesma Grécia que forneceu a etimologia da palavra (sem, no entanto, a utilizar), o espírito da sátira se tinha claramente manifestado. Muito curiosamente, o primeiro grande mestre conhecido do que poderemos chamar a sátira grega, Arquíloco (séc. VII a.C.), é-o numa forma primeira de maldizer: os seus textos (de que hoje só nos restam fragmentos) parece terem tido como alvo o pai da jovem
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Ao contrário do que acontece nos países de língua inglesa, onde estes estudos são numerosos. Ao longo deste capítulo faremos referência a alguns deles. 2 Alguns autores discordam desta ligação etimológica, a nosso ver erradamente. Cf. Gilbert Highet, The anatomy of. satire, Princeton University Press, 1962. Highet fornece, em contrapartida, uma outra informação interessante, a da existência de uma palavra etrusca «satir», que significava «discurso». 3 De instituitione oratoria, X, 1.
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com quem pretendia casar e cuja mão lhe era recusada1. A forma dos seus versos encontrou-a Arquíloco no ritmo jâmbico das danças rituais em honra de Cibele, deusa de Fecundidade (danças que tinham exatamente como protagonistas os sátiros). Aristóteles dirá mais tarde, na sua Arte Poética, a propósito do metro jâmbico da comédia, «ainda hoje o chamam jâmbico, visto que se servem deste metro para se insultarem uns aos outros»2. Na origem da sátira, provavelmente a do próprio Arquíloco, estariam não só as danças rituais de que falámos, mas também o que Aristóteles chama «cantos fálicos», «de que todavia persiste o hábito em muitas cidades» (os cantores fálicos, segundo Aristóteles, anunciavam «que os seus cantos variados não eram feitos para virgens»3). Apesar destas referências, os cantos fálicos, relacionados com os rituais da fertilidade, são hoje em dia difíceis de reconstituir. Aristófanes dá-nos, no entanto, uma pequena amostra desses rituais numa cena de Os Arcanos4, cena que permite que deles tenhamos uma ideia geral. Na sua origem (e na origem do seu nome) está Phalo, o companheiro do deus Baco nas suas saídas noturnas. Esses cantos rituais, «fálicos», que se iniciavam por uma invocação ao deus, eram entoados por um «mandador» e por um coro, geralmente de jovens, que o acompanhava nas suas invetivas contra os membros da comunidade (era deste coro que partia a invocação), e podiam ser cantados até que o mandador esgotasse o número de pessoas de que se lembrava para «dizer mal». Como nos mostra a peça de Aristófanes, as cerimónias da fertilidade em que estes cantos surgiam tinham geralmente a forma dc procissões que, carregando um enorme falo, iam de porta em porta, tentando atrair as influências benignas e afastar as influências maléficas – e a forma mais fácil sendo, exatamente, invetivar estas últimas (ou os membros da comunidade que as representavam) com a mais violenta linguagem. Como nos diz Cornford: «The spell against a demon usualy takes the form of violent abuse»5. Na Ática, estes rituais eram processados pouco depois do solstício de Inverno, quando as sementes dos cereais tinham sido acabadas de lançar à terra.
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Segundo a tradição, pai e filha ter-se-iam suicidado, face à violência das invetivas. A veracidade desta tradição é difícil de apurar. 2 Arte Poética, IV, 10. O verbo que Aristóteles emprega, e que, em português, foi traduzido por «insultar», é, de facto, numa tradução literal, «iambizar», verbo que tinha já o sentido de «fazer troça ou insultar alguém». Cf. Conford, The origin of attic comedy, Gloucester, Mass., Peter Smith, 2ª ed. 1968. 3 Ibid. 4 Ibid., p. 104 e sgs. 5 Ibid.
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A tradição destes cantos fálicos é ainda bem visível nas primitivas comédias gregas, onde, depois da invocação ao deus, surgiam uma série de discursos improvisados (iamboi) por um leader, discursos que continham igualmente sátiras pessoais contra os espetadores – sobrevivendo, desta forma, numa altura em que os cantos eram já, claramente, um espetáculo desligado dos rituais mágicos de fertilidade. Outra sobrevivência tardia dos rituais pode ser encontrada nos bandos de jovens que, em certas épocas do ano, percorriam a Atenas de Demósteno, e cuja algazarra bêbada perturbava os pacíficos cidadãos da cidade. É provavelmente aos seus cantos que se refere Aristóteles nas palavras acima citadas, ao falar do hábito que ainda lhe era contemporâneo. Seria, pois, também nestes cantos fálicos que Arquíloco se teria inspirado. Nos seus primórdios, e antes de qualquer noção de literatura, a sátira tem, pois, um duplo sentido: ao ritmo da celebração das forças vitais da Natureza (sátiros e vindimas ou Phalo e as sementeiras), traz-se para a praça pública o objeto da animosidade privada. Estes dois sentidos não deixaram nunca de coexistir, mesmo quando toda a simbologia mágica e mitológica se perdeu e a sátira se converteu numa forma literária de intervenção pública e/ou política (é o que acontece exatamente com Arquiloco1). Com Simónides de Amorgos, Hiponax de Éfeso e, sobretudo, Aristófanes, a sátira literária faz o seu caminho na sociedade grega. Com Aristófanes ela ganha a forma dramática clássica (a comédia2), também a partir da evolução das formas tradicionais das festas dionisíacas3. As comédias de Aristófanes, único autor cujos textos chegaram até nós entre muitos outros dramaturgos gregos de que temos apenas referência, interpelam diretamente a sociedade grega do seu tempo. E se nelas se pode detetar, sem dúvida, uma intenção moralizadora (o problema da guerra em A Paz, a aplicação da justiça em As Vespas), não é menos certo que tudo se passa por entre referências muito concretas a 1
Robert C. Elliot pergunta-se, no entanto, até que ponto os poemas de Arquíloco não seriam, no seu tempo, entendidos ainda como uma certa forma de magia, e relacionados com as invocações e maldições correntes. Conforme nos diz, Arquíloco era, ele mesmo, filho de um sacerdote de Demeter. The power of satire; magic, ritual, art, Princeton University Press, 1960, p. 261. 2 O verbo «komodein» quer dizer exatamente «satirizar». 3 Ainda segundo Aristóteles, o iniciador do género teria sido Crates de Atenas (m. 424 a.C.), o que não deixa de estar em contradição com uma outra referência, que o mesmo Aristóteles faz, a uma comédia de Homero, Margites, ou o louco enfatuado de si mesmo e do seu balofo saber. Porque o texto desta comédia se perdeu, é hoje impossível apurar a veracidade da informação de Aristóteles, ainda que, de uma maneira geral, a atribuição da peça a Homero se considere fantasiosa.
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factos e personagens reais, sobretudo da vida pública e cultural de Atenas. Cléon, o chefe do partido popular depois da morte de Péricles, é um dos seus alvos prediletos, como também o foi, como é sabido, Sócrates, em As Nuvens. A sátira pessoalizada, o ataque direto e público, por vezes extremamente violento1, faz assim parte integrante da comédia, que desta forma procura intervir nos destinos da democracia ateniense, pelo menos até ao governo dos Trinta Tiranos (404 a.C.), que proíbe definitivamente a representação de personagens reais2. Mas, mesmo posteriormente a esta data, Aristófanes, ainda que de forma mais moderada, continua a intervir na sociedade do seu tempo, como o faz na Assembleia de mulheres, peça em que se parodiam as ideias sobre a educação feminina, se não as diretamente referidas por Platão na República, pelo menos as que corriam na Atenas da época e de que Platão se faz eco3. São conhecidas as reservas com que Platão encarava o riso em geral e os poetas satíricos em particular. Aristófanes, seu contemporâneo, era apenas um exemplo do gosto dos atenienses por uma forma artística que, segundo ele, fazia apelo às emoções primárias mais do que à razão. Se é certo que, para Platão, a sátira faz, pelo riso, a critica do vício – particularmente da autoignorância das pessoas com relativo poder – também é certo que no riso se perde o controle racional sobre nós próprios, pelo que, como diz na República, ele se deve evitar4. Entendidas à luz da sociedade ateniense sua contemporânea, as afirmações de Platão ganham um sentido que não é certamente o que, mais tarde, a leitura escolástica medieval lhes irá atribuir. Discípulo de Platão, também Aristóteles preconiza limites para o riso. A teoria do «justo equilíbrio» em que assenta toda a sua ética, nomeadamente a Ética a Nicómaco, preconiza um comportamento social que não exclui o riso, mas que o controla: Aqueles que, provocando o riso, ultrapassam os justos limites são, parece, bobos e gente grosseira que se agarra ao ridículo em todas as circunstâncias, procurando mais provocar o riso do que manter opiniões convenientes e não ofender aqueles que são objeto das suas chacotas. Aqueles que nunca dizem uma graça e suportam mal as dos outros são, parece, rústicos e rabugentos. Aqueles que, nas suas brincadeiras, permanecem joviais são o que se chama pessoas de
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Em Os Cavaleiros, a sátira a Cléon era de tal modo violenta que nenhum ator quis encarregar-se do papel, tendo sido o próprio Aristófanes obrigado a desempenhá-lo. 2 Já antes se tinha procurado legislar nesse sentido, mas sem êxito. 3 A incerteza quanto à data dos dois textos não permite garantir, com segurança, que as alusões da peça de Aristófanes sejam, de facto, ao texto de Platão. 4 República, II, 386-388 e X, 606, 607.
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espírito bem formado (...) Como o gosto pelas piadas está largamente difundido, e como a maior parte das pessoas encontram nas facécias e na zombaria mais prazer do que seria conveniente, acontece que se atribui aos bobos uma reputação de pessoas de espírito, porque agradam. Mas eles diferem muito destas últimas, como vimos claramente no que dissemos antes1. Esta posição de Aristóteles leva-o a estabelecer uma distinção nítida, que também é moral, entre «as comédias antigas» referência clara a Aristófanes, e «as comédias novas»: «Nas primeiras, o que fazia rir era a obscenidade; nas segundas, são antes os subentendidos, o que constitui uma sensível diferença do ponto de vista do bom tom»2 . Se não encontramos, pois, em Aristóteles, a condenação absoluta do riso que encontramos em Platão, encontramos, no entanto, a definição de limites. Os limites da ética aristotélica são os ditados pela razão, ou, socialmente, pelo «bom tom». Esta aceitação do riso «nos justos limites» faz com que a sua atitude para com a comédia seja, como já tivemos ocasião de ver, mais descritiva do que moral. Como se sabe, a parte da Arte Poética que tratava especificamente da comédia, o livro II, não chegou até nós. Desconhecemos, portanto, o essencial das suas posições sobre a sátira, de que a comédia é uma das formas, forma altamente apreciada no seu tempo. Mas nos capítulos genéricos iniciais ela é definida, dentro da teoria da arte como imitação, como «a imitação de personagens piores do que aquilo que de um modo geral os homens são»3. No início do capítulo V, ele explicita: «A comédia é, como dissemos, imitação de maus costumes, não contudo de toda a espécie de vícios, mas só daquela parte do ignominioso que é o ridículo». E acrescenta que o ridículo «reside num defeito ou numa tara que não apresentam caráter doloroso ou corruptor». Quaisquer que fossem as matérias abordadas posteriormente no livro II, o certo é que, para Aristóteles, a comédia é muito superior aos outros géneros satíricos, a que ele alude, mas que, pelo que nos é dado supor, não mereciam a sua consideração: «Quanto à comédia, já se mostrou que foi isto que aconteceu. Os autores, depois de terem composto a fábula, apresentando nela atos verosímeis, atribuem-nos a personagens, dando-lhes nomes fantasiados, e não procedem como os poetas jâmbicos que se referem a personalidades existentes»4. A superioridade da comédia provém, pois, da existência de uma fábula com personagens
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Ética a Nicómaco, IV,14. Ibid, VIII, 3 e seg. 3 Arte Poética, II, 2. 4 Ibid., IX, 5 2
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«fantasiadas» (curiosamente Aristóteles defende aqui aquilo que Platão tinha criticado na poesia, o facto de criar «fantasmas e não realidades»1). Como já tivemos ocasião de ver, Aristóteles não tem inteiramente razão, pelo menos no que diz respeito à existência real de sátira pessoalizada no período áureo da comédia grega, o tempo de Aristófanes. E o desaparecimento, na comédia, de referências a «personalidades existentes» deverse-á menos ao desejo dos poetas de se afastarem da tradição dos «poetas jâmbicos» do que à entrada em ação de mecanismos legislativos e sociais de censura, que no tempo de Aristóteles eram já uma realidade. É, pois, o caráter teórico e mesmo programático da sua Arte Poética que conduz assim a uma definição geral da comédia que não contempla exatamente as características do género, tal como ele se foi manifestando na sociedade grega. E, como já vimos pelo exemplo de Arquíloco, a comédia não foi o único género em que a sátira se manifestou na sociedade grega2. A influência dc Aristóteles, e nomeadamente da sua Arte Poética, na literatura dos séculos posteriores foi, como se sabe, imensa. Como em geral é imensa também a influência de toda a literatura grega na literatura latina, e não apenas a dos seus teóricos. A comédia grega encontra em Plauto (254-184 a.C.) um seu digno sucessor – apesar de mais tarde Horácio, seguindo exatamente as ideias de Aristóteles sobre a comédia grega, considerar a admiração pela obra de Plauto «excessiva e um pouco tonta». E acrescenta: «Vós e eu, sabemos fazer a distinção entre uma locução grosseira e uma frase graciosa»3. Mas é em Roma, como já dissemos, que se começa verdadeiramente a definir o género «sátira» (como afirma Quintiliano, nas palavras antes citadas, comparando as literaturas grega e romana), com Énio (269-139 a. C.) e, sobretudo, com Lucílio (148103 a.C.), que se inspira nitidamente (tanto na forma como nos temas) nos poemas
1
República, 598 C. Alguns autores incluem também uma parte da filosofia grega, sobretudo da época pré-socrática, na história da sátira. Estaria neste caso Bíon, um «filósofo» cuja obra se perdeu, mas de quem temos citações e descrições em muitos autores posteriores. Como muitos outros, Bíon pertencia àquela categoria de filósofos que percorriam o mundo grego, como uma espécie de «missionários», pregando às populações. A sua audiência era essencialmente popular e as suas «pregações», que utilizavam frequentemente o calão, incluíam inúmeras anedotas e paródias aos grandes clássicos. Como diziam na época, Bíon «foi o primeiro a vestir a filosofia com as roupas da prostituta». Também os cínicos e os céticos (Crates, Cercidas ou Menipo) escreveram textos onde o riso se mistura com a filosofia, textos que algumas vezes misturam prosa e verso. Uma abordagem detalhada do assunto encontra-se em Gilbert Highet, The anatomy of satire, op. cit. 3 Arte Poética (Epístola aos Pisões), 270. 2
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jâmbicos de Arquíloco e na comédia antiga para a composição das suas sátiras, que servirão, por sua vez, de modelo a Horácio, como ele próprio reconhece1. Mas é, de facto, Horácio (65-8 a.C.) o grande mestre do género, aquele que lhe deu um estatuto autónomo e reconhecido, e cuja influência nos séculos posteriores é pelo menos tão grande como as dos teóricos gregos que citámos. Com Horácio, as invetivas jâmbicas ganham o estatuto de género literário de pleno direito (que, como vimos, não tinham em Aristóteles), com uma função explicitamente social que é a de, pela crítica, moralizar os costumes. Nem outro é o sentido da célebre fórmula horaciana «ridendo castigat mores». Horácio é ele próprio, aliás, um excelente historiador do percurso da sátira na sociedade romana (e o percurso que nos traça apresenta óbvias semelhanças com o que vimos ser percorrido na Grécia): Os antigos camponeses, rudes pelo trabalho, contentando-se com pouco, uma vez terminadas as colheitas, repousavam o corpo e a alma, nos dias de festa, com os seus filhos e mulheres, como tinham, com eles, suportado as fadigas na esperança de lhes verem o fim. Ofereciam então uma truta à deusa Telo, leite a Silvano, flores e vinho ao Génio, que conhece a brevidade da vida2. Nestas festas foram criados os versos fesceninos, tão livres, nos quais os camponeses trocavam abundantes injúrias3. Em cada novo ano aceitava-se esta liberdade como um jogo amável, até ao momento em que ela se tornou verdadeiramente maldosa e enraivecida, e apareceu como um perigo, em virtude de nem mesmo as casas honestas estarem protegidas pela lei. Aqueles que eram feridos, por vezes até ao sangue, pelos ditos maldosos, fizeram queixa; mesmo aqueles que ainda estavam indemnes se preocuparam com o interesse geral; .finalmente fez-se uma lei e fixouse uma pena para interditar as poesias caluniosas4; os poetas, com medo da vara, mudaram de tom, e dedicaram-se a escrever com graça e cuidado. A Grécia conquistada conquistou o seu altivo vencedor; ela exportou as artes para o agreste Lácio; assim desapareceu aquele horrível verso saturnino; a
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«Inferior a Lucilio, seu criador, eu não teria a audácia de lhe roubar a coroa que permanece gloriosa na sua fronte», Sátiras, 1, X, 48. 2 Telo era a deusa Terra; Silvano era o deus dos pastores; o Génio era o deus de cada indivíduo e que morria com ele. 3 Os versos fesceninos (de Fescénia, cidade da Etrúria) tinham a forma de diálogo. Segundo Cornford (op. cit., p. 104 e sgs.), eram também cantados nos casamentos e por altura dos triunfos. 4 Horácio refere-se aqui à Lei das Doze Tábuas, promulgada no séc. V a.C.; Cícero refere-se igualmente a ela em De Republica, aludindo à pena de morte que propunha para estes «sive carmen» (IV, X, 12): «nostrae contra duodecim tabulae cum perpaucas res capite sanxissent, in his hanc quoque sanciendam putaverunt, si quis occentavisset sive carmen, condidisset, quod infamiam faceret flagitiunve alteri».
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elegância tomou o lugar da horrenda violência; mas durante muito tempo subsistiram e subsistem ainda hoje os traços da antiga rudeza».1 Apesar de tudo, como poeta, Horácio tem consciência do seu papel de inovador. Na epístola XIX do Livro II das Epístolas, num poema dirigido ao seu amigo e protetor Mecenas, afirma claramente: «Fui eu o primeiro a caminhar livremente num solo que ninguém antes de mim tinha pisado». Mas, nessa mesma epístola, mostra-se também. consciente do que deve à tradição anterior, essencialmente à grande literatura grega que repetidamente defende: Arquíloco, mas também Safo e Alceu, estes últimos por terem desenvolvido, noutros temas, o metro jâmbico anterior2. Bom historiador da sátira, como vimos, Horácio mostra-se ainda, nesta epístola, consciente das relações que unem o espírito da sátira ao espírito do vinho (e já vimos como nos seus primórdios eles se relacionam): A acreditar no velho Crátilo, os versos não podem, douto Mecenas, durar e agradar por longo tempo se tiverem sido escritos por bebedores de água. Desde que Baco alistou entre os Sátiros e os Faunos os poetas com falta de inspiração, quase sempre as doces Musas acordaram de manhã a cheirar a vinho. Mas esta ligação da poesia à embriaguez é o que vai recusar Horácio. A alta dignidade que atribui à poesia satírica não é compatível com chacotas cuja coragem crítica é, para ele, diretamente proporcional à quantidade de vinho bebido: Muitas vezes, numa mesa onde, sobre cada um dos três leitos, tomaram lugar quatro convivas, há um que gosta de se virar para todos os lados para enlamear os outros, salvo, no entanto, o anfitrião. Mas em seguida, depois de beber, mete-se também com ele, quando Baco, o verídico, abre o fundo dos corações. E tu, que detestas os maus, tu achas este homem amável, espirituoso e ,franco?3 Se os seus poemas são inovadores são-no, pois, e sobretudo, pela nova consciência social que inscrevem na tradição dos velhos metros. E se aos seus epodos iniciais Horácio chamava «iambos», marcando deste modo claramente as suas raízes e desígnios – a invetiva muitas vezes pessoalizada – o certo é que o espírito satírico que neles reside já é claramente distinto.
1 Epístolas, Livro II, I (epístola a Augusto). É evidente que Horácio se refere, neste final, à tradição da sátira grega clássica e não aos cantos fálicos ou desse tipo. 2 Horácio cita ainda, nesta epístola, o filósofo pré-socrático Bíon (vide nota p. 29), 3 Sátiras, Livro I, IV.
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Esta nova conceção de sátira (poderemos dizer simplesmente «a sátira», já que, o termo, enquanto categoria literária, está indissoluvelmente ligado ao seu nome) é por ele defendida em numerosos passos da sua obra. Defendendo-se muitas vezes também da acusação de simples maledicente, ou de querer fazer rir à custa dos outros, ferindo-os e expondo-os ao ridículo, Horácio explica-se e explica as suas intenções: «Pode acontecer-me ser bastante livre no que digo e exagerar um pouco na zombaria; é preciso reconhecerem-me esse direito e mostrarem-se indulgentes. É um hábito que me inculcou o meu excelente pai; para me desviar do vício citava-me exemplos»1. Ou ainda: «Quase sempre a zombaria resolve as grandes dificuldades com mais força e sucesso que a violência»2. O riso moralizador é pois o pressuposto geral que define os poemas jâmbicos horacianos e que os distingue, enquanto sátira, ou seja, como forma literária, da simples maledicência circunstancial3. É um pressuposto que marcará definitivamente toda a literatura satírica ocidental (pelo menos a de tradição clássica). Nos seus poemas (nos epodos, nas sátiras, mas também em muitas das suas epístolas) Horácio ataca, pois, o que considera serem os vícios e os ridículos do Império. Sublinhe-se, no entanto, que o faz ainda quase sempre diretamente, citando o nome dos visados (ou alcunhas significativas) e numa linguagem muitas vezes crua e violenta. Também, e apesar da sua aristotélica defesa do equilíbrio – o seu célebre «Est modus in rebus» – a obscenidade não está ausente da sua obra, sobretudo nos retratos das cortesãs romanas (Canídia, a feiticeira, é uma das figuras recorrentes), mas também nos retratos das suas amantes, mulheres adúlteras, por vezes impiedosamente descritas numa velhice devassa e insatisfeita. Os temas gerais horacianos serão, praticamente até aos nossos dias, retomados e glosados em todos os tons: a ambição, o arrivismo, a avareza, toda a série de ridículos da classe média romana mas também dos poderosos, numa pintura de costumes que faz reviver o quotidiano da sociedade romana do seu tempo. É uma pintura que não exclui também numerosos traços de autoironia, como acontece na sátira em que o seu escravo
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Sátiras, Livro I, IV Sátiras, Livro I, X 3 O titulo «Sermones» (conversas) que Horácio dá a estes seus versos, contempla, aliás, uma outra tradição filosófica pré-socrática, a das «diatribes», discussões feitas muitas vezes em linguagem popular, incluindo anedotas, paródias aos clássicos, etc. Também Platão chama «conversas» aos diálogos socráticos. Sobre o contributo da filosofia grega para a história da sátira ver Gilbert Hight, The anatomy of satire, Princeton University Press, 1962. 2
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Davo, num pretenso diálogo, lhe faz o extenso rol dos seus defeitos1 – sátira que tem ainda a particularidade de aludir explicitamente à velha tradição carnavalesca do mundo ao contrário, que as saturnais romanas contemplavam, dando, nesses dias, total liberdade de palavra aos servos e escravos (os costumes carnavalescos estão indissoluvelmente ligados, como teremos ocasião de ver, à história da sátira). A obra de Horácio tem uma importância decisiva na literatura crítica do ocidente, pelo que representa de fixação culta de um género até aí menor e de certa forma menosprezado. De facto, a comédia, que, como vimos, era ainda para Aristóteles o género satírico por excelência, não encontra em Horácio um defensor. A ideia de um público restrito e atento, ideia que muitas vezes defendeu, coadunava-se mal com o seu retrato do público de teatro, multidões barulhentas e desinteressadas, pouco aptas a julgar com discernimento sobre os méritos ou defeitos profundos do que lhe era apresentado (e aqui vemos passar a lição de Platão). A intervenção pública podia, para ele, ter outra forma, mais discreta, mas não menos eficaz. Na fixação dessa forma, que a palavra sátira vem na época delimitar, Horácio tem um papel fundamental, papel que os séculos posteriores nunca deixaram de reconhecer. O lugar central de Horácio na história clássica da sátira justifica a atenção um pouco mais demorada com que aqui o citámos. Na sequência de Horácio, não poderemos deixar de referir ainda a sátira filosófica de Pérsio, a sátira trágica de Juvenal ou os epigramas de Marcial (todos do séc. I d.C.), obras que, à sua maneira, marcam os caminhos posteriores do género. Também o romance conhece na época um florescente período satírico, nomeadamente com Petrónio (Satiricon, A ceia de Trimalcião) e Apuleio (O burro de ouro), autores que, a partir do conto milesiano de provável origem oriental, ensaiam esta nova forma de sátira, que teve também inflência considerável na literatuta posterior. Curiosamente, o último dos satiristas clássicos é um grego, Luciano de Samosata (séc. II d.C.), que, com os seus opúsculos (Diálogo dos mortos, A assembleia dos deuses) fecha, de certa maneira, o círculo que nove séculos antes Arquíloco tinha iniciado com a ridicularização pública do seu (pretendido) sogro.
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Sátiras, Livro II, VII.
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2. Outras tradições Se o Ocidente muito deve à tradição literária clássica (aquela, aliás, de que nos chegaram mais documentos escritos e, portanto, a mais fácil de conhecer), nem por isso a importância de outras tradições é de menosprezar. De facto, no que se refere à sátira, temos notícia da sua existência em todas as primitivas sociedades humanas, em formas que se aproximam das que vimos surgir nas sociedades grega e romana primitivas. Na maioria dos povos da antiguidade encontramo-la assim em estreita relação com determinadas festividades cíclicas, integrando os cultos e rituais religiosos que essas festas consagravam. Dos duelos verbais entre os esquimós, até aos cantos narrativos sobre o «impostor», o que quebra os tabus da tribo, figura central na mitologia dos índios do noroeste da América do Norte, passando pelas canções, em forma de invetiva mágica, dos primitivos bardos irlandeses, a sátira, como manifestação mágica e ritual, encontrase um pouco por todo o lado1. Baktine, que foi dos primeiros investigadores a chamar a atenção para as tradições populares ligadas ao riso, refere exatamente o caráter dual que pode ser detetado nos cultos de todos os povos primitivos: On trouve, dans le folklore dos peuples, parallèlement aux cultes sérieux (par leur organisation et leur ton), des cultes comiques, qui tournaient en dérision et blasphémaient les divinités («rire rituel»)2. Desses cultos primitivos deriva, entre outras coisas, o Carnaval. Os estudos pioneiros de Baktine sobre o Carnaval e sobre o papel social do riso na história humana permitem conceber a existência generalizada de numerosas manifestações satíricas, de caráter folclórico e popular, que não apenas as que os textos escritos nos fizeram chegar3.
Que
o
Carnaval,
como
manifestação
popular
libertadora,
está
indissoluvelmente ligado às diversas formas de sátira, vimo-lo já na alusão de Horácio às festas saturnais e à relativa liberdade de crítica que elas permitiam. Herdeiro direto do «riso ritual» primitivo, o Carnaval (ou o seu equivalente noutras sociedades) acompanha a história de todos os povos, e desempenha nela um papel cuja importância
1
Vide, sobre estas tradições, Mathew Hodgart, Satire, London, World University Press, 1969 e sobretudo Robert Elliot, The power of satire..., op. cit.. Especificamente sobre a primitiva sátira irlandesa, vide Vivian Mercier, The Irish Comic Tradition, Oxford University Press, 1962 2 L'oeuvre de François Rabellais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance, Gallimard, Paris 1970, p. 14. 3 Manifestações de que os já aludidos cantos fálicos, fesceninos ou saturninos são exemplos.
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só agora começa a ser compreendida. A título de exemplo da sua dispersão geográfica e cultural, cite-se o relatório de um comerciante holandês que, nos finais do séc. XVII, e durante catorze anos, viveu entre os Ashanti, na costa da Guiné1: The Devil is annualy banished in all their towns whith abondance of ceremony (...) This procession is preceded by a feast of eight days, accompanied with all manner of singing, skipping, dancing, mirth and jollity. In wich time a perfect lampooning liberty is allowed, and scandal so highly exalted, that they may freely sing of all the faults, villanies and frauds of their superiors as well as inferiors, without punishment, or so much as the least interruption; and the only way to stop their mouths immediatly is to ply them lustily with drink, wich alters their tone and turns their satyrical ballads into commendatory songs. Da China à Índia, passando pelas tribos do Norte de África, podemos encontrar manifestações
periódicas
semelhantes.
Embora
este
tipo
de
manifestações
carnavalescas, pelo seu caráter de espontaneidade popular, não seja de molde a deixar vestígios, e relatórios como o que citámos sejam, portanto, raros, não podemos deixar de ter em conta a sua importância na história da sátira, pela influência (direta ou subterrânea) que certamente foram tendo nas suas formas «oficiais», literárias2. À luz da liberdade carnavalesca se compreende melhor, por exemplo, a violência verbal de muitos textos satíricos trovadorescos, cuja licenciosidade ou caráter injurioso se assemelham aos de muitas das manifestações públicas carnavalescas, cuja linguagem Baktine descreve desta forma: «Le langage familier de la place publique est caractérisé par l’emploi assez fréquent de grossièretés, c'est-à-dire, de mots et d’expressions injurieuses, parfois assez longues et compliquées». E acrescenta que «les grossièretés sont un genre verbal particulier du langage familier», cujas funções, na comunicação primitiva, eram «essentiellement de caractère magique, incantatoire»3. Foi o que vimos acontecer com os cantos fálicos e fesceninos, e, de certa forma, entre os Ashanti. Mas ainda hoje podemos encontrar, nalguns povos, exemplos destas antigas funções da linguagem, como nos diz a antropologia: «Nalgumas sociedades os rapazes adolescentes e os homens trocam insultos rituais. Nestes duelos verbais os participantes urlam-se mutuamente toda a espécie de obscenidades e insultos – muitas vezes à custa
1 William Bosman, A new and accurate description of the coast of Guinea, London, 1705, Carta X, citado por Robert Elliott, The power of satire..., op. cit., p. 16. 2 A citada sátira de Horácio, em diálogo com o escravo Davo, é, nesta matéria, um documento precioso. 3 Ibid., p. 25.
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dos familiares das mulheres – para divertimento da audiência»1. Fazendo parte integrante dos rituais de iniciação, esta linguagem grosseira e obscena tem o mesmo caráter essencialmente ambivalente que Baktine aponta às manifestações carnavalescas, nomeadamente às blasfémias: «Ces blasphémes étaient ambivalents: tout en rabaissant et mortifiant, ils régénéraient et rénovaient à la fois»2. O riso carnavalesco abaixa e materializa porque é presidido pelo princípio material e corporal da festa como ritual cíclico de renovação. Por isso o traço marcante do que ele chama «realismo grotesco» (um tipo particular de imaginário ligado à cultura cómica popular) é «le rabaissement, c'est-à-dire, le transfert de tout ce qui est élevé, spirituel, ideal et abstrait sur le plan matériel et corporel, celui de la terre et du corps dans leur indissoluble unité»3. Este rebaixamento tem pois «un caracter positif et afirmatif» e está em estreita ligação com as ideias de fecundidade e abundância, ideias que, como tivemos ocasião de ver, estabelecem o horizonte que viu nascer a própria palavra sátira. As tradições satíricas têm, pois, uma história longa (e geralmente mal conhecida) que não se resume à história de um género literário. Pelo contrário, é esse mesmo género literário que inúmeras vezes (como vimos com Arquíloco, Aristófanes ou Horácio) vai beber à fonte do espírito e das manifestações satíricas populares, cuja história é independente da fixação dos géneros literários. Mas mesmo no interior da história literária podemos encontrar vestígios que relacionam a sátira com determinados ritos primitivos, nos quais a linguagem assumia um outro papel mágico e encantatório: o poder de vida e de morte que a palavra poderia transportar. Assim se explica que o poeta, em muitas sociedades primitivas, se confunda com o feiticeiro, como acontecia, por exemplo, entre os celtas4. O poder dos bardos, que era considerável, residia sobretudo no poder sobre a linguagem. Maldizer alguém era assim uma forma de intervir no seu destino – e quem o sabia fazer era obviamente temido. É também esta crença que está na base, por exemplo, das cantigas satíricas cantadas frequentemente na véspera dos combates. Uma das mais antigas sagas irlandesas não só alude, como justifica explicitamente o costume:
1
Schaeffer, The art of. laughter, Columbia University Press, Ncw York 1981. Outros exemplos de insultos rituais em Elliot, op. cit., pgs. 76, 80, 134 2 3
Ibid., p. 25/26. Ibid., p. 29.
4
Um estudo detalhado das tradições satíricas celtas encontra-se em Robert Elliott, op. cit.. A ele devemos grande parte destes dados.
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And thus, o Carpe, son of Etain, saith (King) Lugh to his poet, what power can you wield in battle? Not hard to say – quote Carpe – I will make a «glám dicind» [mordente ataque] on them. And 1 will satirize them and shame them, so that through the spell of my art they will not resist warriors.1 Também no séc. I a.C., aquando da conquista da Gália pelos romanos, Diodoro Sículo, referindo-se aos celtas, nos dá este curioso testemunho: Entre eles também podem ser encontrados poetas líricos a quem chamam Bardos. Estes homens cantam com o acompanhamento de instrumentos parecidos com liras, e as suas canções podem ser ou de louvor ou de censura (...) [Os Gauleses] obedecem, antes que a qualquer outro, aos [Druidas] e aos seus poetas cantores, e essa obediência é observada não só pelos seus amigos mas também pelos seus inimigos; muitas vezes, por exemplo, quando dois exércitos se aproximam um do outro na batalha, com as espadas desembainhadas e as lanças em riste, estes homens avançam, colocando-se entre eles, e ordenam-lhes que cessem, como se tivessem lançado uma maldição sobre bestas selvagens.2 Até pelo menos à cristianização, os bardos ou filid eram, como aliás nos mostra este testemunho, uma das classes mais poderosas entre os povos de origem celta, e nomeadamente na Irlanda. Mesmo em épocas muito posteriores à sua primitiva identificação com o poder mágico e religioso dos feiticeiros, já como poetas, a sua capacidade de manejo da sátira garantia-lhes um estatuto de figuras respeitadas e temidas. Segundo as sagas irlandesas, o mais celebrado, amado e odiado destes poetas foi Aithirne, o Importuno, sobre o qual transmitem numerosíssimas lendas3. Como nos diz Robert Elliott4: «Not all satirists attained to the individual notoriety of Airthine, but the stories of their powers and of the fears they inspired lace the tales of Early Ireland».5
1
«The second battle of Moytura», saga transcrita em Ancient Irish Tales, Tom Peete Cross e Clark Harris Slover eds, Nova York, 1969, pgs. 28-48, cit. por Elliott, op. cit., p. 19. 2 Ibid., p. 21 3 Uma das mais persistentes lendas, aliás não só referida a Aithirne mas aos bardos em geral, era a de que eles tinham o poder de levar os ratos à morte. Alusões a esta lenda encontram-se em toda a literatura inglesa, de Shakespeare e Ben Jonhson e até em T. S. Elliot. 4
Ibid., p. 29.
5
Em muitas destas histórias o poder dos satiristas só é suplantado pelo dos santos (nomeadamente por St. Columbus, o santo nacional da Irlanda, que figura nalgumas delas).
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Curiosamente, e relacionado com um tema caro à sátira galego-portuguesa, o da recusa de hospedagem, um outro conto irlandês começa assim o que se pensa ter sido a primeira sátira escrita na Irlanda: Who first was satirized in Ireland? That is not hard to answer: Bress Mac Eladain Who satirized him? That is not hard to answer: the poet Cairpe Mac Edaine of the Tuatha Dé Danaan. What was the cause of his satire? That is not hard to answer: the poet came seeking hospitality to Bress.1 Também entre os árabes o poder da palavra satírica foi reconhecido desde tempos imemoriais. Como entre os celtas, sabe-se que uma das funções dos antigos poetas árabes era compor sátiras (hijã) contra os inimigos tribais – igualmente se acreditava que esses cantos, que empregavam o humor, o ridículo e às vezes a obscenidade, eram fatais nas batalhas2. Embora o estatuto dos poetas fosse diferente do dos bardos celtas, também aqui a sua palavra satírica podia ser temida. No séc. VII, Jarwal ibn Aus, o Anão, o mais célebre dos poetas do seu tempo, ia de tribo em tribo cantando panegíricos e sátiras, até que o califa Umar achou necessário prendê-lo «no interesse da ordem pública e da paz geral»3. A tradição de a poesia, na sua vertente satírica, se imiscuir na vida pública das cidades tem assim origens remotas e também ela explica a necessidade que desde sempre os poderes sentiram, se não de a banirem radicalmente, como propunha Platão, pelo menos de limitarem o seu alcance, enquadrando-a não só temporalmente, em datas e ocasiões fixas, como o Carnaval e outras ocasiões rituais, mas também judicialmente, como nos contam Aristóteles e Horácio, e como nos provam as numerosas outras referências a legislação nesse sentido que encontramos um pouco por todo o lado.
1
Traduzida por Vernam Hull, ZCP, XVIII, 1930, pgs. 63-69, cit. por Robert Elliott, op. cit., p. 38 Sobre o humor árabe da alta Idade Média ver Franz Rosenthal, Humor in early Islam, Leiden, E. J. Brill, 1956. 3 Robert Elliott, op. cit., p. 17. 2
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3. Aspectos da sátira medieval a) A tradição popular carnavalesca Situando-nos agora mais especificamente na Idade Média, vamos encontrar um quotidiano onde toda esta rica e variada tradição satírica anterior se mantém em pleno funcionamento. Comecemos por realçar a importância do Carnaval e das manifestações do tipo carnavalesco na cultura medieval popular, importância que, como dissemos, só a partir de Baktine começou a ser levada em consideração. Ninguém melhor que ele nos poderia traçar as linhas gerais desta cultura não oficial, mas profundamente, enraizada na vida quotidiana das populações do Ocidente cristão: Les réjouissances du carnaval avec les actes ou rires comiques qui s'y rattachent occupaient une immense place dans la vie de l'homme du Moyen Age. En plus des carnavals proprement dits accompagnés d'actes et processions fort compliqués qui occupaient les places et les rues des jours entiers, on célébrait les «fêtes des sots» (festa stultorum) et la «fête de l'âne»; il existait aussi un «rire pascal» (risus paschalis) particulier, libre, consacré par la tradition. De plus, presque toute les fêtes religieuses possédaient leur aspect comique populaire et publique, aussi consacré par la tradition. Tel était, par exemple, le cas des «fêtes du temple» qui s'accompagnaient habituellement de foire avec leur riche courtège de réjouissances publiques (où l'on exhibait géants, nains, monstres, bêtes «savantes»). C’était une ambiance de carnaval qui présidait à la représentation des mystères et soties. De même pour les fêtes agricoles, comme la vendange, qui étaient également célébrés dans les villes. Le rire accompagnait encore les cérimonies et rites civils de la vie courante: ainsi les bouffons et les sots ne manquaient jamais d'y participer et ils parodiaient chacun des actes du cérémonial sérieux (proclamation des noms des vainqueurs des tournois, cérémonies de remise du droit de vasselage, adoubement des chevaliers, etc.). Nul festin ne se déroulail sans qu'interviennent les éléments d'une organisation comique comme, par exemple, l'élection pour la durée du festin de reines et rois «pour rire»1. O riso carnavalesco ocupava, pois, um lugar considerável na vida medieval, ao contrário daquilo que uma grande parte da tradição manuscrita que até nós chegou nos poderia levar a supor (e que levou, de facto a uma imagem deturpada da cultura medieval). E sem dúvida que, como acontecia nas saturnais romanas, o elemento satírico não estaria ausente destas manifestações do cómico medieval, ainda que Baktine, por razões que se prenderão com o seu objeto de estudo particular, a obra de Rabelais, tenha dedicado mais atenção às formas do grotesco que elas patenteiam do 1
Op. cit., p. 12-13.
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que propriamente às formas da sátira. De qualquer forma, o caráter de relativa liberdade, de suspensão (ainda que temporária) das hierarquias feudais, que estas festas permitiam era certamente propício ao desenvolvimento da sátira (pessoal, política, social), quer sob as formas do grotesco estudadas por Baktine – e já Tavani assinalou o que muitas das cantigas de escárnio e maldizer devem a este grotesco carnavalesco1 – quer sob outras formas não grotescas que o cómico possibilita. Apesar de, no que se refere a Portugal e mesmo ao espaço da Península, serem quase inexistentes os estudos sobre a matéria, nada nos indica que o quotidiano fosse aqui sensivelmente diferente do quotidiano europeu da época. Velhas tradições ainda hoje observáveis na altura do Carnaval, em populações essencialmente rurais, indicamnos, pelo contrário, que as festividades carnavalescas deviam ter, na Península, as mesmas características gerais apontadas por Baktine: o grotesco sobrevive, nos nossos dias, em algumas manifestações carnavalescas populares, como, por exemplo, na curiosa «dança dos cus», dança coletiva efectuada por toda a comunidade (e visitantes), durante todo o período do Carnaval, em Cabanas, povoação do distrito de Viseu, dança cujas raízes são seguramente muito remotas. A este propósito pode talvez fazer-se a ligação com o que nos diz Claude Gaignebet em Le carnaval, um livro escrito em colaboração com Marie Claude Florentin, e que se ocupa dos antigos rituais ligados a esta data: que a libertação de gases intestinais, manifestação carnavalesca típica, está relacionada com um primitivo sentido mágico da crença na libertação das almas dos mortos. Igualmente nos diz que os fogos de Carnaval, outra das suas manifestações típicas, se podem relacionar com a antiga queima das cabanas dos leprosos, transformada em ritual simbólico de purificação2. Se mesmo hoje em dia nas manifestações carnavalesas há traços do seu anterior sentido ritual, é natural supormos que no Carnaval medieval esses traços seriam muito mais acentuados e ativos. Também as numerosas proibições e advertências feitas por bispos e pelo clero em geral, ao longo de toda a Idade Média peninsular, sobre matérias relacionadas com romarias e outras festividades religiosas «oficiais», nos mostram como devia ser forte a
1 «O cómico e o carnavalesco nas cantigas de escárneo e maldizer», Lisboa, Boletim de Filologia, 29, vol.II, 1984. 2 As cabanas dos leprosos chamavam-se, aliás, em francês antigo, «bordas» (na borda das povoações), de onde vem o atual «bordel» (dos leprosos era dito terem vida sexual intensa). Le Carnaval, Paris, Payot, 1979.
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componente profana e mesmo carnavalesca de tais atos, cuja força subversiva a Igreja sempre procurou controlar.
b) A literatura medieval de tipo carnavalesco Mas, como também diz Baktine, na Idade Média era muitas vezes no interior da própria Igreja que o riso carnavalesco nascia. Detentores quase exclusivos, por muito tempo, do monopólio da cultura escrita, na língua internacional da época, o latim, os clérigos medievais deixaram-nos uma abundante documentação que nos comprova o seu gosto pelos divertimentos do tipo carnavalesco, constituída sobretudo por paródias aos textos oficiais, tanto os do culto como os que serviam de base ao ensino por eles ministrado. Retomemos o texto de Baktine: Non seulement les escholiers et les clercs, mais encore les eclésiastiques haut placés, les doctes théologiens s'accordaient de joyeuses distractions pendant lesquelles ils se reposaient de leur pieuse gravité, tels ces «jeux de moines» (Joca Monacorum), titre d’une des oeuvres les plus appréciées du Moyen Age. Ils rédigeaient dans leurs cellules de savants traités plus ou moins parodiques et d'autres oeuvres comiques en latin. (...) L'une des oeuvres les plus anciennes et célèbres de cette littérature, La Cène de Cyprien (Caena Cypriani), travestit dans un esprit carnavalesque toute l'Écriture sainte (Bible et Evangile). Elle a été consacrée par la tradition du risus paschalis libre; on y retrouve, entre autres, des échos lointains des saturnales romaines. Une autre oeuvre três ancienne de ce genre, Vergilius Maro grammaticus, est un traité savant semi-parodique sur la grammaire latine en même temes qu'une parodie de la sagesse scolastique et des méthodes scientifiques des débuts du Moyen Age. Ces deux oeuvres, qui se situent à la jonction de l'Antiquité et du Moyen Age, inaugurent la littérature comique médiévale en latin et exercent une influence prépondérante sur ses traditions.1 Baktine refere ainda, dentro destas obras cómicas em latim, as parodia sacra, textos que eram duplos parodísticos de elementos do culto e dos dogmas: A Liturgia dos Bêbados, A Liturgia dos Jogadores, por exemplo, Pater Noster, Ave Maria cómicos, e toda a espécie de litanias, hinos, salmos, numa sucessão quase infinita. A literatura cómica em latim era, pois, um género que, ainda que destinado ao público mais restrito de letrados com capacidade para entender essa língua, conheceu enorme desenvolvimento na época.
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Op. cit., p. 22. Acrescente-se ainda que a referida paródia à gramática oficial recorre muitas vezes aos duplos sentidos com conotações eróticas.
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Mas também em língua vulgar este tipo de literatura floresceu abundantemente, como nos provam as inúmeras paródias de cariz religioso que até nós chegaram, dentre as quais se destacam os célebres sermões jocosos, que a França sobretudo apreciava, mas que a Península devia ter igualmente conhecido (sendo, como é sabido, uma das referências tradicionalmente apontadas como fontes do teatro vicentino). Mas em língua vulgar o que predomina «ce sont surtout les parodies et travestissements laics qui tournent en dérision le régime féodal et son épopée héroique»1, como as epopeias parodísticas que põem em cena «doubles comiques des héros épiques (Roland comique)», ou os romances de cavalaria também parodísticos, como La mule sans bride, Aucassin et Nicolette, em França, onde também os fabliaux e a sua risonha visão do mundo conhecem uma difusão notável. Como é evidente, nem sempre este tipo de textos paródicos teriam intenção satírica (pelo menos no sentido horaciano do termo). Se aceitarmos a distinção de Nabokov de que «a sátira é uma lição, a paródia é um jogo»2, teremos que ver em muitos destes textos simples divertimentos, sem grandes pretensões críticas ou mesmo subversivas. É Linda Hutcheon quem chama a atenção para esta imprecisão no texto de Bakhtine, que parece atribuir uma mesma força transgressora a todas as manifestações do cómico medieval. Ora «ao texto paródico é concedida uma licença especial para transgredir os limites da convenção, mas, tal como no carnaval, só pode fazê-lo temporariamente e apenas dentro dos limites autorizados pelo texto parodiado – quer isto dizer, muito simplesmente, dentro dos limites ditados pela reconhecibilidade»3. O que significa que muitas vezes a paródia, tanto a carnavalesca como a literária, pode ser apenas o reforço da ordem e das leis, facto que explicaria, aliás, a sua aceitação pelas instituições parodiadas. Como vimos, o próprio título de um dos mais apreciados textos cómicos em latim, os citados Jogos de monges, indica-nos exatamente que a intenção puramente lúdica do cómico prevalece muitas vezes sobre qualquer outra intenção, de caráter especificamente satírico. Se as fronteiras entre a sátira e a paródia recreativa são, pois, difíceis de demarcar, isso também não significa que os limites do permitido não fossem muitas vezes ultrapassados, e a «lição», a intenção crítica da sátira, não constituíssem,
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Baktine, op. cit., p. 23. Vladimir Nabokov, Pale Fire, 1962, Putnam's, New Iorque, citado por Linda Hutcheon, Uma teoria da paródia, Edições 70, Lisboa 1989. 3 Ibid, p. 96 2
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em muitos casos, o desígnio primeiro deste cómico de raiz carnavalesca. Entre ambas, paródia e sátira, no entanto, o riso dos letrados medievais afirma-se como uma manifestação quotidiana de vida, no prolongamento de antigas tradições de festas coletivas, e permite o desenho de uma sociedade «outra», distante da que uma certa ideia de cultura medieval monolítica nos parece desenhar.
e) A tradição da sátira clássica. Se o Carnaval e as manifestações do tipo carnavalesco mantinham viva, na Idade Média, a tradição do riso coletivo livre (quer este assumisse ou não um caráter satírico) o facto é que também a tradição da sátira literária clássica não se perdeu totalmente na Idade Média. Genericamente, é a própria designação de Renascimento, dada aos séculos posteriores ao séc. XV (antes ou depois, conforme os lugares e os autores) que deturpa assinalavelmente o entendimento da história e que pode levar a generalizações abusivas sobre a ausência de elos que liguem a Idade Média ao seu passado próximo, nomeadamente às civilizações ditas clássicas. É certo que muita coisa se perdeu ou transformou nesses séculos que se seguiram ao esplendor de Atenas ou de Roma. Mas muitas outras se preservaram, por vezes em formas hoje difíceis de avaliar, dada a escassez de documentos escritos sobre essas matérias (ou até o desconhecimento dos que existem). Podemos, no entanto, afirmar que os grandes mestres da sátira clássica, sobretudo os latinos, não só não eram desconhecidos, como sempre foram referências para as elites cultas medievais, dentro e fora da instituição religiosa dominante (sobretudo dentro, já que, fora da Igreja, só raras vezes essas elites se desenvolveram). No séc. IV, S. Jerónimo, por exemplo, cita frequentemente Horácio. No séc. VIII vamos encontrar Alcuíno, um dos grandes mestres do «renascimento» carolíngeo, a ser conhecido, na corte de Carlos Magno, de quem era um dos mais diretos colaboradores, pelo sobrenome dc Albinus Flaccus, numa referência horaciana imediata. O mais antigo manuscrito de Horácio que chegou até nós data do séc. IX e foi copiado em França, na abadia de Fleury-sur-Loire. A partir do séc. XI abundam os manuscritos da obra do grande poeta latino e nas festas corteses medievais era costume «cantarem-se» odes e
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poemas líricos seus1. Os outros poetas satíricos clássicos têm um percurso medieval semelhante, e as referências, ainda que dispersas, às suas obras mostram-nos que, se eles não eram ainda os modelos de uma devoção (e imitação) quase exclusiva, como vai acontecer em toda a literatura clássica a partir do Renascimento, eles continuavam, pelo menos, a ser lidos e altamente apreciados pelos letrados medievais. O facto de muitas das suas obras servirem de base ao ensino do latim e da retórica, que constituía a base das escolas medievais2, contribuiu em muito para a sua difusão entre as camadas cultas, não só dos clérigos mas também dos homens e mulheres letrados das cortes medievais3. É igualmente nas escolas que assistimos ao reaparecimento da comédia satírica greco-latina (ainda que as comédias gregas fossem conhecidas muitas vezes apenas a partir de más traduções em latim). A partir do séc XI, é possível encontrar inúmeros exemplos de um teatro profano em latim, feito a partir da «atualização» das comédias de Plauto, de Menandro e de outros. É o caso da popularíssima comédia Pamphilus (autor e data desconhecidos, talvez séc. XII), uma história erótica de sedução no espírito de Ovídio e na tradição de Plauto4. A grande celebridade que esta peça alcançou em toda a Europa – a palavra «panfleto» terá provavelmente a sua origem na grande difusão da peça – estará certamente relacionada com o facto de ela ser matéria de estudo em muitas escolas. Nesta e noutras «modernizações» da comédia clássica, a sátira é uma componente essencial, uma sátira atualizada, visando quer os costumes (e os costumes sexuais originam inúmeras cenas licenciosas, por exemplo em Alda, de Guillaume de Blois, datada de c. 1170), quer a escola (Milo, de Mathieu de Vendôme, m. 1185), quer a própria Igreja (Babio, anónimo, séc. XII). Mais uma vez nos faltam dados específicos
1
F. Richard, prefácio a Horace, Oeuvres, Paris, Garnier-Flamarion, 1967. Um exemplo de uma destas cantigas chegou até nós incluída no manuscrito conhecido por «Cambridge Songs», um conjunto de 49 cantigas em latim coligidas c. 1050: uma dessas cantigas é exatamente a musicalização da ode de Horácio a Neóbolo. Vide Peter Dranke, The medieval lyric..., op. cit., p. 25. 2 O aproveitamento escolar dos textos clássicos é comprovado, aliás, por vários comentários de professores medievais que até nós chegaram. Num dos volumes da biblioteca do mosteiro de Saint Gall, datado de c. 1066, por exemplo, encontram-se comentários a Horácio e também a Pérsio. Um comentário a Juvenal está incluído num códice da biblioteca da catedral de Colónia, do século XI ou XII. Ainda que normalmente estes comentários tendessem a distorcer o texto original de forma a fazê-lo coincidir com a visão cristã medieval do mundo, eles são uma prova da permanência dos autores clássicos ao longo de toda a Idade Média. Vide, sobre estes comentários, B. Bischoff, «Living with the satirists» in Classical influentes in European Culture AD 500-1500, Cambridge University Press, 1971, pgs. 83-94. 3 Como veremos, há, num dos mais antigos trovadores galego-portugueses, Lopo Lias, uma clara referência a Vergílio. 4 Panfília, aliás, é o nome de uma personagem feminina de uma das histórias das Metamorfoses de Apuleio.
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sobre a Península Ibérica que pudessem apontar vestígios de uma atividade relacionada com este teatro satírico em latim. Sabe-se, no entanto, que em Espanha, em finais do séc. XV, corria uma versão do Pamphilus (com o nome de Pamphilo), da autoria de Juan de Flores. Alguns autores vêem mesmo nesta peça latina uma das fontes da célebre Celestina, de Fernando de Rojas (por sua vez, como se sabe, uma das fontes de inspiração vicentina). A tradição satírica clássica transparece ainda em muitas obras originais escritas em latim durante a Idade Média. Diretamente de Horácio, por exemplo, vêm os quatro livros de Sermones, escritos, c. 1044, por um anónimo da Renânia, que assina sob o bizarro pseudónimo de Sextus Amarcius Gallus Piosistratus. Também seguindo de perto Horácio é o Ecbasis captivi, poema de c. 940, da autoria de um monge da Lorena, a alegoria de uma vitela que acaba comida por um lobo. Deste género de sátiras alegóricas utilizando animais encontramos numerosos exemplos medievais. Os mais célebres serão Ysengrinus (O Lobo), do alemão Nirvard de Ghert (c. 1150) – como um lobo, isto é, um monge, foi enganado pela raposa; e o Speculum Stultorum (O espelho dos Loucos), escrito c. 1180 por Nigellus Wireker, ou Nigel de Canterbury, violenta sátira contra as instituições da Igreja, na história de um burro que se torna monge e que quer ser papa. Sátiras à vida religiosa são ainda Polycraticus de John de Salisbury, bispo de Chartres (1120-1167) e De vita monachorum de Alexander Neckham (11571217). A literatura profana em latim (geralmente, aliás, e como facilmente se compreende, da autoria de clérigos) é, pois, uma realidade medieval, pelo menos até ao aparecimento das literaturas em língua vulgar, nos séc. XI e XII. A sátira ocupa uma grande parte dessa literatura, que conheceu períodos florescentes, como foi o caso da corte de Carlos Magno (onde podemos encontrar verdadeiros duelos poéticos entre os vários autores, como, por exemplo os de Teodolfo de Orléans com Alcuíno1) ou, mais tarde, já em pleno período das literaturas vernaculares, do brilhante círculo de poetas, escrevendo ainda em latim, da corte de Henrique II, o marido inglês (o segundo marido) de Eleonor de Aquitânia, célebre filha de Guilherme de Poitiers). Nigel de Canterbury, acima referido, é um dos que pertenceu a este círculo, assim como Pierre de Blois (que foi secretário do rei), autor de cerca de 50 cantigas variadas, algumas delas sátiras à vida da 1
Schaller, «Poetic rivalries at the court of Charlemagne», op. cit., pp.151-157.
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corte, ou ainda Guilherme de Chatillon, autor também de poemas satíricos (juntamente com outros de cariz religioso ou amoroso)1. Mas a existência de uma forte tradição satírica clássica na literatura medieval é-nos atestada ainda, e talvez sobretudo, pela documentação relacionada com os mais conhecidos goliardos, clérigos-poetas, que também em latim (predominante, mas não exclusivamente) nos deixaram um conjunto considerável de poemas, grande parte dos quais de caráter exatamente satírico. A descoberta, em 1834, no mosteiro de Beuron, de um manuscrito dos inícios do séc. XIII que ficou conhecido pelo nome de Carmina Burana e que reúne cerca de trezentas composições (manuscrito a que se juntou posteriormente um outro, este com cantigas do séc. XI, os Carmina Cantabrigensia) veio dar corpo e voz a uma literatura que, afastando-se claramente dos cânones da cultura oficial, nem por isso era menos viva e influente. Os manuscritos reúnem poetas de várias nacionalidades, sendo a maioria dos seus poemas anónimos. Este facto, conjuntamente com o tom e a matéria da maioria dos poemas, estão na base da criação da imagem tradicional do goliardo como o clérigo vagabundo, vivendo à margem das instituições religiosas que veementemente critica, por entre cantos aos prazeres da vida e da carne. O próprio nome de «goliardo» parece provir, aliás, de um desses poemas satíricos anónimos, «Golias contra o casamento», um conjunto de monólogos misóginos, postos na boca de três doutores da Igreja. De facto, alguns autores, hoje em dia, pensam que a imagem tradicional do goliardo é mais mítica do que real. Como nos diz Dronke2, todos os cinco poetas destes manuscritos cujos nomes conhecemos foram figuras importantes da Igreja e da sociedade da época: três deles como professores nalguns dos mais importantes centros de ensino (Hugo, Primaz de Orléans, Serlo de Wilton e o já referido Guilherme de Châtillon, também aqui incluído), e os dois outros como proeminentes administradores (o também já referido Pierre de Blois e Filipe, chanceler da Universidade de Paris). Só o chamado Arquipoeta de Colónia (cuja identidade desconhecemos, mas que se sabe ter pertencido à corte de Frederico Barba Ruiva) parece poder enquadrar-se no mito do goliardo – mas talvez só porque é exatamente dele um poema que traça o retrato do poeta vagabundo. Ainda que nada nos
1
Peter Dronke, «Pierre de Blois and Poetry at the court of Henry II», in The Medieval poet and his world, Roma, Edizioni di storie e letteratura, 1984. 2 The medieval lyric..., op. cit., p. 19.
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indique, de facto, que esse retrato seja autobiográfico (Dronke pensa que não é), o poema contribuiu, de certo, poderosamente para a fixação dessa imagem. Qualquer que fosse o estatuto dos restantes poetas anónimos, o certo é que a violência e a vivacidade das suas sátiras é inegável: contra os prelados e bispos feudais, os monges glutões, o clero corrupto, os senhores brutais, a sua voz demonstra uma liberdade crítica notável. Do «Evangellium secundum marcas argenti» (em Roma só o dinheiro fala), até ao «Apocalypsis Goliae» (no céu abre-se o livro sobre a vilania dos clérigos e do papa), do «Aestuans intrinsecus» (a confissão paródica dos pecados de um bêbado, que, segundo nos diz, ao menos, não é hipócrita), até ao mais tardio poema de Guilherme de Châtillon, «Utar contra vitia carmine rebelli» (Usarei, contra os vícios, um canto de rebelião), todos estes poetas levantam a sua voz contra a corrupção e a hipocrisia do seu tempo, muitas vezes, é certo, com mais cinismo do que indignação1. Mas, de certa forma, eles não deixam de ser, como inúmeras vezes se tem afirmado, a voz da opinião pública, e refletem em muitos aspetos o sentimento do povo que muitos parecem, realmente, intimamente conhecer. São poemas que denotam igualmente o conhecimento (pelo menos escolar) dos textos clássicos, retomados numa leitura produtiva, que faz a transferência dos alvos (e de formas – trata-se aqui de cantigas) para o contexto da época, com uma liberdade de espírito que só por si justifica as inúmeras perseguições de que foram alvo. Os goliardos vão desaparecer, violentamente condenados por vários concílios (1227, 1239). Mas o que nos chegou dos seus textos (e para além do seu valor intrínseco) prova-nos que a tradição da sátira clássica permanece viva na Idade Média, e ajuda a formar uma literatura nova pela transformação do antigo. Como nos indica Carlos Alvar, no que respeita à Península não temos, pelo menos até ao momento, grandes dados que permitam confirmar a existência de uma literatura profana crítica em latim. No entanto, sabe-se que a poesia dos goliardos aqui chegou e «teve adeptos em alguns centros eclesiásticos, como Ripoll e, em menor medida, Toledo». Conservou-se mesmo uma coleção de textos goliárdicos hispânicos (ainda que única), os Carmina Rivipullensia (Canções do mosteiro de Ripoll), uma compilação do séc. XII2.
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Comentários a estes poemas in Mathew Hodgart, Satire, Londres, World University Library, 1969. La poesia lírica medieval, Madrid, Taurus, 1987, p. 25.
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d) Outras tradições Muitas das comédias profanas a que antes fizemos referência têm ainda outra característica curiosa que convém realçar: é que, para além da sua evidente ligação à tradição clássica, elas baseiam muitas vezes a sua intriga em contos orientais, que começam na época a ser introduzidos na Europa a partir dos reinos árabes peninsulares. Este facto alerta-nos para um outro aspeto central da cultura medieval ocidental: o de verdadeiro ponto de encontro de civilizações diversas que a Europa foi, pelo menos até ao séc. XIII. O grau de influência da cultura árabe na Europa cristã medieval continua a ser motivo de acesas polémicas, que não cabe no âmbito deste trabalho analisar. Será, no entanto, difícil admitir que duas civilizações que partilharam espaços tão próximos, e por tanto tempo, não sofressem qualquer tipo de influência recíproca, como por vezes parece depreender-se dos estudos de cultura medieval. Pelo contrário alguns testemunhos comprovam-nos que a influência árabe era por vezes sentida como excessiva, como nesta queixa do escritor cristão Alvaro, em Indiculus luminosus, texto datado já de 8641: Os nossos jovens cristãos, com os seus ares elegantes e o seus discursos fluentes, são apontados pelos seus vestidos e pelo seu aspeto, e são afamados pelo seu conhecimento dos assuntos dos pagãos; intoxicados com a eloquência árabe, manejam avidamente, devoram vorazmente e discutem zelosamente os livros dos Caldeus [i.e. Maometanos], e tornam-nos conhecidos, louvando-os com todas as flores da retórica, desconhecendo por completo a beleza da literatura da Igreja, olhando com ar superior os sonhos da Igreja que dimanam do Paraíso; ai de mim! os cristãos são tão ignorantes da sua própria lei, os latinos dão tão pouca atenção à sua própria língua, que em toda a Cristandade dificilmente há um homem em mil que saiba escrever inteligivelmente uma carta perguntando a um amigo pela saúde, enquanto se pode encontrar um número incontável deles, de todas as categorias, sabendo doutamente desenrolar grandiloquentes períodos em língua caldaica. Até conseguem fazer poemas, acabando cada linha com a mesma letra [sílaba], que ostentam mais altos voos de beleza e mais capacidade em manejar os metros do que aqueles que os próprios pagãos possuem. Nas relações entre as duas civilizações, o caso da Península Ibérica é particularmente exemplar, pelas razões históricas conhecidas, e merece, por esse motivo, um pouco mais de atenção.
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Cit. por Thomas Arnold, The preaching of Islam: a history of the propagation of the Muslim Faith, Labore, Pakistan, 1965, pgs.139-140 (tradução nossa).
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Na civilização árabe peninsular, uma das mais ricas e avançadas da época, como é por demais sabido, a poesia (e as artes em geral) ocupavam um espaço considerável. Numerosos califas eram eles próprios poetas ou protetores de poetas. Sem podermos garantir, como o faz Robert Briffault, num livro já na altura polémico, mas que continua muito interessante1, que toda a poesia trovadoresca, incluindo a provençal, tem as suas origens na poesia árabe que se desenvolveu em Espanha a partir do séc. X (ainda que tendo em seguida um desenvolvimento autónomo), não poderemos deixar de ter em conta esses poetas que, como nos prova uma célebre iluminura das Cantigas de Santa Maria (que coloca um jogral cristão e um jogral árabe tocando lado a lado), muitas vezes tinham um estatuto idêntico aos demais jograis e trovadores nas cortes cristãs da Península2. De uma maneira geral, a poesia peninsular em língua árabe (que, como se sabe, incluía por vezes dísticos em romanço, as célebres carjas) era uma poesia fortemente ancorada no real. A própria lírica amorosa era percorrida por uma sensualidade que faz do amor uma paixão terrena e bem humana, ao contrário do que vai acontecer, mais tarde, no amor cortês, pelo menos na sua versão peninsular. Um tratadista egípcio, lbn Sanã'al Mulk, que, no início do séc. XIII, reflete sobre as carjas, indica-nos mesmo explicitamente que «a carja de caráter amoroso devia ser desavergonhada, e inclusivamente obscena, estar escrita em língua vulgar e as suas palavras serem abrasadoras, agudas e cortantes. Pelo contrário, a carja que se utilizava numa moaxa laudatória, devia apresentar uma correção muito maior, com palavras cheias de encanto, ‘próximas do ardor amoroso'»3. Embora sejam, como se sabe, de difícil descodificação4, as carjas em língua romance que chegaram até nós – e cuja influência na lírica galego-portuguesa, ainda que polémica, merece toda a nossa atenção – parecem obedecer genericamente a estes princípios. Por outro lado, e como já vimos, os poetas e cantores árabes peninsulares sabiam também o valor da intervenção poética na praça pública e utilizavam-na frequentemente, como forma de pressão (e nisto seguiam a antiga tradição da hijã, de
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Les troubadours et le sentiment romanesque, Paris, Editions du Chêne, 1945. Briffault, op. cit., dá numerosos exemplos (p. 57-64). Entre eles o da trupe de jograis da corte de Sancho IV de Castela, que compreendia 13 cantores mouros, 12 cristãos e um judeu. 3 Carlos Alvar, op. cit., p. 33. 4 Sobretudo em virtude de os manuscritos árabes transcreverem apenas as consoantes e não as vogais. 2
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que falámos) ou como simples divertimento1, e continuaram a fazê-lo nas taifas peninsulares. Na mais antiga coletânea de poemas árabes em língua vulgar, o Diwan, onde Abu-Bakr Ibn-Quzman, de Córdova (1078-1160) recolhe e adapta as poesias cantadas por menestréis nos palácios e praças públicas, um número bastante significativo tem caráter satírico. Estas cantigas são bastante diversificadas: encontramos, para além das canções licenciosas (baléik) e das canções báquicas (khamryé), canções de crítica pessoal (farki), canções de caráter moral (mokeffer), e mesmo canções diretamente políticas2. Com alguma probabilidade, era este o tipo de canções (conjuntamente com as canções de amor e os panegíricos) que seria possível ouvir, por vezes, na época, também nas cortes cristãs peninsulares. A sátira árabe medieval, como em geral toda a poesia árabe peninsular, é, por motivos que se prendem também com a teimosa persistência de antigos rancores religiosos, ainda hoje mal conhecida. Muito pior seguramente do que o seria na época que nos ocupa. Isto faz com que, mesmo que não possamos estabelecer ligações diretas concretas, indiscutivelmente a tenhamos que considerar neste breve apanhado das diversas tradições satíricas contemporâneas dos trovadores e jograis galegoportugueses.
4. Os Cancioneiros e as tradições satíricas Cantigas em latim, em árabe ou em língua vulgar, cantadas pelo povo, pelos clérigos ou por poetas profissionais, de raizes folclóricas ou sabiamente elaboradas, as cantigas satíricas eram pois uma constante na Idade Média – e certamente também na Península. De um ponto de vista geral, a existência de uma forte componente satírica nos Cancioneiros galego-portugueses não é assim surpreendente. As cantigas de escárnio e maldizer dos Cancioneiros mais não fazem do que enquadrarem-se perfeitamente no contexto e no espírito da época, e, podemos acrescentá-lo, constituem mesmo manifestações típicas desse espírito, no qual o riso ocupava um significativo espaço. Fica, no entanto, por responder a questão da ligação concreta (formas, temas, etc.) da sátira galego-portuguesa com toda esta rica tradição satírica. Ainda que para ela
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Ganhando, por vezes, fortunas com ela, como nos diz Franz Rosenthal, Humor in Early Islam, op. cit. p. 23. 2 Briffault, op. cit., p. 42
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não encontremos certamente uma resposta definitiva, é a discussão desta questão o que procuraremos fazer no que se segue. A questão geral das origens da poesia galego-portuguesa e da sua ligação com as várias tradições anteriores tem feito correr rios de tinta. Mas, como dissemos, esta polémica tem sistematicamente ignorado tudo o que diz respeito ao corpus satírico dos Cancioneiros. Na breve descrição anteriormente feita das tradições satíricas que a Idade Média conheceu, aproximámo-nos, genericamente, das fontes tradicionalmente apontadas para o lirismo trovadoresco em geral e para o lirismo galego-português em particular, e que são, como é sabido, (1) as tradições populares e folclóricas, (2) a tradição literária em latim e (3) a tradição árabe1. Se em qualquer destas tradições pudemos comprovar a existência de uma forte componente satírica, já o problema das ligações especificas da sátira galego-portuguesa e das suas formas particulares com cada uma destas tradições levanta problemas de certa forma insolúveis. A questão central parece-nos ser aquela que coloca Hans Robert Jauss2: Trata-se de literaturas novas que se criam; nenhum princípio humanista de imitação rigorosa, nenhuma regra poética as fazem diretamente dependentes da literatura latina que as precedeu. Para os géneros populares em língua romance, quase não há, á partida, documentos poetológicos. A situação é tanto mais complexa quanto é certo que essa «literatura nova» se apresenta como uma poesia altamente elaborada, com regras muito próprias e definidas, o que não deixa de ser surpreendente. Jauss não se debruça diretamente sobre o problema dos elos perdidos, da ligação da literatura medieval com as tradições anteriores, já que o seu estudo incide sobre a questão teórica geral dos géneros literários. Mas acrescenta, no entanto, algo que pode ajudar a clarificar a matéria que nos ocupa. Para Jauss o problema dos géneros literários, e particularmente dos géneros literários medievais, não pode ser visto em termos de uma delimitação rigorosa, mas em termos de dominância:
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A questão da tradição provençal é de uma ordem cronológica diferente. De facto, essa tradição necessita, ela própria, de ser explicada à luz destas raizes mais antigas, questão que não está, de maneira nenhuma, esclarecida. Fazer derivar todo o lirismo galego-português da poesia provençal parece-nos assim uma simplificação excessiva do problema. De qualquer forma, retomaremos, um pouco mais à frente, esta questão. 2 Literatura medieval e teoria dos géneros, Vila Nova de Gaia, Livros Zero, João Soares Martins ed., 1974, p. 86.
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A introdução da noção de dominante, que organiza o sistema de uma obra complexa, permite transformar em categoria metodologicamente produtiva o que se chamava «mistura de géneros», e que, na teoria clássica, era apenas o lado fraco dos «géneros puros1. No caso concreto da sátira medieval em língua vulgar, ela não surge, de facto, na origem, como um género independente, mas parece surgir em textos que são exemplos de mistura de géneros. Jauss exemplifica com um tipo de poemas que encontramos nos alvores da lírica provençal, a canção-sirventês: A canção-sirventês que, com os seus quarenta e nove poemas e a definição que deles deu Folquet de Romans, constitui sem dúvida um género, foi um dos mais antigos motivos de irritação para os estudos provençais, por causa do seu «caráter compósito». A canção-sirventês liga, com efeito, o tema do amor ao da política. Mas, graças a esta dupla temática, restabelece – como o mostra Kohler2 – a unidade originária do elogio da mulher e do serviço do senhor, que não estavam ainda distinguidos no vers da primeira poesia dos trovadores, mas que se separam depois passando aos dois géneros chanson e sirventês. O sistema histórico desta poesia mostra assim, antes do mais, como uma modificação de estrutura (separação entre a temática amorosa e a temática satírica) produz dois géneros novos, «mais puros», e como a necessidade de tornar de novo sensível a unidade perdida dos dois géneros nas estruturas unilaterais faz surgir o princípio estrutural antitético de um novo género autónomo3. Estes exemplos apontados por Jauss (num estudo que, como dissemos, tem mais um caráter teórico do que propriamente medievalista) podem constituir um bom ponto de partida para a discussão não só do modo como a sátira medieval se constituiu a partir das tradições anteriores mas também das formas particulares que essa sátira assume e da sua relação com as outras formas da lírica trovadoresca. O primeiro problema – o modo como a sátira medieval se liga às tradições satíricas anteriores – é o que nos tem ocupado até aqui. Fazendo nossa a opinião de Jauss, parece-nos errado tentar definir uma linha evolutiva única para as cantigas de escárnio e maldizer, partindo, por exemplo, de uma definição estreita do género sátira que corresponderia à sua definição clássica. Para além de, na Idade Média, não haver, de facto, «nenhum princípio humanista de imitação rigorosa» da literatura clássica, é
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Ibid., p. 93. E. Kohler, «Sirventes-Kanzone: genre bâtard oder legitime Gattung?», in Mélanges R. Lejeune, 1969, p. 172. 3 Yauss, op. cit., p. 104. 2
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preciso ter em conta que, como acrescenta Jauss no seu estudo, «a relação do texto particular com a série de textos que formam o género surge como um processo de criação e de modificação contínua de um horizonte»1. Neste sentido, se o espírito da sátira permanece, ele toma a sua forma medieval própria a partir de «um processo de criação e modificação» do antigo, antigo que não pode ser resumido, na Idade Média, como fará mais tarde a literatura renascentista, ao antigo «clássico», tal como ele se define, por exemplo na sátira horaciana. É, aliás, muito provável, como já dissemos, que esta tradição clássica não fosse desconhecida dos trovadores, pelo menos dos de uma certa camada culta – e muitos deles eram clérigos, como se sabe (referimo-nos à tradição clássica e, de um modo geral, a toda a tradição satírica em latim). Mas o que constitui a especificidade da sátira trovadoresca é exatamente a sua diferença em relação a essa tradição, diferença que nasce não apenas da transferência do «espírito» da sátira latina para a língua «vulgar», mas sobretudo do que essa transferência significa em termos de transporte para um género literário culto – e não nos podemos esquecer que a poesia trovadoresca era uma poesia culta – de toda uma outra tradição satírica já existente nessa língua vulgar, a tradição da sátira carnavalesca popular. Nesta medida, cantar ou escrever em galego-português (ou em provençal, ou em francês) significava, não apenas uma mudança de língua, mas uma mudança de universo. Indiscutivelmente muitos dos elementos desse universo «vulgar» seriam arrastados na mudança. O processo árabe de transferência para língua vulgar é neste ponto significativo, e pode ajudar-nos a clarificar esta questão. Como se sabe, a poesia árabe clássica utilizava também (como o latim para as línguas românicas) uma língua muito distante já da língua falada vulgar, o shi'r, língua hierática do Corão. Essa poesia, trabalhada em longas frases melódicas monorrimáticas obedecendo a regras prosódicas muito complexas e rígidas, a quasida, acompanhou os árabes para a Península. Sofre, por essa altura, a primeira transformação: da quasida passa-se para a muwassaha ou muaxa, poesia já estrófica, de frases curtas, mas ainda em árabe clássico. Transposta para língua vulgar, essa poesia estrófica toma o nome de zajal (literalmente «jogado» ou «lançado»2). O zajal não era, no entanto, considerado «arte literária» pelas classes cultas, que, apesar de o apreciarem, o consideravam indigno de ser recolhido por escrito
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Ibid., p. 98. Adalberto Alves, O meu coração é árabe, Lisboa, Assírio e Alvim,1987.
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nas antologias poéticas, pelo menos até ao séc. XI, época da publicação do já citado Diwan de Ibn Quzman. No prefácio da sua recolha poética, Ibn Quzman discute longamente a utilização da língua vulgar e as transformações que esta utilização inevitavelmente acarreta na quasida, forma poética tradicional. Condenando a «utilização das convenções gramaticais» do árabe clássico no zajal, «ele cita estrofes de poetas que tinham tentado escrever a língua falada no estilo de uma quasida, mostrando que o uso de desinências arcaicas nos versos curtos resultaria inevitavelmente numa cacofonia»1. A mudança de língua obriga, pois, a poesia árabe a uma mudança de estruturas poéticas – como acontece, aliás, com todas as literaturas vernaculares. Mas não só. Essa mudança implica igualmente uma mudança de universo, como nos provam a sua linguagem e os seus temas, ambos considerados «escabrosos» pelos primeiros arabistas que, já no nosso século, abordaram o recém-descoberto Diwan. Julian Ribera y Taragó, a quem cabe o mérito de ter sido o primeiro a chamar a atenção, em 1912, para esta recolha de Ibn Quzman2, afirma nomeadamente: «A língua das canções não é a língua poética ensinada pelos pedagogos, mas sim o falar vulgar corrente em Córdova; ela contém facécias, locuções e gracejos grosseiros da rua. É a língua dos estudantes e dos miúdos e são os lugares comuns do falar caseiro». E acrescenta esta comparação curiosa: «Não se deve pensar que Ibn Quzman faz erros de gramática e que a sua linguagem é inculta e ignorante. Não o é mais do que a de Dante quando escreve em 'vulgar' em lugar de escrever em latim e quando emprega na Divina Comédia as palavras mais grosseiras»3. Todas as literaturas novas em língua «vulgar» (em língua do vulgo) terão muito certamente nascido de um processo semelhante. É um processo no qual a sátira (pela ligação estreita que mantém com o falar quotidiano) parece desempenhar, como vimos, um importante papel. O facto de os mais antigos textos datáveis da escola galego-portuguesa serem exatamente textos de caráter satírico parece também ser uma confirmação deste facto, e encontrar mesmo nele a sua justificação. Não queremos com isto dizer absolutamente que os trovadores e jograis iniciam a sua atividade em língua vulgar com cantigas satíricas. Mas os Cancioneiros
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Robert Briffault, op. cit., p. 41 O manuscrito, atualmente em Leningrado, foi dado a conhecer pelo barão David von Gunzburg, que o publicou em Berlim em 1896. 3 Citado por Briffault, op. cit., p. 181. 2
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provam-nos (e também na Provença isso acontece) que estes textos estão indiscutivelmente nos alvores da escola. Em resumo, continuando toda a rica e variada tradição satírica anterior, as cantigas de escárnio e maldizer galego-portuguesas não seguem exclusivamente a herança de nenhuma delas, ainda que a tradição popular, porque desenvolvida em língua vulgar, deva certamente ter tido um peso preponderante na definição do seu universo geral.
Colocada a questão nestes termos gerais, vejamos a segunda questão mais particular, a das formas específicas da poesia satírica trovadoresca, problema que se liga igualmente com as origens de um sistema tripartido em que simultaneamente encontramos cantigas de amigo, cantigas de amor e cantigas de escárnio e maldizer (em todas as suas diversas formas: sirventês, tenções, cantigas de seguir, etc.). Como se teriam constituído, pois, as formas autónomas que são as genericamente chamadas cantigas de escárnio e maldizer como um dos três géneros da poesia galegoportuguesa? Como já foi referido, este é um problema que não tem merecido a atenção dos especialistas, que se têm debruçado exclusivamente sobre a génese dos dois géneros líricos «maiores», as cantigas de amigo e as cantigas de amor, generalizando em seguida para todo o lirismo trovadoresco. A hipótese, genericamente aceite, de fazer derivar os dois géneros respetivamente de um lirismo popular autóctone (cantigas de amigo) e do lirismo provençal (cantigas de amor) não conhece hoje em dia contestação significativa. O seu maior defeito, no entanto, é ser incompleta, e não incluir nenhuma referência às cantigas satíricas dos Cancioneiros. Ora, retomando o texto de Jauss atrás citado, há uma forte possibilidade de os géneros terem no início coexistido em «formas compósitas» – de que a canção-sirventês provençal é um exemplo significativo – formas que a própria prática poética (e as condições histórico-sociais do seu contexto) foi diversificando em géneros posteriormente autónomos. A ser assim, e lida a esta luz, por exemplo, a «cantiga da guarvaia» perde em estranheza o que ganha em novo sentido: de facto, poderá entender-se que, a exemplo das canções de Guilherme de Poitiers e dos primeiros trovadores provençais, também aqui, nos alvores da escola galego-portuguesa, a temática amorosa e a temática satírica se poderiam ter encontrado interligadas numa forma poética que unia «o elogio da mulher e o elogio do senhor» – verdadeira raiz da lírica trovadoresca (união tão subterraneamente mantida, seguidamente, no vocativo
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uniforme senhor1). A separação posterior em três géneros não significou, no entanto, uma separação de competências poéticas, e os trovadores e jograis continuaram, como vimos, a praticar simultaneamente os três tipos de poesia, numa simultaneidade que só hoje nos pode parecer insólita. Se a génese deste sistema tripartido poderá assim encontrar uma explicação satisfatória, no caso galego-português há, no entanto, um factor adicional a ter em conta, e que é exatamente o tão citado peso da influência provençal. De facto, mesmo defendendo que o processo de gestação do lirismo em língua vulgar, galego-português ou provençal, possa ter sido idêntico e mesmo simultâneo, o certo é que há uma distância temporal significativa no que diz respeito aos mais antigos documentos que até nós chegaram respeitantes às duas escolas. As canções de Guilherme de Poitiers são anteriores em quase um século às mais antigas canções recolhidas nos Cancioneiros galego-portugueses. Deste modo, os inícios (conhecidos, repetimos) da escola galegoportuguesa coincidem com o período de apogeu da escola provençal e também com a aproximação do seu declínio: a primeira cruzada contra os albigenses, cruzada que, como se sabe, vai originar um refluxo na poesia provençal, foi iniciada em 1209. Em 1250 os cátaros estão completamente vencidos e a poesia trovadoresca provençal, se não desaparece totalmente, muda radicalmente de tom2. Afonso X, para citar apenas um dos momentos marcantes, mas de modo nenhum finais, da escola galego-portuguesa, sobe ao trono em 1252. Estes factos são sobejamente conhecidos e apontados. Não há hoje qualquer dúvida sobre a profunda inflência da escola provençal no lirismo galegoportuguês, de que um dos géneros é a imitação imediata: a cantiga de amor (ainda que, como nem sempre é suficientemente sublinhado, os modelos imitados sejam predominantemente os da canção cortês mais tardia). Defendemos, no entanto, que esta influência se veio sobrepor a um processo literário autónomo já em movimento, que se desenvolve, assim, adoptando, por vezes, modelos exteriores mais consistentes, desenvolvendo, outras vezes, formas iniciais próprias embrionárias. Mais uma vez o caso das cantigas satíricas e das suas formas próprias é exemplar.
1 Também o provençal «sinher» é uniforme. O mesmo se passa na poesia árabe peninsular. Vide a este último respeito, Briffault, Les troubadours..., op. cit., nota 89. 2 Sobre este mudança, nem sempre corretamente entendida, veja-se Briffault, Les troubadours..., ibid.
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Ao contrário do que se passa com os dois outros géneros líricos, as cantigas de amor e as cantigas de amigo, onde a uniformidade formal é a regra, nas cantigas satíricas há uma multiplicidade de formas que não tem paralelo na lírica provençal. Encontramos assim, ao lado de formas de nítida influência provençal (o sirventês moral, o descordo, talvez mesmo a tenção, as duas primeiras em número reduzido), formas autónomas sem correspondência provençal, nomeadamente as próprias cantigas de escárnio e de maldizer, cujas designações, aliás, são originais da escola galegoportuguesa e não têm correspondência provençal (o mesmo acontece com as restantes formas já antes aludidas, cantigas de seguir, cantigas de risabelha, etc.). Teremos pois de admitir que, no caso das canções satíricas, o elo prioritário não passa pela tradição provençal, mas deve procurar-se nesse mesmo processo de desenvolvimento autónomo de que falávamos1. O próprio Rodrigues Lapa o reconhece quando, ao estudar as formas métricas e rítmicas da poesia galego-portuguesa, afirma que o facto de, nas cantigas de maldizer, ser frequente o aparecimento da redondilha nos mostra «que a sua origem é mais nacional (talvez devêssemos dizer mais ibérica) do que a dos outros géneros trovadorescos galego-portugueses»2. Se excetuarmos, pois, duas ou três formas importadas do lirismo provençal, formas numericamente minoritárias, como vimos, teremos de concluir de tudo o que ficou dito que as cantigas satíricas dos Cancioneiros são, na generalidade, formas próprias, elaboradas no seio de uma elite culta, mantendo, desde tempos recuados, uma forte ligação às tradições populares autóctones, que adaptam e transformam (ainda que não saibamos exatamente por que processos) num género artístico de características definidas e com funções próprias determinadas. É essa relação entre a cultura cortês de uma elite e a cultura popular, tão indissociável nas cantigas de escárnio e maldizer, que iremos, em seguida tentar aproximar melhor.
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Carlos Alvar, num interessante artigo, dá como certo que João Soares de Paiva tenha tido como modelo, para «Ora faz host'o senhor de Navarra», uma canção francesa de cruzada, do trouvère Conon de Béthune, «Ahi! Amors, com dure departie», «escrita en francês – logicamente –, e no en lengua de oc.» E acrescenta Alvar: «de este modo se abren nuevas perspectivas para comprender el quehacer poético peninsular, a la vez que se estabelecen unos firmes lazos que van a condicionar la expresión literaria, fijando formas y contenidos.» «Poesia y política en la corte alfonsi», Cuadernos Hispanoamericanos, 410, Junio 1984, pp. 5-20. O curioso é que no mesmo artigo Alvar refere repetidamente o pouco peso que tem o sirventês político nas cantigas de escárnio e maldizer. Parece-nos, de facto, que também a influência francesa não é a preponderante para a fixação de conteúdos, 2 Miscelânea de língua e literatura portuguesa medieval, op. cit., pp. 74-77.
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5. Uma questão de linguagem Acabámos de ver como as cantigas satíricas dos Cancioneiros utilizam a linguagem «vulgar», e a importância que esse facto tem na definição do seu universo. O que certamente explica que a atitude dos especialistas face a elas seja muito semelhante à atitude de generalizada incompreensão que marcou a receção moderna do citado Diwan de Ibn Quzman. A título de exemplo, veja-se como D. Carolina Michaëlis se refere ao que ela chama o «Cancioneiro de Burlas»: Com relação aos dizeres de escarnho, em parte repugnantes pela excessiva rudeza, em parte surpreendentes pelo humor viril e pelo desempenho da fraseologia, mostrei que mais de um magnate português se absteve de os compor. Entre os que brandiram o facho e látego juvenalesco, alguns como Vuitorom, o grande Abutre, e o senhor de Baião, não desceram ao nível baixo dos histriões, nem nunca se mediram com os infimos frequentadores de tabernas e casas de tavolagem no campo defeso da calúnia e maledicência, obscenidades, caçurrias e palavrões, guardando, pelo contrário, as regras da cortesania tanto na escolha dos assuntos como na linguagem circunspecta de que se serviram 1 ( ...) Pelo outro lado, tive de notar que dos paços do Sábio de Castela e do seu próprio «varoneu» saíram os mais envenenados libelos, as mais dissolutas pasquinadas carnavalescas. Basta citar mais uma vez a Balteira, a Meijouchi, e tutte-quante, as suas relações com Pero d'Ambroa, Pero d'Armea, Pedr'Amigo de Sevilha, Bernardo de Bonaval, Afons'Eanes do Coton. Este facto levou-me a suspeitar que o exemplo do mais erudito e genial mas ao mesmo tempo do mais problemático entre os monarcas do séc. XIII, foi neste campo tão pernicioso como fôra benéfico em muitos outros2. O próprio Rodrigues Lapa, apesar de manter uma atitude mais objetiva de filólogo, sente necessidade, logo nas primeiras páginas do prefácio às suas Cantigas d'escarnho e de mal dizer, de justificar deste modo o seu trabalho:
Devemos desde já acentuar que não pusemos nele apenas a técnica do filólogo, instrumento indispensável, sim, mas não bastante em trabalhos desta natureza. Mergulhámos a fundo nesse mar de poesia, num esforço de simpatia e adesão, sem o qual, quanto a nós, se não pode chegar ao segredo da arte. Isto explicará, entre outras coisas, a curiosidade e o interesse com que defrontámos animosamente certos lixos verbais (...)3.
1 Não se percebe em que é que Carolina Michaëlis baseia esta sua opinião, já que os textos destes dois trovadores não diferem grandemente dos restantes. 2 CA, II, p. 598. 3 Cantigas, op. cit., p. VIII.
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«Dissolutas pasquinadas carnavalescas» e «lixos verbais», eis como dois dos mais sérios e reputados especialistas de literatura medieval referem a matéria satírica dos Cancioneiros (que tiveram, aliás, o mérito de dar a conhecer). Se exetuarmos o tom moralista, vemos, aliás, que Carolina Michaëlis pressente a relação que une muitas destas cantigas ao universo carnavalesco popular, e acaba por ter de reconhecer, ainda que a contragosto, a profunda penetração deste universo «vulgar» na vida quotidiana medieval, nomeadamente em cortes tão brilhantes como a de Afonso X. Por outro lado Rodrigues Lapa, se fala de «lixos verbais», reconhece mais adiante no seu Prefácio que «aquela atitude sorridente que dá pelo nome de humor e de ironia (...) parece ter fortes raízes no homem galego-português»1, e que, globalmente, essa atitude prevalece no conjunto das cantigas de escárnio e maldizer dos Cancioneiros. O modo como têm sido encaradas as cantigas satíricas medievais oscila assim entre o reconhecimento da importância e qualidade destes poemas, e o desconforto face ao seu universo «vulgar», bem distante das aristotélicas regras do «bom tom». De facto, um dos problemas que mais persistentemente tem acompanhado a leitura moderna das cantigas satíricas galego-portuguesas é o da incomodidade face à «rudeza» da sua linguagem (à sua linguagem não eufemística, se preferirmos, e que as duas cantigas já transcritas podem exemplificar), rudeza muitas vezes confundida, a nosso ver erradamente, como teremos ocasião de ver, com as ideias de calúnia e obscenidade. O problema está longe de ser novo. Como vimos na breve abordagem que fizemos às várias tradições satíricas, nomeadamente à tradição da sátira clássica, a questão da linguagem utilizada pelos satiristas foi, desde sempre, motivo de polémica. Vimos então que, mesmo ao constituir-se como género literário «culto», a sátira nunca renunciou totalmente às suas origens essencialmente populares, que se perdem, como dissemos, nas primitivas tradições pagãs dos ritos da fecundidade (de que o vinho era o símbolo e, muitas vezes, a fonte inspiradora, como nos diz o próprio Horácio). Deste modo, a linguagem livre dos cantos fálicos, fesceninos ou saturninos permaneceu a regra em muitas obras de autores «clássicos» consagrados, que fazem da crítica pessoal ou social o seu objetivo prioritário (e, por esta via, em muitos textos satíricos medievais em latim). Por outro lado, e no que toca à permanência de uma tradição popular autónoma, herdeira mais direta dos antigos ritos pagãos, o riso carnavalesco da praça pública 1
Ibid, p. X.
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mostra-nos que ela se manteve genericamente idêntica na liberdade de palavra, que dificilmente conheceu e muito menos acatou limites. A chamada «obscenidade» sempre foi sua característica marcante. Dito de outro modo, muitas das palavras que no discurso carnavalesco nomeiam as coisas, nomeadamente o corpo, são «palavrões» num outro registo, exatamente o que interdiz ao corpo a expressão imediata dos seus impulsos e necessidades. Assim, e partindo, pois, do que sabemos terem sido as várias tradições satíricas anteriores, parece-nos que o que pode tornar estranha a liberdade de linguagem das cantigas de escárnio e maldizer da escola galego-portuguesa não é tanto a novidade de tal processo – que a sátira, nas suas diferentes manifestações, sempre conheceu, como dissemos –, mas sobretudo o facto, esse sim aparentemente insólito, de esse registo coexistir, em simultâneo, com um outro registo, o do amor cortês, que a ele se opõe de forma absoluta e radical, registos que parecem não ter qualquer espécie de contacto. E, de facto, é este contraste que marca de uma forma muito particular a poesia trovadoresca, e em especial a galego-portuguesa: de um lado, a expressão direta do corpo e das suas pulsões mais elementares (do corpo e, de uma. maneira geral, da realidade quotidiana), numa linguagem que desconhece facilmente os eufemismos; do outro, uma expressão poética geralmente depurada de qualquer marca corporal, ou mesmo de qualquer referência mais concreta ao mundo exterior circundante1. É a coexistência simultânea destes dois registos, tão profundamente opostos, num mesmo espaço e pelas mesmas vozes, mas sem aparente contacto entre si, que torna mais marcante a violência verbal de um deles. Em princípio, a simples diferença de origens e tradições, de que falámos, seria suficiente para explicar este fenómeno. Trovadores e jograis limitar-se-iam assim, antes de qualquer ideia de literatura como expressão de sentimentos pessoais mais ou menos «sinceros», a apoderar-se, ora do registo tradicional da sátira (em língua «vulgar» ou mesmo em latim ou árabe), ora de um outro registo, culto e cortês, que na época lhes chegava de Provença. De facto, se é certo que o peso dessas tradições é inegável, por si só ele não explica estes dois registos, nem como é que uma elite culta se movimenta de tal maneira bem nesse registo «vulgar», tão afastado da linguagem e regras da cortesia, como é o da sua 1
Como já referimos, esta separação tão radical não existe nas cantigas provençais.
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poesia satírica. À luz do contexto social que rodeava, na época, toda a produção trovadoresca talvez seja possível, no entanto, clarificar um pouco esta questão. Como já antes foi dito, uma parte muito significativa dos trovadores galegoportugueses, pertencia, por nascimento, à nobreza (e mesmo à alta nobreza). Ou seja, a lírica galego-portuguesa é, em termos gerais, obra de cavaleiros, no que a palavra comporta não só de estatuto social, mas também dc atividade preferencial – o manejo das armas e a guerra. Na Península, mais do que em qualquer outro local do Ocidente onde tenha florescido uma escola trovadoresca, assim acontecia, pelas circunstâncias históricas conhecidas. Ora a cultura cavaleiresca apresenta características muito próprias que convém analisar e situar no quadro geral da nobreza medieval. Como se sabe, a nobreza medieval, sendo essencialmente uma nobreza rural, sempre manteve laços estreitos com as classes populares, das quais não se distinguia, por vezes, nem pela cultura, nem pela educação, mas apenas pelo estatuto, e respetivos privilégios, de que usufruía. Mais do que laços de trabalho, a estrutura social medieval desenvolveu uma complexa rede de laços de vassalagem que, para além de económicos, eram morais e mesmo afetivos. Neste regime, que na Península era mais senhorial do que feudal, o senhor era também o pai, o responsável moral pelos seus vassalos. É o que nos confirma deste modo José Mattoso1: É evidente que o poder senhorial se exerce para fins económicos, mas seria também demasiado grosseiro ver nele apenas o processo de exploração das classes inferiores. Neste ponto, creio que devemos ter o cuidado de comparar o que se passa na Idade Média com as sociedades africanas de hoje, onde frequentemente os detentores do poder político preservam formas de solidariedade primitiva, como o parentesco, e respeitam outros «ordenadores» das representações simbólicas e dos poderes religiosos que seria, de novo, excessivamente grosseiro fazer coincidir com a classe feudal. Enquanto cavaleiro, o nobre era, pois, também o chefe de um clã (de uma «casa») que, se lhe devia obediência, tinha também direito a dele esperar proteção. Numa estrutura deste género, a distância cultural entre dominantes e dominados tendia a esbater-se, já que a proximidade, mesmo física, entre uns e outros era uma das condições prévias do seu bom funcionamento. Particularmente, a nobreza peninsular manteve ainda outras formas que acentuam essa proximidade, formas que poderemos 1
Identificação de um país, Editorial Estampa, Lisboa 1985, vol. I, p. 85.
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também entender como de «solidariedade primitiva». É o caso da curiosa instituição do «amádigo», que consistia em os filhos das classes senhoriais serem criados e educados numa família rural de vassalos do senhor. Ainda que, como nos dizem os historiadores, esta instituição tenha servido muitas vezes mais como um pretexto para o alargamento dos domínios senhoriais (já que o «amádigo» implicava a extensão de imunidades e privilégios às terras onde era praticado) do que como uma instituição educativa real, o certo é que a sua existência se manteve até bastante tarde na Península. O próprio Afonso X parece ter passado parte da infância na Galiza, não exatamente numa família de camponeses, mas, de qualquer forma, nos domínios de um vassalo nobre de seu pai, Fernando III1. O «amádigo» e as instituições com ele relacionadas são, pois, um dos sintomas do contorno especial do regime senhorial peninsular e da sua cultura específica. Quando dizemos, pois, que a poesia galego-portuguesa é genericamente obra de cavaleiros peninsulares deveremos entender esta afirmação à luz do cenário social geral que foi descrito e do lugar que nele ocupavam estes cavaleiros-trovadores. Ora, aceitando o que diz René Nelli no seu livro L’érotique des trobadours2, uma coisa é o universo dos cavaleiros, outra coisa, bem distinta, é o universo cortês. No que diz respeito às conceções do amor e do erotismo que aqui particularmente nos interessam, estes dois universos são bem distintos. Assim, enquanto o amor cortês acentua, como é sabido, a noção de amizade amorosa mais ou menos platónica e casta do trovador pela dama de alta linhagem, a sua senhor (reproduzindo, deste modo, o esquema feudal de vassalagem), o amor cavaleiresco, ainda que podendo conter traços comuns ao amor cortês, como as noções de honra e lealdade, define-se essencialmente por uma forte componente física, associada às noções de coragem e virilidade. Deste modo, na erótica cavaleiresca, o corpo não está ausente nem é negado – pelo contrário, são as qualidades viris do cavaleiro (cujo paradigma é o herói dos romances de cavalaria 1
Este facto não é totalmente seguro. Na verdade, o jovem Afonso teve por aios o rico-homem Garcia Fernández e sua mulher Maior Arias. Os dois eram de estirpe galega e tinham paço e terras em Ourense (aliás, parte delas doadas por D. Fernando). Seria nestas terras que o infante teria passado algum tempo da sua infância. Tivesse ou não vivido na Galiza, o certo é que da sua «criação» por estes vassalos de seu pai não restam dúvidas. O príncipe D. Juan Manuel refere-se a este costume de criar os infantes fora da corte como uma forma de evitar os transtornos das contínuas viagens dos reis, que não tinham ainda, propriamente, uma residência fixa, e a facilitar um crescimento saudável: «Luego que los podiam sacar de aquel lugar que nascían, luego los daban a alguno que los criase en su casa». Sobre o assunto vide Xosé Filgueira Valverde, Afonso X e Galicia, Publicatións da Real Academia Gallega, 1980. 2 Editions Privat, Toulouse, 1963.
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e, exemplarmente na Península, o Amadis de Gaula), uma vez postas à prova, que o tornam digno do amor (em sentido físico, mais uma vez), e não a sua capacidade de ascese ou qualquer regra sentimental purificadora (como a mesura, ou o segredo sobre a identidade da amada)1. Cabe aqui recordar uma curiosa e obscura cantiga do jogral Caldeirom (B 1623, V 1157), cantiga que parece, de facto, centrar-se na discussão, para o espaço da Península, destas duas formas de entender o amor. Transcrevemos a primeira estrofe: Os d'Aragom, que soem donear, e [os] Catalães com eles a perfia, leixados som por donas a lidar, vam-s'acordando que era folia; e de bu[r]las, cuid'eu, ri[i]r-s'end'ia, quem lhe dissess'aqueste meu cantar, a dona gaia do bom semelhar, o amor quiçá nõn'o preçaria.(,,,) Ainda que o sentido concreto da cantiga seja extremamente difícil de determinar (o texto apresenta grandes dificuldades de leitura nos manuscritos) não há dúvida que o seu sentido geral passa pela descrição de duas atitudes da relação cavaleiro-dona, centradas na oposição entre o lidar, a prática das armas, e o donear, o serviço das donas, ou seja, entre um universo cavaleiresco e um universo cortês, constituindo assim um documento muito curioso da contradição que a sociedade trovadoresca peninsular deveria ter sentido na adoção das regras do amor cortês, certamente de uma forma mais aguda da que também é por vezes visível na poesia das cortes provençais. «Proençaes soem mui bem trobar – diz D. Dinis – mais...» (B 524b, V 127). Mas a maneira provençal soaria certamente a falso ou, pelo menos, a jogo inconsequente nesta sociedade onde os valores da cavalaria, a virilidade e a coragem na guerra, eram dominantes, como nos indicam, por exemplo, e entre outras, as violentas sátiras de Afonso X contra a cobardia de cavaleiros e coteifes no cerco de Granada. A aparente monotonia dos cantares de amor galego-portugueses será a melhor prova do desfasamento do modelo do amor cortês ao contexto peninsular, que não o criou e, por isso mesmo, dificilmente o desenvolve na erótica subtil que vemos florescer nas cortes provençais. 1
Seria este também o caso de Guilherme IX e dos primeiros trovadores provençais.
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Intrinsecamente cavaleiros, os trovadores galego-portugueses mantêm, por seu lado, profundamente vivas e poeticamente produtivas as formas que tomaram ao lirismo de raiz popular, transferidas embora para um cenário culto e cortês: na sensualidade latente das cantigas de amigo ou na sexualidade transbordante das cantigas de escárnio e maldizer, eles respeitam assim esses outros «ordenadores de representações simbólicas» de que fala José Mattoso, ou seja, eles exprimem uma certa forma de «solidariedade primitiva» para com o universo «vulgar» em cuja língua se desenvolve a sua arte. A obscenidade ou a «surpreendente virilidade» (nos termos de Carolina Michaëlis) do cancioneiro satírico parecem-nos poder assim encontrar uma justificação no contexto político e social que viu nascer a escola trovadoresca peninsular: um regime senhorial que a guerra de expansão obrigava a uma forte concentração na pessoa do rei – e não a dispersão em cortes feudais como na Provença –, coadjuvado por uma numerosa e forte classe de cavaleiros, em cuja cultura se mantinham ativas as representações simbólicas das classes populares. A inexistência, entre nós, de uma classe média (mercadores, mas também médicos, homens de leis, etc.) cujo peso fosse significativo ajuda também a explicar este sincretismo cultural e a ausência de mecanismos tendentes a acentuar uma qualquer distinção a este nível. De facto, como igualmente aponta René Nelli, nas regras provençais do amor cortês pode ver-se também um código de classe que procura assegurar à nobreza a sua diferença em relação à classe dos vilãos, cujo peso, no sul da Europa, começa por esta altura a tornar-se cada vez mais significativo. Falar e agir «com cortesia» passa a ser assim uma marca distintiva de cultura, de cultura de uma classe ameaçada pelo poder económico e social crescente de uma burguesia de raiz urbana e mercantil. Como teremos ocasião de ver, também no código aristocrático da poesia galego-portuguesa a imagem do vilão (quando aparece) é sempre negativa. Mas nos séculos XII a XIV peninsulares, a força dos vilãos parece ser uma ameaça distante, e, portanto, a necessidade de mecanismos culturais claramente distintivos não se colocaria com a acuidade das cortes provençais1.
1 Ainda que alguns destes mecanismos tenham existido, como é o caso das chamadas leis sumptuárias, a que teremos também ocasião de nos referir mais detalhadamente. Repare-se, no entanto, que elas começam verdadeiramente a tornar-se mais prementes no reinado de Afonso IV, ou seja, no período final da escola galego-portuguesa.
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O «bom tom» e o «equilíbrio» não são, pois, certamente, e em resumo, os valores em que assenta grande parte da linguagem satírica galego-portuguesa. Ao lado de muitas destas cantigas recolhidas nos Cancioneiros medievais, mesmo a linguagem posterior do teatro vicentino poderá parecer um modelo de cortesia. Outro era, de facto, o seu contexto, que não a sua capacidade satírica e expressiva. De qualquer forma, parece-nos necessário, como dissemos, delimitar também essa dita «obscenidade» das cantigas de escárnio e maldizer, evitando sobretudo confundir rudeza com injúria. De facto, como igualmente aponta Ramon Reimunde Norenha, «desde Rodrigues Lapa, indica-se como unha característica da nossa sátira o seu carácter muito obsceno, de cru realismo (?), que deveríamos estudar de modo menos eufemístico»1. Ora o autor, fazendo um breve estudo comparativo entre alguns textos provençais e galego-portugueses, e utilizando também a noção de contratexto avançada por Pierre Bec, e que já antes referimos, escreve: Nos contra-textos trata-se de facto de assuntos que poderiamos chamar «obscenos» desde unha moral puritana, e neles, superando aquel discutível tabu da decência, fala-se claramente de realidades sexuais quotidianas, mostrando tendência a ironizar certas certas situaçons ridículas e a satirizar certos vícios e aberraçons sexuais. Mais muitos «contra-textos» feitos para rir nom estám isentos de um «aquel» moralizante, denunciando feitos e costumes considerados imorais ou polo menos contra a moral natural. Pero isto precisamente fai pôr em dúvida a sua marginalidade. Por literatura marginal, desde unha perspectiva actual, entendemos aquela literatura CONTRA o poder estabelecido, contra unha hierarquia de valores da classe dominante, que como se comprenderá é especialmente simpática a qualquer posiçom libertária. Suponho que se lhes pode chamar contra-textos, com semántica moderna, a aqueles textos satíricos, burlescos, obscenos, mesmo subversivos (?) da nossa literatura trovadoresca que utilizam vias marginais, ainda que suspeito que os verdadeiros textos marginais nossos nom se liam nos paços nem se copiavam nos cancioneiros. Os que chegárom até nós empregam o equívoco e o disfemismo intencionado. E conclui: Finalmente, hai que desmentir a desmedida fama de obscenidade que tenhem estas cantigas nossas, adjectivadas por algum dos nossos pudorosos críticos e estudiosos de «muito obscenas». Nego-me a empregar esse calificativo pejorativo (...) porque nom acho entre os nossos trovadores e jograis exemplos de textos pornográficos, desonestos ou lascivos, nem debuxos de mulheres (os autores som
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«Possíveis influências da lírica provençal na lírica galego-portuguesa», in Actas do I congresso internacional da língua galego-portuguesa na Galiza, Ourense, Setembro 1984, pp. 691-719.
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homes) em posiçons excitantes da libido, ainda que tenhamos composiçons indecorosas contra um questionável senso da decência e do pudor. O que hai neles é unha grande carga burlesca, brutal às vezes, grosseira, repetindo com incansável insistência o verbo foder e os nomes populares dos órgaos genitais que homes e mulheres empregam desde que o mundo é mundo, graças a Deus, para tal actividade sexual e procriadora. Deveríamos, pois, chamar às cousas polo seu nome (...) Ora chamar as coisas pelo seu nome, numa linguagem que se emprega «desde que o mundo é mundo», é distinto do «palavrão injurioso» ou mesmo da «calúnia» de que fala Carolina Michaëlis. E os trovadores e jograis estavam seguramente conscientes disso. Teremos ocasião de abordar detalhadamente, no próximo capítulo, as regras e normas da arte trovadoresca galego-portuguesa, nomeadamente as que vêm expostas no pequeno tratado de poética com que se inicia B. Antecipando, no entanto, um pouco, parece-nos importante realçar que esse pequeno tratado termina exatamente com uma referência explícita aos limites linguísticos a que deveriam obedecer os cantares satíricos galego-portugueses. É, de facto, muito curiosa a maneira como esta «Arte de Trovar» se encerra, com a referência aos «erros (...) que os homens podem fazer no trobar» (título VI). Infelizmente, e talvez porque, como o seu anónimo autor começa por nos dizer (capítulo I), «os erros som tantos e de tanta[s] maneiras que os homens podem fazer no trobar, que nom posso falar em todos tam compridamente (...)», os erros apontados são apenas dois. E se um deles, o segundo, é de âmbito geral (capítulo III – a utilização de vogais seguidas de que pode resultar a cacofonia), o primeiro diz particularmente respeito às cantigas satíricas – especificamente, aos limites de linguagem impostos a trovadores e jograis. Diz o capítulo II: Erro acharam os trobadores que era ũa palavra a que chamarom cacefetom, que se nom deve meter na cantiga, que é tanto come palavra fea, e sõa mal na boca. E algũas vezes tange em ela caçorria ou lixo, que nom convém de seer metudo em boa cantiga. De ordem mais ética do que propriamente estética, pelo menos para os nossos conceitos atuais, este «erro» dizia, portanto, respeito à utilização de determinadas palavras, «a que chamarom cacefetom», uma «palavra fea, e sõa mal na boca». Como lembra Jean-Marie D'Heur, talvez seja legítimo ver nesta alusão «comme la transposition métaphorique d'un délit grave evoqué dans les forais portugais en vigueur 66
à partir du XII et du XIII siècles, aussi durement réprimé que l'homicide, le vol, la violation de domicile, le viol, et connu entre autres sous la désignation de lixo em boca»1. Em nota, D'Heur cita o Elucidário de Viterbo, que inclui uma breve transcrição de um desses forais: «Esta era uma das injúrias mais atrozes, que antigamente se achava, e rigorosamente se punia por entre os portugueses. ( ...) ‘Immundicia, ou esterco humano mettido realmente na boca de alguem, ou ameaçando-o féamente da palavra, que lhe farião esta injúria’ (...) Inumeráveis são os Forais, que nomeiam e acoimam este delito, que por tão indigno e imundo, alguns chamam nefando. Os termos, que ordinariamente usam, são: ster[c]us in ore: merda in bucca: lixo en boca: deostos, &c»2. Se a expressão lixo em boca (ou as outras semelhantes) se perdeu totalmente na língua (cortando assim a ligação entre o «palavrão» e o ato injurioso que era, por vezes, realmente praticado, e que está provavelmente na raiz do anátema linguístico), não é, no entanto, difícil de entender a que é que o nosso anónimo autor se refere ao falar de um tipo de palavras que «nom convém de seer metudo em boa cantiga» E meter tais palavras numa cantiga seria, portanto, um erro. De facto, e ainda que, à primeira vista, possa parecer o contrário, pela liberdade de linguagem com que se constroem as cantigas satíricas, «palavrões» deste género estão absolutamente ausentes do corpus satírico que até nós chegou. Podendo utilizar, e utilizando frequentemente, palavras e expressões diretas, que hoje nos podem parecer «obscenidades» e «grosserias», sobretudo na referência ao corpo e às suas funções, os trovadores galego-portugueses não utilizam nunca, pelo menos no corpus que até nós chegou, o «palavrão» (e muito menos o palavrão injurioso), nem mesmo «para fazer rir», como acontece muitas vezes no «humor» contemporâneo. Seguiriam talvez esta regra de que a «Arte de Trovar» nos dá conta. Ou talvez possamos lembrar novamente Baktine e a sua teoria do grotesco medieval e da oposição morte/renascimento que esta forma de humor carnavalesco popular e da linguagem que lhe é própria recobrem. Ora, como acrescenta Baktine: «il ne reste presque plus rien de ce sens ambivalent et régénérateur dans les grossièretés contemporaines, sinon la négation pure et simple, le cynisme et l'insulte purs». Este tipo de injúria linguística gratuita é, como dissemos, 1
«L'art de trouver du Chansonier Colocci-Brancuti. Edition et analyse.» in Arquivos do Centro Cultural Português, t. IX, Paris 1975, p. 386. 2 Viterbo, op. cit., ed. de M. Fiúza, 1966, 367b-368b.
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praticamente impossível de encontrar nas cantigas satíricas dos Cancioneiros. Nesta medida, entre o seu «dizer mal» e o deosto (a que faz referência o foral atrás citado), passível de ser punido por lei, vai a distância de uma forma artística elaborada, com uma finalidade definida e com limites linguísticos rigorosos (como nos mostra este último título da «Arte de Trovar»), ao insulto puro e simples, sem limites e sem distância1. O que não significa, evidentemente, que as cantigas satíricas fossem todas inócuas, ou que muitos dos visados não se sentissem, de facto, injuriados com elas. Ou mesmo que, de facto, os trovadores e jograis não fizessem nunca este «erro» de que fala a «Arte de Trovar». Certamente o fariam, ou não haveria justificação para esta alusão do tratado. Talvez de novo esta matéria nos prove a existência de uma triagem no material ao dispor do(s) compilador(es) dos Cancioneiros. Já Afonso X, nas suas Partidas, inclui uma lei sobre «las deshonras que hacen unos outros por escritos ó cánticos» e que diz o seguinte: El que cantase canciones compuestas en deshonra de otro, debe ser infamado y sufrir ademas pena corporal, y la que tuviese bien el juez del lugar, y aunque quisiera probar que lo que decia en aquella cancion era verdad, no se le debe oir ni admitirle la prueba2. De injúria se queixam, pela voz dos próprios trovadores, algumas personagens dos Cancioneiros, como Maria Balteira, que Afonso X põe «a falar» numa das suas cantigas, queixando-se amargamente de um cantar que Pero de Ambroa lhe teria feito, e recusando-se a ceder aos pedidos para o desculpar (B 471bis): « Ca [me] rogades cousa desguisada/ e nom sei eu quem vo-lo outorgasse:/ de perdoar quen'o mal deostasse/ com'el fez a mim, estando em sa pousada». O mesmo verbo «deostar» (ou o substantivo «deosto») aparece diversas outras vezes no cancioneiro satírico3, no sentido de «injúria», mas sem a conotação criminal dos forais (e geralmente numa utilização irónica, semelhante à que dele faz Afonso X na cantiga citada). E, de facto, os poetas cujas cantigas satíricas foram recolhidas pelos Cancioneiros parecem conformar-se, em
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Como faz notar David Worchester, a sátira é a ira engenhosa mais do que a expressão direta da ira. Tem, por isso, que mostrar sempre alguma distância. The art of satire, Harvard University Press, Cambridge, 1940, p. 18. 2 Partidas, VII, 9, 3 3 No total, são dez as ocorrências, uma delas na forma «doestado». Vide o Glossário da referida Base de Dados.
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geral, com a última regra «poética» aludida pela «Arte de Trovar», ao utilizarem uma linguagem muitas vezes rude, mas isenta deste «lixo na boca» tão vigorosamente condenado no tratado. Se a linguagem das cantigas de escárnio e maldizer nos pode parecer hoje, pois, «obscena» ou rude, e por isso bem distinta da utilizada no registo de amor ou de amigo, ela tem, no entanto os seus limites. A existência desses limites mostra-nos uma forma artística plenamente consciente de si própria, se não exatamente como sátira (no sentido horaciano do termo), pelo menos como forma claramente distinta da invetiva pessoal injuriosa.
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II
O CANCIONEIRO SATÍRICO GALEGO-PORTUGUÊS
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1. A ARTE DE TROVAR
O corpus trovadoresco galego-português a que chamámos satírico definimo-lo, logo de início, e na esteira das «considerações de largueza» com que Rodrigues Lapa organizou a edição destas cantigas, a partir de um critério lato. Não sendo propriamente uma definição pela negativa, como Tavani reconhece ser muitas vezes a tendência comum (isto é, a de fazer deslocar para este corpus todas as composições que não parecem ter lugar nem entre as cantigas de amor nem entre as de amigo1), deste critério lato resulta, de qualquer modo, um conjunto muito variado de cantigas que, evidentemente, ao constituírem este corpus, se definem também a partir da sua especificidade e diferença em relação aos outros dois corpus dos Cancioneiros. Essa especificidade cremos poder encontrá-la em primeiro lugar e genericamente naquilo a que Peter Dronke chama, numa formulação feliz, «a lírica do realismo»2 – e, portanto, não particularmente num estreito e rigoroso conceito de sátira. De facto, o próprio conceito geral de sátira não tem limites muito definidos. Rigorosamente, e ainda que a palavra seja usada, por vezes, nesse sentido, a sátira, como faz notar Scholberg3, não é um género literário, e muito menos uma forma4. Como vimos ao abordarmos as várias tradições «satíricas», em todos os géneros e formas literárias a sátira pode estar presente. Encontrámos (e continuamos a encontrar) novelas ou romances a que chamamos «satíricos», bem como teatro ou poesia «satíricos». Assim Scholberg pode dizer que, para que uma obra seja considerada satírica, o que importa, antes de mais, é «la actitud y propósito del escritor y cierta visión sardónica», ou ainda, que essa obra contenha, de modo «suave o ferocísimo (...) 1
A poesia lírica..., op. cit., p. 171. Tavani cita o caso dos prantos e também do que ele classifica como paródias. É evidente que os prantos não têm lugar neste corpus. Quanto às «paródias», termo de Tavani e não contemporâneo dos próprios trovadores, teremos oportunidade de discuti-lo, e de discutir a inclusão neste corpus das cantigas que assim poderão ser classificadas. 2 The medieval liric..., op. cit.. p. 220. 3 Sátira e invectiva en la España medieval, Ed. Gredos, Madrid 1971, p. 9. 4 Exceto, como referimos, no que diz respeito à sátira horaciana clássica
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un ataque». Também Dronke fala de «tom e espírito» ao referir-se ao nosso entendimento contemporâneo do termo sátira. Definições que, como se compreende, não se situam no campo do rigoroso, antes implicam uma boa dose de subjetividade na sua aplicação aos textos concretos. Subjetividade que, como vimos, o próprio Rodrigues Lapa não nega na introdução à sua antologia, justificando a variedade dc composições que recolheu. Digamos, pois, que o adjetivo «satírico» não designa propriamente um género ou uma forma específicos, mas sobretudo uma função. E nos Cancioneiros galegoportugueses essa função é claramente explicitada na expressão geral dizer mal – tal como aparece, por exemplo, na definição das cantigas de escárnio dada pela «Arte de Trovar» que inicia o Cancioneiro da Biblioteca Nacional «som aquelas que os trobadores fazem querendo dizer mal d'alguém em elas», definição que adiante retomaremos – função explícita também nos termos paralelos que os trovadores utilizam nas próprias cantigas para designar a sua atividade neste campo (como chufar, retar, profaçar, etc.). De tudo isto resulta, pois, que esse corpus de cantigas que têm por função geral «dizer mal » se apresenta, nos Cancioneiros, numa variedade de formas, de temas e de recursos que, como dissemos, não tem paralelo nos outros dois corpus de lírica amorosa. Este facto torna particularmente complicada a descrição da arte poética trovadoresca particular neste domínio, já que, tanto as regras que nela definem os géneros, como, dentro dos géneros, as suas formas particulares, parecem aqui bastante mais flutuantes. E no entanto, produto de uma escola trovadoresca e, portanto, a seu modo, de uma elite cultural da época, a arte «de dizer mal» galego-portuguesa, era, em todos os aspetos, convém salientá-lo novamente, uma arte tão rigorosa e definida como a arte das cantigas de amigo ou das cantigas de amor. Regidas, também elas, pela arte poética global dessa escola, as genericamente chamadas cantigas de escárnio e de maldizer deviam, evidentemente, e antes de mais, obedecer a todas as regras gerais de composição que definiam um bom cantar, quer as de ordem métrica, quer as que diziam respeito à dimensão das estrofes (o talho) ou ao seu número, quer ainda as que se referiam aos restantes recursos globais (findas, dobre e mozdobre, palavras perdudas, etc.). Mas, no que diz respeito especificamente às formas poéticas e às maneiras em que
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o «dizer mal» galego-português era possível, as regras são, pelo menos hoje para nós, menos evidentes. Parte dessas regras vêm expostas na referida «Arte de Trovar» anónima de B, texto que tem servido de base ao entendimento contemporâneo da escola. Mas o facto é que as próprias categorias aí expostas estão longe de serem perfeitamente claras, e isto não apenas pelos motivos, a seu modo determinantes, aliás, do mau estado de conservação do texto. A comparação deste, não só com os próprios poemas em si, mas também com o que nesses poemas são as alusões à arte de trovar, ou mesmo com as rubricas que por vezes os acompanham, é pois uma tarefa que se impõe para o estudo mais rigoroso da arte satírica trovadoresca. E essa tarefa prévia que nos propomos fazer no que se segue1.
1. As categorias da «Arte de Trovar» Para quem se propõe utilizar a «Arte de Trovar» fragmentária que inicia o Cancioneiro da Biblioteca Nacional um primeiro ponto prévio que não pode deixar de merecer atenção é o grau de credibilidade que esse texto pode merecer. De facto, sendo este pequeno tratado anónimo e sem nenhuma indicação de data, questões como as da sua origem e finalidade, questões relativamente importantes para uma apreciação do seu real valor, são difíceis de resolver. Assim, por exemplo, descreve este pequeno tratado regras contemporâneas, tal como trovadores e jograis as praticavam, ou são antes as suas classificações fruto de um entendimento exterior à escola, de uma leitura à posteriori dos textos a partir de uma tradição alheia, nomeadamente a da escolástica medieval? Para Jean-Marie D'Heur a segunda hipótese é bastante plausível2. Na sua opinião, ainda que tudo pareça indicar estarmos perante um texto contemporâneo da escola, ou, mais seguramente, dos seus finais, a «Arte de Trovar» deve entender-se como uma obra de vulgarização, uma espécie de «guide informatif de l'amateur de chansons, propre comme tel à introduire le lecteur dans le magnifique recueil qu’il vient d'ouvrir». Sobre o seu anónimo autor, diz-nos ainda D'Heur, «il est permis de voir en lui un clerc, ou du moins un de leurs élèves, parte qu'il organise scolastiquement son
1 Exceto nos casos assinalados, a edição da «Arte de Trovar» seguida em todas as citações deste capítulo é a edição própria do texto, tal como disponibilizada na Base de Dados Cantigas Medievais Galego-Portuguesas. 2 «L'art de trouver du Chansonier Colocci-Brancuti» op. cit.., p. 381.
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exposé, et qu'il fait appel à des notions qui sont seulement connues de ceux qui se sont frottés aux traités de composition latine», como, por exemplo, a noção de equivocacio, referida a propósito das palavras cubertas das cantigas de escárnio. Genericamente, parece-nos esta uma opinião aceitável, ainda que, de facto, nada saibamos também sobre o grau de familiaridade que os próprios trovadores teriam com a escolástica medieval. Apesar, pois, de não podermos, com segurança, definir nem o seu autor, nem a sua data, nem a sua natureza exata, a «Arte de Trovar» do Cancioneiro da Biblioteca Nacional não deixa de ser um documento precioso. Precioso sobretudo no que diz respeito à matéria satírica que nos ocupa, matéria que o acaso histórico fez com que fosse aquela que melhor chegou até nós, uma vez que as páginas iniciais do Cancioneiro, e portanto deste pequeno tratado que o abria (páginas que tratariam, muito provavelmente, das cantigas dc amor e das cantigas dc amigo) se perderam totalmente. Tal como pode ser lida hoje em dia, a «Arte de Trovar», cuja matéria está ordenada em títulos subdivididos em capítulos, começa apenas no capítulo IV do título III. Faltam, portanto, os títulos I e II, cuja matéria e extensão nos é difícil de adivinhar, e os três primeiros capítulos do título III. Pelo que nos é dado perceber, era este terceiro título dedicado à definição dos géneros da poesia trovadoresca e, dentro dos géneros, às suas formas poéticas possíveis. Deste título, que continha primitivamente nove capítulos, só nos chegaram, pois, os últimos seis, cinco dos quais dizendo respeito, ao que tudo indica, às cantigas satíricas (o primeiro trata de algumas cantigas dialogadas, definindo quando são de amor ou de amigo). São esses cinco capítulos que iremos em seguida analisar. Antes, porém, é conveniente dizer algumas palavras sobre a estrutura geral deste título, estrutura que, por si só, transporta já algumas informações interessantes. Ainda que de uma forma, como veremos, algo embrulhada, genericamente cada um dos cinco capítulos do título III acima referidos é dedicado à definição de um tipo particular de cantiga. Por ordem encontramos assim: capitulo V – Cantigas de escárnio capítulo VI – Cantigas de maldizer capítulo VII – Tenções capítulo VIII – Cantigas de vilãos capítulo IX – Cantigas de seguir
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É curioso verificar que tanto as cantigas do capítulo VII (tenções) como as do capítulo IX (cantigas de seguir) – e o capitulo VIII está demasiado estropiado para o sabermos – são explicitamente referidas como «maneiras» ao dispor dos trovadores: «Outras cantigas fazem os trobadores, que chamam tenções porque som feitas per maneira de razom que u[um] haja contra outro»; «Outra maneira há i em que trobam dois homes e que chamam seguir» (sublinhados nossos). Ou seja, parece estarmos, a partir do capítulo VII, perante o que se poderia classificar mais como modos do que como géneros, uma vez que, como se explicita em relação às tenções, «estas se poder fazer d'amor ou d'amigo ou d'escárnio ou de maldizer». De facto, a estrutura do capítulo III parece indicar que o escárnio e o maldizer são os dois grandes tipos do género satírico, sendo que estes dois tipos gerais podiam desenvolver-se numa série de modos específicos, alguns dos quais, pela sua particularidade, merecem referência especial ao autor da «Arte de Trovar». Como já dissemos, para além destes modos, outras formas houve, atestadas nos Cancioneiros, que não merecem essa referência, como é o caso, por exemplo, do descordo, nunca mencionado. De qualquer maneira é também curioso verificar que o que a «Arte de Trovar» chama «maneiras» (tenções, cantigas de vilãos, cantigas de seguir) ocupam, no texto, uma posição semelhante à das cantigas de escárnio e das cantigas de maldizer, enquanto matéria de capítulos autónomos (sendo até qualquer destes três capítulos sensivelmente maior do que os dois anteriores), o que origina, sem dúvida, alguma confusão suplementar. Vejamos então as categorias referidas pelo tratado que, de alguma maneira podem ajudar a definir a arte satírica galego-portuguesa.
a) O escárnio e o maldizer O que são, para o autor da «Arte de Trovar», cantigas de escárnio e cantigas de maldizer? As duas definições têm sido largamente citadas. Regressemos, apesar de tudo, a elas: Cantigas d'escarneo som aquelas que os trobadores fazem querendo dizer mal d'alguém em elas, e dizem-lho per palavras cobertas que hajam dous entendimentos, pera lhe-lo nom entenderem [...] ligeiramente; e estas palavras chamam os clérigos hequivocatio (início do cap. V).
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Cantigas de maldizer som aquela[s] que fazem os trobadores [...] descobertamente e [em] elas entram palavras e[m] que querem dizer mal e nom haver[am] outro entendimento senom aquel que querem dizer chaam[ente]. E outrossi as todas fazem dizer […] (cap. VI). Estas duas definições têm sido lidas de duas maneiras distintas, ambas, aliás, partindo do sentido da oposição coberta/descobertamente que o texto refere. A leitura tradicional, que, diga-se, não parece adequar-se perfeitamente à totalidade das definições, é conhecida: as cantigas de maldizer exporiam «descobertamente» o visado, citando o seu nome, enquanto que as cantigas de escárnio visá-lo-iam «per palavras cobertas», ocultando, portanto, o seu nome. De facto, o texto da «Arte de Trovar» parece não se referir nunca à questão dos nomes. Aceitando a lição diferente que Braga e Monaci tinham anteriormente proposto – «en elas entran palavras a quen queren dizer mal» (sublinhados nossos) – essa leitura talvez não deixe de ser possível no que diz respeito às cantigas de maldizer (ainda que com sérias dificuldades de ser coordenada com o resto do texto). Mas a distinção que estabelece a «Arte de Trovar» parece, de facto, situar-se a outro nível, como ultimamente os investigadores de literatura medieval têm chamado a atenção. Ou seja, ao nível da complexidade da leitura (ou do entendimento) exigida pela cantiga. Assim, enquanto que nas cantigas de maldizer o seu entendimento, como sátira, seria imediato e irrecusável (e nom haver[am] outro entendimento senom aquel que querem dizer chaam[ente]), o entendimento das cantigas de escárnio implicaria um trabalho de descodificação, já que todas elas se construiriam a partir de um jogo com duplos sentidos (os dous entendimentos de que fala o texto). As palavras cobertas não se refeririam, pois, ao nome dos visados, mas simplesmente ao processo retórico de ataque que, como diz o texto, chamam os clérigos hequivocatio. Nas cantigas de escárnio a maledicência seria, de certa forma, diferida, pelo que a cantiga não poderia ser entendida tão ligeiramente (o seu entendimento não seria imediato). Concordam ou não estas definições com as cantigas recolhidas nos Cancioneiros? Ainda que nunca se tenha feito um trabalho de classificação das cantigas satíricas à luz desta última leitura das definições da «Arte de Trovar», o certo e que qualquer observação preliminar do corpus satírico dos Cancioneiros chega para demonstrar que o
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equivocatio ou equívoco, é, de facto, um processo muito frequentemente utilizado pelos trovadores e jograis galego-portugueses1. Vejamos então em que consiste. Genericamente, as cantigas satíricas constroem o equivocatio de duas maneiras distintas: através de um jogo com os duplos sentidos das palavras, ou, mais refinadamente, através de um jogo com a sintaxe e o ritmo de toda a cantiga (e provavelmente com a música). Ao primeiro caso pertencem grande parte dos equívocos dos Cancioneiros. Repare-se, por exemplo, nesta cantiga de Afonso X contra a famosa soldadeira Maria Balteira (B 481, V 64): Joam Rodriguiz foi desmar a Balteira sa midida, per que colha sa madeira; e disse: - Se bem [o] queredes fazer, de tal midida a devedes colher [assi] e não meor, per nulha maneira. E disse: - Esta é a madeira certeira, e, de mais, nõn'a dei eu a vós sinlheira; e pois que s'em compasso há de meter, atam longa deve toda [de] seer [que vaa] per antr'as pernas da 'scaleira. A Maior Moniz dei já outra tamanha, e foi-a ela colher logo sem sanha; e Mari'Airas feze-o logo outro tal, e Alvela, que andou em Portugal; e já i as colherom [e]na montanha. E diss': - Esta é a midida d'Espanha, ca nom de Lombardia nem d'Alamanha; e porque é grossa, nom vos seja mal, ca delgada para gata rem nom val; e desto mui mais sei eu [i] ca boudanha. O pretexto da cantiga é a casa que Maria Balteira ia construir (e para a qual Afonso X lhe fornecia as madeiras das matas reais). À primeira vista, a cantiga refere o seu encontro com um tal João Rodrigues, um sujeito experiente que se dispõe a tirar as medidas para cortar a dita madeira. Mas, como se entende, a cantiga não passa de uma longa metáfora erótica, em que, inclusivamente, (e, quanto a nós, de forma deveras humorística) se chegam a comparar, de forma muito nacionalista, diversas «medidas» 1
Ainda que uma classificação deste género seja sempre precária, podemos adiantar que o «equivocatio» se encontra presente em, pelo menos, 72 das cantigas do nosso corpus.
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internacionais. O equívoco provém, pois, do jogo com os duplos sentidos das palavras (sobretudo a «madeira», mas também o «meter a compasso», «antr'as pernas da 'scaleira», etc.), jogo de que resultam os dous entendimentos de que fala a «Arte de Trovar». Os exemplos deste género de equívoco são tão numerosos que é impossível citar cada um em particular. É Pero da Ponte a brincar com a «maleta» de Maria Balteira, assaltada por «rapazes» no decurso de uma alegada peregrinação à Terra Santa, numa cantiga que é um dos mais perfeitos e divertidos equívocos dos Cancioneiros (B 1642, V 1176); é ainda Afonso X, numa cantiga contra o Papa (B 463), jogando com o vestuário litúrgico (os panos, talhar os panos, talhar a capa, meter sob a capa, etc.); são as muitas cantigas que aludem a defeitos físicos dos visados, geralmente extrapolando para o plano moral (o privado que é «cego», o juiz que é «surdo», ou que é «manco» – que «descai» –, o cortesão que é «feio»); são todos os jogos com os nomes próprios (o jogral «Saco», a soldadeira Maria «Negra», o escudeiro «Albardam», aldrabão); são, sobretudo, grande parte das sátiras contra os homossexuais (aqui os recursos multiplicam-se: é o «adeantado» do rei que vai «à frente» ou «atrás», é o juiz que «cai» sobre os condenados, é o privado que, ao mínimo pretexto, vai «log'home trager come cam»). Algumas das cantigas que jogam deste modo com os duplos sentidos das palavras contam-se entre as mais difíceis de serem hoje em dia perfeitamente entendidas, já que as alusões são por vezes tão pessoais que, ainda que nós possamos facilmente detetar a existência do equivocatio, o seu sentido real muitas vezes nos escapa (é o que se passa, aliás, na citada cantiga de Afonso X contra o Papa). O segundo recurso para a construção de um duplo sentido, sendo basicamente semelhante, transfere o jogo para o plano mais subtil das relações sintáticas entre as palavras da frase. Atentemos nesta cantiga de Airas Peres de Vuitorom (B 1479, V 1090): Fernam Díaz é aqui, como vistes, e anda em preito de se casar; mais nom pod'ó casamento chegar - d'home o sei eu, que sabe com[o] é; e por haver casament', a la fé, d'home nunca vós tam gram coita vistes.
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E por end'anda vestid'e loução e diz que morre por outra molher; mais este casamento que el quer d'home o sei eu que lho nom daram; e por este casamento [d]el, de pram, d'home atal coita nunca viu cristão. (...) O equívoco, como bem aponta Rodrigues Lapa na nota a esta cantiga, reside aqui nas duas maneiras possíveis de fazer a pontuação – e, portanto, a pausa que marcará dois sentidos distintos. Tal como Lapa opta por pontuar (com a pausa em «chegar», v. 3, por exemplo) a cantiga parece inocente: Fernão Dias não se consegue casar e por isso sofre «gram coita». O real sentido aparece se omitirmos a pausa entre o v. 3 e o v. 4 (de ambas as estrofes): é ao «casamento d'home» que, como é evidente, o trovador quer chegar. As cantigas sobre homossexuais jogam também frequentemente com este equívoco de ordem sintática. Mas um dos exemplos mais conseguidos deste tipo de equívoco surge nesta cantiga de Estêvão da Guarda, dirigida ao bispo Miguel Vivas, grande privado de Afonso IV (B 1310, V 915). O equívoco é aqui tão subtil que nem o próprio Lapa parece entendê-lo: Bispo, senhor, eu dou a Deus bom grado porque vos vej'em privança entrar del-rei, a que praz d'haverdes logar no seu conselho mais doutro prelado; e porque eu do vosso talam sei qual prol da vossa privança terrei rogo eu a Deus que sejades privado do [pre]bendo e de quant'al havedes: fazede sempre quant'a 'l-rei prouguer, pois que vos el por privad'assi quer; e pois que vós altos feitos sabedes e quant'em sis'e em conselho jaz, varom, senhor, pois desto al rei praz, fio per Deus que privado seredes per este Papa, quem duvidaria que nom tiredes gram prol e gram bem quand'el souber que, pelo vosso sem, el-rei de vós mais doutro varom fia; e pois vos el-rei aqueste logar dá, Bispo, senhor, u outra rem nom há, vós seredes privado todavia
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deste vosso benefício, com ofício, quem duvidará que vo-l'esalcem em outra contia? Rodrigues Lapa pontua o fim das estrofes com ponto final. Mas o facto é que, com esta pontuação, a cantiga não faz muito sentido – parecerá antes um elogio à subida do do bispo a privado d’el-rei. Lapa tenta explicá-la do seguinte modo: «A ironia, um pouco velada, às bajulações do bispo, aparece mais claramente na fiinda, que tem uma estrutura curiosa e pouco vulgar». O que de facto acontece, e Rodrigues Lapa não reparou, é que a cantiga tem um outro sentido completamente diferente se a lermos como uma atá finda, ou seja, se retirarmos os pontos finais do fim de cada estrofe e fizermos o enjambement entre as estrofes (por exemplo, «rogo eu a Deus que sejades privado/ do bispado e de quant’al havedes»; as restantes estrofes e a finda ligam-se de maneira semelhante). A cantiga usa pois as duas formas de equívoco que temos vindo a referir: o jogo com os dois sentidos da palavra «privado» (substantivo e particípio passado), jogo só compreensível se modificarmos as pausas sintáticas aparentes. Esta mais subtil forma de equivocatio contrói também esta cantiga de D. Dinis contra um maldizente (B 1540), cujo sentido obscuro, de que fala Lapa, se torna absolutamente claro quando a lemos como atá-finda (como na cantiga anterior, Lapa pontua os finais das estrofes com ponto final; a versão que apresentamos é a corrigida1): Disse-m'hoj'um cavaleiro que jazia feramente um seu amigo doente e buscava-lhi lorbaga; dixi-lh'eu: - Seguramente come-o praga por praga que el muitas vezes disse, per essa per que o come, quantas en nunca diss'homem; e o que disse ben'o paga, ca, come cam que há fome, comeo praga por praga
1 Para melhor compreensão da cantiga, diga-se que D. Dinis se refere aqui a uma planta usada com fins medicinais (laxativos), a lorbaga, cujo sabor é extremamente amargo. Uma leitura semelhante à nossa e abundantemente comentada faz Elsa Gonçalves em Poesia de rei – Três notas dionisinas, Ed. Cosmos, Lisboa 1991.
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que el muitas vezes disse; e jaz ora o astroso mui doent'e mui nojoso e com medo per si caga, ca, come lobo ravioso, come-o praga por praga. Seria deveras interessante, como é óbvio, sabermos como funcionaria a música em cantigas deste tipo, se o ritmo e a melodia ocultariam ou, pelo contrário, clarificariam o que as palavras «cobertamente» dizem. Mas não temos dúvidas de que no equívoco de ordem sintática a música desempenharia um importante papel. De tudo o que ficou dito se pode, pois, concluir que as definições de escárnio e de maldizer avançadas pela «Arte de Trovar», baseadas na existência ou não de «palavras cobertas» nas cantigas (e não só palavras, como vimos), parecem encontrar confirmação nas peças recolhidas nos Cancioneiros. Como que também confirmando a definição de escárnio do tratado, os próprios trovadores aludem várias vezes à necessidade de uma certa agudeza de espírito para a compreensão de muitas cantigas, geralmente no modo de referência à estupidez de colegas de oficio ou de jograis. Este assunto é, por exemplo, o tema central desta cantiga de Pero da Ponte, dirigida ao trovador Sueiro Eanes (de quem não se conservaram cantigas, aliás) (B 1650, V 1184): Sueir'Eanes, nunca eu terrei que vós trobar nom entendedes bem, pois entendestes, quando vos trobei, que de trobar nom sabíades rem; pero d'al nom sodes tam trobador, mais o trobar ond'estades melhor: entendedes quando vos troba alguém. Entendestes um dia ant'el-rei como vos meterom em um cantar polo peior trobador que eu sei - esto s'a vós nunca pode negar; e por aquesto maravilho-m'eu deste poder. Que demo vo-lo deu, por vós assi entenderdes trobar? Ca vos vi eu aqui mui gram sazom e nom vos vi por trobador meter; e ora nom vos trobam em razom em que xi vos possa rem asconder, 81
se de mal trobador enmentam i, que vós logo nom digades: - A mim foi feit'aquel cantar de mal dizer. Para além de esta cantiga jogar ela própria com o equívoco (centrado à volta da expressão «entender o trobar» – saber fazê-lo/ compreender as cantigas), ela mostra-nos igualmente como os trovadores estavam conscientes do grau de inteligência e cultura requerido para o entendimento de pelo menos uma parte da sua arte satírica, arte que nem todos poderiam facilmente descodificar. É o que se depreende também da rubrica que precede uma das cantigas de Estêvão da Guarda (B 1309, V 914): «Esta cantiga foi feita a um galego que se preçava de trobar e nom o sabia bem; e meteu-s' à maneira de tençom com [E]stêvam da Guarda e Estêvam da Guarda lhi fez esta cantiga; e el andava sempre espartido; e nunca lhi entendeu a cantiga nem lhe soube a ela travar» (sublinhados nossos). Parece detetar-se aqui, como na cantiga anterior, um mesmo sentimento de superioridade intelectual que o perfeito domínio da arte satírica inevitavelmente acarretaria, pela agudeza de espírito de que nem todos, como este galego, disfrutariam. A «Arte de Trovar» estabelece, pois, uma distinção baseada em matéria que, não só a estrutura das próprias cantigas, mas também as alusões de alguns trovadores parecem confirmar. Um problema distinto, mas que se deverá colocar é, no entanto, o de saber se esta matéria seria realmente o ponto de partida para uma distinção efetiva entre dois tipos diferentes de cantigas, as de escárnio e as de maldizer. A questão não é de modo nenhum clara, como à primeira vista a «Arte de Trovar» dá a entender. Ao longo do corpus satírico as referências a esta matéria são, no mínimo, contraditórias. Algumas dessas referências parecem, à primeira vista, confirmar o anónimo autor da «Arte de Trovar». A mais importante delas é a que encontramos nesta outra cantiga de Estêvão da Guarda (B 1312, V 917): Rui Gonçálviz, pero vos agravece porque vos travou em vosso cantar Joan'Eanes, vej'eu el queixar de qual deosto lhi de vós recrece: u lhi fostes trobar de maldizer em tal guisa que bem pod'entender quem quer o mal que a olho parece.
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Por en partid'este feito de cedo, ca de maldizer nom tirades prol; e como s'en Joan'Eanes dol, já de vós perdeu vergonha e medo: ca entend'el que se dev'a sentir de maldizer que a seu olho vir que pode log'acertar com seu dedo. Pois sodes entendud'e [bom ra]vista, sabed'agora catar tal razom per que venha este feit'a perdom; e por parardes milhor a conquista outorgad'ora, senhor, que nos praz: se maldizer no vosso cantar jaz que o poedes tod'à nossa vista. A cantiga situa-nos em plena disputa trovadoresca. O motivo, como se percebe, são as cantigas satíricas que dois trovadores (ou um trovador e um jogral) mutuamente se tinham dirigido. O facto de não conhecermos essas anteriores cantigas obscurece decerto um pouco o sentido exato do que Estêvão da Guarda pretende aqui dizer. De qualquer maneira, parece, na verdade, que a injúria (o deosto), de que se queixava Joan'Eanes, tinha como base o modo como Rui Gonçalves teria construído o seu «trovar de maldizer» contra o colega: «em tal guisa que bem pod'entender/ quem quer o mal que a olho parece». Ou, como expressivamente se diz na segunda estrofe, o maldizer «que pode log'acertar com seu dedo». O que parece depreender-se desta cantiga é que haveria, pois, duas maneiras de construir uma cantiga satírica: através de referências abertas e compreensíveis para todos (como teria sido o caso), ou de uma forma mais velada e subtil (parece, aliás, que é o convite para continuar antes nesse tom que Estêvão da Guarda faz no final a Rui Gonçalves – «pois sodes entendudo...» – desmentindo o irónico papel de conciliador com que se apresenta). Mas, como diz Rodrigues Lapa na nota a esta cantiga, a distinção aqui aludida parece ser «de valor muito mais teórico do que real, como fica demonstrado na própria cantiga, onde não aparece o termo escarnho». De facto, o termo «escárnio» não aparece aqui. Aparece noutras ocasiões e com sentidos que parecem também desmentir a clareza das definições da «Arte de Trovar». Afonso Anes do Cotom começa uma cantiga contra uma velha camareira intrometida anunciando: «Covilheira velha, se vos fezesse/ grande [e]scárnio, dereito faria». A cantiga (B 1587, V 1119) é absolutamente clara no seu sentido, sem qualquer 83
marca de equivocatio: trata-se de um conjunto de insultos contra a camareira e contra as velhas em geral, que conspiram contra a sua felicidade. Entendê-la como escárnio, como o trovador anuncia, far-nos-ia regressar à mais tradicional definição do género, a de sátira onde se oculta o nome do visado: de facto, ao longo da cantiga a camareira nunca é concretamente nomeada. Outra das referências a esta matéria está contida na rubrica que precede uma tenção entre Martim Soares e Paio Soares de Taveirós (B 144) e que diz o seguinte: «Esta cantiga fez Martim Soares como em maneira de tençom com Paai Soares, e é d'escarnho». Trata-se, novamente, de uma cantiga perfeitamente clara, uma humorística disputa entre os dois trovadores sobre a oportunidade ou não de elevar um criado de um deles à categoria de jogral. E, mais uma vez, a única razão que poderia justificar a classificação da rubrica seria novamente o facto de o nome do infeliz criado nunca ser referido. Mas o problema torna-se ainda mais complexo se atendermos a esta outra rubrica que precede uma cantiga de Afonso Soares Sarraça (B 1622, V 1155/1156): «Afonso Soares Sarraça fez esta cantiga d'escarnh'e maldizer e diz assi» (sublinhados nossos). Com esta rubrica, que mistura displicentemente os dois géneros, as certezas da «Arte de Trovar» são definitivamente abaladas. Claro que se pode também argumentar que, não conhecendo nós o autor ou autores destas rubricas, difícil se torna igualmente avaliar a sua credibilidade. Mas o facto é que também outras referências nos Cancioneiros parecem confirmar a opinião de Rodrigues Lapa atrás citada, sobre o caráter mais teórico do que prático das definições estabelecidas pela «Arte de Trovar». O termo escárnio aparece, por exemplo, várias vezes referido por trovadores em contextos que não deixam margens para dúvidas quanto ao seu emprego genérico para designar as cantigas satíricas. Citemos, nomeadamente, Airas Peres Vuitorom (B 1481, V 1092): «ca bem trobamos d'escarnho e d'amor»; e também Gonçalo Eanes do Vinhal (V 1007): «D'escarnho e d'amor (...) os seguides sempre». Em ambos os casos, a distinção é claramente entre as cantigas líricas amorosas e as cantigas satíricas, e o termo escárnio tem aqui este valor geral e não o valor específico que lhe atribui a definição da «Arte de Trovar». Em resumo, tudo leva a crer, pois, que o escárnio e o maldizer seriam, na escola galego-portuguesa, designações mais ou menos paralelas para esse grande género do «dizer mal» que eram as cantigas satíricas, ou que seriam, pelo menos, designações
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cujas fronteiras não teriam seguramente o rigor prescritivo que as definições da «Arte de Trovar» parecem supor1. Uma palavra ainda sobre a questão anteriormente referida e relativa ao nome dos visados nestas cantigas. De facto, e ainda que nem a «Arte de Trovar» nem os trovadores pareçam aludir à questão, não há dúvida que, no corpus que nos ocupa, se pode facilmente estabelecer uma distinção entre dois tipos de cantigas, as que referem nomes ou as que os encobrem. A questão dos nomes esteve, aliás, e como já vimos, desde sempre ligada ao universo da sátira. Das suas origens mágicas (onde invocar o nome era uma forma de oculto poder), o problema ganhou posteriormente uma dimensão social de polémica – centrada à volta do valor do «bom nome» – sem perder totalmente, estamos em crer, a relação com as suas origens. O próprio Horácio o aborda numa das suas sátiras2, ao discutir a distinção entre os mala/ bona carmina, distinção que, como vemos, sentiu necessidade de justificar. Como nos diz Robert C. Elliott3: I should not be surprized if in the mind of even the most sophisticated Roman poet there lingered an impression that a poetic assault on an individual by name was somehow related to magical injury. The question whether the satirist should attack his victims by name has been a lively one from lhe beginning to the present, Assim estamos em crer que a questão dos nomes não deixaria igualmente de se colocar na escola trovadoresca galego-portuguesa, e que os trovadores e jograis estariam conscientes do alcance distinto de uma cantiga referindo nomes ou de uma outra ocultando-os. Só isso explica, aliás, que eles optem umas vezes pela identificação clara do visado e outas vezes pelo genérico Dom Foam, D. Fulano (ou expressões genéricas semelhantes como «uma dona», «um cavaleiro», etc). Se essa distinção esteve na origem de uma primitiva distinção entre as categorias do maldizer e do escárnio, é matéria, pois, sobre a qual poderemos talvez interrogar-nos (mesmo contra o que parecem dizer as definições da «Arte de Trovar»), mas que, partindo dos dados de que dispomos, não poderemos apurar. Na prática, no entanto, como dissemos, e pelo que nos é dado ver nos Cancioneiros, tal distinção (qualquer que fosse o seu sentido original) está longe de ser rigorosa e muito menos efetiva.
1 Este caráter prescritivo da «Arte de Trovar» é, de resto, sublinhado, com variados exemplos, por D'Heur, op. cit., p. 382. 2 II, 1 (a Trebácio). 3 The power of satire, op cit., p. 125.
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b) Cantigas «de joguete de arteiro», cantigas «de risabelha» Para além das tenções, das cantigas de vilãos e das cantigas de seguir, objeto de títulos próprios de que falaremos em seguida, a «Arte de Trovar» refere brevemente, ainda no próprio capítulo dedicado às cantigas de escárnio (o que novamente não ajuda à clareza da exposição), duas outras categorias: as cantigas «de joguete d'arteiro» e as cantigas «de risabelha». Para o autor da «Arte de Trovar» estas duas categorias realmente não existem, uma vez que, como nos diz, as cantigas de joguete de arteiro «nom som mais ca d’escarnho» e as cantigas de risabelha «ou seeram d’escanho ou de mal dizer» – e a referência fica-se por aqui. Não temos, em todo o Cancioneiro, nenhuma alusão, nem em cantiga, nem em rubrica, a qualquer uma destas categorias. Não podemos assim avaliar cabalmente até que ponto o autor da «Arte de Trovar» tem razão no que afirma, ou se, pelo contrário, devemos atender à opinião daqueles «alguns» que ele cita no início destas duas referências para logo negar («E pero que alguns dizem que há i algũas cantigas de joguete d'arteiro (...) Pero er dizem que outras há i de risabelha»). Poder-se-ia alegar, contra a opinião do nosso anónimo autor, que também as tenções e, pelo menos, as cantigas de seguir, poderiam igualmente ser de escárnio ou de maldizer (como geralmente são) – e nem por isso ele deixa de lhes dedicar capítulos autónomos. Haveria, pois, uma forma particular chamada «joguete de arteiro» e outra chamada «de risabelha», ou, pelo contrário, não passariam estes nomes de designações diferentes para as cantigas genericamente satíricas?1 A palavra joguete faz parte do vocabulário dos Cancioneiros. Aparece em duas cantigas, uma de amor, de Pero Garcia de Ambroa (B 73), onde tem o sentido de «pequeno jogo» ou «jogo inconsequente» (aludindo à atitude da sua senhora para com ele), e outra, satírica, de Vasco Peres Pardal (B 1506 – curiosamente dirigida ao mesmo Pero de Ambroa), aqui com o sentido de «brincadeira», «partida» (que, no caso, saiu furada): «mais manda Santa Maria/ que prenda i mal joguete/ o d'Ambroa». Também a palavra arteiro aparece várias vezes (uma delas na forma ardeiro), sempre com o
1 Sobre este assunto diz Jean Marie D'Heur (op. cit.., p. 386): «En taxinomie poétique, cependant, les appellations vraiment synonymes sont rares, et il faut penser que les désignations conservées traduisent une réalité plus riche et plus luxurieuse, moins 'asseptisée' en tout cas, que celle que le rédacteur de l'Art de Trouver a tenu à nous conserver et à nous présenter».
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sentido de «esperto», «astuto», como, para citar apenas um dos casos, em B 1382, V 990: «Dona Maria,/ como vós sodes molher arteira». Seria, pois, o joguete de arteiro um tipo de cantiga que se poderia definir como um jogo, uma brincadeira baseada na esperteza? Assim sendo, compreendem-se as razões do autor da «Arte de Trovar»: as brincadeiras baseadas na esperteza não são mais do que cantigas de escárnio, tal como ele acaba de as definir (o jogo com as palavras «cobertas»). Apesar de tudo, pode depreender-se que alguns distinguiriam com um nome próprio certas cantigas, certamente aquelas onde esse jogo era mais «coberto», ou seja, talvez cantigas em género de charada, de que podíamos talvez encontrar exemplos no corpus dos Cancioneiros. As duas cantigas antes citadas, de Estêvão da Guarda e de D. Dinis, construídas «equivocamente» em atá-finda, e de descodificação assaz difícil, poderiam talvez estar neste caso. Como também poderia ser o caso da curiosa cantiga em que o filho de D. Dinis, D. Afonso Sanches, troça de uma dona partindo de uma brincadeira com o sentido etimológico dos vários nomes próprios femininos, pelos quais, alegadamente, uma donzela recém-casada ia sendo sucessivamente conhecida, cantiga de descodificação assaz difícil (B 415, V 26). Parece-nos, no entanto, que o autor da «Arte de Trovar», terá, neste ponto, razão: qualquer uma destas cantigas pode ser perfeitamente incluída na designação genérica de escárnio. O mesmo parece acontecer com as cantigas de risabelha. Ao contrário dos anteriores, o termo risabelha não aparece nos Cancioneiros. Mas a própria «Arte de Trovar» adianta, neste caso, uma explicação: « e chamam-lhes assi porque riim ende a vezes os homens, mais nom som cousas em que sabedoria nem outro bem haja». A designação «cantigas de risabelha» aplicar-se-ia, pois, talvez às cantigas baseadas no puro riso, o que o autor da «Arte de Trovar», muito platonicamente, não deixa de condenar. Parece-nos estar, mais uma vez, face a uma designação paralela para as cantigas satíricas, talvez visando especificamente aquelas que, sem grandes pretensões críticas, se destinariam a provocar o riso imediato da audiência. Poderíamos também aqui encontrar exemplos. Mas o autor da «Arte de Trovar» parece ter, mais uma vez razão: sem forma específica, estas cantigas seriam, de alguma maneira, ou de escárnio ou de maldizer, já que sempre, em qualquer caso, se diz nelas mal de alguém.
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Categorias específicas seriam, pois, as que ele nos expõe nos três capítulos seguintes, sob a designação genérica de «maneiras». Que maneiras haveria, pois, de se fazer uma cantiga de escárnio e maldizer?
e) Tenções Outras cantigas fazem os trobadores que cham[am] tenções, porque som feitas per maneiras de razom que um haja contra outro, em que [um] diga aquelo que por bem tever na prim[eir]a cobra, e o outro responda-lhe na outra dizend[o] o contrairo. Estas se podem fazer d'amor ou d'amigo ou d'escarnho ou de maldizer, pero que devem de seer de me[estria] (...) As tenções são uma das formas mais conhecidas dos Cancioneiros. O autor da «Arte de Trovar», na definição acima transcrita, expõe-nos claramente esta «maneira», não deixando lugar a grandes dúvidas. O único pormenor que se pode acrescentar é o facto de, nos Cancioneiros galego-portugueses, como já dissemos, a esmagadora maioria das tenções serem de caráter satírico, o que parece indicar que, na prática, esta forma tinha aqui prioritariamente esta função. De que maneira as referências dispersas nos Cancioneiros nos ajudam a completar esta definição da «Arte de Trovar»? As tenções eram uma das formas em que trovadores e jograis melhor podiam demonstrar a sua mestria na arte de trovar. Como já vimos numa rubrica citada atrás, nem todos teriam a capacidade de responder a um desafio deste género (seriam, no vocabulário da escola, incapazes de travar a razom do outro), desafio que implicava muitas vezes um confronto com colegas mais experientes e argutos. As numerosas tenções entre jograis e trovadores parecem indicar que a tenção poderia mesmo constituir uma espécie de prova – prova de que não estaria também ausente uma certa forma de disputa entre classes, como o exemplo do famoso ciclo em torno do jogral Lourenço pode facilmente comprovar. É, aliás, numa das tenções deste ciclo, que Lourenço fala de «sair vencedor» da tenção («e veerom por en comig'entençar,/ e figi-os eu vençudos ficar;/ e cuido-vos deste preito vencer», V 1010) – o que parece reforçar essa ideia de desafio que a tenção constituiria. De resto, e genericamente, o corpus das tenções dos Cancioneiros obedece, em linhas gerais, às regras enunciadas pela «Arte de Trovar.». Podemos talvez apontar apenas uma ligeira variação. Como se viu, esta maneira de trovar a dois implicava,
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segundo o tratado, que um «[um] diga aquelo que por bem tever na prim[eir]a cobra, e o outro responda-lhe na outra dizend[o] o contrairo». Ainda que, de forma geral, as tenções conservadas sigam, na sua maioria, esta regra dos dois pontos de vista (ou dos cantares ao desafio), também ela não é absoluta. E encontramos assim tenções que são mais um diálogo irónico do que uma disputa, normalmente as que visam uma terceira pessoa e não os próprios contendores. É o caso, entre outras, da já citada tenção em que Martim Soares e Paio Soares de Taveirós discutem a oportunidade de elevar um criado de um deles à categoria de jogral (B 144). Basicamente da mesma opinião – o homem será uma desgraça como jogral – os dois «refletem» sobre o que devem fazer de tão inepto servidor, sem que verdadeiramente se possa dizer que expõem pontos de vista contrários. Com as tenções acontece, pois, o que vemos suceder com todos os outros tipos de cantigas: das regras fixas, os trovadores e jograis são sempre capazes de fazer nascer variações.
d) Cantigas de vilãos Infelizmente, o capítulo que a «Arte de Trovar» dedica a este tipo de cantigas é o que mais deturpado chegou até nós. Ao todo, não são mais de cinco linhas, atravessadas de profundas lacunas, cujo texto é hoje impossível de reconstituir. O que chegou até nós diz o seguinte: Outrossi outras cantigas fazem os trobadores, a que chamam de vilãas. Estas cantigas […] sem mao lengua[ge], nam som per al erradas (?), per que as nom escarniom i. Como outras cantigas, pode[m-n]as fazer de quantos talhos [quiserem]. Verdadeiramente, é impossível apurarmos qual a definição que estas linhas exporiam. Este facto, juntamente com o quase absoluto silêncio dos próprios trovadores sobre a matéria, tornaram até hoje as cantigas de vilãos (ou eventualmente de vilãs, como discutiremos em seguida) uma das categorias mais difíceis de definir. No entanto, a análise mais cuidada desta categoria poderá levar-nos a alguns territórios muito interessantes, que, ainda que marginais relativamente ao assunto que nos ocupa, não gostaríamos de deixar dc referir brevemente, até como chamada de atenção para a necessidade de se estudar melhor o assunto. Vejamos, pois, o que é possível supor sobre estas cantigas. 89
Em primeiro lugar, há um dado que não tem sido devidamente considerado e que é o que diz o próprio manuscrito. De facto, algumas das mais conceituadas edições anteriores desta «Arte de Trovar», nomeadamente a de Jean-Marie d'Heur, corrigem o texto na própria palavra que designa estas cantigas: enquanto, no manuscrito, se lê claramente cantigas de vilaãs (como tinham, aliás, lido Teófilo Braga e José Pedro Machado), a nova leitura proposta (e que tem sido genericamente aceite) passa a ser cantigas de vilaã[o]s. D'Heur justifica a sua correção do seguinte modo: La correction de vilaãs en vilaã[o]s est fondée sur deux passages des raisons de la pièce D'H1452 dans les chansoniers B. et V. où on trouve les formes suivantes V169d huua cantiga de uilao (mais les deux dernières lettres sont écrites au-dessus de deux autres, qui ont été biffées par le copiste, peut-être os), B298a huua damiga de vilano, et surtout V 170a aquela de zima (cima) de vilaaos, B298c aquela de cima de Vilaanos. On constate que le copiste de B a développé en n le signe de nasalation. D'Heur alude aqui às referências que surgem nas duas rubricas que acompanham uma cantiga de João de Gaia (B 1433, V 1043)1, e que constituem referências únicas (a expressão não aparece em mais nenhum lugar dos Cancioneiros). A existência da expressão de vilãos (em diversas grafias) em três destas ocorrências é inegável. Parece, portanto, haver certa razão para a correção proposta. Ora, na nossa opinião esta correção poderá não se justificar inteiramente, e vem obscurecer um dado interessante (e que dará certamente matéria a reflexões muito mais latas do que a simples categoria que estamos a tratar): o que o autor do pequeno tratado talvez quisesse mesmo dizer era cantigas de vilaãs. Passamos a justificar. Como referimos, o único vestígio seguro de uma destas cantigas que chegou explicitamente até nós encontra-se incluído na referida cantiga do escudeiro João de Gaia (aliás, de seguir, como veremos). A rubrica que segue imediatamente esta cantiga diz explicitamente: «Esta cantiga seguiu Joan de Gaia per aquela de cima de vilaanos [em V, vilaaos], que diz a refram: 'Vede-lo cós, ai, cavaleiro'(...)». Já a curta rubrica incompleta que precede a cantiga2 é mais problemática, e isto em ambos os manuscritos. Lapa lê, corrigindo o manuscrito (como todos antes dele): «Diz ũa cantiga de vilão...».
1 A cantiga de João de Gaia vem acompanhada por duas rubricas (uma, mais curta, que antecede as estrofes, e outra que as segue, bastante mais longa), o que, não sendo caso único, é raro nos Cancioneiros. 2 E que Lapa considera, a nosso ver erradamente, não uma rubrica, mas uma primeira estrofe, como tal a editando.
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Ora o que se pode ler nos manuscritos (como D'Heur, aliás, refere na nota antes citada) é, em B, «Diz ũa d’amiga de vilano: A pee d'ũa torre, baila corpo probo. Vedes o cós, ai cavaleiro»; já em V, a expressão é cantiga de vila..., com o final deste último termo riscado e, sobrepostas a essa correção, as letras ao. D’Heur sugere, como se viu, que as letras riscadas seriam talvez os (o que daria cantiga de vilaos), mas nada nos garante que não fosse as (ou seja, cantiga de vilaas) Ou seja, se V corrige, uniformizando com a rubrica posterior1, seguindo B, a rubrica diria: «Diz uma [cantiga] de amiga de vilão» (sublinhados nossos). E, de facto, a cantiga primitiva cujos versos esta rubrica transcreve2 parece ser dita em voz feminina (ou, pelo menos, o seu refrão), que se dirige a um cavaleiro (Vedes o cós, ai, cavaleiro). Pelo que nos mostra este fragmento da cantiga (e eventualmente a primeira rubrica de B), haveria, pois, cantigas populares (de vilãos ou vilãs) ditas em voz feminina. A hesitação entre as duas formulações (de vilão/s ou de vilã/s) é assim perfeitamente compreensível – sobretudo se não nos esquecermos de que os Cancioneiros refletem a visão aristocrática de uma elite medieval: a primeira designação indicaria que estas cantigas pertenciam a outro universo (eram feitas por vilãos e para vilãos); a segunda designação referi-las-ia especificamente como uma forma (eram cantigas ditas em voz feminina, cantigas de mulher – de vilãs). Por não ser esse o âmbito deste trabalho, não nos vamos pronunciar sobre as implicações mais latas que estes dados poderão acarretar (embora uma mais profunda análise do problema nos pareça necessária). De momento interessa-nos apenas continuar a centrar a nossa atenção sobre esta categoria de cantigas (satíricas ou não?), tal como surgem na estropiada definição da «Arte de Trovar» e neste único exemplar de uma delas (um seu fragmento) conservada, nesta forma diferida, nos Cancioneiros. Aparentemente, e pelo que se pode depreender desta única estrofe, esta cantiga de vilão (de amiga de vilão) não parece ter um caráter imediatamente satírico. Antes parece, de facto, partilhar um pouco o universo das cantigas de amigo, nomeadamente o
1 Será muito difícil saber se a correção se ficou a dever a um erro detetado na cópia do original, ou se a correção teve exatamente em conta a unificação entre as duas rubricas, o que é uma possibilidade, 2 Note-se que, enquanto a primeira rubrica transcreve o que seria a primeira estrofe dessa primitiva cantiga (A pee d'ũa torre, baila corpo probo. Vedes o cós, ai cavaleiro), a rubrica posterior transcreve apenas o seu refrão.
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das bailias – deste «corpo probo»1 que baila encontramos ressonâncias em mais de um destes cantares. E provável, no entanto, que o refrão abrisse, de facto, para uma sensualidade mais explícita do que a que os trovadores fazem transparecer nas suas cantigas de amigo. Talvez também a isso se refira aquela expressão da «Arte de Trovar» que não podemos concretamente contextualizar e que diz «sem mao lengua[ge]». A referência, mesmo pelo negativa, a esta «má linguagem», conjuntamente com a utilização, também na negativa, do verbo «escarnir» («per que as nom escarniom i»), colocam-nos, de facto, num cenário diferente das cantigas de amigo dos trovadores, um cenário em que a sátira ocuparia certamente um qualquer lugar. As cantigas de vilãos (ou de vilãs) seriam assim cantigas de caráter mais ou menos licencioso, de raiz popular, como o próprio nome indica2. Além deste fragmento seguro de uma cantiga de vilão, há ainda, nos Cancioneiros, um conjunto de cantigas da autoria do trovador Rui Pais de Ribela, cantigas cujo ritmo e toada populares levaram Carolina Michaëlis a aventar a hipótese de que poderem ser cantigas de vilãos3 (V 1026, B 1435-V 1045 e B 1439-V 1049). De facto, trata-se de três cantigas singulares, no conjunto das cantigas satíricos dos Cancioneiros, sobretudo pela curiosa (e magnífica) conjugação que nelas é feita de elementos do universo das cantigas de amigo (mais uma vez) com os elementos propriamente satíricos. Damos o exemplo de uma delas (B 1439, V 1049): – Maria Genta, Maria Genta da saia cintada, u masestes esta noit'ou quem pôs cevada? Alva, abríades-m'alá! – Albergámos eu e outra [e]na carreira, e rapazes com amores furtam ceveira. Alva, abríades-m'alá! U eu maj'aquesta noite, houv'i gram cea, e rapazes com amores furtam avea. Alva, abríades-m'alá! 1
Também a leitura deste termo não é evidente. Carolina Michaëlis sugeriu gracioso. Lapa leu brioso, sugerindo ainda goioso, cioso. Face âs dúvidas, optámos por manter a lição dos manuscritos. 2 E que os trovadores eventalmente adaptariam ao universo cortês nas suas cantigas de amigo. Mas este é, como referimos. um outro e longo assunto 3 CA, II, p. 389. Duas páginas adiante (p. 391), D. Carolina termina as suas considerações sobre Ribela com mais uma pertinente observação (relativa a A): «Para terminar perguntarei se será simples acaso o vermos entre as figuras da vinheta que precede o rótulo das cantigas de Roy Paes, uma rapariga com pandeiro na mão, guarnecido de guizos, único nestas miniaturas?»
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Sendo, como é, uma sátira com destinatário concreto (Maria Genta e uma amiga e as suas atividades noturnas), a cantiga parece mais próxima do universo de erotismo implícito que vimos no fragmento da cantiga de vilão anterior, do que da sexualidade explícita da maioria das cantigas de escárnio e maldizer. Estaremos, de facto, tanto nesta como nas outras duas cantigas (de estrutura semelhante), face a verdadeiras cantigas de vilãos? Pelo que dissemos anteriormente, talvez não (se nesta há um diálogo em que a voz feminina ocupa as duas últimas estrofes, nas outras duas cantigas, se excetuarmos o refrão, a voz é claramente masculina). Como adiante veremos, a hipótese mais provável é a de Rui Pais de Ribela, também ele, à semelhança de João de Gaia, as ter composto «seguindo» anteriores cantigas de vilãos. Retomaremos, no entanto, o assunto ao falarmos das cantigas de seguir. Uma outra das hipóteses que se podem colocar no que diz respeito ás cantigas de vilãos é a de que talvez a música servisse também de fator distintivo. É o que parece depreender-se de uma outra cantiga recolhida pelos Cancioneiros e que vale a pena aqui analisar. Trata-se de uma cantiga de Martim Soares (B 1357, V 965) contra um cavaleiro cujos cantares, sendo embora altamente apreciados por um público popular, como refere, nunca poderiam ter a aprovação dos trovadores. Diz a cantiga: Cavaleiro, com vossos cantares mal avil[t]astes os trobadores; e pois assi per vós som vençudos, busquem per al servir sas senhores; ca vos vej'eu mais das gentes gaar de vosso bando, por vosso trobar, ca nom eles, que som trobadores. Os aldeiãos e os concelhos tôdolos havedes por pagados; também se chamam por vossos quites, como se fossem vossos comprados, por estes cantares que fazedes d'amor, em que lhis acham os filhos sabor e os mancebos que têm soldados. Benquisto sodes dos alfaiates, dos peliteiros e dos medores; do vosso bando som os trompeiros e os jograres dos atambores, porque lhis cabe nas trombas vosso som; 93
pera atambores ar dizem que nom acham no mund'outros sões melhores. Os trobadores e as molheres de vossos cantares som nojados a ũa, por que eu pouco daria, pois mi dos outros fossem loados; ca eles nom sabem que xi nem fazer: querem bom som e bõo de dizer e os cantares fremosos e rimados. E tod'aquesto é mao de fazer a quen'os sol fazer desiguados. A cantiga, como se vê, não classifica nunca estes «sons» do cavaleiro, nem menciona o termo «cantiga de vilãos» (antes diz «estes cantares que fazedes de amor», o que parece indicar voz masculina e não feminina). A posição de Martim Soares é antes, e sobretudo, a da defesa de uma arte e de um gosto aristocráticos e da rejeição de uma «arte» ao gosto popular. O que a cantiga, no fundo, diz é que, sem metro e sem rima (desiguados), os cantares do cavaleiro não são nem bom som nem bom dizer, ou seja, não são «arte» e, se são apreciados, são-no apenas por um público «inculto» e incapaz dc distinguir um bom de um mau cantar1. A cantiga pode ser assim apenas mais uma forma de meter a ridículo um mau trovador, pela sua incompetência n'«estes cantares que fazedes d'amor». De qualquer maneira, as referências muito específicas ao público do cavaleiro, um público constituído essencialmente por vilãos (os vizinhos dos concelhos, suas famílias e criados, e os artífices – alfaiates, peliteiros e fabricantes de meadas – e também as categorias mais baixas de jograis – os trompeteiros e os dos tambores2) deixam adivinhar a existência de uma arte que lhes seria específica e que se distinguiria da arte cortês e culta da escola dos trovadores. Seria exatamente pela sua semelhança com estas cantigas dos vilãos (fossem ou não especificamente as de vilãs antes referidas) que as deste cavaleiro eram rejeitadas. Se esquecermos, pois, o anátema que lhes é lançado, como parecem aqui caracterizar-se?
1 É interessante também a distinção que é feita na última estrofe, entre o que vale a opinião das mulheres e a dos verdadeiros peritos que são os trovadores. Ainda que as primeiras sejam «nojadas» com os cantares, a sua opinião não é decisiva para o trovador (vv. 22-25). 2 Eram estas exatamente as categorias inferiores dos jograis. Vide Menéndez Pidal, Poesia juglaresca y origenes de las literaturas romanicas, Madrid 1957, pp. 43-44
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Para além da referida acusação de serem desiguados, os cantares do cavaleiro são ainda rejeitados pelo seu som. E esta referência à música, que nos aparece na terceira estrofe, é deveras interessante. Pelo que nos é dado perceber, a música desses cantares implicava a utilização prioritária de trompas («porque lhis cabe nas trombas vosso som») e «atambores» (o que, segundo Martim Soares, um bom trovador nunca aceitaria). Parece, pois, que, a vermos nesta cantiga, como parece provável, um perfil pela negativa das cantigas de vilãos1, elas se caracterizariam por uma música e um ritmo próprios, muito mais marcados, estridentes e abertos do que a «música de câmara» dos requintados cantares dos trovadores. Fosse como fosse, o certo é que, como nos diz a «Arte de Trovar», também os trovadores fariam estas cantigas de vilãos (ou vilãs?), mesmo que alguns, como aqui Martim Soares, as condenassem. Se a distinção era prioritariamente de caráter musical, é-nos hoje impossível reconhecê-las no corpus geral dos Cancioneiros (uma das hipóteses é serem os «escárnios de amigo», de que adiante falaremos, e de que encontramos alguns exemplares). Acreditamos que, mesmo assim, estas cantigas, ou estes sons, seriam prioritariamente utilizados com uma função satírica, como a «Arte de Trovar» nos leva a pensar. Uma última reflexão pode ser-nos ainda sugerida pela lacunar definição da «Arte de Trovar». Como muito bem faz notar Jean Marie D'Heur, a colocação do capítulo referente a estas cantigas entre o capítulo dedicado às tenções e o dedicado às cantigas de seguir «donne a penser que les chansons de vilaã[o]s requeraient l'intervention de deux troubadours à un stade donné de leur composition ou de leur interprétation»2. Parece, de facto, ser esta uma conclusão lógica. Tanto o capítulo VII como o capitulo IX tratam de maneiras «em que trobam dous homens», como se diz neste último. A questão está em saber de que maneira esta dupla autoria se processaria, ou mesmo se estes «dois homens» seriam de facto dois trovadores, como pensa D'Heur. Sobre o assunto, nenhuma informação segura poderemos adiantar. É provável, no entanto, que se trate aqui de um caso seja semelhante ao das cantigas de seguir, cuja discussão faremos de seguida.
1
Rodrigues Lapa, na nota a esta cantiga, concede que os cantares a que aqui se alude «talvez fossem refundições de velhos temas populares». 2 Op. cit., p. 376.
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Todas estas hipóteses necessitariam de confirmação. De seguro podemos apenas reafirmar que, mesmo ocupando um capítulo autónomo na «Arte de Trovar», as cantigas de vilãs ou de vilãos, e se excetuarmos o exemplo diferido acima transcrito, não aparecem nunca, como tal, nos Cancioneiros. Se esta ausência é real e foi motivada pela escolha do(s) seu(s) compilador(es) que, por qualquer razão, as não incluíram – o que não deixaria de tornar estranha a sua referência na «Arte de Trovar» –, ou se é uma ausência aparente, originada pelo nossa incapacidade em reconhecê-las, é uma questão que terá, evidentemente, que ficar em aberto.
e) Cantigas de seguir O último capítulo deste título III da «Arte de Trovar» dedicado aos géneros e formas poéticas trovadorescas trata, como dissemos, das cantigas de seguir1. Socorrendo-nos novamente das palavras de Jean Marie D'Heur «II ne s'agissait pas d'un genre lyrique à propremem parler, mais plutôt d'une façon de faire qui était censée s'appliquer à toutes les chansons qu'on voulait»2. O «seguir» era, pois, outra das «maneiras» de se fazer uma cantiga na escola galego-portuguesa. É o que nos começa por dizer a «Arte de Trovar»: Outra maneira há i em que trobam do[u]s homens e que chamam seguir; e chamam-lhe assi porque convém de seguir cada um outra cantiga, a som ou em p[alav]ras ou em todo. Esta é a definição geral das cantigas de seguir (que a «Arte de Trovar» particulariza ao longo do capítulo), definição que, no entanto, como veremos, não deixa de levantar algumas dificuldades. Nela temos, pois, novamente «dois homens», como parece acontecer nos dois capítulos anteriores, os quais, neste caso, «seguem» cada um outra cantiga. «Seguir outra cantiga» é uma expressão que não parece difícil de entender: os trovadores, ao trovar desta maneira, servem-se de uma cantiga anterior para fazer uma nova cantiga, e isto segundo um conjunto de regras que a «Arte de Trovar» define em seguida e que teremos ocasião de analisar. Antes, porém, repare-se na expressão «dous
1 As cantigas de seguir são ainda aludidas no capítulo I do título seguinte (IV) que trata dos «talhos» das cantigas. Como o que aí se diz, embora algo obscuro devido ao estado do texto, parece mesmo assim confirmar esta definição geral anterior, é dela que nos iremos ocupar. 2 Op. cit.., p. 376.
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homens (...) que seguem cada um outra cantiga». Esta explicação é, no mínimo, pouco clara. A primeira vista parece que, seguindo cada «homem» outra cantiga, haveria não só dois homens mas duas cantigas distintas em jogo nesta maneira de trovar. Como veremos, pelos exemplos e pelas referências dos Cancioneiros, não se pode inferir que fosse, de facto, isto que se passava nas cantigas de seguir. Ao contrário do que acontece com as tenções, por exemplo, onde os nomes dos dois intervenientes são sempre referidos, as duas ou três cantigas de seguir que aparecem nos Cancioneiros aparecemnos sob um único nome, o do trovador ou jogral que as compôs. Há três hipóteses de leitura para esta problemática definição da «Arte de Trovar». A primeira é a de que os Cancioneiros não nos deixariam ver totalmente um processo que seria mais complexo do que os exemplos que chegaram até nós nos fazem supor – e neste caso a «Arte de Trovar» seria confusa apenas para nós, pela ausência de dados disponíveis que nos permitissem ver como é que estes dois homens, seguindo cada um sua cantiga, se articulariam. A segunda leitura é a que vê nesta definição um erro ou uma confusão do próprio autor do tratado, hipótese que não seria de estranhar, face a algumas outras imprecisões do texto (como as que aparecem, aliás, neste mesmo capítulo, como veremos). O anónimo autor do tratado, escrevendo sobre uma matéria que lhe é de certa forma alheia, ter-se-ia simplesmente enganado, propondo uma definição que não corresponderia à realidade. A terceira e, para nós, a mais plausível leitura, é a que vê nesta definição apenas uma confusa alusão ao facto de que realmente no seguir a autoria deve ser considerada dupla, já que o trovador parte de uma cantiga alheia e não é portanto o autor único da nova cantiga que daí resulta. Estes «dois homens» seriam, pois, o autor da cantiga primitiva e o trovador que a segue. Poderia admitir-se mesmo que, ao falar de «dois homens» (e repare-se que não se diz «dois trovadores», como no capítulo das tenções), o anónimo autor tivesse em conta o facto de se poderem seguir cantigas que não tivessem sido compostas por trovadores, cantigas de tradição popular, por exemplo, como já vimos ser o caso da cantiga de vilãos seguida por João de Gaia, e como acontece nalgumas das outras cantigas que iremos abordar. Eventualmente, as coisas poderia clarificar-se se aceitássemos, para este início de capítulo, a primitiva lição de Monaci, lição que, em lugar de cada um propõe a leitura corrigida cada ũ[a], o que talvez fizesse mais sentido. A definição diria pois: «Outra maneira há i em que trobam do[u]s homens e que chamam seguir; e chamam-lhe assi
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porque convém de seguir cada ũ[a] outra cantiga (...)». Ou seja, não cada homem, mas cada cantiga destas seguiria uma outra, o que parece, ainda que sintaticamente mais confuso (o que não é raro na «Arte de Trovar») logicamente mais plausível. E a alusão aos «dois homens» diria respeito ao autor primitivo e ao que o segue. Fosse como fosse, o certo é que este seguir obedecia a regras de que resultavam vários graus, conforme o trovador seguisse a outra cantiga «a som ou em p[alav]ras ou em todo», como nos diz a «Arte de Trovar». Como eram, pois, especificamente, estas três maneiras de seguir? A «Arte de Trovar» explica-as detalhadamente ao longo deste capítulo. A mais simples, como começa por nos dizer o tratado, era seguir o som, ou seja, a música de uma cantiga anterior, colocando nela outras palavras «tam iguaes come as outras (quer dizer, com a mesma medida métrica), pera poder e[m] elas caber aquel som mesmo». Era o grau elementar, ou o mais fácil, como faz notar o tratadista logo em seguida: «E este seguir é de meos em sabedoria, porque [nom] toma nada das palavras da cantiga que segue»1. As cantigas de seguir, feitas desta maneira, são hoje, para nós, quase impossíveis de identificar, uma vez que o nosso desconhecimento das melodias trovadorescas é quase total. À partida, elas poderão estar incluídas em qualquer dos três géneros presentes nos Cancioneiros. Mas, como já antes referimos, podendo este jogo com a música proporcionar um efeito satírico imediato, é provável que muitas delas pertencessem a este género2. Acreditamos que, para além das cantigas explicitamente designadas como «de seguir» nas rubricas que as precedem (todas referentes a cantigas satíricas, como veremos, mas nenhuma referente a este simples seguir «a som»), muitas outras, sobretudo satíricas, o seriam. Essa probabilidade parece confirmar-se, pelo menos, numa cantiga do trovador Lopo Lias (B 1342, V 949), cujos dois primeiros versos dizem: «Em este som de negrada,/ farei um cantar (...)». Tratar-se-ia, pois, de uma cantiga de seguir segundo esta primeira maneira, ou seja, uma cantiga feita a partir
Neste passo, alterámos significamente as leituras anteriores, nomeadamente a de D’Heur, cuja lição é: «E este seguir é de maor ssabedoria por que toma cada das palavras da cantiga que segue». Para D’Heur, tratar-se-ia de um erro do copista, que a deveria ter colocado no final da definição do seguir «palavra a palavra». Pensamos que a nossa leitura corrigida clarifica melhor a questão. 2 No entanto, algumas cantigas de amigo, que apresentam coincidências temáticas e formais, nomeadamente o mesmo refrão, poderiam estar incluídas neste grupo. Vide Wilton Cardoso, Da cantiga de seguir no Cancioneiro peninsular da Idade Média, Belo Horizonte, 1977. 1
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de um «som» alheio, um «som de negrada», hoje dificil de identificar. Como anota Rodrigues Lapa (ainda que não fazendo nenhuma alusão às cantigas de seguir), «a composição, de ritmo estranho e irregular» seria talvez baseada «em alguma toada mourisca». Cantigas de seguir poderiam ser ainda muitos dos chamados «escárnios de amor» ou «escárnios de amigo», paródias a estes dois géneros de que encontramos abundantes exemplos no corpus satírico que estamos a estudar. Não seria de estranhar que, zombando, por exemplo, de uma soldadeira nos termos do amor cortês, o trovador seguisse a música de uma cantiga de amor, sua ou alheia, o que certamente acrescentaria um efeito suplementar à sátira1. Mas são, como dissemos, hipóteses hoje em dia difíceis de confirmar, pelo nosso desconhecimento da música galego-portuguesa. A segunda maneira de seguir, referida como «palavra por palavra» (verso a verso), consistia não só em retomar a música de uma cantiga anterior mas, como nos diz a «Arte de Trovar», «as rimas da outra cantiga que segue e sejam iguaes e de tantas silabas ũas come as outras, pera poderem caber em aquele som mesmo». Seria um segundo grau, mais elevado do que o anterior. Este seguir «palavra por palavra» é também muito difícil de identificar nos Cancioneiros. Tomando em consideração o que nos diz Pierre Bec – que a tenção bilingue, que os Cancioneiros galego-portugueses recolhem, entre Arnaldo2 e Afonso X (B 477), retoma a estrutura estrófica e as rimas da célebre canção da alauzeta de Bernart de Ventadorn3 – este poderia ser um exemplo desta segunda maneira de seguir. Exemplo que não deixaria de ser curioso, dado que a tenção tem como assunto a possibilidade de comandar navios com «ventos anais», o que poderia ser uma referência ao nome do célebre trovador, Ventadorn («ventador»), cuja cantiga burlescamente seguiam. Em círculos tão impregnados de cultura provençal como era o caso da corte de Afonso X, a alusão não deixaria de ser facilmente descodificada. Fosse ou não fosse esta uma cantiga de seguir «palavra por palavra» o certo é que esta segunda maneira seria um jogo mais requintado, mas onde novamente a sátira encontraria, certamente, um fértil terreno de expressão.
1 Vejam-se, por exemplo, os casos de B 1513, uma sátira de Pero Mafaldo contra Maria Balteira, ou de B 1619, V 1152, um escárnio de Pero Viviães contra uma anónima e feia donzela, entre muitos outros que se poderiam citar (alguns dos quais abordaremos ao tratarmos das paródias). 2 Eventualmente, o trovador provençal Arnault Catalan. 3 Burlesque et obscénité chez les troubadours, op. cit.., p. 17.
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Pertencem à terceira e última maneira as cantigas explicitamente referidas como «de seguir» nos Cancioneiros. Diz dela a «Arte de Trovar»: E outra maneira i há de seguir em que nom segue[m todas] as palavras, [mais ũas] fazem-nas das outras rimas, iguaes daquelas, pera poderem caber em aquel som mesmo; mais outra[s] daquela cantiga que seguem as devem de tomar ou trameter, [e] fazerem-lhe dar aquel entendimento mesmo per outra maneira. E pera maior sabedoria pode[m]-lhe dar aquel [refram] mesmo, em outro entendimento, per aquelas palavras mesmas; assi é a melhor maneira de seguir, porque dá ao refram outro entendimento per aquelas palavras mesmas, e tragem as palavras da cobra a concordarem com el. Tratava-se, pois, de uma cantiga que não só aproveitava, como nos dois casos anteriores, a música e as rimas da cantiga primitiva, mas conservava desta algumas palavras, as quais, num contexto diferente, ganhavam novo entendimento (como o texto reafirma repetidamente, note-se). Estas palavras que se conservavam seriam especialmente o refrão, como se lê claramente na última frase da explicação. Esta definição concorda genericamente com as duas cantigas que nos Cancioneiros são explicitamente chamadas «de seguir». Uma dessas cantigas já anteriormente foi referida. Trata-se da cantiga (B 1433, V 1043) onde o escudeiro João de Gaia segue uma cantiga «d'amiga de vilão» e que transcrevemos agora na totalidade: Vosso pai na rua ant'a porta sua: vede'lo cós, ai cavaleiro! Ant'a sa pousada, em saia 'pertada: vede'lo cós, ai cavaleiro! Em meio da praça, em saia de baraça: vede'lo cós, ai cavaleiro! Como referimos, a cantiga vem acompanhada de duas rubricas, uma anterior e outra posterior ao texto propriamente dito. Ora a rubrica posterior diz o seguinte: Esta cantiga seguiu Joam de Gaia per aquela de cima de vilãaos, que diz a refrom: «Vedes lo cós, ai, cavaleiro». E feze-a a um vilãao que foi alfaiate do bispo Dom Domingos Jardo de Lixbõa e havia nome Vicente Domingues, e depois pose-lhi nome o bispo Joam Fernandes; e feze-o servir ante si de cozinha e talhar
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ant'el; e feze-o el-rei Dom Denis cavaleiro; e depois morou na freguesia de Sam Nicolao e chamarom-lhi Joam Fernandes de Sam Nicolao. Para o que nos interessa retenhamos apenas que se trata de uma sátira contra um vilão, antigo alfaiate, elevado pelo rei (e por interferência do bispo) à categoria de cavaleiro. João de Gaia retoma, pois, uma anterior cantiga de vilãos (numa primeira referência satírica imediata), conservando não só a música e as rimas (ao que se supõe), mas também o refrão, e modificando, ao mesmo tempo, o corpo das estrofes. Do conjunto resulta que, do sentido mais ou menos erótico que esse refrão teria na primitiva cantiga, se passa para uma alusão clara tanto à antiga profissão do visado («Vedes o cós»), como à sua recente promoção («ai, cavaleiro!»). Ou seja, como diz a «Arte de Trovar», o refrão ganha «outro entendimento per aquelas palavras mesmas»1. É também de João de Gaia a outra cantiga referida explicitamente como de seguir (B 1452, V 1062), e que levanta um problema de ordem diferente. A cantiga foi objeto de cuidado estudo por Luciana Stegagno Picchio2, pelo que nos limitamos a resumir brevemente o assunto. Durante muito tempo essa cantiga não foi entendida. Como aparentemente o refrão, tal como surgia nos Cancioneiros, não se coadunava com o corpo das estrofes (sendo o seu texto, aliás, diferente daquele que é transcrito na rubrica que acompanha a cantiga e que o refere), supunham os estudiosos que se trataria de algum erro do copista na sua transcrição. Esse célebre refrão (que a mesma rubrica explica provir de uma bailada3) aparecia assim nos dois manuscritos, B e V: «Vós havede’los alhos verdes, e matar-m'-íades com eles» (sublinhado nosso). O termo «alhos» parecia, de facto, não fazer nenhum sentido no contexto. E na rubrica, na transcrição do primitivo refrão, lê-se claramente «olhos». Assim, na primeira edição de Lapa, aparece ainda a versão que se pensava mais correta, «Vós avede’los olhos verdes (...)», lição que, não resolvendo as dificuldades quanto ao sentido concreto da alusão, e portanto da chufa, parecia mais lógica numa cantiga que seguia uma bailada. Lucianna
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Face ao nosso desconhecimento da totalidade da cantiga de vilão aqui seguida, não podemos garantir que, de facto, seja apenas o refrão que João de Gaia conserva. O facto de as alusões, no corpo das estrofes, serem, para nós, pouco claras, pode levar-nos a pensar que talvez o trovador tenha conservado ainda algumas outras palavras da primitiva canção. Pelo menos os segundos versos das duas últimas estrofes, fazendo também alusão a peças de vestuário com ressonância erótica (como a «saia apertada» e a «saia de baraça»), poderiam eventualmente fazer também parte dessa primitiva cantiga 2 A lição do texto, Edições 70, Lisboa 1979, pp. 95-110. 3 A rubrica diz: «Esta cantiga foi seguida per ũa bailada que diz 'Vós havede’los olhos verdes/ e matar-m'-edes com eles' (...)». Note-se, aliás, que também há uma diferença no tempo do verbo matar.
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Stegagno Picchio repôs, com explicações convincentes, a lição dos manuscritos para o refrão (alhos). Trata-se de uma sátira contra um bispo que, informa ainda a rubrica, «se pagava do vinho». A referência ao alho, que, como nos diz Stegagno Picchio, era um tradicional estimulante da bebida, seria, assim, perfeitamente plausível, e, portanto, os manuscritos estariam perfeitamente corretos. Subsiste, no entanto, um problema. É que esta é, como nos diz a rubrica, uma cantiga de seguir. E refrão da primitiva bailada é, segundo essa mesma rubrica: «Vós havede’los olhos verdes, e matar-m'-edes com eles!» (aqui também parece não haver erro, já que «olhos» é o que parece fazer sentido numa bailada). A acreditar na regra de conservar o refrão exposta na «Arte de Trovar», faria sentido, pois, corrigir o copista. A ter Stegagno Picchio razão, como nos parece, teremos que aceitar que, neste caso, o trovador faz uma ligeira variação nessa regra – e é essa pequeníssima modificação no refrão primitivo que permite, exatamente, dar-lhe outro entendimento (não nos esqueçamos, aliás, que a música era a mesma). Para além destas duas cantigas explicitamente referidas como de seguir nos Cancioneiros, outras há que parecem enquadrar-se com alguma plausibilidade nesta maneira de trovar. É o caso das três cantigas satíricas de Rui Pais de Ribela, antes referidas, e que apresentam todas um refrão que se distingue singularmente do corpo das estrofes, e que parece pertencer a anteriores cantigas de amigo (ou de amiga de vilão, eventualmente). Das duas que não transcrevemos, o refrão diz, respetivamente: «d'amores hei mal» (V 1026) e «de noit' ou luar!» (B 1435, V 1045). E em qualquer destas composições, o refrão parece ganhar «um novo entendimento» no seguimento das estrofes (na primeira, por exemplo, o refrão é totalmente negado pelo corpo das estrofes: «Mala ventura mi venha/ se eu pola de Belenha/ d'amores hei mal» – as restantes três estrofes fazendo referência a três outras donzelas por quem o trovador nunca sentirá «mal de amor»). Acreditamos, pois, que, mais do que cantigas de vilão, como pensava Carolina Michaëlis, estaremos perante três cantigas de seguir segundo esta última maneira referida pela «Arte de Trovar» (mas talvez que, em todas elas, as primitivas cantigas fossem, de facto, de vilãos ou de vilãs). De uma cantiga de amor de tradição popular (ou, mais provavelmente, de uma cantiga de amigo ligeiramente transformada) parece também provir o refrão de uma sátira de Pero Garcia Burgalês contra a soldadeira Maria Negra (B 1383bis, V 992) e que diz: «Se me bem queredes,/ por Deus, amiga, que moit' onr' avedes,/ se me bem
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queredes».1 A cantiga, como tantas outras, mete a ridículo este «bem querer» da soldadeira, desmentindo, pela linguagem (por vezes crua) das estrofes, o sentimento positivo expresso pelo refrão. Tratar-se-ia, com muita possibilidade, de uma cantiga de seguir. Da mesma maneira, Tavani tinha sugerido2 que seria de seguir uma cantiga de Estêvão da Guarda (B 1313, V 918) cujo refrão é: «que me queira já mal, mal lhi farei/ padecer, e desensandecê-l'-ei», uma sátira contra um cortesão a quem os favores do rei davam volta à cabeça. E, na verdade, Estêvão da Guarda parodia aqui o refrão de uma cantiga de amigo de Estêvão Fernandes d´Elvas (B 1091, V 682). A esta sugestão poderíamos ainda acrescentar uma outra cantiga, da autoria de João Garcia de Guilhade (B 1490, V 1102), cujo refrão diz: «e lazero-m'eu mal». Trata-se de uma breve sátira que tem como motivo as alegadas relações de uma dona com um jogral, expostas em linguagem assaz crua. O refrão, no entanto, parece poder ter pertencido a uma cantiga de amor (ou de amigo). Com mais segurança, uma outra cantiga de Lopo Lias (B 1355, V 963) seria decerto de seguir, já que a sua rubrica diz: «Este cantar fez a som d’um descor („.)». A cantiga é, de facto, um descordo, e desta matéria nos ocuparemos no ponto seguinte. Neste momento será interessante apenas questionar esta rubrica. Teria sido esta cantiga seguida a partir de um «som» de um descordo alheio e anterior? A rubrica tanto pode ser entendida deste modo, como pode referir-se apenas a um «som» original de descordo da autoria do próprio trovador. Por último, não podemos deixar de referir o caso particular de uma outra cantiga que, na nossa opinião, poderia igualmente ter sido feita nesta maneira de trovar. O facto de se tratar de um sirventês tornaria a cantiga duplamente interessante, distinguindo-a dos restantes exemplos atrás focados. A cantiga, da autoria de Fernão Soares de
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Nota de 2018: Como se poderá verificar na Base de Dados Cantigas Medievais GalegoPortuguesas, modificámos significativamente esta leitura que Lapa faz do refrão da cantiga, leitura essa que corrigia bastante a letra dos manuscritos. Efetivamente, o que neles se lê é: Se me bem queredes,/ por Deus, amiga, que m’oi sorrabedes,/ se me bem queredes. Mas é provável, no entanto, que, na primitiva cantiga seguida por Pero Garcia, o refrão dissesse algo parecido com a leitura corrigida de Lapa, motivo pelo qual o mantivemos acima, tal como aparecia nas edições anteriores deste trabalho. Mas a nossa nova leitura reforça a hipótese de se tratar aqui de uma cantiga de seguir na terceira maneira (modificando ligeiramente, tal como faz Rui Pais de Ribela, o refrão da cantiga seguida: no caso, dando-lhe um sentido abertamente erótico, ou obsceno) 2
A poesia lirica..., op. cit., pp. 213
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Quinhones, tem, como acontece geralmente neste tipo de composições, caráter eminentemente moral (B 1557)1: Rei Judeorum, Jesu Nazareno em que gram coit'andamos polo leno! Já mais nunca quedamos, andando vias, por empar'a comendas e benfeitorias; pero se nos convidam algũus dias, nom nos dam senom leit'e pam de centeno. Rei Judeorum, Jesu Nazareno, em que gram coit'andamos polo leno! Nunca veemos donas nen'[as] catamos e imos ant'alcaides e vozeiamos por compoer requezas, e nom pensamos quam pouco sa requeza logr'o caneno. Rei Judeorum, Jesu Nazareno, em que gram coit'andamos polo leno! Poderia esta cantiga seguir um cântico litúrgico ou genericamente religioso? Acreditamos que sim. Pelo menos o refrão parece suficientemente independente para ter pertencido a uma composição desta natureza (o ritmo lento destes versos de onze sílabas parece também corroborar esta hipótese, e talvez mesmo o seu caráter zejelesco2). Mais: tendo em conta que o sirventês trata dos «romeiros» mundanos e da sua sede de riquezas, faria sentido que o trovador se tivesse aproveitado, mais especificamente, de alguma cantiga própria de verdadeiros romeiros. É sabido que essas «cantigas de peregrinos» existiram também na Península, tendo mesmo algumas chegado até nós, nomeadamente as do Livro vermelho de Montserrat3. A alteração das estrofes primitivas de uma cantiga deste tipo para uma pintura realista da ambição mundana permitiria assim que o refrão ganhasse uma força irónica que, a nosso ver, e a ser certa a hipótese, faria desta cantiga uma das mais originais denúncias morais e sociais dos Cancioneiros. Todos estes exemplos nos mostram que o seguir era, pois, uma «maneira» bem definida de trovar (e provavelmente muito mais usada do que se pensa), maneira que
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A cantiga, formalmente muito original, apresenta, grandes problemas de leitura, como referido nas notas da Base de Dados. 2 Como se sabe, o refrão no início da cantiga é frequente nas cantigas religiosas de Afonso X. 3 De resto, é curioso ainda notar que o autor desta cantiga, Fernão Soares de Quinhones, é um trovador que acusa uma nítida influência provençal nas suas outras cantigas, nomeadamente em B 1555, uma sátira contra um fidalgo de má reputação recheada de galicismos.
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podia atingir uma elevada qualidade artística e exigir uma mestria pelo menos idêntica à das composições totalmente originais. Mas o seguir parece que poderia também ser a capa para variados plágios, como as alusões de alguns trovadores a roubos e ocultações várias parecem confirmar. De facto, como faz notar D'Heur, esta maneira «ne va (...) ni sans altercations poétiques, ni sans contestation entre les auteurs, même si la notion médiévale de propriété littéraire, de pillage, de dol et de vol, est envisagée dans une optique fort différente de celle des modernes»1. De entre as várias cantigas que referem o assunto do plágio2, a mais pormenorizada e, portanto, a mais valiosa como documento para aquilo que nos interessa neste momento, é esta do trovador Gonçalo Anes do Vinhal (V 1007): Maestre, tôdolos vossos cantares já quê filham sempre d'um a razom e outrossi ar filham a mi som; e nom seguides [i] outros milhares, senom aquestes de Cornoalha; mais este[s] seguides bem, sem falha, e, ai trobador, per tantos logares. D'amor e d'escarnh', em todas razões, os seguides sempre; [e] bem provado eu o sei que [os] havedes filhado; ca, se ar seguíssedes outros sões, nom trobaríades peior por en; pero seguides os nossos mui bem e já ogan'i fezestes tenções, em razom d'um escarnho que filhastes e nom [no-lo] metestes ascondudo; ca já quê era de Pedr[o] Agudo essa razom em que vós i trobastes; mais assi a soubestes vós deitar antr'ũas rimas e entravincar, que toda vo-la na vossa tornastes. Par maestria soubestes saber da razom alhea vossa fazer e seguir sões, a que vos deitastes.
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Op. cit.., p. 376. Citemos, para além da que em seguida se transcreve, B 485, V 68 (de Afonso X) e V 1022, esta última uma tenção do ciclo do jogral Lourenço já antes referida. 2
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E gram careza fezestes, de pram; mais los trobadores travar-vos-am já quê nos tempos, que bem nom guardastes. Como se vê, a cantiga parece associar, de certa forma, a noção de seguir à noção de plágio, na denúncia deste maestre anónimo que filhava os cantares do trovador e dos seus colegas, sem sequer mostrar habilidade suficiente para meter o roubo ascondudo. Talvez, no entanto, o termo seguir tenha aqui um sentido algo irónico – seria a utilização recorrente desta «maneira» por parte do maestre («D'amor e d'escarnh', em todas razões,/ os seguides sempre») que confirmaria as suspeitas de roubo e incapacidade para produzir qualquer peça original. Assim, é provável que a cantiga não seja exatamente uma condenação desta maneira trovadoresca, mas simplesmente a denúncia dos oportunismos que se poderiam fazer à sua sombra. De qualquer modo, é interessante, até como apêndice ao texto da «Arte de Trovar», verificar que o trovador acusa o anónimo cavaleiro de duas espécies de roubo: os seus cantares «já quê filham sempre d'um a razom/ e outrossi ar filham a mi som». Por razom, termo muito utilizado pelos trovadores (e que teremos oportunidade de analisar melhor), deve entender-se a ideia geral da cantiga, temática mas também formal («ca já quê era de Pedr[o] Agudo/ essa razom em que vós i trobastes;/ mais assi a soubestes vós deitar/ antr'ũas rimas e entravincar,/ que toda vo-la na vossa tornastes») – e roubar uma razom era pelo menos tão grave como roubar o som, a melodia, outra das acusações que aqui se faz. Fazer de uma razom alheia uma razom própria, bem como seguir encobertamente sões, era, como se diz na primeira finda, a maestria deste mestre – ironia que não deixará de aludir à mestria que uma verdadeira cantiga de seguir exigiria1. O seguir podia pois originar protestos, como este poderá ser. Mesmo que o conceito medieval de propriedade literária fosse, como diz D'Heur, diferente do atual, não há dúvida que o lucro (tanto material como social) que uma boa cantiga podia proporcionar ao seu autor não o deixaria ficar indiferente aos abusos. Mas estamos em crer que esses protestos visavam mais, como nesta cantiga, o seguir «ascondudo», ou seja, o plágio, do que o verdadeiro trabalho, por vezes brilhante, sobre cantigas anteriores que os exemplos antes focados claramente denotam.
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A ironia em torno do termo maestria estender-se-á também às cantigas de mestria, as mais prezadas pelos trovadores, e aquelas que este mestre preferiria copiar.
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2. Outras categorias e recursos satíricos
Com a definição das cantigas de seguir, acaba a matéria que a «Arte de Trovar» dedica às formas e maneiras de trovar. Como vimos, as suas categorias ajudam, de facto, a definir a arte satírica galego-portuguesa. Apesar, pois, do seu inegável valor para o estudo da poética da escola, este pequeno tratado é, no entanto, um documento incompleto. No que diz respeito às formas cultivadas por trovadores e jograis, nenhuma referência se faz, como dissemos, a uma das categorias tradicionalmente relacionadas com as cantigas satíricas, o chamado sirventês, nem a uma forma em que isso também acontece, o descordo, categorias que, não ocupando propriamente um lugar preponderante nas cantigas conservadas, nelas ocupam, no entanto, um lugar definido (e, aliás, à primeira vista, com um muito maior grau de individualização do que as cantigas de vilão ou as cantigas de seguir). As razões para esta ausência podem ser variadas, mas não se prenderão certamente com o facto de ser este um texto fragmentário, já que, como parece, era no título III, que acabámos de analisar, que se procedia à definição de géneros e formas – título que, em princípio (e se excetuarmos a lacuna inicial), parece estar completo1. Se a «Arte de Trovar» nada nos diz, pois, sobre estas categorias, teremos que procurar nos próprios Cancioneiros, pelos exemplos e pelas alusões, os elementos para a sua discussão e, se possível, definição. Esta análise dos textos conservados nos Cancioneiros permitir-nos-á ainda a recolha de numerosos dados suplementares, não só sobre a provável existência de outras «maneiras», mas também sobre os recursos satíricos utilizados de uma forma continuada pelos trovadores e jograis galego-portugueses, questões igualmente essenciais para uma visão mais fiel da arte satírica da escola (e mesmo, particularmente, para a leitura de muitas cantigas). São os resultados desse trabalho que iremos apresentar em seguida.
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E é quase certo que o sirventês e o descordo não estariam incluídos nos três capítulos iniciais que faltam a este título que, como dissemos, muito possivelmente diriam respeito às cantigas de amor e de amigo.
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a) Sirventês O termo «sirventês» costuma aplicar-se a uma cantiga cujo caráter, distinto da crítica pessoalizada das outras cantigas satíricas, é eminente e genericamente moral. O termo levanta, no entanto, alguns problemas que necessitam de ser elucidados. A palavra «sirventês» aparece uma única vez nos Cancioneiros, e em circunstâncias muito especiais. Ela surge, de facto, numa tenção entre o trovador João Soares Coelho e o jogral Picandon (V 1021), jogral ao serviço do trovador provençal (de origem italiana) Sordelo que durante alguns anos residiu na Península. E é exactamente na boca de Picandon que surge o termo «sirventês». O contexto é a habitual disputa de competências na arte de trovar. Defendendo-se das acusações de não saber jograria, Picandon afirma, na primeira cobra da sua resposta: (...) - Joam Soares, logo vos é dado e mostrar-vo-l'-ei em poucas razões: gram dereit'hei de gaar [muitos] dões e de seer em corte tam preçado como segrel que diga mui bem ves, em canções e cobras, e serventés, e que seja de falimen guardado. (...) Picandon trova aqui em galego-português, mas é visível, como anota Rodrigues Lapa, que ele «capricharia em meter na tenção um pouco do seu provençal». O que ele faz com os termos da linguagem corrente (como o termo falimen por «falta», «erro»), mas também, estamos em crer, com vocabulário que especificamente diz respeito à arte de trovar: para além de esta ser igualmente uma das poucas ocorrências, nos Cancioneiros, do termo «segrel»1, parece-nos, de facto, que a enumeração dos vários tipos de cantigas que aqui é feita (e por cuja mestria se distinguiria um bom «segrel») provém da cultura e da escola trovadoresca provençal que era a sua e cujos termos, portanto, utiliza. Canções, por exemplo, é um termo tipicamente provençal, termo que os trovadores galego-portugueses não utilizam nunca para designar os seus cantares. Cobras também parece aqui designar um tipo específico de cantiga e não ter o sentido vulgar de «estrofe» que lhe dão os trovadores ibéricos. E da mesma forma surgiria o
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Na segunda estrofe da sua resposta surge igualmente a invulgar expressão «home de segre». Adiante teremos oportunidade de nos referirmos mais datalhadamente ao assunto.
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termo sirventés, termo utilizado na escola provençal para designar genericamente as cantigas satíricas. Esta única ocorrência do termo «sirventês» nos Cancioneiros (e o termo não aparece também em nenhuma das suas rubricas, como acontece com todos os outros que citados pela «Arte de Trovar» e com o descordo, de que adiante trataremos), leva-nos a pensar que, pelo menos como palavra, ele não faria parte do vocabulário poético especificamente galego-português. O que significa que ele não designaria, pois, um género de cantiga com caraterísticas próprias, reconhecido como tal pelos trovadores (o que poderia igualmente explicar a sua ausência na «Arte de Trovar»). De facto, o uso do termo «sirventês» para designar algumas cantigas que, pela sua temática, se individualizam fortemente no corpus satírico galego-português não provém de uma tradição linguística atestada nos Cancioneiros, mas sim de uma tradição de estudiosos que o recuperaram do vocabulário provençal, de forma a diferenciar no corpus galegoportuguês (e nem sempre de forma precisa) esse grupo mais ou menos determinado de cantigas, aquelas em que a dimensão moral é preponderante. Essa dimensão moral de uma crítica mais ou menos abstratizante (dirigida ao mundo ou aos tempos) parece, de facto, alheia à escola galego-portuguesa das cantigas de escárnio e de maldizer – na generalidade, como dissemos, individualmente endereçadas – e provir, pois, quando isso acontece, do contacto com uma tradição exterior, exatamente a tradição da escola provençal, onde cantigas deste género não são raras. O facto de um dos maiores cultores deste tipo de cantigas na escola galegoportuguesa ser um trovador em que a influência provençal é notória, o clérigo Martim Moxa (quatro ou mesmo seis das catorze cantigas que podemos considerar «sirventeses» são da sua autoria1), confirma, de certa forma esta hipótese. Mas se o sirventês não era, pois, uma forma específica reconhecida como tal na escola trovadoresca galego-portuguesa, mas simplesmente um termo proveniente de uma tradição alheia (paralelo, nessa medida ao escárnio e ao maldizer galegoportugueses), isso não significa que esse termo não tenha a sua validade como designação diferenciadora do grupo de cantigas referido. O problema está, como
1 Este número de catorze será adiante discutido. A hesitação entre quatro ou seis cantigas a atribuir a Martim Moxa provém do facto de um dos sirventeses ser anónimo (A 305), ainda que a maioria dos estudiosos esteja, no entanto, de acordo em dar como seu provável autor este trovador; quanto ao outro (B 888, V 472=1036), podendo ser de Moxa, também a sua autoria é bastante incerta e polémica.
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dissemos, na delimitação precisa do seu âmbito (e, portanto, das cantigas a incluir no grupo). Seguindo um critério restrito – o das cantigas de intenção moral geral, visões pessimistas do mundo e da sociedade como um todo – as catorze cantigas de que falámos seriam as únicas que poderíamos rigorosamente chamar sirventeses1. Mas o próprio Rodrigues Lapa não segue este critério restrito, e designa de sirventeses as cantigas que, mesmo sendo pessoalmente endereçadas, lhe parecem ter uma intenção moralizante mais geral. A subjetividade deste processo é evidente. Ela será talvez inevitável, dada a imprecisão do próprio termo na sua origem. Se quiséssemos, aliás, seguir a lógica da designação – a da sátira à maneira provençal – muitas outras cantigas caberiam nesta designação, nomeadamente as que, de uma forma ou de outra, caem na esfera do político, o que acontece habitualtemente no sirventês provençal. Nesta medida, sirventeses seriam, por exemplo, todas as cantigas de Afonso X relativas às campanhas da Andaluzia, quer as que tratam da traição dos cavaleiros, quer as que nos pintam o terror dos coteifes e cavaleiros-vilãos no próprio campo de batalha. É inegável que estas cantigas (bem como as relativas à traição dos alcaides na deposição de D. Sancho II) têm um alcance muito distinto das invetivas contra uma soldadeira ou da denúncia de um clérigo libidinoso. A sua esfera, não sendo propriamente moral, em sentido abstrato, é social, e a seriedade da crítica transparece por detrás do caráter mais ou menos jocoso de todas elas. Mas também este critério alargado de sirventês nos coloca novamente face ao insolúvel problema de saber onde acaba o político e começa o pessoal. Damos um exemplo concreto. Para Epifanio Ramos, autor de um discutível mas curioso pequeno livro sobre as cantigas de escárnio e maldizer de Afonso X2, o sentido destas cantigas é indissociável do facto de o seu autor ser ao mesmo tempo rei, o que conferiria a todas elas, mesmo àquelas que aparentemente são mais «privadas», uma dimensão de tomada de posição pública, e portanto política, inegável. Sem chegarmos ao ponto de ver esta dimensão na cantiga que relata o seu encontro com uma soldadeira «blasfema» e que citámos na introdução deste estudo, estamos em crer que algo de tomada de posição pública poderia, de facto, transparecer numa sátira como a que o rei faz contra o deão de Cádiz, a propósito do seu gosto pelos livros eróticos (B 493, V 76), para darmos apenas
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Para a indicação destas cantigas vide a Base de Dados Cantigas Medievais Galego-Portuguesas. As cantigas de escarnio y maldecir de Afonso X, Ed. do autor, Lugo 1973.
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um exemplo. De facto, e em princípio, o peso político do seu autor não seria um fator irrelevante no modo como cantigas como esta, aparentemente de sátira pessoal, poderiam ser recebidas pelo seu auditório. Também muitas outras cantigas dos Cancioneiros parecem funcionar num território onde é difícil decidir onde acaba o privado e começa o público ou político. Teremos ocasião de retomar este assunto. A designação alargada de sirventês levanta, pois, mais problemas do que os que resolve. A termos de utilizar o termo com algum proveito, cremos que a designação restrita acima proposta faz mais sentido e será, portanto, preferível.
h) Descordo Ao contrário do sirventês, o descordo é um termo cujas ocorrências nos Cancioneiros são indicativos claros da sua existência como categoria definida na arte trovadoresca galego-portuguesa. O termo aparece duas vezes: na rubrica, já antes citada, que precede uma cantiga de Lopo Lias (B 1355, V 963) (Este cantar fez a som d’um descor...) e no próprio final de uma cantiga-sirventês de Nuno Anes Cerzeo (B 135), cuja finda diz: (...) Assi querrei buscar viver outra vida, que provarei, e meu descord'acabarei. O descordo era, como se vê, uma categoria reconhecida na escola galegoportuguesa. Trata-se, neste caso, não de uma «maneira», mas mais propriamente de uma forma poética, caracterizada essencialmente pela irregularidade do esquema métrico e estrófico (pelo que podemos concluir dos exemplares que nos chegaram: sobre a música, mais uma vez não temos informações) – o nome de «descordo» provindo exatamente do «desacordo» que reinava ao longo das estrofes da composição1. Esta forma não era, de maneira nenhuma, exclusiva das cantigas satíricas (as poéticas provençais apresentam-na como uma variante da cançó de amor), ainda que, mais uma 1
Vide Jean-Marie D'Heur «Des Descorts Occitans et des Descordos Galiciens-Portugais», in Zeitschrift fur romanishe Philologie, nº 84, 1968, pp. 323-339.
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vez, os únicos exemplares galego-portugueses seguros que nos chegaram (as duas cantigas atrás citadas, e uma outra composição de João Servando (V 1030), uma sátira relativamente obscena contra o prelado D. Domingo Caorinha1) pertençam, em princípio, a este género2. A relativa complexidade desta forma, bem como a sua raridade nos Cancioneiros indicam-nos que se trataria, de facto, de uma forma importada da Provença, e que os trovadores galego-portugueses nunca terão feito inteiramente sua (o que, mais uma vez, ajudaria a explicar a sua ausência na «Arte de Trovar»). De qualquer forma, o descordo, com a sua indiscutível especificidade, tem, ao contrário do sirventês, um lugar bem definido na poética galego-portuguesa, lugar que os trovadores certamente lhe reconheceriam.
Tudo o que atrás ficou dito pode ser considerado a parte mais conhecida do quadro geral da poética que definia, na escola galego-portuguesa, a arte de «dizer mal». A imprecisão de alguns dos conceitos, nomeadamente a própria distinção entre o escárnio e o maldizer, longe de pesarem desfavoravelmente no crédito da escola, são, a nosso ver, mais uma prova da sua enorme vitalidade – vitalidade que nem sempre o pequeno tratado de arte poética de que especialmente nos servimos abarca de forma eficaz, na sua tentativa de reduzir a diversidade a regras escolasticamente compreensíveis e prescritivas. Entendidas como quadro geral, a análise destas regras (quer as que dizem respeito aos géneros, quer as definem suas «maneiras») revela-se, no entanto, útil, até como indicador de que o tipo de poesia de que nos ocupamos exigia a trovadores e jograis uma mestria pelo menos idêntica à dos cantares de carácter lírico-amoroso, mestria que o público deveria certamente reconhecer e aplaudir. É o que se depreende, por exemplo, do lamento, em tons pessimistas, que encontramos num dos «sirventeses» de Martim Moxa (B 896, V 481): «vej'achegados,/ loados,/ de muitos amados/ os de maldizer». Este apreço pela arte satírica, sinal da decadência dos tempos para Martim
1
O primitivo número de 5 descordos galego-portugueses apontado por Carolina Michaëlis (CA, II, p. 89) tem vindo a ser objeto de discussão e consequente redução. Um exemplo é o caso de uma das cantigas de amor de Afonso X (B 470), à qual Colocci tinha aposto a nota de «discor», e que fazia parte desta lista primitiva. Jean-Marie D'Heur, no artigo atrás citado, discorda desta classificação e retira-a da lista. Outros casos problemáticos são ainda discutidos neste artigo, que conclui por considerar descordos apenas as duas cantigas primeiras que citámos. Tavani refere, com algumas reservas, a terceira, opinião que partilhamos. 2 Na verdade, o descordo de Cerzeo parece hesitar entre a cantiga de amor e o sirventês moral, motivo pelo qual o seu género terá de ser considerado incerto.
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Moxa (que, no entanto, não deixou de a praticar em várias formas), era certamente também o apreço por uma arte de múltiplos recursos, recursos esses que extravasam em muito o pequeno tratado de «Arte de Trovar» que analisámos. Mesmo aí, no entanto, não deixa de ser referido um exemplo de um destes recursos, na breve e, como vimos, algo confusa alusão ao conceito de equivocatio. Mas, sendo inegavelmente o equivocatio um dos mais importantes e comuns recursos satíricos presentes nos Cancioneiros, ele não é, evidentemente, o único. Ainda que seja impossível inventariar exaustivamente todos os processos utilizados por trovadores e jograis na sua acabada arte de «dizer mal» – até porque, muitas vezes, cada cantiga é um achado irrepetivel – procuraremos, em seguida, referenciar alguns dos que certamente contribuiriam para que fossem «loados,/ de muitos amados/ os de maldizer».
e) Variações na invetiva O maldizer aposto As cantigas de escárnio e maldizer, já o dissemos, são feitas, na sua esmagadora maioria, contra alvos muito concretos. Um dos mais interessantes recursos utilizados pelos trovadores e jograis galego-portugueses nestas cantigas satíricas diz respeito, exatamente, às variações na forma de dirigir a sátira ao visado. Nem sempre, de facto, os trovadores seguem o mais evidente processo da crítica direta, pela exposição da sua própria opinião ou pelo relato de uma cena presenciada ou ouvida – processo que, como Tavani estudou, se desenvolve geralmente sob a figura da apóstrofe à personagem escarnecida ou a um outro interlocutor, em ambos os casos podendo processar-se de uma forma mais ou menos direta1 Ainda que este processo seja o mais comum, as variações nesse modelo tradicional são frequentes e contribuem, sem dúvida, para a vivacidade da arte satírica dos Cancioneiros. O estudo dessas variações conduzir-nos-á, ao mesmo tempo, à proposta de definição de uma outra categoria (ou maneira) da poética galego-portuguesa, a do «maldizer aposto», categoria que a «Arte de Trovar» não refere, e que, talvez por isso, tenha passado completamente despercebida a todos os
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A poesia lírica..., op. cit.., p. 177-178.
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estudiosos da matéria. Antes, porém, vejamos em que podiam consistir, em traços gerais, essas variações. Uma das variações mais utilizadas por trovadores e jograis na forma de dirigir a sua sátira é a de colocar o discurso crítico em voz alheia. Repare-se, por exemplo, nesta cantiga de Afonso X, já antes referida brevemente (B 493, V 76): Ao daiam de Cález eu achei livros que lhe levavam de Berger, e o que os tragia preguntei por eles, e respondeu-m'el: - Senher, com estes livros que vós vedes, dous, e con'os outros que el tem dos sous, fod'el per eles quanto foder quer. E ainda vos end'eu mais direi: macar [e]na Lei muit'haj[a mester] leer, por quant'eu sa fazenda sei, con'os livros que tem, nom há molher a que nom faça que semelhem grous os corvos e as anguias babous, per força de foder, se x'el quiser. (...) Ao longo da cantiga quem fala não é, portanto, o trovador – que parece limitar-se à inocente pergunta inicial – mas um outro, neste caso, o anónimo portador dos livros, para cuja voz a denúncia é aparentemente transferida. Processo semelhante encontramos numa cantiga de Pero da Ponte, dirigida contra um infanção pelintra (B 1637, V 1171), e que também é posta praticamente toda em voz alheia. Transcrevemos a primeira das suas duas estrofes: Quand'eu d'Olide saí, preguntei por Aivar; e disse-mi log'assi aquel que foi preguntar: - Senhor, vós creed'a mi, que o sei mui bem contar: Eu vos contarei quant'há daqui a cas Dom Xemeno: um dia mui grand'há i, e um jantar mui pequeno. Este mesmo processo da pergunta retórica que encontramos nos dois exemplos anteriores – pergunta retórica que nem por isso deixa de contribuir para a originalidade da cantiga – pode também desenvolver-se num jogo de pergunta-resposta alargado ao
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longo da composição e mais intencionalmente irónico. E o que acontece nesta cantiga de Estêvão da Guarda (B 1300, V 904): A um corretor que vi vender panos, que conhoci, com penas veiras, diss'assi: - Da molher som de Dom Foam. E disse-m'el: - Vendem quant'ham, el e aquesta sa molher: ham-no mester, ham-no mester! E diss'eu: - Ficará em cós sem estes panos de vergrós; mais pois que os tragedes vós a vender e par seu talam? E disse-m'el: - Sei eu, de pram, per ela, quanto vos disser: ham-no mester, ham-no mester! E diss'eu: - Grav'é de creer que eles, com mêngua d'haver, mandem taes panos vender, por quam pouco por eles dam. E disse-m'el: - Per com'estam, el e aquesta sa molher, ham-no mester, ham-no mester! É evidente que aqui a voz do trovador, na sua aparente e ingénua incredulidade, mais não é do que um engenhoso processo de amplificar a pelintrice do casal, repetidamente afirmada pelo irónico refrão, posto na boca do vendedor: «ham-no mester, ham-no mester!». Processo semelhante, ainda que de intenção mais séria, está na base desta cantiga em diálogo de Fernão Pais de Tamalhancos, visando uma sua prima abadessa (B 1337, V 944): Quand'eu passei per Dormãa preguntei por mia coirmãa, a salva e [a] paçãa. Disserom: - Nom é aqui essa, alhur buscade vós essa; mais é aqui a abadessa. Preguntei: - Por caridade, u é daqui salvidade 115
que sempr'amou castidade? Disserom: - Nom é aqui essa, alhur buscade vós essa; mais é aqui a abadessa. Como se vê, a força da acusação provém também aqui do contraste entre a pergunta «inocente» e resposta-refrão das monjas do convento (para cuja voz a crítica se transfere). Este processo de transferência da crítica para voz alheia, é desenvolvido ainda por alguns trovadores em formas mais complexas, como acontece nesta cantiga, de rigoroso fundo histórico, de João Soares Somesso (B 104): Ogan', em Muïmenta, disse Dom Martim Gil: - Viv'em mui gram tormenta Dona Orrac'Abril per como a quer casar seu pai; e a quem lho enmenta: cedo moira no Sil e ela, se se com Chora vai. (...) Aqui, e depois de um curto prólogo, quem fala e relata o caso em questão já não é, como nos exemplos anteriores, uma personagem anónima, verdadeiro alter-ego do poeta (ou um seu adjuvante), mas um dos intervenientes na história, que fez escândalo na época: neste caso, Martim Gil de Soverosa, o pretendente rejeitado da rica-dona D. Urraca Abril, a quem seu pai tinha obrigado a casar com João Martins de Riba de Vizela, dito o Chora, também referido. A utilização deste processo de narração transferida para discurso direto, sendo uma engenhosa maneira de, sinteticamente, referenciar todos os protagonistas do escândalo, confere ao mesmo tempo à cantiga uma força dramática suplementar (reforçada, aliás, pelo tom de relato, aparentemente objetivo, das palavras de Martim Gil, sobre quem nunca nos é dito nada). Processo pelo menos tão frequente como que este de transferir a crítica para voz alheia, é o de dar a palavra ao próprio visado, transcrevendo um seu hipotético ou talvez mesmo real discurso. O primeiro caso pode ser bem exemplificado por esta cantiga de João Vasques de Talaveira, onde a soldadeira Maria Leve confessa a sua vida desregrada e lamenta a sua velhice (B 1548):
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Maria Leve, u se maenfestava, direi-vos ora o que confessava: - Sõo velh', ai capelam! Nom sei hoj'eu mais pecado[r] burguesa de mim; mais vede-lo que mi mais pesa: sõo velh', ai capelam! Sempr[e] eu pequei, des que fui foduda, pero direi-vos per que [som] perduda: sõo velh', ai capelam! Este processo é também o utilizado por Afonso X numa cantiga de cariz político, escrita sendo ainda infante, e relacionada com os problemas da sucessão e com os conflitos que então manteve com seu irmão D. Henrique. O que a cantiga sobretudo denuncia é o papel de instigador alegadamente desempenhado pelo mordomo deste último, D. Rodrigo, a quem é dada aqui a palavra (B 464): Dom Rodrigo, moordomo, que bem pôs a 'l-rei a mesa quando diss'a Dom Anrique: - Pois a vosso padre pesa, nom lhi [de]des o castelo - esto vos digo de chão e dar-vos-ei em ajuda muito coteife vilão. E dos poldrancos de Campos levarei grandes companhas e dar-vos-ei em ajuda tôdolos de Val de Canhas (...) A cantiga continua com a «transcrição» do discurso do mordomo, «transcrição» suficientemente irónica para poder ser entendida como mero processo retórico de crítica («Levarei Fernando Teles com gram peça de peões,/ todos calvos e sem lanças e com grandes sapatões», «diz», por exemplo, D. Rodrigo na terceira estrofe). Se nos dois exemplos anteriores as palavras postas na boca dos visados são claramente discursos fictícios, por vezes o trovador parece transcrever um discurso real, partindo do pressuposto de que as palavras do acusado não necessitam de comentários e a sua mera transcrição é já de si «incriminatória». E o processo seguido pelo mesmo Afonso X na cantiga, já referida, onde ouvimos o lamento de uma soldadeira (B 484, V 67). Também Gil Peres Conde utiliza este mesmo processo de dar voz ao visado, nesta cantiga contra um porteiro prepotente (B 1521):
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Um porteir'há em cas d'el-rei que me conhoc'e, onde quer que me veja, logo me fer ou me diz: - Nom vos colherei; sempre por vós esto farei, cada que m'houverdes mester. Diz-m'el, porque xi mi quer bem: - Queredes com el-rei falar? E nom vos leixarei entrar, como quer que m'avenha en; se vos pormeter algũa rem, nom vo-lo farei recadar..(...)1 Com algumas variações, é este também o processo seguido por Airas Nunes, nesta sátira a uma cena «de capela» («verdadeira briga de campanário» lhe chama Rodrigues Lapa), cuja força irónica reside exatamente na transcrição, sem comentários, de um diálogo entre duas personagens do alto clero, um bispo e o seu arcebispo, este último eleito mas ainda não confirmado (B 1601, V 1133)2: Achou-s'um bispo que eu sei um dia cõn'o eleit'e sol nom lhe falou; e o eleito se maravilhou, e foi a el e assi lhe dizia: - Que bispo sodes, se Deus vos perdom, que passastes ora per mim e nom me falastes e fostes vossa via? E diz o bispo: - Nom vos conhocia, se Deus me valha, ca des que naci nunca convosco falei nem vos vi, e assi conhocer nom vos podia; e por en, se me algur convosco achar e vos nom conhocer, nem vos falar, nom mi o tenhades vós por vilania. E di'lo eleit': - Assi Deus me valha, [já todos aqui] m'ham de conhocer;
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Para Rodrigues Lapa, esta cantiga visaria também, de uma forma indireta, a fraqueza do rei, incapaz de controlar os seus servidores mais próximos. 2 O episódio datará talvez de 1286/1289, e relacionar-se-á com a nomeação papal de Rodrigo González como arcebispo de Santiago de Compostela, nomeação muito contestada pelo clero local, que não via com bons olhos a ânsia moralizadora e reformista do novo arcebispo. A composição está bastante danificada na estrofe final, cujos fragmentos só são transcritos pelo Cancioneiro da Biblioteca Nacional, e que, por isso mesmo, não transcrevemos aqui.
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e o que o assi nom quer fazer nom é bispo nem val ũa mealha; e vós tal bispo sodes, cuido-m'eu, que nom sabedes quem me sõo eu, nem [dades por mi] valor d'ũa palha (...) A transcrição de um diálogo é também o recurso de uma das mais curiosas cantigas satíricas dos Cancioneiros, da autoria do jogral João Baveca (B 1458, V 1068). O diálogo é, desta vez, entre duas soldadeiras, e a sua «transcrição» permite um efeito de realismo notável1: Estavam hoje duas soldadeiras dizendo bem, a gram pressa, de si, e viu a ũa delas as olheiras de sa companheira, e diss'assi: - Que enrugadas olheiras teendes! E diss'a outra: - Vós com'ar veedes desses ca[belos sobr'essas trincheiras]? E .............................................. ................................................. ................................................. .............. en'esse rostro. E des i diss'el'outra vez: - Já vós doit'havedes; mais tomad'aquest'espelh'e veeredes tôdalas vossas sobrancelhas veiras. E ambas elas eram companheiras, e diss'a ũa em jogo outrossi: - Pero nós ambas somos muit'arteiras, milhor conhosc'eu vós ca vós [a] mim. E diss'[a] outra: - Vós que conhocedes a mim tam bem, porque nom entendedes como som covas essas caaveiras? E depois tomarom senhas masseiras e banharom-se e loavam-s'assi; e quis Deus que, nas palavras primeiras que houverom, que chegass'eu ali; e diss'a ũa: - Mole ventr'havedes; e diss'a outr': - E vós mal o 'scondedes, as tetas que semelham cevadeiras.
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A cantiga está, infelizmente, em muito mau estado nos manuscritos, e faltam-lhe, pelo menos, os três primeiros versos da segunda estrofe.
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O processo aqui seguido é, pois, o de (de aparentemente documental – mas este efeito é reforçado pela presença do jogral que «vê» a cena) deixar as soldadeiras falar num momento de intimidade, processo que permite, sem dúvida, a João Baveca traçar um dos retratos mais vivos e originais dos Cancioneiros. De qualquer forma, e mesmo que se repitam os «testemunhos» dos autores, como este de João Baveca, o facto é que, em todas as «transcrições» de discursos dos visados, mesmo nas mais «realistas», há sempre, evidentemente, uma parte de construção. Isto significa que a distinção que fizemos entre discursos fictícios e discursos reais deve ser entendida mais como uma chamada de atenção para dois modelos do que como uma linha divisória absoluta. Até porque, de facto, nalgumas cantigas é muito difícil fazer tal demarcação. É o caso, por exemplo, desta outra sátira de Pero da Ponte, novamente contra um infanção pelintra, que decide, por uma vez, abrir os cordões â bolsa e comer o tão desejado salmão, e cujo discurso, à primeira vista, parece assaz verosímil ou «real» (B 1632, V 1166): Noutro dia, em Carrion, queria[m] um salmom vender, e chegou i um infançom; e, tanto que o foi veer, creceu-lhi del tal coraçom que diss'a um seu hom'entom: - Peixota quer'hoj'eu comer. Ca muit'há já que nom comi salmom, que sempre desejei; mais, pois que o ach'ora aqui, já custa nom recearei, que hoj'eu nom cômia, de pram, bem da peixota e do pam, que muit'há que bem nom ceei. Mais, pois aqui salmom achei, querrei hoj'eu mui bem cear, ca nom sei u mi o acharei, des que me for deste logar; e do salmom que ora vi, ante que x'o levem dali, vai-m'ũa peixota comprar. Nom quer'eu custa recear, pois salmom fresco acho, Sinher!
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Mais quero ir bem del assũar por enviar a mia molher (que morre por el outrossi) da balea que vej'aqui; e depois quite quem poder! Se lermos a cantiga (como faz Lapa) apenas como mais um retrato de um infanção pelintra, esta transferência de voz para o próprio parece destinar-se apenas a dar uma especial força de realismo a este tema tradicional. Descontando a hipérbole final da «baleia» (v. 27), Pero da Ponte parece, de facto, relatar um discurso ouvido a um infanção naquela sua passagem por Carrion. É bem possível, no entanto, que o sentido desta cantiga seja menos inocente, já que também aqui poderá haver um jogo com o equivocatio de ordem sexual, centrado exatamente no termo «peixota». O termo reaparece, de facto, numa outra cantiga do mesmo Pero da Ponte (B 1653, V 1187), desta vez claramente como uma alcunha de uma soldadeira (a Peixota). Esta segunda cantiga, que joga com os tradicionais duplos sentidos ligados ao universo da comida, alude igualmente a um salmão. Ainda que essas alusões ao salmão e à «peixota» sejam, hoje em dia, difíceis de entender cabalmente, elas têm aí um claro valor sexual, parecendo-nos, aliás, possível que digam respeito ao universo das relações homossexuais (mais do que a relações com soldadeiras, como pensa Lapa). Se essa cantiga e esta que transcrevemos têm relação entre si, como nos parece terem, é evidente que o discurso do infanção «transcrito» acima não será tão inocente como à primeira vista parece. Assim se entenderia, por exemplo, e a um outro nível, a alusão final à mulher do infanção1. A aceitarmos esta outra leitura, é evidente que a «verosimilhança» do discurso do visado desaparece totalmente e dar-lhe voz seria apenas acentuar ironica e retoricamente a acusação. Todos os exemplos que temos vindo a dar de cantigas onde a sátira é posta em discurso alheio (o do próprio ou de uma outra personagem) fazem-no de uma maneira clara, geralmente partindo de uma breve introdução explicativa da cena ou das circunstâncias em que teriam ocorrido as palavras que se vão transcrever. Acontece que este processo da transferência da voz pode ser ainda mais completo. De facto, encontramos nos Cancioneiros várias cantigas em que o trovador põe uma outra 1
Acrescente-se, como curiosidade suplementar, que Carriola (eventualmente, de Carrion) é uma das alcunhas dadas ao meirinho-mor Fernão Dias, cujos gostos homossexuais foram objeto de inúmeras chufas pelos trovadores do círculo afonsino.
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personagem diretamente a falar (geralmente o visado, mas nem sempre), sem qualquer espécie de introdução ou aviso prévio. Ao ouvinte ou ao leitor cabe a tarefa de entender que o «eu» que fala não é o próprio trovador, como acontece geralmente, mas um outro, cujo discurso a cantiga se limita (de uma forma quase teatral) a «transcrever». Esse entendimento é, nalguns casos, evidente, como nesta cantiga do ciclo que Lopo Lias dedicou aos infanções Lemos (B 1346, V 953): Sela aleivosa, em mao dia te vi; por teu cantar já Rodrigo perdi; riiu-s'el-rei e mia esposa de mi. Leixar-te quero, mia sela, por en; e irei em osso e baratarei bem ( ...) Fazendo parte de um ciclo de doze cantigas que o trovador dedica às mesmas personagens (e de que adiante falaremos mais detalhadamente), o processo de transferência para voz alheia é aqui facilmente descodificável, e a cantiga é, pois, também facilmente entendida como o discurso do próprio visado. O mesmo acontece nesta sátira de Afonso X contra uma personagem de nome Gris, provavelmente uma soldadeira, que acusava um romeiro de lhe ter roubado todos os seus haveres. Pelo que se subentende da cantiga, a história seria outra e teria a ver com as relações da soldadeira com esse romeiro (e também com um judeu, que serve de testemunha). A cantiga é posta na voz de um terceiro que alegadamente, e de uma forma curiosa até porque historicamente muito realista, se dirige ao rei «pedindo justiça» e «defendendo» a dita Gris (L. 13): Senhor, justiça viimos pedir que nos façades, e faredes bem: d'a Gris furtarom tanto, que por en nom lhi leixarom que possa cobrir; pero atant'aprendi d'um judeu: que este furto fez uum romeu, que foi já [ante] outros escarnir.( ...) E tenho que nos nom veo mentir, pelos sinaes que nos el diss'en ca eno rostr'o trage, [e] nom tem por direito de s'end'el encobrir; e se aquesto sofredes, bem lheu querram a outr'assi furtá-l'o seu, de que pode mui gram dano viir. 122
É romeu que Deus assi quer servir - por levar tal furt'a Jelusalém! E sol nom cata como Gris nom tem [já] nunca cousa de que se cobrir; ca todo quanto el [i] despendeu e deu, dali foi - tod'aquesto sei eu e quant[o] el foi levar e vistir. Até pela paródica utilização, em abertura, da fórmula tradicional de «pedir justiça» ao rei, a cantiga é também facilmente entendida como um discurso alheio. O facto de esta voz não ser aqui diretamente a do visado, é apenas mais uma variação que não altera significamente o processo. Variação idêntica, ainda que sobre temática muito diferente, encontramos na única cantiga do jogral Diego Pezelho que até nós chegou. Trata-se de uma mordente sátira (para utilizarmos as palavras de Lapa) contra os alcaides ditos traidores ao rei D. Sancho II (por terem entregado os seus castelos ao seu irmão, o futuro Afonso III), mas uma sátira que assume a forma de uma «súplica» a um arcebispo, posta na voz de um dos alcaides que se mantiveram fiéis ao rei, mesmo contra todas as excomunhões a que foram sujeitos (B 1592, V 1124): Meu senhor arcebispo, and'eu escomungado porque fiz lealdade: enganou-mi o pecado. Soltade-m', ai, senhor, e jurarei, mandado, que seja traedor. Se traiçom fezesse, nunca vo-la diria; mais, pois fiz lealdade, vel por Santa Maria, soltade-m', ai, senhor, e jurarei, mandado, que seja traedor. Per mia malaventura, tivi um castelo em Sousa e dei-o a seu don'e tenho que fiz gram cousa. Soltade-m', ai, senhor, e jurarei, mandado, que seja traedor. Per meus negros pecados, tive um castelo forte e dei-o a seu dono, e hei medo da morte. Soltade-m', ai, senhor, e jurarei, mandado, que seja traedor.
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Esta transferência da voz para o alcaide do castelo de Sousa (e, se mais não fosse, também aqui esta a referência a Sousa bastaria para clarificar o sentido da cantiga), sendo um dos momentos mais perfeitamente teatrais dos Cancioneiros, é, igualmente, um dos exemplos mais acabados da eficácia deste recurso satírico. Qualquer destas três últimas cantigas ditas na 1ª pessoa podem pois, sem grandes dificuldades, ser entendidas, mesmo sem aviso prévio, como discursos de um outro, que não o trovador. Mas o que acontece é que nem sempre as coisas se passam de forma tão óbvia. Repare-se, por exemplo, nesta cantiga de Martim Soares (B 1358, V 966): Nostro Senhor, com'eu ando coitado com estas manhas que mi quisestes dar: som mui gram putanheir[o] aficado e pago-me muito d'os dados jogar; des i ar hei mui gram sabor de morar per estas ruas, vivend'apartado. Podera-m'eu bem, se foss'avegoso, caer em bom prez e honrado seer; mais pago-m'eu deste foder astroso e destas tavernas e deste bever; e, pois eu já mais nom posso valer, quero-m'andar per u seja viçoso.( ...) Estaremos, de facto, face a uma confissão pública de Martim Soares, um inventário completo dos seus defeitos e vícios, como uma primeira leitura parece dar a entender? De facto, não estamos. Mas a prova de que não estamos encontramo-la apenas na rubrica que acompanha a cantiga e que diz o seguinte: «Esta outra cantiga fez a Afons'Eanes do Cotom. Foi de maldizer aposto, em que mostrava dizendo mal de si, as manhas que o outr'havia.» (sublinhados nossos). Esta rubrica é extremamente interessante por dois motivos. O primeiro é o de conferir a esta particular cantiga o seu sentido próprio. Sem ela, dificilmente um leitor atual poderia entender que não se trata de uma confissão, mas sim de um escárnio de um trovador contra um colega de profissão, utilizando o recurso da transferência de voz, ou, como diz a rubrica, recorrendo ao «maldizer aposto». Mas a rubrica é ainda importante porque nos prova que o que temos vindo a chamar transferência de voz era de facto um recurso reconhecido como tal pela escola trovadoresca, que lhe parece ter atribuído inclusivamente um nome, pelo menos nos casos em que a transferência era total – 124
exatamente o de «maldizer aposto», aqui tão claramente referido e explicado. A expressão reaparece, aliás, numa outra rubrica relativa a uma cantiga de Lopo Lias (B 1350, V 957) («Outrossi fez este cantar de maldizer aposto a ũa dona que era mui meninha e mui fremosa e fogiu ao marido; e a el prazia-lhi»), embora aqui o seu sentido não seja tão claro1. Se estas duas rubricas, com a indicação de uma categoria, são únicas nos Cancioneiros2, algumas outras rubricas clarificam igualmente a ambiguidade que um processo como este não deixa de acarretar. É o caso da célebre cantiga que o mesmo Martim Soares dedica ao escandaloso rapto de D. Elvira Anes da Maia, uma das netas do Conde D. Mem Gonçalves3, pelo infanção Rui Gomes de Briteiros (B 172). A rubrica resume exatamente os dados do caso, indicando claramente o visado (já que, por uma vez, o seu nome não é referido na própria cantiga)4. Na verdade, e ainda que o facto não costume ser realçado, é óbvio que quem fala na cantiga é o próprio raptor, Rui Gomes, ou seja, estamos perante mais um exemplo de maldizer aposto. Teremos oportunidade, mais adiante, de analisarmos mais detalhadamente a cantiga. Para o que nos interessa de momento, transcrevemos aqui apenas a primeira estrofe da composição, onde o processo se torna imediatamente visível: Pois boas donas som desemparadas e nulho hom nõn'as quer defender, non'as quer'eu leixar estar quedadas, mais quer'en duas per força prender, ou três ou quatro, quaes m'eu escolher, pois nom ham já per quem sejam vengadas: netas do Conde quer'eu cometer, que me seram mais pouc'acoomiadas! (...) O entendimento do processo satírico desta cantiga é importante, não só porque ajuda a compreender toda a verdadeira carga irónica que ela transporta, mas também por
1
Na verdade, a cantiga a que se refere esta nota não é, infelizmente, muito clara sobre o sentido desta transferência de voz. Trata-se de uma dona muito jovem que tinha fugido ao marido. O sujeito que relata o caso diz que a quer servir – mas quem será esse sujeito não se entende muito bem. 2 O termo também nunca é mencionado pela «Arte de Trovar», o que não é relevante, dadas as outras ausências já citadas. 3 Valido do rei D.Sancho I, o Conde era a cabeça da mais poderosa entre as sete principais famílias dos primeiros tempos da monarquia. Teremos ocasião de retomar o assunto. 4 Esta cantiga de cima fez Martim Soares a Roi Gomes de Briteiros, que era infançom [e se tornou] ric'homem, porque roussou Dona Elvira Anes, filha de Dom Joam Peres da Maia e de Dona Guiomar Meendes, filha del Conde Meendo.
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um motivo mais particular relacionado com a outra cantiga que, nos Cancioneiros, aborda o escândalo. A cantiga é a seguinte (A 62, B 173): Pois non hei de Dona Elvira seu amor e hei sa ira, esto farei, sem mentira: pois me vou de Santa Vaia, morarei cabo da Maia, em Doiro, antr'o Porto e Gaia. Se crevess'eu Martim Sira, nunca m'eu dali partira d'u m'el disse que a vira: em Sam [J]oan’e em saia. Morarei cabo da Maia, em Doiro, antr'o Porto e Gaia. A cantiga vem atribuída em B a Martim Soares, como, aliás, Lapa a atribui, ainda que com alguma incerteza. Diz Lapa em nota: «A cantiga é dada no CBN como da autoria de Martim Soares. Porém, como no Cancioneiro da Ajuda não traz nome de autor, lembra, a este respeito, Carolina Michaëlis de Vasconcelos que 'as coplas jocosas sobre o desamor de D. Elvira fossem desabafos do próprio audacioso raptador (Rui Gomes de Briteiros) antes do acto de prepotência criminosa por ele cometido quando o seu galanteio com a rica-dona ainda não havia surtido o efeito ambicionado' – CA, II, 336». Rodrigues Lapa não se pronuncia sobre esta sugestão de Carolina Michaëlis. Mas a possibilidade de esta primeira pessoa que fala aqui ser, igualmente, o próprio Rui Gomes de Briteiros fica assim aberta por esta (mais uma vez) arguta nota de Carolina Michaëlis. Nota que, no entanto, tende a indicar Rui de Briteiros como o seu autor – quando de facto ele parece ser aqui apenas a voz que se ouve, numa cantiga que repete o processo da anterior, ou seja, é um maldizer aposto. As duas cantigas estão, aliás, obviamente relacionadas1.
1
Muito recentemente, Resende de Oliveira atribui novamente a cantiga a Rui Gomes de Briteiros, baseando-se na análise que faz de A. O problema que coloca esta e outra cantiga seguinte sobre o mesmo assunto é o de que, em A, elas seguem imediatamente as cantigas de Martim Soares, mas estão delas separadas por uma iluminura, facto que indicia, neste cancioneiro, mudança de autor. As duas cantigas não seriam, pois, de Martim Soares. A questão que se coloca, no entanto, é a de que, mesmo que as coisas sejam, de facto, assim, nada nos garante que esse outro anónimo seja Rui Gomes de Briteiros (como, aliás, afirma o editor mais recente deste trovador, Finnazzi-Agró). Quanto a nós, e pelo que ficou dito, consideramos a sua atribuição a Rui Gomes pouco provável.
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O caso desta segunda cantiga de Martim Soares (as dúvidas quanto à sua atribuição não colocam em causa o seu caráter de maldizer aposto) alerta-nos para a importância do entendimento deste processo como um dos recursos satíricos trovadorescos (e muito frequentemente utilizado). Para além de, enquanto termo, constituir uma designação própria para as seis últimas cantigas que citámos, o entendimento deste recurso pode, de facto, abrir horizontes novos, e, nomeadamente, clarificar algumas outras composições que têm levantado diversos problemas de interpretação. Uma delas é este estranho cantar de Mem Rodrigues de Briteiros (B 1330, V 936)1: Um sangrador de Leirea me sangrou estoutro dia e vedes que me fazia: indo-m'a buscar a vea, foi-me no cu apalpar: al fodido irá sangrar sangrador em tal logar! Este sangrador, amiga, traz ũa nova sangria: onde m'eu nom percebia, filhou-me pela barriga, começou a sofaldrar: al fodido irá sangrar sangrador em tal logar (...) Como afirma Rodrigues Lapa em nota, esta cantiga só poderá ser entendida se a lermos como um «escárnio de amigo» (o que, a ser assim, faria dela um dos dois únicos exemplares do género presentes nos Cancioneiros). De facto, como justifica Lapa, quer o vocativo «amiga», quer o termo «sofaldrar» (levantar a fralda) – para já não falar da própria temática aludida – são provas quase irrefutáveis de que a voz que aqui se ouve não é a do trovador, mas sim a de uma voz feminina – e de que esta cantiga, nesta forma original, é, realmente, mais um exemplar «do maldizer aposto» de que falam as rubricas atrás citadas. O facto de o verdadeiro visado ser aqui o sangrador (que abusava das mulheres que o procuravam) e não a rapariga que fala (e que aparece como denunciadora), é uma variação semelhante às que já encontrámos em cantigas anteriores2. 1 2
Esta atribuição, que é a de B, não é segura, já que V a atribui a João Fernandes de Ardeleiro Poderia ser esta um exemplo de uma cantiga de vilã?
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Se esta cantiga, pois, mesmo sem vir acompanhada de nenhuma rubrica explicativa, e mesmo parecendo à primeira vista um pouco obscura, é também ainda relativamente fácil de integrar no tipo do «maldizer aposto», é provável, como dissemos, que este recurso aparecesse em algumas outras cantigas, hoje em dia muito mais difíceis de identificar. A seguir indicaremos algumas das que, a nosso ver, poderiam ser lidas a esta nova luz. Uma delas parece-nos ser esta estranha «confissão» de Pero da Ponte, relacionada com o mundo da homossexualidade (B 1626, V 1160): Eu digo mal, com'home fodimalho, quanto mais posso daquestes fodidos e trob'a eles e a seus maridos; e um deles mi pôs mui grand'espanto: topou comig'e sobraçou o manto e quis em mi achantar o caralho. Ando-lhes fazendo cobras e sões quanto mais poss', e and'escarnecendo daquestes putos que s'andam fodendo; e um deles de noit[e] asseitou-me e quis-me dar do caralh'[e] errou-me e lançou, depós mim, os colhões. (...) Mesmo estando incompleta (como Lapa supõe), esta composição parece, no mínimo, bizarra. A confissão, por parte do próprio trovador, de uma aventura homossexual – mesmo que precedida de uma declaração de repúdio por tais práticas – é deveras surpreendente, e ainda mais se tivermos em conta o tom habitual das cantigas sobre a matéria, tom muitas vezes jocoso mas sempre, inequivocamente, condenatório. De facto, ainda que geralmente a atitude de trovadores e jograis sobre esta matéria denote uma tolerância muito superior à que encontramos nos documentos oficiais da época, quer os da Igreja, quer mesmo o das autoridades civis1, é um facto que aludir à homossexualidade de alguém é sempre, nos Cancioneiros, uma forma de dizer mal. Por tudo isto nos parece que a leitura que até agora tem sido feita desta cantiga (nomeadamente por Lapa) como uma confissão, ainda que ambígua, de Pero da Ponte, sendo, sem dúvida possível, poderá talvez ser questionada. E que a hipótese de estarmos
1
Mesmo nas Partidas de Afonso X a homossexualidade é punida com pena de morte (VII, 21, 1, 2).
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perante mais um exemplo de «maldizer aposto» merece ser considerada1. Como na cantiga anterior de Martim Soares contra Afonso Eanes do Cotom, também aqui Pero da Ponte poderia ter recorrido ao processo de assumir a voz de um outro para subtilmente realçar a distância entre os seus anátemas públicos e a sua prática quotidiana, o que nos parece bem mais credível no contexto da escola trovadoresca. Acrescentamos ainda, de uma forma que não pode deixar de ser especulativa, que Pero da Ponte poderia ter em vista um dos seus contemporâneos que mais repetidamente faz dos homossexuais o alvo das suas chacotas – com uma frequência que não deixa de ser notória –, o trovador Airas Peres de Vuitorom. É uma proposta de leitura que, mesmo sendo hoje em dia impossível de comprovar, se coaduna bem com o espírito do «maldizer aposto». Da mesma forma poderá ser lida ainda uma outra cantiga de Pero da Ponte sobre a mesma matéria, e dita também na 1ª pessoa, esta menos explícita, já que joga com o equivocatio centrado no verbo «trabalhar» (B 1657, V 1191): Dom Tisso Pérez, queria hoj'eu seer guardado do trebelho seu [j]á per doar-lh'o batom que foi meu; mais nom me poss'a seu jogo quitar; e, Tisso Pérez, que demo mi o deu, por sempre migo querer trebelhar? De trebelhar mi há el gram sabor e eu pesar, nunca vistes maior: ca nom dórmio de noite com pavor, ca me trebelha sempre ao lũar. [Que] demo o fezo tam trebelhador, por sempre migo querer trebelhar? Cada que pode, mal me trebelhou; e eu por en já mi assanhando vou de seu trebelho mao, que vezou, com que me vem cada noit'espertar; e Tisso Pérez, Demo mi o mostrou, por sempre migo querer trebelhar.
1 Aliás, a disposição desta cantiga em B é curiosa. De facto, ela vem precedida do nome do autor (Pero da Ponte) e é seguida da rubrica que anuncia as suas restantes composições satíricas «Pero da Ponte fez estas cantigas d'escarnho de mal dizer assi diz (...)». E seguem-se uma série dessas cantigas. A cantiga a que nos referimos está claramente isolada das restantes, ainda que não possamos garantir qual é o sentido deste facto.
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O próprio Rodrigues Lapa, em nota a esta cantiga, e de forma a encontrar uma interpretação diferente da que «desabona a compostura moral do grande escritor galego», adianta que, não fora «algumas dificuldades do texto», talvez pudéssemos ver «nela uma cantiga de mulher»1. Mesmo sem entrarmos em juízos morais, pensamos, de facto, que a sua leitura como «maldizer aposto» (em voz masculina e aludindo novamente a relações homossexuais) faria desaparecer essas e outras dificuldades2. Dificuldades de interpretação algo semelhantes oferecem duas cantigas de Rui Pais de Ribela (B 1438, V 1048 e B 1440, V 1050). Trata-se, desta vez, de um marido a quem um «comendador» teria roubado a mulher. As cantigas estão ambas na primeira pessoa (o marido enganado pede a restituição da esposa), o que torna pelo menos muito problemática a interpretação autobiográfica. A primeira estrofe da primeira cantiga diz o seguinte: Comendador, u m'eu quitei de vós e vos encomendei a mia molher, per quant'eu sei que lhi vós fezestes d'amor, tenhades vós, comendador, comendad'o Demo maior (...) A segunda cantiga, basicamente semelhante no tema, acrescenta alguns pormenores curiosos na segunda estrofe: Meu senhor, se vos aprouguer, comendador, dade-mi mia molher; e se vo-la eu outra vez ar der, dê-mi Deus muita de maa ventura. Comendador, dade-mi mia molher que vos dei, e fazede mesura. De fazer filhos m'é mester: comendador, dade-mi mia molher, e dar-vos-ei [eu] outra d'Alanquer em que percades a caentura. Comendador, dade-mi mia molher que vos dei, e fazede mesura.
1
As dificuldades, como se pode perceber, prendem-se com expressões como «o bastom que foi
meu». 2
Esta cantiga é a última da série de B que referimos.
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Mesmo podendo ser o seu autor um segrel (mas terá sido certamente cavaleiro), a ligeireza do tom com que se aborda a perda da própria esposa (que se confessa, aliás, ter sido «dada») é de molde a fazer-nos desconfiar da interpretação autobiográfica. Até porque, sendo Rui Pais de Ribela, como já anteriormente comprovámos, um imaginativo autor, o mais provável é estarmos, mais uma vez, face a composições em forma de «maldizer aposto». Gostaríamos também de chamar a atenção para uma cantiga de Paio Soares de Taveirós, que até ao momento tem sido integrada nas cantigas de amor, ainda que se reconheça que apresenta características algo inusitadas para o género. A cantiga está apenas presente no Cancioneiro da Ajuda (A 37), e sua primeira estrofe pode exemplificar o processo1: Eu sõo tam muit'amador do meu linhagem, que nom sei al no mundo querer melhor d'ũa mia parenta que hei; e quem a sa linhagem quer bem, tenh'eu que faz dereit'e sem; e eu sempr'o meu amarei. (...) Na nossa opinião, podemos estar novamente em face de um escárnio em forma de maldizer aposto. O escândalo das netas do Conde, antes referido, era extensivo a D. Maria Garcia, cuja ligação com D. Gil Sanches, filho bastardo de D. Sancho I, e seu tio, por linha materna (D. Gil era filho e D. Maria neta da Ribeirinha) deu que falar, por incestuosa (para além de D. Gil ser clérigo). Poderá esta cantiga referir-se ao caso (ou, de qualquer forma, a outro semelhante)? Na verdade, a hipótese de se tratar de um maldizer posto na boca de um terceiro, denunciando uma qualquer ligação incestuosa, com questões de bens à mistura (a que se alude na 3ª estrofe), também poderá ser considerada. Hipótese semelhante se poderá formular relativamente a esta outra cantiga, de Fernão Fernandes Cogominho (B 366bis), de que transcrevemos igualmente a 1ª estrofe: Veerom-m'ora preguntar, meus amigos, por que perdi o sem; [e] dixi-lhis assi, 1
Rodrigues Lapa, obviamente, não a inlui na sua edição.
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ca o nom púdi [m]ais negar: a mia sobrinha mi tolheu o sem, por que ando sandeu (...) Mais uma vez, esta «confissão» de amor de um tio em relação a uma sobrinha, escapando a todas as normas do amor cortês, poderá, na verdade, ser uma irónica denúncia de um caso alheio e não uma «confissão» autobiográfica. Finalmente, não podemos deixar de referir também aqui uma outra cantiga cuja leitura se tem prestado a bastante polémica. Trata-se do célebre «sirventês» de Afonso X «Nom me posso pagar tanto» (B 480, V 63), composição cujo caráter excecional no conjunto das produções satíricas dos Cancioneiros tem sido reconhecido por todos os especialistas1. Esse caráter excecional provém-lhe de se tratar de uma cantiga na 1ª pessoa, na qual, aparentemente, o rei sábio exprime a sua amargura face à falsidade do mundo (bem expressa na imagem recorrente do alacrã, o lacrau, escondido na campina de guerra, e que percorre todo o poema), bem como o seu desejo de abandonar tudo, partindo, num navio costeiro, «pela marinha/ vendend'azeit'e farinha», «ca mais me pago do mar/ que de seer cavaleiro». Um tão singular e pessoal desabafo por parte de um trovador que era ao mesmo tempo rei não tem deixado de provocar leituras diversas. Para Rodrigues Lapa, que exprime aqui a posição da grande maioria dos estudiosos atuais, a cantiga é indiscutivelmente autobiográfica: «Naquele momento de amargura, abandonado pelos seus, o Rei despiu o manto e quis ser um homem como os outros, à procura do seu quinhão de felicidade neste mundo»2. Tal não tinha sido, no entanto, a leitura feita por Carolina Michaëlis, na primeira edição do poema, em 19013. Refletindo sobre a sua singularidade, dizia então a autora: «É composição singular entre as cantigas d'escarnho e de maldizer, pois Afonso X fala na 1ª pessoa, contudo, evidentemente, no nome e com o espírito de um outro, cujas confissões, talvez recolhidas por acaso, o derem ter divertido». Atacada, já na época, pelo filólogo italiano Cesare de Lollis, igualmente editor do poema, e cuja leitura defendia o sentido autobiográfico que Lapa retomará, Carolina Michaëlis reafirma deste modo a sua posição:
1 Dada a sua extensão, e porque a cantiga é bem conhecida, dispensamo-nos de a transcrever na totalidade. 2 Op. cit.,p. 13. 3 Zeitschrift fur romanishe Philologie, XXV, pp. 279/280.
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Não era natural que o monarca, de 60 anos, cheio de cuidados, exteriorizasse aquela ânsia aventureira duma viagem marítima solitária. De qualquer modo, não era natural que um homem abandonado pelos filhos, amigos e vassalos tivesse denunciado os seus mais íntimos pensamentos numa poesia assim tão fresca e em estrofes tão artísticas e tão ágeis. E mesmo que assim fosse, nunca esses pensamentos poderiam visar a embarcar num navio de carga e ir ao longo da costa, como mercador de óleos e cereais, vendendo azeite e farinha! De modo algum podia então o autor das «Cantigas de Santa Maria» renunciar ao amor, à ambição, ao jogo das armas e ao serviço militar. Insisto em considerar a poesia como um escarnho dito em nome de um outro, de um cavaleiro ao qual tinham ferido os numerosos escorpiões da campina andaluza e também as línguas peçonhentas dos companheiros por motivo do seu procedimento pouco viril, e a quem tinha também aborrecido o serviço militar. Rodrigues Lapa transcreve em nota todas estas afirmações da «eminente romanista» considerando-as «um modelo de incompreensão estética». Contra a corrente atual que, como dissemos, segue, sem contestação, a posição de Lapa, não nos parece, no entanto, totalmente despropositada a leitura de Carolina Michaëlis1. Em primeiro lugar, como temos vindo a ver, o «maldizer aposto» era um processo muito frequente na escola galego-portuguesa. Também já vimos como este mesmo recurso está presente na obra de Afonso X, pelo menos uma vez (a cantiga atrás citada em que se pede justiça ao rei), o que torna, em princípio, aceitável que ele possa, noutras ocasiões, a ele ter recorrido. Em relação a esta cantiga específica, unanimemente considerada singular, o problema de estarmos perante o que Carolina Michaëlis chama «um escarnho dito em nome dum outro» parece-nos assim que deve ser, pelo menos, colocado. Sem entrarmos em considerações psicologistas do domínio do foro íntimo do rei, como são, quer as de Carolina Michaëlis, quer as de Lapa – ou exatamente porque sabemos que este tipo de considerações «psicológicas» é absolutamente estranho ao universo dos Cancioneiros –, a hipótese da transferência da voz para um outro parece-nos mesmo bastante admissível nesta cantiga, ainda que com ela se desfaça parte do halo romântico que uma leitura autobiográfica permite. O que não significa necessariamente, do nosso ponto de vista, uma redução na evidente força da cantiga, sobretudo se entendermos a relação de certa forma mimética que o seu autor mantém com esse outro a quem aqui dá (daria) voz. A hipótese de esse outro poder ser o mesmo D. Foão, a quem o rei dirige uma outra cantiga (B 486, V 69) por motivo da sua pressa em fugir do campo de batalha, cantiga 1
A mesma posição é defendida por Epifanio Ramos, op. cit., p. 17.
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essa onde, no final (na finda), o visado, em discurso direto, exprime sentimentos semelhantes («e diss'em essa hora (,,,) E ao Demo vou acomendar/ prez deste mundo, e armas, e lidar,/ ca nom é jog'o de que homem chora») poderá ser considerada. Independentemente da leitura que possamos fazer desta cantiga de Afonso X e de algumas das outras cantigas que referimos como possíveis «maldizeres apostos», o certo é também se conservou pelo menos uma composição «autosatírica», ou seja, onde o visado é (ou parece ser) o próprio trovador. Trata-se de uma variação oposta a esse recurso do «maldizer aposto» que acabámos de analisar, ou seja, de uma cantiga onde o trovador fala dele próprio como se de um outro se tratasse, numa curiosa forma de despersonalização. É este imaginativo recurso que utiliza João Airas de Santiago, numa «brincadeira» com uma dona, de seu nome Mor de Cana. Aludindo à antiga pena que consistia em meter o assassino por baixo da vítima, João Airas constrói o seguinte cantar (B 1466, V 1076): Ai Justiça, mal fazedes, que nom queredes ora dereito filhar de Mor da Cana, porque foi matar Joan'Airas, ca fez mui sem razom; mais se dereito queredes fazer, ela sô el devedes a meter, ca o manda o Livro de Leon. Ca lhi queria gram bem, e des i nunca lhi chamava senom senhor; e quando lh'el queria mui milhor, foi-o ela logo matar ali; mais, Justiça, pois tam gram torto fez, metede-a já sô el ũa vez, ca o manda o dereito assi (...) Para além da paródia ao amor cortês, de que adiante falaremos, o recurso é, pois, o da despersonalização – neste caso, justificada pela alegada «morte» de João Airas, de quem só uma terceira pessoa poderá assim falar. E provável que pudesse ser um jogral o divulgador da cantiga, o que atenuaria a sua estranheza. Mas nada nos diz que não fosse o próprio trovador o veículo da sua apresentação pública. Por último não podemos deixar de sublinhar que esta mesma despersonalização (falar de si próprio pela voz de um terceiro), que encontramos aqui na sua forma claramente satírica, está no âmago de muitas das cantigas de amigo, onde inúmeras
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vezes a voz feminina que se ouve é, de facto, um mero recurso para a expressão de sentimentos pessoais e mesmo dados autobiográficos do próprio trovador. É também esta a razão que faz com que algumas destas cantigas de amigo estejam a meio caminho entre o lirismo amoroso e a sátira, como acontece, por exemplo, com algumas das composições deste tipo de João Garcia de Guilhade1, ou de Bernaldo de Bonaval2, que mais abertamente confessam o jogo.
A «defesa» do visado Finalmente, e ainda no âmbito do assunto que nos tem vindo a ocupar (as variações nos processos de endereçar a crítica), não podemos deixar de fazer referência a um outro processo de maldizer, aquele que consiste em o trovador tomar aparentemente a defesa do visado. É um recurso de pura ironia, que não implica, pois, nenhuma espécie de transferência de voz – o trovador fala, como tradicionalmente, em nome próprio – mas que é igualmente uma variação curiosa e, sem dúvida, eficaz. É o que acontece nesta cantiga relacionada com a traição dos alcaides de D. Sancho II, da autoria de Afonso Mendes de Besteiros (B 1559): Já lhi nunca pediram o castel'a Dom Foam; ca nom tinha el de pam senom quanto queria; e foi-o vender, de pram, com mínguas que havia. Por que lh'ides [a]poer culpa [por] non'[o] teer? Ca nom tinha que comer senom quanto queria; e foi-o entom vender com mínguas que havia. (...) Evidentemente a aparente defesa (expressa na pergunta «por que lh'ides [a]poer/ culpa...?») é aqui, de facto, uma acusação: a de que a alegada da falta de mantimentos
1 Para além de algumas delas assumirem o tom do sirventês (A 343, B 741, por exemplo), e haver várias referências ao próprio nome do trovador, em duas delas a amiga chama-lhe, muito prosaicamente, «cabeça de cão» (A 360/371, B 777/786). 2 Referimo-nos, neste caso, aos curiosos jogos com a ermida de Bonaval, o topónimo que está na origem do seu apelido (B 1139/ V 730 e B 1140/ V 731).
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seria um mero pretexto para a «venda» do castelo, ou seja, para a traição (até porque ele não tinha «senom quanto queria», como é dito no irónico 1º verso do refrão). Uma outra cantiga onde encontramos também este processo de crítica é um cantar que Pedro Amigo de Sevilha dirige à soldadeira Marinha Mejouchi, aparentemento defendendo o seu colega Pero de Ambroa, acusado pela soldadeira (como o foi por outros) de se gabar ter feito uma peregrinação a Jerusalém que de facto nunca teria feito. A cantiga, como acontece algumas vezes, tem um alvo duplo, já que a sua forma permite aludir não só a esta tão comentada falsa peregrinação de Pero de Ambroa, como também às relações «especiais» da soldadeira manteria com o trovador (V 1199):
Marinha Mejouchi, Pero d'Ambroa diz el que tu o fuist'a pregoar que nunca foi na terra d'Ultramar; mais nom fezisti come molher boa; ca, Marinha Mejouchi, si é si: Pero d'Ambrõa sei eu ca foi lh'i; mais queseste-lhi tu mal assacar. Marinha Mejouchi, sem nulha falha, Pero d'Ambrõa em Soco do Vem filhou a cruz pera Ierusalém; e depois daquesto, se Deus mi valha, Marinha Mejouchi, come romeu que vem cansado, tal o vi end'eu tornar; e dizes que nom tornou en? (...) Para além desta irónica defesa do trovador, a cantiga joga também (o que Lapa não repara) com a ambiguidade sintática de algumas frases, o célebre equivocatio, sem o qual, aliás, não se compreenderia a função do vocativo à soldadeira. Para darmos os exemplos destas duas estrofes que transcrevemos (a cantiga tem uma outra): a ambiguidade do advérbio «i», no penúltimo verso da primeira estrofe, continuada na segunda estrofe con o verbo «filhou», ao fim do qual, quanto a nós, se deverá ler uma pausa (o que daria, ordenando mais claramente a frase: «Pero d'Ambroa filhou Marinha Mejouchi em Soco de Vem1», o que se liga à conclusão de estrofe «e vi-o voltar cansado»). Ironia dupla, pois, já que a «defesa» do trovador é aparente no que diz
1
Para o sentido deste topónimo, Lapa propõe «mercado de vento» (do árabe souk), o que nos parece, como alusão erótica, confirmar o equivocatio da cantiga. É possível, na verdade, que se trate efetivamente de uma alusão ao Zocodover, a principal praça e centro nevrálgico de Toledo.
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respeito à peregrinação a Jerusalém (onde ele nunca foi), mas é real no que diz respeito a outras «peregrinações» que a soldadeira teria todo o interesse em negar («aí» ele foi). Estas duas composições constituem apenas dois exemplos, já que a irónica «defesa» do visado aparece em numerosas outras cantigas1.
d) Os ciclos narrativos A alegada viagem de Pero de Ambroa a Jerusalém ficou célebre, como dissemos, e deu azo a todo um ciclo de chufas (são pelo menos sete as que nos chegaram) da parte de diversos trovadores seus contemporâneos. Este tipo de fixação num tema ou numa personagem não é raro no Cancioneiro satírico (e tem mesmo servido à maioria dos estudiosos como ponto de partida para uma ordenação da matéria satírica dos Cancioneiros, como adiante teremos ocasião de referir). Por agora gostaríamos de falar de um outro recurso satírico que, de certa forma, se relaciona com esta questão. Trata-se dos conjuntos, a que poderíamos chamar quase narrativos, de cantigas que alguns trovadores produziram, versando igualmente um mesmo tema ou uma mesma personagem específica. O que individualiza estes conjuntos de cantigas de um mesmo autor – e nos leva a considerá-los um recurso satírico autónomo – é o facto de elas manterem uma relação estreita entre si, respondendo-se e estabelecendo uma sequência de quase narratividade, que as distingue do processo normal de uma cantiga para um assunto ou um visado. Se este recurso tem sido devidamente assinalado no Cancioneiro lírico, nomeadamente no que diz respeito às cantigas de amigo2, o mesmo já não acontece em relação ao Cancioneiro satírico, onde, no entanto, ele também é visível. Indiscutivelmente, o mais bem delineado de todos estes conjuntos, ou ciclos, é a série de doze cantigas que Lopo Lias dedicou aos infanções Lemos (B 1338-1349, V 945-956)3, a que já antes fizemos breve referência. As cantigas vêm precedidas por uma rubrica que claramente as anuncia como ciclo: «Dom Lopo Lias trobou a uns cavaleiros de Lemos, e eram quatro irmãos e andavam sempre mal guisados; e por en trobou-lhis 1
Nomeadamente, numa de Rui Queimado sobre D. Estêvão (B 1386, V 995) e noutra de Lopo Lias (B 1341, V 948), cantiga também pertencente ao ciclo dos infanções Lemos, e de que nos ocuparemos mais adiante. 2 Lembramos o mais célebre destes ciclos «narrativos» líricos, o composto pelas nove cantigas de Pero Meogo que têm como centro os «cervos do monte». 3 De Lopo Lias os Cancioneiros recolhem ainda mais sete cantigas, todas satíricas, único género que cultivou ou que se conservou.
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estas cantigas» (sublinhados nossos). Estas doze cantigas, que, pelo tema e pelas personagens visadas, fazem parte do numerosíssimo grupo de sátiras contra os infanções pelintras, tomam como pretexto assuntos variados: os cavalos em que montavam1, as suas selas velhas e rangentes, ou as esteiras vermelhas que as cobriam, o brial de seda dado por um deles, no inverno, à mulher, a falta de jeito demonstrada nos jogos equestres, entre outros. A insistência em todos estes motivos – insistência que se apresenta como uma verdadeira perseguição poética – já é, por si só, um recurso satírico original, pelo que acrescenta de força cómica a cada nova cantiga (as alusões à sela rangente, por exemplo, aparecem em dez destas doze cantigas, mesmo naquelas que tomam como pretexto prioritário o brial ou as esteiras). Mas, para além desta insistência, as cantigas estão ainda organizadas numa sequência específica, narrativa, se assim podemos dizer, que vai de uma abertura parodicamente épica – a primeira cantiga (B 1338, V 945) começa «Da esteira vermelha cantarei...», uma evidente e curiosa alusão à proposição vergiliana, como antes referimos – a um final que se anuncia exatamente como tal: aludindo a um alegado pedido de tréguas feito por um dos irmãos, Lopo Lias encontra o pretexto para uma última cantiga (B 1349, V 956): O infançom houv'atal trégoa migo des Natal que agora oiredes: que lhi nom dissesse mal da sela nem do brial; mais aquel dia, vedes, ante que foss'ũa légoa, comecei aqueste cantar da égoa, que nom andou na trégoa; e por en lhi cantarei. Nom neg'eu que trégoa di ao brial, há sazom [i], e aa rengelhosa; e de pram andarom i as mangas do ascari, mais nom a rabicosa. Ante que foss'ũa légoa, comecei
1
Os «zevros», ou cavalos selvagens hispânicos (Lapa), donde o nome de «zevrões» dado por Lopo Lias aos infanções.
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aqueste cantar da égoa, que nom andou na trégoa; e por en lhi cantarei. Para trás ficaram todas as cantigas a que aqui se faz referência, muitas das quais, aliás, aludindo igualmente às precedentes e, geralmente, numa ordem determinada. Por exemplo: se a segunda cantiga (B 1339, V 946) alude à oferta do brial de seda no Natal, a terceira (B 1340, V 947) acusa o infanção de ter, por isso, morto a mulher à traição, e ter, portanto, que responder por homicídio perante el-Rei; também a partir de certo momento (B 1345, V 952) vemos os infanções desistirem das selas e andarem «em osso» ou regressarem à albarda, para grande alívio do trovador (que deixa de ouvir o ranger das ditas selas). Estamos, pois, perante o que podemos considerar uma sequência organizada de cantigas satíricas, um recurso diferente de todos os que vimos até agora, e onde a originalidade é inegável. Tanto mais que, dedicando tão grande número de cantigas a uma mesma matéria, Lopo Lias tem forçosamente que recorrer, não só a variações engenhosas nas «razons», mas também a toda uma variedade de formas, de metros e de ritmos que dificilmente tem paralelo, nos Cancioneiros, num mesmo trovador (alguns exemplos que demos antes assim o comprovam)1. De resto, os contemporâneos do trovador, e mesmo as gerações seguintes, não deixaram de lhe reconhecer o mérito. Numa cantiga dos Cancioneiros que lhe é dedicada (B 1612, V 1145), o jogral João Romeu do Lugo afirma, por exemplo, que ele «foi sempre um gram jogador», ou seja, um homem galhofeiro2. Nas restantes cantigas de Lopo Lias recolhidas nos Cancioneiros, há ainda vestígios de um outro ciclo, nas duas cantigas que ele dedica a uma «dona fremosa do Soveral» (B 1351, V 958 e B 1352, V 959). O facto de estarem em óbvia relação, indica-nos que o ciclo dos infanções Lemos não é um caso isolado, e que as sequências narrativas eram, pois, um recurso poético possível na escola galego-portuguesa (obviamente do agrado deste trovador). Em vários outros trovadores encontramos igualmente conjuntos de composições dedicadas ao mesmo tema ou à mesma personagem. Dois exemplos disso são 1) o grupo de três cantigas de Fernão Pais de Tamalhancos, dirigidas â abadessa de Dormã (B 74,
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O ciclo, para além da diversidade métrica e rítmica das cantigas, inclui as já citadas cantiga de seguir ao «som de negrada», um maldizer aposto e uma cantiga em forma de defesa do visado. 2 A rubrica dessa cantiga informa-nos ainda que ele «era cego dum olho».
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B 75=1336, V 943 e B 1337, V 944), uma delas já referida, que vêm precedidas também de uma rubrica que diz: «Outrossi fez estas cantigas a ũa abadessa, sa coirmã, em que entendia; e passou per aquel moesteiro um cavaleiro e levava ũa cinta e deu-lha, porque era pera ela, e por en trobou-lhi estes cantares. (...)» (sublinhados nossos); 2) as duas cantigas em que João Garcia de Guilhade alude às relações da soldadeira Elvira Lopes com um peão (B 1487, V 1099 e B 1488, V 1100 ), que se apresentam em nítida sequência: na primeira o trovador avisa a soldadeira do perigo que corre de ser roubada, na segunda aparece-nos o roubo já cometido, lamentando o trovador que a visada o não tivesse escutado. Nos restantes casos de repetição de um tema ou personagem é difícil, no entanto, decidir se isso é fruto do acaso, ou se construiriam, de facto, uma verdadeira sequência narrativa, como as de Lopo Lias. Será certamente um assunto a estudar mais detalhadamente1. Não queremos deixar, mesmo assim, de chamar a atenção para dois casos particulares: o primeiro, o de um grupo de oito cantigas de Gil Peres Conde, todas alusivas à sua má estrela em terras de Castela, e muitas delas dirigidas diretamente ao rei, cantigas que têm evidentes ligações entre si e que, no conjunto, formam uma sequência biográfica notável; o outro, o das oito cantigas que Afonso X dedica aos acontecimentos ligados às campanhas na Andaluzia (e centradas no alegado comportamento vergonhoso dos seus soldados e cavaleiros), cantigas que se apresentam nos Cancioneiros numa disposição dispersa, mas que talvez fosse possível ordenar numa série relativamente coerente.
e) A paródia No maldizer trovadoresco galego-português há ainda um outro processo satírico maior de que iremos falar para concluirmos esta panorâmica da poética satírica da escola. Referimo-nos às paródias, ou seja, às cantigas que, visando alguém, o faziam partindo das formas e dos clichés dos outros géneros trovadorescos, nomeadamente (mas não exclusivamente) das cantigas de amor e das cantigas de amigo. Este tipo de recurso é, já o dissemos, muito frequente no Cancioneiro satírico. Também já a ele
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Outras séries de cantigas a ter em conta serão: as que Airas Peres de Vuitorom dedica ao chanceler D. Estêvão, as de Estêvão da Guarda sobre Álvaro Rodrigues, as de Martim Soares sobre o jogral Lopo, ou as de João Airas de Santiago sobre um tal D. Beito, para darmos apenas alguns dos exemplos.
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brevemente aludimos quando tratámos das cantigas de seguir. De qualquer forma, e ainda que a paródia, como categoria, não seja nunca referida nos Cancioneiros, este recurso merece um pouco mais de atenção. No que diz respeito ao amor cortês, podemos distinguir, no corpus satírico que nos chegou, dois diferentes tipos (ou dois níveis) de paródias: as cantigas que, de uma forma geral, «temática», parodiam os conceitos habituais da doutrina, e aquelas que, mais especificamente, se apropriam da forma das cantigas de amor, que rearranjam com uma intenção satírica clara – ou seja, os pastiches. Rodrigues Lapa chama a estas últimas composições «escárnios de amor», e são elas que constituem, na terminologia de Pierre Bec atrás referida, os verdadeiros «contratextos» dos Cancioneiros. Os exemplos são muito numerosos, como dissemos. De Pedro Amigo de Sevilha, surge, nos Cancioneiros, a seguinte cantiga (B 1594, V 1126): Nom sei no mundo outro homem tam coitado com'hoj'eu vivo, de quantos eu sei; e, meus amigos, por Deus, que farei eu, sem conselho, desaconselhado? Ca mia senhor nom me quer fazer bem senom por algo; eu nom lhi dou rem, nem poss'haver que lhi dê, mal pecado. E, meus amigos, mal dia foi nado, pois esta dona sempre tant'amei, des que a vi, quanto vos eu direi: quant'eu mais pud'- e nom hei dela grado; e diz que sempre me terrá em vil atá que barate um maravedil, e mais d'um soldo nom hei baratado (...) Como se reconhece facilmente, o início desta cantiga (os seus cinco primeiros versos) é um verdadeiro pastiche das cantigas de amor, a ponto do leitor desprevenido a poder tomar exatamente como tal. E só nos dois últimos versos da estrofe aparece o desvio para a sátira, na razão monetária apresentada pela dona para a recusa do bem. No resto da cantiga, Pero Amigo de Sevilha continua o jogo, com uma notável mestria sobre a linguagem esteriotipada dessas cantigas. No conjunto, estamos face a um repositório completo dos lugares comuns trovadorescos, a que a introdução dos maravedis altera completamente o sentido, transformando em paródia o que, sem isso, poderia ser um modelo de um cantar de amor.
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Uma outra paródia exemplar do género é esta cantiga de Pero Mafaldo, dirigida à soldadeira Maria Balteira (B 1513): Maria Pérez, and'eu mui coitado por vós, de pram, mais ca por outra rem, e vós cuidades que hei de vós bem, que eu nom hei de vós, mao pecado: ca mi fazedes vós em guisa tal bem, mia senhor, que depois é meu mal; e de tal bem nom sõo eu pagado (...) Também aqui os lugares comuns trovadorescos são o cenário da maledicência. E o desvio para a sátira surge na antítese bem/mal que constrói toda a cantiga: o bem concedido pela «senhor» é o mal do amante, quer este «mal» signifique, como interpreta Lapa, a transmissão de uma doença venérea, quer seja apenas, como também podemos pensar, uma alusão ao exorbitante preço do «bem» da soldadeira (assunto a que várias outras cantigas se referem). De qualquer maneira, a forma deste escárnio é claramente a do pastiche às cantigas de amor. Como o é, pelo menos no seu início, esta outra cantiga de Pedro Amigo de Sevilha (B 1595, V 1127): Meus amigos, tam desaventurado me fez Deus, que nom sei hoj'eu quem fosse no mund'em peor ponto nado, pois ũa dona [mi] fez querer gram bem, fea e velha, nunca eu vi tanto; e esta dona puta é já quanto, por que eu moir', amigos, mal pecado (...) Também aqui os quatro primeiros versos são a introdução perfeita de uma cantiga de amor – e os três últimos a sua negação (mas o verso final, lido isoladamente, poderia igualmente figurar numa cantiga de amor). O topus do elogio da beleza da dona suscita, como seria de esperar, vários contratextos no cancioneiro satírico1. Outro dos «escárnios de amor» construído à volta deste tema é esta cantiga de Caldeirom (B 1619, V 1152)2:
1 Não incluímos aqui a célebre cantiga de João Garcia de Guilhade «Ai, dona feia, fostes-vos queixar...» (B 1485, V 1097), uma vez que se trata, neste caso, de paródia direta ao topus do elogio da dona, e não propriamente um «escárnio de amor». 2 A autoria desta cantiga é duvidosa, podendo igualmente o seu autor ser Pero Viviães.
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Ũa donzela coitado d'amor por si me faz andar; e em sas leituras falar quero eu, come namorado: rostr'agud’há come forom, barva no queix'e no granhom, e o ventre grand'e inchado.(...) Num tom algo diferente, mais sério e «sentido», se constrói este «escárnio de amor» de Pero Larouco, verdadeiro contratexto das declarações líricas de amor (B 612, V 214): De vós, senhor, quer'eu dizer verdade e nom já sobr'[o] amor que vos hei: senhor, bem [mor] é vossa tropidade de quantas outras eno mundo sei; assi de fea come de maldade nom vos vence hoje senom filha d'um rei. Nom vos amo [eu] nem me perderei, u vos nom vir, por vós de soidade (...)1 Verdadeira negação do amor cortês, num registo igualmente mais sério, à primeira vista – no caso dispensando mesmo a introdução de elementos realistas desviadores (como o campo sémico do erótico ou os contra-retratos que vimos antes) é esta cantiga de Pero da Ponte (B 984, V 571) 2: Pois de mia morte gram sabor havedes, senhor fremosa, mais que doutra rem, nunca vos Deus mostr'o que vós queredes, pois vós queredes mia mort'; e por en rog'eu a Deus que nunca vós vejades, senhor fremosa, o que desejades. Nom vos and'eu per outras galhardias, mais sempr'aquesto rogarei a Deus: em tal que tolha El dos vossos dias, senhor fremosa, e e[m] nada nos meus. Rog'eu a Deus que nunca vós vejades, senhor fremosa, o que desejades.
1 Como faz notar Rodrigues Lapa, é evidente que este escárnio tem um duplo alvo: a dona diretamente referida e a «filha d’um rei», aludida no v. 6 desta estrofe (e também nas seguintes), e que Lapa supõe poder tratar-se de uma filha de Afonso X. 2 Não recolhida por Lapa.
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E Deus [que] sabe que vos am'eu muito, e amarei enquant'eu vivo for, El me leix'ante por vós trager luito ca vós por mi; [e] por en mia senhor rog'eu a Deus que nunca vós vejades, senhor fremosa, o que desejades. Utilizando embora o mais completo registo do amor cortês (incluindo a referência à tradicional aversão da senhora pelo seu servidor, que deseja ver morto), a cantiga é uma falsa cantigas de amor (no caso, o servidor pede a Deus que morra ela primeiro), ou seja, ela é, ainda que de uma forma menos burlesca do que as anteriores paródias, um «escárnio de amor». Em forma de «escárnio de amor» é também este curioso «lamento» de Gil Peres Conde, que nos faz descer das regiões etéreas do amor cortês para realidades de ordem muito mais prática, relacionadas com o «serviço» da dona (no caso, a possibilidade de ser pai) (B 1519): Mia senhor, já eu morrerei em vosso serviç', e por en mi nom é com mia morte bem: porque vos nom ficou de mi filho, por quanto vos servi, que mi criássedes por en. Sempr'eu mia mort'adevinhei: que havia a morrer por vós - e a morrer havemos nós; mais por que nom fiz - e m'end'é mal um filho vosso natural que achasse conselh'em vós? (...) Um trovador perito nesta arte de se servir ironicamente dos lugares comuns trovadorescos para satirizar as relações a três (consequência prosaica inevitável do elogio amoroso da mulher casada) é João Garcia de Guilhade. Duas cantigas suas, dirigidas ao jogral Martim, denotam este mesmo processo de paródia, sendo que, neste caso, a ironia é dupla, já que, para além do alegado caso de adultério, o recurso a clichés do amor cortês visa especificamente um jogral. Estamos em crer que ambas as cantigas poderiam ser cantigas de seguir. Diz a primeira (B 1489, V 1101):
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Martim jograr, que gram cousa: já sempre convosco pousa vossa molher! Ve[e]des m'andar morrendo, e vós jazedes fodendo vossa molher! Do meu mal nom vos doedes, e moir'eu, e vós fodedes vossa molher! A segunda (a cujo refrão já brevemente nos referimos quando tratámos das cantigas de seguir) continua no mesmo tom (B 1490, V 1102): Martim jograr, ai Dona Maria, jeita-se vosco já cada dia, e lazero-m'eu mal. And'eu morrend'e morrendo sejo, e el tem sempr'o cono sobejo, e lazero-m'eu mal. Da mia lazeira pouco se sente; fod'el bom con[o] e jaz caente, e lazero-m'eu mal. Em ambas as cantigas, como se verifica, a paródia consiste na mistura dos mais puros tópoi das cantigas de amor (andar morrendo, lazerar ou sofrer por uma dama impossível) com uma linguagem totalmente desbragada. Indiretamente, Guilhade denuncia assim a distância que vai do amor trobadoresco idealizado â realidade concreta (neste caso, conjugal). Mas a paródia mais direta, «temática», também surge muitas vezes neste corpus satírico, como dissemos, em cantigas onde os tópoi «ideológicos» da doutrina cortês são apresentados exatamente como clichés, impossíveis de representarem a realidade quotidiana. O exemplo mais típico deste género de paródia será, sem dúvida, a conhecida cantiga em que Pero Garcia Burgalês satiriza o «morrer de amores» trovadoresco, na pessoa do seu colega Rui Queimado, o qual, morrendo de amores, como diz, mas continuando, no entanto, vivo, decerto ressuscitou ao terceiro dia (B 1380, V 988):
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Roi Queimado morreu com amor em seus cantares, par Santa Maria, por ũa dona que gram bem queria; e por se meter por mais trobador, porque lh'ela nom quis[o] bem fazer, feze-s'el em seus cantares morrer; mais ressurgiu depois ao tercer dia (...) Outro exemplo muito típico da exposição crítica desta distância entre a doutrina trovadoresca e a prática é esta cantiga onde Pero Gomes Barroso confessa que, contrariamente ao que outros pensam, se está morrendo não é de amores mas de fome (B 1441bis, V 1052)1: Moir'eu aqui d'adessoriam e dizem ca moiro d'amor; e haveria gram sabor de comer, se tevesse pam; e, amigos, direi-vos al: moir'eu do que em Portugal morreu Dom Ponço de Baiam. E quantos m'est'a mi dit'ham, que nom posso comer d'amor, dê-lhis Deus [a]tam gram sabor com'end'eu hei; e v[e]erám que há gram coita de comer quem dinheiros nom pod'haver de que o compr'e nom lho dam. Apresentando igualmente alguns problemas de leitura, a seguinte cantiga de Fernão Soares de Quinhones é também, claramente, uma sátira ao amor cortês (B 1553): Ai amor, amore de Pero Cantone, que amor tam saboroso e sem tapone! Que amor tam viçoso e tam são, quen'o podesse teer atá o Verão! Mais valria que amor de Chorrichão nem de Martim Gonçalves d'Orzelhone. Ai amor, amore de Pero Cantone, que amor tam saboroso e sem tapone! (...)
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A cantiga apresenta alguns problemas de leitura, nomeadamente logo no v. 1, no desconhecido termo adessoriam, que poderá significar «fraqueza, esvaimento». Mas o seu sentido geral é claro.
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Infelizmente cheia de pontos obscuros, motivados pelas numerosas referências difíceis de contextualizar (incluindo a identidade do visado e das várias outras personagens referidas), compreeende-se que a cantiga é uma sátira a um apaixonado que jura um amor eterno e pungente, mas de cuja duração e sinceridade se duvida. Na verdade, pelas diversas alusões que são feitas (por exemplo, a «tapone», que significa tampão ou rolha) talvez se possa entender que o verdadeiro amor deste Pero Cantom seria o vinho (e as declarações de amor feitas sob o seu efeito). Outra hipótese de leitura complementar é a de estarmos novamente face a um exemplar do «maldizer aposto», colocado em voz feminina (posta em boca de mulher a cantiga poderia ser uma confissão dos seus amantes face ao platonismo cortês deste Pero Canton). Rodrigues Lapa adianta ainda a hipótese de o refrão poder ser uma variação de um refrão tradicional, o que nos leva a pensar que, sendo assim, poderia ser também esta uma cantiga de seguir. Nenhum destes problemas, no entanto, retira à cantiga o seu carácter de paródia ao amor abstratizante e literário que é o amor cortês. O medo da dona, outro dos tópoi do amor trovadoresco, surge satirizado, por seu turno, nesta cantiga do sempre bem-humorado João Airas de Santiago, que põe em cena, num alegado diálogo, um tal Pero Garcia, pretensamente afoito, e o apaixonado trovador, em pânico perante a hipótese de entrar na sala onde está a sua senhora1 (L. 179): Pero Garcia me disse que mia senhor com el visse; e dixe-lh'eu, que nom oísse: - Ai Pero Garcia, gram med'hei de Dona Maria, que nos mataria! Disse-m'el: - Aventuremos os corpos e alá entremos. Dixe-lh'eu: - Nõn'o faremos. Ai Pero Garcia, gram med'hei de Dona Maria, que nos mataria! (...)
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José Luis Rodrigues aventa a hipótese de esta D. Maria poder ser a soldadeira Maria Balteira (e o Pero Garcia, o segrel Pedro Garcia Burgalês), o que conferiria a esta paródia um humor duplo. El cancioneiro de Joan Atras de Santiago. Edition y estudio. Verba, Anexo 12, Vigo 1980
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Com uma graça mais pesada, também as tradicionais prendas (doas) entre os namorados, símbolos da fidelidade amorosa, frequentemente referidas nas cantigas de amigo, são objeto desta paródia de Pedro Amigo de Sevilha (B 1593, V 1125): Moitos s'enfingem que ham gaanhado doas das donas a que amor ham, e tragem cintas que lhis elas dam; mais a mim vai moi peor, mal pecado, com Sancha Díaz, que sempre quix bem: ca jur'a Deus que nunca mi deu rem senom um peid', o qual foi sem seu grado (...) Para além de cantigas como todas as que referimos, que poderemos considerar, em maior ou menor grau, paródias, deve ainda acrescentar-se que a utilização esporádica da linguagem cortês com fins paródicos é muito frequente no cancioneiro satírico. O vocativo «mia senhor», as expressões do tipo «morro eu», e outras semelhantes, encontram-se dispersas um numerosas cantigas de escárnio e maldizer, como «citações» paródicas da lírica «séria» dos cantares de amor1. Mas os cantares de amor não são os únicos a ser objeto de paródia. Já antes referimos um curioso exemplo do que podemos chamar «escárnio de amigo», na sátira a um sangrador de Leiria que abusava das suas clientes (B 1330, V 936). Uma outra composição que caberia talvez neste género é uma cantiga de Afonso X de que infelizmente nos chegou apenas um fragmento (B 475). Trata-se de um curto diálogo entre duas irmãs e o tom parece parodiar o das cantigas de amigo: Falavam duas irmanas, estand'ante sa tia, e diss'a ũa a outra: - Naci em grave dia, e nunca casarei, ai mia irmana, se me nom [vou a] cas del-rei. Mais fácil é percebermos estarmos perante um «escárnio de amigo» nesta composição de Pero Larouco (B 613, V 215), aludindo a um tal Coelho, em termos que parecem zombar da sua impotência (Coelho esse, que, como lembra Lapa, bem poderia ser o trovador João Soares Coelho, que, numa cantiga, claramente confessa o facto2):
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Vide, nomeadamente, Afonso X (B 460), Afonso Anes do Cotom (B 1581, V 1113), Afonso Sanches (B 416, V 279, para darmos apenas alguns exemplos. 2 V 1017
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Nom há, meu padre, a quem peça ũa peça d'um canelho, com que juntasse sa peça toda com ela o Coelho; ca a peça nom se espeça u se estrema do vermelho, ca muit[o] há já gram peça que foi sem mant'a concelho. Escárnio de amigo será também a outra composição de Pero Larouco, transcrita logo a seguir a esta nos manuscritos (B 614, V 216): O que me d'Ensar corrudo há, e de mais m'ameaça, ainda en fi'de cornudo seja; por feito que faça, é el padre do meu drudo [...] Embora estas quatro composições que acabámos de referir sejam verdadeiramente os únicos exemplares do «escárnio de amigo» que nos chegaram, outras cantigas satíricas funcionam numa zona próxima deste tipo de paródia, ao recorrerem ao vocabulário típico da lírica de amigo. Não podendo assim considerar-se exatamente um «escárnio de amigo», já que não é dita em voz feminina, esta sátira de Pero Garcia Burgalês contra a soldadeira Maria Negra1 está disso bem perto, pela utilização paródica que faz das expressões típicas de uma cantiga do género (B 1383bis, V 992)2: Dona Maria Negra, bem talhada, dizem que sodes de mim namorada. Se me bem queredes, por Deus, amiga, que m'ôi sorrabedes se me bem queredes. Pois eu tanto por voss'amor hei feito, ali u vós migo talhastes preito! Se me bem queredes (...) Por nom viir a mim soa, sinlheira, venha convosc'a vossa covilheira. Se me bem queredes (...)
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A que já antes brevemente nos referimos ao falarmos das possíveis cantigas de seguir.
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Pois m'eu [tanto] por vós de peidos vazo, ali u vós migo talhastes prazo! Se me bem queredes (...) Tal como nos contratextos das cantigas de amor, também o início desta composição parece indiciar um género que, de facto, é totalmente desviado, não só no refrão (sorrabar significa, num primeiro momento, «adular», mas constitui também uma clara alusão obscena), mas também nas estrofes seguintes (e particularmente na última). De uma forma dispersa, a utilização nalgumas cantigas satíricas de expressões como «bem talhada», «fremosa», ou mesmo, como vimos com as cantigas de Rui Pais de Ribela, toda uma apropriação paródica do cenário campestre destas cantigas, mostram-nos como, não tendo o peso numérico dos «escárnios de amor», a paródia às cantigas de amigo não deixou de ser, em maior ou menor grau, praticada pelos trovadores e jograis galego-portugueses. Para além das paródias a estes dois géneros de lírica amorosa, há, no cancioneiro satírico, duas outras paródias singulares. A uma delas poderemos chamar, com Rodrigues Lapa, um «pranto de escárnio», já que o género de partida é, de facto, o pranto (género, aliás, muito pouco representado entre os trovadores ibéricos, mas que nem por isso deixou de provocar este desvio satírico). A composição (B 1655, V 1189), da autoria de Pero da Ponte (que é, aliás, o grande autor deste género, na sua versão «séria»1), é, alegadamente, um lamento à morte de um tal Martim Marcos. Mas a rubrica que a acompanha esclarece-nos sobre a verdadeira intenção da cantiga: «Esta cantiga fez Pero da Ponte ao infante Dom Manuel, que se começa ‘E mort'é Martim Marcos’, e na cobra segunda o podem entender». Infelizmente, esta sátira contra o irmão mais novo de Afonso X não é tão fácil de entender como anuncia a rubrica. De qualquer forma, quer pelo tom, quer pelo ritmo heróico dos seus versos de 13 sílabas, a composição facilmente se dá a ler como uma paródia ao género específico que é o pranto (como um «pranto de escárnio»). Transcrevemos o seu início: Mort'é Dom Martim Marcos, ai Deus! Se é verdade sei ca, se el é morto, morta é torpidade, morta é bavequia e morta neiciidade, morta é covardia e morta é maldade.
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São apenas 5 os prantos que nos chegaram, 4 de Pero da Ponte e um do jogral João (este último sobre a morte de D. Dinis).
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Se Dom Martinh'é morto, sem prez e sem bondade, oimais, maos costumes, outro senhor catade (...) A outra composição singular que referimos é a conhecida «gesta de maldizer» (B 1470, V 1080) que D. Afonso Lopes de Baião dedicou à família dos Briteiros, cujo deão, Rui Gomes de Briteiros (o raptor de D. Elvira, uma das netas do Conde, que já encontrámos antes em duas cantigas), passou de modesto infanção a homem chave da corte de D. Afonso III, que o elevou à categoria de rico-homem e o cobriu de honrarias, como prémio pela fidelidade demonstrada aquando da crise que conduziu à deposição de D. Sancho II. Afonso Lopes de Baião, um fidalgo da antiga nobreza, não podia certamente perdoar esta rápida ascensão da família e a paródia aos cantares de gesta deve entender-se neste contexto. Rui Gomes de Briteiros (D. Belpelho, ou a raposa, como é chamado no início da composição) aparece-nos, pois, como o anti-herói por excelência, descrito, ele e os seus, com todos os atavios alusivos à sua origem rural: mal vestidos e mal armados, com lanças de pau de cerejeira e escudos que foram poleiros, para citar apenas alguns dos numerosos pormenores do quadro. A composição, demasiado extensa para poder ser aqui citada, denota, da parte de Afonso Lopes de Baião, como não deixa de apontar Lapa, um conhecimento perfeito das gestas francesas, «com as suas leixas monorrimas, a sua exclamação épica (Lapa refere-se ao Eoi! que pontua o final das estrofes), e até, para maior efeito de ridículo, os seus galicismos». Com tudo isto, esta «gesta de maldizer» é a composição mais longa do cancioneiro satírico e, sem dúvida, uma das mais originais.
f) Outros recursos O jogo com os limites de géneros Como as paródias nos dão a ver, a contaminação de géneros é um recurso satírico comum. Ora, se as composições que antes referimos o fazem de uma maneira clara – são claramente paródicas – outras existem em que este jogo com os limites, parecendo existir, é, por motivos de vária ordem, mais difícil de situar. Já antes nos referimos às dificuldades que existem na delimitação deste corpus. E a grande razão que está por detrás destas dificuldades é exatamente o recurso satírico – chamamos-lhe recurso
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porque nos parece perfeitamente consciente – de que nos iremos agora ocupar e que poderemos, de facto, designar como o jogo com os limites entre os géneros. Falaremos em primeiro lugar das composições que, embora em forma de cantiga de amigo ou de cantiga de amor canónicas, parecem, no entanto, ter uma função essencialmente satírica – ainda que não possamos absolutamente garantir (mais numas do que noutras) que seja esse o caso. Falaremos em seguida das composições que poderemos designar como mistas (lírico/satíricas), e finalmente das que, sendo obviamente cantigas de amigo ou de amor, jogam, nos limites do riso, com elementos dos seus próprios códigos. No primeiro caso parecem estar, antes de mais, duas curiosas cantigas da autoria de Gonçalo Anes do Vinhal (B 1390, V 999 e V 1008). Apresentando-se aparentemente como cantigas de amigo vulgares (a dona comenta os seus amores com as amigas), elas vêm no entanto acompanhadas de duas rubricas que explicam terem sido feitas, como nos é dito numa delas, «a Dom Anrique em nome da rein[h]a Dona Joana, sa madrasta, porque diziam que era seu entendedor (...)». Trata-se, pois, de duas cantigas que aludem aos (alegados) amores da madrasta de D. Afonso X, Jeanne de Poitiers, viúva e terceira esposa de Fernando III, com o seu enteado, D. Henrique, irmão do rei, personagem que já vimos atrás referida numa cantiga do próprio Afonso X. Embora a acusação possa ser mais fictícia do que real, ambas as cantigas aludem a factos históricos concretos ocorridos no âmbito do conflito entre os dois irmãos. A segunda delas, por exemplo, refere expressamente a expulsão final de que foi alvo D. Henrique e a «intenção» da rainha de interceder por ele: Sei eu, donas, que deitad'é d'aqui do reino já meu amig'e nom sei como lhi vai, mais quer'ir a el-rei, chorar-lh'-ei muito e direi-lh'assi: por Deus, senhor, que vos tam bom rei fez, perdoad'a meu amig'esta vez (...) Tudo parece indicar, pois, que, nesta curiosa forma indireta, as duas cantigas comportem uma verdadeira intenção satírica (defendendo a posição de D. Afonso neste conflito). De resto, diga-se ainda que elas são, aliás, das pouquíssimas cantigas de amigo a virem acompanhadas por uma rubrica explicativa (o que, como temos vindo a ver, é frequente com as cantigas de escárnio e maldizer). O facto é que, caso essas rubricas se tivessem perdido, nada distinguiria estas duas composições das restantes
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cantigas de amigo (que muitas vezes incluem referências geográficas e históricas precisas, o que não seria, portanto, de estranhar aqui). Facto que pode ser novamente um indicativo (como as rubricas já o eram no maldizer aposto) da existência de recursos satíricos muito mais latos do que a divisão tripartida dos géneros dá a ver. Mais uma vez o nosso desconhecimento da música (que poderia fornecer-nos elementos de referência importantes) é de lamentar. De qualquer forma, estas duas cantigas de amigo, «desviadas» para cantigas satíricas, reforçam a leitura que iremos fazer de algumas outras composições incluídas nos Cancioneiros e que, mesmo não vindo acompanhadas dc rubricas, parecem funcionar neste mesmo território da sátira mais subtil e indireta. Uma delas é a composição, em princípio também uma cantiga de amigo, de Pedro Anes Solaz (B 829, V 415), composição que durante muito tempo parecia escapar a qualquer leitura minimamente satisfatória, em virtude da sua estranha forma e, sobretudo, do seu estranhíssimo refrão – «Lelia doura/ edoi lelia doura». Foi Brian Dutton o primeiro a resolver o mistério, avançando a hipótese, hoje praticamente uma certeza, de que se trataria de um refrão em língua árabe, com o sentido geral de «a noite roda»1. Resolvido o mistério, tratava-se também de entender o que continuava a ser uma estranha cantiga de amigo. A hipótese que Dutton, de forma cuidadosa mas fundamentada, avança no final do seu artigo parece-nos bastante verosímil: «(...) In view of this evidence I am inclined to see in this poem by Pedro Eanes Solaz an ironical comment on a liaison between a Muslim minstrel and a soldadera, in the highly original and subtle form of a delicate lyrical poem»2. Se tivermos em conta o cenário em que eram cantadas estas cantigas (e ainda por quem eram cantadas e talvez dançadas) parece-nos, de facto, bastante provável estarmos novamente face a uma composição de subtil intenção satírica, na forma, aparentemente inócua, de uma cantiga de amigo (que a estranheza do refrão, neste caso, sinalizaria). Dutton, aliás, conclui deste modo o seu artigo:
1 Mais recentemente (2002) foi sugerido por Rip Cohen e Frederico Corriente que a tradução correta seria «é a minha vez» (v. 2), «e hoje é a minha vez» (v. 4). Vide "Lelia Doura revisited", in La Corónica: a Journal of Medieval Hispanic Languages, Literatures and Cultures, vol. 31, nº 1. 2 Op. cit.. Dutton adianta, aliás, que se poderia mesmo tratar da famosa soldadeira Maria Balteira, que teremos ocasião de referir mais em pormenor no decurso deste trabalho.
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Perhaps many other poems in the Galician songbooks are of this type, but we shall never know their true signifiance because they lack such an oddity as an Arabic refrain to call our attention to them, and because we lost all trace of the circunstances which brought them into being. O que é, infelizmente, um facto. De qualquer forma, e no caso de Pedro Anes Solaz, temos razões para crer que o processo se repete. De facto, uma sua outra cantiga, igualmente estranha, mas por razões diferentes, parece igualmente ter uma marcada intenção satírica. Trata-se agora de uma composição que se assemelha a uma cantiga de amigo (até no paralelismo) mas que não é dita em voz feminina1 (A 281): Eu sei la dona velida que a torto foi ferida, ca nom ama. Eu sei la dona loada que a torto foi malhada, ca nom ama (...) Ca se hoj'amig'amasse mal haja quen'a malhasse, ca nom ama. Se se d'amigo sentisse mal haja quen'a ferisse, ca nom ama. Na nossa leitura, tratar-se-á de mais uma subtil sátira contendo alusões à violência doméstica de que uma dona teria sido alvo. Se a destinatária fosse uma dona que tivesse sido alvo de anteriores louvores, em forma de cantares, do seu jogral ou segrel (como parece pressupor a expressão «dona loada»), compreender-se-ia cabalmente a ironia desta cantiga de Pedro Anes. Apesar de ser este um terreno em que será difícil provar inquestionavelmente a integração num género definido, algumas outras cantigas poderiam, a nosso ver, juntarse ao corpos satírico. É o caso da cantiga de amigo em que Juião Bolseiro altera radicalmente os papéis tradicionais dos protagonistas deste tipo de cantigas, pondo uma mãe a queixar-se da incompreensão da filha face aos seus amores (B 1171, V 777):
1
Talvez por esse motivo José Joaquim Nunes não a inclui nem na sua edição das Cantigas de amor, nem na sua edição das Cantigas de amigo.
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Mal me tragedes, ai filha, por que quer'haver amigo, e, pois eu, com vosso medo, nom o hei nem é comigo, nom hajade'la mia graça, e dê-vos Deus, ai mia filha, filha que vos assi faça, filha que vos assi faça. Sabedes ca, sem amigo, nunca foi molher viçosa, e, porque mi o nom leixades haver, mia filha fremosa, nom hajade'la mia graça (...) Pois eu nom hei meu amigo, nom hei rem do que desejo, mais, pois que mi por vós vẽo, mia filha, que o nom vejo, nom hajade'la mia graça (...) Per vós perdi meu amigo, por que gram coita padesco, e, pois que mi o vós tolhestes e melhor ca vós paresco, nom hajade'la mia graça (...) Também na forma de cantiga de amor poderemos encontrar este tipo de jogo entre os limites dos géneros. É o que acontece com esta cantiga de João Soares Somesso (B 106): Ũa donzela quig'eu mui gram bem, meus amigos, assi Deus me perdom, e ora já este meu coraçom anda perdudo e fora de sem por ũa dona, se me valha Deus, que depois virom estes olhos meus que mi a semelha mui mais doutra rem. Porque a donzela nunca verei, meus amigos, enquanto eu já viver; por esso quer'eu mui gram bem querer a esta dona em que vos falei que me semelha a donzela que vi. E a dona servirei des aqui pola donzela que eu muito amei (...) Trata-se de uma cantiga que só parece fazer sentido se a lermos tendo em conta o equívoco jogo que o trovador desenvolve entre o par «donzela/dona» – ou seja, na nossa leitura, o que se alude aqui é à perda da virgindade de uma donzela (que ele amou e que nunca mais verá, pelo que terá de servir a dona que lhe «semelha» muito).
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A questão da dificuldade, e mesmo da incongruência de determinadas leituras autobiográficas também se deve colocar, quanto a nós, neste terreno das cantigas de amor. É o caso das duas já referida cantigas que põem em cena relações explicitamente incestuosas, uma da autoria de Fernão Fernandes Cogominho, onde o amor que se afirma é declaradamente entre um tio e uma sobrinha (B 366bis); outra, da autoria de Paio Soares de Taveirós (A 37) onde o amador não só confessa o seu amor por uma parenta, mas parece aludir também, no final, a questões mais prosaicas de «haveres». Uma outra cantiga de Pero Garcia Burgalês, onde se lamenta a partida de uma rainha (B 222), pode ter igualmente funcionado neste território. Como já vimos acontecer com a madrasta de Afonso X, estas grandes personagens seriam de molde a aconselhar este género indireto de sátira. Caso semelhante, mas ainda mais complexo, poderá ser o de uma cantiga de Rodrigo Eanes de Vasconcelos (B 368). Trata-se de uma cantiga que, pelas suas características inusitadas e pelos elementos aparentemente contraditórios que nos fornece, levanta alguns problemas de interpretação que não são fáceis de resolver (determinar se a voz que canta é feminina ou masculina é, desde logo, um desses problemas). As interpretações que têm sido avançadas são variadas, desde a de poder ser esta uma cantiga dialogada, de poderem estar em causa amores homossexuais, ou de estarmos perante uma cantiga satírica, na forma de uma falsa cantiga de amigo, eventualmente aludindo aos amores de uma dama de alta linhagem com um seu vassalo. Esta última hipótese parece-nos, de resto, a mais plausível. Também nos limites entre os géneros, mas neste caso com o «sirventês», estão duas cantigas, formalmente de amor a primeira, de Martim Moxa (A 305) e de amigo a segunda, de João Airas de Santiago (B 963, V 550). Ambas ultrapassam claramente os limites do seu respetivo género, pela verdadeira reflexão moral sobre o mundo que é matéria do corpo das estrofes (em ambas, aliás, é o amor que salva). Também uma outra cantiga de amor de João Airas se constrói num tom muito próximo do sirventês, embora aqui numa visão jubilosa pessoal de quem canta e ama e que contrasta com um quadro de tristeza, ganância e materialismo do mundo (B 962, V 549). Ainda que o nosso desconhecimento de algumas circunstâncias impeça certezas absolutas, todas estas cantigas que referimos parecem nitidamente construir-se desviando as formas fixas dos outros géneros com vista a transformá-los num outro
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(cantigas de escárnio ou sirventeses). Pela nossa parte, incluí-las-íamos todas no Cancioneiro satírico. Mas outras cantigas há ainda que, por este desvio existir, mas não ser tão acentuado, teremos que considerar mistas. Como nas paródias, o processo é o da introdução de pequenos elementos alheios ao género (ou ao campo sémico) em que são maioritariamente construídas. Um dos casos mais evidentes parece ser o da cantiga de amor que Pedro Anes Solaz (novamente ele) dirige a uma freira (A 282, B 1219, V 824). A própria destinatária, já de si, sai das normas de uma cantiga do género; mas o mais interessante é que o seu elogio se processa em contraste com uma outra freira – que, desta forma, é, num mesmo momento, satirizada: E nom est a de Nogueira a freira que quero bem, mais é x'outra mais fremosa a que mi em poder tem. E moiro-m'eu pola freira mais nom pola de Nogueira (...) Num universo semelhante, João Garcia de Guilhade dirige o que parece ser uma cantiga de amor a uma senhor, mas em cujas duas primeiras estrofes se refere apenas a duas donzelas, abertamente identificadas (Dórdia e Guiomar Gil) «que prenderon ordim» (B 425, V 37). Só o final da segunda estrofe e a terceira é que se processam no registo habitual dos cantares de amor (o que, aliás, confere à cantiga um tom estranho, já que a ligação entre as duas partes não é evidente). É esta uma cantiga nitidamente mista. Num outro plano, refere o seu jogral Lourenço, em plena cantiga de amor, o motivo muito concreto da sua coita: «Por que vos forom, mia senhor, casar/ e nom ousaste vós dizer ca nom» (B 1102, V 693), introduzindo assim, no registo normalmente abstratizante da cantiga de amor, um motivo realista próprio da cantiga de escárnio (o casamento forçado da dona) – e conferindo, ao mesmo tempo, à cantiga um cunho de sinceridade pouco vulgar no género. Também o irónico «conselho» que D. Afonso Sanches dá a uma senhor numa das suas cantigas de amor – o de continuar a amar quem a despreza e a desprezar quem a ama – juntamente com a introdução, no final de cada estrofe, de expressões nitidamente da linguagem corrente («coçar-vos-edes com a mão de peixe», diz no final da terceira), lhe conferem um caráter misto evidente (B 414, V 25). O mesmo Afonso Sanches que, noutra destas suas cantigas, leva a
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ousadia da hipérbole da beleza da dona a zonas muito próximas do riso (se eu e minha senhor morrermos e formos para o inferno, os que lá estarão deixarão de sofrer, tal prazer sentirão em a olhar – B 411, V 22). Em todas estas cantigas o jogo com as normas dos géneros (e seguramente com as expetativas do público ouvinte) é evidente. Também o jogo com as normas do amor cortês conduz muitas cantigas a um território híbrido – não se pode dizer que serão satíricas, mas não se pode igualmente garantir que não estejam, como a última que citámos, nos limites do riso. Para começar, citemos de novo a famosa «cantiga da garvaia», de Paio Soares de Taveirós (A 38). Como já anteriormente referimos, toda uma série de elementos estranhos ao registo das cantigas de amor, nomeadamente a referência ao nome da dona (neste caso, através do de seu pai, ou seja, da sua linhagem), altera significamente o código de cortesia, e pode levar a supor que haja uma intenção, se não satírica, pelo menos jocosa, por detrás do elogio da senhor. Também o irmão de Paio Soares, Pero Velho de Taveirós, é autor de uma cantiga dirigida a uma D. Maria, que, para além do nome, «introduces a note of exasperation» no registo do amor cortês, como bem aponta Frank R. Holliday1 («Par Deus, Dona Maria, mia senhor bem talhada/ do bem que vos eu quero nom entendedes nada...», B 140). Com os nomes, e com o segredo que é suposto guardarem sobre eles, brincam ainda Rui Queimado e Pero Garcia Burgalês, o primeiro em duas cantigas indiscutivelmente humorísticas dirigidas a Guiomar Afonso Gata (cujo nome cita, a pedido de João Garcia de Guilhade, que alegadamente quer saber por quem ele morre, como nos diz a primeira delas – A 142, B 263 e A 143, B 264); o segundo em quatro composições que «brincam» com o nome de três donzelas (Joana, Sancha e Maria), sem nunca indicarem concretamente qual das três é a sua senhor, jogando, portanto, com o suspense assim criado (A 89, B 193, A 104, B 212, A 105, B 213 e A 106, B 214/215). Em ambos os trovadores, as cantigas formam sequências evidentes. Não custa visualizar o efeito cénico lúdico da sua apresentação sucessiva. Algumas destas cantigas «de amor» entram ainda numa espécie de diálogo com as cantigas de amigo dos mesmos autores. É o caso, nomeadamente, de uma cantiga de Paio Soares de Taveirós (A 240, B 639) onde ouvimos a amiga queixar-se pelo facto de 1
«The frontiers of love and satire in galician-portuguese medieval lyric» in Bulletin of hispanic studies, 39, 1962, pp. 34-42. Vide também, do autor, «Extraneous elements in the 'cantiga de amigo'» Revista da Faculdade de Letras, 3ª série, 8, Lisboa 1964, pp. 152-154.
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o seu amigo ter divulgado publicamente o seu nome («Foi-m'el era seus cantares enmentar,/ veedes ora se me dev'a queixar...»)1. Mas um dos trovadores onde é mais nítido esse jogo de ecos entre os géneros é João Garcia de Guilhade. Em pelo menos três das suas cantigas de amigo, a amiga humoristicamente comenta a tão anuncida «morte de amor» do seu amigo, como acontece nesta, de que transcrevemos as duas primeiras estrofes (B 754, V 357): Cada que vem o meu amig'aqui diz-m', ai amigas, que perd'o [seu] sem por mi, e diz que morre por meu bem, mais eu bem cuido que nom est assi: ca nunca lh'eu vejo morte prender nen'o ar vejo nunca ensandecer. El chora muito e filha-s'a jurar que é sandeu e quer-me fazer fiz que por mi morr', e pois morrer nom quis, mui bem sei eu que há ele vagar; ca nunca lh'eu vejo morte prender nen'o ar vejo nunca ensandecer (...) A amiga critica também o facto de ele se andar a gabar dela noutros cantares (B 751, V 354) e chama-lhe repetidamente «cabeça de cão» (B 787, V 371). Todas estas cantigas de amigo têm uma indesmentível componente humorística. Em voz feminina, elas assemelham-se fortemente à sátira que Pero Garcia Burgalês dirigiu a Rui Queimado a que já aludimos («Roi Queimado morreu com amor...»). Em conclusão, poderíamos dizer que da existência de verdadeiras sátiras, subtilmente transferidas para outros géneros, como as primeiras cantigas que referimos, até à introdução de pequenos elementos paródicos nos cantares mais claramente de amor e de amigo, como este último caso, os trovadores e jograis galego-portugueses demonstram mais uma vez a sua mestria. As flutuações dos géneros que aqui são visíveis, e que nos parecem, na grande maioria dos casos, perfeitamente (e satiricamente) voluntárias, podem ser consideradas um dos mais brilhantes exemplos da vivacidade da escola.
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Nome que poderá ser o referido na cantiga da garvaia. Pode mesmo supôr-se que, aquando da sua apresentação pública, houvesse qualquer forma de teatralização da sequência.
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Questões de linguagem
Por muito que se tenha que reconhecer um certo grau de verdade na afirmação comum de que o manejo da língua vulgar, o galego-português, pelos trovadores e jograis galego-portugueses nas suas cantigas não vai sem uma certa dose de rigidez e hesitação – afirmação que se mostra verdadeira sobretudo no que se refere à expressão do pensamento abstrato de que se aproximam muitas cantigas de amor – o certo é que, no que toca às cantigas satíricas, e exatamente, talvez, pelo caráter prioritariamente «realista» do seu universo, os trovadores galego-portugueses mostram, de forma muito evidente, um perfeito domínio da língua (muitas vezes não materna) em que trovavam. Como tem sido reconhecido, é certo que, de um ponto de vista de uma retórica restrita (figuras e tropos clássicos), as cantigas galego-portuguesas se mostram seguramente muito pobres – só a título excecional nelas poderemos encontrar metáforas, metonímias, hipérboles, etc., pelo menos como princípio básico de construção. Mas, pelo menos nas cantigas satíricas, esse facto não constitui, de forma alguma, uma limitação – a sua linguagem direta e geralmente sem ornatos contribui antes, poderosamente, para o tom incisivo e certeiro das invetivas, que nem por isso deixam de revelar uma notável imaginação retórica noutros campos, como acabámos de ver. Há, mesmo assim, neste domínio mais especificamente retórico, alguma matéria suplementar que gostaríamos de acrescentar a este apanhado da poética satírica galegoportuguesa. Como tivemos ocasião de analisar anteriormente, há uma figura maior da retórica medieval que os trovadores e jograis utilizam de uma forma tão continuada que ela não pode deixar de merecer referência ao anónimo autor da «Arte de Trovar»: o equivocacio. Sendo esta a única figura citada por este pequeno tratado, ela não é, no entanto, a única detetável no cancioneiro satírico galego-português. Já Rodrigues Lapa chama a atenção, na breve introdução às suas Cantigas d'escarnho e de mal dizer1, para algumas imagens e jogos de expressão mais elaborados que nelas por vezes aparecem, citando como exemplo o modo como Martim Anes Marinho alude às promessas de um rico-homem avarento (B 1621, V 1154): calças feitas de névoa d'antano, potro coor de
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Op. cit., p. XIII.
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mentira, pau de nevoeiro). Expressões metafóricas como estas são raras no cancioneiro satírico. Mas, como acrescenta Lapa, confirmando o que atrás dissemos1: Para estes jogos de expressão encontraram os trovadores, na língua que manejavam, recursos abundantes. O idioma tinha-se enriquecido de sinónimos e, dentro de cada vocábulo, estabelecera-se uma farta vegetação polissémica, a que se juntara uma fraseologia bem adequada e uma gíria imaginosa. O seu cultivo, imposto a quase toda a Península, promovera uma unidade exemplar. Estava pois azado para os brinquedos linguísticos e as finuras do humor. Os trovadores não deixaram, naturalmente, de explorar esta rica veia. A ironia, os trocadilhos, o jogo com a polissemia das palavras, como Lapa salienta, são algumas das formas mais frequentemente utilizadas nesta exploração da sátira e do humor. O mesmo sentido do jogo reaparece, por exemplo, no uso de antíteses, de que alguns trovadores fazem também um recurso frequente. Entre todos eles, o que mais repetidamente faz do jogo com termos antitéticos o núcleo gerador de cantigas é, certamente, Pero da Ponte, um dos mais prolíferos autores satíricos dos Cancioneiros (com um total de 32 cantigas deste género)2. No contraste entre caro e barato (rafece) da sátira a um rico-homem sovina, que só distribuía roupas aos seus servidores depois de as usar dois anos (como diz o refrão de B 1635, V 1169: « O vosso dom é mui caro pera quen'o há d'haver,/ o vosso dom é rafec[e] a quen'o há de vender»); no contraste entre o tamanho de uma jornada e o jantar comido em casa de outro rico-homem (como diz o refrão de B 1637, V 1171, já antes citada: «Eu vos contarei quant'há daqui a cas Dom Xemeno:/ um dia mui grand'há i, e um jantar mui pequeno»; na oposição entre riqueza material de um outro e a sua pobreza de amigos (B 1640, V 1174: «quem d'amigos mui prob'é/ nom pode mui rico seer»; ou mesmo neste bem humorado convite a uma dona maltratada pelo seu marido (B 1656, V 1190): «maa noite vos mando que lhi dedes,/ pois que vos el mal dia faz haver». Mas outros poetas utilizam também a antítese. João Lobeira, por exemplo, nesta sátira a um cavaleiro de caráter duvidosamente original (B 1389, V 998): Um cavaleiro há 'qui tal entendença qual vos eu agora quero contar: faz, u dev'a fazer prazer, pesar, 1
Ibid. Pero da Ponte seria certamente um escudeiro, ou segrel, isto é, um trovador profissional, como este elevado número de cantigas parece confirmar. 2
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e sa mesura toda é entença; e o que lhi preguntam, respond'al; e o seu bem fazer é fazer mal, e todo seu saber é sem sabença. (...) Toda esta cantiga (as restantes três estrofes têm estrutura semelhante) é um requintado jogo antitético que certeiramente faz o retrato do desacordo «existencial» que a figura deste cavaleiro, descomunal, como lhe chama na última estrofe, representa. A antítese é aqui, por isso, mais do que um ornato retórico, a verdadeira raiz da invetiva. Um elaborado jogo com antíteses sucessivas encontramos também nesta cantiga de Pero Viviães, uma das numerosas sátiras contra os maus jantares em casa de ricoshomens (B 1620, V 1153): Por Dom Foam em sa casa comer quer bem quer mal, que há i d'adubar? Quem mal com el nem bem nom sol jantar e del bem diz nem mal, faz sou prazer: pois mal nem bem com el nunca comeu, e del bem diz nem mal, muit'é sandeu d'ir mal nem bem de seu jantar dizer ( ...) A oposição bem/mal é verdadeiramente, como afirma Lapa na nota a esta composição, «o nódulo estilístico da cantiga», e a sua repetição (que continua exaustivamente ao longo das restantes três estrofes) faz dela um dos mais elaborados «brinquedos linguísticos» dos Cancioneiros1. Também Martim Moxa retoma esta mesma oposição, mas transformando-a num tema moral por excelência, ao contrapor o mal presente ao bem passado, neste «sirventês», que, até por isso mesmo, pode ser considerado um exemplar típico do género (para além de constituir uma notável antecipação camoneana) (B 889, V 473): Amigos, cuid'eu que Nostro Senhor nom quer no mundo já mentes parar: ca o vejo cada dia tornar de bem em mal e de mal em peior; ca vejo bons cada dia decer e vejo maaos sobr'eles poder; por en nom hei da mia morte pavor ( ...)
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Também em relação a esta cantiga nos poderíamos perguntar se não seria um dos «joguetes de arteiro» de que fala a «Arte de Trovar».
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A oposição mal/bem está ainda presente num outro «sirventês» de Martim Moxa (B 915, V 502), que tem a particularidade, rara nos Cancioneiros, de acabar com uma alegoria (figura cara aos autores medievais, mas com esta única ocorrência nos Cancioneiros), no relato do sonho em que vê duas aves a lutar, a pequena bubela (poupa) derrotando a grande garça1. Ainda com animais surgem, no cancioneiro satírico, diversas comparações, como a donzela de «rostr'agudo come forom» de Caldeirom ou Pero Viviães (B 1619, V 1152), ou, no mesmo universo, a donzela «negra come carvom» e «velosa come cam» de Afonso X (B 476), donzela essa que (numa referência a ventosidades anais) faz «come sisom» e «come camelos». Também em Afonso X encontramos uma outra comparação, de poderoso efeito visual, no retrato de uns fidalgotes de província, enrolados nos seus mantos, que agitam incessantemente, «em que semelham os bois das ferradas,/ quando as moscas los veem coitar» (B 492, V 75). O escudeiro João de Gaia começa a sua sátira contra um cavaleiro que em meio ano tinha mudado três vezes de senhor exatamente com uma comparação (em abertura de cantiga esta comparação confere-lhe uma notável força satírica) (B 1448, V 1058): «Come asno no mercado/ se vendeu um cavaleiro/ de Sanhoan'a janeiro/ três vezes – éste provado». Três comparações estão ainda no âmago de uma das mais brilhantes sátiras contra a cobardia dos cavaleiros das guerras da Andaluzia, da autoria de Afonso Mendes de Besteiros (B 1558). De facto, as três estrofes desta cantiga, que pintam a precipitação com que um deles tinha fugido do cenário de guerra, «sol que viu os genetes» árabes, constroem-se em grande medida à volta destas três imagens de animais em fuga: o tal Dom Foam fugiu «come boi que fer tavão», «come bezerro tenreiro», «come cam que sal de grade». Como a maioria dos exemplos antes citados nos fazem ver, mesmo no que diz respeito a figuras de estilo, os trovadores e jograis galego-portugueses mantêm-se, pelo menos no cancioneiro satírico, muito próximos de um realismo quotidiano de fortes raízes populares. O mesmo transparece num outro recurso linguístico frequente nas cantigas satíricas – os provérbios. Está por fazer um estudo sistemático desta matéria nos Cancioneiros. Mas o seu uso recorrente nas cantigas satíricas é mais uma prova da
1 A explicação da alegoria não é pacífica. Um resumo das diversas interpretações, mais uma nova e bem fundamentada leitura, em M. Brea, J. M. Bustamante, I.G. Fernández, «Animales de referencia y animales de significación en la lírica gallego-portuguesa», Separata do Boletim de Filologia, n" 29, Lisboa, Centro de Linguística da Universidade Clássica, 1984, pp. 75-100.
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ligação deste género com as tradições e a linguagem populares, de que os provérbios certamente são um dos elementos típicos1. Em Pero da Ponte encontramos, por exemplo, este, a servir de refrão a uma sátira contra uma velha (pelo menos assim chamada) soldadeira (B 1628, V 1162): «a boi velho nom lhi busques abrigo». Um trovador que parece ter sido perito nesta arte de utilizar o provérbio, ou o vervo antigo, como lhe chama numa cantiga (B 1502), é João Garcia de Guilhade. Nessa mesma cantiga, o provérbio, servindo também de refrão, diz: «Castanhas eixidas, e velhas per souto». Cantigas como esta levantam muitas vezes verdadeiros problemas de interpretação, já que, tendo a maioria destes provérbios desaparecido da linguagem contemporânea, é difícil entender cabalmente o seu sentido. No caso desta cantiga de Guilhade, a sátira parece visar, mais uma vez, as dificuldades materiais de um cavaleiro arruinado (como as velhas que procuram, no chão dos soutos, as castanhas esquecidas no final da colheita, tal seria a proveniência de uma inesperada liberalidade desse cavaleiro – «rebuscando o fundo da mala», diríamos talvez hoje). Mais obscuro ainda parece o refrão da cantiga que segue esta nos Cancioneiros (B 1503), e que diz: «Cada casa, favas lavam». Tratando-se da descrição de uma cena em que vários fidalgos criticavam quem comia mal, o sentido parece ser o de remeter a acusação para os próprios acusadores (o que não irá lá por casa...). Ou, ainda de Guilhade, esta expressão proverbial, que aparece no meio de uma tenção com o seu jogral Lourenço (B 1493, V 1104): «ess'é que foi com os lobos arar», e que significará «alguém que age de forma insensata». Também outro excelente trovador, Nuno Fernandes Torneol, abre um dos seus escárnios a um rico-homem trapaceiro com o provérbio: «De longas vias, mui longas mentiras» (B 1371, V 979). O próprio Afonso X constrói uma das suas cantigas de escárnio (B 474bis) em torno de um provérbio que lhe serve de refrão: «quem leva o baio, nom leixa a sela». A cantiga refere-se provavelmente a mais um cavaleiro ausente das campanhas da Andaluzia, que o rei teria anteriormente protegido. Um exemplo de um provérbio hoje em dia ainda utilizado é o que aparece numa cantiga de Rui Queimado (B 1388, V 997): «como lhi cantardes, bailar-vos-á». Não pretendemos fazer aqui um inventário exaustivo deste tipo de expressões no cancioneiro satírico (contamos
1 Convém notar, no entanto, que algumas poéticas medievais aconselham o uso de provérbios. É o caso da Ars versificatoria de Matthieu de Vendôrne, que sugere que uma boa maneira de começar um poema é com um provérbio, ou seja, uma frase ou ideia geral. Vide Edmond Faral, Les arts poétiques du XII et du XIII siècles, Paris, Champion, 1924.
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pelo menos 26 ocorrências, entre provérbios e expressões proverbiais). Para o que nos interessa, pretendemos apenas exemplificar outro dos recursos brilhantemente utilizados pelos trovadores e jograis galego-portugueses na sua arte de dizer mal.
3. Da música e das formas de apresentação «Sine musica nulla disciplina potest esse perfecta». Contrariando esta opinião de Isidoro de Sevilha1, as questões relacionadas com a dimensão musical das cantigas ou mesmo com a sua apresentação pública são totalmente ignoradas no pequeno tratado que temos vindo a citar, e a que deveríamos chamar preferencialmente, até por isso mesmo, «Arte Poética» e não «Arte de Trovar». De facto a «arte de trovar» galegoportuguesa não pode resumir-se à sua «arte poética», mesmo se consideravelmente aumentada por outras referências que não apenas aquelas a que este tratado faz referência. A música e as performances eram, como dissemos, parte integrante desta arte. E se, hoje em dia, nos é muito difícil reconstituir a produção trovadoresca neste domínio, nem por isso deixaremos de fazer um breve apanhado de algumas questões com esta matéria relacionadas, questões que se baseiam mais em hipóteses do que em dados concretos, como se compreende. Algumas destas hipóteses fundamentam-se nos estudos da música provençal que, como já dissemos, pôde mais facilmente ser estudada, devido ao número considerável de melodias que se conservaram. Quanto à música da poesia árabe peninsular, que seria também de inegável interesse conhecer, as dificuldades são grandes, já que, havendo manuscritos que a conservam, não se descodificou ainda o seu sistema de notação musical, diferente de qualquer outro conhecido. Que poderemos nós pressupor, pois, da música das cantigas satíricas – o seu som, no vocabulário galego-português – e da forma como eram apresentadas e interpretadas? Em primeiro lugar, vejamos os dados de que dispomos relativos ao primeiro aspeto. De uma forma geral, diz-nos Théodore Gérold, com base nos estudos que realizou sobre as cantigas provençais2, as melodias das diversas formas poéticas eram parecidas. O que significa que, em princípio, as cantigas satíricas não se distinguiriam 1 2
Etymologias, III., XVI. La musique au Moyen-Age, Paris, Honoré-Champion, 1932.
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musicalmente dos outros tipos de cantigas. Se este dado é relativamente interessante, ele remete-nos de novo para esse vasto campo de obscuridade que recobre toda a música galego-portuguesa (da qual, recordemos, apenas sobreviveram 13 melodias). Não vamos, neste momento, entrar na discussão das polémicas hipóteses que em torno do assunto se foram forjando, desde as dívidas da música trovadoresca para com o canto litúrgico até às relações que poderia manter com a música de raizes folclóricas e populares, ou mesmo árabes, já que os elementos de que dispomos são escassos, e não cabe nos limites deste trabalho uma discussão desta natureza. Para o que nos interessa de momento – as relações entre a música, que desconhecemos, e os textos que até nós chegaram –, uma outra questão mais pertinente é a que coloca o mesmo Gérold, ao interrogar-se sobre se a composição musical de uma cantiga corresponderia ou não ao espírito da composição poética. Atendendo ao carácter de jogos de corte refinados que preside a muitas cantigas, ao seu caráter de divertimento, Gérold acredita que nem sempre isto aconteceria. Mas muitas vezes (frequência que ele relaciona com o grau de sinceridade dos sentimentos expostos) a melodia acompanharia o sentido do poema, de forma que os lamentos do amante cortês ou da amiga, bem como as expressões de júbilo amoroso poderiam desenvolver-se ora em melodias tristes, ora em melodias alegres e bem ritmadas (muitas destas destinadas à dança). Especificando, diz-nos ainda Gérold que nos sirventeses provençais cuja música conhecemos as melodias são muitas vezes (mas nem sempre) tristes e de ritmo lento, o que pode confirmar a procura de uma certa relação da música com as palavras cantadas. De forma geral, pensamos, pois, que as cantigas satíricas deveriam apresentar a mesma variedade de ritmos e melodias da restante produção trovadoresca, e adaptar-se, com maior ou menor felicidade, ao tom dominante do poema – o que significaria, facto que convém realçar, que nalguns casos talvez o espírito satírico se estendesse à própria melodia. Nos Cancioneiros, há uma curiosa cantiga, da autoria de João Soares Coelho (V 1016), que poderia talvez ter sido construída numa relação estreita entre palavras e som. Trata-se de um escárnio contra a soldadeira Maria do Grave, baseado nos trocadilhos e demais jogos de expressão que o seu nome possibilita: Maria do Grave, grav'é de saber porque vos chamam Maria do Grave, ca vós nom sodes grave de foder, e pero sodes de foder mui grave; 166
e quer', em gram conhocença, dizer: sem leterad'ou trobador seer, nom pod'homem departir este grave.( ...) Partindo do princípio que o termo «grave» poderia aludir também a um tom musical, não seria de excluir a hipótese de que a «brincadeira» de João Soares Coelho se estendesse à própria linha melódica da cantiga1. Sobre a música, Gérold fornece-nos ainda um outro dado interessante: diz-nos ele que nos sirventeses de caráter político as melodias são muitas vezes emprestadas. Suzanne Méjean, aliás, acrescenta que uma das etimologias possíveis para o termo «sirventês» (de sirvens) poderia aludir à ideia de ser esta uma peça cuja música era copiada «ao serviço de uma outra que ela imitaria servilmente»2, ainda que reconheça que isto nem sempre se verifica no sirventês. São questões nos colocam num campo que interessa particularmente às cantigas satíricas. Como já vimos, através das claramente referidas «cantigas de seguir», a prática de utilizar melodias já feitas e conhecidas para nelas integrar poemas satíricos (o simples seguir a som) poderia ter sido usual – como, aliás, o é em todas as épocas. Era este também um dos processos mais utilizados pelos goliardos nas contrafações das sequências latinas que faziam por divertimento3. E possível assim que muitas das cantigas satíricas parodísticas de que falámos anteriormente «seguissem», se não uma cantiga particular, pelo menos o tipo de música do género dos poemas parodiados (cantares de amor ou de amigo, cantares heróicos, prantos, etc.)4. Do mesmo modo se poderá imaginar que algumas sátiras contra colegas de ofício poderiam igualmente apoiar-se em melodias da autoria dos visados, ainda que, mais uma vez, não haja nenhuma espécie de provas sobre o assunto. De qualquer modo,
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A composição constitui-se também, como se percebe (até pela referência ao «letrado» desta estrofe, e por outras referências nas duas estrofes seguintes), como uma paródia à explicação escolástica, no que toca a «departir», ou seja, a esclarecer o sentido de um termo. 2 Les poésies satiriques et morales des troubadours du XII siécle à la fin du XIII siêcle, Paris, Ag. Nizet, 1978. Esta etimologia para «sirventês», uma das possíveis (a outra é a de serem composições cantadas por servos, portanto jograis) traz-nos imediatamente ao espírito a cantiga de seguir galecoportuguesa. Mas mesmo que esta etimologia se mostrasse correta, as relações entre os dois termos (e as composições que nomeiam) serão difíceis de estabelecer. 3 Susanne Méjean, ibid. As melodias dos goliardos também são de difícil reconstituição devido ao sistema de notação usado nos manuscritos. Como nos diz Albert Seay: «There is, however a strong suggestion that many of the melodies used by the Goliards were of sacred origin, a not implausible source in view of the coustom of troping». Um desses «contrafacta» é a peça «O admirabile Veneris idolum» (um poema defendendo a homossexualidade), que usa a melodia de um hino processional «O Roma nobilis». Music in the Medieval World, New Jersey, Prentice-Hall Inc., 1965, p. 61. 4 A mesma opinião tem Pierre Bec, Burlesque et obsenité..., op. cit..
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e até porque, como já vimos, a acusação de plágio era sempre um risco, grande parte dos poemas satíricos deveriam ter tido música original, em maior ou menor consonância, como dissemos, com o espírito das palavras que eram cantadas. O caso particular das tenções levanta ainda alguns problemas curiosos, ao mesmo tempo de ordem musical e cénica. David J. Jones, por exemplo, num estudo sobre as tenções provençais1, imagina deste modo o cenário de uma tenção: quando as senhoras se retiravam, nesses tão mais imaginados do que concretamente descritos serões medievais, era o momento da tenção; um jogral levantava-se então (Jones parte do princípio, não muito rigoroso, de que seriam normalmente os jograis a começar) e anunciava que tinha preparado uma estrofe que esperava resposta; tocava então algumas notas de uma música conhecida; por entre risos e comentários, iniciava o seu canto; ao fim da primeira estrofe, havia novamente palmas e risos, e só depois um trovador se levantava (o nomeado pelo jogral) e, sobre a mesma música, iniciava a resposta. Apesar de termos muito pouca documentação concreta sobre este cenário, nas suas linhas gerais (e se excetuarmos a retirada das senhoras, que nos parece da ordem do anacronismo), é este um cenário verosímil, pelo menos para uma parte destas cantigas, que funcionariam assim como uma espécie de cantares ao desafio, onde, como dissemos, o que estava sobretudo em jogo era a mestria de cada um na arte de trovar. E que funcionariam também, claro, como divertimento para a audiência, que vemos bem tomando partido por cada um dos adversários. Nos Cancioneiros, duas tenções parecem confirmar este caráter lúdico do género, ao mesmo tempo que nos dão algumas preciosas indicações de ordem «cénica». Uma delas é a que Paio Gomes Charinho manteve com Afonso X2 (B 1624, V 1158), sobre um enorme jantar que o rei teria comido em casa de um dos seus vassalos, prejudicando assim, argumenta ironicamente Charinho, os herdeiros do proprietário da casa. O modo como a tenção está construída, com ligeiras referências ao lugar onde está a ser cantada a tenção («porque viestes jantares comer,/ que home nunca de vosso logar/ comeu?» pergunta Charinho no início), faz-nos pensar que o momento da tenção teria sido exatamente o final do dito jantar – e que a tenção constituiria um divertido
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La tenson provençale, 1974, Genéve, Slatkine Reprints. Ou, eventualmente, e uma vez que o interlocutor de Charinho nesta tenção nunca é nomeado, com seu filho e herdeiro, o infante D. Fernando, como defende Resende de Oliveira (op. cit., p. 534). Para o que nos interessa de momento este dado não é significativo. 2
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reconhecimento da excelência da hospedagem1. Aliás os jantares (os maus jantares) eram, como se sabe, um dos temas prediletos de trovadores e jograis. Da mesma forma, um bom jantar mereceria, certamente, no seu final, uma tenção. Também uma outra interessante tenção de Garcia Peres com Afonso X, desta vez sobre uma velha peliça que o rei insistiria em usar (B 465), nos permite visualizar o cenário em que a composição teria sido, pelo menos, apresentada, ao mesmo tempo que nos dá igualmente conta dessa função de divertimento que as tenções não deixariam de desempenhar. O cenário é agora diferente: um cenário de guerra (é, aliás, essa a justificação que o rei dá para o uso da velha peliça), com uma audiência composta por cavaleiros e coteifes, a um dos quais o rei se teria dirigido no fim da cantiga para dar a dita peliça. De facto, rejeitando o conselho de Garcia Peres para a deitar para um monturo, Afonso X termina desta forma a tenção: «e muito tenh'ora que mui mais val/ em dá-la eu a um coteif’aqui». O que muito provavelmente teria feito, prolongando o divertimento para além da própria cantiga. As tenções levantam ainda um outro problema, aflorado por Jones no cenário atrás transcrito, ao referir a música de que o jogral se serviria para iniciar o «debate», problema que nos leva para um outro domínio. De facto, quem seria o autor da música em composições como estas, de dupla autoria? Não podendo nós conceber que todas as tenções fossem feitas a partir de músicas alheias e conhecidas (como é o caso no cenário proposto por Jones) – até porque, nesse caso, elas seriam todas cantigas de seguir –, teremos que aceitar que muitas destas «disputas» seriam previamente trabalhadas e ensaiadas, de comum acordo, pelos dois contendores. Nos Cancioneiros há uma cantiga que parece confirmar esta hipótese. Trata-se de uma das várias tenções em que entra o jogral Lourenço, desta feita iniciada pelo trovador João Soares Coelho, que o acusa, muito concretamente, de roubar tenções alheias (V 1022). Diz João Soares: - Quem ama Deus, Lourenç', am'a verdade, e farei-ch'entender por que o digo: home que entençom furt'a seu amigo semelha ramo de deslealdade; e tu dizes que entenções faes 1 De qualquer forma, esta jocosa discussão de Paio Gomes Charinho com o rei não deixa de ter como pano de fundo as queixas e conflitos em torno do tradicional direito medieval aos jantares, ou seja, a obrigação a que estavam sujeitos os vassalos de alimentar os seus senhores (e séquito) aquando da sua passagem pelos seus domínios. É desta problemática que parte Charinho
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que, pois nom rimam e som desiguaes, sei m'eu que x'as faz Joam de Guilhade. - Joam Soares, ora m'ascuitade: eu hôuvi sempre lealdade migo; e quem tam gram parte houvesse sigo em trobar com'eu hei, par caridade, bem podia fazer tenções quaes fossem, bem feitas; e direi-vos mais: lá com Joam Garcia baratade. ( ...) Como se compreende (e Lourenço também compreende), a intenção de João Soares Coelho é tanto a de meter-se com o jogral como com o seu amo, João Garcia de Guilhade (cujas tenções, alegadamente roubadas por Lourenço, «nom rimam e som desiguaes»). E, mais uma vez, Lourenço se defende, afirmando que, conhecendo perfeitamente a arte de trovar, não precisaria de ninguém que lhe fizesse as tenções (que são, a seu ver, perfeitas). Mas, para além desta habitual disputa de competências, o facto de nesta tenção se fazer referência a um (hipotético) furto leva-nos para um cenário onde as tenções teriam que ser compostas e preparadas antes da sua apresentação pública – ou não se perceberia como poderiam ser «roubadas». E não há dúvida que o tom jocoso de muitas das tenções dos Cancioneiros aponta para o caráter quase teatral deste tipo de cantigas. Mesmo no ciclo do jogral Lourenço, que não deixa, por isto, de ser um notável documento das clivagens sociais no seio da escola trovadoresca galegoportuguesa, é possível que houvesse uma parte de espetáculo, como, aliás, o próprio Rodrigues Lapa não deixa de apontar, no comentário a uma das tenções entre o jogral e o seu amo João Garcia de Guilhade (neste caso, sobre pagamentos), de que transcrevemos as estrofes finais (B 1494, V 1105): (...) - Lourenço, a mim grave nom será de te pagar tanto que mi quiser: pois ante mi fezisti teu mester, mui bem entendo e bem vejo já como te pagu'; e logo o mandarei pagar a [um] gram vilão que hei, se um bom pao na mão tever. - Joam Garcia, tal paga achará em vós o jograr, quand'a vós veer, mais outr'a quem [meu] mester fezer,
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que m'en entenda, mui bem [mi] fará, que panos ou algo merecerei; e vossa paga ben'a leixarei e pagad'[a] outro jograr qualquer. - Pois, Lourenço, cala-t'e calar-m'-ei e todavia tigo mi averrei, e do meu filha quanto chi m'eu der. - Joam Garcia, nom vos filharei algo, e mui bem vos citolarei, e conhosco mui bem [o] trobar. - O chufar, Dom Lourenço, [o] chufar! O curioso é que a tenção, estando, como parece, completa, foge a uma das regras principais deste tipo de cantigas, regra claramente enunciada na «Arte de Trovar», e que era cada trovador fazer o mesmo número de cobras e de findas do outro1. Começando Guilhade a tenção, como começa, seria de Lourenço a última palavra. Em vez disso vemos aqui Guilhade acrescentar uma nova e curta finda às duas findas anteriores (uma de Guilhade, outra de Lourenço, segundo as normas). Ora acontece que nessa última finda de Lourenço, o jogral tinha já fugido às normas, acabando com uma rima que sai fora do esquema rimático correto (deveria terminar com rima em , como a anterior de Guilhade, e não em ). Erro de Lourenço? Como Lapa sugere em nota, pensamos também que, a haver erro, é um erro perfeitamente programado para possibilitar exatamente a finda suplementar de Guilhade («O chufar, Dom Lourenço, [o] chufar!» – repetindo a rima errada), numa troça às repetidas afirmações de competência por parte de Lourenço: o que ele conhece não é o trobar, mas sim o chufar. A tenção teria sido, portanto, combinada previamente. Nalgumas outras tenções se pode adivinhar esta construção programada. É o caso da tenção, já anteriormente referida, entre João Soares Coelho e o jogral provençal Picandom (V 1021), onde, na finda, o primeiro pede desculpa ao segundo por todas as acusações que lhe tinha feito nas estrofes anteriores. Na sua resposta, Picandom alude claramente a um dos desfechos normais que poderiam ter estas «disputas» entre trovadores e jograis: a concessão de um dom (uma oferta ou pagamento) por parte do
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Diz a «Arte de Trovar»: «Se i houver d'haver finda, faze[m] ambos senhas, ou duas duas, ca nom convém de fazer cada um mais cobras nem mais findas que o outr[o]».
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nobre ao profissional. Diz, de facto, Picandom: «- Joam Soares, mui de coraçom/ vos perdoarei, que mi dedes dom/ e mi busquedes prol per u andardes» Como parece, pois, pressupor-se aqui, o pagamento poderia ser ainda um prolongamento do espetáculo (tal como vimos anteriormente acontecer na tenção sobre a velha peliça de Afonso X). A questão do caráter teatral de algumas tenções1 pode levar-nos ainda a considerar uma outra hipótese mais geral: a de elas poderem, por vezes, ser cantadas (ou pelo menos acompanhadas musicalmente), não pelos seus reais autores, mas pelos jograis ao seu serviço (como se sabe ser prática corrente com os outros tipos de cantigas). A força satírica de uma tal «encenação», sobretudo quando a matéria da tenção dizia respeito aos próprios jograis em cena, seria, evidentemente, multiplicada. Esta hipótese, vaga mas possível, parece-nos poder ser sugerida por uma cantiga de Martim Soares contra o jogral Lopo (B 1363, V 971), cantiga onde, mais uma vez, se faz uma referência concreta ao momento da enunciação. Martim Soares brinca, como é costume, com a inaptidão do jogral, neste caso para tocar cítola e cantar. E termina: «ca est'é, ai, meu senhor,/ o jogral braadador/ que nunca bom som disse» O pronome este parece implicar a presença física do jogral, eventualmente entre a audiência; mas poderia igualmente referir-se à própria execução musical da cantiga, de que Lopo se encarregaria, como acompanhante do trovador, transformando-a num sketch a que a participação do visado daria, como é óbvio, um muito maior efeito cómico. Talvez algumas das numerosas tenções visando jograis pudessem, da mesma maneira, ser musicalmente acompanhadas pelos próprios, recurso cuja dimensão cénica desmentiria a «crueldade» psicológica que um leitor atual poderia pressupor. Não temos, infelizmente, maneira de confirmar esta hipótese. Quanto às questões relacionadas, quer com o canto propriamente dito, quer com a interpretação e apresentação pública das cantigas em geral (que não apenas das tenções), a nossa ignorância é ainda mais completa. Vejamos uma primeira questão relacionada com a matéria, a questão da voz. Limitando-se aqui a apontar um dado evidente, Gérold diz-nos que alguns trovadores deveriam certamente ter boa voz enquanto outros não. É possível que, neste último caso, as suas cantigas fossem cantadas por jograis ao seu serviço. No Cancioneiro satírico há referências a jograis 1
Já António José Saraiva chamou a atenção para o caráter teatral de muitas composições dos Cancioneiros, mas referindo-se particularmente às cantigas líricas dialogadas. Vide «Nota sobre os Cancioneiros» in Poesia e drama, Lisboa, Gradiva, 1990.
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cantando cantigas de trovadores, como acontece, por exemplo, no início desta cantiga de Afonso Anes do Cotom (B 1585, V 1117): «Sueir'Eanes, um vosso cantar/ nos veo ora um jograr dizer ( ...)». Achamos, no entanto, que também os trovadores deviam eles próprios cantar muitas das suas cantigas, como se depreende do grande número de tenções que nos chegaram, tenções que, em princípio, tudo leva a crer que fossem cantadas pelos próprios intervenientes, dado até, como vimos, o caráter improvisado que muitas delas poderiam ter. Não nos parece assim tão evidente a opinião, apresentada como certa por vários autores, de que os trovadores compunham e os jograis cantavam1. Ainda que a composição fosse, em teoria, o campo exclusivo dos trovadores (ou, pelo menos, pretendessem eles que o fosse) o inverso não seria tão exato. A frente retomaremos, no entanto, esta matéria. As referências ao canto propriamente dito são raras nas cantigas que nos chegaram (ao contrário do que acontece com as referências à competência poética ou de execução musical). Mas encontramos ainda assim uma curiosa cantiga que faz referência aos estragos que a vida dissipada teria feito na voz de um cantor. Trata-se de uma sátira de Pero Garcia Burgalês contra o trovador ou jogral Fernando Escalho (B 1377, V 985): Fernand'Escalho vi eu cantar bem, que poucos outros vi cantar melhor; e vi-lhe sempre, mentre foi pastor, mui boa voz, e vi-o cantar bem; mais ar direi-vos per que o perdeu: houve sabor de foder, e fodeu, e perdeu todo o cantar por en (...) A perda da voz é aqui, claro, um pretexto para outro tipo de acusações (ou «chufas»). Mas por esta cantiga vemos como o aspeto da interpretação musical não era descurado pelos trovadores e jograis, e uma boa voz era um elemento importante a ter em conta. Como nos diz ainda Gérold, na Idade Média apreciavam-se as vozes altas e claras, facto que parece confirmar-se nesta cantiga de Pero Garcia, onde a voz que se elogia é a do adolescente (cantou bem «mentre foi pastor2»). Aliás, na segunda estrofe desta mesma cantiga o que se lamenta é que a voz do cantor se tenha tornado rouca: «...que lh'enrouqueceu/ a voz, e ora já nom canta bem». Também nos conselhos a um 1
Vide, por exemplo, Karl Julius Holzknecht, Literary patronage in the Middle Ages. New York, Octagon Books, Inc., 1966, pp. 38-39. 2 pastor= jovem, adolescente
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jogral que dá numa sua cantiga (B 1515), Gil Peres Conde inclui o imperativo de uma boa voz («Jograr, três cousas havedes mester/ pera cantar, de que se paguem en:/ é doair'e voz e aprenderdes bem...»). Voz e doaire, pois, ou seja, boa voz, graça e elegância (além de saber bem a cantiga). Na verdade, quanto à interpretação propriamente dita, ela deveria igualmente constituir, como se percebe por esta última referência, uma parte importante da arte trovadoresca. Diz-nos ainda Gérold que os numerosos ornamentos das frases musicais que se encontram, por exemplo, na notação musical de algumas cantigas de amor provençais seriam destinados a fazer valer o cantor. Para além destes ornamentos hoje detetáveis, é possível que mesmo no próprio ato de cantar os jograis (ou os trovadores) modificassem a melodia de base, acrescentando ornamentos não previstos. Também a parte cénica tinha certamente um peso considerável. Doaire, como vimos, é a primeira qualidade que Gil Peres Conde atribui ao bom jogral. A elegância, a boa apresentação, o «saber estar em cena», não seriam, portanto, certamente descurados. Mas os documentos sobre esta matéria das performances são raros e, na Península, inexistentes. Assim, e ainda que de um outro contexto e de um outro espaço geográfico, não queremos deixar de citar a descrição que o abade cistercence Ailred de Rielvaux (1109-1167) faz de uma interpretação musical, a seu ver ridícula, pelo coro de um drama litúrgico, descrição que tem o mérito de nos fazer visualizar, de uma forma muito viva, uma cena musical medieval não muito distante cronologicamente dos trovadores (tradução nossa do original latino, em nota)1: Para quê, pergunto, aquela aterradora explosão de baixos que mais parece o fragor dos trovões do que a suavidade de uma voz humana? Para quê a contração e a infração das vozes? Um homem canta em uníssono, enquanto outro canta um «discantus»; outro ainda divide e corta às fatias certas notas médias. Agora a voz
1 Cit. in John Stevens, op. cit.., p. 401, a partir de Karl Young, The drama of the Medieval Church, 2 vols, Oxford 1933, vol. I, p. 548. Para a tradução que apresentamos, e dada a existência de alguns termos técnicos, servimo-nos também da tradução para o inglês feita por este autor. O original é o seguinte: Ad quid, rogo, terribilis ille follium flatus, tonitrui potius fragorem, quam voces exprimens suavitatem? Ad quid illa vocis contractio et infractio? Hic succinit, ille discinit; alter medias quasdam notas dividit et incidit. Nunc vox stringitur, nunc frangitur, nunc impingitur, nunc diffisiori sonitu dilatatur. Aliquando, quod pudet dicere, in equinos hinnitus cogitur; aliquando virili vigore deposito, in femineae vocis gracilitates acuitur, nonnunquam artificiosa quadam circumvolutione torquetur et retorquetur. Videas aliquando hominem aperto orem quasi intercluso halitu exspirare, non cantare, ac ridiculosa quadam vocis interceptione quasi minitare silentium; nunc agones morientium, vel exstasim patientium imitari. Interior histrionicis quibusdam gestis totum corpus agitatur, torquentur labia, rotant, ludunt humeri; et ad singulas quasque notas digitorum flexus respondet.
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estrangula-se, agora parte-se, agora esforça-se, agora alarga-se com um som mais cheio. Algumas vezes – tenho pudor em dizê-lo – forçam as suas vozes até ao som de cavalos relinchando; outras vezes abandonam o seu vigor viril e uma fina voz feminina parece produzir-se, ocasionalmente por uma espécie de distorção artificial [falsete?] que vai e regressa de uns para os outros em movimento circular. Algumas vezes pode ver-se um homem de boca aberta, não cantando mas expirando o ar quase sem respiração e por uma ridícula suspensão do som ameaçando como se fosse silêncio. E logo imita a agonia dos mortos ou as experiências do êxtase. Durante todo este tempo todo o seu corpo está em movimento com o tipo de gestos usado pelos atores – os lábios agitam-se e giram, os ombros levantam-se e baixam-se, e os dedos respondem com flexões a cada nota cantada. Excessivo, portanto, e sem qualquer doaire este coro que aqui é descrito. Uma descrição que, no entanto, nos dá conta, pela negativa, dos numerosos recursos «expressivos» que poderiam ser postos em jogo na apresentação pública de uma cantiga, recursos que, estamos em crer, não deixariam de ser utilizados, especialmente quando o seu caráter satírico fosse dominante. Genericamente, e quanto à performance, seria pois provável que não só as interpretações variassem conforme as capacidades vocálicas do cantor, como estes procurassem que o canto acrescentasse uma expressão suplementar à melodia e às palavras cantadas – o que, nas cantigas satíricas, poderia corresponder a variadíssimos efeitos musicais, vocálicos ou outros, hoje cm dia impossíveis de recuperar (aos possíveis efeitos «teatrais» já nos referimos anteriormente). Em resumo, a arte satírica trovadoresca era certamente uma arte compósita, que reuniria elementos de vária natureza e cujo produto final só poderemos hoje supor. Expressão poético-musical essencialmente oral (como, aliás, todos os géneros trovadorescos), ela estaria certamente longe da fixidez que os textos que até nós chegaram nos dão a ver. Ao lê-los e analisá-los não podemos, no entanto, deixar de fazer nossas as palavras de Paul Zumthor: «Ce que je propose à l’attention, c'est l'aspect corporel des textes médiévaux, leur mode d'existence en tant qu'objects de perception sensorielle»1. Mesmo que o conhecimento exato desse modo de existência nos esteja hoje vedado, não poderemos nunca deixar, com maior ou menor nitidez, de o pressupor.
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La poésie et la voix, op. cit.. p. 12.
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II. O CORPUS SATÍRICO GALEGO-PORTUGUÊS
1. Personagens e motivos
Por volta do ano de 1230, na localidade de Moimenta, um dos mais poderosos ricos-homens do reino de Portugal, D. Abril Peres de Lumiares – na altura tenente, ou seja, administrador civil e militar, das terras de Sobre-Tâmega (Lamego e Viseu) – dá em casamento a sua filha D. Urraca ao rico-homem D. João Martins «Chora», da também muito ilustre família dos Riba de Vizela. D. Urraca Abril é, no entanto, uma noiva contrariada: o casamento, fruto das habituais alianças político-familiares da época – ambos, sogro e escolhido genro, fazem parte da oposição ao contestado rei D. Sancho II – realiza-se por exclusiva imposição paterna e contra a vontade manifesta da noiva (ainda que não saibamos se aberta ou se passivamente expressa). Outro pretendente tinha D. Urraca Abril: o também não menos ilustre rico-homem D. Martim Gil, ao tempo valido e homem de confiança do rei D. Sancho1. Ignoramos, aliás, se este pretendente rejeitado seria mais do agrado de D. Urraca (que vem posteriormente a casar-se, em segundas núpcias, com o trovador D. João Garcia Esgaravunha). Mas por volta desse ano de 1230, este típico drama medieval de que D. Urraca é protagonista é publicamente propagandeado por um outro trovador, D. João Soares Sormsso, numa cantiga satírica que refere os dados essenciais do caso, relatando a desventura da noiva e implicitamente afirmando a prepotência de D. Abril Peres de Lumiares (para a cantiga, vide p. 116). Uns anos mais tarde, muito provavelmente algures em Castela, a soldadeira Ouroana adquire um cavalo. Esta sua súbita prosperidade é saudada por João Garcia de 1
E posteriormente seu defensor até ao fim, tendo inclusivamente os seus bens sido confiscados pelo vencedor, D. Afonso III. Estes e outros pormenores históricos são desenvolvidos por Carolina Michaëlis, CÁ, II, p. 298 e ss.
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Guilhade, numa cantiga que celebra o caso, por entre alusões irónicas e eróticas (B 1499, V 1109): Dona Ouroana, pois já besta havedes, outro conselh'ar havedes mester: vós sodes mui fraquelinha molher e já mais cavalgar nom podedes; mais, cada que quiserdes cavalgar, mandade sempr[e] a besta chegar a um car[v]alho, de que cavalguedes (...) Qual é o universo das cantigas de escárnio e maldizer galego-portuguesas? Estes dois exemplos que escolhemos um pouco ao acaso no corpus que até nós chegou, com as óbvias diferenças que os separam, podem servir-nos talvez de ponto de partida para a compreensão da estrutura e do sentido desta «lírica do realismo» (para utilizarmos novamente a feliz expressão de Peter Dronke) galego-portuguesa: uma lírica que, como estes cantares nos mostram, se ancora prioritariamente em personagens reais – tornadas alvo da sátira – e que se apresenta geralmente como um comentário, mais ou menos sério, mais ou menos jocoso, a um facto social, político ou meramente quotidiano de que essas personagens são protagonistas (facto esse que, aliás, é muitas vezes um mero pretexto para a chufa à personagem no seu todo, como acontece no segundo exemplo, onde a referência inicial à aquisição do cavalo serve apenas de abertura a toda uma série de referências licenciosas sobre a vida pessoal da soldadeira, assunto que é o verdadeiro motivo da cantiga). De qualquer forma, escarnecer ou dizer mal de alguém – ainda que em tons e graus muito variados – é, pois, muito claramente, o objetivo de trovadores e jograis neste tipo de cantigas (exatamente como a «Arte de Trovar» nos indica), e esta intenção pragmática muito definida distingue-as, de imediato, dos outros tipos de cantigas por eles cultivadas: as cantigas de escárnio e de maldizer são, antes de mais nada, e a seu modo, uma literatura de intervenção – intervenção, aliás, muito mais imediata e dirigida do que a que iremos encontrar em toda a literatura satírica posterior (de Gil Vicente a Eça de Queirós, para citarmos apenas estes dois grandes pontos de referência)1. Diga-se, aliás, que um dos equívocos mais imediatos (e frequentes) na abordagem deste corpus é o da tentação de nele se procurarem imediatamente delimitar
1
E não nos esqueçamos ainda do seu particular modo de existência: as cantigas destinavam-se a serem cantadas perante um público que conhecia ou, pelo menos, podia referenciar as figuras aludidas.
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«tipos» – esquecendo o dado elementar de que não estamos aqui, de facto, em face de «tipos», mas de personagens reais a quem são dirigidas as cantigas, personagens que só à posteriori, e numa análise de conjunto, podem originar a sensação de personagenstipo abstratas (como, por exemplo, «o infanção pelintra», «a soldadeira»). O «tipo», sublinhe-se, é aqui um efeito de leitura e não um princípio de construção (como acontece em Gil Vicente ou em Eça), ainda que, claro, os esteriótipos em relação a determinados grupos sociais possam ter contribuído para a formulação de muitas destas cantigas. Mas na época da sua divulgação pública não podemos duvidar que o seu efeito era menos o do efeito de reconhecimento que o «tipo» proporciona do que o efeito de surpresa de uma razom particularmente adequada a uma personagem ou a um facto individuais (e reconhecíveis, na generalidade dos casos, pela audiência). (Se nos lembrarmos da posição crítica de Aristóteles face aos «poetas jâmbicos» que se referiam a «personalidades existentes», teremos, pois, que considerar que esta é uma arte nãoaristotélica.) Parece-nos, aliás, ser este caráter imediatamente pragmático e dirigido das cantigas de escárnio e maldizer o que explica uma das características centrais deste corpus e que é o da sua relativa uniformidade estrutural. Por uniformidade estrutural entendemos aqui, não a real diversidade formal entre as cantigas, estabelecida ao nível das maneiras a que antes fizemos referência, mas sim a sua organização textual interna, ou seja, o desenvolvimento da matéria satírica ao longo da cantiga. De facto, este desenvolvimento é feito geralmente segundo um modelo mais ou menos fixo, que Tavani descreveu deste modo1: Na cantiga d'escarnh' e de maldizer ( ...) faltan logo exordio e preâmbulo – ou polo menos o que se adoita designar, nos textos líricos de inspiración trobadoresca, con tales términos. Mais nun número importante de textos, como xa se dixo, á primeira cobra confíaselle un papel introductor marcado por unha relevante interferencia da función narrativa: a esta, repetímolo, correspóndelle presentar ou describi-lo feito, a acción, o comportamento que as cobras sucesivas están encargadas de repetir variando, ou de glosar en términos de eséxese satírica. Nestes casos temos, xa que logo, unha clara partición do texto en dous segmentos, caracterizados un polo exposición lóxico-cronológica dunha serie de acontecementos, o outro por retomar un ou máis destes acontecementos, redistribuídos se cadra en orde distinta á primitiva, e comentados e interpretados
1
A poesia lírica galego-portuguesa, op. cit., p. 176.
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segundo as figuras da repetición e/ou da ironia, ou ben suxeitos a unha relectura deformante capaz de suscitar asemade riso e deprecación. De facto, e quer estejamos face a uma cantiga de seguir, uma tenção, um maldizer aposto, ou qualquer outras das formas antes referidas, a cantiga satírica dos Cancioneiros organiza a sua matéria fundamentalmente segundo o esquema descrito por Tavani e que podemos resumir da seguinte forma: uma primeira estrofe nuclear na qual o escárnio ganha forma e que apresenta diretamente a personagem e o(s) motivo(s) da sátira – elementos que, conjuntamente com a abordagem específica que deles é feita, constituem o que os trovadores chamam a razom da cantiga – seguida de uma série de variações – geralmente uma segunda ou uma terceira estrofe, menos frequentemente uma quarta (exceto nas tenções, que normalmente têm 4 a 6 estrofes), podendo, mas em casos excecionais, o seu número ser mais elevado (a já referida cantiga de Airas Peres Vuitorom sobre a traição dos alcaides, por exemplo, tem dez estrofes) –, o conjunto terminando ou não com finda(s). (Diga-se, em parêntesis, que uma das mais evidentes diferenças entre o escárnio galego-português e o sirventês provençal é exatamente a brevidade «epigramática» do primeiro em contraste com o habitual grande número de estrofes deste último)1. Em traços gerais, esta estrutura interna mais ou menos fixa da cantiga de escárnio e de maldizer não deixa de ser, pois, também ela, circular e repetitiva, à semelhança do que acontece geralmente quer na cantiga de amigo, quer na cantiga de amor. Mas repetitividade que, neste caso, se adapta extraordinariamente bem à função pragmática de dizer mal de que falávamos antes. Como bem descobriu a publicidade contemporânea, as variações sobre temas nucleares simples constituem uma das mais poderosas formas de propaganda pública. A arte da chufa galego-portuguesa não difere essencialmente deste princípio. Como dissemos, é a figuras e a acontecimentos do seu quotidiano que trovadores c jograis vão buscar a matéria que desenvolvem neste modelo. Parece-nos assim importante retomarmos aqui a pergunta que Rodrigues Lapa, em jeito de programa futuro, coloca no prefácio à sua edição: «Que sucessos ou que personagens suscitaram 1 Tavani contabilizou deste modo o número de estrofes do conjunto das cantigas dos Cancioneiros: 994 poesias com três cobras e 413 com quatro cobras, o que dá um total de 1407 nos 1679 textos que nos chegaram (e haveria ainda a descontar as 54 composições de que só nos chegou uma estrofe, pelo que é impossível saber quantas teriam). Ibid., p. 83. Nas cantigas de escárnio e maldizer estes números são ainda mais significativos.
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o gracejo ou o sarcasmo dos escritores da época?»1 Quem e o quê podia, pois, desencadear uma cantiga deste tipo? Se considerarmos novamente os dois exemplos com os quais iniciámos este capítulo, teremos de concluir que, à primeira vista, qualquer motivo ou qualquer personagem da vida contemporânea de trovadores e jograis, independentemente do seu caráter, ou mesmo do estatuto da personagem, seriam susceptíveis de desencadear uma cantiga de escárnio e maldizer. Por outras palavras, uma espontaneidade quase jornalística parece, de facto, ser a única regra neste domínio. São, aliás, muito frequentes, neste corpus, as cantigas que começam com uma referência temporal concreta, muitas vezes em forma de testemunho pessoal do trovador: ontem estive, outro dia aconteceu-me, vejam o que presenciei ontem, ou um dia destes, etc.. Mas, desta regra geral, que a frequente comparação com o jornalismo pode tentadoramente simplificar, que espécie de arte satírica resulta em específico? Vejamos, em primeiro lugar, a quem são dirigidas as composições do nosso corpus. A estrutura das cantigas facilita um levantamento deste género: como vimos, é à primeira estrofe que cabe um papel introdutor. Na grande maioria das cantigas essa estrofe apresenta claramente a personagem a quem é dirigida a chufa – geralmente em forma de vocativo (o trovador dirige-se ao próprio satirizado), noutros casos nomeandoa apenas. Em qualquer caso, é possível fazer um levantamento geral dos destinatários destas cantigas, partindo dos grupos sociais ou socio-profissionais a que pertencem, matéria que, em geral, trovadores e jograis não deixam também de referenciar. O quadro que apresentamos em seguida expõe, assim, por esses grupos, todas as personagens que servem de alvo satírico principal aos trovadores e jograis nas cerca de 465 cantigas que até nós chegaram. Servimo-nos, para a sua elaboração, quer dos dados fornecidos pelos próprios textos ou pelas rubricas que os acompanham (que são numerosos), quer dos dados históricos exteriores que nos foi possível apurar (os grupos «personagens várias» e «mulheres várias» – achámos conveniente colocar as personagens femininas num grupo à parte – agrupando as personagens sobre as quais foi impossível encontrar qualquer referência indicadora). Tenha-se em atenção que os números apresentados, que nos parecem úteis em termos comparativos, têm uma função essencialmente indicativa. Por um lado, porque algumas cantigas oferecem, como já 1
Op. cit., p. X.
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referimos, reais problemas de leitura. Por outro lado, porque, dado o facto de também algumas cantigas não serem pessoalmente endereçadas, o seu alvo pode não ser imediatamente visível (repare-se, mais uma vez, na citada cantiga sobre o casamento de D. Urraca Abril1). Ainda que estes casos não sejam os mais frequentes, eles implicaram, no entanto, uma leitura pessoal classificadora.
QUADRO 1 Personagens a quem são dirigidas cantigas
soldadeiras religiosas criadas alcoviteiras mulheres várias clérigos alto clero papa Deus alta nobreza/altos funcionários rei ricos-homens infanções cavaleiros/pequena nobreza escudeiros cavaleiros (campanhas da Andaluzia) alcaides (deposição de D. Sancho II) burgueses/vilãos homens de leis médicos mercadores castelhanos judeus (com referência a) mouros (com referência a) personagens várias sociedade (geral) trovadores e jograis cantigas obscuras
1
Nº de cantigas 43 10 1 1 51 10 6 1
17 7 48 11
23 27 22
72 7 14 3 4 6 6 3 2 3 14 40 14 86 3
Ainda que neste caso a dificuldade tenha sido mitigada pelo facto de todas as personagens nela referidas pertencerem à alta nobreza, um dos grupos sociais que considerámos.
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Não queremos deixar de fazer um breve comentário preliminar a este quadro. Antes de mais, e de uma forma geral, ele parece confirmar que o universo histórico de referência das cantigas satíricas galego-portuguesas é essencialmente o universo social no qual trovadores e jograis se moviam, ou seja, o dos círculos dirigentes da época ou círculos fisicamente a eles afins – é neles que trovadores e jograis encontram os alvos das suas chufas, é a eles que se dirigem. O reduzido número de cantigas satirizando quer burgueses, quer vilãos (ou mesmo judeus ou mouros, grupos cuja presença na Península é, na época, indiscutível) é, a este respeito, altamente elucidativo – e não é de crer que tal facto tenha algo a ver com a precaridade do nosso corpus. Antes terá a ver, parecenos, não só com questões de proximidade física, mas também com a função de intervenção pública destas cantigas, com a sua pertinência em relação ao auditório cortês que era essencialmente o seu. De uma forma mais particular, o quadro confirma também, numericamente, a importância, habitualmente referida, de dois tipos de personagens na sátira galegoportuguesa: as soldadeiras, e os infanções e ricos-homens. Quanto às primeiras, elas são o exemplo típico de um grupo que os condicionalismos da cultura medieval cortês tornam próximo das esferas do poder. De facto, dançarinas ou bailadeiras que viviam destes e geralmente de outros «serviços» (por eles recebendo «soldada»), as soldadeiras encontram-se um pouco por todo o lado na sociedade medieval. No Regimento da Casa Real de Afonso III, datado de 1258, pode ler-se, por exemplo, no «degredo 11º»: Soldadeiras nom andem em casa d'el rei, nem outras molheres senom aquelas que suso som ditas, e se vierem soldadeiras a casa d'el rei nom estem i senon por três dias, e se lhes el rei quiser dar algo dê-lho, senon vão-se.1 Da sua permanência mais ou menos prolongada e frutuosa não só cm casas reais como de nobres e mesmo de prelados não restam, no entanto, dúvidas. Em 1324 o Concílio de Toledo refere-se-lhes nestes termos2: A nossa comarca está penetrada de uma detestável imoralidade, pois as donas que o vulgo chama soldadeiras entram publicamente nas casas dos prelados e dos
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Herculano, Portugaliae Monumenta Historica, Leges, p. 198. Coleccion de cánones y concílios, por J. Tejada y Rarniro, III, p. 522, cit. in Menéndez Pidal, Poesia jugralesca..., op. cit., p. 59. 2
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magnates, convidadas para a mesa; essas, impregnadas de conversas depravadas e falares desonestos, corrompem os bons costumes e o que é mais fazem espetáculo de si mesmas1, pelo que ordenamos a todos, especialmente aos prelados, ameaçando-os do castigo do Céu, que não permitam a tais donas entrar nas suas próprias casas nem as façam suas mulheres. Não é de admirar, pois, que as soldadeiras, movendo-se no mesmo espaço físico dos trovadores e dos jograis – e sendo tão próximas deles ainda pela sua atividade profissional – sirvam de alvo a numerosíssimas cantigas de escárnio e maldizer. Quanto aos infanções e ricos-homens, é inevitável eles constituírem outro dos alvos preferenciais destas cantigas, já que eles representam, de facto, o grupo central por excelência da sociedade medieval – tanto na corte, como fora dela – e portanto o grupo mais próximo dos trovadores e jograis (quando não, inúmeras vezes, o seu próprio grupo social de origem). Não admira assim que seja também este grupo um dos dominantes neste corpus. O que talvez já seja mais de admirar é o elevado número de cantigas que têm como alvo os altos funcionários, e mesmo o rei. Sinal de independência e liberdade crítica? Simples consequência de uma maior proximidade quotidiana? Teremos oportunidade de retomar estas questões. Mas um outro aspeto que não deixa de sobressair imediatamente neste quadro é o elevadíssimo número de cantigas que «jogam em casa», ou seja, nas quais os visados são os próprios trovadores e jograis (86), de longe o grupo de cantigas mais numeroso, como se pode verificar. E esta é, de facto, uma das características mais marcantes no conjunto das cantigas de escárnio e maldizer. Como veremos, se muitas destas cantigas são chufas à vida privada dos poetas – o que não admira, dado tratar-se de um círculo relativamente fechado e também fisicamente muito próximo –, muitas outras têm como motivo a arte de trovar e questões correlativas. As cantigas de escárnio e maldizer funcionam, como dissemos, como uma espécie de bastidores da arte trovadoresca em geral, lugar de discussão de regras e competências. Em resumo, o universo de referência histórica das cantigas de escárnio e maldizer galego-portuguesas é bem o da sociedade medieval, mas uma sociedade tal como os autores dessas cantigas a apercebiam. Descontando os grupos que para eles (e também para o seu público) eram periféricos, como burgueses, vilãos, mouros ou judeus,
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Como dançarinas, compreenda-se.
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trovadores e jograis parecem realmente fazer nas suas chufas uma espécie de jornalismo do quotidiano, com uma relativa liberdade de movimentos quanto aos alvos a atacar. Vejamos agora, também de uma forma preliminar geral, a questão dos motivos que dão origem a esses ataques. Antes de mais, convém talvez clarificar de novo o que pode ser aqui entendido por motivo. Para isso, regressemos aos dois exemplos do início deste capítulo. Quanto à primeira cantiga, compreende-se facilmente que o motivo da chufa é o próprio facto a que ela alude, o escândalo do casamento contrariado da ilustre ricadona. Mais dois outros casamentos contrariados aparecem, aliás, como motivo de cantigas, como veremos. Mas no caso da segunda composição o verdadeiro motivo da chufa (aquilo que se critica ou com que se brinca) não é, evidentemente, o facto de que ela parte (o da aquisição de um cavalo por Ouroana) – esse é o pretexto para uma chufa que visa essencialmente as atividades sexuais da soldadeira em vários domínios. É evidente que a definição do motivo ou motivos de uma chufa é menos imediata do que a definição da personagem a quem ela se dirige (ainda que também o motivo seja geralmente apresentado na primeira estrofe). Em muitas cantigas, sobretudo naquelas que se constroem a partir de um equívoco, o que realmente se pretende atingir é mais sugerido do que explicitamente enunciado. No entanto, também uma leitura atenta destas cantigas permite quase sempre encontrar o seu real (ou reais) motivo(s). Partindo destes pressupostos, apresentamos em seguida um segundo quadro que regista todos os principais motivos aludidos, de forma mais aberta ou mais subtil, por trovadores e jograis ao longo destas 465 composições, com indicação do número de, cantigas em que esses motivos se repetem. Como se compreende, em numerosas cantigas trovadores e jograis chufam dos visados por mais do que um motivo (o alto funcionário homossexual e corrupto, a soldadeira velha e devassa, por exemplo). Por outro lado, temos ainda os casos em que todos estes motivos de chufa às personagens visadas são complementados com um registo paródico – o que significa que, por exemplo, um escárnio de amor dirigido a uma soldadeira aludindo aos seus excessos sexuais terá também como motivo a sátira ao universo do amor cortês (é também uma chufa aos padrões da escola). Optámos por referenciar separadamente todos os motivos a que as cantigas aludem, por questões de maior objetividade, num quadro que se destina a apresentar o universo temático geral da sátira galego-portuguesa. Isto explica que o total das cantigas deste quadro seja superior ao número de cantigas do nosso
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corpus. Acrescente-se que a ordem seguida neste quadro procura ir dos motivos da ordem do mais privado para o mais público, ainda que de uma forma mais aproximada do que rigorosa. Distinguimos, porque achámos mais conveniente, um grupo final autónomo que agrupa separadamente os motivos das chufas que trovadores e jograis mutuamente se dirigem, nele incluindo igualmente os motivos referentes à sua vida privada (que geralmente não diferem dos motivos invocados em relação às restantes personagens). Todos os números apresentados são, tal como no quadro anterior (e aqui ainda com mais razão, como se compreende), puramente indicativos: QUADRO II Motivos que estão na raiz das chufas
comportamentos sexuais (geral) vida sexual dos religiosos/as homossexualidade masculina homossexualidade feminina adultério gravidez fora do casamento relações incestuosas relações escandalosas doenças venéreas impotência sexo e dinheiro excessos vários bebida maus tratos domésticos raptos casamentos forçados entrada forçada para o convento aspeto físico feminino aspeto físico masculino modas defeitos físicos velhice doença/ morte feitiçaria/ astrologia/ superstições maledicência duplicidade/ mentira bajulação/ oportunismo ambição/ ganância falta de escrúpulos/ corrupção roubo falta de pergaminhos avareza, escassez/ pelintrice
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Nº de cantigas 50 14 29 4 15 3 2 5 3 4 12 3 2 4 3 4 4 11 4 5 9 11 4 12 3 4 3 8 8 10 17 47
arrogância fanfarronice recusa de hospedagem cobardia traição falta de palavra comportamentos políticos concretos vida religiosa sociedade (geral) reações a cantigas de maldizer cantigas de carácter lúdico cantigas circunstanciais cantigas obscuras Trovadores e Jograis vida pessoal arte de trovar plágio hierarquias pagamentos paródias ao amor cortês ciclo do jogral Lourenço ciclo da ama
3 3 2 9 11 8 14 2 14 3 13 17 3 37 41 2 13 6 27 13 5
Nota: Com uma referência encontramos ainda os seguintes motivos muito específicos: abusos sexuais, incentivo à prostituição, lepra, caça, cobrança de impostos, atitudes originais.
Como este quadro nos dá a ver, até pela diversidade dos motivos que estão na raiz das cantigas, o universo temático da sátira galego-portuguesa é bem um universo do quotidiano, comentado com o que parece ser, à primeira vista, uma notável liberdade crítica. Dos comportamentos sexuais mais privados aos comportamentos políticos mais públicos, nada parece deter a verve satírica trovadoresca. No campo dos motivos sexuais, nomeadamente, não deixa de ser surprendente a liberdade com que trovadores e jograis abordam todo o tipo de assuntos, mesmo os mais «escabrosos». Neste sentido, repare-se, por exemplo, no número de cantigas que têm por motivo a homossexualidade masculina (29 cantigas), número muito superior, aliás, às referências ao adultério (15 cantigas), em princípio, tema satírico por excelência. No campo das relações sociais, o grupo de cantigas que numericamente se salienta, como se pode verificar, é o das que têm por motivo o que denominámos «avareza-escassez/ pelintrice» (47 cantigas) motivos que se ligam, como teremos ocasião de ver mais em pormenor, com o também numeroso grupo dos infanções e ricos-homens do primeiro quadro. Saliente-se igualmente, nos motivos que agrupámos no interior da escola trovadoresca, o elevado
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número de cantigas que (evidentemente em conjunto com outros) parodiam o amor cortês e a lírica «séria» dos Cancioneiros (27 cantigas). Curioso, ainda que reduzido, é também o grupo de cantigas que poderemos chamar «escárnios de segundo grau», ou seja, que tomam como motivo as reações dos visados em anteriores cantigas de escárnio (e que apenas em dois ou três casos é possível localizar no nosso corpus). O que, entre outras coisas, nos remete novamente para a questão deste corpus satírico, malgrado a sua riqueza, ser, com toda a certeza, apenas uma pequena parte da obra satírica dos trovadores e jograis galego-portugueses.
2. Um universo do quotidiano Apresentado, em traços gerais, o universo satírico das cantigas de escárnio e maldizer recolhidas nos cancioneiros, é tempo de nos debruçarmos mais concretamente sobre elas. Ora uma das consequências, não só da diversidade deste corpus (que os dois quadros interiores patenteiam), como das suas características muito específicas de personalização e pragmatismo, é a dificuldade na sua abordagem como um todo. De facto, cada cantiga, nascendo de uma circunstância ou de uma personagem particulares, tende a criar, por si só, um micro-universo próprio, que faz sentido, antes de mais, pela sua adequação imediata a esse contexto que a gerou. As cantigas de amigo ou as cantigas de amor obedecem a normas «temáticas», podem ser consideradas variações sobre paradigmas, como sejam, respetivamente, as cantigas de mulher ou o canto do amor cortês. Nas cantigas de escárnio e maldizer, com o seu muito particular aspeto de jornalismo do quotidiano, isto não acontece, e portanto a sensação de diversidade é muito mais evidente. Exceção a este quadro de diversidade são apenas o que se costuma designar por ciclos, ou seja, as séries de cantigas sobre uma mesma personagem ou circunstância, de que existem, de facto, vários exemplos neste corpus, como já vimos. Não admira assim que estes ciclos tenham tendido, em grande parte dos estudos sobre a matéria, a constituírem-se como o principal critério ordenador de abordagem deste vasto e heteróclito conjunto de cantigas. É este, nomeadamente, o critério sempre seguido por
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Rodrigues Lapa1. Mas, por justificados e reais que sejam estes ciclos, o certo é que é sempre este um critério prioritariamente factual, que forçosamente deixa de lado muitos outros factos e personagens que, por serem demasiado específicos e objeto de um única cantiga, não podem formar ciclos. Abordar o Cancioneiro satírico nesta perspetiva significaria sempre, inevitavelmente, deixar de lado a grande maioria das suas cantigas. E, no entanto, não deixa Lapa de ter razão ao chamar a atenção para a necessidade de, nas palavras referidas no início deste nosso estudo, se «fazer um balanço rigoroso dos temas escarninhos da nossa poesia medieval dos séculos XIII e XIV». E se a noção de «temas escarninhos» nos parece, como já antes referimos, questionável, a proposta que ela não deixa de transportar, a de um estudo global das cantigas de escárnio e maldizer enquanto sátiras, parece-nos, por seu lado, fundamental. A questão está na metodologia a seguir para tal trabalho. Pela nossa parte, e partindo dos pressupostos atrás referidos, optámos, por fazer, no que se segue, um estudo geral do corpus de cantigas de escárnio e maldizer dos Cancioneiros que procura ter em conta, uma vez posto de lado o critério dos ciclos, o próprio processo de criação trovadoresca neste domínio – antes de mais, como referimos, o facto de trovadores e jograis não se servirem, para a construção destas cantigas, de «temas», mas de sim de figuras do seu quotidiano (com excepção, evidentemente, dos sirventeses morais). E nada é mais claro no quotidiano medieval, aliás, do que a distinção entre classes, grupos profissionais ou étnicos. Por outro lado, se cada cantiga se pode considerar particular, não há dúvida que as cantigas dirigidas às soldadeiras, por exemplo, ou aos infanções, apresentam características geralmente comuns (e até mesmo diferenças) que podem considerar-se significativas. Abordaremos assim, num primeiro momento, os grupos de cantigas que têm como ponto comum serem dirigidas a um mesmo grupo de personagens (os grupos sociais ou socioprofissionais definidos no primeiro dos dois quadros apresentados). Não nos preocuparemos, assim, em classificar as cantigas por critérios que são obviamente
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Nas suas Licões de literatura medieval e no Prólogo à sua edição das cantigas. Os ciclos por ele estudados são: 1. A deserção dos cavaleiros na guerra de Granada; 2. A traição dos alcaides na deposição de D. Sancho II; 3. As chacotas a Maria Balteira; 4. O escândalo das amas e tecedeiras; 5. As impertinências do jogral Lourenço; 6. A decadência dos infanções. No mesmo Prólogo ele propõe ainda mais alguns ciclos, como sejam «as facécias que visam Joan Fernandes, o mouro baptizado, a viagem de Pero d'Ambroa ao Ultramar, o pederasta Fernan Dias, o pitacego Estêvan Velho, o trovador Sueir'Anes»
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alheios à escola (classificá-las, como faz Scholberg1, por exemplo, em burlescas ou satirizantes, em sátiras a classes sociais, a vícios e costumes, a traidores ou a cobardes ou em sátiras morais; para além da subjetividade do processo, iremos ver como estas categorias se confundem inúmeras vezes nas cantigas). Sobre o segundo quadro, o dos motivos das sátiras, ou do universo puramente temático deste corpus, refletiremos ainda um pouco numa fase posterior. Este estudo não pretende, de maneira nenhuma, esgotar o vasto campo de possibilidades de leitura que as cantigas de escárnio e maldizer nos oferecem. Leia-se o que se segue como uma proposta básica de revisitação de uma parte significativa da lírica galego-portuguesa.
a) As cantigas dirigidas a soldadeiras As soldadeiras são, como dissemos, um dos grupos que mais frequentemente serviram de alvo às chufas dos trovadores e jograis galego-portugueses. A palavra chufa é, aliás, a que melhor se adequa a este conjunto de cantares, que, como referimos, se processam em geral num registo erótico-satírico evidente. Este registo, claro, não é exclusivo deste grupo de cantigas – antes é extensivo à maior parte das que são dirigidas a personagens femininas – mas, no que diz respeito às soldadeiras, ele parece constituir quase uma norma fixa de construção. Não deixa de ser curioso, aliás, que não haja, em todas estas cantigas, a mais leve referência à sua atividade profissional como bailarinas2, curioso sobretudo se atendermos ao elevado número de cantigas que se referem aos bastidores da arte de trovar, nomeadamente as que dizem respeito à incompetência profissional dos jograis, grupo que podemos supor socialmente equiparado ao seu. No entanto, se as cantigas trovadorescas faziam parte do mesmo espetáculo em que elas dançavam, ou eram mesmo por elas dançadas (como se pode supor em relação a algumas delas3), esse era certamente um facto considerado exterior à arte de trovar. As
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Sátira e invectiva..., op. cit., pp. 50-135. Com uma única exceção, de que falaremos mais adiante. 3 «A julgar por las miniaturas del Cancioneiro da Ajuda, la soldadera tenia gran papel en la ejecutión de la poesia lírica gallego-portuguesa. De las 16 miniaturas del cancioneiro unicamente cuatro dibujan al juglar solo o acampañado de otro juglar o de un muchacho cantor; las doce restantes, al lado del juglar que toca, ponen la cantadora. Esta, las más das veces, toca unas castañuelas en forma de tejoletas planas, canta y baila con los brazos en alto, mientras el juglar la acompaña con el sonido del salterio o de la guitarra», Menéndez Pidal, op. cit., p. 33. 2
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soldadeiras, que, como até mesmo este elevado número de cantigas nos prova, estavam quotidianamente muito próximas dos trovadores e jograis (e proximidade atestada ainda pelo facto de grande parte destas cantigas partirem de circunstâncias de que os trovadores são testemunhas ou muitas vezes protagonistas), permanecem sempre exteriores a qualquer disputa de ordem profissional. Assim, mesmo que o registo em que elas aqui nos surgem seja muito diferente do registo condenatório e moralizante que encontramos na deliberação do Concilio de Toledo atrás citada – o tom aqui é sempre muito mais humorístico do que condenatório –, é certo que trovadores e jograis partem da mesma definição das soldadeiras essencialmente como mulheres «de vida fácil», e é exclusivamente nestes parâmetros que a elas são dirigidas cantigas. É claro que a designação «soldadeira» também não vai sem ambiguidades. E, até mesmo pelo que se depreende de muitas destas cantigas, parece evidente que as soldadeiras podiam ter estatutos variados, que poderiam ir, de facto, da profissão de bailarina, por vezes regiamente gratificada, à de simples prostituta acompanhando campanhas militares. A celebérrima Maria Peres Balteira (Maria Peres ou Maria Balteira, como também é chamada), por exemplo, a quem são dirigidas nada menos do que quinze cantigas deste grupo (ou mais, já que, segundo Pidal, Maria Leve também poderia ser ela1) era certamente uma bailarina, uma mulher proveniente da pequena nobreza que circunstâncias várias teriam feito «soldadeira»2. De resto, e se as soldadeiras não são nunca, de facto, criticadas por motivos relacionados com a sua atividade como bailarinas, não queremos deixar de referir, apesar de tudo, uma cantiga, dirigida ainda a Maria Balteira, onde esta sua atividade parece ser aludida. Trata-se de uma cantiga (que poderá, aliás, ser de seguir) de João Vasques de Talaveira (B 1546), que nela alude ao «preço» de ver a Balteira, e que nos parece dever ser lida tendo em
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Poesia juglaresca, op. cit., p. 171. Maria Peres, a Balteira, é, aliás, a única destas mulheres de quem é possível traçar uma biografia mínima. Originária de Armea, na Galiza, Maria Peres teria nascido numa família da pequena nobreza, de quem vem a herdar algumas propriedades. Do percurso que a torna soldadeira nas cortes de Castela nada sabemos. Vemo-la, numa cantiga de Pero de Ambroa, queixando-se, indiretamente, «das desonras que no mundo prendeu», já desde o tempo de Fernando III (B 1597, V 1129). Possuía terras na Galiza. Do documento de venda de uma dessas suas herdades ao mosteiro galego de Sobrado, datado de 1257 (documento em que se baseou Martínez Salazar para o estabelecimento de alguns destes dados biográficos) se depreende que deve ter acabado confortavelmente os seus dias como familiar desse mosteiro, o qual, para além do pagamento de uma renda vitalícia, ficava ainda obrigado a encarregar-se do seu enterro (programado com algum luxo, nos termos do acordo). Vide Martínez Salazar, «Una gallega celebre en el siglo XIII» in Algunos temas gallegos, La Coruña, 1898, e Documentos gallegos de los siglos XIII al XVI. La Coruña, 1911. 2
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conta a ambiguidade das expressões «ver» e do «ver ao serão» (as quais, numa primeira leitura, se refeririam ao espetáculo dos serões da corte – a segunda leitura sendo, obviamente, erótica). Eis a cantiga: O que veer quiser, ai cavaleiro, Maria Pérez, leve algum dinheiro, senom nom poderá i adubar prol. Quen'a veer quiser ao serão, Maria Pérez, lev'alg'em sa mão, senom nom poderá i adubar prol. Tod'home que a ir queira veer suso, Maria Pérez, lev'algo de juso, senom nom poderá i adubar prol. Bem mais obscuro é o estatuto ou as atividades de todas as outras referidas, algumas também repetidamente, como é o caso da soldadeira Marinha (que não sabemos até que ponto se poderá identificar com todas ou algumas das outras Marinhas que aqui surgem, Marinha Mijouchi, Marinha Lopes, Marinha Sabugal, Marinha Crespa, Marinha Foça – sendo muito provável que pelo menos alguns destes nomes correspondam à mesma pessoa). Ou ainda das seguintes, também objeto de chufa, cujos nomes nos surgem, entre escárnios a soldadeiras anónimas: Domingas Eanes, Maria Mateu, Orraca Lopes, Maior Garcia, Maior Moniz, Elvira Lopes, Ouroana, Maria Aires, Maria do Grave, Maria Leve, Maria Negra (como vemos, elas são por vezes referidas por alcunhas significativas). De qualquer forma, ausentes quaisquer referências à atividade profissional de bailarinas ou dançadeiras, que certamente pelo menos algumas seriam, é um mesmo registo erótico-satírico que liga as chufas dirigidas a estas mulheres. Erotismo que pode ir do jogo com os duplos sentidos do equivocatio às referências sexuais mais explícitas – parecendo a escolha do tom depender, não só do que poderemos chamar a sensibilidade do trovador, mas também do estatuto da mulher visada. É um facto que as chufas a Maria Balteira, por exemplo, se processam maioritariamente no primeiro registo, ou, pelo menos, com uma contenção de linguagem bem distinta da que encontramos nas chufas dirigidas a algumas outras soldadeiras («Mari'Mateu, Mari'Mateu,/ tam desejosa ch'és de cono com'eu!», canta o refrão da bem obscena cantiga em que Afonso Anes do Cotom satiriza os gostos sexuais particulares dessa 191
soldadeira (B 1583, V 1115) – repare-se, aliás no tratamento por tu utilizado nesta cantiga e que não encontramos nunca nas chufas à Balteira). Mas, como até mesmo esta última referência nos dá a ver, por mais erótico ou obsceno que seja o registo destas cantigas, ele inclui-se sempre, como acontece em todo o restante corpus, no interior de um registo satírico preciso. E assim, também ao chufarem das soldadeiras, trovadores e jograis o fazem sempre aludindo a qualquer circunstância concreta ou a qualquer motivo específico, e não partindo de qualquer generalização moralizante como a do Concílio de Toledo. Nestas 43 cantigas os motivos dizem respeito predominantemente, como é fácil depreender, a comportamentos sexuais: os trovadores e jograis chufam dos seus excessos, do amor a preços exorbitantes,
ou aludem também, como no caso acima citado, a «desvios» – as
acusações de lesbianismo, aliás, dizem todas respeito a soldadeiras – ou mesmo, o que é interessante do ponto de vista histórico, a relações com mouros e judeus, na época, como se sabe, ilegais1. O caso de Maria Balteira, acusada numa tenção entre Vasco Peres Pardal e Pedro Amigo de Sevilha (B 1509) de ter aprendido artes mágicas nas cortes árabes peninsulares (a dos célebres Escalholas andaluzes, aliados de Afonso X contra o rei de Granada), é um caso especial no conjunto dessas referências a relações com estes grupos étnicos, já que, para além das alusões evidentes a relações íntimas ilegais, a «discussão» deu azo a que Menéndez Pidal e Ballesteros Beretta levantassem a hipótese de Maria Balteira ter mesmo servido de instrumento político a Afonso X nos conflitos da Andaluzia, o que poderia contribuir para explicar o lugar especial que a vemos ocupar na corte afonsina. Outro dos motivos que dão azo a numerosas chufas são as relações entre soldadeiras e clérigos, muitas vezes encobertas por um falso desejo de arrependimento – ou, pelo menos, assim o apresentam ironicamente os trovadores – como acontece, por exemplo, nesta cantiga que Fernão Velho dirige ainda à Balteira (B 1504): Maria Pérez se maenfestou noutro dia, ca por [mui] pecador se sentiu, e log'a Nostro Senhor 1 As Sete Partidas de Afonso X legislam violentamente contra o «ato carnal» de uma cristã com mouros e judeus, sujeito, em ambos os casos, á pena de morte. Há, no entanto, uma ligeira diferença: enquanto que para o mouro a pena de morte se aplica apenas à recidiva (na primeira vez o castigo é o apedrejamento público e, para a mulher, a perda de metade dos seus bens), o judeu é imediatamente condenado à pena capital. Vide VII, título 24, lei 9, e título 25, lei 10.
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pormeteu, polo mal em que andou, que tevess'um clérig'a seu poder, polos pecados que lhi faz fazer o Demo, com que x'ela sempr'andou. (...) E pois que s'este preito começou antr'eles ambos houve grand'amor antr'ela sempr'[e] o Demo maior, atá que se Balteira confessou; mais, pois que vio o clérigo caer antr'eles ambos, houv'i a perder o Demo, des que s'ela confessou. Com uma crueldade por vezes notória, a velhice destas mulheres é também o motivo de algumas destas cantigas (como, aliás, também já o era em Horácio, diga-se). Numa cantiga de Pero da Ponte, de que já antes citámos o provérbio que lhe serve de refrão, a imagem de uma delas, procurando abrigar-se do frio e do vento no canto da lareira, é paradigmática (B 1628, V 1162): Marinha Crespa, sabedes filhar eno paaço sempr'um tal logar, em que ham todos mui bem a pensar de vós; e por en diz o verv'antigo: «a boi velho nom lhi busques abrigo». E no inverno sabedes prender logar cabo do fogo, ao comer, ca nom sabedes que x'há de seer de vós; e por en diz o verv'antigo: «a boi velho nom lhi busques abrigo». E no abril, quando gram vento faz, o abrigo éste vosso solaz, u fazedes come boi, quando jaz eno bom prad'; e diz o verv'antigo: «a boi velho nom lhi busques abrigo». Outro motivo de chufa às soldadeiras é o da prática de agoiros e artes mágicas, domínio em que se destaca, mais uma vez, Maria Balteira, acusada várias vezes de ser dada a este tipo de práticas, como acontece na já citada tenção entre Pedro Amigo e Vasco Peres (B 1509), ou ainda numa outra cantiga do mesmo Pedro Amigo de Sevilha (B 1663, V 1197), onde, por entre alusões eróticas e escatológicas, se faz demorada
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referência à sua crença nos agoiros (no caso, por motivo de uma alegada viagem que ela iria fazer). Como referimos mais detalhadamente no capítulo anterior, as soldadeiras fornecem ainda aos trovadores e jograis um excelente pretexto para as paródias ao amor cortês, o que chamámos, com Rodrigues Lapa, escárnios de amor. Como os exemplos então citados demonstram, é a introdução de um elemento «realista» (uma circunstância ou comportamento concretos) no interior da norma cortês abstratizante, o que desvia esta última para a paródia. A figura da soldadeira, socialmente tão bem definida, presta-se, mais do que nenhuma outra, a este jogo (por vezes a simples forma de tratamento basta para o indiciar, como a «Dona Ouroana» de João Garcia de Guilhade). Mas estas paródias não deixam de testemunhar, ao mesmo tempo, o grau de intimidade dos trovadores e sobretudo dos segréis e jograis com estas mulheres, com quem por vezes manteriam relações mais do que ocasionais. A acreditar em várias acusações de colegas e mesmo no testemunho do próprio, as relações de Pero de Ambroa com Maria Balteira seriam, nomeadamente, um exemplo disso1. É essa ambiguidade que transparece neste escárnio de amor em que o mesmo Pedro de Ambroa, referindo o ironicamente o topus da «sandice» amorosa, chufa do sentimento de honra ofendida por parte de Balteira, sentimento que, pelos vistos, algum outro desejava vingar (B 1597, V 1129): O que Balteira ora quer vingar das desonras que no mundo prendeu, se bem fezer, nom dev'a começar em mi, que ando por ela sandeu, mais começ'ant'em reino de Leon, u prês desonras de quantos i som, que lh'as desonras nom querem peitar (...) Também Afonso X pinta o retrato de uma Balteira furiosa com qualquer ofensa que lhe teria feito Pero de Ambroa (B 471bis) – provavelmente um destes cantares. Diga-se, aliás, que é provável que as soldadeiras, nomeadamente as da categoria de Maria Balteira, não servissem só de inspiração a cantares satíricos, mas também a muitos dos cantares de amor ou de amigo, sobretudo dos segréis e dos jograis. Entre as várias
1 Vasco Peres Pardal queixa-se ao rei pelo facto de Maria Balteira, enganando-os, lhes levar o dinheiro todo, quando, na realidade, o único que se aproveita é Pero de Ambroa (B 1506): «E somos mal enganados/ todos desta merchandia/ e nunca imos vingados;/ mais mande Santa Maria/ que prenda i mal joguete/ o d'Ambrõa, que a fode,/ e ela, por que pormete/ cono, poilo dar nom pode».
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alusões a este facto, encontra-se, por exemplo, este outro escárnio de amor do mesmo Pero de Ambroa, ao que tudo indica dirigido ainda contra Maria Peres (alegadamente apaixonada por outro) (B 1599, V 1131): Se eu no mundo fiz algum cantar, como faz home com coita d'amor, e por estar melhor com sa senhor, acho-me mal e quero-m'en quitar: ca ũa dona, que sempre loei em meus cantares, e por que trobei, anda morrendo por um escolar. (...) De qualquer forma, as relações mais estáveis de trovadores com soldadeiras (o caso de Pero de Ambroa e Balteira é paradigmático) constituem sempre motivo de chufa. Como diz Pedro Amigo de Sevilha numa cantiga satirizando o interesse de um tal Pero Ordónhez pela mesma Balteira (V 1203): «torp'e enganado/ mi semelha e fora de carreira/ quem pregunta por ũa soldadeira/ e nom pregunta por al mais guisado». (Note-se, no entanto, que esta mesma cantiga de Pedro Amigo não deixa de participar da mesma ambiguidade de que falávamos, já que é bastante provável que a disputa de Maria Balteira com Pero de Ambroa esteja relacionada com uma eventual ligação da soldadeira com o próprio Pedro Amigo, clérigo e «escolar», um «triângulo» que estará no centro de muitas destas cantigas que referimos). Sátiras, as cantigas de escárnio e maldizer dirigidas às soldadeiras, não deixam de denotar, no entanto, e em geral, uma certa cumplicidade (Carolina Michaëlis falaria talvez em boémia compartilhada). A provar essa cumplicidade é também o tom «paternalista» assumido, por vezes, pelos trovadores e jograis, como acontece, por exemplo, nas duas cantigas em que João Garcia de Guilhade avisa a soldadeira Elvira Lopes dos desgostos que lhe pode causar a companhia assídua de um vilão (que acaba por a roubar, diz-nos na segunda cantiga – B 1487, V 1099 e B 1488, V 1100), e, de uma maneira geral, é patente mesmo na atenção irónica a atitudes e comportamentos do dia a dia, como acontece na cantiga, citada no início deste capítulo, na qual o mesmo Guilhade, em forma de irónico conselho, note-se, brinca com a aquisição de um cavalo pela soldadeira Ouroana, ou na cantiga, também já antes citada, em que Afonso X brinca também, em forma de equívoco, com a casa que Maria Balteira estava a construir (e cuja madeira, como vimos, ele próprio tinha fornecido das matas reais, B 481, V 64).
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Diga-se, por último, que todos estes motivos que estão na raiz das chufas contra as soldadeiras não se distinguem essencialmente dos motivos para uma chufa a qualquer outra mulher (se exceptuarmos, talvez o caso das ricas donas). Também o erótico ou mesmo o obsceno não é exclusivo deste grupo de cantigas, como dissemos. Só que as soldadeiras aparecem-nos, de facto, neste corpus, como um grupo social extremamente bem definido, e pelo número de cantigas a elas dirigido, quase como um topus da sátira galego-portuguesa.
b) Cantigas dirigidas a religiosas Das dez cantigas de escárnio e maldizer dirigidas a religiosas, é de realçar, logo à partida, que sete delas têm como alvo abadessas de conventos. E todas estas sete aludem igualmente, de forma mais ou menos explícita, a motivos de ordem erótico-sexual. Talvez se pudessem entender como denúncias dos maus costumes conventuais, não fora, de novo, o fraco sentido moralizador que trovadores e jograis patenteiam. Assim, também aqui o humor prevalece – a maior parte das vezes no desejo expresso pelos poetas de participarem na «vida fácil» a que aludem. Na maioria destas cantigas predomina o registo do equívoco, ou seja, um registo assente mais em alusões do que em crueza verbal, e cujo exemplo típico é a cantiga em que D. Afonso Lopes de Baião exprime o desejo de fazer, em Arouca, uma casa, se a abadessa lhe fornecesse madeira nova – uma jovem freira, entenda-se – forma de aludir à responsabilidade da abadessa na alegada má reputação do convento (B 1471, V 1081). Excepção a este tom de ironia cortês é a violenta cantiga de Fernando Esquio, já parcialmente trancrita na introdução a este trabalho (B 1604bis, V 1137). Como também acontece nas cantigas que reúnem soldadeiras e clérigos, encontramos por vezes, nestas sátiras a abadessas, o sagrado e o profano interligados, numa liberdade de expressão quase blasfema. Repare-se nesta cantiga em que Afonso Anes de Cotom, apresentando-se como recém-casado, pede a uma abadessa que lhe ensine as artes do amor (B 1579, V 1111): Abadessa, oí dizer que érades mui sabedor de tod'o bem; e, por amor de Deus, querede-vos doer
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de mim, que ogano casei, que bem vos juro que nom sei mais que um asno de foder. (...) E se eu ensinado vou de vós, senhor, deste mester de foder e foder souber per vós, que me Deus aparou, cada que per foder direi Pater Noster e enmentarei a alma de quem m'ensinou. (...) De entre estas sete cantigas que poderemos, pois, considerar erótico-satíricas, merecem, no entanto, uma referência mais especial as duas dirigidas à abadessa do mosteiro de Arouca (uma das quais, a de Afonso Lopes de Baião, acima citada), que deverá ser D. Mor Martins de Riba de Vizela. À primeira vista, o que está em causa são os maus costumes conventuais, como referimos. Mas, de facto, a questão ganha toda uma outra dimensão se atendermos a que o mosteiro de Arouca foi uma das instituições monásticas mais ligada ao acolhimento de senhoras da alta nobreza, várias das quais foram igualmente suas abadessas, como é o caso de Mor Martins (tia do trovador de Baião, aliás, porque viúva de D. Ponço de Baião), que dirigiu o mosteiro de 1244 a 1285, pelo que será certamente ela a abadessa referida na composição. Quanto à «jovem freira» requisitada para os trabalhos de construção da «casa», a nossa escolha pode ser mais variada, desde Maria Gil de Briteiros (uma filha do conhecido Rui Gomes de Briteiros, a quem o trovador dirige a sua conhecida «gesta de maldizer», já antes referida), a Dórdia Gil de Soverosa ou a Guiomar Gil de Riba de Vizela, donzelas estas cuja entrada no convento é lamentada numa composição de João Garcia de Guilhade (e que sabemos terem professado em Arouca); no rol das candidatas poderia estar ainda, eventualmente, como sugere também Resende de Oliveira, uma qualquer donzela da linhagem dos Madeira, linhagem esta que terá mantido relações próximas com o mesmo mosteiro de Arouca. Tudo leva a crer, pois, que, à data em que foi composta, a cantiga visaria sobretudo uma das famílias referidas (eventualmente os Riba de Vizela, linhagem da própria abadessa). D. Mor Martins, com fundamento real ou não, seria certamente uma vítima apanhada nestes fogos. Em relação às outras abadessas (nem todas identificadas, aliás), é mais difícil decidir em que medida jogará esta mesma ambiguidade entre erotismo e dimensão 197
socio-política. Não deixa, no entanto, de ser significativo que todas estas cantigas sejam dirigidas a abadessas e não a simples religiosas. Três outras cantigas, aliás, têm como motivo as alegadas relações da abadessa com um vilão – o ciclo de Fernão Pais de Tamalhancos dirigido â abadessa de Dormã, já anteriormente referido – alargando a crítica a um plano social mais lato. O que poderemos dizer, pois, é que, no seu conjunto, estas sete cantigas, sendo sem dúvida erótico-satíricas, o são certamente numa dimensão diferente das chufas dirigidas às soldadeiras. Do estatuto social das visadas resulta, obviamente, um reforço da componente satírica e política, mesmo sendo ainda aqui o humor o registo dominante. Das cantigas dirigidas a simples religiosas e não a abadessas, citámos já anteriormente uma, como exemplo de mistura de géneros (vide p. 157). Finalmente, ainda dirigida a uma religiosa, mas de caráter totalmente diferente do destas oito cantigas, encontramos uma curiosa composição da autoria de Rodrigo Anes de Vasconcelos (B 368bis), que merece referência especial1. Trata-se de uma cantiga, em forma de diálogo, na qual uma dona, forçada a entrar para um convento por sua mãe, reafirma, de forma religiosamente muito livre, a sua rebeldia. Exemplar único (e muito pouco citado) de abordagem de um caso seguramente comum na sociedade da época2, a cantiga é de uma notável originalidade: Preguntei ũa don[a] em como vos direi: - Senhor, filhastes ordem? E já por en chorei! Ela entom me disse: - Eu nom vos negarei de com'eu filhei ordem, assi Deus me perdom! Fez-mi-a filhar mia madre, mais o que lhe farei? Trager-lh'-[e]i eu os panos, mais nom [o] coraçom! (...) Trata-se pois, neste caso, de uma denúncia de uma situação de injustiça, e na qual a mulher nos aparece antes de mais como vítima. E se esta veemente denúncia nos leva a classificar a cantiga como de escárnio e maldizer, note-se que a voz masculina se mantém próxima do registo tradicional de uma cantiga de amor, num outro exemplo de indefinição entre as fronteiras dos géneros.
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Não incluída em Rodrigues Lapa. Também João Garcia de Guilhade, como já referimos, se refere, numa cantiga de amor que podemos considerar mista (A 455), a duas donzelas que «prenderom ordim» (D. Dordia Gil e D. Guiomar). 2
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c) Cantigas dirigidas a criadas/ alcoviteiras São apenas duas as cantigas dirigidas a personagens femininas deste tipo. Referimo-las especialmente porque não deixa este de ser um facto significativo, sobretudo se atendermos à frequência com que este tipo de personagens aparece posteriormente em textos satíricos, nomeadamente no teatro vicentino. Mais uma evidência de que os tipos não são aqui um princípio geral de construção. Numa das cantigas (B 1587, V 1119), já antes referida a propósito da distinção entre escárnio e maldizer, a figura que nos aparece é a de uma criada, uma «velha fududancua peideira», que se intromete entre Afonso Anes do Cotom e a sua senhora, o que lhe vale uma chusma de insultos, que referem predominantemente a sua velhice. A cantiga, mais do que sátira, pode considerar-se, de facto, uma invetiva. A outra, de autoria de Pero da Ponte (B 1651, V 1185), tem um caráter satírico muito mais acentuado – caráter esse que lhe confere, aliás, um lugar de certa forma excecional neste corpus de chufas. Tratase de uma dona, Maria Dominga, acusada de incitar a sua própria filha à má vida, ensinando-lhe, em vez das artes domésticas, todas as artes da sedução «por que seja rica molher,/ ergo se lhi minguar lavor», em particular a arte de ambrar (menear as ancas). É também a única cantiga deste corpus que alude ao trabalho feminino, não só pela defesa implícita que dele faz, mas ainda porque a personagem visada é, pelo que se depreende, uma «mestra» de meninas (termo onde assenta parte da ironia da cantiga): Quem a sa filha quiser dar mester, com que sábia guarir, a Maria Doming'há-de ir, que a saberá bem mostrar; e direi-vos que lhi fará: ante d'um mês lh'amostrará como sábia mui bem ambrar. Ca me lhi vej'eu ensinar ũa sa filha e nodrir; e quem sas manhas bem cousir aquesto pode bem jurar: que des Paris atẽes acá molher de seus dias nom há que tam bem s'acorde d'ambrar. E quem d'haver houver sabor nom ponha sa filh'a tecer, 199
nem a cordas nem a coser, mentr'esta mestra aqui for, que lhi mostrará tal mester, por que seja rica molher, ergo se lhi minguar lavor (...) Como comenta Rodrigues Lapa, estamos aqui perante uma verdadeira sátira de costumes, rara nos Cancioneiros, uma cantiga que, partindo do particular para o geral, aborda a questão da educação feminina e das suas finalidades: conquistar um homem (as artes de Maria Dominga) ou preparar para um trabalho honesto (o que ela não faz). Nesta única cantiga parece-nos ouvir, por um momento, o eco das futuras Leonor Vaz e da Inês Pereira vicentinas.
d) Cantigas dirigidas a mulheres várias Para além das anteriores cantigas dirigidas a personagens femininas que podemos socialmente definir, há no Cancioneiro satírico, como dissemos, toda uma série de cantigas dirigidas a donas não especificadas, e por motivos muito diversos. Algumas (não todas) poderemos classificá-las igualmente de erótico-satíricas, ainda que, como no caso das religiosas, e porque se trata aqui de donas e donzelas, a vertente satírica seja, sem dúvida mais acentuada. Tal como acontece nas cantigas dirigidas às soldadeiras, o registo é também aqui frequentemente autobiográfico, ou seja, aludem-se as relações do próprio trovador com a dona em questão. Alguns dos motivos invocados em relação às soldadeiras aparecem igualmente nestas chufas como os do interesse material no amor 1, da velhice devassa2 ou as relações com clérigos3. Uma das cantigas é uma curiosa variação sobre o tema do amor e dinheiro, neste caso sendo o trovador, Afonso Anes do Cotom, a exigir o pagamento dos seus «serviços» (L. 46): Bem me cuidei eu, Maria Garcia, em outro dia, quando vos fodi, que me nom partiss'en de vós assi como me parti já, mão vazia, vel por serviço muito que vos fiz,
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De Lopo Lias, B 1351, V 958 e B 1352, V 959-960 e de Pedro Amigo de Sevilha, B 1594, V 1126. De Pedro Amigo de Sevilha, B 1658, V 1192. 3 De Martim Soares, B 1369, V 977, curiosamente dirigida a «uma sua irmã», como nos informa a rubrica, e como veremos mais adiante. 2
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que me nom destes, como x'homem diz, sequer um soldo que ceass'um dia. (...) Mas outros motivos são novos neste grupo de cantigas, como a falsa virtude de uma dona (que punha «Vela» sobre si – Vela significando «vigilância», mas sendo também o nome de um seu criado, como nos informa a rubrica – B 1332, V 939), ou o casamento apressado que encobre uma gravidez (B 1311, V 916). Há mesmo a figura de uma «viúva alegre», uma dona que afirma que só se tornará a casar com marido jovem e robusto (B 1622, V 1155-1156). Falámos também já anteriormente da cantiga, que consideramos satírica, de João Soares Somesso, centrada no jogo entre os termos donzela/dona (B 106). Relações incestuosas aparecem igualmente em duas cantigas 1 (e não deixa de ser curioso o facto de estes dois casos de incesto referidos dizerem ambos respeito a relações de mãe com filho, e não de pai com filha, como, em princípio, poderíamos esperar). Curiosamente, o adultério feminino não surge particularmente em evidência nestas cantigas dirigidas a donas – ele surge com muito mais peso nas cantigas dirigidas aos respetivos maridos. Quer dizer, escarnece-se menos frequentemente de uma dona adúltera do que de um marido cornudo (e, como seria de esperar, o adultério masculino não tem qualquer expressão nas cantigas de escárnio e maldizer). De qualquer forma, há ainda duas cantigas dirigidas a donas por motivos de adultério: uma delas, da autoria de Lopo Lias e de que nos chegou apenas uma estrofe algo estropiada, é dirigida a uma tal Dona Maria, e é acompanhada de uma rubrica que explica que se tratava de «ũa dona casada que havia preço com um seu homem, que havia nome Franco» (B 1356, V 964). Na outra, João Airas de Santiago aproveita um motivo que já encontrámos também relacionado com as soldadeiras (e que também aparece com personagens masculinos, nomeadamente clérigos, como veremos), a crença em agoiros e feitiçarias, para uma excelente paródia a uma mulher adúltera (B 1467, V 1077) (a cantiga centra-se no duplo sentido da designação «corvo carnaçal», um «corvo» de mau agoiro que a teria desaconselhado de ir à missa)2: Ũa dona, nom dig'eu qual, nom aguirou ogano mal: 1
De João Fernandes de Ardeleiro, B 1329, V 935, e de Estêvão da Guarda, B 1320, V 925. Na cantiga seguinte (nos manuscritos, B 1468, V 1078), João Airas retoma o tema, mas referindose agora especificamente ao marido, D. Pedro Núnez (o qual, ouvindo o «corvo», decide não fazer uma programada viagem). 2
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polas oitavas de Natal, ia por sa missa oir, e [houv'] um corvo carnaçal, e nom quis da casa sair. (...) Nunca taes agoiros vi des aquel dia em que naci com'aquest'ano houv'aqui; e ela quis provar de s'ir e houv'um corvo sobre si e nom quis da casa sair. As feias têm também, obviamente, um lugar nesta galeria de retratos realistas, e servem muitas vezes, como já tivemos ocasião de referir, de pretexto para as paródias ao tema cortês da beleza da dona. Aos exemplos então citados acrescentamos mais dois, duas cantigas que, não sendo formalmente paródias, apresentam, no entanto, retratos femininos que são o reverso da imagem cortês da mulher. Um deles é esta chufa de cariz escatológico de Afonso X, contra uma dona apanhada em circunstâncias digestivas pouco «edificantes» (B 476)1: Nom quer'eu donzela fea que ant'a mia porta pea. Nom quer'eu donzela fea e negra come carvom que ant'a mia porta pea nem faça come sisom. Nom quer'eu donzela fea que ant'a mia porta pea. Nom quer'eu donzela fea e velosa come cam que ant'a mia porta pea nem faça come alermã. Nom quer'eu donzela fea (...)
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José Mattoso, em Identificapão de um país, Vol. I, p. 229, apresenta esta cantiga como exemplo do desprezo aristocrático da nobreza pela classe vilã. Não nos parece, no entanto, que da cantiga se possa inferir qualquer categorização social da visada. Um estudo cuidado da cantiga, sobretudo das suas referências escatológicas, é o feito por Pellegrini em «Una 'cantiga di maldizer' di Alfonso X», Studi medialatini e volgari,VIII-IX, 1960, pp. 165-172. Um outro retrato feminino bem realista, ainda que diferente, de Afonso X, é o de uma dona gorda a cavalo, mal podendo passar as ruas estreitas de uma aldeia (B 458).
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Os mesmos motivo e tom reaparecem na cantiga em que Pero de Armea estabelece uma comparação entre o seu traseiro e o rosto de uma donzela (B 1602, V 1134): Donzela, quem quer entenderia que vós mui fremosa parescedes; se assi é, como vós dizedes, no mundo vosso par nom havia; aun que i vosso par nom houvesse, quem a meu cu concela1 posesse, de parescer bem vencer-vos-ia. (...)2 Não são só a falta de beleza ou os comportamentos menos corteses que dão motivo a chufas, mas também a própria forma de se vestir e de se arranjar. A verdadeira lição de moda e etiqueta que Pero Garcia Burgalês dá a uma donzela pouco conforme com os padrões de cortesia merece, neste aspeto, ser destacada (B 1373, V 981): Pero me vós, donzela, mal queredes, porque vos amo, conselhar-vos-ei que pois vos vós entoucar nom sabedes, que façades quanto vos eu direi: buscade quem vos entouque melhor e vos correga, polo meu amor, as feituras e o cós que havedes. E se esto fezerdes, haveredes, assi mi valha a mi Nostro Senhor, bom parecer e bom talh', e seredes fermosa muit'e de bõa coor; [e] se cada que s'a touca torcer, se log'houverdes quem vos correger as feituras, mui bem pareceredes. Ai mia senhor, por Deus, em que creedes, pois que por al nom vos ouso rogar, pois sempr'a touca mal posta tragedes, creede-mi do que vos conselhar: em vez de vo-la correger alguém, correga-vo-las feituras mui bem e o falar, e se nom, nom faledes.
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Cosmético de cor vermelha. A cantiga, aliás, deve ter tido considerável ressonância entre o círculo dos trovadores afonsinos, a julgar pela cantiga-comentário que Pero de Ambroa sobre ela compôs (B 1603, V 1135). 2
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Mas muitas vezes, para além dos motivos mencionados, trovadores e jograis brincam apenas, maliciosamente, com as mulheres por eles requisitadas, como nesta cantiga de João Airas de Santiago (B 1466, V 1076), já antes referida noutro contexto (nela se alude, como então referimos, a uma velha tradição judiciária de enterrar o assassino debaixo da vítima): Ai Justiça, mal fazedes, que nom queredes ora dereito filhar de Mor da Cana, porque foi matar Joan'Airas, ca fez mui sem razom; mais se dereito queredes fazer, ela sô el devedes a meter, ca o manda o Livro de Leon. (,,,) Se a maioria das cantigas satíricas dirigidas a mulheres são chufas em vários tons, como os que acabámos de ver, também aqui encontramos exemplos de cantigas que abordam circunstâncias mais sérias em que elas são, de preferência, vítimas: os casamentos forçados1, pela ganância dos familiares2, ou com diferença de idade excessiva3, os maus tratos domésticos4, e uma série de abusos de que as mulheres podem ser vítimas, e que os trovadores e jograis não deixam de denunciar (mas num tom onde o humor, aliás, continua a ser dominante, como no resto deste corpus). Uma das cantigas mais curiosas deste grupo é a que Martim Soares dedica a uma donzela «que foi ogano um adeam servir», como é dito no seu v. 2. A cantiga (B 1369, V 977) vem acompanhada da seguinte rubrica: «Esta cantiga que se aqui acaba fez Martim Soárez a ũa sa irmãã, porque lhi fez ela querela d'um clérigo que a fodia ca a firia; e o clérigo nom quis a ela tornar, atá que ela foi por el a sa casa e o trouxe pera a sua». Quer a destinatária fosse sua verdadeira irmã ou apenas uma irmã de leite, a proximidade da relação do trovador com ela é indiscutível. Por isso o tom irónico, o jogo de palavras e o equivocatio adquirem aqui toda uma outra dimensão de denúncia, não só da violência do clérigo que «desonrou e feriu» a donzela (como ela própria confessa, em discurso direto, no v. 11 – e não sabemos mesmo se não haverá aqui uma
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B 1331, V 938 e B 1102, V 693, esta última, de Lourenço, já antes referida, e onde o registo da cantiga de amor comporta, de forma muito pouco habitual, a referência explícita ao casamento forçado da sua senhor. 2 B 1354, V 962. 3 B 1350, V 957. 4 B 1656, V 1190.
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alusão a violação), mas também da complacência desta última que, renunciando ao desejo de vingança, retoma uma ligação humilhante (por interesse material, se a palavra «trosquiar» tinha já o sentido que tem hoje): Ũa donzela jaz [preto d]aqui, que foi ogano um adeam servir e nom lhi soube da terra sair; e a dona cavalgou e colheu [i] Dom Caralhot'enas mãaos; e tem, pois lo há preso, ca está mui bem, e nom quer del as mã[a]os abrir. E pois a dona Caralhote viu antre sas mã[a]os, houv'en gram sabor e diz: - Est'é o falso treedor que m'ogano desonrou e feriu, praz-me com el, pero trégoa lhi dei que o nom mate; mais trosquiá-l'-ei come quem trosquia falso treedor. A boa dona, molher mui leal, pois que Caralhote houv'em seu poder, mui bem soube o que del[e] fazer: e meteu-o log'em um cárcel atal, u muitos presos jouverom assaz; e nunca d'i, tam fort'e preso jaz, [tem] como saia, meos de morrer.
e) Cantigas dirigidas a clérigos, ao alto clero e ao Papa Como referimos anteriormente, um dos motivos para as cantigas erótico-satíricas dirigidas tanto a soldadeiras como a outro tipo de mulheres diz respeito às suas relações com clérigos. De facto, também metade das cantigas dirigidas diretamente a membros da Igreja (e geralmente identificados, aliás) têm motivos erótico-sexuais por fundamento. Ao todo, oito destas dezasseis cantigas referem as relações que padres e religiosos mantêm com mulheres. Nestas denúncias públicas da vida privada dos membros do clero – que o são, em certa medida – nomeadamente das suas relações com soldadeiras, o que prevalece, mais do que uma atitude condenatória, é, no entanto, mais uma vez, o humor. De facto, se alguma coisa estas cantigas condenam (o que nem sempre parece muito evidente) é
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mais o abuso de um estatuto de privilégio, ou os excessos, do que propriamente a quebra do voto de castidade por parte dos membros do clero. É sabido que, pelo menos ao nível do clero rural, e apesar das repetidas condenações conciliares, o celibato foi uma doutrina que se impôs a custo, estando, na época, longe de constituir uma prática aceite e generalizada. A vida conjugal de padres e religiosos era uma situação comum, como deixam transparecer alguns forais (Freixo, 1152, Urros, 1182) ao legislarem expressamente que os bens dos clérigos falecidos passam como herança a seus filhos ou parentes mais chegados. Afonso X por duas vezes concedeu privilégios semelhantes, respetivamente aos clérigos dos bispados de Salamanca (1262) e de Roa (1270)1. As cantigas de escárnio e maldizer, ao abordarem a vida sexual do clero, limitam-se, pois, a referir situações de facto, numa atitude que tem muito mais de humor do que de condenação. Na verdade, em muitas cantigas são as particularidades da sua vida sexual, mais do a sua atividade neste domínio, o que constitui motivo de sátira. É o caso da cantiga, assaz obscena, em que João Servando alude à impotência do clérigo Domingo Caorinha, incapaz de satisfazer a sua amiga Marinha (V 1030 – acrescente-se que a composição, de ritmo irregular e muito vivo, está, no entanto, em muito mau estado no único manuscrito que no-la transmitiu): Dom Domingo Caorinha nom há proe de sobir en[a] Marinha Caadoe; quand'ela jaze sobinha mal a roe a g[r]ossa pixa misquinha que lhi no seu cono moe. Por aquesto, Dom Domingo, nom digades que m'enfingo de trobar: e[u] doutra cinta me cingo e doutra Martim Colhar. (...)2 O mesmo tema, mas em sentido inverso, reaparece numa cantiga de Fernando Esquio (B 1604, V 1136). Trata-se agora de uma chufa (também bastante obscena) 1
Gama de Barros, História da Administração Pública em Portugal, Lisboa, Sá da Costa, 1945, p.
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O refrão é bastante obscuro, mas parece haver aqui uma qualquer alusão a uma anterior condenação, por parte do clérigo, das atividades trovadorescas do jogral João Servando (mas não sabemos quem seria o tal Martim).
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contra um frade que se fazia passar por impotente e que se ia aproveitando assim de todas as mulheres que lhe apareciam a jeito (e engravidando-as, o que era uma prova categórica da falsidade do boato): A um frade dizem escaralhado, e faz pecado quem lho vai dizer, ca, pois el sabe arreitar de foder, cuid'eu que gai é, de piss'arreitado; e pois emprenha estas com que jaz e faze filhos e filhas assaz, ante lhe dig'eu bem encaralhado. (...) Note-se, aliás, que é sobretudo o baixo clero o alvo deste tipo de chufas. As altas hierarquias eclesiásticas (bispos, arcebispos e papa) são alvo de outro tipo de sátira, cujos motivos se prendem mais com questões de índole social ou política. É o caso da posição dos altos dignatários da Igreja portuguesa na deposição de D. Sancho II (duas cantigas, que abordaremos mais tarde, uma das quais incluindo referências ao Papa). É o caso também da cantiga, já antes referida, em que Afonso X ataca o Papa a propósito da nomeação do arcebispo de Santiago de Compostela, acusando-o de ingerência desonesta em assuntos do foro real (B 463). Os bispos são ainda retratados em cenas «de capela» – como a briga entre um bispo e o seu arcebispo eleito, satirizada numa já referida cantiga de Airas Nunes, B 1601, V 1133 – ou ainda em questões de influências políticas, como na cantiga em que Estêvão da Guarda satiriza o bispo eleito de Viseu, D. Miguel Vivas, grande privado de D. Afonso IV, acusando-o, entre várias coisas, de bajulação (B 1310, V 915)1. A D. Miguel Vivas são, aliás, dirigidas mais duas cantigas por esta última geração de trovadores: uma da autoria do Conde D. Pedro, irmão do rei, por motivos semelhantes (sátira que se estende a Gomes Lourenço de Beja, V 1038)2; outra, a cantiga de seguir de João de Gaia (B 1452, V 1062), a cujo célebre refrão (a questão dos olhos ou alhos verdes) já tivémos oportunidade de nos referir. Esta última cantiga, com as suas alusões ao gosto do prelado pela bebida, e que constitui, portanto, aparentemente, uma exceção ao carácter mais político das críticas contra o alto clero, mostra-nos, aliás, que mesmo quando as acusações são de caráter
1 Trata-se da cantiga que anteriormente assinalámos como bom exemplo de equívoco sintático, e que transcrevemos parcialmente nessa secção. 2 A cantiga é, no entanto, dirigida genericamente aos privados do rei. Só a rubrica que a acompanha esclarece quem são esses privados.
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pessoal, a sátira ao alto clero continua a ter essencialmente por detrás motivos mais genéricos, de ordem político-social (como acontece, em geral, como veremos, com as cantigas dirigidas a alguns altos funcionários). Na sua qualidade de privado do rei, o bispo de Viseu foi um dos personagens mais atacados por esta última geração de trovadores, a do círculo de conde D. Pedro. Finalmente, não deixa de ser significativo que, para além das mulheres, as personagens mais chufadas por práticas de magia ou de astrologia sejam exatamente clérigos (aqui novamente não diferenciados). São cinco as cantigas que versam esta matéria. Numa delas, muito curiosa, Afonso X acusa o deão de Cádiz de utilizar livros de magia (livros d'artes como se diz) para seduzir mulheres (B 493, V 76, vide p.138). Por seu lado, Estêvão da Guarda dedica três cantigas (que constituem quase um miniciclo) a um certo Martim Vasques, clérigo, jogral e astrólogo – também chufado pelo mesmo motivo numa outra cantiga do Conde D. Pedro (B 1432, V 1042) – cujas previsões astrológicas de ser nomeado para certa igreja se viram goradas. Transcrevemos o início da primeira (B 1323, V 928/929): Já Martim Vaasques da estrologia perdeu feúza, polo grand'engano dos planetas, per que veo a dano em que tam muito ante s'atrevia: ca o fezerom sem prol ordinhar por egreja que lhe nom querem dar e per que lh'é defes'a jograria. (...) (Esta cantiga tem, aliás, um interesse duplo, já que refere explicitamente, como se lê no último verso transcrito, um decreto que proibia os clérigos de trovar1. Como é sabido, os clérigos trovadores não são raros nos Cancioneiros. Os já citados Airas Nunes e Martim Moxa são apenas dois dos clérigos que podemos seguramente reconhecer.) As artes deste Martim Vasques dão, aliás, a Estêvão da Guarda a oportunidade de parodiar ainda, de certa forma, os romances de cavalaria do ciclo bretão na segunda
1 Carolina Michaëlis, em Zeitschrift fur romanische Philologie, XX, 191-192, sugere que se trata do decreto de D. Afonso IV, datado de 1352, que legisla nesse sentido (entre outras coisas), sugestão seguida por Rodrigues Lapa. A data parece muito tardia para este ciclo, pelo que se deverá ter em conta que vários concílios de bispos ibéricos legislaram nesse sentido, nomeadamente o de Talavera, em 1317.
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cantiga, que se desenvolve a partir da comparação com Merlim, o mágico e Viviana (B 1324, V 930): Com'aveo a Merlim de morrer per seu gram saber que el foi mostrar a tal molher, que o soub'enganar, per essa guisa se foi confonder Martim Vasquez, per quanto lh'eu oí: que o tem mort'ũa molher assi, a que mostrou, por seu mal, seu saber. (...) Trata-se agora, como se vê, já não da pretendida igreja mas dos amores do clérigo – mas o universo das práticas mágicas permanece a referência maior. Para além de constituir um curioso documento da celebridade dos romances da Távola Redonda na Península, a cantiga não deixa, ao mesmo tempo, de nos mostrar que o registo paródico também a eles podia ser extensivo.
f) Cantigas dirigidas a Deus Em jeito de exercício literário, muito provavelmente, mas seguindo a estrutura das restantes cantigas de escárnio e maldizer, aparecem-nos neste corpus sete cantigas dirigidas contra Deus. Os motivos prendem-se sempre com a perda da mulher amada, de que Deus é, de formas diversas, tornado responsável, num tom que se aproxima muitas vezes da heresia. É o caso de duas cantigas de Pero Garcia Burgalês, cujo motivo próximo é a coita que sofre o trovador pela perda da sua senhor (de uma das cantigas cantigas se depreende que por morte)1. Transcrevemos parcialmente uma delas (B 223): Nunca Deus quis nulha cousa gram bem nem de coitado nunca se doeu, pero dizem que coitado viveu; ca, se s'El del doesse, doer-s'-ia de mi, que faz mui coitado viver, a meu pesar, pois que me foi tolher quanto bem eu eno mund'atendia. Mais enquant'eu já vivo for, por en nom creerei que o Judas vendeu
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Pero Garcia aborda ainda o mesmo assunto em duas outras cantigas, mas aí sem sair muito do registo da cantiga de amor (A 100, B 207 e A 107, B 216).
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nem que por nós na cruz morte prendeu nem que filh'est de Santa Maria; e outra cousa vos quero dizer: ca foi coitado nom quero creer, ca do coitad'a doer-s'haveria. (...) A outra cantiga (B 221), termina mesmo com uma violenta invetiva: (...) E pois tam bõa senhor fez morrer, já eu bem sei que me nom fará mal; e pois eu d'El nom hei mal a prender e a gram coita que hei me nom val, por ela, pois que mi a fez morrer Deus, El se veja em poder de Judeus como se viu já outra vez prender! E tod'homem que molher bem quiser e m'esto oir, e amén nom disser, nunca veja, de quant'ama, prazer! A mesma atitude transparece em duas outras cantigas de Gil Peres Conde (aqui referindo a entrada da sua senhor para o convento), cantigas onde mais uma vez se questionam abertamente os dogmas, de que damos um exemplo (B 1527): Já eu nom hei por quem trobar e já nom hei en coraçom, porque nom hei já quem amar; por en mi míngua razom, ca mi filhou Deus mia senhor; ah, que filh'o Demo maior quantas cousas que suas som! Como lh'outra vez já filhou a cadeira u siia o Filh'; e porque mi filhou bõa senhor que havia? E diz El que nom há molher; se a nom há, pera que quer pois tant'à bõa Maria? Deus nunca mi a mi nada deu e tolhe-me bõa senhor: por esto nom creo en'El eu nem me tenh'en por pecador, ca me fez mia senhor perder;
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catade que mi foi fazer, confiand'eu no seu amor! Nunca se Deus mig'averrá se mi nom der mia senhora; mais como mi o corregerá? Destroia-m', ante ca morra. Hom'é: tod'aqueste mal faz, [como fez já o gram malvaz], e[m] Sodoma e Gomorra. Culpado é ainda Deus de querer tantas mulheres para si, sobretudo as mais bonitas, forçadas e mal tratadas nos conventos, como afirma o trovador no final da segunda cantiga (B 1528): (...) Dizede-mi ora que bem me fezestes, por que eu crea em vós nem vos sêrvia, senom gram tort'endoad'e sobêrvia? Ca mi teedes mia senhor forçada, e nunca vos eu do vosso filhei nada des que fui nado, nem vós nom mi o destes. Faria-m'eu o que nos vós fazedes: le[i]xar velhas feas, e as fremosas e mancebas filhá-las por esposas. Quantas queredes vós, tantas filhades! E a mi nunca mi nẽũa dades: assi partides migo quant'havedes. Nen'as servides vós, nen'as loades, e vam-se vosc'e, poilas aló teedes, vestide-las mui mal e governades, e metedes-no-las trá'las paredes. Nesta forma de invetiva retórica, Gil Peres Conde não deixa, pois, de traçar um retrato vigoroso da situação das mulheres forçadas a professar (e de que já antes vimos outro exemplo, numa cantiga que dá voz a uma delas, vide p. 198). A mesma atitude roçando a heresia encontramos ainda em Pero Guterres, ao censurar-Lhe apenas o abandono em que deixa os que sofrem da coita de amor. É muito curiosa, nesta cantiga, a transposição que é feita da lógica das relações feudais (o senhor tem por obrigação velar pelos seus vassalos) ao campo das relações do homem com Deus (B 922, V 510):
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Todos dizem que Deus nunca pecou, mais mortalmente o vej'eu pecar: ca lhe vej'eu muitos desemparar seus vassalos, que mui caro comprou; ca os leixa morrer com grand'amor, desemparados de bem de senhor e já com'estes mim desemparou. E maior pecado mortal nom sei ca o que eu vejo fazer a Deus, ca desempara os vassalos seus em mui gram coita d'amor qual eu hei; e o senhor que acorrer nom quer a seus vassalos, quando lh'é mester, peca mortal, pois é tam alto rei. Todo senhor, de mais rei natural, dev'os vassalos de mort'a partir e acorre[r]-lhes, cada que os vir estar em coita; mais Deus nom é tal, ca os leixa com grand'amor morrer, e, pero pode, nom lhes quer valer e assi faz gram pecado mortal. Finalmente, mais em tom de sirventês, já que o lamento é contra a vida em geral, encontramos Vasco Gil a culpar Deus de o fazer voluntariamente sofrer, por pura maldade. O refrão da cantiga é todo um desafio semi-herético (A 146, B 269): Que sem mesura Deus é contra mi! Pois que me faz sempre pesar veer, por que me leixa no mundo viver? Mais pois me vejo que x'El quer assi, quant'eu oimais no coraçom tever, negá-lo-ei e direi-Lh'al que quer! E quant'El sabe que me pesará, poilo El faz por xe me mal fazer e por al nom, quero-vos eu dizer, se eu puder, o que Lh'end'averrá: quant'eu oimais no coraçom tever, negá-lo-ei e direi-Lh'al que quer! (...) Ainda que estas cantigas possam ser entendidas como constituindo, em parte, jogos poéticos (e mesmo rebentos colaterais da casuística escolástica), o certo é que passa por aqui um sopro de heterodoxia que a Igreja da época não devia certamente apreciar. A
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referência, numa cantiga de Afonso X (B 487, V 70) a uma razom herética (que o rei classifica de «louca») de uma cantiga de Pero da Ponte (difícil de identificar com segurança), poderá eventualmente indiciar terem sido este género de cantares mais frequentes do que podemos comprovar por estes que até nós chegaram (o que não seria de admirar dada toda a tradição medieval da paródia religiosa de que falámos) 1.
g) Cantigas dirigidas à alta nobreza e a altos funcionários Como referimos, uma parte considerável das cantigas do Cancioneiro satírico galego-português são dirigidas aos vários grupos da nobreza dominante. De entre estas, um número significativo (48) tem por alvo personagens pertencentes aos seus estratos mais elevados, ou seja, pertencentes quer ao grupo da alta nobreza, quer ao dos altos funcionários (grupos que geralmente coincidem, mas nem sempre). Este elevado número de cantigas parece poder ser lido como um indicativo da relativa liberdade de crítica da poesia trovadoresca, que não parece recuar perante o peso social ou político dos visados. Convém, no entanto, situar esta liberdade a partir de duas ordens de fatores. A primeira tem a ver com o já citado ambiente em que, preferencialmente, se movem trovadores e jograis. Produzindo a sua arte no seio das camadas mais elevadas (e cultas) da época, é inevitável que aí procurem as personagens e os motivos que alimentem a sua veia satírica. Em segundo lugar, não podemos esquecer que um número significativo de trovadores são, eles próprios, de origem social elevada (ou vivem, como os jograis, sob o sua proteção). Assim, estes ataques, muitas vezes pessoais, a personagens da alta nobreza e a altos funcionários da corte devem ser entendidos, em muitos casos, como sintomas de uma luta entre iguais, luta que passa também pelo escárnio ou pela «maledicência» trovadoresca. Neste conjunto de 48 cantigas referentes às elites da sociedade medieval peninsular, e se excetuarmos as cantigas referentes â guerra civil portuguesa e aos alcaides «traidores» (de que trataremos mais adiante), apenas quatro parecem ter motivos abertamente políticos2. São elas: a cantiga, já antes citada (p. 117), que Afonso
1 Também uma cantiga de amor João Lobeira (B 245), que poderemos considerar mista, discute os poderes de Deus (que pode muito mas não tem o poder de tirar-lhe o bem da sua senhor, já que esta nunca lho deu). 2 Já Carlos Alvar chamou a atenção para o alheamento que parecem demonstrar os trovadores e jograis galego-portugueses face às questões diretamente políticas, referindo concretamente o silêncio dos
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X, ainda infante, dirige a D. Rodrigo, mordomo de seu irmão D. Henrique, e que se refere ao seu comportamento nas rivalidades que opunham os dois irmãos; uma outra cantiga, de Airas Nunes (B 883, V 466), que refere os conflitos, surgidos aquando da sucessão de Afonso X, com os infantes de Lacerda, netos do falecido rei (a quem é endereçada a composição, o trovador tomando aqui a defesa de D. Sancho IV), cantiga que inclui ainda uma referência paródica às veleidades do falecido rei quanto à coroa do Sacro Império1; Fernão Rodrigues Redondo chufa, noutra cantiga (B 1614, V 1147), de D. Pedro de Aragão, a propósito de uma qualquer dissenção entre D. Dinis e este seu cunhado; finalmente também de alcance político (atacando o irmão de Afonso X, o infante D. Manuel) parece ser o já antes referido «pranto» paródico de Pero da Ponte por ocasião da morte de um tal D. Martim Marcos (B 1655, V 1189). Qualquer uma destas cantigas toma partido claro e procura intervir assim, a seu modo, na vida política do seu tempo. Mas muitas outras composições, não apresentando um caráter político tão explícito, transportam-nos igualmente para um ambiente em que os conflitos desta natureza parecem servir de pano de fundo. É o caso, para começar, das quatro cantigas que põem em cena personagens femininas da alta nobreza, todas referentes a episódios públicos escandalosos de que elas são protagonistas. Note-se que nenhuma destas cantigas é endereçada diretamente às ricas-donas em questão: elas são, antes de tudo, comentários sobre acontecimentos ocorridos (podendo, evidentemente, sugerir culpados). E nesta medida, convém realçar, elas diferem em parte da estrutura pessoalmente endereçada que vimos ser a dominante nas cantigas de escárnio e maldizer. Duas delas, da autoria de Martim Soares (recordemos, no entanto, que a autoria da segunda é controversa), dizem respeito às «netas do conde» (o célebre D. Mem Gonçalves, valido de D. Sancho I, da família dos Sousas, a principal entre as grandes
poetas da corte afonsina em relação ao que ele considera o mais importante episódio da política internacional desta corte, o da prolongada luta que Afonso X manteve pela coroa do Sacro Império, de que só a cantiga, antes referida, do rei contra o Papa, seria testemunho (contrastando com as numerosas alusões a esse facto feitas pelos mais diversos trovadores provençais). Vide «Poesia y politica en la corte alfonsi» in Cuadernos Hispano-Americanos, 410, Junho 84. Genericamente, e sobretudo no caso concreto, parece-nos ter Carlos Alvar razão, ainda que, como veremos, haja mais duas referências a essa questão nos Cancioneiros. 1 Ouvimos, pela boca de D. Sancho IV, dirigindo-se aos sobrinhos: «(...) se quiserem, por câmbio do reino de Leon,/ filhem por en Navarra ou o reino d'Aragom./ Ainda lhe fazede outra preitesia:/ darlhes-ei por câmbio quanto hei em Lombardia(...)». Evidentemente Afonso X não deixou em herança nenhumas terras na Lombardia porque nunca sobre elas teve quaisquer direitos.
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famílias portuguesas da época), com incidência especial numa delas, D. Elvira Anes, raptada (roussada) pelo infanção Rui Gomes de Briteiros, que, como já tivemos ocasião de referir, veio a tornar-se uma das personagens mais influentes da corte de Afonso III, que o cumulou de honrarias. As cantigas são, como dissemos, em forma de maldizer aposto: é o próprio raptor que ouvimos falar. Na cantiga que alude mais claramente ao rapto (B 172)1 o que sobretudo se sublinha, através da petulância das palavras postas na boca do infanção, é o facto de o crime ter ficado impune (tendo mesmo acabado pelo casamento do raptor com D. Elvira), sem que ninguém ousasse desafiar o seu autor, ou seja, como comenta em nota Rodrigues Lapa, o que se lamenta «é a miséria moral e a decadência da alta nobreza de sangue», decadência visível na conivência da ilustre família dos Sousas – que não se comove sequer com as lágrimas da raptada – no ato levado a cabo por um dos seus vassalos2. Essa ideia, aliás, é sublinhada pelo tom generalizante da cantiga, que, aludindo ao episódio particular do rapto nas duas últimas estrofes, parte muito claramente da situação geral das bõas donas desamparadas3: Pois boas donas som desemparadas e nulho hom nõn'as quer defender, non'as quer'eu leixar estar quedadas, mais quer'en duas per força prender, ou três ou quatro, quaes m'eu escolher, pois nom ham já per quem sejam vengadas: netas do Conde quer'eu cometer, que me seram mais pouc'acoomiadas! Netas de Conde, viúvas nem donzela, essa per rem nõn'a quer'eu leixar; nem lhe valrá se se chamar mesela, nem de carpir muito, nem de chorar, ca me nom ham por en a desfiar seu linhagem, nem deitar a Castela; e veeredes meus filhos andar netos de Gued'e partir em Sousela.
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Para a segunda (A 62, B 173), vide p. 126 Segundo Carolina Michaëlis, Rui Gomes seria vassalo dos Sonsas, Conf. CA, II, p. 333. 3 O facto de Martim Soares se referir às «netas do conde», no plural parece indicar que alguma outra estaria implicada numa situação escandalosa. Poderá talvez tratar-se de uma outra neta de D. Mem de Sousa, D. Maria Garcia, cuja ligação com seu tio clérigo D. Gil Sanches, bastardo de D. Sancho I (e filho da Ribeirinha), causou escândalo; algumas outras descendentes do Conde tiveram igualmente vidas atribuladas, mas razões cronológicas parecem impedir que a referência seja também às duas bisnetas, D. Maria Mendes, violada pelo próprio irmão, e D. Teresa Gil, que se tornou uma das favoritas de Sancho IV de Castela. 2
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Se eu netas de Conde, sem seu grado, tomar, em tanto com'eu vivo for, nunca por en serei desafiado, nem pararei mia natura peior, ante farei meu linhagem melhor, o que end'é de Gueda, mais baixado; e veeredes, pois meu filho for neto de Gueda, com condes miscrado! Martim Soares, que tão veementemente comenta o caso por interposta voz, não pertencendo provavelmente à alta nobreza, era talvez protegido do magnate D. João Peres de Aboim, o que explicaria a defesa que faz da grande nobreza de sangue1. Uma outra destas quatro cantigas sobre personagens femininas da alta nobreza, da autoria do poderoso conde D. Gonçalo Garcia, também da família dos Sousas (esta é, aliás, a única cantiga sua que nos chegou) refere um outro rapto que fez escândalo na época, o D. Maria Rodrigues Codorniz, rapto levado a cabo por um tal João Bezerra (que, como o nome parece indicar, deveria ser personagem de baixa condição) ( B 455): Levarom-n'a Codorniz de casa de Dom Rodrigo. Mais quem dissesse a Fiz aquesto que lh[e] eu digo: que guarde bem mia senhor, ca já [som] eu treedor se se ela quer ir migo. Fiiz nom se quer guardar [e] nem sol nom é pensado, e leixa-m'assi andar cabo si e namorado; pero quer'ante molher que queria volonter que fosse e nom forçado. Como se vê, D. Gonçalo Garcia, adoptando embora um tom muito mais humorístico do que o de Martim Soares na cantiga precedente, tom visível sobretudo na ironia com que se refere ao descuidado porteiro (de nome Fiz) que permitiu o rapto (e que faz D. Gonçalo ter a tentação de ele próprio raptar a sua senhor), não deixa de
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De qualquer forma é também a mesma noção de desonra impune que constrói a cantiga, antes referida, que dirige à irmã (B 1369, V 977).
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condenar o facto de a fuga ter sido, não voluntária (volonter), mas forçada – não deixa, pois, de comentar criticamente o sucedido. Finalmente a última destas cantigas sobre ricas-donas é aquela com que iniciámos este capítulo, a composição de João Soares Somesso, referente ao casamento forçado de D. Urraca Abril (B 104). Mais uma vez, e como então referimos, haverá seguramente aqui um sentido político que ultrapassa o mero episódio pessoal. Todas estas personagens femininas da alta nobreza que nos aparecem no Cancioneiro satírico aparecem-nos, pois, enquanto protagonistas involuntárias de escândalos públicos. De resto as «boas donas» parecem estar a salvo da verve satírica trovadoresca, pelo menos de forma direta ou abertamente nomeadas – pense-se no caso das cantigas de amigo postas na boca da mãe de Afonso X a que já antes fizemos referência. Também as falsas cantigas de amor então referidas se dirigem normalmente a senhoras não identificadas. Por seu lado, a tenção, de evidente carácter lúdico, entre Pero Velho de Taveirós e seu irmão Paio Soares (B 142), sobre uma aventura galante do primeiro que, tendo-se introduzido sorrateiramente num pomar onde descansavam duas donzelas gémeas da casa de D. Rodrigo Gomes de Trastâmara, acabou por ser violentamente expulso pelo porteiro, não pode considerar-se propriamente uma exceção. Contendo um elogio à beleza das donzelas, a tenção, pela referência muito realista a este episódio burlesco, pode ser, de facto, integrada no Cancioneiro satírico – mas também aqui as ricas-donas são protagonistas involuntárias do episódio. Caráter mais excecional parece ter uma outra cantiga, da autoria de Pero Larouco (B 612, V 214), visando, em forma de retrato negativo da senhor, uma anónima donzela que o perseguia. De facto, a cantiga acrescenta «assi de fea come de maldade/ nom vos vence hoje senon filha dum rei», atacando, pois, indiretamente, uma personagem feminina da alta nobreza, que Rodrigues Lapa crê poder identificar com uma das filhas de Afonso X. De qualquer forma, não explicitando mais nada do contexto, a cantiga é difícil de ser completamente descodificada. Da leitura de todas estas cantigas sobre ricas-donas que temos vindo a referir se pode concluir, mais uma vez, que, a este nível social, os motivos de ordem privada estão muitas vezes profundamente ligados com motivos de ordem social ou política mais geral. É este certamente também o caso dos dois grupos de cantigas que referiremos em
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seguida, que se destacam no conjunto que estamos a considerar, e que têm como alvos dois altos funcionários das cortes de Sancho II (D. Estêvão) e de Afonso X (Fernão Dias). A principal acusação comum a ambos é a de homossexualidade. D. Estêvão, personagem cuja identidade concreta é difícil de apurar1, é um dos alvos prediletos dos trovadores e jograis da época, que lhe dedicam oito cantigas. Para além das constantes alusões às suas preferências sexuais, outro dos assuntos retomados é a sua cegueira, que dá azo a inevitáveis correspondências entre o físico e o moral. Mau caráter, duplicidade e ganância são outras tantas acusações que lhe são feitas. É este mais um dos casos em que os motivos da vida privada parecem não se distinguir dos motivos sociais e políticos. De facto, se a identificação deste D. Estêvão não é hoje inteiramente clara para nós, resulta claro que também estas cantigas têm, de certa forma, de ser ligadas ao ambiente de guerra civil que rodeia a deposição de D. Sancho II e a subida ao trono de Afonso III. Estes ataques pessoais a D. Estêvão são, assim, seguramente, instrumentos de propaganda política. No caso de Fernão Dias, adiantado ou meirinho de Afonso X (mas cuja identificação concreta também é problemática), são nove as cantigas que lhe são dirigidas (por Airas Peres de Vuitorom, Estêvão Faião, Pero da Ponte, Pero Garcia Burgalês e Vasco Peres Pardal2). Referindo todas a sua alegada homossexualidade, elas caracterizam-se ainda pela ironia dos vários equívocos que desenvolvem (à volta da sua qualidade de «adiantado», por exemplo, o que «vai á frente» ou «vai atrás», como já antes referimos); é também notável, do ponto de vista da análise psicológica (facto que também Lapa aponta), a rapidez com que são «comentados» e desmascarados os seus esforços para ocultar as suas preferências sexuais, nomeadamente o seu alegado interesse por inúmeras mulheres (B 1649, V 1183) ou o seu alegado casamento próximo (B 1479, V 1090). Ainda que, à primeira vista, não pareçam visíveis interesses políticos imediatos nestas bem-humoradas sátiras contra Fernão Dias, o mais certo é eles terem seguramente existido, dado o estatuto de figura pública do visado. E será apenas a nossa
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Tanto Carolina Michaëlis como Rodrigues Lapa identificam-no como D. Estêvão Anes, chanceler de D. Afonso III, à sombra de quem acumulou uma imensa riqueza. Resende de Oliveira, com consistentes razões cronológicas e políticas, põe de lado esta identificação. Vide o capítulo “Distrações e cultura” em Leontina Ventura, D. Afonso III, Círculo de Leitores, 2006, pp. 236-241. 2 Para além das que adiante são referidas, há uma outra cantiga de Pero da Ponte contra uma infanção que sabemos apenas ser de Carrion, terra de que Fernão Dias era meirinho (B 1632, V 1166).
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incapacidade para identificar mais concretamente o visado o que nos impede de entendermos cabalmente o alcance político destas cantigas. Se estas duas figuras sobressaem no conjunto das sátiras dirigidas a personagens dos estratos sociais dominantes pelo número de cantigas que suscitaram (são dois dos novos ciclos que Rodrigues Lapa propõe no citado Prefácio), muitos outros grandes fidalgos e altos funcionários nos aparecem neste corpus. Eis alguns dos que serviram de alvo trovadores e jograis, por motivos muito diversos: Mestre João, funcionário da corte de Afonso X1, satirizado pelo próprio monarca em duas cantigas que aludem, ao que parece, à sua qualidade de judeu recentemente convertido (B 489, V 72 e B 490, V 73); vários notáveis de ordens militares, como os que aparecem violentamente atacados numa tenção entre Vasco Gil e Pero Martins (V 1020) sobre os Hospitalários, os quais, como comenta Lapa, nos surgem aqui como «o refúgio da avareza, da falsidade, da devassidão e da cobardia», ou como o mestre de outra ordem não identificada, satirizado, pelo Conde D. Pedro, pela vida que levava com a sua barregã (V 1039), ou ainda um comendador da ordem de Uclês, D. Paio (aqui chamado «Paio de más artes»), e que não será outro senão o célebre D. Paio Peres Correia, cuja alegada ascenção fulgurante a mestre da Ordem de Santiago é o motivo da sátira (B 1600, V 1132); o privado de Afonso III Rui Garcia (de Paiva), alvo de um cerrado equívoco centrado no termo arrais, cujo sentido ainda é polémico (B 1560); um grande fidalgo sem escrúpulos, capaz de vender a própria família (B 1648, V 1182), ou um outro grande senhor, um pertigueiro (encarregado de defender os bens das igrejas e dos mosteiros) que, ao que parece, se interpunha entre Afonso X e a dama requisitada, o que lhe vale uma violenta (ainda que assaz obscura) invetiva por parte do rei (B 460); um funcionário da Fazenda que D. Dinis acusa de acumular gananciosamente riquezas (que os herdeiros dissipam) (B 1541); D. Dinis que também se mete, em tom, é certo, muito humorístico, com o seu privado João Simeão pela morte de três bestas (B 1542); um grande senhor, provavelmente da família real (a cantiga chama-lhe «infante») sem cavalos para distribuir pelos seus homens de armas (B 1607, V 1140); um outro grande
1 Personagem mais uma vez difícil de identificar com segurança. Carolina Michaëlis sugeriu que se trataria do notário-mor de Afonso X. Rodrigues Lapa aventa a hipótese de poder antes tratar-se do físico Mestre João Nicolás, de que iremos posteriormente falar. São identificações que não parecem adequar-se ao retrato pintado nas cantigas, centrado essencialmente na sua voz. Nesta medida, cremos que poderá tratar-se antes de João Egídio de Zamora, referenciado como mestre de órgão da capela real.
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senhor (que D. Carolina Michaëlis crê poder identificar com um dos irmãos de Afonso X), acusado de gostar de tirar mas não de dar (B 1541). Predominantemente referindo os visados pelo seu nome, estas quarenta e quatro cantigas, das quais referimos apenas uma parte, serão talvez, de uma maneira geral, linguisticamente mais cordatas do que muitas outras do nosso corpus. Mas será talvez esta a única distinção, já que nem pela clareza das críticas, nem pelos motivos, nem mesmo pelo modo como a chufa é endereçada ao(s) visado(s) elas se diferenciam das restantes. No seu conjunto, finalmente, elas traçam-nos um retrato das pequenas e grandes misérias das camadas dirigentes peninsulares medievais, com um realismo que as torna, para além da sua, por vezes, notável qualidade poética, documentos valiosos para o nosso conhecimento do ambiente público e político do seu tempo.
h) Cantigas dirigidas ao rei Como vimos por alguns exemplos de cantigas do grupo anterior, também os membros das famílias reais não estão a salvo dos ataques poéticos de trovadores e jograis galego-portugueses. Mas também a própria figura do rei pode ser, e é-o algumas vezes (no nosso corpus 11 vezes), o alvo destes ataques diretos. Na cantiga, atrás referida, que o futuro Afonso X dirige ao mordomo de seu irmão D. Henrique, há igualmente uma alusão crítica ao rei, seu pai, Fernando III. Mas, se neste caso específico, se trata apenas de uma alusão (a cantiga não lhe é dirigida) e o trovador é o herdeiro legítimo da coroa, as restantes onze cantigas são da autoria de trovadores variados, que se dirigem, muito clara e diretamente, a figuras reais. É exatamente neste grupo que encontramos a mais antiga composição datável dos Cancioneiros, a célebre cantiga de João Soares de Paiva «Ora faz host'o senhor de Navarra...» (B 1330bis, V 937), composição na qual o trovador, aludindo às lutas políticas e militares entre o rei D. Sancho VII de Navarra e os reis de Aragão e de Castela depois da derrota de Alarcos, em 1195, critica fortemente a conduta do primeiro, acusando-o de invadir e devastar terras alheias. A cantiga vem acompanhada de uma rubrica que, embora algo obscura, não deixa margem para grande dúvidas sobre o visado: «Esta cantiga é de maldizer e feze-a Joam Soárez de Pávia a 'l-rei Dom Sancho de Navarra porque lhi troub'host'em sa terra e nom lhi deu el-rei ende dereito». Apesar de tudo, diga-se que a composição não foca, na verdade, o caso pessoal do 220
trovador, mas sim a conduta geral de D. Sancho, acusado de cobardia, especialmente visível no facto de se aproveitar da calada da noite para levar a cabo as suas incursões de rapina1. A ironia da última estrofe mostra-nos o tom geral da cantiga: (...) Quand'el-rei sal de Todela, estrẽa ele sa host'e tod'o seu poder; bem sofrem i de trabalh'e de pẽa, ca vam a furt'e tornam-s'em correr; guarda-s'el-rei, com'é de bom saber, que o nom filhe luz em terra alhẽa, e onde sal, i s'ar torn'a jazer ao jantar ou se nom aa cẽa. A escola trovadoresca galego-portuguesa começa assim (pelo menos para nós) com uma sátira a uma personagem real – sátira que utiliza já, aliás, as armas do humor e da ironia que serão o registo mais frequente da escola. Neste grupo de cantigas dirigidas a reis diversos, destacam-se ainda, de forma especial, até porque denotando um tom mais claramente pessoal, as seis que Gil Peres Conde dirigiu ao rei de Castela (que será Sancho IV), e que têm genericamente como motivo o que ele considerava a falta de reconhecimento pelos serviços prestados (nomeadamente ao nível do pagamento). As cantigas, que são notáveis ainda pelo seu caráter de ciclo narrativo autobiográfico, alinham pelo tom da mais conhecida (B 1524): Os vossos meus maravedis, senhor, que eu nom houvi, que servi melhor ou tam bem come outr'a que os dam, hei-os d'haver enquant'eu vivo for, ou à mia mort', ou quando mi os darám? (...) De uma forma geral, e para além da questão do pagamento, Gil Peres Conde (que vemos, certamente numa fase anterior, alinhar com o rei Afonso X na crítica à cobardia dos cavaleiros nas campanhas da Andaluzia) lamenta nestas cantigas o ambiente «em cas d'el Rei», onde falta amor (B 1525, em tom de sirventês) e sobejam pequenos funcionários prepotentes, como o porteiro que lhe impede a passagem (uma cantiga já antes citada, B 1521, vide p. 117). Em geral, o tom aqui é mais o do lamento do que o
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D. Sancho, para uns sensatamente (já que os reis de Aragão e de Castela eram mais poderosos), para outros cobardemente, passou os últimos anos da sua vida encerrado na sua praça forte de Tudela.
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da crítica política. Lamento crítico, se quisermos, onde não falta, no entanto, a ironia e um discreto humor, como é visível no exemplo acima transcrito. Talvez o facto de ser português – o que ele, como veremos, sublinha numa outra cantiga – tivesse contribuído para o tom direto e aberto desta crítica ao rei, tom de que, se excetuarmos a primeira composição de João Soares de Paiva, não encontramos mais exemplos nos Cancioneiros. De facto, as duas outras cantigas contra figuras reais são dirigidas a reis que não podemos identificar: uma pelo cavaleiro Afonso Fernandes Cubel, que acusa esse rei de o ter espoliado na sua herança e não lhe dar meios de sobrevivência – ainda que no final afirme que não deixará de o servir sempre como cavaleiro (B 1610, V 1143); a outra por Fernão Pais de Tamalhancos (B 78), que lamenta o facto de um rei «forte e sem amor» o obrigar a afastar-se de Marinha (que não sabemos se se poderá identificar com a soldadeira já referida – como também não poderemos garantir que não se trate de um maldizer aposto, o que nos parece possível, sobretudo se a referida Marinha fosse, como a referência ao nome próprio parece indicar, uma soldadeira), Finalmente, as restantes cantigas que se podem incluir neste grupo têm um carácter completamente diferente: são as tenções entre Afonso X e vários trovadores, e podem entender-se como simples disputas humorísticas em torno de pretextos vários (lembremos a já citada disputa sobre uma velha peliça). Ainda que estas quatro tenções não sejam propriamente sátiras, nelas parecendo prevalecer o carácter lúdico do divertimento inconsequente1, elas dão-nos, no entanto, conta da relação de proximidade e do grau de intimidade que Afonso X mantinha com os trovadores e jograis da sua corte, e do ambiente de relativa liberdade que nela se vivia. Referência merecem ainda duas cantigas que estão nos limites deste corpus. Uma delas é uma tenção entre Pedro Amigo de Sevilha e João Vasques de Talaveira, não dirigida ao rei, mas sobre o rei, Afonso X, e que tem como tema as suas pretensões à coroa do Sacro Império (B 1550). O assunto, como vemos, teve, pelo menos, esta ressonância entre os trovadores afonsinos. Mas de facto a tenção é essencialmente panegírica: mesmo que um dos intervenientes (Pedro Amigo), seguindo as regras do género, exponha uma posição discordante do contentamento manifestado pelo seu 1
Deve dizer-se, no entanto, que esta leitura pode ser mais aparente do que real, já que todas estas tenções aludem a contextos políticos e sociais concretos. Vide, nomeadamente, a disputa com Vasco Gil (B 1512) que não deixa de criticar, equivoca mas concretamente, os Hospitalários.
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parceiro – alegando que, tornando-se D. Afonso imperador, isso implicaria o seu afastamento dos seus vassalos – a discordância é puramente retórica, como se compreende. Embora contendo alguns traços humorísticos, a tenção não pode ser considerada satírica. Já a outra composição parece poder aproximar-se mais de uma tomada de posição crítica. Trata-se da já referida cantiga que Paio Gomes Charinho dirige (provavelmente) a D. Sancho IV (A 256) e onde desenvolve uma elaborada comparação entre o rei e o mar. De intenção subtilmente crítica ou não (Carolina Michaëlis designa-a por sirventês), ela é, de qualquer forma, uma composição muito pouco comum no quadro geral das cantigas conservadas, e pode situar-se, de facto, naquela zona de fronteira dos géneros, uma zona que este tipo de grandes personagens visadas tornariam certamente mais seguro trilhar. Finalmente não podemos deixar de citar o fragmento de uma cantiga satírica não incluída nos Cancioneiros mas que autor castelhano D. Juan Manuel (contemporâneo da última geração de trovadores) inclui, a título de exemplo, no seu Tratado de Armas. Esse fragmento é exatamente o refrão da cantiga («de que non me acuerdo sinon del refran», diz D. Juan Manuel): Rei velho, que Deos co[n]fonda, tres son estas con a de Malonda. Por este refrão não perceberíamos muito, não se desse o caso de o próprio D. Juan Manuel explicar que se tratava de uma antiga cantiga contra o rei D. Jaime de Aragão, pelo facto de este último ter quebrado as promessas feitas a D. Henrique, o irmão de Afonso X (de o apoiar nas lutas contra o irmão e de lhe dar a filha em casamento1). Trata-se, portanto, de uma cantiga que referiria acontecimentos que já vimos motivarem pelo menos uma outra composição conservada pelos Cancioneiros (vide p. 141). D. Juan Manuel não nos informa sobre o seu autor. Não deixa de ser curioso, no entanto, que a cantiga pareça colocar-se num campo oposto ao de Afonso X (o ataque ao rei de Aragão é, obviamente, a defesa das posições de D. Henrique). Será por isso que os Cancioneiros a não recolhem? A ser assim, teríamos aqui uma prova de um critério
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De facto, D. Jaime deu a sua filha em casamento ao outro irmão, D. Manuel, pai do nosso autor (que por isso está tão bem informado). Estes e outros pormenores históricos in CA, II, p. 257.
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politicamente ativo na recolha que até nós chegou. Seja como for, este fragmento fornece-nos a prova da existência de outras cantigas hoje perdidas.
i) Cantigas dirigidas a ricos-homens e infanções, cavaleiros e escudeiros Antes de nos debruçarmos sobre este grupo de cantigas será conveniente ouvirmos primeiro o que nos diz José Mattoso sobre a distinção, nem sempre fácil, entre estas várias categorias da nobreza medieval1: A divisão tradicional da nobreza em três categorias distintas, de ricoshomens, infanções e cavaleiros, não é suficientemente exacta para corresponder à realidade, embora também não seja fácil substituí-la por outra, a não ser a mais vaga e imprecisa de nobreza superior, média e inferior, havendo paralelismo entre uma e outra apenas na camada superior: os ricos homens pertencem à alta nobreza, mas os infanções e cavaleiros não correspondem exactamente à média e inferior. Em princípio, pois, a expressão «ricos-homens» não significa exactamente homens ricos, mas homens poderosos, e mais propriamente aqueles que exerciam um poder superior associado à função régia e mais particularmente os governadores de terras. Quanto a infanção, o termo «pode significar o nobre de linhagem de qualquer categoria, mas que se opõe ao rico-homem justamente para exprimir o nobre de categoria secundária, ou mesmo inferior». O termo cavaleiro, por seu turno, diz-nos ainda Mattoso «aparece logo nessa altura como designando indiferenciadamente o guerreiro a cavalo, sem distinção de categoria social ou nascimento» (sendo que a designação pode aplicar-se de igual modo aos cavaleiros-vilãos, proprietários ricos dos concelhos)2. Finalmente os escudeiros «(...) na época em que estamos, não constituem mais do que uma categoria de passagem. São os auxiliares dos cavaleiros para as funções militares secundárias e, ao mesmo tempo, membros de um grupo de aprendizagem e acesso à cavalaria». Todas estas categorias da nobreza peninsular medieval aparecem, de facto, no Cancioneiro satírico galego-português. E se a distinção entre elas não é muito clara mesmo para o historiador, ela parece ainda menos definida se atendermos ao conjunto de cantigas satíricas dirigidas a personagens referidas por qualquer uma destas
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História de Portugal, vol. III, Publicações Alfa, Lisboa 1983, ps. 191-200. Identificação de um país, op. cit., p. 136. Já antes referimos uma cantiga (B 1357, V 965) que poderá ter por alvo um cavaleiro-vilão (vide p. 93). 2
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designações. O que acontece é que, se excetuarmos as cantigas dirigidas a figuras que indiscutivelmente poderemos integrar nas elites dos reinos peninsulares, como um Conde de Sousa, um D. Abril Peres de Lumiares, ou todas as outras cuja proximidade do poder lhes confere um estatuto particular e que incluímos no grupo anterior, os trovadores e jograis galego-portugueses parecem enquadrar num registo mais ou menos homogénio e globalizante todas as restantes figuras destas várias camadas da nobreza. E assim, ricos-homens (que podemos supor provenientes essencialmente da nobreza rural1), infanções ou cavaleiros (não sabemos nunca de que categoria) aparecem-nos neste corpus de uma forma mais ou menos indiferenciada, escarnecidos por motivos relativamente semelhantes – ou seja, verdadeiramente como camadas de uma nobreza intermédia ou inferior, alvo predileto da sátira de tipo social, como nos mostram as 79 cantigas que neste corpus lhes são dirigidas. De um modo geral, é o ridículo de comportamentos o que se sublinha, num registo impiedoso, que define ao mesmo tempo a cultura aristocrática e cortês que é a de trovadores e jograis. É interessante, aliás, notar que, ao contrário do que acontece nas cantigas dirigidas contra personagens da corte, a grande maioria destas cantigas não refere os nomes dos visados (limitando-se a referir «um infanção», «um rico homem»). Este facto pode ser entendido de dois modos: ou como sinal da força (pelo menos local) de uma classe de nobreza que não se regia propriamente pelas regras de cortesia e mesura possíveis na corte, classe à qual muitos destes poetas deviam trabalho e abrigo (e os célebres jantares) – neste caso a omissão dos nomes pode ser entendida como um sinal de prudência; ou, como antes nos parece, como sinal de um certo desdém aristocrático, que se traduziria neste anonimato generalizante, a significar uma classe, na época bem definida pelas suas características próprias (a nobreza rural), onde a individualidade do nome pode ser suplantada pelos comportamentos comuns (é um dos raros casos em que o esteriótipo parece funcionar como princípio de construção – independentemente de o episódio narrado ter ou não fundamento real, ele poderia sempre funcionar como verosímil). Mas provavelmente ambas as razões contribuem para esta excecional predominância do anonimato neste numeroso grupo de cantigas.
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O próprio Mattoso reconhece a diferença entre uma nobreza de corte e uma nobreza de província. Vide Identificação de um país, op. cit., p. 137.
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O grande motivo que está por detrás da maioria das cantigas dirigidas a ricoshomens e infanções (e também a personagens designadas apenas como cavaleiros) é, como tem sido indicado, o da sua pelintrice ou da sua avareza. Os dois motivos são, aliás, muitas vezes difíceis de destrinçar. É o que acontece, por exemplo, com as frequentes alusões aos maus jantares que trovadores e jograis «sofrem» em suas casas, e em que não fica claro se tal facto é motivado pela penúria ou pela sovinice dos visados. Repare-se nesta irónica descrição que Pero da Ponte faz da cozinha de um infanção (B 1634, V 1168): Quem a sesta quiser dormir, conselhá-lo-ei a razom: tanto que jante, pense d'ir à cozinha do infançom: e tal cozinha lh'achará, que tam fria casa nom há na hoste, de quantas i som. (...) Tratar-se-ia, como se compreende, de uma cozinha onde nunca se acenderia o lume (boa para dormir a sesta, portanto). Cantigas como esta, de que há inúmeras variações, são muitas vezes citadas como exemplo do que se costuma designar por «decadência dos infanções». Sem pormos de parte essa interpretação, que vê nestas cantigas, pois, uma alusão à penúria dos visados, devemos considerar, no entanto, que a crítica aqui pode ser igualmente à sua avareza ou escassez – o inverso da prodigalidade, um dos valores que serve de pedra de toque à grande nobreza tradicional medieval. Note-se que nas Partidas de Afonso X a escassez é exatamente incluída no grupo dos pecados capitais1. A relutância em partilhar, a sua avareza, constituiriam assim, antes de mais, uma marca da proveniência social do infanção (ou da pouca categoria do rico-homem), facto que estas chufas, de variadíssimas outras maneiras, não deixam também de sublinhar. A dificuldade em distinguir os dois motivos reside em que estas cantigas, se pintam retratos, utilizam muito raramente termos classificativos. Por isso talvez seja de sublinhar esta única estrofe que nos chegou de uma outra cantiga de Pero da Ponte sobre um cavaleiro vilão (dos poucos que surgem claramente identificados como tal), cuja 1
Partidas, 1, V, Lei XXXIII, referente a «Quales pecados son grandes et desaguisados, et quales medianos», que menciona como grandes «adultério, fornício, falso testimonio, robo, furto, soberbia, avaricia, que se entiende por escaseza (...)».
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escassez, aqui explicitamente referida, servia de capa a outros defeitos (B 1630, V 1164): Eu bem me cuidava que er'avoleza d'o cavaleiro mancebo seer escasso muit'e de guardar haver; mais vej'ora que val muit'escasseza: ca um cavaleiro sei eu vilam e torp'e brav[o] e mal barragam, pero tod'esto lh'encobr'escasseza. Esta única estrofe, no seu tom de desdém pelo cavaleiro de classe inferior, claramente visível na sua «escasseza», parece poder sintetizar os exemplos práticos que são as outras cantigas deste género. Mas também há cantigas que parecem apontar para uma real penúria, como esta em que Estêvão da Guarda satiriza um rico-homem que parte de Lisboa (pelo que se depreende por não poder suportar a vida na corte) (B 1307, V 912): Disse-m'hoj'assi um home: - Vai-se daqui um ric'home. Dix[i]-lh'eu: - Per com'el come, pois que m'eu fiqu'em Lixboa! Já que se vai o ric'home, varom, vá-s'em hora boa. (...) De qualquer forma, e quer se trate de avareza ou de real penúria, de infanções ou de ricos-homens, o humor é um elemento constante em quase todas estas cantigas. É a ironia de ter uma pessoa que se enfiar na panela para conseguir ver a carne a cozer na cozinha de um rico-homem, tão escassa que não se chega, aliás, a perceber se é carne ou peixe (mais uma vez, a originalidade de Rui Pais de Ribela, num retrato que parte ainda do bem achado aumentativo ric´homaz = rico homem + ricaz, ricaço) (B 1437, V 1047): Um ric'homaz, um ric'homaz, que de maos jantares faz! Quanta carne manda cozer, quand'home vai pola veer, se s'ante muito nom merger, sol nom pode veer u jaz. Um ric'homaz, um ric'homaz, que de maos jantares faz!
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Quem vee qual cozinha tem de carne, se s'i nom detém, nom poderá estremar bem se x'est carne, se pescaz. Um ric'homaz, um ric'homaz, que de maos jantares faz! É a ironia com que João Garcia de Guilhade brinca, numa outra cantiga, com os decretos sobre traje e alimentação promulgados pelo rei1 (B 1492, V 1103): Par Deus, infançom, queredes perder a terra, pois nom temedes el-rei! Ca já britades seu degred', e sei que lho faremos mui cedo saber: ca vos mandarom a capa, de pram, trager dous anos, e provar-vos-am que vo-la virom três anos trager. (...) Os exemplos poderiam multiplicar-se, já que, como dissemos, o tema parece quase um topus para a maioria dos trovadores e jograis galego-portugueses. Estas cantigas são, nesta medida, as que mais se parecem com variações sobre um tema fixo. Mas se o tema é fixo, ele não é único nas chufas a este tipo de personagens. O que poderemos chamar «falta de pergaminhos» é também, como referimos, outro dos seus motivos. Por outras palavras, trata-se, nestas cantigas, de ridicularizar uma nobreza recente, cujos hábitos e cultura denunciariam a sua classe de origem. A chufa mais conhecida e mais acirrada será, neste âmbito, a já referida gesta de maldizer que D. Afonso Lopes de Baião dirige aos filhos do infanção Rui Gomes de Briteiros (à família dos Briteiros no seu todo), parodiando a situação da revista aos seus homens de armas (vide p. 151). Mas os pretextos para a sátira podem ser os mais variados: já antes referimos toda a panóplia de motivos que Lopo Lias encontra para a sua perseguição satírica aos infanções de Lemos, no longo ciclo de cantigas que lhes dirige. Pretextos dc outros trovadores são ainda o constrangimento em sociedade (B 781, V 365), as modas (B 492, V 75), os estratagemas com que pretendem ocultar as suas origens (B 1321, V 926; B 1337, V 944; V 1201) e mesmo o próprio nome (B 482, V 65). Os nomes são,
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Este tipo de legislação, que procurava conter os limites do luxo e hierarquizá-lo pelas várias classes, foi promulgada em numerosas cortes e de forma repetida, o que prova o seu insucesso em termos práticos.
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aliás, um pretexto importante: de facto, como aponta Mattoso1, os nomes constituem uma verdadeira marca de classe nesta sociedade – e os trovadores mais não fazem do que aproveitarem-se inúmeras vezes deste filão (e não só em relação a esta nobreza recente, como veremos). Já na gesta de maldizer acima referida, D. Afonso Lopes de Baião não se esquece de referenciar todos os vassalos dos Briteiros pelos seus nomes e alcunhas, significativos da sua inferior condição: Aranha, Ferreira, Pachacho, Cabreira, Cheira, Sapo, Gato, etc. (o próprio D. Mendo de Briteiros é alcunhado de D. Belpelho, a raposa). Afonso X usa o mesmo processo nesta chufa em que ironicamente defende um cavaleiro que tinha tido problemas com os seus porteiros (B 482, V 65): Ansur Moniz, muit'houve gram pesar quando vos vi deitar, aos porteiros, vilanamente d'antr'os escudeiros; e dixe-lhis logo, se Deus m'ampar: - Per boa fé, fazêde-lo mui mal, ca Dom Ansur, u me el meos val, vem dos de Vilan'Ansur de Ferreiros! E da outra parte vem dos d'Escobar e de Campos, mais nom dos de Cizneiros, mais de Lavradores e de Carvoeiros; e doutra veo: foi dos d'Estepar; e d'Azeved'ar é mui natural, u jaz seu padr'e sa madr'outro tal, e jará el e todos seus herdeiros. (...) Esta nobreza alegadamente sem pergaminhos é, portanto, mais um dos motivos para o escárnio trovadoresco. Prova de que nem só os trovadores de alta linhagem são autores deste tipo de chufas, é uma cantiga do jogral João Servando satirizando um cavaleiro novato (V 1028), mas também a já várias vezes referida cantiga de seguir de João de Gaia, ridicularizando um vilão, alfaiate de profissão, feito cavaleiro por D. Dinis. Uma personagem semelhante, é, aliás, chufada por Estêvão da Guarda (trata-se agora, como nos informa a extensa rubrica, de um vilão rico, feito cavaleiro por D. Afonso IV, e o pretexto é aqui um capuz de peles debaixo do qual procurava esconder a calva – e note-se como a cantiga joga com o equívoco sintático, em torno da palavra calvo) (B 1322, V 927):
1
Identificação de um país, op. cit., p. 233.
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O caparom de marvi que vos a testa bem cobre com pena veira tam nobre, alfaiat'ou peliteiro, dized'ora, cavaleiro, cal vo-l'apostou assi? (...) De resto, as acusações de mau caráter (falta de palavra, roubo1, etc.), ou mesmo de estupidez, também surgem neste grupo de cantigas, como em todos os outros referentes a personagens masculinas (as personagens femininas, porque maioritariamente relacionadas com um universo erótico, estão isentas deste tipo de acusações). É numa cantiga de maldizer dedicada a um cavaleiro impossível de identificar que surge a única referência à lepra contida nos Cancioneiros (B 1611, V 1144 – trata-se de um cavaleiro que procura, por todos os meios, fugir ao internamento numa gafaria e de um outro que tenazmente o persegue). Facto interessante é o de apenas por duas vezes os motivos erótico-sexuais surgirem neste numeroso grupo de cantigas. Numa dessas composições, João Garcia de Guilhade ri-se da estupidez de um infanção, com cuja mulher, pelo que nos diz, se deitava (B 1498, V 1108): Nunca [a]tam gram torto vi com'eu prendo d'um infançom, e quantos ena terra som, todo'lo têm por assi: o infançom, cada que quer, vai-se deitar com sa molher e nulha rem nom dá por mi. (...) Na outra, João Soares Coelho alude, nestes termos, à impotência de um ricohomem (a quem propõe um casamento «produtivo») (V 1019): Bom casament'é, pera Dom Gramilho, ena Porta do Ferr'ũa tendeira; e direi-vos com'e de qual maneira: pera ric'home, que nom pod'haver filho nem filha, podê-l'-á fazer com aquela que faz cada mês filho. (...)
1
João Velho de Pedrogães acusa de roubo um cavaleiro recente, numa subtil cantiga que joga igualmente com a sua origem vilã (B 1608, V 1141)
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São duas exceções nos motivos maioritariamente relacionados com questões de comportamento público e social que encontramos nas sátiras contra a nobreza peninsular não diferenciada. Uma referência final particular para as cinco cantigas que têm como alvo escudeiros (um grupo social que posteriormente vamos encontrar em destaque na área da sátira social, nomeadamente no teatro vicentino): a falta de linhagem de um deles que quer armar-se cavaleiro (B 1353, V 961), a vigarice de outro (B 1314, V 919), a fanfarronice de um terceiro (uma figura muito vicentina, B 1362, V 970) e a correspondência entre a fealdade física e moral de um quarto (B 1316, V 921), são os motivos destas cantigas Por último refira-se que é um escudeiro o alvo de uma das duas acusações de incesto (conjuntamente com a sua mãe) que encontramos nos Cancioneiros (B 1329, V 935)1.
j) Cantigas dirigidas aos cavaleiros das campanhas da Andaluzia Há, no Cancioneiro satírico galego-português, um conjunto de cantigas dirigidas a cavaleiros, mas aludindo a um contexto de tal modo específico que têm sido desde sempre encaradas como um ciclo relativamente autónomo e com características muito próprias. Assim também nós as consideramos. Trata-se do grupo cantigas que têm como motivo o comportamento dos cavaleiros nas campanhas militares que Afonso X levou a cabo na Andaluzia (nomeadamente durante o cerco de Granada e a contra-ofensiva muçulmana, de que resultou a derrota das tropas cristãs em Alcalá la Real). São ao todo dezassete cantigas de caráter político-militar (as únicas, aliás, com este caráter nos Cancioneiros), sete das quais da autoria do próprio Afonso X, composições essas que atacam, de forma mais ou menos feroz, quer a cobardia dos cavaleiros, infanções e ricos-homens (mas também coteifes, ou seja, soldados-vilãos) nos campos de batalha, quer o oportunismo dos que, traindo o seu dever de vassalos do rei, não ocorreram ao seu chamamento (ou mesmo o abandonaram, como foi o caso do grupo, chefiado pelos infantes de Lara, que em 1272 se passou para o campo do rei de Granada). As cantigas de Afonso X, das mais notáveis de todo o Cancioneiro – até porque nelas o humor e a ironia se cruzam com uma sentida indignação – traçam um quadro 1
A outra é feita a um dos cavaleiros não identificados.
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vivo e muito realista, tanto do palco de guerra (o medo dos soldados, por exemplo, à aproximação da cavalaria inimiga, os temíveis genetes africanos [B 491, V 74]: O genete pois remete seu alfaraz corredor estremece e esmorece o coteife com pavor. Vi coteifes orpelados estar mui mal espantados e genetes trosquiados corriam-nos arredor; tinham-nos mal aficados [ca] perdian'a color. Vi coteifes de gram brio eno meio do estio estar tremendo sem frio ant'os mouros d'Azamor; e ia-se deles rio que Auguadalquivir maior. (...) como do oportunismo dos que, não tendo combatido, procuravam aproveitar-se posteriormente dos benefícios da guerra (B 494, V 77): O que foi passar a serra e nom quis servir a terra, é ora, entrant'a guerra, que faroneja? Pois el agora tam muito erra, maldito seja! O que levou os dinheiros e nom troux'os cavaleiros, é por nom ir nos primeiros que faroneja? Pois que vem cõn'os prostumeiros, maldito seja! (...) Algumas destas cantigas distinguem-se, aliás, no corpus satírico dos Cancioneiros, pelas suas características estruturais muito particulares. De facto, testemunhos de um comportamento de grupo considerado vergonhoso, algumas destas cantigas, para além de não serem individualmente endereçadas, não obedecem ao tradicional esquema de 232
«tema/variações» que vimos ser o comum neste corpus. E, no entanto, pode dizer-se que ainda aqui a estrutura repetitiva do escárnio galego-português se mantém. Repare-se nas duas cantigas que citámos: em ambas, a estrutura de cada estrofe é semelhante à da estrofe anterior, quer ao nível da forma quer ao nível da acusação crítica (cada estrofe é uma variação da anterior). O que vai mudando são as personagens aludidas (Vi coteifes... Vi [outros] coteifes..., ou O que foi passar a serra... O que levou os dinheiros...). O que acontece, pois, é que Afonso X se serve aqui desta estrutura repetitiva tradicional de uma forma completamente nova: utilizando a repetição como somatório (um coteife e outro coteife, um cavaleiro, outro cavaleiro), e portanto como veemente
denúncia
de
um
comportamento
coletivo
(mas
individualmente
responsabilizável). O processo ganha a sua máxima dimensão nas quinze estrofes de uma destas cantigas de Afonso X (B 496/145bis, V 79), cada uma delas uma chamada individual sob o refrão comum «nom vem al maio» (as festas de maio, mas também a reunião anual das tropas, o alardo): O que da guerra levou cavaleiros e a sa terra foi guardar dinheiros, nom vem al maio. O que da guerra se foi com maldade e a sa terra foi comprar herdade, nom vem al maio. O que da guerra se foi com nemiga pero nom veo quand'é preitesia, nom vem al maio. O que tragia o pano de linho pero nom veo polo Sam Martinho, nom vem al maio. O que tragia o pendom [sem] cinco e [e]no dedo seu pedra e vinco, nom vem al maio. (...) No seu conjunto, estas cantigas são assim um dos momentos mais altos da arte poética de Afonso X. Das restantes cantigas sobre o assunto, quatro são, curiosamente, da autoria do português Gil Peres Conde que encontrámos queixando-se amargamente do rei de
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Castela – encontramo-lo aqui ao seu lado, decerto num momento anterior (com Afonso X e não com o seu filho e herdeiro Sancho IV), na crítica aos cavaleiros traidores; outras quatro cantigas são da autoria de Pero Gomes Barroso, também um português, próximo de Afonso X (que, aliás, o nomeou mediador no conflito com os ricos-homens rebeldes) – para além de tratar temas semelhantes aos anteriores, Pero Gomes Barroso pode ser distinguido ainda aqui por dedicar uma cantiga especificamente a um seu compatriota, um cavaleiro português que pretende tirar proveito do conflito, apresentando-se como autor de proezas alheias (B 1445, V 1056)1; o mesmo motivo parece estar na raiz da composição de Afonso Mendes de Besteiros, de que já antes falámos (vide p. 163), e que descreve igualmente a cobardia de um cavaleiro português (não podemos saber se o mesmo) face à investida dos genetes árabes (B 1558).
l) Cantigas dirigidas aos alcaides aquando da deposição de D. Sancho II
A deposição de D. Sancho II é outro dos acontecimentos históricos maiores documentados nas cantigas de escárnio e maldizer galego-portuguesas. De facto, e para além das cantigas dirigidas contra personagens da corte de Afonso III que, como dissemos, podem refletir um certo ambiente de oposição ao novo rei, contêm os Cancioneiros três cantigas que se referem diretamente à chamada «traição» dos alcaides, alcaides esses que, sob pretextos vários, e com a conivência (ou mesmo sob a pressão) da Igreja, entregaram os seus castelos ao Conde de Bolonha, o futuro D. Afonso III, originando assim uma viragem decisiva na guerra civil que opunha os dois irmãos. Sendo apenas três, as cantigas não deixam de ser, sob vários pontos de vista, documentos notáveis de uma época. Defendendo todas três a posição do rei deposto, é interessante notar, no entanto, que o que nelas se critica não é tanto a posição do partido contrário (os partidários de D. Afonso – nenhuma destas cantigas lhes é dirigida), mas antes a «traição», ou seja, a falta de fidelidade ao seu legítimo senhor a que feudalmente os vassalos eram obrigados (como o eram os alcaides em relação a D. Sancho2). Já anteriormente nos referimos ao facto de estas cantigas constituírem também duas das mais violentas sátiras políticas contra os altos dignatários da Igreja que se podem
1 2
A cantiga, é, no entanto, de difícil leitura. Como se sabe, os alcaides eram nomeados pelo rei e seus representantes junto dos concelhos.
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encontrar nos Cancioneiros. De facto, e tal como acontece nas cantigas que acabámos de ver sobre as campanhas da Andaluzia, em especial as de Afonso X, o que aqui se satiriza é menos um comportamento individual do que um comportamento coletivo – no caso, o dos alcaides, evidentemente, mas também (e talvez sobretudo) o da Igreja, na pessoa dos bispos e arcebispos que alegadamente pressionaram os ditos alcaides. Uma das cantigas, aliás, constrói-se num esquema muito semelhante ao das cantigas de Afonso X atrás referidas. Trata-se de uma justamente célebre cantiga de Airas Peres de Vuitorom, na qual o trovador, apoiando-se genialmente na utilização de um latim macarrónico como paródia ao discurso da Igreja («desconstruindo-o», por vezes, na «tradução»), vai nomeando, um a um, todos os alcaides traidores (B 1477, V 1088): A lealdade da Bezerra, que pela Beira muit'anda, bem é que a mantenhamos, pois que no-l'o Papa manda. Nom tem Sueiro Bezerra que tort'é em vender Monsanto, ca diz que nunca Deus diss[e] a Sam Pedro mais de tanto: - Quem tu legares em terra erit ligatum in celo; por en diz ca nom é torto de vender hom'o castelo. Por en diz que nom fez torto o que vendeu Marialva, ca lhe diss'o arcebispo um vesso per que se salva: - Estote fortes in bello et pugnate cum serpente; por en diz que nom é torto quem faz traiçom [e] mente. (...) Salvos som os traedores quantos os castelos derom; mostrarom-lhi em escrito [que foi bem quanto fezerom] super ignem eternum et divinitatis opem: salvo é quem trae castelo a preito que o isopem! (A cantiga abre, antes da estrofe final transcrita, uma exceção para o leal alcaide de Celorico, que surge como um verdadeiro herói neste mar de indignidades). A outra cantiga, do jogral Diego Pezelho, sendo individualmente endereçada ao alcaide do castelo de Sousa (mas o processo é apenas aparente, já que, na verdade, o defende, por ter resistido ao arcebispo), encontra desta forma uma curiosa maneira de responsabilizar a Igreja pelo acontecido (vide p. 123). A ideia que nela se defende, a de que não foi uma entrega mas sim uma venda o que os alcaides fizeram, é igualmente a base da terceira cantiga (vide p. 135). No seu conjunto, estas três cantigas constituem assim uma das denúncias políticas mais claras do Cancioneiro satírico. Não deixa de ser
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algo surpreendente, no entanto, que, ao contrário do que geralmente acontece, seja do partido vencido e não do vencedor a voz que se conservou. A explicação que parece plausível é a de que todas elas teriam sido compostas no círculo do Infante Afonso de Castela (o futuro Afonso X), que veio efetivamente em socorro do infeliz rei D. Sancho (entrando em Portugal com a suas tropas pela Beira, mas sem conseguir alterar o desfecho do conflito1).
m) Cantigas dirigidas a homens de leis A atuação de juízes e advogados, um dos temas tradicionais da sátira, está representada nos Cancioneiros por seis cantigas, quatro das quais da autoria de um mesmo trovador, Estêvão da Guarda (cuja preferência pelo tema se pode ainda ver nas pontuais mas numerosas alusões ao direito que faz em outras cantigas dirigidas a personagens diversas). Esta circunstância, conjuntamente com o facto de uma das duas cantigas restantes, de Pero Garcia Burgalês, ter como alvo um juiz que lhe recusou hospedagem (B 1381, V 989), o que torna relativamente irrelevante a sua classificação profissional, e a outra, de Airas Peres de Vuitorom (B 1484, V 1096), ser dirigida a um “mestre Joam Nicolás” cujo estatuto profissional não é seguro2, pode levar-nos a pensar que a sátira aos homens de leis aparece nos Cancioneiros mais como fruto de uma experiência pessoal circunstancial do que como um filão comum da escola – confirmando assim a pouca atenção que as classes que poderemos considerar médias suscitam aos trovadores e jograis galego-portugueses. As quatro cantigas de Estêvão da Guarda parecem, no entanto, salvar a honra do convento. Se excetuarmos uma delas, que satiriza um destes doutores por questões relacionadas com o seu futuro casamento (B 1308, V 913), as restantes três têm, de facto, questões profissionais por motivo: elas visam quer a incompetência, quer a corrupção de juízes e mestres de leis. A mais curiosa dessas cantigas parece-nos ser a que se dirige a um juiz chamado Alho (nome ou alcunha que ajuda à sátira), que receberia subornos (peitos) das partes (B 1326, V 932):
1 Até porque seu pai, Fernando III, se opôs a esta intervenção militar, em parte coincidente com os preparativos para a conquista definitiva de Sevilha (1247). 2 Mestre João Nicolás foi o conhecido físico (e também privado) de Afonso X, a quem são dirigidas várias cantigas. Pode tratar-se de um homónimo, mas também poderá ser este médico.
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Pero el-rei há defeso que juiz nom filhe peito do que per ant'el há preito, vedes o que hei apreso: quem s'ajudar quer do Alho faz barata d'alg'e dá-lho. (...) As duas outras cantigas dirigem-se, em forma de equívoco, a um mestre de leis manco (B 1303, V 908) e a um outro juiz surdo (B 1305, V 910). No seu conjunto estas cantigas, mesmo sendo da autoria de um único trovador, constituem (porque sátiras pessoalizadas ainda, mas alargadas a uma dimensão social mais geral), um dos momentos em que a arte satírica trovadoresca mais se aproxima dos seus caminhos futuros (recorde-se que Estêvão da Guarda é, aliás, da última geração de trovadores, o que, não sendo, por si só, muito significativo, parece, neste caso fazer algum sentido).
n) Cantigas dirigidas a médicos Tal como os homens de leis, os médicos, ou físicos, não têm uma presença numericamente muito significativa nos Cancioneiros. Mas, ao contrário do grupo anterior, aqui é a figura de um único médico que polariza a atenção de vários trovadores: a de Mestre Nicolás, físico das cortes de Leão e Castela, provavelmente também dado às artes de trovar – o que explicaria, de certo modo, este pequeno ciclo de chufas. Mas em três das composições, os motivos são profissionais. Vemos, por exemplo, Mestre Nicolás, retratado na sua sabedoria recente e livresca (Afonso Anes do Cotom, B 1584, V 1116): Meestre Nicolás, a meu cuidar, é mui bom físico: nom por saber el assi as gentes bem guarecer, mais vejo-lhi capelo d'ultramar e trage livros bem de Mompisler, e latim come qual clérigo quer entende, mais nõn'o sabe tornar. E sabe seus livros sigo trager come meestr'e sabe-os catar e sab[e] os cadernos bem cantar; quiçai nom sabe per eles leer, mais bem vos dirá quisquanto custou 237
todo per conta, ca ele x'os comprou. Ora veede se há gram saber! (...) O retrato é semelhante ao que aparece na cantiga que Pero de Ambroa lhe dirige (B 1577). A questão do pagamento também é o tema deste escárnio de Gonçalo Anes do Vinhal, que gira ainda à volta da ideia de que, se os doentes se curam, não é pelo palavreado do físico, mas pela graça de Deus ou da natureza (V 1006)1: Quantos mal ham, se quere[m] guarecer, se x'agora per eles nom ficar, venham este maestre bem pagar, e Deu'los pode mui bem guarecer; ca nunca tam mal doent'home achou nem tam perdudo, des que el chegou, se lh'algo deu, que nom fosse catar. Quiçá non'o pod'assi guarecer, que este poder nom lho quis Deus dar, [j]á que nom sabe que possa saar o doente, meos de guarecer; mais preguntar-lh'-á de que enfermou, come maestr'; e, se o bem pagou, nom leix'a guarir, polo el preguntar. (...) É curioso que, aparecendo apenas como médico nestas três cantigas, Mestre Nicolás seja uma das figuras mais citadas quando se fala do corpus satírico dos Cancioneiros. A explicação poderá residir no facto de os trovadores conseguirem, de facto, fazer nestas cantigas um retrato humorístico que se aproxima da personagem tipo do médico ganancioso e charlatão, personagem tradicional da sátira – o humor parece, aliás, partir aqui da aplicação desse esteriótipo à figura concreta de Mestre Nicolás, com uma intenção mais lúdica do que propriamente crítica. Excetuando Mestre Nicolás, apenas mais um físico aparece nos Cancioneiros como alvo de sátira2: trata-se de Mestre Acenço, outro físico de Afonso X, que Martim Moxa humoristicamente felicita por, com as suas artes, ter ajudado o rei nos seus conflitos contra os ricos-homens rebeldes, aquando das campanhas na Andaluzia, «tratando da
1 Embora, neste caso, a cantiga não refira o nome do físico, a proximidade do trovador a Afonso X e ao seu círculo torna plausível que se trate do mesmo Mestre Nicolás. 2 Numa cantiga de Vasco Peres Pardal (B 1505) é feita ainda uma referência satírica e humorística a um maestre Simiom. Mas a cantiga tem como alvo principal um tal D. Fernando, e não este mestre. Também D. Dinis se refere lateralmente, numa sua cantiga satírica, a Mestre Reinel (B 1535).
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saúde» de um deles com os seus pós (B 916, V 503)1. A cantiga, não versando exatamente motivos profissionais (e tendo certamente, uma intenção política cujo contorno exato hoje nos escapa) parte, no entanto, como se vê, sábia e humoristicamente, da profissão do visado.
o) Cantigas dirigidas a mercadores São quatro as cantigas que, nos Cancioneiros, são dirigidas a este tipo de personagens, mas nenhuma delas o faz exatamente enquanto representantes de uma classe profissional. São todas elas da autoria de João Airas de Santiago2 e referem-se a um tal D. Beito que, diz a primeira delas, «ora chegou (...) muito alegre (...) com sas merchandias de Mompiler». Desta mesma cantiga talvez se possa depreender que ele seria negociante de couros3 (com negócios internacionais, como se vê). Os motivos que estão na origem destas cantigas não são totalmente claros, mas é provável que se relacionem, não propriamente com assuntos profissionais, mas com o adultério da sua mulher na sua ausência (da segunda cantiga se poderá talvez depreender que com o próprio trovador4). Para além da curiosa referência a Montpellier (que já encontrámos, aliás, nas cantigas sobre mestre Nicolás), o mercador não seria aqui, provavelmente, mais do que outro dos maridos enganados satirizados pelos trovadores. Não encontramos, portanto, nestas chufas nenhum retrato de D. Beeito enquanto representante de um grupo profissional, como acontece ainda assim com os juizes e os médicos. De qualquer forma, a segunda destas cantigas merece ainda uma referência especial pela provável alusão que nela é «equivocamente» feita (neste corpus, alusão única) a práticas sexuais particulares. A cantiga é a seguinte (B 1464, V 1074): Dom Beeito, home duro, foi beijar pelo oscuro a mia senhor.
1
A nossa leitura da cantiga é completamente diferente da de Lapa. B 1463, V 1073; B 1464, V 1074; B 1465, V 1075 e B 1466, V 1076. Como se pode verificar, elas são transcritas em sequência nos Cancioneiros, o que reforça a ideia de constituírem um ciclo. 3 Jose Luis Rodrigues, El cancionero de Joan Airas de Santiago, edicion y estudio, Verba, Anexo 12, Vigo 1980. 4 Mas poderá tratar-se, também aqui, de um maldizer aposto. 2
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Come home aventurado, foi beijar pelo furado a mia senhor. Vedes que gram desventura: beijou pela fendedura a mia senhor. Vedes que mui grand'abaco: foi beijar polo buraco a mia senhor. Como se compreende, a primeira alusão de João Airas é a amores clandestinos (que o refrão mia senhor, como anota Lapa, humoristicamente reforça – a senhor sendo dos dois). Mas a alusão parece ser ainda, como entende Ramon Raimundo Norenha, a «práticas e licenças sexuais, muito próximas ao que se chama cunnilingus ou melhor anuilingus, já conhecidas desde a antiguidade»1. Norenha aproxima esta cantiga do célebre «affaire Cornilh» provençal, o do «trovador invitado pola sua dama a dar-lhe um beijo no cu a ela para provar-lhe o seu amor. Este 'conto' deu pé a tensós a favor e em contra da opiniom de se deviam ou nom os amantes 'corner'= beijar o cu das suas damas como prova». Embora não se possa dizer que João Airas tivesse sido influenciado ou mesmo tivesse tido conhecimento de tão «escaldante» debate, parece, de facto, haver aqui uma alusão a esse «beijo impúdico», o que parece completar-se ainda com a também provável alusão à impotência de D. Beito (o home duro). De qualquer forma, note-se que a cantiga, no seu texto, é mais maliciosa do que obscena, como as restantes três que João Aires dirige a este mercador, disfrutado por motivos da sua vida particular.
p) Cantigas dirigidas a vilãos e burgueses Referimos que uma das marcas da ideologia aristocrática da escola trovadoresca é o reduzido número de cantigas dirigidas diretamente (ou mesmo aludindo de forma secundária) aos grupos exteriores à nobreza. De facto, e se excetuarmos a possibilidade de algumas das personagens referidas como cavaleiros poderem ser cavaleiros-vilãos, a
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«Possíveis influências da lírica provençal na lírica galego-portuguesa», op. cit., p. 706.
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presença de vilãos e burgueses, como tal, no Cancioneiro satírico é numericamente muito fraca. Vejamos as quatro ou cinco cantigas que são endereçadas a personagens deste tipo. Duas delas, da autoria de Pero da Ponte, têm como alvo um tal Pedro Agudo, ao que parece um vizinho do concelho de Burgos1, como uma das cantigas nos informa, chufando da sua situação de «cornudo». A primeira, em forma tradicional de felicitações – aqui, em princípio, pelo nascimento de um filho, um «pequerucho», ou drudo – é uma verdadeira cantiga de marido enganado, independentemente da sua classe social (B 1639, V 1173): Dade-m'alvíssara, Pedr'Agudo, e oimais sodes guarido: vossa molher há bom drudo, baroncinho mui velido. Dade-m'alvíssara, Pedr'Agudo, vossa molher há bom drudo. (...) Para a compreensão da cantiga, deve ter-se em conta, no entanto, que o termo drudo é também a designação provençal para o último grau da escala do amor cortês (o do amante recompensado). Para além da chufa ao marido enganado, é provável, aliás, que a utilização deste termo, aplicado aos amores de uma burguesa, como é o caso, pudesse, já de si, acarretar uma ironia de sentido social – ironia dupla, a verificar-se a hipótese, que parece confirmada por uma outra cantiga de Gonçalo Eanes do Vinhal onde o seu nome é referido (V 1007)2, de Pedro Agudo ter sido também um jogral autor de cantigas3. De qualquer forma, o sentido social da chufa é muito mais nítido na segunda destas cantigas, pela qual, aliás, depreendemos o estatuto do visado. A cantiga
1
Os habitantes dos concelhos (definidos e instituídos pelos forais) são os vizinhos, ou seja, os homens livres. «Dir-se-ia, pois, que o ser recebido pelo concelho e habitar nele confere direitos específicos. Não se é livre senão pertencendo ao grupo e desempenhando as funções que nele lhe são atribuídas.» Mattoso, Identifïcação de um país, op. cit., p. 348. 2 vv. 17 e 18: «ca já quê era de Pedr[o] Agudo/ essa razom em que vós i trobastes». Trata-se da já referida cantiga contra um mestre plagiador. 3 O que não está em contradição com o facto de ele ser vizinho de um concelho. Como nos diz Menéndez Pidal: «Hay que tener también en cuenta que los juglares, en gran número, vivian de asiento en las ciudades. Desde comienzos del sigla XII los hallamos en Sahagún formando una importante clase de la burguesia.» Poesia juglaresca, op. cit., p. 60. Acrescente-se, já agora, que Joaquim Ventura sugeriu a hipótese de Pedro Agudo poder ser, na verdade, o jogral Pedro Garcia Burgalês, hipótese que pode ser considerada. Vide Ventura, “Pedr'Agudo: insult generic o sàtira contra Pedro Garcia Burgalés?”, Actas del VIII Congreso Internacional de la Asociacion Hispanica de Literatura Medieval (1999), Santander.
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é, de certa forma, uma continuação da anterior; mas agora a acusação de «cornudo» estende-se ao substituto de Pedro Agudo no concelho de Burgos (supõe-se que na sua assembleia, o conselho dos homens-bons), um tal Pedro Bodinho1. A cantiga, muito curiosa, merece ser transcrita na sua totalidade (B 1646, V 1180): Os de Burgos som coitados - que perderom Pedr'Agudo de quem porrám por cornudo; e disserom os jurados: - Seja-o Pedro Bodinho, que est'é nosso vezinho tam bem come Pedr'Agudo. E pois que [é d']o concelho dos cornos apoderado, quem lhe sair de mandado fará-lh'el mao trebelho; ca el, mentr'i for cornudo, querrá i seer temudo e da vil'apoderado. E vedes em que gram brio el - qui-lo Deus! - há chegado: por seer cornud'alçado em tamanho poderio, home de seu padre filho; por tanto me maravilho d'a esto seer chegado. E creede que em justiça pod'i mais andá'la terra, ca se nom fará i guerra nem mui maa cobiiça; ca el rogo nunca prende de cornudos, mais entende mui bem os foros da terra. Esta cantiga, para além da penetrante descrição psicológica da transferência da fraqueza doméstica para uma imagem pública de força, é ainda extremamente curiosa pelo facto de ser a única cantiga, neste corpus, que alude à vida num concelho medieval peninsular. De facto, a acusação de «cornudo» está aqui intimamente ligada a toda a
1
Também um Pero Bodinho é referido, como jogral, numa cantiga de Pedro Amigo de Sevilha (V 1202), sendo plausível que seja este mesmo.
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descrição da eleição do novo magistrado concelhio (um novo cornudo) e o que isso representa de prestígio pessoal para a pessoa em causa: a terceira estrofe, sobretudo, constrói-se exatamente na ironia com que essa subida de estatuto é misturada com a situação doméstica aludida (o segrel «maravilha-se» de «a esto seer chegado», «em tamanho poderio», o tal Pedro Bodinho). Trata-se, pois, claramente, de uma chufa pessoal que só ganha pleno sentido no contexto social em que se a personagem se insere – chufa que se alarga, assim, a esse próprio contexto, o dos concelhos e dos seus usos e leis (do qual o segrel evidentemente se distancia). Aliás, os primeiros editores do Cancioneiro da Biblioteca Nacional, José Pedro e Elza Paxeco Machado, tinham sugerido, na edição desta cantiga, que poderia haver aqui um jogo com um segundo sentido da palavra «cornudo», que segundo eles, aludiria à forma dos chapéus dos magistrados dos concelhos. Apesar de Lapa, em nota, achar confusa a explicação, parece-nos que ela poderá, de facto, ter alguma razão de ser: a cantiga ganha toda uma outra força e dimensão se considerarmos que ela assenta sobre o equívoco com o termo cornudo (repare-se, por exemplo, na segunda estrofe « E pois que [é d']o concelho/ dos cornos apoderado», ou mesmo a referência aos «cornudos», nitidamente todos os membros da assembleia, na última). De qualquer forma, é inegável que a sátira social, aqui aos concelhos no seu todo (ou a Pedro Agudo e aos colegas enquanto vizinhos e burgueses), acompanha esta chufa ao(s) marido(s) enganado(s). Outra das cantigas dirigidas a burgueses é da autoria do Conde D. Pedro (V 1040). A rubrica que a acompanha explica-a de uma forma bem precisa: «Esta cantiga de cima foi feita a ũa dona d'ordim, que chamavam Moor Martiins, por sobrenome Camela, e a um homem que havia nome Joam Martins, por sobrenome Bodalho, e era tabeliom de Braga». É exatamente a partir dos sobrenomes da freira e do tabelião (bodalho=leitão) que D. Pedro constrói a chufa à sua ligação: Natura das animalhas que som d'ũa semelhança é de fazerem criança, mais des que som fodimalhas. Vej'ora estranho talho qual nunca cuidei que visse: que emprenhass'e parisse a camela do bodalho. (...)
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Como já antes referimos em relação à nobreza, e no seguimento de José Mattoso, na sociedade medieval os nomes (e com mais razão ainda, as alcunhas) acarretam consigo um peso e um valor social que os trovadores sabem, de facto aproveitar. Neste caso, parece evidente, em primeiro lugar, o sentido de oportunidade do Conde D. Pedro, já que, independentemente da origem social dos visados, as suas alcunhas parecem quase pedir uma chufa. De qualquer forma, também é do mesmo modo evidente o sentido social dessa chufa, plasmado no aproveitamento dessas alcunhas plebeias – repare-se que, mais do que zombar da ligação de ũa dona d'ordim com um homem, é à categoria social dos dois, reconhecível pelos seus nomes, que se faz prioritariamente referência. Não diríamos, como Mattoso, que a atitude é de desprezo – o humor, de certa forma, atenua-o – mas é decerto a distância aristocrática que, mais uma vez, está na raiz deste humor. Distância aristocrática que também é visível numa outra cantiga do mesmo Conde D. Pedro, esta dirigida a um mestre de uma ordem militar não especificada (um nobre, seguramente), mas que satiriza a relação (estável, com filhos) do dito mestre com uma tendeira, e os negócios pouco ortodoxos que ambos fariam. A longa rubrica que a acompanha sintetiza bem o caso (V 1039): Esta cantiga de cima foi feita a um Meestre d'ordim de cavalaria, porque havia sa barragãã e fazia seus [filhos] em ela ante que fosse Meestre; e depois havia ũa tenda em Lisboa, em que tragia mui grande haver a gaanho; e aquela sa barregãã, quando lhi algũus dinheiros vinham da terra da Ordem e que Meestre i nom era, enviava-os aaquela tenda, pera gaanharem com eles pera seus filhos; e depois tirarom ende os dinheiros da tenda e derom-nos em outras praças pera gaanharem com eles, e ficou a tenda desfeita; e nom leixou por en o Meestre depois a [barre]gãã». A cantiga desenvolve um cerrado mas divertido equívoco erótico em torno da tenda (que visualizamos armada, como ainda hoje nas feiras, com um pau ou esteio central, e cordas segurando os panos), equívoco que poderá ser sintetizado na expressão, ainda atual, «(a tendeira) esticou tanto a corda e puxou tanto pelo pau que a tenda ficou destruída». Exemplificamos com a terceira estrofe, onde é feita uma animada descrição do «desastre», causado pelo «apoderamento» da designada «maestra»: (...) A corda foi em pedaços e o mais do al perdudo; mais ficarom-lhi dous maços 244
[a] par do esteo merjudo1, e a Maestra metuda na grand'estaca, jazendo; e foi-s'a tenda perdendo assi como é perduda. (...) Independentemente dos alegados «negócios» pouco claros do casal com os dinheiros da Ordem, a distância aristocrática face ao comércio e ao dinheiro (e ao comércio do dinheiro, já que eles poriam os fundos a render «em outras praças», talvez internacionais) parece-nos também muito visível aqui. Finalmente, a última destas cantigas, tendo ainda uma questão de nomes por motivo, parece mais inofensiva, porque mais lúdica. Trata-se de uma cantiga que João Airas de Santiago compõe a propósito de um barbeiro seu homónimo (B 1462, V 1072): Quando chamam Joan'Airas, reedor, bem cuid'eu logo, per boa fé, que mi chamam; mais a Nostro Senhor rogo que atal Demo o tome, per que me tolhem o nome. Vêm Joam'Airas chamando per aqui todo o dia, e eu vou, quand'o chamam; mais rog'eu a Santa Maria que atal Demo o tome, per que me tolhem o nome. Como vemos, o motivo não podia ser mais circunstancial. Mas é evidente que, para lá do humor, há aqui também a afirmação de uma distância, visível sobretudo no refrão: o trovador defende o seu bom nome (porque lho tolhem), uma defesa que não nos parece que seja apenas, como sugere Lapa, a do próprio nome, mas igualmente do nome enquanto valor social, degradado que pode tornar-se pela sua aplicação repetida a um barbeiro (note-se a indicação precisa da profissão do homónimo). Todas estas cinco cantigas confirmam, com mais ou menos evidência, as restantes alusões a vilões e burgueses dispersas nalgumas outras cantigas deste corpus: quando aparecem, o ponto de vista a seu respeito é sempre negativo. Atitude que também é notória na célebre «questão da ama», que opôs D. João Soares Coelho (que tinha elogiado, numa cantiga de amor, uma ama de leite), a um numeroso grupo de trovadores e jograis do círculo de Afonso X. Dada a natureza da questão, que põe sobretudo em
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mergulhado, caído
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jogo valores e normas do amor cortês e da arte de trovar, ela será analisada posteriormente. Note-se, no entanto, que o escândalo é desencadeado pelo elogio feito a uma mulher que seria vilã, o que é sintomático do valor desta classe no ambiente trovadoresco. Os burgueses aparecem ainda, fugitivamente, na figura de D. Corral (talvez mais uma alcunha cheia de significado), em cuja casa o trovador Lopo Lias esperava receber o pagamento dos soldos dados a uma «dona fremosa do Soveral» (B 1351, V 958 e B 1352, V 959/60). Mas as cantigas parecem dirigidas mais à dona do que a D. Corral, cuja participação na história não é muito clara. E provável, evidentemente, até pelo que se depreende desta cantiga, que muitas das mulheres satirizadas que referimos anteriormente fossem vilãs ou burguesas. Mas é matéria hoje em dia difícil de apurar. Em plano também secundário são escarnecidas relações de donas com vilãos, nomeadamente de religiosas, como já referimos.
q) Cantigas dirigidas a castelhanos Numa poesia que, como temos vindo a referir, é essencialmente peninsular, não deixa de ser interessante constatar a existência de duas cantigas que são dirigidas a personagens identificadas exclusivamente pela sua nacionalidade, e por motivos que com ela se prendem1. Sendo exceções, elas são, a nosso ver, exceções significativas. Uma delas é da autoria daquele fidalgo português, Gil Peres Conde, que já encontrámos criticando D. Sancho IV e lamentando a sua falta de sorte em Castela. No âmbito dessa ciclo, encontramo-lo também protagonista de uma cena em que um castelhano «pelejador» o ameaça de lhe dar uma «gram punhada», só porque falou de Portugal, como nos diz na terceira estrofe da cantiga (B 1526)2: (...) Quand'ora diz que me ferrá, porque falei em Portugal, onde mi som natural, se por esto ferir há, 1 Também contra personagens identificadas especificamente como portugueses são dirigidas duas cantigas (do ciclo das campanhas da Andaluzia). Mas nelas o motivo não se prende com a questão da nacionalidade. 2 O trovador aparece-nos fechado numa pousada, sem dela poder sair, por causa das ameaças do castelhano.
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hoje foss'eu ferido, por que perdesse medo já, que fosse del partido toda esta andada (...) Apesar da confissão do medo ao feroz castelhano (a cantiga desenvolve o mesmo curioso tom autobiográfico, a meio caminho entre ironia e seriedade, que nos surge nas cantigas contra o rei), este sentimento de um certo orgulho nacional por parte de um trovador da escola galego-portuguesa é caso único e original no conjunto destes poetas e músicos viajantes que parecem passear-se indiferentemente pelas várias cortes peninsulares, sem vestígios de um qualquer espírito patriótico. A segunda cantiga é a composição de Caldeirom, já antes referida (vide p. 63), a qual, malgrado ser de difícil leitura, gira claramente em torno de um confronto de culturas e mentalidades nacionais (neste caso, entre castelhanos e aragoneses, e sobre as diferentes maneiras que usam com as donas). São as duas únicas referências diretas às diversas nacionalidades da Península, numa poesia em que o galego-português funciona como língua poética ibérica por excelência.
r) Cantigas dirigidas a judeus As referências a judeus não são raras no Cancioneiro satírico. Encontramo-las em algumas cantigas, como elementos secundários (essencialmente em questões de dinheiro ou ainda no universo das soldadeiras, como já referimos). No entanto, apenas uma única cantiga deste corpus se dirige claramente um judeu – e, mais do que isso, o tem como co-autor. Trata-se de uma curiosa tenção entre Estêvão da Guarda e um D. Josepe, muito provavelmente um alto funcionário da fazenda ao serviço de D. Dinis (ou de seu filho, D. Afonso IV), mas cuja identidade concreta é, infelizmente, muito difícil de apurar. De resto, vale a pena notar que, para além do seu valor intrínseco, esta tenção mostra-nos ainda como o caso de Vidal, judeu de Elvas e autor de duas notáveis cantigas de amor incluídas nos Cancioneiros, não seria caso único de um judeu a trovar em galego-português. A tenção, que se centra em questões muito específicas e até técnicas de impostos, é, em muitos passos, bastante obscura. Mas, em linhas gerais, nela Estêvão da Guarda, que diz ter sido alertado por um certo «D. Foam», acusa D. Josepe de parcialidade na
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aplicação do imposto (a talha) e de fuga às suas próprias obrigações fiscais. D. Josepe defende-se e, no final, Estêvão da Guarda acaba por lhe dar razão e acusar o seu delator de má-fé e inveja (tratar-se-ia de alguém que não queria pagar e que era mal visto pelo rei). Não deixa de ser interessante verificar o tom cortês e mesmo respeitoso com que Estêvão da Guarda trata D. Josepe. Mas, por outro lado, a cantiga mostra-nos também como os judeus não deixam de ser, na época, um grupo social à parte, coeso mas não integrado (e a quem competiam tarefas muito específicas, sobretudo no domínio financeiro e fiscal). Quando Estêvão da Guarda inicia a tenção, é exatamente a um representante desse grupo claramente exterior que ele se dirige (B 1315, V 920): - Vós, Dom Josep, venho eu preguntar: pois pelos vossos judeus talhadores vos é talhado, a grandes e meores, quanto cada um judeu há de dar, per qual razom Dom Foam judeu, a que já talha foi posta no seu, s'escusa sempre de vosco reitar? - [E]stêvam da Guarda, pode quitar qual judeu quer de reitar os senhores, mais na talha, graças nem amores num lhi faram os que ham de talhar; e Dom Foam já per vezes deu do que talharom, com'eu dei do meu, er dará mais, e querrá-se livrar. (...) Esta tenção é ainda curiosa pelo facto de não se tratar propriamente aqui de um jogo de competência na arte de trovar, como a maior parte das outras, mas sim de um verdadeiro «diálogo» em sequência, onde interessa não apenas a habilidade do questionado em refutar as afirmações mais ou menos retóricas de quem o questiona, mas também e sobretudo a elucidação da questão concreta que é colocada no seu início. Supomos que isso se deverá exatamente ao facto de nela Estêvão da Guarda questionar um «estranho» sobre os usos e comportamentos interiores ao seu grupo.
s) Cantigas dirigidas a mouros Diga-se, antes de mais, que, de facto, nenhuma cantiga do Cancioneiro satírico é dirigida a qualquer personagem inequivocamente identificada como mouro (ainda que,
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tal como acontece com os judeus, as referências a muçulmanos se possam encontrar em várias cantigas). Mas se, em princípio, não encontramos cantigas satíricas que lhes sejam abertamente endereçadas, encontramos, no entanto, sete cantigas, dirigidas à mesma personagem, e que aludem, de forma mais ou menos velada, à sua alegada qualidade de «mouro» Trata-se de João Fernandes, cuja identidade e categoria social desconhecemos1. Afonso Anes do Cotom, por exemplo, chama-lhe claramente mouro, numa cantiga em que escarnece do aspeto físico do seu colega Pero da Ponte (numa comparação com a sua própria e confessada falta de beleza e a deste João Fernandes, ambos maltalhados, mas não tanto) (B 1616, V 1149): A mim dam preç', e nom é desguisado, dos maltalhados, e nom erram i; Joam Fernandes, o mour', outrossi, nos maltalhados o vejo contado; e pero maltalhados semos [n]ós, s'homem visse Pero da Ponte em cós, semelhar-lh'-ia moi peor talhado. Outros trovadores limitam-se a jogos verbais, onde a ambiguidade é dominante, como nesta cantiga de João Soares Coelho sobre uma alegada cruzada de João Fernandes (e que tem ainda a interessante particularidade de, logo no início, fazer referências concretas à luta do imperador Frederico II contra o Papa e à invasão dos Mongóis, o que nos permite datar a composição dos anos 1241-1242) (V 1013): Joam Fernández, o mund'é torvado e, de pram, cuidamos que quer fiir: veemo'lo Emperador levantado contra Roma, e Tártaros viir, e ar veemos aqui dom pedir Joam Fernández, o mouro cruzado. E sempre esto foi profetizado par dous e cinco sinaes da fim: seer o mundo assi como é miscrado, 1
Dada a sua proximidade a trovadores e segréis, como estas cantigas atestam, e até porque uma das cantigas afirma que ele é «cortês e casado» (B 1370, V 978), a própria Carolina Michaëlis não exclui a hipótese de se tratar de um cortesão, e crê mesmo poder identificá-lo com o meirinho-mor, D. João Fernandes (Revista Lusitana, XIII, 1910, p. 254). Rodrigues Lapa, em nota a uma das cantigas (L. 406) discorda desta opinião. Pela nossa parte, e como justificamos seguidamente, partilhamos a opinião de D. Carolina, embora não quanto à identificação concreta proposta, dada a existência de outros cortesãos homónimos na época.
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e ar torná'-s'o mouro pelegrim - Joam Fernández, creed'est'a mi[m] que sõo home [mui] bem leterado. E se nom foss'o Antecristo nado, nom averria esto que avém: nem fiar[a] o senhor no malado nen'o malado [e]no senhor rem, nem ar iria a Ierusalém Joam Fernández, [o] nom bautiçado. O entendimento tradicional deste ciclo, de Carolina Michaëlis a Rodrigues Lapa1, era o de que João Fernandes seria um mouro recentemente convertido (um malado) e seria essa o motivo da zombaria coletiva. Na verdade, a rubrica que acompanha uma das cantigas (de Martim Soares, B 1367, V 975), rubrica essa que não foi devidamente levada em conta, esclarece cabalmente a questão: «Esta outra cantiga fez d'escarnho a um que diziam Joam Fernández, e semelhava mouro, e jogavam-lh'ende e diss'assi» (sublinhados nossos). Foi, pois, o aspeto físico de João Fernandes (que parecia um mouro, talvez por ser muito moreno) o motivo desencadeador destas cantigas, que a mesma rubrica classifica como «brincadeiras» (e jogavam-lh'ende). De qualquer forma, a maioria delas joga essencialmente com esta ambiguidade (como aquela outra onde João Soares Coelho «informa» João Fernandes de que a sua mulher anda a dormir com um mouro (V 1012); não se trata, pois, aqui de um caso de adultério, como lê Lapa, mas de um equívoco centrado na identificação desse mouro – que não é outro senão o próprio marido). Ainda que mais nenhum mouro surja como alvo principal de chufas, será aqui curioso salientar que os mouros surgem frequentemente no Cancioneiro satírico associados quer a determinadas particularidade físicas resultantes do que poderemos designar como «higiene sexual» (a circuncisão), quer a práticas homossexuais de várias personagens2. E assim, já neste ciclo em torno de João Fernandes, pelo menos duas das cantigas desenvolvem equívocos em torno da primeira questão, como é o caso da referida cantiga de Martim Soares (a que inclui a rubrica explicativa), que zomba de um traje alegadamente muito curto (pelas ancas) que o visado usaria, mas centrada na 1
E o nosso, na edições anteriores deste trabalho. Como é o caso da cantiga que João Baveca dirige ao segrel Bernaldo de Bonaval, em termos de uma luta «corpo a corpo» com um mouro, na qual o segrel teria alegadamente saído vencido (B 1453, V 1063). 2
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expressão «talhar a saia» (talhar, cortar o saio, coisa que o alfaiate teria feito em excesso), num cerrado equívoco que decerto alude, numa segunda leitura, à circuncisão. O mesmo acontece numa das cantigas de Rui Gomes de Briteiros (B 1543), no caso, e num cenário mais bélico, a partir da ideia de «talhar vinhas alheias». Mas o caso mais flagrante, que junta alusões à circuncisão a práticas homossexuais, é o de um outro ciclo, este dirigido a um tal Álvaro Rodrigues, personagem de identidade não totalmente clara (mas contemporâneo da última geração de trovadores), acusado em várias cantigas1, sempre com humorística ambiguidade, de manter relações com um adolescente mouro, presumivelmente ao seu serviço. Eis uma das mais curiosas, não só pelo humorístico equívoco, mas ainda pela verdadeira mistura étnica que nela se faz, com a introdução de um Mestre Ali, cuja função na história não é, aliás, muito clara (Estêvão da Guarda, B 1317, V 922): Alvar Rodriguiz dá preço d'esforço a est'infante mouro pastorinho e diz que, pero parece menin[h]o, que parar-se quer a tod'alvoroço; e maestr'Ali, que vejas prazer, d'Alvar Rodriguiz punha de saber se fode já este mouro tam moço. (...)2 De duas outras cantigas (B 1301, V 906 e B 1302, V 907) se pode depreender que teria sido uma prolongada estada no Norte de África (onde a vida lhe teria corrido melhor do que na sua própria terra) a origem da situação – e as cantigas zombam do seu desejo de para lá partir de novo. No entanto, a verdadeira identificação desta personagem é, como dissemos, difícil. Uma das cantigas, a do conde D. Pedro, identifica-o, na rubrica como escudeiro e, na primeira estrofe, algo contraditoriamente, como monteiro-mor. É uma cantiga onde, mais uma vez, se alude ao seu desejo de partir, para África supõe-se (V 1037): Rubrica: Esta cantiga foi feita a um 'scudeiro que andou aalem-mar e dizia que fôra aló mouro Alvar Rodríguez, monteiro maior, sabe bem que lhi há 'l-rei desamor,
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São seis as cantigas, cinco da autoria de Estêvão da Guarda e uma do Conde D. Pedro. Como é compreende, toda a sibilina ironia desta cantiga reside na indeterminação do sujeito do verbo do refrão. 2
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porque lhe dizem que é mal feitor na sa terra; éste cousa certa ca diz que se quer ir; e, per u for, levará cabeça descoberta. El entende que faz a 'l-rei pesar, se lhi na terr[a] aqui mais morar; por en quer ir sa guarida buscar, com gram despeit', em terra deserta; e diz que pode, per u for, levar sempr'a cabeça descoberta. O retrato de um Álvaro Rodrigues despeitado com o desfavor do rei não é seguramente a única leitura possível para a composição, já que, de facto, a repetida referência à cabeça descoberta, feita no refrão, será decerto uma alusão sexual (à circuncisão). Mas a rubrica que acompanha a cantiga é, novamente, muito elucidativa, confirmando a tal estada em Além-mar. E ainda que, como comenta Lapa, seja difícil ver no simples escudeiro que nela é referido o monteiro-mor que refere a cantiga (parece haver um certo desfasamento entre rubrica e cantiga, como dissemos), tudo o resto parece coincidir com as chufas que encontramos nas restantes cantigas do ciclo. A ser assim, como o entendemos, Álvaro Rodrigues, poderia ser o curioso caso de um cristão conquistado (religiosa e culturalmente) pelo mundo muçulmano – e chufado, em todos os tons, por isso mesmo1. Em resumo, mais do que a muçulmanos, é a figuras que partilham os dois universos que trovadores e jograis dirigem as suas chufas. O humor com que o fazem, se denota uma sociedade, ou, pelo menos, um círculo relativamente tolerante em matéria religiosa, indicia, ao mesmo tempo, como no caso dos judeus, uma clara demarcação de fronteiras.
t) Cantigas dirigidas a personagens várias Agrupámos neste grupo as trinta e sete cantigas deste corpus dirigidas a personagens que, pelo menos até ao momento, são impossíveis de integrar num grupo social ou profissional determinado, já que não dispomos de quaisquer elementos sobre
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Não seria totalmente implausível, pois, ver no Mestre Ali, de que falam as duas primeiras cantigas, o próprio Álvaro Rodrigues – o tratamento pelo «seu» nome muçulmano conferindo à cantiga um peso irónico suplementar.
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elas. Este grupo tem, portanto, um caráter diferente de todos os outros. Diga-se, no entanto, que, em relação a uma parte destas cantigas, é lícito supor que esta falta de dados acontece exatamente porque as personagens nelas satirizadas o são por motivos que não parecem tornar muito relevante, até para os próprios trovadores, a sua caracterização dentro de um dos grupos acima mencionados. Referimo-nos essencialmente ao caso das cantigas visando determinadas personagens enquanto maridos enganados (sete destas cantigas). É evidente que também nestes casos a crítica é sempre pessoal (e deveria ser, na época, perfeitamente referenciada) – mas é na qualidade de marido, mais do que de infanção ou de burgês ou de médico que as personagens são satirizadas. É o caso, por exemplo, deste Pero da Arruda, pai de um filho que não é seu (chufado aqui por Estêvão da Guarda) (B 1306, V 911): Pois a todos avorrece este jogar avorrido de tal molher e marido, que a mim razom parece de trager, por seu pedrolo, o filho d'outro no colo. Pois ela trage camisa de sirgo tam bem lavrada, e vai a cada pousada por algo, nom é sem guisa de trager, por seu pedrolo, o filho d'outro no colo. Como Pero da Arruda foi da molher ajudado, nom é mui desaguisado, pois lh'esta faz tal ajuda, de trager, por seu pedrolo, o filho d'outro no colo. Repare-se como, excecionalmente, esta cantiga remete o nome do visado, Pero da Arruda, para a última estrofe (quando, por norma, ele é indicado logo na primeira), de certa forma um indicativo de que é antes de mais um marido (conivente com a prostituição da mulher) que é escarnecido, enquanto tal. Como este Pero da Arruda, aparecem-nos igualmente um Martim de Cornes (mais uma alcunha cheia de significado, B 1647, V 1181), um Pero Rodrigues, alegadamente elogiado pela mulher
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no próprio ato de infidelidade («em outro dia, quando a fodi,/ mostrou-xi-mi muito por voss'amiga», afirma Martim Soares, B 1368, V 976), e mais alguns outros. Três destas cantigas dizem respeito novamente a acusações de homossexualidade. Em dois casos, os nomes são claramente alcunhas, como um certo Fernão Furado (B 446), que poderá, aliás, ser o célebre Fernão Dias já referido, e um Pero Tinhoso (B 1618, V 1151), ambos acusados ainda de doenças venéreas (o último, de alcunha muito significativa, numa cantiga com descrições muito gráficas). Outra das figuras em que a alusão à homossexualidade é plausível é a de um Pero Fernandes (que pode, ou não, ser o anterior), figura de fanfarrão que surge numa cena em que afirma não querer pagar portagem nas terras do conde de Bearn « ca, se s'assanhar,/ pagar-lhis-á el peage de cu», diz Gonçalo Anes do Vinhal (V 1000). Curiosamente é também neste grupo das cantigas dirigidas a personagens difíceis de identificar que se inclui a maioria das cantigas satíricas de D. Dinis, as quais, visando muito provavelmente personagens próximas da sua corte, não fornecem, em geral, quaisquer elementos para uma identificação mínima dos visados. É o caso das duas cantigas contra um tal Meliom Garcia, um indivíduo de mau caráter, acusado de manter miseravelmente duas meninas de quem tinha a tutela1; das três cantigas contra João Bolo2, ridicularizado a propósito da sua estupidez na troca (ou compra) de uma mula velha e doente – ainda que aqui, como sugere Elsa Gonçalves, as alusões se devam referir igualmente, e de forma equívoca, a práticas homossexuais3; e ainda de mais três cantigas contra personagens cujos nomes não são citados, um importuno que faz o serão prolongar-se (B 1539), e dois (ou o mesmo?) maldizentes (B 1538 e B 1540). As cantigas satíricas de D. Dinis, aliás, e ao contrário das de seu avô Afonso X, sobressaem pela sua relativa brandura (de linguagem e situações4) no panorama geral das cantigas de escárnio e maldizer galego-portuguesas, brandura esta que parece extensiva à própria escolha dos alvos da sátira (ou pelo menos à preferência por um discreto anonimato, quando isso não acontece).
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B 1533 e 1534. Mas as cantigas deverão ser equívocas, visando sobretudo os problemas de visão do tal Meliom (as meninas sendo as meninas dos olhos). 2 B 1535, B 1536, B 1537. 3 Poesia de rei. Três notas dionisinas, Ed. Cosmos, Lisboa 1992. 4 Exceção feita às cantigas sobre João Bolo; mas mesmo aqui todas as alusões são feitas sob a forma de um cerradíssimo «equivocatio».
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Incluem-se também neste grupo as duas curiosas cantigas, em jeito de prantos de escárnio, sobre a morte súbita de um tal Pero Bom, personagem impossível de identificar (B 1372, V 980 e B 1575), cantigas estas de tema escatológico e centradas no equívoco sobre o verbo peer (peidar)1; uma cantiga endereçada, de forma deveras original neste corpus, a um Nenguem-mim, descrevendo, em termos escatológicos, muito semelhantes, aliás, ao das duas cantigas anteriores, a figura de um doente que, neste caso, e tendo seguido os conselhos fornecidos pelo trovador, Fernão Garcia Esgaravunha, acaba recuperado e com desejos de beber vinho (B 1510); outra cantiga dirigida a um elegante, que, garante o trovador Rodrigo Anes Redondo, «sempr'em Verãao lhe vejo trager/ e no Inverno sapato dourado» (B 1613, V 1146)2; a cantiga em que Afonso X traça o retrato humorístico de um caçador ridículo (B 457 – trata-se, aliás, e curiosamente, do único caçador que encontramos no Cancioneiro satírico), cantiga que tem muito em comum com as sátiras à nobreza recente ou aos infanções pelintras, ainda que nada saibamos sobre o tal D. Gil a quem é endereçada. Incluímos igualmente neste grupo uma outra cantiga que tem o tema da crença nos agoiros por motivo, da autoria de João Airas de Santiago (V 601), cantiga muito curiosa e invulgar porque é dirigida aos agoirentos em geral, aqui humoristicamente escarnecidos: o trovador afirma preferir um bom capão assado às ditas aves de que eles se serviam (mas adiante regressaremos a esta cantiga). Também em tom geral critica Pero da Ponte um maldizente a quem ninguém satisfaz e que continuamente «diz mal dos que som em cas del-Rei» (B 1638, V 1172). A cantiga, utilizando um tom moral próximo do sirventês, é, no entanto, dirigida concretamente a alguém que não podemos identificar. Um D. Foão em negócios pouco claros com Pedro Amigo de Sevilha (B 1099, V 690) e um casal em apuros de dinheiro (vide p. 115) completam o quadro destas trinta e sete cantigas dirigidas a personagens cujo estatuto social nos é hoje difícil definir.
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Não estamos, aliás, muito certos de que se não trate de dois falsos prantos de escárnio, ou seja, que o tal Pero Bom tenha mesmo morrido. Parece-nos que também é possível que os trovadores queiram apenas chufar do seu mau cheiro – o que, de qualquer forma, mesmo tendo ele realmente morrido, é onde os trovadores querem chegar. Não sabemos se poderá igualmente haver um equívoco com um outro sentido do verbo «peer», avançado por Pelligrini («Una cantiga di maldizer...» op. cit.): o de um elevado orgasmo. Assim sendo, talvez a morte «na cama» de que fala uma das cantigas possa entender-se igualmente em dois sentidos. 2 Identificado na cantiga como Sueiro Fernandes, é possível que se trate de um cavaleiro-vilão de Lisboa, o que, neste caso, daria uma outra dimensão social à sátira.
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u) Cantigas de carácter geral Ainda que uma parte destas catorze cantigas que, nos Cancioneiros, podem ser consideradas sirventeses morais, já tenham sido referidas no capítulo anterior, aquando da definição do género, gostaríamos aqui de fazer um breve comentário de conjunto. Como então referimos, os trovadores e jograis galego-portugueses não foram grandes cultores deste tipo de cantigas, sem alvo particular e de caráter essencialmente moral. Como exceção, sobressai sobretudo a figura do trovador Martim Moxa, a quem pertencem seguramente cinco destas catorze cantigas (podendo ainda ser o autor de uma outra), sendo assim o poeta que, de forma mais continuada, cultivou o género. De forma geral, o sirventês galego-português aborda o tema constante neste tipo de cantigas: o da miséria moral do mundo presente, geralmente em contraste com um tempo passado de maior verdade e justiça. É exatamente o que acontece nas referidas cantigas de Martim Moxa (uma das quais em forma de descordo). No entanto, como excelente poeta que é, Martim Moxa introduz em todas elas variantes originais que individualizam os seus sirventeses: é a referência explícita ao tão medieval tema do «mundo às avessas» (« o mundo tod'[a] avessas vej'ir»), numa cantiga já antes citada (B 889, V 473); é o sonho com que termina outro sirventês, o da pequena ave, a «bubela», derrotando a grande «cerzeta» (B 915, V 502); são ainda as referências bem realistas, na cantiga em que alude à vinda do Anticristo, aos malefícios da guerra e dos guerreiros (B 887, V 471): (...) Ca nom leixam [ho]spital nem egleja, romeu nem dona, nem homem fidalgo nem homem d'ordem, por bõo que seja, que nom desonrem por levar del algo. Forçam molheres e roubam caminhos e nom temem [alcaides] nem [meirinhos], [ante acham sempre quem os proteja] (...) É ainda a curiosa (e única) referência às fadas no sirventês em forma de descordo (B 896, V 481: «As nossas fadas,/ iradas/ for[om] i chegadas/ por esto fadar»), o descordo em que lamenta o lugar de destaque que ocupam os poetas satíricos («vej’achegados,/ loados/ de muitos amados/ os de maldizer»). Quanto à quinta cantiga (A 305), à qual já nos referimos ao tratarmos dos limites entre os géneros (vide p. 156),
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a sua originalidade reside exatamente no facto de só na última estrofe se perceber tratarse de uma cantiga de amor: nas primeiras três, o que nos aparece é uma descrição do mundo «fals'e sem sabor», de onde desapareceu «mesur’ou grãadez» e até o amor e o próprio trovar, o que faz com que ande «a gente trist'e sol nom quer cantar»; e é apenas a presença da senhora amada (unicamente referida na estrofe final, como dissemos) que justifica o refrão da cantiga: «Por que me nom vou algur esterrar,/ se poderia melhor mund'achar?». Quanto ao sexto sirventês, muito possivelmente da sua autoria embora de atribuição pouco segura (B 888, V 472=1036), tem a forma de tenção (com um interlocutor também difícil de identificar1), o que constitui igualmente uma forma original neste tipo de disputas. A condenação moral dos tempos toma aqui por objeto particular os privados do rei2, enriquecendo à custa da pobreza geral. Se Martim Moxa é assim um caso à parte pela persistência com que cultivou o sirventês, outros trovadores o fazem, ainda que esporadicamente. É o caso de João Airas de Santiago, na também mista forma de cantiga de amigo, antes referida (B 963, V 550), «sirventês» que une, no entanto, a meditação sobre a mudança e a incerteza dos tempos com um refrão otimista («mas nom se pod'o coraçom partir/ do meu amigo de me querer bem»). Também já antes nos debruçámos com alguma demora sobre o célebre sirventês de Afonso X (B 480, V 63), no qual a imagem recorrente do lacrau escondido na campina de guerra é o símbolo de um mundo falso e venenoso, para o qual a única meezinha é uma nostálgica partida, a bordo de um navio costeiro, «pela marinha/ vendend'azeit'e farinha», «ca mais me pago do mar/ que de seer cavaleiro». Já igualmente falámos de dois outros notáveis sirventeses: o descordo de Nuno Anes Cerzeo (B 135), sabiamente construído a partir da correspondência entre o clima emocional de desalento descrito e a irregularidade do metro, própria desta forma poética; e a provável cantiga de seguir de Fernão Soares de Quinhones sobre os romeiros mundanos (vide p. 104). Os restantes cinco sirventeses são mais convencionais: Pero da Ponte lamenta o «amor sem prol» dos amigos (B 1644, V 1178); Pero Gomes Barroso, a mudança do 1
O conde D. Pedro ou Lourenço são as hipóteses mais discutidas. A rubrica que acompanha a cantiga diz que ela «foi feita em tempo del-rei Dom Afonso, a seus privados». Dada a comprovada longevidade de Martim Moxa, não se sabe com segurança quem será este D. Afonso. Carolina Michaëlis pensa que é Afonso IV. E será certamente este rei, caso o interlocutor de Martim Moxa seja o Conde de Barcelos 2
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mundo para pior (V 592/593); Gil Peres Conde (numa cantiga já referida, mas que pode ser considerada, de facto, também um sirventês moral), a falta de amor «em cas d'el rei» (B 1525, V 398); Airas Nunes, a falsidade nos mosteiros e ordens militares (B 871, V 455); falsidade que é também o tema de Pero Mafaldo: se todos mentem, afirma o trovador, «mais mentirei» (B 374). Em resumo, a meditação mais geral sobre os tempos não deixa de aparecer nos Cancioneiros como estas cantigas nos mostram. Apesar da qualidade da maioria destas composições, elas não são representativos da sátira galego-portuguesa, que encontra no escárnio e maldizer pessoalizados o seu verdadeiro universo.
v) Cantigas que trovadores e jograis mutuamente se dirigem Debrucemo-nos finalmente sobre este grupo de cantigas que, até em termos puramente numéricos, sobressai de forma determinante no corpus satírico galegoportuguês que até nós chegou. Antes de mais, convém salientar de novo um dado, já antes aludido, mas que não pode aqui deixar de ser levado em conta de forma particular: o facto de uma parte significativa das cantigas de escárnio e de maldizer serem relatos de experiências pessoais, ou seja, experiências em que os poetas são, em maior ou menor grau, parte ativa e participante («vejam o que me aconteceu/ o que vi noutro dia»). O que significa que, satirizando uma soldadeira, um juiz, um cavaleiro, uma cantiga pode igualmente processar-se num registo autobiográfico, registo esse que, por vezes, parece ocupar na cantiga um lugar de importância pelo menos paralela ao da sátira à personagem em questão. Assim, se muitas das cantigas que partem de uma experiência pessoal dos trovadores ou dos jograis têm claramente como alvo as personagens com quem os poetas se cruzam (do género do testemunho antes indicado: «ontem vi...»), muitas outras há em que parece difícil estabelecer uma fronteira clara entre chufa e autobiografia (esta última geralmente em registo que poderíamos classificar de «gabarolice»). Alguns exemplos do que dizemos já foram aparecendo nas cantigas atrás citadas. Releia-se a cantiga de Martim Soares (p. 253) sobre um marido alegadamente enganado pelo próprio trovador e compreender-se-á que o relato da sua «aventura» não deixa de constituir um elemento central nessa cantiga (e assim devia ser muito possivelmente entendido pelo seu público). Repare-se também nesta outra cantiga de Afonso Anes do Cotom, sobre uma dona que fica grávida (B 1581, V 1113): 258
Veerom-m'agora dizer d'ũa molher que quero bem que era prenhe, e já creer nom lho quig'eu per nulha rem; pero dix'eu: - Se est assi, oimais nom creades per mim, se a nom emprenhou alguém. E digo-vos que m'é gram mal daquesto que lhi conteceu, ca sõo eu cord'e leal, pero me dam prez de sandeu; mais vedes de que hei pesar: daquel que a foi emprenhar, de que cuidam que x'a fodeu. Pero juro-vos que nom sei bem este foro de Leon ca pouc'há que aqui cheguei; mais direi-vos ũa razom: em mia terra, per boa fé, a toda molher que prenh'é logo lhi dizem com barom! Em cantigas como estas torna-se evidente que os autores são visivelmente mais do que simples observadores, sendo problemático, portanto, atribuir-lhes esse simples papel secundário. É provavelmente este tipo de cantigas, na sua esmagadora maioria de cariz erótico-satírico, onde o elemento autobiográfico é parte integrante da sátira, que Carolina Michaëlis tem em mente quando fala no surpreendente «humor viril» dos trovadores e jograis no Cancioneiro satírico1. De facto, e encarando agora este corpus de uma maneira global, uma das características notáveis da arte satírica trovadoresca é a de os seus autores, tornando públicos, como vimos, vícios e comportamentos mais ou menos censuráveis da sociedade do seu tempo, não se excluírem, em princípio, dessa mesma sociedade. Tal como nos surgem nas cantigas de escárnio e maldizer, eles são participantes ativos que, se retratam, com cores mais ou menos fortes, os seus ridículos, retratam-se também a si próprios e aos seus colegas de ofício com a mesma crueza ou o mesmo humor que utilizam nos retratos dos seus contemporâneos.
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CA, II, p. 598.
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Um exemplo significativo desta atitude de autoironia é o desta cantiga em que D. João Soares Coelho, dirigindo-se a uma mulher (talvez uma soldadeira), confessa publicamente a sua impotência (V 1017): Luzia Sánchez, jazedes em gram falha comigo, que nom fodo mais nemigalha d'ũa vez; e, pois fodo, se Deus mi valha, fic'end'afrontado bem por tercer dia. Par Deus, Luzia Sánchez, Dona Luzia, se eu foder-vos podesse, foder-vos-ia.(...) Cantigas como esta ajudam a situar melhor a relação dos trovadores e jograis com os satirizados – na qual a rudeza não significaria necessariamente injúria, uma vez que não é nunca de uma posição de autoridade moral que trovadores e jograis partem. A quase ausência de um tom moralista no Cancioneiro satírico galego-português fica a dever-se, em grande parte, a este curioso sentido de «fraternidade» de que as cantigas autobiográficas especialmente, mas também todas as que têm colegas de oficio por alvo, nos dão mostras. Posto isto, e feito ainda o alerta para o registo duplo de muitas das cantigas que incluímos nos grupos anteriores, vejamos então o grupo das que abertamente são chufas internas ao grupo. Trovadores e jograis aparecem escarnecidos no Cancioneiro satírico por dois tipos principais de motivos: os de ordem pessoal (e nisto não parecem distinguir-se das restantes personagens satirizadas) – 37 cantigas – e os de ordem «profissional», ou seja, em cantigas que têm como tema a arte de trovar – 41 cantigas. Os dois tipos de motivos podem, aliás, aparecer ligados em algumas as cantigas, como veremos. De uma maneira geral, e seja qual for o seu motivo, todas estas cantigas nos mostram, antes de mais, um ambiente trovadoresco formado por grupos relativamente coesos e mais ou menos fixos, ao longo das várias gerações, cujos elementos mantêm entre si relações, ou, pelo menos, contactos próximos. Uma sociedade cortês cujas normas, não só poéticas, mas também de comportamento, são comuns, e onde se nota, por vezes, uma familiaridade notável entre personagens provenientes de estratos sociais muito diversos, sociedade cujo paradigma se poderá encontrar nos círculos próximos de Afonso X.
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Muitas das cantigas em que trovadores e jograis atacam os seus colegas devem, aliás, ser entendidas como uma espécie de jogos poéticos onde a intenção lúdica é prioritária. Já encontrámos algumas destas «brincadeiras», por exemplo, nas tenções que Afonso X manteve com diversos trovadores. Repare-se ainda no tom quase de briga infantil desta tenção entre o trovador Mem Rodrigues Tenório e o jogral Juião Bolseiro (B 403bis, V 14bis): - Juïão, quero contigo fazer, se tu quiseres, ũa entençom: e querrei-te, na primeira razom, ũa punhada mui grande poer eno rostro, e chamar-te rapaz mui mao; e creo que assi faz boa entençom quen'a quer fazer. - Meem Rodriguiz, mui sem meu prazer a farei vosc', assi Deus me perdom: ca vos haverei de chamar cochom, pois que eu a punhada receber; des i trobar-vos-ei mui mal assaz, e atal entençom, se a vós praz, a farei vosco mui sem meu prazer. (...) - Juïão, pois que t'eu [ora] filhar pelos cabelos e que t'arrastrar, ah que dez couces te presentarei! - Meem Rodriguiz, se m'eu trosquiar, ou se me fano, ou se m'encostar, ai, trobador, já vos nom tornarei! O caráter lúdico desta disputa é evidente (já anteriormente nos referimos ao seu possível caráter teatral). E um número significativo das cantigas que trovadores e a jograis mutuamente se dirigem parece-nos dever ser lido, exatamente, a partir deste ponto de vista. Só esta componente lúdica pode, aliás, explicar esta outra cantiga em que Afonso X acusa Pero da Ponte de ter matado Afonso Anes do Cotom para lhe roubar as trovas (B 485, V 68)1:
1
Carolina Michaëlis, no vol. II do CA, tomou à letra as acusações do rei. A nossa leitura coincide com a que propõe, a nosso ver corretamente, Rodrigues Lapa.
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Pero da Pont'há feito gram pecado de seus cantares que el foi furtar a Cotom: que, quanto el lazerado houve gram tempo, el x'os quer lograr, e doutros muitos que nom sei contar, por que hoj'anda vistido e honrado. (...) E por end'é gram traedor provado, de que se já nunca pode salvar, come quem a seu amigo jurado, bevendo com el, o foi matar - todo polos cantares del levar, com os quaes hoj'anda arrufado. (...) O mesmo caráter lúdico têm decerto também as cantigas que aludem a um dos episódios que deu mais brado nos círculos próximos de Afonso X, o da suposta peregrinação do segrel Pero de Ambroa à Terra Santa, peregrinação cuja efetiva realização os colegas põem humoristicamente em dúvida, num coro de zombarias (são seis as que nos chegaram1). A tal ponto o tema foi glosado que Pero Gomes Barroso começa a sua cantiga referindo exatamente, e com subtil ironia, a falta de originalidade de tal tema (B 1446, V 1057): Pero d'Ambroa, se Deus mi perdom, nom vos trobei da terra d'Ultramar, vedes por quê: ca nom achei razom por que vos dela podesse trobar, pois i nom fostes; mais trobar-vos-ei de muitas cousas que vos eu direi: do que vos vós nom sabedes guardar. (...) Pero de Ambroa é assim, em termos pessoais, um dos trovadores mais disfrutados dos Cancioneiros. Para além da sua «peregrinação», outro dos motivos também desencadeadores da troça são as suas «especiais» relações com Maria Balteira, a que já anteriormente nos referimos – relações que ele, aliás, não nega, antes confirma em várias cantigas («ando por ela sandeu», como diz na cantiga referida na p. 194, uma das tais cantigas em que a assumida dimensão autobiográfica é importante, já que,
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Sueiro Eanes (designado como trovador, mas de quem não nos chegou nenhuma cantiga) e Paio Rangel são duas outras figuras igualmente objeto de chacotas semelhantes, a propósito de falsas «peregrinações».
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escarnecendo de Maria Balteira, ele está ao mesmo tempo a responder às chacotas pessoais que os seus colegas lhe dirigem). Maria Balteira está provavelmente ainda no centro da disputa que mantém com Pedro Amigo de Sevilha, que o acusa de ser enganado pela sua senhor, que lhe concederia a ele os seus favores noturnos (B 1662, V 1196)1: Pero d'Ambroa, tal senhor havedes, que nom sei quem se dela nom pagasse [...............................] e ajudei-vos eu, como sabedes, escontra ela mui de bõa mente; e diss'ela: - Fazede-me-lh'enmente, ainda hoje vós migo jaredes, por seu amor; ca x'anda tam coitado que, se vós hoje migo nom jouverdes, será sandeu; e, se o nom fezerdes, nom se terrá de vós por ajudado; (...) Pero de Ambroa, por sua vez, responde-lhe em duas cantigas (B 1596, V 1128 e B 1598, V 1130), satirizando a alegada retirada de Pedro Amigo para uma «ermida velha» (expressão de provável sentido equívoco, aludindo à idade da «senhor», decerto a mesma Balteira). Esta troca de galhardetes entre dois trovadores (que deveríamos mais propriamente chamar segréis) da corte de Afonso X exemplifica, de algum modo, o tom geral dos remoques pessoais que trovadores e jograis mutuamente se dirigem. Como dissemos, a componente lúdica é parte integrante destas cantigas, ainda que, por vezes, de uma forma onde não será de excluir uma certa rivalidade, quer masculina, como nos parece ser o caso da situação anterior, quer mesmo de classe, como na cantiga de João Garcia de Guilhade, dirigida, com humor subtil (e provavelmente em forma de seguir), contra o jogral Martim, cobiçando-lhe a mulher (vide p. 144). Outro poeta com quem os trovadores e jograis afonsinos se metem também frequentemente é o (já na época) velho segrel Bernaldo de Bonaval, a quem acusam de se fazer acompanhar por mulheres de má fama, ou mesmo de ter gostos sexuais menos ortodoxos, como referimos. As mesmas acusações de homossexualidade (acrescentadas
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Entenda-se que a cantiga joga com o duplo sentido do verbo jazer (dormir com/ pernoitar lá em casa, para a proteger).
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agora de doenças venéreas) são feitas a um segrel ou jogral de quem não nos chegou nenhuma cantiga, um tal Fernando Escalho (B 1376, V 984). Em forma de maldizer aposto, já anteriormente nos referimos também a várias outras acusações de homossexualidade e de vida desregrada. A seriedade de muitas destas acusações é hoje em dia difícil de estabelecer. Mas nalguns casos, pelo menos, é óbvio que as cantigas são suscitadas por atitudes e comportamentos concretos risíveis, como os expostos nas duas cantigas que satirizam um tal Alvelo (trovador de quem também não nos chegaram cantigas) pelo seu hábito de pintar o cabelo para encobrir a idade (V 1025 e B 1469, V 1079), ou nas quatro cantigas que tomam como alvo o já citado clérigo-trovador Martim Vasques, dado à astrologia. De qualquer forma convém salientar que, apesar da proximidade entre trovadores e jograis ser um facto (visível sobretudo nas tenções entre uns e outros), estas chacotas por motivos de vida pessoal parecem visar maioritariamente, como se vê pelos exemplos anteriores, os jograis ou os segréis. Se excetuarmos o caso dos clérigos (Martim Moxa e o citado Martim Vasques), de quem não sabemos exatamente a categoria social, todas as cantigas referidas parecem confirmar esta característica. A única cantiga dirigida a um grande trovador por motivos pessoais, é a que João Romeu do Lugo (provavelmente um escudeiro) endereça a D. Lopo Lias (B 1612, V 1145), o qual, como nos diz a rubrica que a acompanha, era cego de um olho – mas esta cantiga, jogando de facto com um equívoco centrado à volta da cegueira do trovador (a cantiga assenta num alegado comentário do próprio Lopo Lias sobre uma dona que ele já teria «visto melhor»), não deixa de ser, na realidade, um elogio implícito ao seu sentido de humor e de oportunidade. De resto, é certo que também Afonso X dirige uma longa cantiga ao trovador e fidalgo português Gonçalo Anes do Vinhal, com elogios e acusações várias, como a de duplicidade (B 466). Mas neste caso, a sátira é a de um nobre (do rei) a outro nobre, por motivos essencialmente políticos, ao que parece (na base da cantiga estaria possivelmente a atitude de D. Gonçalo face às desavenças entre o rei e seu irmão D. Henrique, já antes aludidas). Iremos debruçar-nos em seguida sobre as cantigas que têm motivos «profissionais» como motivo da sátira. Antes, porém, saliente-se que, tal como é visível na cantiga de João Romeu sobre D. Lopo Lias, a admiração por colegas também existe dentro da escola. Outra prova disto mesmo são as composições que retomam e prolongam uma
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cantiga anterior alheia, que, pelo que se depreende, se achou particularmente interessante. Há pelo menos dois casos explícitos neste corpus (B 1625, V 1159, de Paio Gomes Charinho, que desenvolve B 1471, V 1081, de Afonso Lopes de Baião, e B 1603, V 1135, que desenvolve B 1602, V 1134 de Pero de Armea). Isto dito, o escárnio mútuo tem obviamente como motivo central a alegada incompetência na arte de trovar – motivo que, aliás, como já antes referimos, nalguns casos pode aparecer conjuntamente com os motivos de caráter pessoal. É o jogral Saco que «era mui mal feito» (como nos diz a rubrica de uma das duas cantigas que lhe são dirigidas) e que D. Fernão Pais de Tamalhancos acha que, artisticamente, se devia ficar pelo nome (B 1334, V 941)1; ou são os jograis a quem a bebida e o sexo estragam a voz (V 1009; B 1376, V 984; e B 1377, V 985). Uma das cantigas mais curiosas no domínio destas acusações múltiplas parece-nos todavia ser a que Pedro Amigo de Sevilha dirige conjuntamente a João Baveca e a Pero de Ambroa, retratados em vias de compor uma tenção, que não conseguem acabar. E o motivo dessa tenção seria exatamente a citada peregrinação do segundo (e, pelo que se depreende, também do primeiro) a Jerusalém. A cantiga junta, pois, os dois motivos, o pessoal e o profissional, numa imaginativa zombaria, até por utilizar os seus nomes como triplo refrão (B 1664, V 1198)2: Joam Baveca e Pero d'Ambrõa começarom de fazer sa tençom, e sairom-se logo da razom Joam Baveca e Pero d'Ambrõa; e, porque x'a nom souberom seguir, nunca quedarom pois em departir Joam Baveca e Pero d'Ambrõa. Joam Baveca e Pero d'Ambrõa ar forom outra razom começar. Sobre que houverom de pelejar Joam Baveca e Pero d'Ambrõa? Sobre la terra de Ierusalém, que diziam que sabiam mui bem Joam Baveca e Pero d'Ambrõa. Joam Baveca e Pero d'Ambrõa ar departirom logo no Gram Cam; 1
Na segunda cantiga (B 1335, V 942) há igualmente alusões à sua alegada homossexualidade. De facto, os Cancioneiros conservaram uma tenção entre Pero de Ambroa e João Baveca (B 1573), mas o motivo prende-se com a tradicional discussão de competências na arte de trovar. 2
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e pelejarom sobr'esto de pram Joam Baveca e Pero d'Ambrõa, dizend': - Ora veeremos quis qual é! E leixei eu assi, per bõa fé, Joam Baveca e Pero d'Ambrõa. Mas, se a sátira assume nesta cantiga a forma de maliciosa ironia, deve dizer-se que, de uma forma geral, todas as restantes cantigas que desenvolvem acusações de incompetência o fazem de uma forma muito mais direta. As grandes vítimas do escárnio trovadoresco neste domínio são, mais uma vez, sem dúvida, os jograis. Quinze das cantigas referindo exclusivamente questões de incompetência têm jograis como alvo. A maioria das acusações diz respeito, não propriamente à arte de trovar, mas ao seu modo de cantar ou de citolar, referindo ainda algumas, em acréscimo, questões de pagamentos (os jograis pedem sempre mais do que merecem). Eis um exemplo de uma delas, de Airas Peres de Vuitorom sobre o jogral Martim Galo (B 1483, V 1094): Dom Martim Galo est acostumado de lhi darem algo todos de grado; e dizem que é bem empregado, sol que podessem acalantá-lo. Bem mereç'algo Dom Martim Galo quando quiser cantar, por leixá-lo (...) Como se compreende, e para além da piada sobre o pagamento dever ir no sentido de ele se calar, uma das formas em que esta zombaria se apoia é ainda no irónico tratamento por Dom conferido ao jogral – recurso satírico que encontramos em diversas outras cantigas deste grupo (e também encontrámos no das soldadeiras). De facto, nesta sociedade tão profundamente estratificada, o jogral, por mais próximo fisicamente que esteja do trovador, ou por mais talento que revele, nunca deixa de ser um jogral – e os trovadores (e também os segréis) não se esquecem nunca de assinalar os respetivos lugares.
Um
jogral
com
veleidades
de
composição
trovadoresca
torna-se
inevitavelmente assim um motivo de chufa. O célebre caso do jogral Lourenço é o exemplo mais típico desta atitude – ainda que o seu caso, diga-se, não seja único: também Juião Bolseiro e João Baveca, acima referidos, ou Fernão Chancom (pertencente â última geração, e de quem não nos chegou nenhuma cantiga) são alvo do mesmo tipo de chufas (este último, por Estêvão da Guarda, em B 1309, V 914). Lourenço, no entanto, talvez por motivos estritamente pessoais (é certo que ele não
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deixa nunca de responder à letra a todas as acusações), cristaliza, de forma paradigmática, os conflitos hierárquicos (que são sociais e de competências) no interior da escola trovadoresca. São doze as cantigas do que poderíamos chamar o seu ciclo. Mas antes de nos debruçarmos sobre elas, e de forma a situarmos mais corretamente a polémica, convém tentar definir melhor as diversas categorias que parecem ter existido na escola trovadoresca, e que são as designadas pelos termos que temos vindo a utilizar até aqui, sem os definirmos, de trovador, segrel e jogral. Pelo que se depreende deste corpus, e pelos dados biográficos de que dispomos, estas três categorias assentavam prioritariamente numa base de classe, transferida para o universo da arte de trovar. Primeiramente, elas corresponderiam assim à classe de origem – ou seja, o trovador é o nobre, o segrel é o escudeiro ou o cavaleiro de pequena nobreza, e o jogral é o vilão. É a partir deste esquema geral que se estabelece a distinção de competências e comportamentos no interior da escola. Mas distinção essa que, por ser muito mais da ordem do implícito do que do explícito, nunca é, na prática, pacífica. O ponto de partida é, pois, o da transferência dos lugares sociais (e da hierarquia) para o campo artístico. Neste contexto, o criador deverá ser o nobre, como é evidente. E porque a atividade da nobreza é essencialmente a das armas, a sua arte é, e tem que permanecer, desinteressada – é uma ocupação, como a caça ou os torneios, e ao mesmo tempo uma marca cultural socialmente distintiva, nunca um trabalho, e muito menos um trabalho remunerado. É a pequena nobreza que pode permitir-se fazer desta arte um ofício – distintos dos trovadores, os segréis são pois todos os que, não sendo vilãos de origem, vivem exatamente da sua arte de trovar. Quanto ao jogral, a sua origem social impede-lhe, em princípio, qualquer veleidade no campo da criação – pelo menos no interior da escola trovadoresca, onde o seu lugar, como o de qualquer vilão com acesso ao espaço da nobreza, é o de dependente, geralmente o de criado, nunca o de agente ativo (as cantigas de vilãos, existiram, como vimos, mas como um género próprio, ao que parece depreciado pelos trovadores). Ao jogral competirá, pois, tocar, acompanhar musicalmente ou cantar as cantigas do trovador ou do segrel. Esta divisão lógica, que acompanha a estratificação social exterior, estava, no entanto, longe de ser clara na sua aplicação prática. Porque trovador é antes de mais (e etimologicamente) o que faz trovas (boas trovas) – e não especificamente uma categoria social – vemos muitos dos que mais propriamente deveriam designar-se por segréis
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reivindicar para si esse estatuto de trovador, independentemente de receberem ou não pagamento. E vemos, logicamente, jograis que também compõem trovas serem alvo das chacotas conjuntas dos trovadores e segréis. De facto, neste corpus, se a distinção entre trovadores e jograis parece mais ou menos fixa (descontando as exceções, é essencialmente enquanto instrumentistas e cantores que os jograis são chufados), já a distinção entre trovadores e segréis parece muito mais fluida. É sobretudo na corte de Afonso X que a questão aparece em evidência – diga-se que a maioria das vezes mais como um humorístico debate do que como um problema real, ainda que a existência de tal debate seja, por si só, reveladora do funcionamento interno da escola. Esta tenção entre dois dos grandes autores afonsinos, Afonso Anes do Cotom e Pero da Ponte, em princípio ambos segréis, parecenos sintetizar bem uma grande parte do que ficou dito (B 969, V 556): - Pero da Pont', e[m] um vosso cantar, que vós ogano fezestes d'amor, foste-vos i escudeiro chamar. E dized'ora tant', ai trobador: pois vos escudeiro chamastes i, porque vos queixades ora de mi, por meus panos, que vos nom quero dar? - Afons'Anes, se vos en pesar, tornade-vos a vosso fiador; e de m'eu i escudeiro chamar, e por que nom, pois escudeiro for? E se peç'algo, vedes quant'há i: nom podemos todos guarir assi come vós, que guarides per lidar. - Pero da Ponte, quem a mi veer desta razom ou doutra cometer, querrei-vo-lh'eu responder, se souber, como trobador deve responder: em nossa terra, se Deus me perdom, a tod'o 'scudeiro que pede dom as mais das gentes lhe chamam segrel. - Afons'Anes, est'é meu mester, e per esto dev'eu a guarecer e per servir donas quanto poder; mais ũa rem vos quero [eu] dizer: em pedir algo nom dig'eu de nom,
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a quem entendo que faço razom, e alá lide quem lidar souber. - Pero da Ponte, se Deus vos perdom, nom faledes mais em armas, ca nom vos está bem, esto sabe quem quer. - Afons'Anes, filharei eu dom, e lidade vós, ai cor de leom, e faça quis cada quem seu mester. Esta tenção coloca-nos em pleno centro do universo trovadoresco, com os seus graus e hierarquias, e respetivos direitos e deveres. Embora a diferença de estatuto social entre Cotom e Pero da Ponte não fosse talvez grande, Cotom ataca aqui o seu colega por este, tendo-se chamado a si mesmo escudeiro numa cantiga, lhe exigir pagamento (quando seria suposto realizar a sua arte desinteressadamente). Como defesa, Pero da Ponte ataca, ironizando sobre a alegada vocação militar de Cotom: nem todos poderiam prosperar com o ofício das armas, cada um deveria aproveitar os respetivos talentos. Mas a utilização do termo segrel (v. 21) indica-nos que segrel era, pois, uma designação – não particularmente apreciada, como vemos – fixada por um uso («as mais das gentes lhe chamam») mais do que por qualquer outra coisa, aplicada ao artista profissional que compunha (que fazia da arte de trovar o seu ofício ou mester, sendo o mester dos nobres o das armas). E é neste sentido que o termo por vezes aparece, sem indicação de classe social de origem, por vezes também (o que mostra até que ponto as coisas não eram lineares) aplicado a jograis, como o provençal Picandom, que se designa a si próprio como «home de segre» (V 1021), ou como surge na cantiga em que Gil Peres Conde, dirigindo-se a um jogral com veleidades de compositor, aponta as três coisas que lhe são necessárias, acrescentando: «Se[m] ũa destas nunca bom segrel/ vimos em Espanha...» (B 1515). De qualquer maneira, classe social de origem, finalidade da atividade (remunerada ou não remunerada) e competência artística são, de facto, as três coordenadas pelas quais se definem aqui (muito polemicamente) as hierarquias – e como qualquer destas cordenadas podia entrar em conflito com qualquer uma das outras, compreende-se que a matéria fosse vasta para todo o tipo de chacotas (nobres sem talento, talentosos vilãos, escudeiros divididos entre o seu nascimento e a sua realidade material concreta, são algumas das possibilidades).
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Face a este panorama, compreende-se talvez melhor a iniciativa de um trovador provençal da corte de Afonso X, Guiraut Riquier, de pedir ao rei que resolvesse uma vez por todas a confusão, legislando no sentido de definir, com nomes muito concretos, categorias e competências. É a «Supplicatio (que fe Guirautz Riquier al Rey de Castela per nom de joglars)»1, longa composição em provençal, justificando, com inúmeros exemplos de outras atividades (clérigos, cavaleiros, mercadores, burgueses, etc.), a necessidade dessa definição (sobretudo no que toca ao universo dos jograis), composição seguida de uma outra na qual o rei responde, também em provençal, com uma igualmente longa «Declaratio», onde procura, num registo mais ou menos humoristicamemente legislativo, meter cada um em seu lugar. É opinião corrente, hoje em dia, que também este segundo poema é da autoria de Guiraut Riquier, em nome do rei, e não da autoria do próprio Afonso X2. Ambos os textos, porque exteriores à tradição galego-portuguesa, saem fora do nosso âmbito concreto. De qualquer forma, e como se compreende, nunca as «diretivas» do rei (que define finalmente quatro categorias de competências: bufão, jogral, trovador e doutor de trovar) foram levadas à prática como matéria de lei. Mas o «seu» texto parece pelo menos constituir a base da chacota que Pero Mafaldo dirige, em nome dos trovadores, ao segrel (ou deveríamos dizer jogral?) Pero de Ambroa, ainda sobre esta questão (B 1514): Pero d'Ambroa, haveredes pesar do que nós ora queremos fazer: os trobadores queremos poer que se nom faça tanto mal cantar, nem ar chamemos, per nẽum amor que lh'hajamos, nulh'home trobador senom aquel que souber [i] trobar. E pesará-vos muit', eu ben'o sei, do que vos eu direi, per bõa fé: polo vilão, que vilão é, pom or'assi em seu degred'el-rei que se nom chame fidalgo per rem, senom os dentes lhi quitem por en; e diz: «Assi o escarmentarei».
1 Publicado in Vuolo, Emilio, «Per il testo delta supplica di Guiraut de Riquier», Studi Medievali, III série, 9, 1968. 2 Como diz Menéndez Pidal: «La 'Declaratio’ (...) aunque versificada por el mismo Riquier, está sin duda inspirada en alguna conversación habida con el monarca», Poesia juglaresca, op. cit., p. 11.
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Ar pesará-vo-l'o que vos disser (est'é pesar e pesar com razom): ca manda el-rei que se demandar dom o vilão ou se se chamar segrel e jograria nom souber fazer, que lhi nom dê home [de] seu haver, mais que lhi filhem todo quant'houver. Este é, pois, em termos gerais, o pano de fundo em que devemos integrar a polémica em torno do jogral Lourenço. Lourenço, cuja categoria social seria certamente a de vilão, era um português que frequentou, como tantos outros, a corte de Afonso X, aí permanecendo parece que algum tempo ao serviço do também português João Garcia de Guilhade – mas não deixando ele próprio de compor cantares1. É, em princípio, a qualidade desses cantares o motivo da disputa. Porque no seu caso, e ao contrário do que se passa com os outros jograis silenciosos (pelo menos neste corpus2), deparamonos essencialmente com um corpus de tenções: são tenções sete destas doze cantigas que lhe dizem respeito, das quais seis ele é co-autor (apenas uma tenção é sobre ele, mas não com ele (V 1011). Mesmo à cantiga que lhe dirige isoladamente Pedro Amigo (V 1202) ele responde com uma outra cantiga (V 1033). De forma geral, estamos, pois, perante ataques que não ficam sem resposta. É impossível fazermos uma cronologia das composições, pelo que não sabemos como começou a polémica (que é também, evidentemente, e como já dissemos no capítulo anterior, um divertimento cortês). Talvez tenha começado com as duas chacotas do seu «patrão», João Garcia de Guilhade (B 1495, V 1106 e B 1497, V 1107) – ele próprio, aliás, alvo de zombarias de outros trovadores a propósito da sua condição de segrel, como veremos. Eis uma dessas cantigas de Guilhade (B 1495, V 1106): Lourenço, pois te quitas de rascar e desemparas o teu citolom, rogo-te que nunca digas meu som
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Dele nos chegaram, para além de uma cantiga de escárnio e das sete tenções em que participou, três cantigas de amor (uma delas relativamente heterodoxa) e seis cantigas de amigo. 2 Em relação a estes jograis silenciosos talvez se possa aplicar a interessante opinião que Alan Deyermond avança sobre Maria Balteira: «Would such a woman, who by all accounts was audicious, resourceful and quick-witted, skilled in performance of music and poetry, have borne such provocations in silente, or would she have retaliated with her enemies' own weapons? No songs of hers, or even references to them, survive; it may be that none was written down; but it seems to me highly likely that such songs existed». Conf. «Lost literature in Medieval Portuguese» in Medieval and Renaissance studies in honour of Robert Brian Tate, Oxford, 1986, p. 4.
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e jamais nunca mi farás pesar; ca per trobar queres já guarecer; e farás-m'ora desejos perder do trobador que trobou do Juncal. Ora cuid'eu [a] cobrar o dormir que perdi: sempre, cada que te vi rascar no cep'e tanger, nom dormi; mais, poilo queres já de ti partir, pois guarecer [buscas i] per trobar, Lourenço, nunca irás a logar u tu nom faças as gentes riir (...) Com João Garcia de Guilhade faz Lourenço duas tenções (uma delas sobre a específica questão do pagamento). E não apenas numa posição de defesa da sua arte, mas igualmente atacando a do patrão. Eis uma das estrofes de uma dessas tenções (B 1493, V 1104): (...) Joam Garcia, no vosso trobar acharedes muito que correger; e leixade mi, que sei bem fazer estes mesteres que fui começar; ca no vosso trobar sei-m'eu com'é: i há de correger, per bõa fé, mais que nos meus, em que m'ides travar (...) A mesma defesa desempenada da sua arte fá-la nas tenções com João Peres de Aboim (V 1010), João Vasques de Talaveira (V 1035), João Soares Coelho (V 1022), Rodrigo Anes Redondo (V 1032) e Pero Garcia Burgalês (V 1034). Aliás, ele não só se defende, mas toma mesmo, por vezes a iniciativa do ataque, como acontece na tenção com João Vasques (é Lourenço quem inicia a tenção com um humorístico ataque aos cantares do outro): - Joam Vaásquez, moiro por saber de vós por que leixastes o trobar ou se foi el vos primeiro leixar; ca vedes o que ouço a todos dizer: ca o trobar acordou-s'em atal: que 'stava vosco em pecado mortal e leixa-vos, por se nom perder (...) Tanta atividade polémica leva mesmo um dos seus adversários (João Soares Coelho) a sugerir que é, na verdade, João Garcia de Guilhade quem lhe faz as tenções 272
(que, numa farpa indireta, classifica de mal feitas). João Vasques, numa nota mais pessoal, sugere ainda que ele teria fugido de Portugal por ter roubado ou matado alguém. A tudo Lourenço responde com brio e humor. Se a questão em torno destas disputas é, pois, de competências, ela é-o tanto a nível artístico como a nível social, como se compreende. Lourenço é, neste corpus, a voz de todos os jograis que nele são escarnecidos pelas suas pretensões quanto à arte de trovar. Como documento destes conflitos internos à escola são estas doze cantigas notáveis. Diga-se, no entanto, em abono dos atacantes (e dos seus adversários), que a defesa de uma alta qualidade da arte trovadoresca nunca deixa de pairar como pano de fundo destas polémicas. Por duas vezes, por exemplo, é Lourenço acusado de não saber ler (o que ele, aliás, nega). Como pode um homem que não sabe ler fazer boas trovas? Tratase portanto da defesa de um grupo social e de uma arte aristocrática, sem dúvida, mas também da defesa do elevado padrão de cultura que era o seu (e que era, não o esqueçamos, o de uma elite cultural no interior da nobreza medieval). É explicitamente em nome da necessidade de defender a qualidade das trovas, por exemplo, que Afonso X «legisla» na sua Declaratio. No seu seguimento, é desta mesma posição que parte o remoque de Pero Mafaldo contra Pero de Ambroa, antes referido («que se nom faça tanto mal cantar»). E se, neste último caso, vemos um segrel ser objeto do mesmo tipo de chufas (também João Garcia de Guilhade o é indiretamente através de Lourenço, como dissemos), elas são igualmente endereçadas, neste corpus, pelo menos a um trovador, Sueiro Eanes (de quem, aliás, não nos chegou nenhuma cantiga). As cinco cantigas que lhe são dirigidas1 (em tom e registo semelhantes às dirigidas a Lourenço) mostram que também os trovadores podiam, pois, ser alvo dos mesmos ataques – e que nem só as considerações de classe (que não se podem negar, evidentemente, quando se trata de jograis ou mesmo segréis), mas também as considerações estéticas entram em jogo nestas chacotas. Mais perto de critérios puramente classistas parecem ser as cantigas que têm normas do amor cortês corno pano de fundo do escárnio. Estão neste caso, nomeadamente, as discussões sobre a qualidade das donas servidas pelos poetas. Para além da célebre «questão da ama», de que falaremos mais adiante, há neste corpus três
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Três por Pero da Ponte (B 1636, V 1170 , B 1645, V 1179 e B 1650, V 1184 ), uma por Martim Soares (B 143) e outra por Afonso Anes do Cotom (B 1585, V 1117).
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cantigas que referem explicitamente o problema: duas tenções entre trovadores e jograis e uma cantiga contra João Garcia de Guilhade. Mais uma vez se compreende que, tanto como as tenções fazem parte da casuística trovadoresca, a chacota contra o respeitado Guilhade se insere no mesmo ambiente lúdico de que temos vindo a falar. Uma das tenções (B 1221, V 826) debate o tema de forma muito geral. O jogral João Baveca coloca a seguinte questão a Pedro Amigo de Sevilha: qual é o mais insensato, o homem de condição inferior (o rafec'home) que ama «mui boa dona, de que nunca bem atende já», ou o homem de condição elevada que «quer outrossi bem mui rafece molher, pero que lh'esta queira fazer bem»? (ou seja, o vilão que ama sem esperança uma dama de alta linhagem e o cavaleiro que vai amar uma mulher inferior, mas condescendente). Como em qualquer outra boa tenção, cada um defende o seu ponto de vista. Neste caso encontramos Pedro Amigo defendendo que todo o homem bom acaba por «lh'a bem sair sempr'o que faz», e considerando sandeu o vilão que não serve uma mulher da sua condição (uma «sa comunal») para ir servir uma nobre dona que nunca lhe pode corresponder; João Baveca defendendo que nenhum homem perde «per bõa dona servir», perde sim o rico-homem que se limita a aproveitar-se de uma oportunidade fácil («pois tem cabo de si molher rafece»). A tenção, como se vê, gira perto dos dois critérios antagónicos do amor (o amor físico, a concessão do bem, ou o puro serviço desinteressado). Mas aqui o debate é muito concretamente orientado para o estatuto social dos amantes – digamos mesmo que biograficamente orientado, já que pelo menos quem inicia a tenção e assume a defesa da posição do home rafece é um jogral, Baveca (enquanto Pedro Amigo, sendo eventualmente um segrel, assume, logo no início da sua intervenção o estatuto do homem-bom («e quero-m'eu teer logo com el»). Esta tenção não sai, no entanto, de um tom geral teórico, muito pouco comum, aliás, no conjunto de cantigas que temos vindo a considerar, já que nela não encontramos qualquer espécie de chamada pessoal por parte de nenhum dos intervenientes (mas é possível que os ouvintes contemporâneos a pudessem contextualizar1). O mesmo já não se passa com a tenção entre o segrel Bernaldo do Bonaval e Abril Peres (B 1072, V 663), sobre um tema correlativo: trata-se agora de discutir qual dos dois sofre maior coita d'amor e qual ama melhor senhor. A tenção, que, por uma vez, não é propriamente satírica, vai-se construindo na defesa e elogio geral das respetivas 1
Mais uma vez as relações de Pedro Amigo com Maria Balteira poderiam ser aqui esse contexto.
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donas. Mas esse tom geral é quebrado na estrofe final por D. Abril, numa muito concreta alusão à sua diferença de estatutos1: (...) - Dom Bernaldo, quero-vos conselhar bem, e creede-m'en, se vos prouguer: que nom digades que ides amar bõa dona, ca vos nom é mester de dizerdes de bõa dona mal - ca bem sabemos, Dom Bernaldo, qual senhor sol sempr'a servir segrel. Trata-se, portanto, de chamar Bernaldo de Bonaval ao seu lugar. É o que também procura fazer D. João Soares Coelho na já aludida chufa a João Garcia de Guilhade (V 1024). Transcrevêmo-la agora na integra: Joam Garcia tal se foi loar e enfenger que dava [i] sas doas e que trobava por donas mui boas; e oí end'o meirinho queixar e dizer que fará, se Deus quiser, que nom trobe quem trobar nom dever por ricas donas nem por infançoas. E oí noutro dia en queixar ũas coteifas e outras cochõas, e o meirinho lhis disse: - Varõas, e nom vos queixedes, ca se eu tornar, eu vos farei que nẽum trobador nom trobe em talho senom de qual for, nem ar trobe por mais altas pessõas. Ca manda 'l-rei, porque há en despeito, que trobem os melhores trobadores polas mais altas donas e melhores, e tem assi por razom, com proveito; e o coteife que for trobador trobe, mais cham'a coteifa «senhor», e andarám os preitos com dereito.
1 A identidade deste D. Abril Peres tem vindo a ser discutida, os investigadores mais recentes descartando a hipótese (quase certeza) de D. Carolina Michaëlis (seguida por Lapa) de se tratar do poderoso rico-homem português D. Abril Peres de Lumiares. Dada a nacionalidade galega de Bernaldo de Bonaval, o mais provável é que se trate de um D. Abril Peres, referenciado como burgês de Santiago de Compostela (eventualmente, um burguês rico).
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E o vilão que trobar souber que trob'e chame «senhor» sa molher, e haverá cada um o seu dereito. A cantiga é suficientemente clara para dispensar comentários. A alusão ao rei (v. 15) mostra-nos que ela se insere no mesmo cenário da corte afonsina, mais ou menos lúdico, já antes aludido. Cada um no seu lugar parece ser novamente a moral da história (e particularmente, em relação a Guilhade, se ele trovasse pelas suas iguais, já as coteifas não teriam de que se queixar). Como se compreende logo na sua primeira estrofe, esta cantiga é, por sua vez, uma resposta a uma outra cantiga de João Garcia de Guilhade, onde ele se teria gabado da qualidade das donas por quem trovava. Estamos, de facto, perante uma série de cantigas que se respondem umas às outras: a cantiga a que João Soares se refere é a que Guilhade tinha endereçado ao seu jogral Lourenço (B 1501), nela respondendo àquela ínvia acusação que Coelho lhe tinha dirigido na tenção com o mesmo Lourenço, já antes referida (a de que, já que as tenções do jogral eram tão más, seria certamente o patrão a fazê-las). Que responde Guilhade nessa cantiga? Que pelo menos ele trova por boas donas e não por amas e tecedeiras, como faz Coelho. E assim se inicia um novo miniciclo neste quadro geral de disputas de estatutos: o nobre D. João Soares Coelho trova por uma dona a quem chama abertamente «ama», e que seria, portanto, uma burguesa ou uma mulher rafece (a situação é semelhante à discutida por João Baveca e Pedro Amigo). O que não o impede de seguir, nessas mesmas duas cantigas de amor que lhe dirige (A 166, B 318 e A 171, B 322)1, todas as normas que regem essas cantigas (o elogio superlativo da sua beleza e mansidão, o pedido temeroso do bem, etc.). Compreende-se assim que João de Guilhade, atacado (via Lourenço) na sua competência trovadoresca, devolva o ataque a João Soares, acusando-o de quebra das normas do amor cortês – quebra essa que, entenda-se, socialmente o rebaixa. Eis a cantiga (que cronologicamente deve seguir a tenção de João Soares com Lourenço) e onde, por uma vez, o trovador parece defender o seu jogral (B 1501):
1 São estas as duas cantigas que até nós chegaram. Porque os seus detratores aludem a uma função de «tecedeira» que não é referida em nenhuma delas, é possível que João Soares Coelho tenha composto eventualmente mais. Note-se que a segunda destas composições faz já referência à polémica motivada pela primeira, numa original introdução ao elogio da senhor que desenvolve em seguida.
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Par Deus, Lourenço, mui desaguisadas novas oí agor'aqui dizer: mias tenções quiseram desfazer e que ar fossem per ti amparadas. Joam Soares foi; e di-lh'assi: que louv'eu donas, mais nunca per mi, mentr'eu viver, seram amas loadas. E se eu fosse u forom escançadas aquestas novas de que ti falei, Lourenço, gram verdade ti direi: tôdalas novas foram acaladas; mais mim e ti poss'eu bem defender, ca nunca eu donas mandei tecer, nem lhis trobei nunca polas maladas. Cordas e cintas muitas hei eu dadas, Lourenç', a donas e elas a mim; mais pero nunca com donas teci, nem trobei nunca por amas honradas; mais [as] que me criarom, dar-lhis-ei sempr'em que vivam e vesti-las-ei, e seram donas de mi sempr'amadas. Lourenço, di-lhe que sempre trobei por bõas donas, e sempr'estranhei os que trobavam por amas mamadas. Antes de continuarmos com a disputa de estatutos e competências trovadorescas, queremos chamar brevemente a atenção para a curiosa defesa que Guilhade faz, na última estrofe, das suas próprias amas de leite. Como anteriormente referimos, esta polémica é das raras ocasiões em que, mesmo que de forma indireta, a mulher, na sua qualidade de trabalhadora, aparece nos Cancioneiros. João Garcia, ao contrário do que parece acontecer com outros intervenientes nesta disputa, deixa claramente expresso que não deprecia o trabalho feminino. Para ele a questão não é, pois, essa. A questão é a da adequação de uma arte com determinadas normas a figuras femininas que, para ele, e por mais respeitáveis que sejam, são obviamente exteriores ao universo dessa arte. A questão é, portanto, mais das normas artísticas em si do que da figura daquela ama em particular. João Garcia não afirma nunca que João Soares não a deve amar (como discutem João Baveca e Pedro Amigo). O que ele estranha é que o trovador a fosse abertamente louvar numa cantiga de amor. Entende-se assim esta resposta de Guilhade
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às acusações de João Soares (novamente via Lourenço): quem não sabe o que é a arte de trovar, neste caso as suas normas, é ele. A estas novas acusações (retomadas por vários trovadores, iniciando assim o ciclo da «ama») responde João Soares na cantiga antes transcrita (aqui diretamente a João de Guilhade, pondo em destaque o seu estatuto social) e, ao que parece, em várias tenções, de que não nos chegou, infelizmente, senão uma com o jogral Juião Bolseiro (B 1181, V 786). Em relação a esta última (que abaixo transcrevemos), note-se, de novo, a curiosa diferença de estatutos entre os seus intervenientes. Agora é um simples jogral a estranhar que um homem tão viajado e que poderia escolher qualquer boa dona, fosse escolher uma ama tecedeira por senhor (e mesmo mais, por entendedor, ou seja, amante). O que é curioso é que toda esta tenção gira à volta da ambiguidade que transportam as designações boa dona (para Juião Bolseiro a designação tem nitidamente um sentido de classe, para João Soares ela tem um sentido literal1) e ama (para o jogral indiscutivelmente uma profissão assalariada, para o trovador uma ocupação feminina, que ele jura ser desempenhada alegremente por inúmeras «boas donas» das terras por onde andou): - Joam Soárez, de pram as melhores terras andastes, que eu nunca vi: d'haverdes donas por entendedores mui fremosas, quaes sei que há i, fora razom; mais u fostes achar d'irdes por entendedores filhar sempre quand'amas, quando tecedores? - Juião, outros mais sabedores quiserom já esto saber de mim, e em todo trobar mai[s] trobadores que tu nom és; mais direi-t'o que vi: vi boas donas tecer e lavrar cordas e cintas, e vi-lhes criar, per bõa fé, mui fremosas pastores. - Joam Soárez, nunca vi chamada molher ama, nas terras u andei, se por emparament'ou por soldada nom criou mês, e mais vos en direi:
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Já Mattoso chama a atenção para a ambiguidade, visível em muitos documentos da época, no uso do termo «homem bom». Identificação de um país, op. cit., p. 355.
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enas terras u eu soía viver, nunca mui bõa dona vi tecer, mais vi tecer algũa lazerada. - Juião, por est', outra vegada, com outro tal trobador entencei; fiz-lhe dizer que nom dezia nada, com'or'a ti desta tençom farei; vi boas donas lavrar e tecer cordas e cintas, e vi-lhes teer mui fremosas pastores na pousada. - Joam Soárez, u soía viver, nom tecem donas, nem ar vi teer berç'ant'o fog'a dona muit'honrada. - Juião, tu deves entender que o mal vilam nom pode saber de fazenda de bõa dona nada. Note-se, mais uma vez, o remoque final ao jogral (o mau vilão). Ao mesmo tempo, note-se a verdadeira discussão sobre o estatuto da mulher na sociedade medieval que esta tenção não deixa indiretamente de constituir. Para o jogral é evidente que as boas donas não fazem nada (quando muito, tecem quando estão doentes). Para o trovador elas bordam e tecem e são mães de família. E o que pode um jogral saber, de facto, do que se passa no interior das boas famílias? O seu argumento de defesa é, portanto, que também ele trova por uma «boa dona». De qualquer maneira, e fosse qual fosse o estatuto social desta «ama»1, o certo é que João Soares Coelho não se livra de chacotas dos que entendem o termo no seu sentido corrente, o da mulher de inferior condição, destinatária inadequada das homenagens corteses, como é o caso da cantiga que Fernão Garcia Esgaravunha lhe dirige, sob a forma de paródia ao elogio da dona (B 1511). Levando aos limites o
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Note-se que João Soares Coelho constrói as suas cantigas de amor a partir de um jogo com a polissemia da palavra «ama». Não se pode depreender daí, inequivocamente, que a sua senhor fosse ama de profissão. Embora os colegas chufem dele a partir deste entendimento primário, por esta tenção com Juião parece depreender-se que não era bem o caso. Também Guilhade, na cantiga anterior diz que ele a pinta nessa ocupação, a aceitarmos a leitura que Lapa faz do verso 14 («polas maladas», representada na figura de serviçais). Na verdade, o sentido da composição de João Soares e de toda a discussão que se seguiu poderá ser um pouco mais complexo do que aquele que resulta de uma primeira leitura. Muito possivelmente, o termo «ama» é usado com sentido equívoco, podendo esconder uma identidade concreta, tendo já sido sugerida a de uma nobre dama, ou mesmo, efetivamente, a de uma «ama de leite», mas de um infante ou infanta real (usualmente uma dama nobre).
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anterior elogio de João Soares, o trovador enumera todas as restantes qualidades da dona – as que não cabem, obviamente, em nenhum cantar de amor: talhar camisas, lavar, fazer queijadas, ajudar o marido a capar porcos, fazer morcelas e chouriços «com sa mão»1 e, inclusivamente, saber as artes da bruxaria comum. A esta humorística cantiga de Esgaravunha (que, partindo de um retrato realista dos trabalhos de uma burguesa, põe a tónica essencialmente no estatuto social «inferior» da ama) não nos chegou nenhuma resposta de João Soares (e é provável que ela tenha existido). Chegou-nos, no entanto mais uma outra troca de galhardetes, desta vez entre o trovador e Airas Peres Vuitorom. Pelo que se depreende destas duas cantigas, o rei (provavelmente ainda Afonso X) tinha «nomeado» Vuitorom juiz das trovas que se fizessem (continuamos no mesmo cenário da polémica geral sobre a arte de trovar). É nessa qualidade que João Soares o ataca, ainda sem qualquer referência a questão da ama (V 1023), convidando-o a julgar concretamente as cantigas que lhe tinha dirigido («dous cantares...ou seis ou sete que vos fiz», garante, mas só este nos chegou)2. Na sua resposta (B 1481, V 1092), Vuitorom, que alude também ao facto de João Soares ser novo naquela corte (e desconhecer, portanto, as regras do bom trovar), traz novamente à baila o caso da ama. E afirma no final, assumindo orgulhosamente o seu papel de juiz: «cantar julgamos de bom trobador,/ Mais cantar d'ama nem de tecedor/ nunca julgamos: vó-lo saberedes». Todo este caso, para além do que revela sobre a postura aristocrática da arte trovadoresca galego-portuguesa, mostra-nos ainda como não era apenas a competência técnica que fazia um bom cantar, mas igualmente a sua obediência a um conjunto de normas «temáticas», que podemos cristalizar no conceito de amor cortês. Pela obediência a essas normas se julgava, pois, a razom dessas cantigas. No caso de João Soares, o que acontecia era que as suas razons eram, para os trovadores que dele chufam, despropositadas numa cantiga de amor. Críticas deste género aparecem-nos em mais algumas outras cantigas. É exatamente uma acirrada (e certeira) crítica às razons de uma série de cantigas de amor de Rui Queimado o que encontramos na célebre cantiga que Pero Garcia Burgalês lhe dirige (B 1 A alusão a esta especial competência tem, muito provavelmente (já que o marido se declara muito satisfeito), um sentido obsceno. 2 A cantiga parece ainda fazer uma alusão crítica indireta ao rei na última estrofe, onde se alude a um «comendador» a quem tinham sido dadas, «per força de rei», comendas que lhe pertenceriam (assunto que ele pede a Vuitorom para julgar também).
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1380, V 988 – «Rui Queimado morreu com amor/ em seus cantares (...) mais resurgiu depois ao tercer dia»). Para além da desmistificação da «sinceridade» do amor cortês que se canta, a chacota dirige-se também, note-se, à sua competência trovadoresca, como se vê claramente ao longo da cantiga, em versos como: «e, por se meter por mais trobador (...) por que cuida que fiz i maestria,/ enos cantares que faz (...)». A chufa é, portanto, igualmente, à competência trovadoresca de Rui Queimado, que força desmesuradamente o topus tradicional da morte de amor (de facto, o exagero, estamos em crer que voluntário e humorístico, deste topus é uma caraterísticas das suas cantigas de amor conservadas). A mesma crítica a razons forçadas (ou à insinceridade do amor que se jura) encontramos mais tarde numa tenção entre o filho bastardo de D. Dinis, D. Afonso Sanches e Vasco Martins de Resende (B 416, V 27, M, P). O que o primeiro pergunta repetidamente ao segundo é o seguinte: se Vasco Martins afirma que a sua senhor morreu, porque continua a trovar por ela? Como anota Lapa «Vasco Martins teria celebrado nos seus cantares uma senhora que morrera para ele; e os chufadores tomaram ao pé de letra o que era simples metáfora». De facto, ao longo de toda a tenção, Vasco Martins limita-se a reafirmar que a sua senhor está viva e de boa saúde. Serão, pois e sobretudo, os dotes poéticos de Vasco Martins o que D. Afonso Sanches pretenderá, desta forma, pôr em causa, como as suas palavras iniciais parecem dar a entender. Infelizmente, esta é a única intervenção deste trovador nos Cancioneiros, pelo que desconhecemos em absoluto as cantigas a que D. Afonso Sanches se refere. Parecenos, no entanto, que, tal como no caso de Rui Queimado, a chufa se dirige também à construção das suas razons, destituídas de qualquer lógica cortês. Num outro contexto, mas também por ter feito uma razom descomunal numa cantiga, escarnece Afonso X de Pero da Ponte (B 487, V 70). Mas aqui a crítica a essa «tam louca razom» parece aludir a uma qualquer cantiga blasfema do segrel (que o rei só pode explicar pelo excesso de vinho no momento da sua composição)1. A
1
É esta a leitura usual, e a que já antes aludimos, desta cantiga e que consideramos também a mais plausível, dado sabermos que muitas cantigas não chegaram até nós. No entanto não queremos deixar de sugerir uma outra hipótese que talvez seja igualmente possível: a de que o rei se estaria referindo aqui à cantiga que estudámos no capítulo anterior, sugerindo-a como um maldizer aposto, a cantiga em que Pero da Ponte relata as «suas» aventuras homossexuais. A referência, tantas vezes citada, que o rei faz. a Bernardo de Bonaval («Vós nom trobades come proençal/ mais come Bernaldo de Bonaval;/ por ende nom é trobar natural/ pois del e do Dem'aprendeste») podia, pois, aludir, não à forma dos cantares do velho segrel, mas sim às repetidas acusações de homossexualidade que os seus colegas lhe fazem – e teria
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competência na elaboração de boas e adequadas razons é, portanto, outro dos pontos em debate nestas polémicas. Para além de todas estas questões de competências, que, como se vê, dão pano para mangas à verve satírica trovadoresca, outros motivos aparecem muito esporadicamente nestas chufas internas à escola. É o caso, por exemplo, das alusões ao roubo de trovas, que surge numa cantiga de Gonçalo Eanes do Vinhal já citada no capítulo anterior (vide p. 105) dirigida a um «maestre». Também Afonso X, na cantiga antes referida, acusa (humoristicamente) Pero da Ponte de roubar os cantares a Afonso Anes do Cotom. Os cantares de um cavaleiro são igualmente chufados por Martim Soares, numa cantiga também já citada e que nos serviu para a discussão sobre as cantigas de seguir (vide p. 93). Parece tratar-se, neste caso, de cantares exteriores à tradição trovadoresca (e logo maus cantares). Por último, recordemos novamente a cantiga em que Estêvão da Guarda refere a reação de um trovador aos escárnios de outro, cantiga que parece aludir à distinção entre entre um escárnio e um maldizer, e que abordámos igualmente no capítulo anterior (vide p. 82). Em resumo, e no que diz respeito a este vasto conjunto de cantigas que trovadores, jograis e segréis mutuamente se dirigem sobre questões relacionadas com a arte de trovar, o que ressalta imediatamente é que, neste corpus, uma vasta maioria tem como cenário a corte afonsina. As relações mais ou menos estreitas entre todas, qualquer que seja o seu motivo ou pretexto, mostram-nos que elas deveriam fazer parte de um jogo palaciano que, por uns tempos, ocupou e divertiu os serões de cas d'el-Rei. Preciosas como documentos, sobretudo da alta qualidade artística que os trovadores exigiam à sua arte, o próprio facto de terem sido recolhidas nos Cancioneiros mostra-nos ainda que todas as acusações que elas contêm são zombarias, geralmente de caráter provocatório mas não ostracizante, uma espécie de torneios poéticos, se quisermos, em que tanto vencedores como vencidos obtêm a recompensa do apreço (e da posteridade)1. O que se passa na corte afonsina parece-nos poder ser estendido, em maior ou menor grau, a todas as restantes composições com este caráter. Como já referimos, são os bastidores da arte de trovar o que estas cantigas desenham com especial nitidez. Mais uma vez a
sido esta influência de Bonaval (e do Demo), o que teria levado Pedro da Ponte a cometer «tam louca razom» (ajudado ainda pelo vinho). 1 E mesmo outro tipo de recompensas. Pelo que se depreende de uma cantiga dirigida ao jogral Lourenço (B 1441, V 1051), ele teria mesmo comprado umas casas em Castela.
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expressão de «lírica do realismo» nos parece a mais adequada como classificação geral destes cantares.
3. As constantes
Ao longo do percurso que fizemos pelo corpus satírico dos Cancioneiros tivemos ocasião de ver que ele se distribui prioritariamente por quatro grandes campos: os comportamentos sexuais, as relações interpessoais (de classe, políticas, ou entre grupos étnicos), os problemas artísticos internos à escola e, ainda que em menor grau, o universo religioso. Nestes campos, que poderemos considerar temáticos (e que aparecem muitas vezes, como também vimos, interligados), as cantigas de escárnio e maldizer apresentam uma relativa unidade, ou seja, parece poder definir-se um sentido geral da sátira galego-portuguesa, um sentido que ultrapassa e unifica as críticas dirigidas aos vários grupos sociais ou socio-profissionais que as cantigas contemplam. Assim, a metodologia quc seguimos na abordagem deste vasto corpus necessitará de ser completada com uma análise, ainda que breve, dessas suas constantes temáticas – que são, ao mesmo tempo, os seus indicadores de sentido. Vejamos, pois, um pouco mais em detalhe, o segundo quadro que indicámos no início deste capítulo. Em primeiro lugar, vimos já, pelos exemplos transcritos, como trovadores e jograis parecem perfeitamente à vontade no domínio das alusões de caráter erótico-sexual: a liberdade «temática» e de palavra é aqui grande, e, apesar de haver grupos sociais, como o das soldadeiras, por exemplo, que mais frequentemente são relacionados com este tipo de motivos, o facto é que eles se encontram quer nos ataques a personagens de todos os tipos e classes, quer nas próprias e frequentes referências autobiográficas. Muitos destes temas erótico-satíricos vão, aliás, desaparecer completamente da literatura «oficial», pelo menos até ao séc. XIX, o que torna ainda mais notável este conjunto de cantigas medievais. O caso da homossexualidade masculina é, nesta matéria, sintomático. Se neste caso específico, e se excetuarmos a ambiguidade das cantigas dc Pero da Ponte atrás citadas, não encontramos nenhuma referência autobiográfica, sendo mesmo a atitude sempre condenatória, deve notar-se, no entanto,
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que, em geral, esta condenação se processa, nos Cancioneiros, com uma boa dose de humor, como vimos nos exemplos referidos. A homossexualidade não nos surge assim aqui como aquele «crime nefando» passível de pena dc morte, que vemos referido nos documentos oficiais da Igreja e mesmo das instituições civis1. De facto, e apesar das frequentes condenações da Igreja, deve referir-se que os elogios da pederastia não eram desconhecidos da lírica latina medieval. Helmut Birkhan, num artigo sobre o assunto2, cita vários textos famosos na época, como o «O admirabile veneris idolum», da autoria de um clérigo de Verona do séc. IX, a «Satira in amatorem puelli», de Marbod de Rennes (1035/1120), um dos professores da célebre escola de Chartres, ou o «Planctus naturae», de Alain de Lille, textos onde a homossexualidade não só se afirma como se defende abertamente. Como se vê, entre a letra das leis e a realidade literária ou mesmo quotidiana a distância devia ser grande. A liberdade e o humor com que os Cancioneiros abordam esta matéria é também disso um sintoma. Liberdade de linguagem também no que diz respeito às doenças venéreas, por vezes descritas com um realismo quase clínico, como dissemos (e motivo onde encontramos mesmo a confissão de um trovador, como vimos também); o mesmo acontece em relação ao motivo que designámos genericamente por vida desregrada, que inclui acusações como atividades sexuais excessivas, bebida, jogo, etc., muitas vezes tendo como alvo segréis e jograis, o que não deixa de constituir uma achega importante para a visualização do cenário em que muitas destas cantigas eventualmente seriam produzidas (podendo talvez não ser excessivo denominar algumas delas, como parece propor Carolina Michaëlis, cantigas de caserna ou de taberna3). Sobre qualquer destes assuntos recai posteriormente um silêncio total. Arriscandonos a uma evidência, relembremos que não são obviamente as questões que desaparecem, a literatura é que toma outros caminhos. Um outro motivo que merece também mais alguma atenção é o que denominámos feitiçaria/ astrologia/ superstições. Como vimos, são variadas as personagens acusadas destas práticas. É muito curioso e significativo, no entanto, que, na sua totalidade, estas
1
Legislam as Partidas contra «los que cometen pecado contra la naturaleza» (VII, 21, l. 2): «Siendo probado debe morir por ello, tanto el que lo hace como el que lo consiente». 2 «Qu'est ce qui est préférable, de l'heterossexualité ou l'homossexualité? Le témoignage d'un poème latin» in Amour, mariage et transgréssion au Moyen Age, Actes du colloque organisé par le Centre d'Etudes Médiévales de l'Université de Picardie, 1983 3 CA, II, p. 598 (já atrás citado).
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cantigas acentuem claramente o ridículo deste tipo de práticas, o que nos transporta para uma sociedade cortês onde, contrastando com a imagem tradicional da Idade Média como reino do obscurantismo, parece imperar um notável racionalismo – sintoma inegável do elevado padrão da cultura trovadoresca no quadro geral da cultura medieval. Especificamente quanto à astrologia, cujos (já na época) numerosos seguidores também são alvo do mesmo tipo de chufas, devemos ainda referir um longo poema que, não podendo ser incluído no corpus galego-português, foi, no entanto, produzida no seu espaço. Trata-se de mais uma Súplica em provençal dirigida a Afonso X, desta vez pelo trovador N'At de Mons, súplica cuja matéria versa temas astrológicos, e que não deixa de ser importante como caracterização do ambiente vivido na corte do rei Sábio1. A questão central que então se colocava, como nos mostra esta Súplica, era a de distinguir entre uma astrologia com fins científicos (o que chamaríamos hoje astronomia) e uma astrologia de pura adivinhação do futuro, relacionada com práticas mágicas condenáveis. Que a distinção ainda não era muito segura mostra-nos o emprego do mesmo termo para ambas – e o pedido de esclarecimento que N'At de Mons faz ao rei. Apesar desta incerteza terminológica, já as Partidas estabelecem uma nítida distinção entre estes dois tipos de práticas2: Adevinanza tanto quiere decir como querer tomar el poder de Dios para saber las cosas que están por venir. Es de dos modos: primera, la que hacen los astrónomos, y esta no solo no está prohibida por las leys, sino que sentencian algunos pleitos por ella; y al segundo es la que hacen agoreros ó los hechiceros. Por lo perjudiciales que son todos eslos, prohibimos que habiten en nuestro señorio, y que ninguno se atreva á hospedarlos en su casa, ni a encubrirlos. Apesar de, mais uma vez, a letra da lei parecer estar longe da realidade quotidiana, o certo é que os trovadores e jograis galego-portugueses acompanham, com as suas chufas, este espírito racionalista de que o texto de Afonso X dá mostras3.
1
Suplica de N'At de Mons al bon rey de Castela e resposta de Afonso X «auzidas Ias razos», in W. Bernhardt, Die werk des trobadours: N'At de Mons, Heilbronn 1887, também editada por Bernhart, N 'At de Mons, I. 2 Las Siete Partidas, VII, 23, l. 3 Exemplos disso mesmo são as duas obras sobre a matéria que sairam das oficinas régias afonsinas, os Libros del saber de Astronomia e sobretudo as célebres Tablas astronomicas alfonsíes, obra que muitos consideram o ponto de partida da ciência astronómica europeia, e que tanta influência tiveram nos descobrimentos.
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Esta mesma atitude racionalista transparece no humor com que são abordadas atitudes menos ortodoxas em matéria de religião, tanto no que diz respeito às duas cantigas que aludem a blasfémias alheias, como nas sete cantigas cujo alvo é o próprio Deus (ou mesmo nas cantigas que referem a entrada forçada de mulheres para o convento). A liberdade de que dão provas estes escárnios contradiz, de novo, a imagem tradicional de uma Idade Média fechada e intolerante. Muito pelo contrário, estas cantigas parecem desenhar uma sociedade que comporta uma certa dimensão de agnosticismo, na qual se aceitam as regras religiosas mais como uma prática social do que como matéria inabalável de fé. De forma diferente, é certo, se passam as coisas na restante produção trovadoresca, com destaque para as Cantigas de Santa Maria, de Afonso X. De qualquer maneira, estamos certamente frente a uma cultura (ou microcultura) onde impera uma relativa tolerância nesta matéria, e mesmo um certo espaço de questionamento dos dogmas (tolerância e questionamento que os séculos seguintes se encarregarão de delimitar). Também o motivo das conversões, que não deixam de ser escarnecidas, é abordado com este mesmo caráter tolerante, pelo tom essencialmente humorístico com que são tratados os cristãos «transfugas». Transparece assim, no Cancioneiro satírico, a real proximidade (e coexistência) dos vários credos na Península, visível ainda na quase ausência, no meio da crueza da linguagem trovadoresca, de qualquer tipo de referências pejorativas às outras religiões (relembremos, por contraste, o «torpe ismaelita» camoniano, uma entre as várias expressões semelhantes que encontramos n’Os Lusíadas)1. Mouros e judeus podem ser considerados (e são-no, como vimos) grupos à parte, por vezes socialmente desqualificados, mas ainda não inimigos a abater em nome de uma fé totalizante2. Curiosas são também as referências às peregrinações à Terra Santa, que aparecem nos Cancioneiros apenas numa imagem em negativo (são sempre casos, como os já 1
A exceção mais saliente é a expressão «coraçom de judeu» com que Estêvão da Guarda invetiva um cavaleiro com quem andava em pleitos judiciais (B 1304, V 909) – de nítido sentido pejorativo, tratase, mesmo assim, não tanto de um insulto dirigido diretamente a um judeu, mas do recurso à tradicional acusação de avareza que lhes era feita. 2 O que era verdade sobretudo em relação aos muçulmanos, que a própria Igreja considerava de um modo particular. Pedro, o venerável, abade de Cluny, na sua obra Summa Totius Haeresis Saracenorum, considera-os heréticos cristãos e não pagãos. De resto, deverá entender-se que as guerras da chamada Reconquista cristã são exatamente guerras de conquista de território e não guerras religiosas. No já citado ciclo de cantigas sobre as campanhas da Andaluzia os visados são sempre cavaleiros cristãos, enquanto os mouros nos são pintados como adversários poderosos e por vezes temíveis, mas não como inimigos.
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citados, de peregrinações fictícias). De facto, uma das diferenças da poesia galegoportuguesa em relação à produção trovadoresca da Idade Média europeia é a ausência absoluta das chamadas «canções de cruzada», tão frequentes na Provença, em França, ou na Alemanha, para darmos apenas alguns exemplos. A guerra local de expansão explicará, até certo ponto, o facto, que a ausência deste tipo de cantigas comprova, de as cruzadas terem praticamente passado «ao largo» da Península. Mas nestas cantigas sobre falsos peregrinos vemos, pelo reverso, um quotidiano bem medieval onde essas longas viagens em busca dos Lugares Santos estavam no horizonte das possibilidades (e originavam mesmo os correspondentes relatos fantasiosos de hipotéticas partidas). Particularmente, estas cantigas dão-nos ainda conta de um certo saber geográfico exato, que contrasta fortemente com as geografias imaginárias das numerosas imago mundi medievais ou com as geografias ficcionais dos romances de cavalaria que lhes são contemporâneos. Repare-se, por exemplo, na ironia com que Martim Soares constrói toda uma geografia intencionalmente absurda para chufar da pseudoperegrinação de Sueiro Eanes (B 143): Pero nom fui a Ultramar, muito sei eu a terra bem, per Sueir'Eanes, que en vem, segundo lh'eu oí contar: diz que Marselha jaz além do mar e Acre jaz aquém, e Somportes log'i a par. E as jornadas sei eu bem, como lhi eiri oí falar: diz que pod'ir, quem bem andar, de Belfurad'a Santarém, se noutro dia madurgar, e ir a Nogueirol jantar e maer a Jerusalém. (...) Do Sepulcro vos [er] direi, per u andou, ca lho oí a Dom Sueiro; bem assi como m'el disse, vos direi: de Santarém três legoas é, e quatr'ou cinco de Loulé, e Belfurado jaz log'i. (...) 287
Esta sátira ao disparate geográfico, ou esta vontade de exatidão, precursora do Renascimento, é, sem dúvida, mais um dos sintomas do elevado padrão da cultura trovadoresca. Não deixa de ser interessante o reduzido número de cantigas satíricas que aludem, como motivo principal, ao vício da bebida, ou ao vinho de uma maneira geral. De facto, não encontramos neste corpus nada que se compare com as canções báquicas, que vimos ser um dos géneros da sátira árabe peninsular, e que também constituíam um dos géneros da poesia dos goliardos – e que fazem parte integrante da tradição carnavalesca. As cantigas de escárnio e maldizer, como sátiras que essencialmente são, não referem o vinho mas os bêbados – e mesmo estes em número muito reduzido. De qualquer forma, é difícil conceber que o bispo de Viseu fosse a única figura suscetível de originar uma sátira deste género. Antes dá ideia de que a falta de interesse dos trovadores e jograis por este motivo se relaciona com a sua fraca pertinência como motivo satírico, numa sociedade relativamente permissiva em relação à matéria (é a sua qualidade de bispo – e de privado do rei – que tornará mais flagrante o caso de Miguel Vivas). São também interessantes, até como documentos, as cantigas que dizem respeito às modas, e que nos fazem entrever uma sociedade preocupada com o aspeto fisico (quer da mulher, quer do homem). Sinal exterior de classe que, como vimos, a legislação real procurou repetidamente enquadrar, as alusões ao vestuário reforçam ainda, por várias vezes, o ridículo dos comportamentos dos infanções e ricos-homens, já que contribuem para a denúncia da sua origem social. Este facto é particularmente notório numa cantiga de Afonso X, que traça um pormenorizado retrato de alguns fidalgos de origem rural (B 492, V 75): De grado queria ora saber destes que tragem saias encordadas, em que s'apertam mui poucas vegadas, se o fazem polos ventres mostrar, porque se devam deles a pagar sas senhores, que nom têm pagadas. Ai Deus! Se me quisess'alguém dizer por que tragem estas cintas sirgadas muit'anchas, come molheres prenhadas: se cuidam eles per i gaanhar bem das com que nunca sabem falar, ergo nas terras se som bem lavradas. 288
Encobrir nõn'o lhes vejo fazer, cõn'as pontas dos mantos trastornadas, em que semelham os bois das ferradas quando as moscas los vêem coitar; nem se as cuidam per i d'enganar, que sejam deles por en namoradas. Outrossi lhis ar vejo [i] trager as mangas mui curtas e esfra[lda]das, bem come se adubassem queijadas ou se quisessem tortas amassar; ou quiçá o fazem por delivrar sas bestas, se fossem acevadadas. O sistema da moda está já aqui, pois, em pleno funcionamento – e cantigas como esta entram já plenamente no domínio das relações sociais. Mas este é um domínio onde sobressaem indiscutivelmente as sátiras aos infanções e ricos-homens, tendo a sua pelintrice e a avareza/escassez como principal motivo, como foi referido. É igualmente neste grupo social que encontramos o maior número de sátiras que parecem implicar a crítica moral, como a falta de escrúpulos, a ganância, etc.. É um facto que essa crítica existe; mas deve salientar-se, no entanto, que o caráter à primeira vista assaz moralista destes motivos diminui com a leitura efetiva das cantigas: se nalgumas sátiras ele é inegável, em muitas outras o que se sublinha é preferencialmente o cómico ou o ridículo de comportamentos e situações. Os infanções e ricos-homens satirizados são-no essencialmente a partir da anotação de uma diferença: diferença entre o seu estatuto social e uma realidade quotidiana que contradiz esse estatuto, nuns casos; diferença no que diz respeito ao não cumprimento dos deveres e normas de comportamento inerentes a esse estatuto. Mas é certo que uma grande parte das cantigas que lhes são dirigidas (sobretudo se o fazem no modo do anonimato) funcionariam igualmente como variações de um topus tradicional (vimos, aliás, como a questão da recusa de hospedagem se encontra já, pelo menos, entre os bardos celtas). Ou seja: seria a capacidade do trovador ou jogral de criar urna boa razom o que estaria em grande medida em jogo neste tipo de cantigas. Não deixa assim de haver também uma parte inegável de divertimento cortês nestas «denúncias». Já no que toca às cantigas pessoalmente endereçadas a figuras públicas, essa função de denúncia é mais evidente. Não há dúvida que trovadores e
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jograis funcionam aqui numa zona muito próxima do «ridendo dicere verum» horaciano.
Por último, não queremos deixar de chamar a atenção para as cantigas que aludem a reações dos visados em anteriores cantigas de escárnio e maldizer. Não são muitas estas referências, mas mesmo assim elas são particularmente interessantes como testemunhos do feed-back que uma arte como esta necessariamente desencadearia. E neste ponto gostaríamos de retomar de novo a questão do modo particular da sátira medieval, ou seja, o seu modo oral de apresentação e divulgação pública, e tentar situar mais uma vez, ainda que brevemente, o cenário particular em que cada cantiga seria produzida, cenário que em muitos casos seria fundamental. Daremos apenas dois exemplos. Onde, em que circunstâncias e como cantaria (ou mandaria cantar) Gil Peres Conde as suas sátiras contra o rei de Castela? Ainda na corte? Propriamente em Castela? De regresso a Portugal? Onde, quando e como seriam cantadas as sátiras dirigidas contra os privados dos vários reis, nomeadamente as cantigas que vários trovadores da última geração dirigem contra próximos de Afonso IV? Ou mesmo as chacotas contra as várias abadessas? Ou ainda, de uma forma mais genérica: seriam as cantigas de escárnio e maldizer cantadas na presença dos visados (ou mesmo dos seus protetores)? Supomos que talvez não fosse raro «escarnecer» de alguém presente, na própria forma do maldizer direto, ou, talvez mais frequentemente, na forma do escárnio equívoco, até porque vimos como o aspeto lúdico é um fator importante em muitas destas cantigas. As chacotas às soldadeiras e as interiores à escola podemos facilmente imaginá-las como fazendo parte deste jogo. Mas é evidente que em muitas outras, como nas acima referidas contra membros da nobreza, o espírito da crítica mordaz, pessoal ou social, prevalece. Neste caso, poderá admitir-se ainda a presença dos visados no público? E, independentemente da sua presença ou da sua ausência, como reagiriam estes visados, personagens muitas vezes poderosas e influentes? São questões a que é difícil dar hoje resposta. Relacionada com estas, uma outra questão merece igualmente a nossa atenção. Conhecemos, destas cantigas, os seus textos e autores; mas, de facto, nada sabemos do seu percurso na sociedade do tempo. Ora, da mesma forma que é sabido terem existido jograis encarregados de «publicitar» com as suas cantigas santuários e romarias
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célebres, poderemos igualmente admitir que algo semelhante pudesse ocorrer no domínio da sátira, ou seja, que não só pudesse haver «encomendas» visando determinados objetivos (como sabemos terem existido nos domínios dos senhores provençais e franceses), como, mesmo não sendo «encomendadas», pudessem as cantigas ser difundidas de uma forma mais ou menos orientada, a partir, por exemplo, da sua integração no repertório dos jograis, que as repetiriam assim em circunstâncias e cenários diferentes e mais alargados do que as circunstâncias e cenário da sua primeira apresentação pública1. Não é, em qualquer caso, muito credível que uma cantiga fosse cantada apenas uma única vez. Questões como estas não podem ser ignoradas. Ainda que as respostas possam ser vagas e inconcludentes, colocá-las é apontar, não para fatores periféricos da arte satírica galego-portuguesa, mas sim para uma parte essencial do seu modo de existência, oral, ou,
se
quisermos,
«corporal»,
como
diz
Zumthor.
De
qualquer
forma,
independentemente de podermos um dia dar uma resposta mais segura a todas estas questões, e mesmo estando o nosso estudo limitado aos textos que nos chegaram, devemos ter em conta que as cantigas satíricas não seriam, de forma alguma, inócuas. Armas de ataque pessoal, político ou social, em muitos casos deviam ser temidas; e as várias cantigas do nosso corpus que aludem a protestos, mais ou menos veementes, por parte dos visados em anteriores cantigas são disso testemunho. Também D. Juan Manuel, ao citar o fragmento da cantiga satírica contra D. Jaime de Aragão (vide p. 223), refere o facto de ela ter dado brado entre os seus pais e avós (e é exatamente por isso que ele se lembra do seu refrão). São testemunhos que indicam ainda que, quer de forma direta, quer de forma diferida, a maioria das cantigas atingia o seu alvo. Por que caminhos, dificilmente poderemos hoje saber exatamente. É uma questão que, como tantas outras ao longo deste trabalho, terá que permanecer em aberto.
1
Parece ser também esta a opinião de Tavani sobre a cantiga de Airas Nunes que aborda a luta entre os herdeiros de Afonso X (ridicularizando as pretensões dos infantes de Lacerda) (B 883, V 466). Cf. Le poesie de Ayras Nunes, op. cit., na nota a esta cantiga.
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CONCLUSÃO
Os caminhos futuros E pues vos tenedes por tan sabidor que en tan breve tiempo tan alto sobistes, so maravillado como preposistes sin lai e sin deslai, sin cor, sin discor, sin doble, manzobre, senzillo o menor, sin encadenado, dejar o prender; que arte comun devedes creer que non tiene en si saber nin valor. De verbo partido, maestria maior, nin de macho e fembra non vos acorristes, palabra perdida non la enxeristes en vuestros dezires, con sana o rigor. (...) A Dante el poeta, gran componedor, me dizen, amigo, que reprehendistes; se esto es verdad, en poco tovistes lo que el mundo tiene por de gran valor. (Villasandino, Cancionero Castelhano del siglo XV, nº 785) Quando Giacoppo da Lentini, da corte do imperador Frederico II da Sicília, desenvolve, a partir do som dos trovadores provençais, a forma conhecida como soneto (pequeno som)1, a arte trovadoresca provençal, que tinha encontrado um dos seus refúgios nesta corte brilhante do sul de Itália (como também, em certa medida, na de Afonso X), recebe o seu pré-certificado de óbito. Talvez possamos dizer que ela morre, de facto, com os sonetos de Dante, contemporâneos da última geração dos trovadores galego-portugueses. Ou, se quisermos, com a obra de Dante, a arte trovadoresca, que ele tanto admira, renasce em formas que indicam, a toda a Europa, os caminhos literários futuros.
1
O soneto tem precedentes já entre os trovadores provençais tardios. Mas é só com a escola siciliana que ele é definitivamente formalizado, para logo entrar na grande tradição europeia.
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O destino da escola galego-portuguesa parece ter sido bem diferente: tal como nos dizem todas as histórias da literatura, ela não parece, à primeira vista, ter originado qualquer descendência. É o que Tavani chama, numa designação um pouco brusca, «uma tradição estéril». De facto, a morte de D. Pedro, conde de Barcelos (m. 1354), parece poder marcar, não o fim da arte de trovar, que se mantém em pleno funcionamento, como nos mostram os vários cancioneiros castelhanos da época (nomeadamente o de Baena), mas tão só o fim de uma escola, se por este termo entendermos um espaço criativo unificado por uma estética (e mesmo por uma ética) próprias, e por uma língua única, que designamos por galego-português. Em Portugal, o problema é particularmente agudizado pelo facto de o fim desta escola coincidir com um período de cerca de um século em que, aparentemente, a poesia parece sofrer um eclipse total – quando ressurge, pelo menos para nós, à luz do dia, no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (1516), é já num espaço estético e cultural bem diferente do delimitado pelas regras e pelos valores dos trovadores galegoportugueses. De qualquer maneira, o período que habitualmente se chama de transição é demasiadamente mal conhecido para se possa, com segurança, como geralmente se faz, afirmar que esse silêncio poético, no espaço português, foi real. Há notícias de jograis (pelo menos) nas cortes de D. Pedro, D. Fernando e D. João I, de que não sabemos, obviamente, o repertório. Quanto a criadores, e para além dos que serão antologiados no Cancioneiro de Baena escrevendo ainda em galegoportuguês, poucas notícias temos, na verdade. Uma delas refere um perdido poema épico (ou uma crónica rimada) da autoria de Afonso Giraldes sobre a batalha do Salado, datado do séc. XIV1. Temos ainda notícia de alguns poetas desta época cujas obras se perderam (Vasco Pires de Camões, Fernão Casquício). D. Duarte tinha na sua livraria, para além do Livro de Trovas del Rei Don Dinis e do Livro de Trovas del Rei Don Afonso, um terceiro Livro de Trovas del Rei, cujo conteúdo desconhecemos em absoluto. Tavani crê poder identificá-lo como um dos elos perdidos da tradição manuscrita galego-portuguesa (uma cópia do Livro das Cantigas citado no testamento do Conde D. Pedro)2. Mas nada nos garante que esse Livro de Trovas, pertencesse a esta
1 2
CA., II, p. 129. A poesia lírica, op. cit., pp. 66-67.
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tradição trovadoresca, e não fosse antes uma recolha de trovas posteriores, eventualmente oferecida ao próprio D. Duarte. A já referida inclusão, nos Cancioneiros galego-portugueses, de composições alheias à escola e datáveis do séculos XV mostranos que muita coisa, efetivamente, se perdeu (falta, aliás, fazer um estudo sistemático destas composições). Seja como for, e no que se refere à tradição satírica, a que nos interessa aqui particularmente, é lícito supor que ela não desaparece com a morte do Conde de Barcelos. No espaço português, temos, por exemplo, notícia certa de uma cantiga satírica sobre o escândalo do casamento de D. Fernando e de D. Leonor de Teles (datada, portanto de cerca de 1370), cantiga que deveria ter sido célebre na época, já que ela é objeto de várias glosas, dentre as quais uma pelo trovador castelhano Juan Quiñones1, e outra (em galego-castelhano) pelo catalão Fra Rocabertí, na sua Comedia de la Gloria de Amor. Eis o início desta última glosa, que Carolina Michaëlis transcreve2: Ay donas por que tristura perpasso noite e dia! Non vejo come seria partida de min rencura. Não deixa de ser curioso que esta cantiga fosse, nesta forma que poderemos já classificar de medida velha (aqui medida nova, evidentemente), um maldizer aposto, já que o discurso é posto na boca do marido ultrajado, Lourenço da Cunha, numa forma muito semelhante à que vimos aparecer nos Cancioneiros galego-portugueses. O fim da escola galego-portuguesa não parece ter significado, pois, o desaparecimento completo da sua tradição satírica, e mesmo, muito especificamente, e durante muito tempo, da tradição da sátira pessoalizada, da invetiva dirigida contra personagens e acontecimentos do quotidiano. Neste ponto, convém realçar, mais uma vez, a quase ausência de estudos sobre o que gostamos de continuar a chamar «a lírica do realismo», desta feita no que diz respeito aos cancioneiros quatrocentistas e quinhentistas peninsulares que nos chegaram. De facto, a visão que deles temos hoje em
1 2
Publicada por H. Lang in Cancioneiro Gallego-Castelhano, Ncw York, 1902, com o nº LXI. CA, II, p. 283, nota 7.
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dia é perfeitamente parcelar, e motivada pela mesma deformação romântica de leitura que durante tanto «esqueceu» ou considerou menores as cantigas de escárnio e maldizer. Mas o certo é que a poesia satírica ocupa ainda uma parte muito considerável dessas recolhas, por vezes mesmo com uma liberdade de linguagem muito semelhante à dos séculos anteriores (o que leva, por exemplo, a que uma das edições mais conhecidas do Cancioneiro de Baena [de Pedro José Pidal, Madrid, Rivadeneyra, 1851, que serviu de modelo a várias outras posteriores] nos surja cheia de tracinhos e reticências...)1. Já Pierre Le Gentil chama a atenção para o facto de o elo mais evidente destes Cancioneiros com os anteriores passar exatamente pela poesia satírica. Basta dizer, se mais não fosse, que ainda mesmo no quinhentista Cancionero General de Hernando del Castillo encontramos poetas a utilizar a expressão mal decir2. O estudo detalhado do prolongamento desta tradição sai fora dos limites deste trabalho. Não queremos, no entanto, deixar de dar dois exemplos de poemas que cronologicamente se situam numa época relativamente próxima do que se designa por fim da escola galego-portuguesa. Ambos foram publicados por Henry Lang, no seu Cancioneiro Gallego-castellano, coletânea que recolhe o que se costuma designar por obras de transição3. Um deles é um dezir (e não já uma cantiga) de um anónimo português, dirigido aos castelhanos em geral, e que reflete de uma maneira vigorosa o momento imediatamente posterior à batalha de Aljubarrota (CGC, LXIX)4: [Oh] demo, dou-che por teus todos estes castelãos se non con justas e torneos en outras cousas non an mãos. Tragen os corpos ben sãos e an pouco ardimento, por que an posto en perdimento o moor reino de cristãos. En ricas roupas forradas tragen os seus coracões; en jaquetas ben brosladas
1
Ainda que com uma visão muito próxima da de D. Carolina Michaëlis e mesmo de Lapa, devem, no entanto, notar-se os capítulos que Pierre Le Gentil dedica à poesia satírica no seu livro La poesie lyrique espagnole et portugaise à Ia fin du Moyen Age, Rennes, 1952 (sobretudo no vol. 1). 2 Ibid., p. 409. 3 Lang, op. cit.. 4 Transcrevemos a lição de Lang, apesar de nos parecer que necessitaria de ser revista.
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comedindo traições, non veen las maldicões en Castela de centadas. Francos e dobras cruzadas cen mil dan en redenções. Como fermosos pavões vos vejo andar loucãos, e bravos como leões adonde vos minguam mãos: mas los vossos comarcãos que aqui son vossos vezinnos, todos vos an por mesquinnos, peitoros como pavãos1. Como agora é perdida a cativa de Castela! Por que razon era vi[i]da tanta cobardice en ela? U veen dona e donzela, i é toda sa folgança, e non veen la mal-andança que ora sofre a mezela. Fezeron mui grand'alardo e gran sembrante de guerra; des i lançaron un dardo vinte codos por la terra, roubando de serra en serra. Con peitos e con pedidos eles van apercebidos; dizen: «Non á ponto (de) guerra». Trata-se, pois, de um dizer satírico com as mesmas características de comentário aos acontecimentos político-sociais que vimos serem muitas das cantigas galegoportuguesas. É evidente que o sentimento anti-castelhano aqui expresso é raro nessas cantigas, mas ele terá a ver essencialmente com o momento em que este dizer é composto (e com a alteração das coordenadas políticas na Península). De qualquer forma, os motivos que o anónimo autor alega para justificar a derrota de Castela (o excessivo gosto pelo luxo e, sobretudo, pelas donas e donzelas) giram num universo
1
É este o único passo em que corrigimos a versão de Lang, que opta por um termo (paytos) que nem rima nem não faz sentido. Aproveitámos uma sugestão de Dutton, embora modificando-a um pouco (payaos, leu Dutton). O verso significará, de facto, «vaidosos como pavões»).
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próximo do das duas já referidas cantigas que, nos Cancioneiros galego-portugueses, aludem a comportamentos de castelhanos. O outro exemplo do prolongamento imediato da tradição satírica anterior vem do Cancioneiro de Baena, na forma de uma cantiga do posteriormente tão romanceado poeta Macias, o Enamorado, trovador dos mais antigos da recolha (c. 1340-1370), e que por isso mesmo (e por escrever ainda em galego-português), se costuma considerar um autor de transição. Trata-se de uma cantiga, em princípio, e em termos gerais, contra o amor. Mas a cantiga (como acontece quase sempre neste Cancioneiro) vem acompanhada de uma rubrica que diz o seguinte: «Esta cantiga fizo Macias contra el Amor, empero algunos trobadores dizen que la fizo contra el rey don Pedro». A cantiga é a seguinte (CB 308): Amor cruel e brioso mal aya la tu alteza pues non fazes igualesa seyendo tal poderoso. Abaxó me mi ventura non por mi merecimiento e por ende la ventura puso me en gran tormento. Amor, por tu fallimiento e por la tu gran crueza, mi coraçon. con tristeza es puesto en pensamiento. Rey eres sobre los Reyes coronado Emperador, do te plaze van tus leyes, todos an de ti pavor; e pues eres tal señor se entyendes que es proeza non soy ende judgador. So la tu cruel espada todo ome es en omildança, toda dueña mesurada en ti deve aver fiança: con la tu briosa lança ensalças toda vileza, e abaxas la nobleza de quien en ti obo fiança.
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Ves, Amor, por qué lo digo: sé que eres cruel e forte, adversaryo ó enemigo, desamador de tu corte; al vil echas en tal sorte que por prez le das vileza, quien te sirve en gentileza por galardon le das morte. Como se compreende, aqueles «algunos trobadores» referidos na rubrica têm inteiramente razão: trata-se, de facto, de uma cantiga contra o rei de Castela D. Pedro I, o Cruel (1350-1369). Para quem esteja inteirado desse período bárbaro da história castelhana, dos crimes e perseguições do monarca, sobretudo visando os infantes de Lacerda (e a perseguição às mulheres da família1), compreende perfeitamente que o aparente discurso contra o Amor esconde, de facto, um conjunto de alusões muito concretas aos acontecimentos que se desenrolavam nessa época em Castela. Mas o que é mais interessante é que o poema se construa, à sua maneira, a partir do tradicional equivocatio das cantigas de escárnio e maldizer. À sua maneira, ou seja: adaptando aos novos tempos a forma do «sentido cuberto» – e com a expressão «novos tempos» referimo-nos não só a um período particularmente perigoso, dado o caráter do monarca reinante (como diz a última estrofe: «Sé que eres cruel e fuerte»), mas, em geral, a uma época em que a antiga liberdade de expressão começa a ser radicalmente limitada, entre outras coisas, pela centralização do poder real a que se assiste. Não admira assim que os «dois sentidos» do equívoco comecem a ser aproveitados para a chamada «leitura nas entrelinhas», num jogo perfeitamente patente na cantiga de Macias, e recurso central da sátira até aos nossos dias (mas também nos Cancioneiros galego-portugueses há alguns exemplos deste modo satírico mais politicamente orientado, nomeadamente quando as personagens visadas têm estatuto real, como vimos ser o caso da cantiga em que Paio Gomes Charinho compara o rei com o mar). Mais uma vez, e de passagem, note-se a importância da rubrica para o entendimento de poema, poema que, sem ela, só poderia ser lido num sentido literal que não é, obviamente, o seu sentido literário2 . O caso de Macias, figura que a posteridade tão marcadamente relaciona com a imagem do poeta apaixonado e sofredor, é talvez o melhor exemplo de como o lirismo e 1
Vide um breve resumo desses acontecimentos in CA, II, p. 262. Contrariando uma célebre deixa de Valéry, é evidente que aqui o que o poeta quer dizer não é obviamente o quc o poema diz. 2
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a sátira continuam a fazer parte indissociável da atividade trovadoresca peninsular (no Cancioneiro de Baena os exemplos de cantigas satíricas são inúmeros; Villasandino é, numericamente, o caso mais evidente). E um século mais tarde o mesmo acontece no próprio Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, antologia onde a poesia crítica e satírica, a poesia erótica, a paródia – as cousas de folgar, como diz significativamente Garcia de Resende no seu prólogo – ocupam um lugar de direito, lugar, em grande medida, ainda por estudar. Já a Inquisição, em 1624, o tinha reconhecido, na censura impiedosa a que sujeitou o livro1. Antologiado nesse mesmo Cancioneiro, Gil Vicente é indiscutivelmente a grande figura da sátira quinhentista. Não há nenhum vestígio de que Gil Vicente tenha tido conhecimento dos seus predecessores galego-portugueses (também não se pode garantir que não tenha tido). Mas, seja como for, é evidentemente nele (e através dele) que a tradição satírica melhor e mais duradoramente se prolonga, transformada e adaptada à linguagem cénica que é a sua. É este um outro universo. De qualquer forma, Gil Vicente será o marco maior de uma corrente que depois dele não deixou nunca de estar presente na literatura portuguesa: do Abade de Jazende a Nicolau Tolentino ou a Bocage, de Almeida Garrett a Eça de Queiroz, João de Deus, Cesário Verde ou Guerra Junqueiro, de Almada Negreiros a António Botto, Mário Cesariny ou Alexandre O'Neill – para citar um pouco ao acaso nomes que, das mais variadas formas e nos mais variados contextos, não deixam, à sua maneira, de prolongar a tradição que tão brilhantemente, em português, e para o espaço da Península, inauguram os trovadores e jograis galegoportugueses.
1
E que o tornou mesmo extremamente raro. Vide Lapa, Licões de literatura portuguesa, op. cit., p. 410.
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