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Portuguese Pages 480 [872] Year 1996
OS ECONOMISTAS
ADAM SMITH A RIQUEZA DAS
NAÇÕES
INVESTIGAÇÃO SOBRE SUA NATUREZA E SUAS CAUSAS
Com a Introdução de Edwin Cannan
VOLUME I Apresentação de Winston Fritsch Tradução de Luiz João Baraúna
Fundador VICTOR CIVITA (1907 - 1990)
Editora Nova Cultural Ltda. Copyright © desta edição 1996, Círculo do Livro Ltda. Rua Paes Leme, 524 - 10º andar CEP 05424-010 - São Paulo - SP Título original: An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations Direitos exclusivos sobre a Apresentação de autoria de Winston Fritsch, Editora Nova Cultural Ltda. Direitos exclusivos sobre a tradução deste volume: Círculo do Livro Ltda. Impressão e acabamento: DONNELLEY COCHRANE GRÁFICA E EDITORA BRASIL LTDA. DIVISÃO CÍRCULO - FONE (55 11) 4191-4633
ISBN 85-351-0827-0
APRESENTAÇÃO
l.
ADAM SMITH
Adam Smith nasceu em Kirkcaldy, Fifeshire, Escócia, em 1723,1 filho de uma típica família da classe alta não nobre da época. Seu pai, Adam Smith, era funcionário público que chegou a ocupar postos de certa importância na administração escocesa e sua mãe, Margareth Douglas Smith, descendia de proprietários de terras do condado de Fife. Da infância de Adam Smith pouco se registra além do fato pitoresco de que, aos quatro anos, quando em visita a seu avô materno, teria sido raptado por um bando de ciganos mas, felizmente, recuperado poucas horas depois. Um evento, entretanto, parece ter marcado seus primeiros anos e define os profundos laços afetivos que quase até o fim de sua vida o uniriam a sua mãe: a morte prematura do pai poucos meses antes do nascimento de Smith, que seria o único filho do casal. Na opinião de contemporâneos íntimos de Smith, Margareth Smith, falecida apenas dois anos antes de sua morte, foi o grande amor do grande filósofo e economista, que nunca se casou. O início de sua formação acadêmica teve lugar na Universidade de Glasgow, para a qual Adam Smith foi admitido em 1737, após completar sua educação secundária em Kirkcaldy. Dos três anos passados em Glasgow — onde, de acordo com o currículo de Humanidades da época, iniciou o estudo dos clássicos greco-romanos, Matemática, Teologia e Filosofia — o fato mais importante a destacar é a grande influência sobre ele exercida por Francis Hutcheson, um dos maiores teóricos protestantes da Filosofia do Direito Natural, então Professor de Filosofia Moral em Glasgow.2 Foi em seus cursos — basicamente o que hoje seria considerado uma mistura de Ética, Direito e princípios 1
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A data precisa do nascimento de Smith é desconhecida. A data de 5 de junho de 1723 dada por John Rae, um de seus mais famosos biógrafos, como a do nascimento de Smith é, de fato, a de seu batismo. Ver sobre isso VINER, J. Guide to John Raes’s Life of Adam Smith. In: RAE, J., Life of Adam Smith, J. M. Kelley, Nova Yorque, 1965, p. 139. Sobre Hutcheson, ver SCOTT, W. R. Francis Hutcheson. Cambridge, 1900. Sua influência intelectual sobre Smith é discutida em seguida. 5
OS ECONOMISTAS
de Economia, Política Comercial e Finanças Públicas3 — que Smith iniciou o estudo dos problemas econômicos. Em 1740, antes de completar os cinco anos então necessários para a graduação em Glasgow, Smith aceita uma bolsa para prosseguir seus estudos em Balliol College, Oxford. Com a provável exceção de um maior refinamento no estudo dos clássicos e de literatura, a experiência em Balliol pouca influência teve sobre sua formação, principalmente devido ao obscurantismo religioso e ao escolasticismo anti-racionalista que ainda impregnava a maioria dos quadros docentes da grande universidade inglesa.4 Entretanto, aparentemente por pressões familiares, Smith permaneceu em Oxford além do tempo requerido para o bacharelado. Finalmente, como é provável que já houvesse então optado pelo magistério, a falta de estímulo intelectual e, principalmente, o fato de que em Oxford a maioria dos cargos docentes fosse condicionada ao ordenamento religioso — o que a ele decididamente não interessava — fazem com que Smith deixe Balliol em agosto de 1746, retornando à Escócia. Após dois anos passados com a mãe em Kirkcaldy sem emprego regular, embora procurando uma posição de tutor-acompanhante,5 Adam Smith ministra, a partir do inverno de 1748/49, uma série de cursos avulsos em Edimburgo. As conferências de Edimburgo, em sua maioria sobre literatura inglesa, embora houvessem culminado em um curso sobre problemas econômicos dado no inverno de 1750/51, no qual já advogava princípios liberais livre-cambistas, ampliam seu círculo de relações intelectuais e granjeam-lhe reputação acadêmica suficiente para que, em janeiro de 1751, seja eleito para a cadeira de Lógica de Glasgow onde lecionava-se, basicamente, retórica e belles lettres. Todavia, antes do início do ano letivo em outubro, o súbito adoecimento de Craigie, então professor de Filosofia Moral em Glasgow, resultou em que Smith fosse convidado para assumir interinamente também o ensino dessa disciplina e, com a subseqüente morte de seu titular logo após a efetivação desse arranjo temporário, lhe fosse dada a possibilidade de opção entre as duas disciplinas. Adam Smith decide-se pela cadeira outrora ocupada por Hutcheson, para a qual é eleito em abril de 1752 e é como Professor de Filosofia Moral da Universidade de Glasgow, cargo que irá ocupar ininterruptamente até o início de 1764, que se consolidam tanto sua reputação intelectual como seu interesse acadêmico pela Economia. 3 4
5
Para uma discussão mais extensa da estrutura do curso, ver p. 41 et seqs. Um episódio da vida de Adam Smith é ilustrativo dessa afirmação. Por haver sido certa vez surpreendido por um membro da Universidade lendo o Tratado Sobre a Natureza Humana, de David Hume, o grande historiador e livre-pensador contemporâneo, Smith foi severamente repreendido e teve sua cópia do livro confiscada. Cf. RAE, J. Op. cit., p. 24. Era comum que a nobreza britânica, como forma alternativa à educação universitária formal, confiasse a formação superior de seus filhos a preceptores que os acompanhassem às viagens ao exterior, usualmente por um período de dois anos. Os tutores eram regiamente pagos e, na maior parte das vezes, recebiam pensões vitalícias de seus empregadores após o cumprimento da tarefa. 6
ADAM SMITH
A partir daí o crescimento do renome do jovem professor junto à elite intelectual escocesa é quase imediato e Smith passa a participar ativamente dos debates acadêmicos e políticos da época. É admitido às principais sociedades eruditas escocesas — tais como a Edinburgh Society, para a qual é eleito já em 1752, ou a influente Select Society, da qual é fundador (em 1754), e que reunia intelectuais como o grande David Hume e políticos e economistas práticos eminentes como Lauderdale e Townshend — e publica em periódicos de ampla circulação entre a intelligentsia da época, como a Edinburgh Review. É dessa época o desenvolvimento da sua profunda amizade e intimidade com Hume, em casa de quem Smith hospedava-se sempre que visitava Edimburgo, e que duraria até a morte de seu amigo em 1776. O primeiro grande momento de sua carreira literária viria em 1759, com a publicação da Teoria dos Sentimentos Morais, parte inicial de um ambicioso projeto literário que pretendia cobrir todas as áreas tratadas em seu curso de Filosofia Moral e que incluiria ainda um tratado sobre princípios de economia e política econômica — o que viria a ser A Riqueza das Nações — e um tomo final sobre legislação e jurisprudência, que entretanto nunca seria publicado. Do ponto de vista biográfico, a publicação de seu primeiro tratado filosófico teve conseqüências marcantes. Por um lado a obra, republicada cinco vezes durante a vida do autor, marca o início de sua reputação nacional como pensador de primeira grandeza. Por outro lado, leva Townshend, entusiasmado com a performance de Smith, a decidir confiar-lhe a tutoria de seu enteado, o Duque de Buccleugh, tão logo o jovem duque completasse seus estudos secundários e, em fins de 1763, oferece a Smith uma irrecusável pensão vitalícia de 300 libras anuais, o equivalente ao dobro do salário por ele recebido em Glasgow. Adam Smith renuncia a seu posto na Universidade e parte com Buccleugh no início do ano seguinte para uma viagem de dois anos e meio à França. Radicado em Toulouse, onde, “para passar o tempo”,6 começaria a escrever as primeiras notas para sua grande obra, Adam Smith viaja intermitente mas intensamente a partir do segundo semestre de 1764. Visita a região de Bordeaux, realiza um longo tour pelo sul da França e permanece dois meses em Genebra, quando conheceu Voltaire, de quem tornou-se profundo e respeitoso admirador. Em dezembro de 1765 mudou-se para Paris, onde Hume — então Secretário da Legação Britânica e figura prestigiadíssima nos círculos oficiais e intelectuais franceses — lhe abre as portas da corte e dos salões. Adam Smith, já reconhecido intelectualmente em Paris desde a publicação da tradução francesa da Teoria dos Sentimentos Morais no ano anterior, teria aí a oportunidade de acesso ao restrito grupo dos économistes liderados por François Quesnay, o que lhe valeria conhecer a fundo o pensamento fisiocrático — à época, segundo Schumpeter, quase uma façon de salon 6
Carta de Smith a Hume, de 5 de julho de 1764, citada in: RAE, J. Op. cit., pp. 178-179. 7
OS ECONOMISTAS
na alta sociedade parisiense. O contato com os fisiocratas e, especialmente, com Turgot — com quem, segundo Condorcet, Smith manteria correspondência por longo período após seu retorno à Grã-Bretanha — teria grande influência sobre aspectos teóricos fundamentais de A Riqueza das Nações, então ainda apenas em gestação, conforme discutido mais abaixo. Sua estada na França interrompe-se brusca e tragicamente em outubro de 1766 com o assassinato do irmão mais moço de Buccleugh, também sob sua custódia desde fins de 1764, o que o obriga a retornar imediatamente a Londres, onde permanece por seis meses em companhia de Townshend. Durante esse período Smith prepara uma nova edição ampliada de seu primeiro livro, usa o rico acervo bibliográfico londrino para completar anotações para seu segundo livro e assessora seu anfitrião, agora Ministro da Fazenda e dedicado à solução dos candentes problemas relacionados à política fiscal a ser adotada para as colônias americanas. Por fim, aparentemente por discordar do desastroso projeto de Townshend de impor uma tributação adicional sobre as importações americanas de chá e que levaria as colônias à rebelião,7 Smith deixa Londres, retornando à sua cidade natal. Em Kirkcaldy, Adam Smith permaneceria seis anos quase exclusivamente absorvido pela composição de sua magnum opus. Em fins de 1773, completado o manuscrito, viaja novamente para Londres para tratar de sua publicação e receber o título de Fellow da Royal Society, para a qual havia sido eleito alguns anos antes. Entretanto, os pequenos retoques que ainda pretendia fazer no manuscrito acabaram resultando em extensas modificações aos capítulos históricos e adições aos abundantes exemplos práticos que ilustram a obra. Finalmente, a 9 de março de 1776, vem à luz A Riqueza das Nações. A julgar pela enorme influência que A Riqueza das Nações viria a ter como ponto de partida obrigatório inquestionável para o estudo da Economia ao longo de quase todo o século XIX, o impacto imediato de sua publicação não é impressionante. Embora saiba-se que sua primeira edição esgotou-se em seis meses, a tiragem dessa edição é desconhecida e sua repercussão não parece ter ido além do círculo restrito de intelectuais iniciados e políticos esclarecidos. A obra só é mencionada pela primeira vez com peso de autoridade em debates parlamentares por Pitt — o famoso ministro liberal, que havia conhecido Smith em 1787 e se dizia seu discípulo — em 1792. Pouco a pouco, entretanto, apesar da reação conservadora após o início das guerras napoleônicas contra a nova economia e seu uso dos “princípios franceses” do racionalismo liberal, o livro firma seu prestígio e, antes do limiar do novo século, nove edições inglesas já haviam sido dadas a público. Sua difusão no exterior também acelera-se: em 1800 já estavam disponíveis várias edições americanas, versões em francês, alemão, italiano, dinamarquês 7
Sobre isso, ver SCOTT, W. R. “Adam Smith at Downing Street”. In: Economic History Review, 1935. 8
ADAM SMITH
e, mesmo tendo sido inicialmente proibida na Espanha “por sua baixeza de estilo e pela indefinição de seus princípios morais”,8 em espanhol. Adam Smith, entretanto, não viveria o bastante para testemunhar a lenta mas avassaladora influência de seu grande tratado. Logo após a publicação de A Riqueza das Nações ele retorna a Kirkcaldy e, em 1777, é nomeado para um alto cargo na administração aduaneira escocesa. Muda-se então com sua mãe para Edimburgo onde, em Panmure House, sua residência definitiva, cercado por seus mais de 3 mil livros,9 vive uma existência pacata de funcionário público, interrompida esporadicamente por consultas oficiais sobre questões de política comercial e fiscal e enriquecida apenas pelo trabalho intermitente na preparação de adições e correções às sucessivas edições de suas obras. Em 1787 recebe o que seria a última grande honraria de sua vida ao ser nomeado Reitor da Universidade de Glasgow, cargo que ocupa por dois anos consecutivos. Por fim, já após seu retorno permanente a Edimburgo, Adam Smith adoece e vem a falecer em 17 de julho de 1790, aos 67 anos de idade. 2. A RIQUEZA
DAS
NAÇÕES
A importância da grande obra econômica de Adam Smith é usualmente definida pelos efeitos de sua influência como, alternativamente, o marco do início do enfoque científico dos fenômenos econômicos ou a Bíblia da irresistível vaga livre-cambista do século XIX. Embora ambas as definições sejam apropriadas, é interessante que, preliminarmente à discussão desses aspectos metodológicos e políticos de A Riqueza das Nações, seja apresentado um roteiro de seus principais aspectos teóricos e normativos de modo a fornecer ao leitor uma visão integrada do conjunto de suas proposições analíticas, das quais a obra deriva sua característica adicional de fonte dos paradigmas teóricos sobre os quais foi construída a Economia Política clássica. Do ponto de vista formal, a teoria econômica apresentada em A Riqueza das Nações é essencialmente uma teoria do crescimento econômico cujo cerne é clara e concisamente apresentado em suas primeiras páginas: a riqueza ou o bem-estar das nações é identificado com seu produto anual per capita que, dada sua constelação de recursos naturais, é determinado pela produtividade do trabalho “útil” ou “produtivo” — que pode ser entendido como aquele que produz um excedente de valor sobre seu custo de reprodução — e pela relação entre o número de trabalhadores empregados produtivamente e a população total. Embora Smith atribuísse explicitamente maior importância ao primeiro desses determinantes como fator causal, a dinâmica de seu modelo de crescimento pode ser melhor entendida em termos do que Myrdal ba8 9
RAE, J. Op. cit., pp. 360-361. Sobre a biblioteca de Adam Smith, ver YANAIHARA, Y. A Full and Detailed Catalogue of Books which Belonged to Adam Smith, Londres, 1961; ou o excelente ensaio de VINER, Jacob. In: VINER, J. Op. cit., p. 117 et seqs. 9
OS ECONOMISTAS
tizou de um processo de “causalidade circular cumulativa” e, em seus traços essenciais, consiste no seguinte: o crescimento da produtividade do trabalho, que tem origem em mudanças na divisão e especialização do processo de trabalho, ao proporcionar o aumento do excedente sobre os salários permite o crescimento do estoque de capital, variável determinante do volume de emprego produtivo; a pressão da demanda por mão-de-obra sobre o mercado de trabalho, causada pelo processo de acumulação de capital, provoca um crescimento concomitante dos salários e, pela melhora das condições de vida dos trabalhadores, da população; o aumento paralelo do emprego, salários e população amplia o tamanho dos mercados que, para um dado estoque de capital, é o determinante básico da extensão da divisão do trabalho, iniciando-se assim a espiral de crescimento. Da representação esquemática esboçada acima não se deve inferir, entretanto, que Smith sustentasse uma visão essencialmente otimista do processo de crescimento a longo prazo. Segundo ele, o crescimento econômico não somente dependeria de fatores institucionais que afetassem tanto a propensão a investir — como a existência de garantias à propriedade e os regimes legais ou consuetudinários de posse e uso da terra — quanto a extensão do mercado — como a existência de restrições ao comércio — mas, ainda que sob sistemas ideais de Governo, não deveria sustentar-se indefinidamente. O estado estacionário, no qual a acumulação líquida de capital tenderia a desaparecer, embora logicamente não necessário, era visto por ele como resultado inevitável da redução da taxa de lucro — incentivo básico à acumulação — pela exaustão das oportunidades de investimento e pelo crescimento dos salários conseqüente a um rápido e sustentado aumento do estoque de capital. A estrutura teórica de seu “modelo” de crescimento é cuidadosamente desenvolvida nos dois primeiros dos cinco livros em que se divide a obra. O Livro Primeiro discute os determinantes do crescimento da produtividade do trabalho e da distribuição funcional da renda, que regulam o excedente total disponível e, portanto, o potencial de acumulação de capital. Dada a importância atribuída por Smith à divisão social do trabalho, o Livro se inicia com a discussão de sua relação com a propensão inata do homem à troca e com o processo de crescimento econômico (Capítulos I e II) e dos limites impostos à sua extensão (Capítulo III). A relação direta notada por Smith entre a divisão do trabalho e o grau de mercantilização das relações econômicas leva ao estudo das conseqüências da difusão do uso da moeda como meio de troca (Capítulo IV). A introdução da moeda como numerário geralmente aceito coloca o problema da comparação intertemporal de valores e a necessidade da discussão das diferenças entre preços nominais e reais (Capítulo V). A teoria dos preços é apresentada em seguida (Capítulos VI e VII), distinguindo-se o preço de mercado, determinado pela interação instantânea entre “demanda efetiva” e oferta, e o que Smith 10
ADAM SMITH
chama de preço natural10 equivalente aproximado do preço normal de longo prazo da microeconomia marshalliana —, que é a medida de valor relevante para a análise do processo de crescimento desenvolvida na obra, determinado pela soma dos níveis naturais das remunerações do trabalho, do capital e da terra envolvidos no processo produtivo de cada mercadoria. Os preços de mercado e os preços naturais estão, contudo, intimamente relacionados: na ausência de imobilidade de capital (por efeito, por exemplo, de restrições legais ou insuficiência de informação) os preços de mercado gravitam estavelmente em torno dos preços naturais sob a influência de inúmeros fatores conjunturais mas, ao longo de um período suficientemente longo de tempo, devem ser suficientes para cobrir a remuneração normal dos fatores de produção empregados. É interessante notar nesse ponto que, embora acessória à preocupação central da obra, a teoria do valor apresentada em A Riqueza das Nações iluminou sob vários ângulos o fenômeno da formação de preços. Por um lado, na análise da inter-relação dos preços naturais e de mercado, Smith elaborou o fundamento da teoria da dinâmica de mercado, incorporada pelos economistas clássicos e refinada posteriormente por Marshall, isto é, a noção de que o ajustamento de oferta e demanda se dá através de variações no emprego dos fatores — no caso da teoria de Smith e dos clássicos, essencialmente do capital — provocadas pelo efeito de excessos ou insuficiências de oferta, via preços, sobre suas remunerações, introduzindo, de passagem, a noção do papel fundamental dos preços para a alocação de recursos. Por outro lado, a teoria do valor de Adam Smith provoca o abandono da análise, então tradicional, do fenômeno do valor de troca apoiada em considerações sobre demanda/valor de uso e escassez, cuja utilidade é confinada por Smith ao estudo dos preços de mercado, e é o ponto de partida do enfoque clássico do valor baseado em custos de produção, que revela a ligação direta existente entre o sistema de preços e os fenômenos da produção e distribuição. Esse enfoque do problema da formação de preços dominaria completamente o pensamento econômico até a revolução marginalista-utilitarista de um século depois. A formulação da teoria do preço natural se completa com o estudo dos níveis naturais de remuneração dos fatores. A determinação dos salários, discutida no Capítulo VIII, resulta, como indicado acima, da interação entre investimento e população. Os lucros, analisados no Capítulo IX, são determinados pelo tamanho do estoque de capital dada uma taxa exógena de juros, ajustada para levar em conta o risco empresarial. O Capítulo X discute os diferenciais de salários e lucros existentes em diferentes empregos de trabalho e capital e, finalmente, a renda da terra, entendida como um excedente determinado pelo preço dos produtos do solo, dados os níveis de salários e lucros, é analisada 10
Sobre o conteúdo filosófico do adjetivo natural em Smith, ver item 3. 11
OS ECONOMISTAS
no Capítulo XI. Esse capítulo, que conclui o Livro Primeiro, contém ainda uma longa digressão empírica, associada aos problemas teóricos discutidos no Capítulo V, sobre as variações históricas do valor dos metais nos quatro séculos anteriores. Nenhum comentário sobre o Livro Primeiro de A Riqueza das Nações pode omitir menção às inconsistências formais da análise do valor nele apresentada, fruto da profunda imprecisão verbal de Smith em seu Capítulo V e fonte de controvérsias que tornaram ainda mais obscura a essência da teoria smithiana dos preços. A origem dessas controvérsias é a famosa crítica de Ricardo à afirmativa feita por Smith no Capítulo V de que o valor de um bem é igual à quantidade de trabalho pela qual ele pode ser trocado ou comandar indiretamente, como inconsistente com a teoria do valor trabalho — pela qual o valor de troca de um bem é determinado pela quantidade direta e indireta de trabalho necessária à sua produção — segundo ele defendida por Smith em outros pontos da obra.11 De fato, uma leitura atenta do Capítulo V, onde Smith discute a influência das flutuações no valor do dinheiro sobre os preços reais e nominais das mercadorias, mostra que, embora proponha o uso do trigo como deflator por razões empíricas,12 defende categoricamente a idéia de que a única medida invariante do valor de um bem é a quantidade de trabalho despendida em sua produção, com base na hipótese psicológica da invariabilidade da “desutilidade” ou custo real do trabalho para o trabalhador.13 Dessa hipótese, e do fato de que Smith ali conduz a análise com referência a uma economia de produtores individuais, na qual o processo de troca é motivado apenas pela conveniência da divisão social do trabalho, resulta que uma dada quantidade de um bem só possa vir a ser trocada por quantidades de outros bens que seu vendedor suponha conter uma quantidade de trabalho equivalente à necessária à sua produção.14 É esse resultado que o leva a afirmar que o valor de um bem é sempre igual à quantidade de trabalho, que ele pode comprar, ou ser trocado, ou “comandar”. É claro, contudo, que essa afirmativa é inconsistente com a realidade de uma economia caracterizada pela apropriação privada dos meios de produção e trabalho assalariado, onde a produção não vise somente a troca mas o lucro, e, portanto, com a análise do valor natural feita por Smith no capítulo seguinte. A validade da proposição, nesse contexto, necessitaria, como notou Ricardo, da hipótese institucionalmente absurda de que os trabalhadores se apropriassem do valor total do produto. Deve ser notado, entretanto, que essa afir11 12
13 14
Para a crítica de Ricardo, ver RICARDO, D. Princípios de Economia Política e Tributação. São Paulo, Abril S.A. Cultural e Industrial, 1982, capítulo I. Para uma interessante interpretação das razões que o levaram a fazer essa proposta, ver SYLOS-LABINI, P. “Competiton: The Product Markets”. In: WILSON, T. e SKINNER, A. S. (eds.). The Market and the State: Essays in Honour of Adam Smith, Oxford, 1976, p. 204 et seqs. Ver p. 93. Id. 12
ADAM SMITH
mativa destacada por Ricardo e ainda erradamente apresentada por alguns autores como sendo a teoria do valor de Smith, não constitui sequer uma teoria dos preços, pois não se refere ao que determina os preços, ou seja, nenhuma explicação é dada sobre por que o valor de um bem deve ser tal que possa ser trocado por uma dada quantidade de trabalho. Além disso, apesar das imprecisões verbais, o comentário equívoco de Smith sobre o custo real do trabalho como medida de valor de troca não deve ser tomado como evidência de sua aceitação do princípio quantitativo de determinação dos preços característicos da teoria do valor trabalho. Uma simples inspeção das páginas iniciais do Capítulo VI é suficiente para evidenciar que Smith restringe a validade da teoria do valor trabalho aos limites quase pré-históricos dos “estados rudes e primitivos da sociedade”, onde não teria ainda ocorrido significativa acumulação de capital ou apropriação privada da terra e de que sua verdadeira teoria do valor é baseada em custos de produção e fundamenta-se na noção de que em “sociedades civilizadas” a remuneração do capital e da terra influencia a formação dos preços. A controversa afirmativa do Capítulo V pode ser interpretada, como sugere Meek, apenas como uma proposição qualitativa e abstrata sobre o trabalho como fonte do valor no sentido de que o valor de troca de mercadorias surge em sociedades caracterizadas pelo intercâmbio dos produtos de indivíduos, somente em virtude do fato de serem elas resultantes do trabalho desses indivíduos.15 O Livro Segundo analisa as condicionantes e características da acumulação de capital, que determina a oferta de emprego produtivo e sua distribuição setorial, e contém a maior parte da teoria monetária de Smith. No Capítulo I é apresentada e ilustrada a divisão analítica, tornada clássica posteriormente, entre capital fixo e circulante. O papel da moeda e do crédito na circulação de mercadorias e na acumulação de capital é estudado no Capítulo II. No Capítulo III, o mais importante do Livro Segundo sob o aspecto teórico, é discutido o conceito de trabalho produtivo e articulada a proposição de que é o volume de poupanças, limitado pelo volume do excedente gerado acima das necessidades de auto-reprodução do sistema econômico e determinado pela parcimônia dos agentes produtivos, a causa imediata do aumento do estoque de capital; como Smith sugere implicitamente que a cada ato de poupança está associada uma decisão de investimento, os problemas de insuficiência de demanda efetiva são ignorados por hipótese. O Capítulo IV apresenta a teoria dos juros e o Capítulo V conclui com uma análise factual e algo idiossincrática da produtividade do capital em diferentes setores. O Livro Terceiro contém uma síntese abrangente da evolução econômica da humanidade, muito influenciada pela longa História da Ingla15
MEEK, R. L. Studies in the Labour Theory of Value, 2ª ed., Londres, 1973, p. 62. 13
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terra de Hume, e constitui, no contexto da obra, o teste empírico-histórico da teoria do crescimento econômico apresentada anteriormente. Por fim, os Livros Quarto e Quinto enfeixam as proposições normativas, de legislação e política econômica. No primeiro, Smith discute longamente os fundamentos das políticas comercial e colonial mercantilistas, de onde emerge sua crítica devastadora sobre a racionalidade econômica da superestrutura jurídica do antigo sistema colonial (Capítulos I a VIII) e conclui com considerações sobre as propostas dos fisiocratas (Capítulo IX), onde Adam Smith não esconde sua enorme simpatia e respeito intelectual, embora qualificado, pela escola francesa. O Livro Quinto trata de política fiscal, analisando as políticas de gasto público, onde desenvolve interessante discussão das vantagens e desvantagens da intervenção do Estado em diferentes áreas de atividade (Capítulo I), de tributação (Capítulo II) e, finalmente, da dívida pública (Capítulo III). 3. O HOMEM
E A
OBRA
EM
PERSPECTIVA HISTÓRICA
A obra econômica de Adam Smith é tão profundamente impregnada pelas preconcepções filosóficas correntes na Inglaterra do período das luzes e pelo cenário econômico da época em que foi concebida que, passados mais de dois séculos da publicação de A Riqueza das Nações, é impossível avaliar corretamente sua contribuição intelectual sem referência a essas influências. Um entendimento preciso da filosofia e do método subjacentes a A Riqueza das Nações requer que se recuperem os traços essenciais da formação intelectual extremamente eclética de Smith. A influência original e mais marcante sobre Smith foi a de seu mestre Hutcheson, herdeiro em linha direta de sucessão dos filósofos protestantes, como Grotius e Pufendorf, da Filosofia do Direito Natural. Para os propósitos da presente discussão, o jusnaturalismo pode ser definido como uma teologia racionalista que afirma existir uma ordem natural e harmônica do universo, de origem divina mas revelada pela razão, da qual se podem derivar princípios morais e de direito a partir da noção de que a ordem natural inclui normas éticas às quais a conduta individual e a legislação devem obedecer para o cumprimento da vontade divina. Entretanto, apesar de ser questionável que o traço unificador da concepção de mundo de Smith deriva da Filosofia do Direito Natural, ele veio a divergir das formulações mais ortodoxas do jusnaturalismo em dois importantes sentidos. Por um lado, influenciado diretamente por seu amigo Hume e inspirado na ciência experimentalista inglesa e na obra de Montesquieu, Smith abandonou o método racionalista do jusnaturalismo tradicional por uma metodologia essencialmente empiricista, isto é, pela noção de que a ordem natural subjacente à organização do universo não podia ser apreendida aprioristicamente através apenas do raciocínio abstrato dedutivo, mas que sua revelação deveria proceder através da construção de “sistemas” ou modelos baseados em princípios gerais obtidos por indução de observações empíricas, a partir dos quais a lógica dos fenômenos universais poderia ser casual ou racionalmente 14
ADAM SMITH
deduzida.16 Por outro lado, já na Teoria dos Sentimentos Morais, Smith afasta-se decisivamente da componente altruísta do jusnaturalismo de Hutcheson no que concerne à análise da ética das relações econômicas, propondo em seu lugar a justificativa moral da defesa do interesse próprio nessa esfera das relações humanas, com base na idéia de que da busca do interesse individual resultam benefícios sociais, noção já exposta de forma contundente por Mandeville em sua Fábula das Abelhas, publicada entre 1714 e 1729. É da conjugação dessas influências filosóficas e metodológicas que emergem duas concepções pioneiras e revolucionárias contidas em A Riqueza das Nações. A primeira é a análise dos fenômenos econômicos como manifestações de uma ordem natural a eles subjacente, governada por leis objetivas e inteligíveis através de um sistema coordenado de relações causais. Dessa noção de sistema econômico, partilhada por Smith apenas com os fisiocratas, dentre seus contemporâneos, resultou nada menos do que a elevação da Economia à categoria de ciência, por identidade de método e fundamento filosófico com as ciências naturais existentes, rompendo com a tradição metafísica e com a polêmica empiricista vulgar que caracterizam, respectivamente, os escritos econômicos escolásticos e mercantilistas anteriores. A segunda é a doutrina segundo a qual essa ordem natural requer, para sua operação eficiente, a maior liberdade individual possível na esfera das relações econômicas, doutrina cujos fundamentos racionais são derivados de seu sistema teórico, já que o interesse individual é visto por ele como a motivação fundamental da divisão social do trabalho e da acumulação de capital, causas últimas do crescimento do bem-estar coletivo. Deve-se notar entretanto que, ao contrário do que sugerem tanto a lógica obscura da crítica radical vulgar quanto a exegese ideológica liberal-conservadora contemporânea, a defesa qualificada que Smith faz ao laissez-faire não o classifica nem como apóstolo do interesse burguês e pregador da harmonia de interesses entre as classes sociais como querem os primeiros, nem como defensor empedernido da iniciativa privada e inimigo à outrance da interferência do Estado, como querem os últimos. Mesmo uma leitura perfunctória da obra é suficiente para revelar, de um lado, a flagrante simpatia com que Smith se refere aos economicamente desprotegidos e seu reconhecimento explícito das contradições de classe17 e, de outro lado, sua ênfase nos limites impostos à liberdade econômica por princípios naturais de justiça e suas opiniões sobre a ampla gama de serviços úteis mas não atraentes para a iniciativa privada que caberia ao Estado prover.18 A doutrina da liberdade natural de Adam Smith é dirigida, isto sim, contra as interferências da legislação e 16 17 18
Sobre esse aspecto da evolução do pensamento filosófico de Smith, ver BITTERMANN, H. J. “Adam Smith’s Empiricism and the Law of Nature”. In: Journal of Political Economy, 1940. Ver p. 223 et seqs. Ver Capítulo I. Livro Quinto. 15
OS ECONOMISTAS
das práticas exclusivistas características do mercantilismo que, segundo ele, restringem a operação benéfica da lei natural na esfera das relações econômicas. É disso que a doutrina derivou seu apelo político e veio a constituir-se no fundamento teórico do programa dos estadistas livre-cambistas em todo o mundo que, no século seguinte, acabaria por reduzir a ruínas o ordenamento jurídico da antiga ordem econômica internacional. A análise, feita acima, das influências filosóficas sofridas por Smith, conquanto permita entender o método por ele adotado e a coerência abstrata entre o sistema teórico e as proposições normativas liberais contidas em A Riqueza das Nações, é insuficiente para explicar as características do modelo econômico apresentado na obra, isto é, a escolha do crescimento econômico como variável a ser explicada e a especificação teórica das relações entre as principais variáveis do modelo. Parte dos nexos de sua construção teórica deriva, é claro, de influências de outros economistas. Smith, como qualquer autor, simplesmente se utilizou do avanço proporcionado pelos trabalhos de seus predecessores. Por exemplo, a essência de sua teoria dos diferenciais de salários em diferentes ocupações é de Cantillon; grande parte da teoria monetária apresentada no Livro Segundo deriva de Hume, Harris e Davenant; suas discussões sobre comércio internacional e tributação devem muito a Hume e Petty, respectivamente; a noção fundamental da importância da divisão do trabalho para o progresso material, já formulada por Locke e Petty, Smith recebeu de Hutcheson; e aos fisiocratas Adam Smith deve nada menos do que (i) a percepção da importância do estudo da distribuição funcional da renda em ligação com a formação de preços,19 parte essencial da teoria do valor exposta em A Riqueza das Nações, (ii) a libertação da noção mercantilista de que a riqueza ou o bem-estar potencial depende do estoque de metais ou do balanço comercial do país, em favor da noção moderna de produto e renda, (iii) o conceito de trabalho produtivo, embora aqui Smith se desvencilhasse da doutrina fisiocrática de produtividade exclusiva da agricultura, e (iv) a idéia de um fluxo circular de renda e produto.20 19
20
Isso foi evidenciado com a descoberta e publicação por Cannan, em 1896, de um conjunto de notas de aula tomado por um aluno de Adam Smith em Glasgow, portanto antes de sua viagem à França, que não contém qualquer referência a problemas distributivos e onde a teoria dos preços ainda segue a linha, por ele herdada de Hutcheson, de análise baseada em escassez e “demanda efetiva”. Ver SMITH, A. Lectures on Justice, Police, Revenue and Arms delivered in the University of Glasgow Reported by a Student in 1763. CANNAN, Edwin (ed.) Oxford, 1896. A influência de Turgot sobre a teoria do capital de Smith, também deve ser mencionada como uma possibilidade. O argumento de Cannan de que as teorias do capital de Smith e Turgot, embora similares, foram desenvolvidas independentemente, não deve ser tomado como definitivo pois, como mostrado por Viner, antes da publicação de A Riqueza das Nações, Smith já possuía os números das Éphémérides du Citoyen, o jornal dos fisiocratas onde a teoria de Turgot foi primeiro publicada. Ver VINNER, J. Op. cit., pp. 131-132. De qualquer modo, não há dúvida de que a idéia de que a poupança resulta de decisões de adiar o consumo e proporciona o crescimento do estoque de capital é de origem francesa. Ver, sobre isso, também GROENEWEGEN, P. D. “Turgot and Adam Smith”. In: Scottish Journal of Political Economy, 1969. 16
ADAM SMITH
Entretanto, dado o método essencialmente empiricista de Smith, os traços essenciais de seu modelo — a ênfase no crescimento econômico como o fenômeno a ser explicado e o crescimento de produtividade e acumulação de capital como suas causas finais — devem ser buscados nos fatos da história econômica da Inglaterra e da Baixa Escócia no século XVIII, onde o excelente desempenho da agricultura, a substancial melhoria do sistema de transporte e o grande crescimento da indústria têxtil rural, das manufaturas e do comércio propiciaram um progresso material sem precedentes. Glasgow, onde Smith passou a maior parte de sua vida adulta antes de iniciar a composição de sua grande obra, recebeu ainda o estímulo adicional da abertura dos mercados coloniais ingleses a mercadorias escocesas após a união da Escócia ao Governo de Westminster na primeira década do século, que transformou a região do estuário do Clyde no maior empório europeu de tabaco e proporcionou o desenvolvimento do núcleo da futura grande siderurgia escocesa e de inúmeras outras indústrias. Smith não ficou alheio a essa transformação. Grande parte de seu círculo de amizades em Glasgow era composta de homens de negócio da região21 e não é difícil, portanto, identificar na percepção direta dos fenômenos que acompanharam o processo acelerado de crescimento econômico britânico — aumento de produtividade, acumulação de capital, melhoria dos padrões de vida e crescimento populacional — a fonte de inspiração empírica de sua obra. Seu toque genial decorre, entretanto, da percepção das conseqüências analíticas da paralela e acelerada generalização dos métodos capitalistas de organização da produção, do progressivo aumento da competição e da maior mobilidade de capital entre as diferentes ocupações: o surgimento do lucro na agricultura e na transformação industrial como forma estável e quantitativamente significativa do excedente e teoricamente distinta das outras parcelas distributivas no que concerne a sua formação, e o papel da taxa de lucro na orientação dos investimentos como peça essencial do ajustamento dinâmico nesse novo contexto. É a incorporação desses fatos históricos em uma teoria do lucro e da alocação de capital em seu modelo que constitui a grande contribuição de Smith ao desenvolvimento da Economia Política clássica e o traço distintivo entre Smith e outros economistas do período final do mercantilismo — como Steuart, que associava os lucros aos ganhos comerciais, Petty, que os incorporava à renda, ou Hume e Cantillon, que os identificavam analiticamente com os salários — ou os fisiocratas, que simplesmente ignoravam sua existência, identificando o excedente sobre os salários com a renda fundiária. Essa teoria, como outras proposições teóricas revolucionárias na história do pensamento econômico, não poderia ser postulada antes que se explicitassem certos fenômenos sócio-econômicos cuja explicação motiva o surgimento de novos paradigmas teóricos. Nesse sentido, con21
Sobre isso, ver SCOTT, W. R. “Adam Smith and the Glasgow Merchants”. In: The Economic Journal, 1934. 17
OS ECONOMISTAS
siderada em perspectiva histórica, A Riqueza das Nações não é somente produto de um intelecto poderoso e do fermento intelectual do Iluminismo inglês, mas é também produto do desenvolvimento histórico do capitalismo. 4. SMITHIANA A seção conclusiva deste breve ensaio introdutório tem a intenção de fornecer uma orientação bibliográfica inicial ao leitor interessado em prosseguir no estudo da obra de Adam Smith. A edição moderna das obras completas de Smith é a The Glasgow Edition of the Works and Correspondence of Adam Smith, patrocinada pela Universidade de Glasgow e editada pela Oxford University Press para comemorar o bicentenário da publicação de A Riqueza das Nações. A coleção reúne The Theory of Moral Sentiments (ed. por D. D. Raphael e A. L. Macfie), An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations (ed. por R. H. Campbell, A. S. Skinner e W. B. Todd), Essays on Philosophical Subjects (ed. por W. P. D. Wightman), Lectures on Rethoric and Belles Lettres (ed. por J. C. Bryce), Lectures on Jurisprudence (ed. por R. L. Meek, D. D. Raphael e P. G. Stein) que apresenta, além das notas das aulas de Smith descobertas e publicadas por Cannan em 1896, um conjunto inédito de notas de aula descobertas por J. M. Lothian em Aberdeen em 1958 e fragmentos de escritos econômicos de Adam Smith anteriores à publicação de A Riqueza das Nações, Correspondence of Adam Smith (ed. por E. C. Mossner e I. S. Ross) e é acompanhada por uma nova Life of Adam Smith, escrita por I. S. Ross e por uma coletânea de ensaios sobre a obra de Adam Smith, The Market and the State: Essays in Honour of Adam Smith (ed. por T. Wilson e A. S. Skinner). Para a localização da obra de Smith no contexto do pensamento econômico e filosófico de sua época, a Parte II de J. A. Schumpeter, History of Economic Analysis, Londres, 1954, ainda não tem rival, assim como para uma visão de conjunto da obra econômica de Smith o artigo de E. Cannan, “Adam Smith as an Economist”, in: Economica, 1926, ainda é um clássico. As origens e a evolução do pensamento filosófico e do método de Smith são discutidas em dois artigos de O. H. Taylor, “Economics and The Idea of Natural Laws” e “Economics and the Idea of Jus Naturale”, in: Quarterly Journal of Economics, 1929-1930; por J. Viner, em “Adam Smith and Laissez-Faire”, in: Viner, J., The Long View and the Short, Glencoe, 1958; por W. F. Campbell em “Adam Smith’s Theory of Justice, Prudence and Beneficence”, in: American Economic Review (supl.), 1967; por N. Devletogou em “Montesquieu and the Wealth of Nations”, in: Canadian Journal of Economics, 1963; por A. S. Skinner em “Economics and History: The Scottish Enlightenment”, in: Scottish Journal of Political Economy, 1965, e no artigo de Bittermann citado no item 3, acima. A teoria smithiana do crescimento econômico, sua relação com 18
ADAM SMITH
teorias contemporâneas e sua influência sobre o pensamento clássico são apresentadas de forma simples e magistral por Lord Robbins em The Theory of Economic Development in the History of Economic Thought, Londres, 1968. A evolução da noção smithiana de valor na direção de uma teoria de custos de produção é discutida por H. M. Robertson e W. L. Taylor em “Adam Smith’s Approach to the Theory of Value”, in: The Economic Journal, 1957. As teorias da distribuição apresentadas por Smith e sua influência sobre o pensamento clássico inglês são analisadas em E. Cannan, A History of the Theories of Production and Distribution from 1776 to 1848, 3ª edição, Londres, 1917. A noção de competição exposta em A Riqueza das Nações, que difere em vários aspectos da noção moderna de competição perfeita, é discutida por P. J. McNulty em “A Note on the History of Perfect Competition”, in: Journal of Political Economy, 1967. As teorias do comércio internacional de alguns predecessores livre-cambistas e sua influência sobre Adam Smith são discutidas em J. Viner, Studies in the Theory of International Trade, e a questão da influência dos fisiocratas é analisada por R. L. Meek, em The Economics of Phisiocracy, Londres, 1962. O leitor deve precaver-se, entretanto, de que as referências exegéticas citadas acima formam apenas uma amostra extremamente seletiva da vastíssima literatura sobre a obra de Smith22 e de que A Riqueza das Nações ilustra de forma perfeita o dito usual de que, no estudo da história do pensamento econômico, nada substitui o original. Winston Fritsch
WINSTON FRITSCH (Rio de Janeiro, 1947 - ) é Professor e Pesquisador do Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da qual foi Diretor.
22
Uma extensa bibliografia de 450 itens, publicada por 1950 por B. Franklin e F. Cordasco omite, segundo Blaug, várias referências. Ver BALUG, M. Economic Theory in Retrospect. Londres, 1961. p. 65. Desde então, especialmente por ocasião do bicentenário da publicação de A Riqueza das Nações, vieram à luz inúmeros outros trabalhos. 19
A RIQUEZA
DAS
NAÇÕES*
INVESTIGAÇÃO SOBRE SUA NATUREZA E SUAS CAUSAS
Com a Introdução de Edwin Cannan
VOLUME I Tradução de Luiz João Baraúna
*
Traduzido de SMITH, Adam. An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Edited by Edwin Cannan. Dois volumes em um. Chicago, The University of Chicago Press, 1976. (N. do E.)
INTRODUÇÃO
DE
EDWIN CANNAN
A 1ª edição de A Riqueza das Nações foi publicada em 9 de março23 de 1776, em dois volumes in-quarto, sendo que o primeiro deles, contendo os Livros Primeiro, Segundo e Terceiro, tem 510 páginas de texto, e o segundo, que contém os Livros Quarto e Quinto, 587. A página do título descreve o autor como sendo “Adam Smith, LL. D. e F. R. S., ex-professor de Filosofia Moral na Universidade de Glasgow”. A edição não tem prefácio nem índice. Os itens que compõem o conteúdo integral da obra constam no início do Volume I. O preço era de 1 libra e 16 xelins.24 A 2ª edição foi publicada no início de 1778, sendo vendida ao preço de 2 libras e 2 xelins.25 A aparência difere pouco da 1ª edição. A paginação das duas edições coincide quase por inteiro, e a única diferença bem visível é que o índice de matérias, na 2ª edição, está dividido entre os dois volumes. Todavia, há grande número de pequenas diferenças entre a 1ª e a 2ª edição. Uma das menores, a alteração de “antigo” para “atual”,26 chama nossa atenção para o fato curioso de que, escrevendo antes da primavera de 1776, Adam Smith considerou seguro escrever “os últimos distúrbios”,27 referindo-se aos distúrbios americanos. Não podemos dizer se ele achava que os distúrbios já haviam efetivamente ocorrido ou se somente podia supor com segurança que ocorreriam antes que o livro saísse do prelo. Uma vez que “distúrbios presentes” também ocorre perto de “últimos distúrbios”,28 podemos talvez conjecturar que, ao corrigir as provas no inverno de 1775/76, tenha mudado de opinião e só deixou escapar “últimos” por engano. Grande parte das alterações são puramente verbais, feitas visando a maior elegância ou propriedade de expressão, tais como a mudança de “tear and wear” — que ocorre também e m Lectures, p. 208 — para a expressão mais comum “wear and tear”. A maioria das notas de rodapé aparece pela primeira vez na segunda edição. Depa23 24 25 26 27 28
RAE, John. Life of Adam Smith, 1895, p. 284. Ibid., p. 285. Ibid., p. 324. The Wealth of Nations, Ed. Cannan, 1976, v. I, p. 524; v. II, p. 575. Ibid., v. II, p. 90, bem como as passagens referidas na nota anterior. Ibid., v. II, pp. 85, 98, 130. 23
OS ECONOMISTAS
ramos com algumas correções de conteúdo, tais como a relacionada com a porcentagem do imposto sobre a prata na América espanhola (v. I, pp. 188, 189). As cifras são corrigidas no volume I, p. 366, e no volume II, pp. 418, 422. Aqui e acolá acrescenta-se alguma informação nova: na longa nota à página 330 do volume I descreve-se uma forma adicional de recolher dinheiro mediante notas fictícias; acrescentam-se os detalhes de Sandi quanto à introdução da manufatura da seda em Veneza (v. I, p. 429); da mesma forma, os cálculos de imposto sobre criados na Holanda (v. II, p. 385), e a menção de uma importante característica — embora muitas vezes esquecida — do imposto sobre o solo, ou seja, a possibilidade de nova taxação dentro da freguesia (v. II, p. 371). A segunda edição apresenta algumas alterações interessantes na teoria referente à emergência de lucro e renda fundiária de condições primitivas; aliás o próprio Smith provavelmente se surpreenderia com a importância que certos pesquisadores modernos atribuem a esses itens (v. I, pp. 53-56). No volume I, pp. 109 e 110, é totalmente novo o falacioso argumento para provar que os altos lucros fazem os preços subirem, mais do que altos salários, embora a doutrina, como tal, seja afirmada em outra passagem (v. II, p. 113). A inserção, na segunda edição, de algumas referências especiais no volume I, pp. 217 e 349, que não ocorrem na 1ª edição, talvez sugira que as Digressões sobre as Leis referentes aos cereais e ao Banco de Amsterdam representavam acréscimos um tanto tardios ao esquema da obra. Na 1ª edição, a cerveja é um artigo necessário em um lugar, e um artigo de luxo em outro, ao passo que na 2ª edição nunca é considerada como um artigo necessário (v. I, p. 488; v. II, p. 400). A condenação epigramática da Companhia das Índias Orientais no volume II, p. 154, aparece pela primeira vez na 2ª edição. No volume II, à p. 322, observamos que “Católico Romano” é substituído por “Cristão”; e os puritanos ingleses, que eram “perseguidos” na 1ª edição, são apenas objeto de “restrições” na 2ª (v. II, p. 102) — divergências em relação ao ponto de vista ultraprotestante, talvez devidas à influência póstuma de Hume sobre seu amigo. Entre a 2ª edição e a 3ª — esta, publicada na final de 178429 — há diferenças consideráveis. A 3ª edição se apresenta em três volumes in-octavo, sendo que o primeiro vai até ao capítulo II do Livro Segundo e o segundo vai dali até o fim do capítulo sobre as colônias, capítulo VIII do Livro Quarto. A essa altura, Adam Smith já não via mais objeção — como ocorria em 1778 — em acrescentar aos seus títulos30 seu cargo na Alfândega, apresentando-se, portanto, na página do título, como “Adam Smith, LL. D. e F.R.S. de Londres e Edimburgo: um dos comissários da Alfândega de Sua Majestade na Escócia; e ex-professor de Filosofia Moral na Universidade de Glasgow”. O editor é: “London: impresso para a Strahan; e T. Cadell, in the Strand”. Essa 3ª edição 29 30
RAE, Op. cit., p. 362. Ibid., p. 323. 24
ADAM SMITH
era vendida por 1 guinéu.31 Ela é precedida pela seguinte “Advertência para a 3ª edição”: “A 1ª edição da presente obra foi impressa no fim de 1775 e começo de 1776. Em virtude disso, através da maior parte do livro, toda vez que se fizer menção do presente estado de coisas, entenda-se isto com referência ao estado vigente em torno do período em que eu estava escrevendo a obra, ou em algum período anterior. Entretanto, nessa32 3ª edição fiz vários acréscimos, particularmente no capítulo referente aos drawbacks e no referente aos subsídios; acrescentei também um novo capítulo intitulado A conclusão do sistema mercantil, e um novo artigo ao capítulo sobre as despesas do Soberano. Em todas esses acréscimos, o presente estado de coisas designa sempre o estado de coisas durante o ano de 1783 e no início do presente33 ano de 1784". Confrontando a 2ª edição com a 3ª, verificamos que os acréscimos feitos à 3ª são consideráveis. Como observa o Prefácio ou “Advertência”, que acabamos de transcrever, o capítulo intitulado “Conclusão do Sistema Mercantil” (v. II, pp. 159-181) é totalmente novo, o mesmo acontecendo com a secção “As obras e instituições públicas necessárias para facilitar setores especiais do comércio” (v. II, pp. 253-282). Aparecem pela primeira vez na 3ª edição também os seguintes tópicos ou itens: certas passagens do Livro Quarto, capítulo III, sobre o caráter absurdo das restrições ao comércio com a França (v. I, pp. 496-497; e pp. 521522), as três páginas perto do início do Livro Quarto, capítulo IV, sobre os detalhes de vários drawbacks (v. II, pp. 4-7), os dez parágrafos sobre o subsídio para a indústria do arenque (v. II, pp. 24-29) com o apêndice sobre o mesmo assunto (pp. 487-489), e uma parte da discussão sobre os efeitos do subsídio para os cereais (v. II, pp. 13-14). Juntamente com vários outros acréscimos e correções de menor porte, essas passagens foram impressas em separado in-quarto, sob o título “Acréscimos e correções à 1ª e 2ª edições da Investigação do Dr. Adam Smith sobre a natureza e as causas da riqueza das nações”.34 Escrevendo a Cadell em dezembro de 1782, Smith diz o seguinte: “Dentro de dois ou três meses espero enviar-lhes a 2ª edição corrigida em muitas passagens, com três ou quatro acréscimos consideráveis, sobretudo ao segundo volume. Entre outras coisas, figura uma história breve mas — sem querer gabar-me — completa de todas as companhias de comércio existentes na Grã-Bretanha. Desejo que esses acréscimos não somente sejam inseridos em seus devidos lugares, na nova edição, mas que sejam impressos em separata, a ser vendida por 1 xelim ou 1/2 coroa aos compradores da edição velha. O preço deve depender do volume das edições quando estiverem todas redigidas”.35 31 32 33 34 35
Ibid., p. 362. A 4ª edição muda ”This" (esta) para “the” (a). A 4ª edição omite “present”. Com freqüência elas figuram ao final de cópias encadernadas existentes da 2ª ed. É um erro a afirmação de Rae (Life of Adam Smith, p. 362), de que foram publicadas de 1783. RAE. Op. cit., p. 362. 25
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Além dos acréscimos impressos em separado, existem muitas modificações da 2ª para a 3ª edição, tais como a nota complacente sobre a adoção do imposto sobre casa (v. II, p. 370), a correção do cálculo das possíveis taxas recolhidas nos postos de pedágio (v. II, p. 248, nota), e a referência às despesas da guerra americana (v. II, p. 460), porém nenhuma dessas modificações reveste maior importância. Mais importante é o acréscimo do longo índice, com a inscrição um tanto estranha: “N.B. Os algarismos romanos referem-se ao volume, e os arábicos à página”. Não é de se esperar que um homem do caráter de Adam Smith fizesse ele mesmo seu índice, e podemos estar absolutamente certos de que não o fez, ao verificarmos que o erro tipográfico tallie no volume II, p. 361, reaparece no índice S.V. (Montauban), embora “taille” também ocorra ali. Todavia, o índice nem de longe sugere o trabalho de um mercenário pouco inteligente, e o fato de que o “Ayr Bank” é mencionado no índice (S.V. Banks), embora no texto o nome do banco não apareça, mostra ou que o autor do índice tem um certo conhecimento da história bancária da Escócia, ou que Smith corrigiu o trabalho dele em certos lugares. Que Smith recebeu, no dia 17 de novembro de 1784, um pacote de Strahan, “contendo uma parte do índice”, sabemo-lo pelas suas cartas a Cadell, publicadas no Economic Journal de setembro de 1898. Strahan havia perguntado se o índice devia ser impresso in-quarto juntamente com as adições e as correções, e Smith recordou-lhe que a numeração das páginas tinha que ser mudada completamente, a fim de “adaptá-la às duas edições anteriores, cujas páginas em muitos lugares não correspondem”. Eis por que não há razão alguma para não considerar o índice como parte integrante da obra. A 4ª edição, publicada em 1786, está impressa no mesmo estilo e exatamente com a mesma paginação que a 3ª Reproduz a advertência constante na 3ª edição, porém mudando “esta 3ª edição” para “a 3ª edição”, e “o presente ano de 1784" para ”o ano de 1784". Além disso, encontramos a seguinte “Advertência para a 4ª edição”: “Nessa 4ª edição não introduzi alteração de espécie alguma. Todavia, agora sinto a liberdade de exprimir meu grande reconhecimento ao Sr. Henry Hop36 de Amsterdam. É a esse cavalheiro que devo a mais honrosa e generosa informação sobre um assunto muito interessante e importante, a saber, o Banco de Amsterdam. Sobre esse assunto, nenhum relato impresso me pareceu até hoje satisfatório, nem mesmo inteligível. O nome desse cavalheiro é tão conhecido na Europa, e a 36
A 5ª ed. corrige para ”Hope". A célebre firma de Hope, comerciantes-banqueiros em Amsterdam, foi fundada por um escocês no século XVII. (Ver “Sir Thomas Hope”. In: Dictionnaire of National Biography.) Henry Hope nasceu em Boston, Mass., em 1736, e passou seis anos em um Banco na Inglaterra antes de juntar-se a seus parentes em Amsterdam. Tornou-se sócio deles e, ao falecer Adrian Hope, assumiu a responsabilidade suprema por todos os negócios da firma. Quando os franceses invadiram a Holanda em 1794, retirou-se para a Inglaterra. Morreu a 25 de fevereiro de 1811, deixando 1,16 milhão de libras esterlinas. (Gentleman’s Magazine. Março de 1811.) 26
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informação que dele provém deve honrar tanto a quem quer que tenha esse privilégio, e tenho tanto interesse em expressar esse reconhecimento que não posso mais furtar-me ao prazer de antepor a presente Advertência a esta nova edição do meu livro". Em que pese a declaração de Smith, de que não introduziu alteração de espécie alguma, ele fez ou permitiu a introdução de algumas alterações insignificantes entre a 3ª e a 4ª edições. O subjuntivo substitui com muita freqüência o indicativo após “if” (se), sendo que particularmente a expressão “if it was” (se era) é constantemente alterada para “if it were” (se fosse). Na nota à página 78 do volume I, “late disturbances” substitui “present disturbances”. As demais alterações são tão insignificantes, que podem tratar-se de erros de leitura ou de correções não autorizadas, devidas aos impressores. A 5ª edição — última publicada durante a vida de Smith, sendo, por conseguinte, dela que reproduzimos a presente edição — data de 1789. Ela é quase idêntica à 4ª; a única diferença está em que os erros tipográficos da 4ª edição vêm corrigidos, introduzindo-se, porém, um número considerável de novos erros de imprensa, ao passo que várias concordâncias falsas — ou consideradas como falsas — vêm corrigidas (ver v. I, p. 119; v. II, pp. 245, 282).37 A passagem constante no volume II, p. 200, evidencia que Smith considerou o título “Uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações” como sinônimo de “Economia Política”, e talvez pareça estranho o fato de ele não ter dado a seu livro o título de “Economia Política”, ou então “Princípios de Economia Política”. Entretanto, cumpre não esquecer que esse termo era ainda muito recente em 1776, e que havia sido usado no título do grande livro de Sir James Steuart An Inquiry into the Principles of Political Oeconomy: being an Essay on the Science of Domestic Policy in Free Nations, publicado em 1767. Naturalmente, em nossos dias nenhum autor tem qualquer pretensão de reclamar o direito de exclusividade para o uso de título. Reclamar o copyright para o título “Princípios de Economia Política” equivaleria, no fundo, a reclamar o direito de exclusividade para o título “Aritmética” ou “Elementos de Geologia”. Em 1776, porém, Adam Smith pode muito bem ter-se abstido de usar esse título por ter ele sido empregado por Steuart nove anos antes, especialmente se consi37
A maioria das edições modernas são cópias da 4ª ed. Todavia, a de Thorold Rogers, embora seja apresentada no prefácio como cópia da 4ª ed., na realidade segue a 3ª. Em um exemplo, efetivamente, a omissão de “so” antes de “along as” no volume I, p. 47, linha 9 (Ed. Cannan), o texto de Rogers concorda com o da 4ª — e não com o da 3ª — mas isso representa uma coincidência casual no erro; o erro é muito fácil de ser cometido, sendo corrigido nas “errata” da 4ª ed., de maneira que na realidade não representa a leitura daquela edição. A 5ª edição não deve ser confundida com uma espúria “5ª edição com acréscimos”, em dois volumes in-octavo; publicada em Dublin em 1793, com a “Advertência” à 3ª ed. deliberadamente falsificada pela substituição de “3ª” por “5ª” na frase “Nesta 3ª edição, porém, introduzi vários acréscimos”. Foi talvez a existência dessa “5ª edição” espúria que levou vários autores (por exemplo, RAE. Life of Adam Smith, p. 293) a ignorar a 5ª edição genuína. A 6ª edição é de 1791. 27
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derarmos que A Riqueza das Nações seria publicado pelo mesmo editor que lançara o livro de Steuart.38 No mínimo desde 1759, existia já um primeiro esboço do que posteriormente constituiria A Riqueza das Nações, na parte das preleções de Smith sobre “Jurisprudência”, que denominou “Polícia, Receita e Armas”, sendo que o resto da “Jurisprudência” é constituído pela “Justiça” e pelas “Leis das Nações”. Smith definia Jurisprudência como “a ciência que investiga os princípios gerais que devem constituir a base das leis de todas as nações”, ou então como “a teoria sobre os princípios gerais da Lei e do Governo”.39 Antecipando suas preleções sobre o assunto, ele dizia aos seus alunos: “Os quatro grandes objetos da Lei são a Justiça, a Polícia, a Receita e as Armas”. “O objeto da justiça é a segurança contra danos, constituindo o fundamento do governo civil”. “Os objetos da polícia são o baixo preço das mercadorias, a segurança pública e a limpeza, se os dois últimos itens não fossem tão insignificantes para uma preleção dessa espécie. Sob o presente item, consideraremos a opulência de um Estado”. “Da mesma forma, é necessário que o magistrado que dedica seu tempo e trabalho a serviço do Estado seja remunerado por isso. Para este fim, e para cobrir as despesas de administração, deve-se recolher algum fundo. Daí a origem da receita. Eis por que o assunto a ser considerado nesse item serão os meios adequados para obter receita, a qual deve provir do povo, através do imposto, taxas etc. De modo geral, deve-se preferir sempre a receita que puder ser recolhida do povo da maneira menos sensível, propondo-nos, a seguir, mostrar de que modo as leis britânicas e as de outras nações européias foram elaboradas tendo em conta esse propósito”. “Já que a melhor polícia não tem condições de oferecer segurança a não ser que o governo possua meios de defender-se de danos e ataques de fora, o quarto objeto da Lei se destina a esse fim; sob esse item mostraremos, pois, os diferentes tipos de armas, com suas vantagens e desvantagens, a formação de exércitos efetivos, milícias etc.” “Depois disso, consideraremos as leis das nações...”40 A relação que a receita e as armas têm com os princípios gerais da Lei e com o governo é suficientemente óbvia, não ocorrendo nenhum questionamento quanto à explicação dada pelo esboço supra para esses itens. Entretanto, “considerar a opulência de um Estado” sob o item polícia parece um tanto estranho à primeira vista. Para a explicação disso, vejamos o início da parte das preleções que se refere à polícia. 38 39
40
Os Principles de Steuart foram “impressos por A. Millar, and T. Cadell, in the Strand”; A Riqueza da Nações, “por W. Strahan; and T. Cadell, in the Strand”. Lectures on Justice, Police, Revenue and Arms. Proferidas por Adam Smith na Universidade de Glasgow. Divulgadas por um estudante em 1763 e editadas com uma introdução e notas de Edwin Cannan, 1896, pp. 1-3. Lectures, pp. 3-4. 28
ADAM SMITH
“A polícia constitui a segunda divisão geral da Jurisprudência. O termo é francês, derivando sua origem do grego politeia que adequadamente significava a política da administração civil, mas agora significa somente os regulamentos das partes inferiores da administração, ou seja: limpeza, segurança, e preços baixos ou abundância”.41 Que essa definição da palavra francesa era correta, mostra-o bem a seguinte passagem de um livro que, como se sabe, Smith possuía ao morrer,42 as Institutions politiques de Biefeld, 1760 (t. I, p. 99): “O primeiro Presidente do Harlay, ao admitir o Sr. d’Argenson ao cargo de tenente geral de polícia da cidade de Paris, dirigiu-lhe estas palavras, que merecem ser notadas: O Rei vos pede, Senhor, segurança, limpeza, preços baixos para as mercadorias. Com efeito, esses três itens englobam toda a polícia, que constitui o terceiro grande objeto da política para o Estado em sua vida interna”. Ao constatarmos que do chefe da polícia de Paris em 1697 se esperava que cuidasse dos preços baixos como da segurança e da limpeza, não nos surpreende tanto a inclusão dos “baixos preços ou fartura” ou a “opulência de um Estado” na “Jurisprudência”, ou “nos princípios gerais da Lei e do governo”. “Efetivamente, preços baixos são a mesma coisa que fartura”, e “a consideração dos preços baixos ou fartura” é “a mesma coisa” que “o caminho mais adequado para garantir riqueza e abundância”.43 Se Adam Smith houvesse sido um partidário antiquado do controle estatal sobre o comércio e a indústria, teria descrito os regulamentos mais adequados para garantir a riqueza e a abundância, e não haveria nada de estranho no fato de essa descrição enquadrar-se sob os “princípios gerais da Lei e do governo”. A real estranheza é simplesmente o resultado da atitude negativa de Smith — de sua crença de que os regulamentos passados e presentes eram, na maior parte, puramente prejudiciais. Quanto aos dois itens, limpeza e segurança, conseguiu liquidá-los com muita brevidade: “o método correto para remover a sujeira das ruas, e a execução da justiça, no que concerne a regulamentos e normas para prevenir crimes ou o método de conservar uma guarda urbana, embora itens de utilidade, são excessivamente irrelevantes para serem considerados em uma exposição geral deste tipo”.44 Limitou-se a observar que o estabelecimento das artes e ofícios do comércio gera independência, constituindo, portanto, a melhor política para evitar crimes. Isso assegura ao povo melhores salários e, “em conseqüência disso, teremos no país inteiro instaurada uma probidade geral de conduta. Ninguém será tão insensato, ao ponto de expor-se nas rodovias se puder ganhar melhor o seu sustento de maneira honesta e trabalhando.”45 41 42 43 44 45
Ibid, p. 154. Ver BONAR, James. Catalogue of the Library of Adam Smith. 1894. Lectures, p. 157. Ibid., p. 154. Ibid., p. 156. 29
OS ECONOMISTAS
Smith passou então a considerar “os preços baixos ou a abundância, ou então, o que é a mesma coisa, o melhor meio para garantir a riqueza e abundância”. Começou essa parte considerando “as necessidades naturais da humanidade, que devem ser atendidas”,46 tema que, nos tratados de Economia, tem sido tratado sob o termo de “consumo”. Mostra então que a opulência provém da divisão do trabalho, ilustrando também por que é assim, ou de que maneira a divisão do trabalho “gera a multiplicação do produto”,47 e por que ela deve estar em proporção com a extensão do comércio. “Assim — dizia ele — a divisão do trabalho é a grande causa do aumento de opulência pública, a qual sempre é proporcional à laboriosidade do povo e não à quantidade de ouro e prata, como se imagina insensatamente”. “Tendo assim mostrado o que gera a opulência pública”, diz que continuará sua exposição, abordando o seguinte: “Primeiro, as circunstâncias que determinam o preço das mercadorias. Em segundo lugar, o dinheiro, em duas perspectivas: primeiro, como critério para medir o valor, e depois, como instrumento de comércio. Em terceiro lugar, a história do comércio, parte em que se tratará das causas do progresso lento da opulência, tanto nos tempos antigos como na época moderna, mostrando quais as causas que afetam a agricultura, as artes e ofícios e as manufaturas. Finalmente, considerar-se-ão os efeitos do espírito comercial, sobre o governo, o caráter e as maneiras de agir de um povo — sejam estas boas ou más — e os remédios adequados".48 Sob o primeiro desses itens, trata do preço natural e do preço de mercado, e das diferenças de salários, mostrando “que toda política que tenda a aumentar o preço de mercado acima do preço natural, tende a diminuir a opulência pública”.49 Entre tais regulamentos perniciosos, enumera taxas ou impostos sobre mercadorias, monopólios, e privilégios exclusivos de corporações. Considera como igualmente perniciosos regulamentos que estabelecem um preço de mercado abaixo do preço natural, e por isso condena o subsídio aos cereais, que faz com que a agricultura acumule capital que poderia ter sido melhor empregado em algum outro comércio. “A melhor política é sempre deixar as coisas andarem seu curso normal”.50 Sob o segundo item, Smith explica as razões do uso do dinheiro como um padrão comum e o uso dele decorrente como instrumento do comércio. Mostra por que geralmente se escolheram o ouro e a prata, e por que motivo se introduziu a cunhagem; prossegue a exposição, explicando os males da falsificação de moeda, e a dificuldade de manter 46 47 48 49 50
Lectures, p. 157. Ibid., p. 163. Ibid., pp. 172-173. Ibid., p. 178. Ibid., p. 182. 30
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em circulação moedas de ouro e de prata ao mesmo tempo. Sendo o dinheiro um estoque morto, são benéficos os bancos e o crédito cambial que permitem prescindir do dinheiro e enviá-lo ao exterior. O dinheiro enviado para o exterior “trará para dentro do país alimentos, roupas e moradia” e “quanto maiores forem as mercadorias importadas, tanto maior será a opulência do país”.51 É “má política impor restrições” aos bancos.52 Mun, “comerciante londrino”, afirmava “que havendo evasão do dinheiro da Inglaterra, ela deve caminhar para a ruína”.53 “O Sr. Gee, também ele um comerciante”, procura “mostrar que a Inglaterra seria em pouco tempo arruinada pelo comércio com países estrangeiros”, e que “em quase todos os nossos negócios com outras nações, saímos perdendo”.54 O Sr. Hume havia mostrado o absurdo dessas e outras doutrinas similares, embora mesmo ele não tivesse plena clareza sobre a “tese de que a opulência pública consiste no dinheiro”.55 O dinheiro não é um bem de consumo, e “a consuntibilidade dos bens — se nos for permitido usar este termo — é a grande causa da operosidade humana”.56 A opinião absurda de que as riquezas consistem em dinheiro havia dado origem a “muitos erros perniciosos na prática”,57 tais como a proibição de exportar moeda e tentativas de garantir uma balança comercial favorável. Haverá sempre bastante dinheiro, se deixarmos as coisas andarem livremente seu curso normal, sendo que não tem êxito nenhuma proibição de exportar. O desejo de garantir uma balança comercial favorável havia conduzido “a normas e leis altamente prejudiciais”,58 como as restrições impostas ao comércio com a França. “Basta um mínimo de reflexão para evidenciar o absurdo de tais regulamentos. Todo comércio efetuado entre dois países quaisquer deve necessariamente trazer vantagem para ambos. O verdadeiro objetivo do comércio é trocar nossas próprias mercadorias por outras que acreditamos serem mais convenientes para nós. Quando duas pessoas comercializam entre si, sem dúvida isso é feito para que os dois aufiram vantagem... Exatamente o mesmo acontece entre duas nações quaisquer. Os bens que os comerciantes ingleses querem importar da França certamente valem mais, para eles, do que aquilo que dão em troca”.59 Esses ciúmes e proibições têm sido extremamente danosos para as nações mais ricas, e seria benéfico, para a França e a Inglaterra em especial, se “todos os preconceitos nacionais fossem eliminados e se estabelecesse um comércio livre e sem interrupções”.60 Nação alguma 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60
Ibid., p. 192. Ibid., p. 195. Ibid., p. 195. Ibid., p. l96. Ibid., p. 197. Ibid., p. 199. Ibid., p. 200. Ibid., p. 204. Ibid., p. 204. Lectures, p. 206. 31
OS ECONOMISTAS
foi jamais arruinada por tal balança comercial. Todos os escritores políticos desde o tempo de Carlos II tinham profetizado “que dentro de poucos anos estaremos reduzidos a um estado de pobreza absoluta”, e, no entanto, a verdade é que “hoje constatamos que somos muito mais ricos do que antes”.61 A tese errônea de que a opulência nacional consiste em dinheiro havia também dado origem à tese absurda de que “nenhum consumo interno pode prejudicar a opulência de um país.”62 Foi também essa tese que levou ao esquema da Lei de Mississípi, em comparação com o qual o nosso próprio esquema Mares do Sul era uma ninharia.63 Os juros não dependem do valor do dinheiro, mas da quantidade de capital. O câmbio é um método para prescindir da transmissão do dinheiro.64 Sob o terceiro item, a história do comércio, ou as causas do progresso lento da opulência, Adam Smith tratou “primeiro, dos impedimentos naturais, e segundo, da opressão por parte do governo civil”.65 Não consta que tivesse mencionado qualquer outro obstáculo natural afora a falta de divisão do trabalho em épocas primitivas e de barbárie, devido à falta de capital.66 Em compensação, tinha muito a dizer sobre a opressão por parte do governo civil. De início, os governos eram tão fracos, que não tinham condições para oferecer a seus súditos aquela segurança sem a qual ninguém tem motivação para dedicar-se com empenho ao trabalho. Depois, quando os governos se tornaram suficientemente fortes para proporcionar segurança interna, lutavam entre si, e seus súditos eram fustigados por inimigos de fora. A agricultura era prejudicada pelo fato de grandes extensões de terra estarem nas mãos de simples pessoas. Isso levou, inicialmente, ao cultivo feito por escravos, que não tinham motivação para o trabalho; depois vieram os arrendatários por meação (meeiros) que não tinham suficiente estímulo para melhorar o solo; finalmente, foi introduzido o atual método de cultivo por arrendatários, porém estes por muito tempo não tinham estabilidade e segurança em suas terras, pois eram obrigados a pagar aluguel em espécie, o que implicava para eles o risco de serem muito prejudicados por más estações. Os subsídios feudais desencorajavam o trabalho, sendo que a lei da primogenitura, o morgadio e as despesas inerentes à transferência de terras impediam que as grandes propriedades rurais fossem divididas. As restrições impostas à exportação de cereais ajudaram a paralisar o progresso da agricultura. O progresso das artes e ofícios e do comércio foi também obstaculizado pela escravatura, bem como pelo antigo menosprezo pela indústria e pelo comér61 62 63 64 65 66
Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.,
p. 207. p. 209. pp. 211-219. pp. 219-222. p. 222. pp. 222-223. 32
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cio, pela falta de apoio à validade dos contratos, pelas várias dificuldades e perigos inerentes ao transporte, pelo estabelecimento de feiras, mercados e cidades-empórios, por taxas impostas às importações e exportações, e pelos monopólios, privilégios outorgados a certas corporações, pelo estatuto dos aprendizes e pelos subsídios.67 Sob o quarto e último item — a influência que o comércio exerce sobre a conduta de um povo — Smith dizia em suas preleções que “toda vez que o comércio é introduzido em qualquer país, sempre vem acompanhado da probidade e da pontualidade”.68 O comerciante compra e vende com tanta freqüência, que acredita ser a honestidade a melhor política. “Do ponto de vista da probidade e da pontualidade, os políticos não são os que mais se distinguem no mundo. Menos ainda o são os embaixadores das diferentes nações”;69 a razão disso está no fato de ser muito mais raro as nações fazerem comércio entre si, do que os comerciantes. Todavia, o espírito comercial gera certos inconvenientes. A visão das pessoas se restringe, e “quando toda a atenção de uma pessoa se concentra no décimo sétimo componente de um alfinete ou no oitavo componente de um botão”70 a pessoa se torna obtusa. Negligencia-se a educação das pessoas. Na Escócia, o carregador do nível mais baixo sabe ler e escrever, ao passo que em Birmingham um menino de seis ou sete anos pode ganhar três ou seis pence por dia, de sorte que seus pais o põem a trabalhar cedo, negligenciando a sua educação. É bom saber ao menos ler, pois isso “proporciona às pessoas o benefício da religião, que representa uma grande vantagem, não apenas do ponto de vista de um pio sentimento, mas porque a religião fornece ao indivíduo assunto para pensar e refletir”.71 Além disso, registra-se “outra grande perda em colocar os meninos muito cedo no trabalho”. Os meninos acabam desvencilhando-se da autoridade dos pais, e entregam-se à embriaguez e às rixas. Conseqüentemente, nas regiões comerciais da Inglaterra, os trabalhadores estão em “uma condição desprezível, trabalhando durante meia semana, ganham o suficiente para manterse, e, por falta de educação e formação, não têm com que ocupar-se no restante da semana, entregando-se a rixas e à devassidão. Assim sendo, não há erro em dizer que as pessoas que vestem o mundo todo estão elas mesmas vestidas de farrapos”.72 Além disso, o comércio faz diminuir a coragem e apaga o espírito guerreiro; a defesa do país fica assim entregue a uma categoria especial de pessoas, e o caráter de um povo se torna efeminado e covarde, como demonstrou o fato de que, em 1745, “quatro ou cinco mil montanheses, 67 68 69 70 71 72
Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.,
pp. 223-236. p. 253. p. 254. p. 255. p. 256. pp. 256-257. 33
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nus e sem armas, teriam derrubado com facilidade o governo da GrãBretanha, se não tivessem encontrado a resistência de um exército efetivo”.73 “Remediar” tais males introduzidos pelo comércio “seria um objetivo digno de ser estudado com seriedade”. A receita, ao menos no ano em que Smith redigiu as anotações para suas preleções, era tratada antes do último item da polícia, que acabamos de expor; obviamente porque ela representa efetivamente uma das causas do lento progresso da opulência.74 De início — ensinava Smith — não havia necessidade de receita; o funcionário público contentava-se com o prestígio que o cargo lhe proporcionava e com os presentes que se lhe ofereciam. Mas o recebimento de presentes acabou conduzindo logo à corrupção. De início, também os soldados não recebiam remuneração, mas isso não durou muito. O método mais antigo adotado para garantir renda foi destinar terras para cobrir os gastos do governo. Para manter o governo britânico seria necessário, no mínimo, dispor de um quarto de toda a área do país. “Depois que a manutenção do governo se torna dispendiosa, o pior método possível de custeá-la é a renda fundiária”.75 A civilização vai de mãos dadas com os altos custos de administração pública. Os Impostos podem ser assim divididos: impostos sobre posses e impostos sobre mercadorias. É fácil estabelecer impostos territoriais, mas difícil estabelecer impostos para estoques ou dinheiro. É muito pouco dispendioso recolher impostos territoriais; eles não geram aumento do preço das mercadorias nem limitam o número de pessoas que possuem estoque suficiente para comercializar com elas. É penoso para os proprietários de terras ter que pagar tanto imposto territorial quanto impostos sobre o consumo, fato este que “talvez ocasione a manutenção do que se chama juros dos Torios”.76 O melhor sistema de recolhimento de impostos sobre mercadorias é embuti-los no próprio produto. Nesse caso, existe a vantagem de “pagá-los sem perceber”,77 já que “ao comprarmos uma libra de chá, não refletimos no fato de que a maior parte do preço consiste em uma taxa paga ao governo, e por isso pagamo-la de bom grado, como se fora simplesmente o preço natural da mercadoria”.78 Além disso, tais impostos têm menos probabilidade de levar o povo à ruína do que os impostos territoriais, pois o povo sempre tem condições de diminuir os seus gastos com a compra de artigos tributáveis. Um imposto territorial fixo, como o inglês, é melhor do que um que varia de acordo com a renda — como é o caso do imposto territorial francês — e “os ingleses são os maiores financistas da Europa, sendo 73 74 75 76 77 78
Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.,
p. 258. p. 236. p. 239. pp. 241-242. pp. 242-243. p. 243. 34
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os impostos ingleses os mais adequadamente cobrados, em confronto com os de qualquer outro país”.79 As taxas sobre importações são danosas, porque desviam o trabalho para um caminho não natural; piores ainda são as taxas sobre exportações. A crença generalizada de que a riqueza consiste em dinheiro não tem sido prejudicial como se poderia ter esperado, no tocante às taxas incidentes sobre importações, pois por coincidência essa crença levou a estimular a importação de matéria-prima e a desestimular a importação de artigos manufaturados.80 A exposição sobre a receita levou Smith, com naturalidade, a tratar das dívidas nacionais, o que o conduziu à discussão sobre as causas do aumento e da diminuição dos estoques e da prática da agiotagem.81 Sob o item “Armas”, Smith ensinou que, de início, todo o povo vai à guerra; a seguir, somente as classes superiores vão à guerra, e as classes mais baixas continuam a cultivar a terra. Mais tarde, porém, a introdução das artes e ofícios e das manufaturas, tornou inconveniente aos ricos deixarem seus negócios, cabendo então a defesa do Estado às classes mais baixas do povo. “Essa é a nossa situação atual, na Grã-Bretanha”.82 Atualmente, a disciplina se torna necessária, introduzindo-se exércitos permanentes. O melhor tipo de exército é “uma milícia comandada por donos de latifúndios e de cargos públicos da nação”,83 os quais “nunca podem ter qualquer probabilidade de sacrificar as liberdades do país”. É o que ocorre na Suécia. Comparemos agora tudo isso com o esquema ou esboço de A Riqueza das Nações — não como está descrito na “Introdução e Plano”, mas tal como o encontramos no corpo da própria obra. O Livro Primeiro começa mostrando que o maior aprimoramento das forças produtivas se deve à divisão do trabalho. Depois da divisão do trabalho a obra trata do dinheiro, de vez que necessário para facilitar a divisão do trabalho, o que depende de intercâmbio. Isso naturalmente leva a abordar os termos em que as trocas são efetuadas, ou seja, valor e preço. O estudo do preço revela que esse se divide entre salários, lucros do capital e renda fundiária e por isso o preço depende dos índices dos salários, dos índices dos lucros do capital e da renda fundiária, o que torna necessário abordar, em quatro capítulos, as variações desses índices. O Livro Segundo trata primeiramente da natureza e das divisões do patrimônio, e em segundo lugar de uma parcela particularmente importante do mesmo, a saber, o dinheiro, e dos meios através dos quais essa parte pode ser economizada pelas operações bancárias; em terceiro lugar, trata da acumulação de capital, que está relacionada com o emprego da mão-de-obra produtiva. Em quarto lugar, considera 79 80 81 82 83
Ibid., Ibid., Ibid., Ibid., Ibid.,
p. 245. pp. 246-247. pp. 247-252. p. 261. p. 263. 35
OS ECONOMISTAS
o aumento e a diminuição da taxa de juros; em quinto e último lugar, a vantagem comparativa dos diferentes métodos de emprego do capital. O Livro Terceiro mostra que o progresso natural da opulência deve dirigir o capital, primeiro para a agricultura, depois para as manufaturas e, finalmente, para o comércio exterior, mas que essa ordem foi invertida pela política dos Estados europeus modernos. O Livro Quarto trata de dois sistemas diferentes de economia política: (1) o sistema do comércio, e (2) o sistema da agricultura; entretanto, o espaço dedicado ao primeiro — mesmo na 1ª edição — é oito vezes maior que o dedicado ao segundo. O primeiro capítulo mostra o absurdo do princípio do sistema comercial ou mercantil, segundo o qual a riqueza depende da balança comercial; os cinco capítulos subseqüentes expõem detalhadamente e mostram a futilidade dos meios vis e danosos através dos quais os mercantilistas procuraram garantir seu objetivo absurdo, isto é, taxas protecionistas gerais, proibições e altas taxas dirigidas contra a importação de bens de países específicos em relação aos quais a balança é supostamente desfavorável, drawbacks, subvenções e tratados de comércio. O capítulo sétimo — que é longo — trata das colônias. Segundo o plano que se encontra no fim do capítulo I, esse assunto é tratado aqui porque as colônias foram fundadas para estimular a exportação através de privilégios peculiares e monopólios. Mas no próprio capítulo não há vestígio algum disso. A história e o progresso das colônias são discutidos para fins particulares, não se afirmando que as colônias importantes foram fundadas com o objetivo indicado no capítulo I. No último capítulo do livro, descreve-se o sistema fisiocrático, emitindo-se um julgamento contra esse sistema e contra o sistema comercial. O sistema adequado é o da liberdade natural, que libera o soberano “da obrigação de supervisionar o trabalho das pessoas privadas e da obrigação de dirigi-lo para os objetivos mais convenientes ao interesse da sociedade”. O Livro Quinto trata das despesas do soberano no cumprimento dos deveres que lhe cabem, da receita necessária para cobrir tais despesas, e do que ocorre quando as despesas ultrapassam a receita. A discussão sobre as despesas para defesa inclui a discussão sobre diferentes tipos de organização militar, tribunais, meios para manutenção de obras públicas, educação, e instituições eclesiásticas. Confrontando esses dois esquemas, podemos observar a estreita correlação existente entre o livro e as preleções (Lectures) de Adam Smith. Pelo fato de o título Police ser omitido — por não designar adequadamente o assunto tratado — não há necessidade de mencionar a limpeza, e as observações sobre a segurança são deslocadas para o capítulo referente ao acúmulo de capital. Omitem-se as duas partes sobre as necessidades naturais da humanidade,84 revelando mais uma 84
Existe uma reminiscência delas no capítulo “A Renda da Terra”, v. I, pp. 182-183. (Ed. Cannan.) 36
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vez as dificuldades que os economistas geralmente têm sentido no tocante ao consumo. As quatro partes seguintes, dedicadas à divisão do trabalho, acabam formando os três primeiros capítulos do Livro Primeiro de A Riqueza das Nações. A esta altura, nas Lectures existe uma transição abrupta para os preços, seguindo-se a exposição sobre o dinheiro, a história do comércio e os efeitos do espírito comercial; em A Riqueza das Nações isso é evitado, começando com o dinheiro — que é o instrumento através do qual se faz a divisão do trabalho — e passando-se então a tratar dos preços, transição perfeitamente natural. Nas preleções, a exposição sobre o dinheiro conduz a uma consideração sobre a tese de que a riqueza consistiria no dinheiro, e sobre todas as conseqüências perniciosas desse erro na restrição do comércio bancário e exterior. Isso obviamente representa uma sobrecarga para a teoria sobre o dinheiro, e por isso a exposição sobre as operações bancárias em A Riqueza das Nações se desloca para o Livro que aborda o capital pelo fato de este prescindir do dinheiro, o qual é um patrimônio morto, e portanto economiza capital; e com isso a exposição sobre a política comercial é automaticamente transferida para o Livro Quarto. Além disso, nas preleções a exposição sobre os salários é muito breve, sendo feita sob o item “preços”, e os lucros do capital e a renda da terra nem sequer são tratados; em A Riqueza das Nações, os salários, os lucros do capital e a renda da terra são tratados longamente como componentes do preço, afirmando-se que toda a produção do país está distribuída entre esses três fatores, como porções que a compõem. A parte seguinte das preleções, que trata das causas do progresso lento da opulência, constitui o fundamento para o Livro Terceiro de A Riqueza das Nações. A influência do comércio sobre a conduta do povo desaparece como item independente, mas a maior parte do assunto tratado nas preleções, sob esse item, é utilizada na exposição sobre educação e organização militar. Além do consumo, são totalmente omitidos, em A Riqueza das Nações, dois outros assuntos, tratados com bastante detalhes nas preleções: Corretagem em Bolsa e o esquema Mississípi. A descrição da agiotagem provavelmente foi omitida, por ser mais adequada para os jovens estudantes que ouviam as preleções do que para os leitores do livro, mais amadurecidos. E o esquema Mississípi foi omitido — como diz o próprio Smith — por ter sido adequadamente tratado por Du Verney. Aqui e acolá depara-se com discrepâncias entre as teses expressas nas preleções e as expressas no livro. A tese razoável e incisiva sobre os efeitos do subsídio aos cereais é substituída por uma doutrina mais velada, embora menos satisfatória. Outrossim, não reaparece no livro a observação sobre a inconveniência do abrandamento das leis sobre comércio exterior, por encorajarem o comércio com países dos quais a Inglaterra importava matérias-primas e desestimularem o comércio 37
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com os países dos quais a Inglaterra importava manufaturados.85 Provavelmente, a passagem pertinente nas preleções é muito condensada, e talvez não retrate fielmente o pensamento de Adam Smith. Se o texto das preleções representar fielmente o pensamento de Smith, é o caso de supor que, ao tempo em que ministrou essas aulas, o autor não se havia ainda libertado inteiramente das falácias da política protecionista.86 Existem alguns acréscimos muito evidentes em A Riqueza das Nações. O mais saliente é a exposição sobre o sistema fisiocrático ou agrícola francês, que ocupa o último capítulo do Livro Quarto. Também o artigo sobre as relações entre Igreja e Estado (Livro Quinto, capítulo I, Parte III, art. 3) parece ser um acréscimo evidente, ao menos em relação às preleções sobre “police” e receita. Mas, como veremos, a tradição parece afirmar que Smith tratou das instituições eclesiásticas nessa parte de suas preleções sobre Jurisprudência, de maneira que talvez o escrito das Lectures apresente falhas nesse ponto; ou então, o assunto foi omitido no ano específico em que as notas foram tomadas. Além disso, existe o longo capítulo sobre as colônias. O fato de as colônias terem atraído a atenção de Adam Smith durante o período que vai entre as preleções e a publicação de seu livro não surpreende muito, se recordarmos que esse intervalo coincidiu quase exatamente com o período entre o início da tentativa de taxar as colônias e a Declaração da Independência dessas colônias. Contudo, esses acréscimos são de pequeno porte, em confronto com a introdução da teoria do patrimônio ou capital e do trabalho improdutivo no Livro Segundo, a inserção de uma teoria da distribuição na teoria dos preços pelo fim do Livro Primeiro, capítulo VI, e a ênfase sobre a concepção da produção anual. Essas mudanças não representam para a obra de Smith uma diferença real tão grande como se poderia supor; a teoria da distribuição, embora apareça no título do Livro Primeiro, não é uma parte essencial da obra, e poderia facilmente ser eliminada cancelando alguns parágrafos no Livro Primeiro, capítulo VI, e algumas linhas em outros lugares; mesmo que o Livro Segundo fosse omitido por inteiro, os demais livros manter-se-iam perfeitamente por si sós. Mas para a ciência econômica subseqüente, esses acréscimos foram de importância fundamental. Determinaram a forma dos tratados de Economia durante um século, no mínimo. Naturalmente, esses acréscimos são devidos aos Économistes franceses, com os quais Adam Smith travou conhecimento durante sua visita à França, juntamente com o Duque de Buccleugh, em 1764-1766. Tem-se afirmado que Smith pode ter travado conhecimento com muitas obras dessa escola antes de se redigirem as notas de suas preleções, e assim pode ter sido realmente em teoria. Mas as notas de suas preleções constituem uma prova evidente de que, na realidade, Smith não tinha tal conhecimento ou, em todo caso, não havia assimilado as teorias 85 86
The Wealth of Nations. Ed. Cannan. 1976. p. XXV. Ibid., pp. XLVI, XLVII a respeito de uma conjetura sobre esse assunto. 38
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econômicas principais dos economistas franceses. Se verificarmos que não existe vestígio algum dessas teorias nas preleções, e por outro lado em A Riqueza das Nações elas estão muito presentes, e se considerarmos que nesse meio tempo Smith havia estado na França e freqüentara a companhia de todos os membros proeminentes da “seita”, incluindo seu mestre, Quesnay, é difícil compreender por que motivo, sem evidência alguma, devamos ser impedidos de acreditar que Smith sofreu a influência fisiocrática depois do período que passou em Glasgow, e não antes ou durante esse período. A profissão de fé dos Économistes está incorporada no Tableau Économique (Quadro Econômico) de Quesnay, que um dos membros da escola descreveu como digno de ser qualificado, juntamente com a imprensa e o dinheiro, como uma das três maiores invenções do gênero humano.87 Esse Quadro está reproduzido na próxima página, tendo sido extraído do fac-símile da edição de 1759, publicado pela British Economic Association (atualmente denominada Royal Economic Society), em 1894. [Para a presente edição, foi utilizado o fac-símile contido na edição do Tableau Économique des Physiocrates. Calmann-Lévy, Paris, 1969. N. do E.] Os que estiverem interessados em saber o exato significado das linhas em ziguezague no Quadro, podem estudar a Explication de Quesnay, publicada pela British Economic Association, juntamente com a tabela, em 1894. Para o objetivo a que aqui visamos, é suficiente entender: (1) que a tabela envolve uma concepção da produção ou reprodução anual total de um país; (2) que essa teoria ensina serem alguns trabalhos improdutivos, e que, para manter a produção anual, são necessários certos avances e que essa produção anual é “distribuída”. Adam Smith, como demonstra seu capítulo sobre os sistemas agrícolas, não atribuiu valor muito grande às minúcias dessa tabela, mas certamente adotou essas idéias básicas e as adaptou, da melhor maneira que pôde, às suas teorias desenvolvidas em Glasgow. A concepção da produção anual não colidia de forma alguma com essas suas teorias de Glasgow, não havendo nenhuma dificuldade em adotar a produção anual como a riqueza de uma nação, embora com muita freqüência, por esquecimento, recaia em modos de falar mais antigos. Quanto ao trabalho improdutivo, Smith não estava disposto a condenar como estéreis todos os trabalhos executados em Glasgow, mas a enquadrar os servidores medievais, e mesmo os criados domésticos modernos na categoria improdutiva. Iria até um pouco mais longe, colocando na mesma categoria todos aqueles cujo trabalho não produz objetos específicos vendáveis, ou cujos serviços não são utilizados pelos seus empregadores para ganhar dinheiro. Deixando-se confundir um tanto por essas distin87
Ibid., v. II, p. 200, n. 2. 39
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ções e pela doutrina fisiocrática dos avances, Smith imaginou uma conexão estreita entre o emprego do trabalho produtivo e a acumulação e emprego do capital. Daí que, partindo da observação comum de que, onde aparece um capitalista, logo surgem trabalhadores, chegou à tese de que o montante de capital em um país determina o número de trabalhadores “úteis e produtivos”. Finalmente, introduziu, em sua teoria dos preços e de seus fatores componentes, a idéia de que, já que o preço de qualquer mercadoria está dividido entre salários, lucros do capital e renda imobiliária, assim também a produção total está dividida entre trabalhadores, capitalistas e proprietários de terra. Essas idéias sobre o capital e o trabalho improdutivo são indiscutivelmente de grande importância na história da teoria econômica, mas eram fundamentalmente descabidas, e nunca foram aceitas com aquela universalidade que comumente se supõe. Não obstante isso, a concepção da riqueza das nações como uma produção anual distribuída anualmente tem um valor imenso. Como outras concepções desse tipo, de qualquer forma essa também viria, com certeza. Poderia ter sido desenvolvida diretamente a partir de Davenant ou de Petty, mais ou menos um século antes. Não precisamos supor que algum outro autor qualquer não pudesse tê-la logo introduzido na economia inglesa, se Adam Smith não o tivesse feito; entretanto, isto não nos impede de registrar o fato de que foi ele que a introduziu, e que a introduziu em conseqüência de sua associação com os Économistes. Se tentamos fazer remontar a história da gênese de A Riqueza das Nações para além da data das notas das preleções — 1763 ou por volta desse ano — ainda podemos encontrar alguma informação autêntica, embora pouca. Sabemos que Smith deve ter utilizado praticamente o mesmo esquema e divisão que em suas preleções de 1759, já que ele promete no último parágrafo de Moral Sentiments, publicados naquele ano, “uma outra exposição”, na qual haveria de “procurar apresentar os princípios gerais da lei e do governo, e das diversas transformações pelas quais haviam passado no decurso das diferentes idades e períodos da sociedade, não somente no que concerne à justiça, mas no que tange à ordem pública, às rendas e às forças armadas, e a tudo o mais que seja objeto da Lei”. Todavia, parece provável que a parte econômica das preleções nem sempre se intitulou “ordem pública, rendas e forças armadas”, uma vez que Millar, que freqüentou as preleções quando foram ministradas pela primeira vez, em 1751/52, diz o seguinte: “Na última parte de suas preleções, examinou os regulamentos políticos que se baseiam não no princípio da justiça, mas no da conveniência e que se destinam a aumentar a riqueza, o poder e a prosperidade de um Estado. Sob esse ponto de vista, considerou as instituições políticas em relação ao comércio, às finanças, às instituições eclesiásticas e militares. O que ele expôs sobre esses assuntos continha 41
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a essência da obra que depois publicou sob o título An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations”.88 Naturalmente, isso não exclui necessariamente a possibilidade de que as preleções sobre Economia fossem intituladas ordem pública, rendas e forças armadas, mesmo naquela data; entretanto, a colocação das palavras ‘justiça’ e ‘conveniência’ — se isso tiver sido feito por Millar — sugere mais o contrário, e não há como negar que a colocação de ‘preços baixos ou fartura’ sob ‘ordem pública’ pode muito bem ter sido uma reflexão posterior de Smith, para justificar a introdução de boa quantidade de material sobre economia nas preleções que versavam sobre Jurisprudência. Quanto ao motivo dessa introdução, as circunstâncias da primeira estadia ativa de Smith em Glasgow sugerem outra razão, além de sua predileção pelo assunto — a qual, diga-se de passagem, não o impediu de publicar antes sua doutrina sobre a Ética. Cumpre lembrar que a primeira nomeação de Smith para Glasgow foi como professor de Lógica, em janeiro de 1751, mas os seus compromissos em Edimburgo o impediram de fazê-lo naquele período letivo. Antes do início do próximo período letivo, pediu-se-lhe que substituísse Craigie, o professor de Filosofia Moral, que estava deixando a cidade para tratar da própria saúde. Ele consentiu, e conseqüentemente, no período letivo de 1751-1752 teve que começar a lecionar duas matérias, já que para uma delas tinha sido avisado com antecedência muito pequena.89 Em tal situação, qualquer professor faria tudo para utilizar qualquer material adequado que por acaso tivesse à mão, e a maioria dos professores iria ainda além utilizando até algo que não fosse inteiramente adequado. Ora, sabemos que Adam Smith possuía, em forma de manuscrito que se encontrava nas mãos de um secretário que o servia, certas preleções que ministrara em Edimburgo, no inverno de 1750/51, e sabemos que nessas preleções expusera a doutrina sobre os efeitos benéficos da liberdade e, segundo Dugald Stewart, também “muitas das teses mais importantes expostas em A Riqueza das Nações”. Existia, quando Stewart escreveu, “um manuscrito breve, elaborado pelo Sr. Smith no ano de 1755, e por ele presenteado a uma sociedade da qual então era membro”. A respeito desse manuscrito, Stewart afirma: “Muitas das teses mais importantes que se encontram em A Riqueza das Nações estão ali expostas pormenorizadamente; citarei, porém, só as seguintes frases: ‘O homem geralmente é considerado pelos estadistas e planejadores como objeto de uma espécie de mecânica política. Os planejadores atrapalham a natureza no curso das operações naturais sobre os negócios humanos, quando seria suficiente deixá-la sozinha, deixá-la agir livremente na efetivação de seus objetivos, a fim 88
89
Dugald Stewart, em seu “Account of the Life and Writings of Adam Smith”, lido à Royal Society of Edinburgh em 1793 e publicado na obra póstuma de Adam Smith, Essays on Philosophical Subjects, 1795, p. XVIII. Ver RAE, Life of Adam Smith, pp. 53-55. RAE, Life of Adam Smith, pp. 42-45. 42
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de que ela realizasse os próprios planos’. E em uma outra passagem: ‘Além disso, pouco se requer, para levar um Estado da barbárie mais baixa para o mais alto grau de opulência, além da paz, impostos baixos, e uma administração aceitável da justiça; todo o resto é feito pelo curso natural das coisas. Todos os governos que interferem nesse curso natural, que forçam as coisas para outra direção, ou que se empenham em sustar o progresso da sociedade em um ponto específico, não são naturais e para subsistirem têm de ser opressivos e tirânicos’. ‘Uma grande parte das teses’ — observa Smith — ‘enumeradas neste manuscrito é tratada minuciosamente em algumas preleções que ainda tenho comigo, e que foram escritas por um secretário que deixou o meu serviço há seis anos. Todas elas têm constituído tema constante das minhas preleções desde que comecei a ensinar em lugar do Sr. Craigie, no primeiro inverno que estive em Glasgow, até hoje, sem nenhuma alteração de monta. Todas elas têm sido objeto das preleções que ministrei em Edimburgo, no outro inverno, antes de deixar essa cidade, e posso aduzir inúmeras testemunhas, tanto daquele lugar como deste, que garantem suficientemente serem de minha autoria’.”90 Parece pois que, quando Smith teve que assumir as duas cátedras em 1751, tinha em andamento algumas preleções, as quais muito provavelmente explicavam “o lento progresso da opulência”, e que, como teria feito qualquer pessoa em tais circunstâncias, as inseriu em seu curso de Filosofia Moral. Efetivamente, não havia nenhuma dificuldade em fazê-lo. Parece quase certo que o próprio Craigie sugeriu a idéia. O pedido para que Smith assumisse o trabalho de Craigie veio por Cullen, e ao responder à carta de Cullen — que não foi conservada — Smith afirma: “O Sr. menciona a jurisprudência natural e a política como as partes das preleções dele que eu teria imenso prazer em lecionar. De muito bom grado farei as duas coisas”.91 Sem dúvida, Craigie estava a par do que Smith andara ensinando em Edimburgo no inverno anterior, denominando-o ’Política’. Além do mais, as tradições da cadeira de Filosofia Moral, conforme Adam Smith as conhecia, exigiam que se ministrassem certas partes de economia. Doze anos antes, ele mesmo tinha sido estudante, quando o professor era Francis Hutcheson. Quanto podemos julgar, com base no System of Moral Philosophy de Hutcheson — obra que, como demonstrou o Dr. W. R. Scott,92 já existia quando Smith era estudante, embora sua publicação não tivesse ocorrido antes de 1755 —, Hutcheson ensinou primeiro Ética; logo depois, o que muito bem poderia denomi90 91 92
Stewart, nos Essays de Smith, pp. LXXX, LXXXI. RAE, Op. cit., pp. 43-44. SCOTT, W. R. Francis Hutcheson. 1900, pp. 210-231. Em Introduction to Moral Philosophy, 1747, “Civil Polity” é substituído por “Oeconomicks and Politicks”, mas “Oeconomicks” significa apenas Direito familiar, isto é, os direitos de esposos e esposas, pais e filhos, patrões e servos. 43
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nar-se Jurisprudência Natural, e em terceiro lugar, Sociedade Civil. Considerável parte de doutrina econômica espalha-se pelas duas últimas. Ao considerar A Necessidade de uma Vida Social, Hutcheson assinala que uma pessoa que vive em solidão, por mais forte e instruída que seja nas artes e ofícios, “dificilmente conseguiria prover-se nas mais simples necessidades vitais, mesmo nos melhores solos ou clima”. Não só isso. “Sabe-se muito bem que a produção resultante dos trabalhos de qualquer número de pessoas — por exemplo, vinte — em prover as coisas necessárias ou convenientes para a vida, será muito maior, confiando a um certo tipo de trabalho de uma espécie, no qual logo adquirirá habilidade e destreza, e confiando a um trabalho de tipo diferente, do que se cada um dos vinte fosse obrigado a executar alternadamente todos os diferentes tipos de trabalho exigidos para a sua subsistência, sem destreza suficiente para nenhum deles. Utilizando-se o primeiro método, cada um produz quantidade maior de bens de uma espécie, podendo trocar uma parte deles por bens obtidos pelos trabalhos de outros, conforme a sua necessidade. Um se torna perito na cultura da terra, outro em apascentar e criar gado, um terceiro em alvenaria, um quarto na caça, um quinto em siderurgia, um sexto em tecelagem e assim por diante. Assim, todos são supridos através de escambo pelas obras de artífices completos. No outro método, dificilmente alguém poderia ter habilidade e destreza em qualquer tipo de trabalho. Além disso, algumas obras da maior utilidade para as multidões podem ser eficientemente executadas pelos trabalhos conjugados de muitos, obras essas que os trabalhos do mesmo número de pessoas jamais poderiam ter executado. A força conjugada de muitos pode repelir perigos provenientes de animais selvagens ou bandos de assaltantes que poderiam ter sido fatais para muitos indivíduos, caso o confronto se desse em separado. Os trabalhos conjugados de vinte homens proporcionarão o cultivo de florestas ou a drenagem de pântanos, para as propriedades de cada um deles, e providenciarão casas para morarem, e cercados para seus rebanhos, com muito maior rapidez do que os trabalhos separados do mesmo número de homens. Juntando as forças, e alternando o descanso, podem manter vigília perpétua, o que jamais conseguiriam sem tal providência".93 Ao explicar os Fundamentos da Propriedade, Hutcheson diz que, quando a população era rarefeita, o País era fértil e o clima ameno, não havia muita necessidade de se aperfeiçoarem regras sobre a propriedade, mas na situação de hoje “o trabalho de todos é claramente necessário para manter a humanidade”, e os homens devem ser motivados ao trabalho pelo interesse próprio e pelo amor à família. Se não lhes forem assegurados os frutos do trabalho humano, “não se tem nenhuma outra motivação para trabalhar senão o amor genérico à 93
HUTCHESON, Francis, System of Moral Phylosophy, v. I, pp. 288-289. 44
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espécie, o qual geralmente é muito mais fraco do que as afeições mais íntimas que dedicamos aos nossos amigos e parentes, para não mencionar a oposição que, nesse caso, seria apresentada pela maioria dos indivíduos egoístas”. Numa sociedade comunista não se trabalha de boa vontade.94 O maior bloco ininterrupto de doutrina econômica no System of Moral Philosophy encontra-se no capítulo intitulado “Os valores dos bens no comércio e a natureza da moeda”, que ocorre no meio da exposição sobre contratos. Nesse capítulo afirma-se que é necessário, para o comércio, que os bens sejam avaliados. Os valores dos bens dependem da procura e da dificuldade em adquiri-los. Os valores devem ser medidos com base em algum padrão comum, e que deve ser algo desejado por todos de sorte que todos estejam dispostos a aceitá-lo na troca. Para assegurá-lo, o padrão deve ser algo portátil e divisível sem perda, além de durável. O ouro e a prata melhor atendem aos mencionados requisitos. De início, eram usados por quantidade ou peso, sem cunhagem, mas eventualmente o Estado oferecia garantia pela quantidade e qualidade, através do carimbo. A timbragem, por constituir fácil lavor, não acrescenta valor considerável. “A moeda sempre tem o valor de uma mercadoria no comércio, como outros bens; e isso, em proporção à raridade do metal, pois se trata de procura universal”. O único meio para elevar-lhe artificialmente o valor seria restringir a produção das minas. Dizemos comumente que a mão-de-obra e os bens aumentaram desde que esses metais começaram a abundar; e que a mão-de-obra e os bens escasseavam quando também os referidos metais eram escassos, considerando-se o valor dos metais invariável porque os nomes legais das peças, as libras, os xelins ou pence continuam sempre os mesmos, até que a lei os altere. Mas o cavar ou arar de um dia era tão trabalhoso para um homem mil anos atrás quanto é hoje, embora naquela época o homem não pudesse com esses trabalhos ganhar tanta prata quanto hoje; e um barril de trigo ou de carne bovina tinha naquela época a mesma utilidade para sustentar o organismo humano que hoje, quando é trocado por uma quantidade quatro vezes maior de prata. O valor do trabalho, dos cereais e do gado é sempre mais ou menos o mesmo, já que servem para os mesmos fins na vida, enquanto novas invenções de cultivo da terra e de apascentar o gado não gerarem uma disponibilidade maior do que a demanda.95 Baixar e elevar o valor das moedas são operações injustas e perniciosas. Minas abundantes fazem baixar o valor dos metais preciosos. “O padrão como tal varia muito pouco; e por isso, se instituíssem os salários fixos que em todos os casos servissem aos mesmos fins ou remunerássemos os que têm direito a eles na mesma condição com 94 95
Ibid., v. I, pp. 319-321. System of Moral Philosophy, v. II, p. 58. 45
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respeito a outros, os salários não devem ser fixos nos nomes legais da moeda nem em um certo número de onças de ouro e prata. Um decreto do Estado pode alterar os nomes legais, e o valor das onças pode mudar pelo aumento ou diminuição das quantidades desses metais. Tampouco esses salários devem ser fixados em quaisquer quantidades de produtos manufaturados mais rebuscados, pois belas invenções para facilitar o trabalho podem fazer baixar o valor de tais bens. O salário mais invariável seria tanto dias de trabalho do homem, ou determinada quantidade de bens produzidos pelos meros trabalhos não artificiais, como os bens que correspondem aos fins comuns da vida. O que mais se aproxima desse padrão são quantidades de cereais".96 Os preços dos bens dependem das despesas, dos juros do dinheiro empregado, e também dos trabalhos, do cuidado, da atenção, dos cálculos e o que a eles corresponde. Às vezes devemos “incluir também a condição da pessoa assim empregada”, já que “a despesa de seu padrão de vida deve ser custeada pelo preço de tais trabalhos, visto que eles merecem remuneração, como qualquer outro. Esse preço adicional de seus trabalhos é o fundamento justo do lucro comum dos comerciantes”. No capítulo seguinte, intitulado “Os Contratos Principais em uma Vida Social”, observamos que o arrendamento ou aluguel de bens não diretamente produtivos, como casas, é justificado pelo fato de que o proprietário poderia ter empregado seu dinheiro ou trabalho em bens por natureza produtivos. “Se, em qualquer tipo de comércio, as pessoas conseguem obter com uma grande quantidade de dinheiro ganhos muito maiores do que poderiam ter obtido sem ele, é muito justo que aquele que lhes fornece o dinheiro — meio necessário para auferir esse ganho — tenha, pelo uso do mesmo, alguma participação no lucro, no mínimo igual ao lucro que poderia ter auferido comprando coisas por natureza produtivas ou que dão renda. Isso demonstra o fundamento justo dos juros sobre o dinheiro emprestado, embora ele não seja por natureza gerador de bens. Casas não dão frutos nem ganho, nem tampouco qualquer terreno arável proporcionará qualquer ganho, sem grande trabalho. O trabalho empregado em administrar o dinheiro no comércio ou nas manufaturas torna o dinheiro tão produtivo e frutífero como qualquer outra coisa. Se os juros fossem proibidos, ninguém emprestaria dinheiro, a não ser por caridade; e muitas pessoas laboriosas que não são objetos de caridade seriam excluídas de grandes ganhos, de uma forma muito vantajosa para o público”.97 Os juros razoáveis variam conforme a situação do comércio e a quantidade da moeda. Em um país jovem auferem-se grandes lucros com somas pequenas, e a terra equivale a menos anos de compra, de sorte 96 97
Ibid., v. II, pp. 62-63. System of Moral Philosophy, v. II, pp. 71-72. 46
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que é razoável cobrar juros mais altos. As leis que regulam os juros devem observar “essas causas naturais”, do contrário serão fraudadas.98 No capítulo “Sobre a Natureza das Leis Civis e sua Execução” diz-se que, depois da piedade, as virtudes mais necessárias para um Estado são a sobriedade, a laboriosidade, a justiça e a fortaleza. “O trabalho é a fonte natural da riqueza, o fundo para todos os estoques para exportação; através da parcela que ultrapassa o valor daquilo que uma nação importa, o Estado aumenta sua riqueza e seu poder. Uma agricultura adequada deve assegurar o suprimento dos produtos necessários para a vida e os materiais para todas as manufaturas; e todas as artes mecânicas devem ser estimuladas a processar esses produtos para o consumo e para exportação. Os bens preparados para exportação devem ser isentos de todos os encargos e taxas, o mesmo acontecendo, na medida do possível, com bens necessariamente destinados ao consumo pelos artesãos; que nenhum outro país possa vender a preço mais baixo bens semelhantes, em um mercado estrangeiro. Quando só um país possui certos materiais, pode-se em segurança impor taxas de exportação, mas tão moderadas que não impeçam o consumo respectivo no exterior. “Se o povo não adquirir o hábito do trabalho, os preços baixos de todos os artigos necessários para a vida estimulam a preguiça. O melhor remédio contra isso é aumentar a demanda de todos os artigos necessários; não somente através de prêmios de exportação — o que aliás muitas vezes também é útil — mas aumentando o número de pessoas que os consomem; e quando os artigos forem caros, exigir-se-ão mais trabalho e aplicação em todos os tipos de comércio e artes para obtê-los. Eis por que estrangeiros operosos devem ser convidados a trabalhar em nosso país, e todas as pessoas que amam o trabalho devem viver entre nós sem serem molestadas. Deve-se estimular o casamento daqueles que geram uma prole numerosa para o trabalho. Os solteiros devem pagar impostos mais altos, pois não têm o encargo de gerar e educar filhos para o Estado. Deve-se banir toda e qualquer idéia tola de que as artes mecânicas são vis, como se fossem indignas para pessoas de famílias melhores, devendo-se encorajar pessoas de condição mais elevada — por nascimento ou destino — a se interessarem por essas ocupações. A indolência deve ser punida, no mínimo, com a servidão temporária. Deve-se importar matéria-prima estrangeira e até oferecer prêmios, se necessário, de sorte que a nossa própria mão-de-obra encontre emprego; e para que, exportando nós esses materiais importados e por nós transformados em produtos manufaturados, possamos obter do Exterior o preço do nosso trabalho. O preço de manufaturados estrangeiros e produtos prontos para o consumo deve ser alto, para o consumidor, se não pudermos proibir totalmente o consumo de tais bens; que esses produtos nunca sejam usados pelas 98
Ibid., v. II, p. 73. 47
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categorias mais baixas e mais numerosas da população, cujo consumo seria muito maior do que o daqueles poucos que são ricos. Deve-se encorajar a navegação, ou o transporte de bens, estrangeiros ou domésticos, pois esse é um negócio lucrativo, que muitas vezes supera todo o lucro auferido pelo comerciante. A navegação serve também à defesa marítima do país. “É inútil alegar que o luxo e a intemperança são necessários para a riqueza de um Estado, já que estimulam todo tipo de trabalho e todas manufaturas, pelo fato de gerarem um consumo elevado. É claro que não há necessariamente vício em consumir os produtos mais finos ou em usar os artigos manufaturados mais caros, desde que isto seja feito por pessoas cuja fortuna o permita, de acordo com as suas obrigações. E que aconteceria se as pessoas se tornassem mais frugais e se abstivessem mais desse tipo de coisas? Poder-se-ia exportar quantidades maiores desses bens ou artigos mais finos; e se isso não fosse possível, o trabalho e a riqueza poderiam ser igualmente fomentados, através de maior consumo de bens menos caros; com efeito, aquele que economiza, diminuindo os gastos de seu luxo ou esplendor, poderia, ajudando generosamente a seus amigos e empregando alguns sábios métodos de caridade com os pobres, fazer com que outros possam levar um padrão de vida mais elevado e consumir mais do que o que antes era consumido pelo luxo de um... A menos, portanto, que se possa encontrar uma nação em que todos disponham em abundância de todos os bens necessários e convenientes para a vida, as pessoas podem, sem qualquer luxo, consumir o máximo, fazendo provisões abundantes para seus filhos, praticando a generosidade e a liberalidade com os semelhantes e pessoas indigentes dignas, e compadecendo-se da desgraça dos pobres”.99 Sob o título “Habilidade Militar e Fortaleza”, Hutcheson expõe o que posteriormente Adam Smith expôs sob o item “Forças Armadas”, e sua opção a favor de um exército treinado.100 No mesmo capítulo, Hutcheson tem uma secção com o título marginal “quais os impostos e tributos a preferir”, contendo um repúdio à política de taxar somente pela renda: “Quanto às taxas e impostos destinados a cobrir as despesas públicas, os mais convenientes são aqueles que incidem em artigos de luxo e esplendor, mais do que sobre os incidentes sobre os artigos de necessidade; prefira-se, outrossim, taxar os produtos e artigos manufaturados estrangeiros a taxar os produtos e artigos produzidos no país; é conveniente também aplicar os impostos que podem ser cobrados com facilidade, cujo recolhimento não acarrete muito trabalho dispendioso. Mas, acima de tudo, deve-se observar uma justa proporção em relação à riqueza das pessoas, em todas as taxas ou impostos que forem recolhidos delas, a não ser que se trate de impostos sobre produtos 99 Ibid., v. II, pp. 318-321. 100 Ibid., v. I, pp. 323-325. 48
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e manufaturados estrangeiros, pois esses muitas vezes são necessários para estimular o trabalho no próprio país,101 embora não haja despesas públicas”. Essa proporcionalidade na taxação em relação à riqueza de cada um, segundo Hutcheson, não pode ser conseguida a não ser fazendo periodicamente uma estimativa da riqueza das famílias, pois impostos sobre terra oprimem indevidamente os proprietários de terras com dívidas e deixam livres os que têm dinheiro, enquanto as taxas e impostos são pagos pelo consumidor, de sorte que “pessoas generosas e hospitaleiras, ou pessoas com família numerosa, aceitam gentilmente carregar o peso principal, ao passo que o miserável e sórdido solitário pouco ou nenhum peso carrega”.102 De tudo isso resulta com clareza que Smith foi grandemente influenciado pelas tradições vigentes em sua cátedra ao escolher seus tópicos de Economia. O Dr. Scott chama atenção para o curioso fato de que a própria ordem em que os assuntos são tratados no System de Hutcheson é mais ou menos idêntica àquela em que os mesmos assuntos são tratados nas Lectures de Smith.103 Somos fortemente tentados a presumir que, quando Smith tinha que preparar às pressas suas aulas para a disciplina de Craigie, consultava as anotações feitas nas preleções de seu antigo professor Hutcheson (como fizeram, antes e depois dele, centenas de pessoas na mesma situação) — e agrupava os assuntos econômicos como uma introdução e continuação das preleções que trouxera consigo de Edimburgo. Hutcheson foi um professor que inspirava os alunos. Seu colega, Leechman, afirma: “Já que todo ano tinha oportunidade, no decurso de suas preleções, de explicar a origem do governo e comparar suas diversas formas, tomava cuidado especial, ao tratar do assunto, para inculcar a importância da liberdade civil e religiosa para a felicidade humana; e já que um ardente amor à liberdade e um zelo viril no sentido de promovê-la eram princípios soberanos em seu próprio íntimo, sempre insistia longamente nisto, desenvolvendo o tema com a maior força de argumentação e veemência persuasiva; e tinha tanto sucesso neste ponto importante, que poucos de seus alunos, se é que tais havia, por mais preconceitos que trouxessem consigo, jamais deixavam de simpatizar com os conceitos que ele desposava e defendia, quanto a esse ponto”.104 Meio século mais tarde, Adam Smith, referindo-se à cadeira de Filosofia de Glasgow, dizia que ela era um “cargo ao qual a habilidade e as virtudes do inesquecível Dr. Hutcheson tinham conferido um altíssimo grau de prestígio”.105 Todavia, se temos razões para crer que Adam Smith foi influen101 102 103 104 105
Ibid., v. II, pp. 340-341. Ibid., v. I, pp. 341-342. SCOTT, W. R. Francis Hutcheson, pp. 232-235. LEECHMAN. “Prefácio”. In: HUTCHESON. System of Moral Philosophy, pp. XXXV, XXXVI. RAE. Life of Adam Smith, p. 411. 49
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ciado por Hutcheson em sua orientação geral para o liberalismo, não parece haver motivos para atribuir à influência de Hutcheson a convicção sobre o caráter benéfico do interesse próprio, que permeia sua obra A Riqueza das Nações e, desde então, constituiu um ponto de partida para a pesquisa econômica. Como demonstram algumas das passagens por nós citadas, Hutcheson era um mercantilista, e todo o ensinamento econômico que se encontra em seu System é desprezível em confronto com as vigorosas preleções de Smith sobre os preços baixos ou a abundância, com as suas denúncias, tantas vezes repetidas, contra o “absurdo” de teses correntes e contra os “regulamentos perniciosos” decorrentes desses erros. Vinte anos após assistir às preleções de Hutcheson, Adam Smith o criticou expressamente por dar muito pouco valor ao amor próprio. No capítulo da Teoria Sobre os Sentimentos Morais, relativo aos sistemas filosóficos para os quais a virtude consiste na benevolência, afirma que, segundo Hutcheson, só é benevolência aquilo que imprime a uma ação o caráter de virtude: a ação mais benevolente seria aquela que visa ao bem do maior número de pessoas, e o amor próprio princípio que jamais poderia ser virtuoso, embora inocente quando não tem outro efeito senão o de fazer o indivíduo cuidar de sua própria felicidade. Esse “sistema afável, um sistema que tem uma tendência peculiar a alimentar e reforçar no coração humano a mais nobre e a mais agradável das afeições humanas”, tem, para Smith, o “defeito de não explicar suficientemente donde vem a nossa aprovação das virtudes inferiores da prudência, vigilância, circunspecção, temperança, constância, firmeza”. “Também no tocante à nossa própria felicidade e interesse particular — prossegue ele — em muitas ocasiões depara-se com princípios de ação altamente elogiáveis. Geralmente se supõe que os hábitos de economia, laboriosidade, discrição, atenção e aplicação do pensamento são cultivados por motivos de interesse próprio, e ao mesmo tempo afirma-se que são qualidades altamente apreciáveis, que merecem a estima e aprovação de todos... Desaprova-se universalmente o descuido e falta de economia, não, porém, como procedentes de uma falta de benevolência, mas de uma falta de atenção adequada aos objetos do interesse próprio”.106 Adam Smith manifestamente acreditava que o sistema de Hutcheson não dava o devido lugar ao interesse próprio. Não foi Hutcheson que inspirou sua observação de que “não é da benevolência do açougueiro, do fabricante de cerveja ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse”.107 De Hutcheson, Smith pode ter haurido um amor geral à liberdade, mas de onde hauriu a convicção de que o interesse próprio contribui para beneficiar toda a comunidade econômica? Naturalmente, pode ter formado essa convicção por si mesmo, sem jamais ter ouvido outra 106 Moral Sentiments, 1759, pp. 464-466. 107 The Wealth of Nations, Ed. Cannan, 1976, v. I, p. 18. 50
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preleção ou ter lido outro livro, após deixar de ser aluno de Hutcheson. Mas parece provável — mais do que isso não podemos afirmar com segurança — que foi ajudado pelo estudo de Mandeville, escritor ao qual não têm feito suficiente justiça os historiadores da Economia, embora McCulloch faça uma alusão favorável sobre o assunto, em sua Literature of Political Economy. No capítulo de Moral Sentiments, que segue ao que contém a crítica de Hutcheson, Smith trata dos “Sistemas Licenciosos”. Os fenômenos que se observam na natureza humana — diz ele — os quais à primeira vista parecem favorecer tais sistemas, foram “levemente esboçados com a elegância e delicada precisão do Duque de Rochefaucault, e posteriormente, mais plenamente descritos pela eloqüência viva e cheia de humor, embora rude e rústica, do Dr. Mandeville”.108 Mandeville — afirma Smith — atribui todos os atos elogiáveis a “um amor ao elogio e ao aplauso” ou “à vaidade”, e não contente com isso procura salientar a imperfeição da virtude humana sob muitos outros aspectos. “Sempre que em nossa reserva com respeito ao prazer não corresponder à abstinência mais ascética, ele a considera como luxúria e sensualidade grosseiras. Segundo ele, é luxúria tudo o que vai além daquilo que é absolutamente necessário para a subsistência da natureza humana, de sorte que há vício mesmo no uso de uma camisa limpa ou de uma moradia conveniente.”109 Todavia, na opinião de Smith, Mandeville incorreu na grande falácia de apresentar toda paixão como totalmente viciada, em qualquer grau e direção: “Assim é que trata como vaidade tudo o que tenha qualquer referência àquilo que são ou devem ser os sentimentos dos outros; e é através desse sofisma que afirma sua conclusão favorita, de que os vícios privados são benefícios públicos. Se o amor pela magnificência, um gosto pelas artes elegantes e pelos requintes da vida humana, por tudo aquilo que é agradável no vestir, na mobília, nos pertences, pela arquitetura estatuária, pintura e música, deve ser considerado como luxúria, sensualidade e ostentação mesmo naqueles que, pela sua situação, podem permitir-se isso, sem nenhum inconveniente, é certo que a luxúria, sensualidade e ostentação representam benefícios públicos; pois, sem as qualidades que ele considera adequado designar com tais termos vergonhosos, as artes e ofícios que produzem objetos finos nunca seriam estimulados e deveriam fenecer por falta de utilização”.110 “Tal é — concluiu Smith — o sistema do Dr. Mandeville, que já chegou a provocar tanto rebuliço no mundo”. Por mais destrutivo que pareça esse sistema, pensa Smith, “nunca teria conseguido impor-se a tantas pessoas, nem despertar alarme tão generalizado entre os que 108 Moral Sentiments, 1759, p. 474. 109 Ibid., p. 483. 110 Ibid., p. 485. 51
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gostam de princípios melhores, se, sob algum aspecto, não tivesse algo de verdadeiro”.111 A obra de Mandeville consistia, em sua origem, simplesmente em um poema de 400 linhas com o título “A Colmeia Resmunguenta, ou: os Velhacos Virando Honestos” — poesia esta que, segundo o próprio Mandeville, foi publicada por volta de 1705,112 em forma de um panfleto de seis pence. Reimprimiu-a em 1714, anexando-lhe uma quantidade muito maior de prosa, sob o título de A Fábula das Abelhas: ou seja, Vícios Privados, Benefícios Públicos; com um Ensaio Sobre Caridade e Escolas de Caridade e uma Investigação sobre a Natureza da Sociedade. Em 1729 acrescentou-lhe uma segunda parte, quase tão extensa como a primeira, consistindo em um diálogo sobre o assunto. Descreve-se “A Colmeia Resmunguenta”, que na realidade é uma sociedade humana, em grande prosperidade, estado esse que perdura enquanto prosperam os vícios: Os piores de toda a multidão fizeram algo para o bem comum. Esse era o ofício do Estado, o qual mantinha o todo, do qual dada parte se queixava: Isso, como harmonia musical, fazia com que todos os que brigavam entre si concordassem no essencial; Partidos frontalmente opostos ajudam-se mutuamente, como se fosse por despeito E a temperança com sobriedade estão a serviço da embriaguez e da glutoneria. A raiz do mal, a avareza, esse vício condenável, mau e pernicioso, servia como escravo à prodigalidade, esse pecado nobre; ao passo que a luxúria proporcionava emprego a um milhão de pobres, e o orgulho odioso dava emprego a outro milhão; A própria inveja e a vaidade estavam a serviço da laboriosidade; sua insensatez encantadora, sua leviandade no comer, nas mobílias e no vestir, esse vício estranho e ridículo, era a verdadeira roda que movimentava o comércio. Suas leis e roupas eram igualmente objetos mutáveis, pois o que um dia considerou-se bom, em meio ano tornou-se um crime; Entretanto, embora alterando assim suas leis, ainda encontrando e corrigindo falhas 111 Moral sentiments, p. 487. 112 Fable of the Bees. 1714. “Prefácio”. 52
ADAM SMITH
pela inconstância corrigiram faltas que nenhuma prudência podia prever. Assim, o vício nutria a inventividade, que se juntava ao tempo e ao trabalho, Tivessem as conveniências da vida alçado Seus prazeres reais, confortos e vagares a alturas que tais, os muito pobres melhor viveriam que os ricos outrora e nada mais a acrescentar!113 Mas as abelhas resmungavam até que Júpiter, furioso, jurou que libertaria a colmeia da fraude. O enxame tornou-se virtuoso, frugal e honesto, e a partir dali o comércio foi à ruína por cessarem os gastos. Ao final da “Investigação Sobre a Natureza da Sociedade”, o autor resume assim sua conclusão: “Depois disto, orgulho-me em ter demonstrado que os fundamentos da sociedade não são as qualidades amigas e as afeições delicadas que são naturais ao homem, nem as virtudes reais que o homem é capaz de adquirir pela razão e pela abnegação; ao contrário, aquilo que no mundo chamamos de mal — quer se trate do moral ou do natural — é o grande princípio que nos torna criaturas sociáveis, a base sólida, a vida e o esteio de todo o comércio e de todas as profissões, sem exceção; é nisso que devemos procurar a verdadeira origem de todas as artes e ciências, e no momento em que o mal cessar, a sociedade necessariamente estará arruinada, se não totalmente dissolvida”.114 Em uma carta ao London Journal de 10 de agosto de 1723, que reimprimiu na edição de 1724, Mandeville defendeu essa passagem com vigor, contra uma crítica hostil. Se — dizia ele — estivesse escrevendo para ser entendido pelas inteligências mais mesquinhas, teria explicado que toda carência é um mal: “que da multiplicidade dessas carências dependem todos esses serviços mútuos que os membros individuais de uma sociedade prestam um ao outro; e que, conseqüentemente, quanto maior é a variedade de carências, tanto maior é o número de indivíduos que podem encontrar seu interesse particular em trabalhar para o bem dos outros e, unidos, compor um só corpo”.115 Se levarmos em conta a crítica de Smith a Hutcheson e Mandeville, acrescentando capítulos de Moral Sentiments, e além disso recordarmos que quase certamente ele deve ter conhecido a Fábula das Abelhas ao assistir às preleções de Hutcheson ou pouco depois, é difícil não suspeitar que foi Mandeville quem primeiro o fez entender que “não é da benevolência do açougueiro, do fabricante de cerveja ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração deles pelo 113 pp. 11-13, ed. de 1705. 114 pp. 427-428, 2ª ed., 1723. 115 pp. 465, ed. de 1724. 53
OS ECONOMISTAS
seu interesse próprio”. Considerando a palavra vício como um erro em lugar de amor-próprio, Adam Smith poderia ter repetido cordialmente as já citadas linhas de Mandeville: Assim, o vício alimentava a inventividade a qual se associava à folga e ao trabalho Tivesse as conveniências da vida alçado Seus prazeres reais, confortos e vagares a alturas que tais, os muito pobres viveriam melhor que os ricos outrora; Smith pôs versos maus em prosa e acrescentou algo do amor hutchesoniano à liberdade ao propor o que é realmente o texto da parte polêmica de Riqueza das Nações: “O esforço natural de cada indivíduo no sentido de melhorar sua própria condição, quando sofrido para exercer-se com liberdade e segurança, é um princípio tão poderoso, que ele é capaz, sozinho e sem qualquer ajuda, não somente de levar a sociedade à riqueza e à prosperidade, mas de superar centenas de obstáculos impertinentes com os quais a insensatez das leis humanas muitas vezes obstacula seus atos”.116 A experiência mostra que uma crença generalizada no caráter benéfico da força econômica do egoísmo nem sempre é suficiente para fazer de uma pessoa — mesmo dotada de inteligência acima da média — um livre-cambista. Conseqüentemente, seria precipitado supor que o ceticismo de Smith face ao sistema mercantil era simplesmente o produto natural de sua crença geral na liberdade econômica. As citações que Dugald Stewart traz de seu manuscrito de 1755 nada contêm que mostre que ele desprezasse a doutrina antes de deixar Edimburgo e nos primeiros anos de sua estadia em Glasgow. Parece muito provável que a referência das Lectures aos “ensaios (de Hume) que mostram o absurdo dessas e outras doutrinas semelhantes”117 deve ser considerada como um reconhecimento obrigacional e que, portanto, foi Hume com seus Political Discourses sobre o dinheiro e a balança comercial, de 1752, quem primeiro abriu os olhos de Adam Smith para esse assunto. Essa probabilidade é levemente reforçada pelo fato de que, nas Lectures, as falácias mercantis no tocante à balança comercial eram expostas no contexto de Dinheiro, como nos Discourses de Hume, ao invés de serem expostas no lugar que teriam ocupado se Smith tivesse seguido a ordem de Hutcheson, ou as tivesse colocado entre as causas do “progresso lento da opulência”. Além disso, talvez não seja mera coincidência que embora tanto Hume em seus Discourses de 1752, como Smith nas preleções datadas de dez anos mais tarde, rejeitem totalmente o objetivo de garantir uma balança comercial favorável, Hume continuava a crer na utilidade do protecionismo para as indústrias do 116 The Wealth of Nations, Ed. Cannan, 1976, v. II, p. 49. 117 Lectures, p. 197. 54
ADAM SMITH
País e também Smith — como se conta — fez concessões apreciáveis a essa teoria.118 Seria inútil levar aqui mais adiante a investigação sobre a origem das teses de Adam Smith. Talvez já a tenhamos levado muito longe. No decurso de A Riqueza das Nações, Smith cita realmente com seu próprio nome ou o de seus autores quase cem livros. Um estudo atento das notas à presente edição convencerá o leitor de que, embora algumas delas sejam citações de segunda mão, o número realmente utilizado foi muito maior. Geralmente Smith extrai muito pouco de cada autor citado — às vezes somente um fato, frase ou opinião individual — de sorte que poucos autores haverá que mais do que Smith mereçam a censura de haver “saqueado” a obra de outros. Na realidade, esta acusação nunca lhe foi feita com seriedade, exceto em relação às Réflexions de Turgot, e nesse caso concreto, jamais se conseguiu apresentar sequer um mínimo de evidência que mostre haver Smith jamais usado ou mesmo visto o livro em questão. A Riqueza das Nações não foi uma obra escrita com pressa, como se o autor tivesse ainda vivas no cérebro as impressões hauridas de leituras recentes. A redação da obra engloba no mínimo os 27 anos que vão desde 1749 até 1776. Durante esse período, muitas idéias e concepções econômicas cruzaram e recruzaram muitas vezes o Canal da Mancha, e seria inútil e até mesmo demonstração de inveja e hostilidade disputar sobre a parcela que cabe à Grã-Bretanha e à França, no progresso efetuado. Ir além disso, e tentar atribuir a cada autor o mérito a que faz realmente jus, é como postar-se em uma praia e discutir se foi a esta ou àquela onda que mais se deveu a maré alta. Pode parecer que uma onda teve o mérito de varrer para longe o primeiro castelo de areia de uma criança, e uma outra onda pode evidentemente varrer o segundo castelinho de areia. Mas os dois castelos teriam sido inundados da mesma forma e quase ao mesmo tempo em um dia perfeitamente tranqüilo, com a mesma eficiência.
118 Supra, pp. XXV, XXVIII. Aliás, antes de publicar a 2ª edição de seus Discourses, Hume escreveu a Adam Smith solicitando sugestões. Que Smith não fez nenhuma observação sobre a passagem a favor do protecionismo contida no “discourse” sobre balanço de pagamentos, parece poder-se inferir do fato de a referida passagem ter permanecido inalterada. (Ver HUME, Essays, Green & Grose, v. I, pp. 59, 343 e 344.) 55
A RIQUEZA
DAS
NAÇÕES
Investigação Sobre sua Natureza e suas Causas
INTRODUÇÃO
E
PLANO
DA
OBRA
O trabalho anual de cada nação constitui o fundo que originalmente lhe fornece todos os bens necessários e os confortos materiais que consome anualmente. O mencionado fundo consiste sempre na produção imediata do referido trabalho ou naquilo que com essa produção é comprado de outras nações. Conforme, portanto, essa produção, ou o que com ela se compra, estiver numa proporção maior ou menor em relação ao número dos que a consumirão, a nação será mais ou menos bem suprida de todos os bens necessários e os confortos de que tem necessidade. Essa proporção deve em cada nação ser regulada ou determinada por duas circunstâncias diferentes; primeiro, pela habilidade, destreza e bom senso com os quais seu trabalho for geralmente executado; em segundo lugar, pela proporção entre o número dos que executam trabalho útil e o dos que não executam tal trabalho. Qualquer que seja o solo, o clima ou a extensão do território de uma determinada nação, a abundância ou escassez do montante anual de bens de que disporá, nessa situação específica, dependerá necessariamente das duas circunstâncias que acabamos de mencionar. Por outro lado, a abundância ou escassez de bens de que a nação disporá parece depender mais da primeira das duas circunstâncias mencionadas do que da segunda. Entre as nações selvagens, de caçadores e pescadores, cada indivíduo capacitado para o trabalho ocupa-se mais ou menos com um trabalho útil, procurando obter, da melhor maneira que pode, os bens necessários e os confortos materiais para si mesmo ou para os membros de sua família ou tribo que são muito velhos ou muito jovens, ou doentes demais para ir à caça e à pesca. Todavia, tais nações sofrem tanta pobreza e miséria que, somente por falta de bens, freqüentemente são reduzidas — ou pelos menos pensam estar reduzidas — à necessidade de às vezes eliminar e às vezes abandonar suas crianças, seus velhos e as pessoas que sofrem de doenças prolongadas, as quais perecem de fome ou são devoradas por animais selvagens. Ao contrário, entre nações civilizadas e prósperas, embora grande parte dos cidadãos não trabalhe, muitos deles, com efeito, consomem a produção correspondente a 10 ou até 100 vezes a que é consumida pela maior parte dos que trabalham — a produção resultante 59
OS ECONOMISTAS
de todo o trabalho da sociedade é tão grande, que todos dispõem, muitas vezes, de suprimento abundante, e um trabalhador, mesmo o mais pobre e de baixa posição, se for frugal e laborioso, pode desfrutar de uma porção maior de bens necessários e confortos materiais, do que aquilo que qualquer selvagem pode adquirir. As causas desse aprimoramento nas forças produtivas do trabalho, e a ordem segundo a qual sua produção é naturalmente distribuída entre as diferentes classes e condições de membros da sociedade, constituem o objeto do Livro Primeiro desta obra. Qualquer que seja a situação real da habilidade, destreza e bom senso com os quais o trabalho é executado em uma nação, a abundância ou escassez de seu suprimento anual depende necessariamente, enquanto durar esse estado de coisas, da proporção entre o número dos que anualmente executam um trabalho útil e o daqueles que não executam tal trabalho. O número dos que executam trabalho útil e produtivo — como se verá mais adiante — em toda parte está em proporção com a quantidade do capital empregado para dar-lhes trabalho e com a maneira específica de empregar esse capital. Eis por que o Livro Segundo desta obra tratará da natureza do capital, da maneira como ele pode ser gradualmente acumulado, e das quantidades diferentes de trabalho que o capital põe em movimento, de acordo com as diferentes maneiras como é empregado. As nações razoavelmente desenvolvidas no tocante à habilidade, destreza e bom senso com os quais o trabalho é executado, têm adotado planos muito diferentes na gestão ou direção geral do referido trabalho, sendo que esses planos diversos nem sempre têm favorecido de maneira igual a grandeza de sua produção. A política de algumas nações incentivou extraordinariamente a indústria119 do campo, ao passo que a de outras estimulou mais a indústria das cidades. Dificilmente existe uma nação que tenha adotado a mesma política em relação a cada tipo de indústria. Desde a queda do Império Romano, a política da Europa tem favorecido as artes e ofícios, as manufaturas e o comércio, indústria das cidades, mais do que a agricultura, indústria do campo. O Livro Terceiro expõe as circunstâncias que parecem ter introduzido e estabelecido essa política. Embora esses planos diferentes talvez tenham sido de início introduzidos pelos interesses particulares e preconceitos de classes específicas de pessoas — sem nenhuma consideração ou previsão das suas conseqüências para o bem-estar da sociedade —, não obstante isso, deram origem a concepções ou teorias de Economia Política muito diferentes entre si; algumas delas enaltecem a importância da atividade 119 A palavra indústria, à época de Adam Smith, designava todo tipo de atividade econômica, inclusive a agrícola, só mais tarde adquirindo o significado restrito que hoje lhe é atribuído. Quando se trata da atividade designada atualmente por indústria de transformação, aparece muitas vezes nesta obra a palavra manufature — e suas derivadas — traduzida literalmente, com a conotação da época. (N. do E.) 60
ADAM SMITH
das cidades, outras encarecem a importância da do campo. Essas teorias tiveram uma influência considerável, não somente sobre as teses dos eruditos ou pesquisadores, mas também sobre a gestão pública dos príncipes e governantes dos Estados. No Livro Quarto, procurei explicar, da maneira mais completa e clara que pude, essas diferentes teorias, bem como os efeitos principais que produziram nas diversas épocas e nações. O objetivo desses quatro primeiros Livros é explicar em que consistiu a receita ou renda do conjunto do povo, ou qual foi a natureza desses fundos que, em épocas e nações diferentes, asseguraram seu consumo anual. O quinto e último Livro trata da receita do soberano, ou “Commonwealth”. Neste Livro procurei mostrar: primeiro, quais são as despesas necessárias do soberano, ou “Commonwealth”; quais dessas despesas devem ser cobertas pela contribuição geral de toda a sociedade; e quais delas devem ser cobertas somente pela contribuição de alguma parcela específica da população ou por alguns dos seus membros específicos; em segundo lugar, procurei expor quais são os diversos métodos pelos quais a sociedade inteira pode ser obrigada a contribuir para cobrir as despesas a cargo da sociedade toda e quais são as principais vantagens e inconveniências de cada um desses métodos; em terceiro e último lugar, quais são as razões e causas que induziram quase todos os governos modernos a hipotecar uma parte dessa receita ou a contrair dívidas, e quais têm sido os efeitos dessas dívidas sobre a riqueza real, a produção anual da terra e do trabalho da sociedade.
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LIVRO PRIMEIRO
As Causas do Aprimoramento das Forças Produtivas do Trabalho e a Ordem Segundo a qual sua Produção é Naturalmente Distribuída Entre as Diversas Categorias do Povo
CAPÍTULO I A Divisão do Trabalho
O maior aprimoramento das forças produtivas do trabalho, e a maior parte da habilidade, destreza e bom senso com os quais o trabalho é em toda parte dirigido ou executado, parecem ter sido resultados da divisão do trabalho. Compreenderemos mais facilmente os efeitos produzidos pela divisão do trabalho na economia geral da sociedade, se considerarmos de que maneira essa divisão do trabalho opera em algumas manufaturas específicas. É comum supor que a divisão do trabalho atinge o grau máximo em algumas manufaturas muito pequenas; não, talvez, no sentido de que nessas a divisão do trabalho seja maior do que em outras de maior importância; acontece, porém, que nessas manufaturas menores, destinadas a suprir as pequenas necessidades de um número pequeno de pessoas, o número total de trabalhadores é necessariamente menor, e os trabalhadores empregados em cada setor de trabalho muitas vezes podem ser reunidos no mesmo local de trabalho e colocados imediatamente sob a perspectiva do espectador. Ao contrário, nas grandes manufaturas, destinadas a suprir as grandes necessidades de todo o povo, cada setor do trabalho emprega um número tão grande de operários que é impossível reuni-los todos no mesmo local de trabalho. Raramente podemos, em um só momento, observar mais do que os operários ocupados em um único setor. Embora, portanto, nessas manufaturas maiores, o trabalho possa ser dividido em um número de partes muito maior do que nas manufaturas menores, a divisão do trabalho não é tão óbvia, de imediato, e por isso tem sido menos observada. Tomemos, pois, um exemplo, tirado de uma manufatura muito pequena, mas na qual a divisão do trabalho muitas vezes tem sido notada: a fabricação de alfinetes. Um operário não treinado para essa atividade (que a divisão do trabalho transformou em uma indústria específica) nem familiarizado com a utilização das máquinas ali empregadas (cuja invenção provavelmente também se deveu à mesma 65
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divisão do trabalho), dificilmente poderia talvez fabricar um único alfinete em um dia, empenhando o máximo de trabalho; de qualquer forma, certamente não conseguirá fabricar vinte. Entretanto, da forma como essa atividade é hoje executada, não somente o trabalho todo constitui uma indústria específica, mas ele está dividido em uma série de setores, dos quais, por sua vez, a maior parte também constitui provavelmente um ofício especial. Um operário desenrola o arame, um outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da cabeça do alfinete; para fazer uma cabeça de alfinete requerem-se 3 ou 4 operações diferentes; montar a cabeça já é uma atividade diferente, e alvejar os alfinetes é outra; a própria embalagem dos alfinetes também constitui uma atividade independente. Assim, a importante atividade de fabricar um alfinete está dividida em aproximadamente 18 operações distintas, as quais, em algumas manufaturas são executadas por pessoas diferentes, ao passo que, em outras, o mesmo operário às vezes executa 2 ou 3 delas. Vi uma pequena manufatura desse tipo, com apenas 10 empregados, e na qual alguns desses executavam 2 ou 3 operações diferentes. Mas, embora não fossem muito hábeis, e portanto não estivessem particularmente treinados para o uso das máquinas, conseguiam, quando se esforçavam, fabricar em torno de 12 libras de alfinetes por dia. Ora, 1 libra contém mais do que 4 mil alfinetes de tamanho médio. Por conseguinte, essas 10 pessoas conseguiam produzir entre elas mais do que 48 mil alfinetes por dia. Assim, já que cada pessoa conseguia fazer 1/10 de 48 mil alfinetes por dia, pode-se considerar que cada uma produzia 4 800 alfinetes diariamente. Se, porém, tivessem trabalhado independentemente um do outro, e sem que nenhum deles tivesse sido treinado para esse ramo de atividade, certamente cada um deles não teria conseguido fabricar 20 alfinetes por dia, e talvez nem mesmo 1, ou seja: com certeza não conseguiria produzir a 240ª parte, e talvez nem mesmo a 4 800ª parte daquilo que hoje são capazes de produzir, em virtude de uma adequada divisão do trabalho e combinação de suas diferentes operações. Em qualquer outro ofício e manufatura, os efeitos da divisão do trabalho são semelhantes aos que se verificam nessa fábrica insignificante embora em muitas delas o trabalho não possa ser tão subdividido, nem reduzido a uma simplicidade tão grande de operações. A divisão do trabalho, na medida em que pode ser introduzida, gera, em cada ofício, um aumento proporcional das forças produtivas do trabalho. A diferenciação das ocupações e empregos parece haver-se efetuado em decorrência dessa vantagem. Essa diferenciação, aliás, geralmente atinge o máximo nos países que se caracterizam pelo mais alto grau da evolução, no tocante ao trabalho e aprimoramento; o que, em uma sociedade em estágio primitivo, é o trabalho de uma única pessoa, é o de várias em uma sociedade mais evoluída. Em toda sociedade desenvolvida, o agricultor geralmente é apenas agricultor, e o operário de indústria somente isso. Também o trabalho que é necessário para 66
ADAM SMITH
fabricar um produto completo quase sempre é dividido entre grande número de operários. Quantas são as atividades e empregos em cada setor da manufatura do linho e da lã, desde os cultivadores até os branqueadores e os polidores do linho, ou os tingidores e preparadores do tecido! A natureza da agricultura não comporta tantas subdivisões do trabalho, nem uma diferenciação tão grande de uma atividade para outra, quanto ocorre nas manufaturas. É impossível separar com tanta nitidez a atividade do pastoreador da do cultivador de trigo quanto a atividade do carpinteiro geralmente se diferencia da do ferreiro. Quase sempre o fiandeiro é uma pessoa, o tecelão, outra, ao passo que o arador, o gradador, o semeador e o que faz a colheita do trigo muitas vezes são a mesma pessoa. Já que as oportunidades para esses diversos tipos de trabalho só retornam com as diferentes estações do ano, é impossível empregar constantemente um único homem em cada uma delas. Essa impossibilidade de fazer uma diferenciação tão completa e plena de todos os diversos setores de trabalho empregados na agricultura constitui talvez a razão por que o aprimoramento das forças produtivas do trabalho nesse setor nem sempre acompanha os aprimoramentos alcançados nas manufaturas. As nações mais opulentas geralmente superam todos os seus vizinhos tanto na agricultura como nas manufaturas; geralmente, porém, distinguem-se mais pela superioridade na manufatura do que pela superioridade na agricultura. Suas terras geralmente são mais bem cultivadas, e, pelo fato de investirem mais trabalho e mais dinheiro nelas, produzem mais em proporção à extensão e à fertilidade natural do solo. Entretanto, essa superioridade da produção raramente é muito mais do que em proporção à superioridade de trabalho e dispêndio. Na agricultura, o trabalho do país rico nem sempre é muito mais produtivo do que o dos países pobres, ou, pelo menos, nunca é mais produtivo na mesma proporção em que o é, geralmente, nas manufaturas. Por conseguinte, o trigo do país rico, da mesma qualidade, nem sempre chega ao mercado com preço mais baixo do que o do país pobre. O trigo da Polônia, com o mesmo grau de qualidade, é tão barato como o da França, não obstante a maior riqueza e o grau superior de desenvolvimento da França. O trigo da França é, nas províncias tritícolas, tão bom e freqüentemente quase do mesmo preço que o trigo da Inglaterra, embora, em riqueza e progresso, a França talvez seja inferior à Inglaterra. As terras destinadas ao cultivo de trigo na Inglaterra são mais bem cultivadas do que as da França, e, como se afirma, as da França são muito mais bem cultivadas que as da Polônia. Todavia, embora um país pobre, não obstante a inferioridade no cultivo das terras, possa, até certo ponto, rivalizar com os países ricos quanto aos baixos preços e à qualidade do trigo, jamais poderá enfrentar a competição no tocante às suas manufaturas; ao menos se essas indústrias atenderem às características do solo, do clima e da situação do país rico. As sedas da França são melhores e mais baratas que as da Inglaterra, porque a manufatura da seda, ao menos atualmente, com os 67
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altos encargos incidentes sobre a importação da seda em estado bruto, não é tão adequada para o clima da Inglaterra como o é para o da França. Em contrapartida, as ferragens de ferro e as lãs rústicas da Inglaterra são de uma superioridade incomparável em relação às da França, e também muito mais baratas, no mesmo grau de qualidade. Na Polônia, afirma-se não haver praticamente manufatura de espécie alguma, excetuadas algumas indústrias caseiras, de tipo mais primitivo, com as quais nenhum país consegue subsistir. Esse grande aumento da quantidade de trabalho que, em conseqüência da divisão do trabalho, o mesmo número de pessoas é capaz de realizar, é devido a três circunstâncias distintas: em primeiro lugar, devido à maior destreza existente em cada trabalhador; em segundo, à poupança daquele tempo que, geralmente, seria costume perder ao passar de um tipo de trabalho para outro; finalmente, à invenção de um grande número de máquinas que facilitam e abreviam o trabalho, possibilitando a uma única pessoa fazer o trabalho que, de outra forma, teria que ser feito por muitas. Em primeiro lugar, vejamos como o aprimoramento da destreza do operário necessariamente aumenta a quantidade de serviço que ele pode realizar; a divisão do trabalho, reduzindo a atividade de cada pessoa a alguma operação simples e fazendo dela o único emprego de sua vida, necessariamente aumenta muito a destreza do operário. Estou certo de que um ferreiro comum que, embora acostumado a manejar o martelo, nunca fez pregos, se em alguma ocasião precisar e tentar fazê-lo, dificilmente conseguirá ir além de 200 ou 300 pregos por dia, aliás de muito má qualidade. Um ferreiro que está acostumado a fazer pregos, mas cuja única ou principal atividade não tem sido esta, raramente conseguirá, mesmo com o esforço máximo, fazer mais do que 800 ou 1 000 pregos por dia. Tenho visto, porém, vários rapazes abaixo dos vinte anos que nunca fizeram outra coisa senão fabricar pregos e que, quando se empenhavam a fundo, conseguiam fazer, cada um deles, mais de 2 300 pregos por dia. E, no entanto, fazer pregos não é de forma alguma das operações mais simples. A mesma pessoa aciona o fole, atiça ou melhora o fogo quando necessário, aquece o ferro, e forja cada segmento do prego; ao forjar a cabeça do prego, é obrigada a mudar de ferramentas. As diferentes operações em que se subdivide a fabricação de um alfinete ou de um botão metálico são todas elas muito mais simples, sendo geralmente muito maior a destreza da pessoa que sempre fez isso na vida. A rapidez com a qual são executadas algumas das operações dessas manufaturas supera o que uma pessoa que nunca o presenciou acreditaria possível de ser conseguido pelo trabalho manual. Em segundo lugar, a vantagem que se aufere economizando o tempo que geralmente se perderia no passar de um tipo de trabalho para o outro é muito maior do que à primeira vista poderíamos imaginar. É impossível passar com muita rapidez de um tipo de trabalho para outro, porque este é executado em lugar diferente e com ferramentas muito diversas. Um tecelão do campo, que cultiva uma pequena 68
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propriedade, é obrigado a gastar bastante tempo em passar do seu tear para o campo, e do campo para o tear. Se os dois trabalhos puderem ser executados no mesmo local, certamente a perda de tempo é muito menor. Mas, mesmo nesse caso, ela ainda é muito considerável. Geralmente, uma pessoa se desconcerta um pouco ao passar de um tipo de trabalho para outro. Ao começar o novo trabalho, raramente ela se dedica logo com entusiasmo; sua cabeça “está em outra”, como se diz, e, durante algum tempo ela mais flana do que trabalha seriamente. O hábito de vadiar e de aplicar-se ao trabalho indolente e descuidadamente adquiridos naturalmente — e quase necessariamente — por todo trabalhador do campo que é obrigado a mudar de trabalho e de ferramentas a cada meia hora e a fazer vinte trabalhos diferentes a cada dia, durante a vida toda, quase sempre o torna indolente e preguiçoso, além de fazê-lo incapaz de aplicar-se com intensidade, mesmo nas ocasiões de maior urgência. Independentemente, portanto, de sua deficiência no tocante à destreza ou rapidez, essa razão é suficiente para reduzir sempre e consideravelmente a quantidade de trabalho que ele é capaz de levar a cabo. Em terceiro — e último lugar — precisamos todos tomar consciência de quanto o trabalho é facilitado e abreviado pela utilização de máquinas adequadas. É desnecessário citar exemplos. Limitar-me-ei, portanto, a observar que a invenção de todas essas máquinas que tanto facilitam e abreviam o trabalho parece ter sua origem na divisão do trabalho. As pessoas têm muito maior probabilidade de descobrir com maior facilidade e rapidez métodos para atingir um objetivo quando toda a sua atenção está dirigida para esse objeto único, do que quando a mente se ocupa com uma grande variedade de coisas. Mas, em conseqüência da divisão do trabalho, toda a atenção de uma pessoa é naturalmente dirigida para um único objeto muito simples. Eis por que é natural podermos esperar que uma ou outra das pessoas ocupadas em cada setor de trabalho específico logo acabe descobrindo métodos mais fáceis e mais rápidos de executar seu trabalho específico, sempre que a natureza do trabalho comporte tal melhoria. Grande parte das máquinas utilizadas nas manufaturas em que o trabalho está mais subdividido constituiu originalmente invenções de operários comuns, os quais, com naturalidade, se preocuparam em concentrar sua atenção na procura de métodos para executar sua função com maior facilidade e rapidez, estando cada um deles empregado em alguma operação muito simples. Quem quer que esteja habituado a visitar tais manufaturas deve ter visto muitas vezes máquinas excelentes que eram invenção desses operários, a fim de facilitar e apressar a sua própria tarefa no trabalho. Nas primeiras bombas de incêndio um rapaz estava constantemente entretido em abrir e fechar alternadamente a comunicação existente entre a caldeira e o cilindro, conforme o pistão subia ou descia. Um desses rapazes, que gostava de brincar com seus companheiros, observou que, puxando com um barbante a partir da alavanca da válvula que abria essa comunicação com um outro componente da má69
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quina, a válvula poderia abrir e fechar sem ajuda dele, deixando-o livre para divertir-se com seus colegas. Assim, um dos maiores aperfeiçoamentos introduzidos nessa máquina, desde que ela foi inventada, foi descoberto por um rapaz que queria poupar-se no próprio trabalho. Contudo, nem todos os aperfeiçoamentos introduzidos em máquinas representam invenções por parte daqueles que utilizavam essas máquinas. Muitos deles foram efetuados pelo engenho dos fabricantes das máquinas, quando a fabricação de máquinas passou a constituir uma profissão específica; alguns desses aperfeiçoamentos foram obra de pessoas denominadas filósofos ou pesquisadores, cujo ofício não é fazer as coisas, mas observar cada coisa, e que, por essa razão, muitas vezes são capazes de combinar entre si as forças e poderes dos objetos mais distantes e diferentes. Com o progresso da sociedade, a filosofia ou pesquisa torna-se, como qualquer ofício, a ocupação principal ou exclusiva de uma categoria específica de pessoas. Como qualquer outro ofício, também esse está subdividido em grande número de setores ou áreas diferentes, cada uma das quais oferece trabalho a uma categoria especial de filósofos; e essa subdivisão do trabalho filosófico, da mesma forma como em qualquer outra ocupação, melhora e aperfeiçoa a destreza e proporciona economia de tempo. Cada indivíduo torna-se mais hábil em seu setor específico, o volume de trabalho produzido é maior, aumentando também consideravelmente o cabedal científico. É a grande multiplicação das produções de todos os diversos ofícios — multiplicação essa decorrente da divisão do trabalho — que gera, em uma sociedade bem dirigida, aquela riqueza universal que se estende até as camadas mais baixas do povo. Cada trabalhador tem para vender uma grande quantidade do seu próprio trabalho, além daquela de que ele mesmo necessita; e pelo fato de todos os outros trabalhadores estarem exatamente na mesma situação, pode ele trocar grande parte de seus próprios bens por uma grande quantidade, ou — o que é a mesma coisa — pelo preço de grande quantidade de bens desses outros. Fornece-lhes em abundância aquilo de que carecem, e estes, por sua vez, com a mesma abundância, lhe fornecem aquilo de que ele necessita; assim é que em todas as camadas da sociedade se difunde uma abundância geral de bens. Observe-se a moradia do artesão ou diarista mais comum em um país civilizado e florescente, e se notará que é impossível calcular o número de pessoas que contribui com uma parcela — ainda que reduzida — de seu trabalho, para suprir as necessidades deste operário. O casaco de lã, por exemplo, que o trabalhador usa para agasalhar-se, por mais rude que seja é o produto do trabalho conjugado de uma grande multidão de trabalhadores. O pastor, o selecionador de lã, o cardador, o tintureiro, o fiandeiro, o tecelão, o pisoeiro, o confeccionador de roupas, além de muitos outros, todos eles precisam contribuir com suas profissões específicas para fabricar esse produto tão comum de uso diário. Calcule-se agora quantos comerciantes e carregadores, além dos trabalhadores já citados, devem ter contribuído para transportar 70
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essa matéria-prima do local onde trabalham alguns para os locais onde trabalham outros, quando muitas vezes as distâncias entre uns e outros são tão grandes! Calcule-se quanto comércio e quanta navegação — incluindo aí os construtores de navios, os marinheiros, produtores de velas e de cordas — devem ter sido necessários para juntar os diferentes tipos de drogas ou produtos utilizados para tingir o tecido, drogas essas que freqüentemente provêm dos recantos mais longínquos da terra! Quão grande é também a variedade de trabalho necessária para produzir as ferramentas do menos categorizado desses operários! Sem fazer menção de máquinas tão complexas como o navio ou barco do marujo, o moinho do pisoeiro, ou o próprio tear do tecelão, consideremos apenas que variedades de trabalho são necessárias para fabricar esse dispositivo tão simples que é a tesoura, com a qual o pastor tosa a lã das ovelhas. O mineiro, o construtor do forno destinado a fundir o minério, o cortador de madeira, o queimador do carvão a ser utilizado na câmara de fusão, o oleiro que fabrica tijolos, o pedreiro, os operários que operam o forno, o encarregado da manutenção das máquinas, o forjador, o ferreiro — todos precisam associar suas habilidades profissionais para poder produzir uma tesoura. Se fizéssemos o mesmo exame das diferentes peças de roupa e de mobília usadas pelo operário, da tosca camisa de linho que lhe cobre a pele, dos sapatos que lhe protegem os pés, da cama em que se deita e de todas as diversas peças que compõem a sua mobília e seus pertences, do fogão em que prepara os alimentos, do carvão que se utiliza para isso, escavado das entranhas da terra e trazido até ele talvez através de um longo percurso marítimo e terrestre, de todos os outros utensílios de sua cozinha, de todos os pertences da sua mesa — faca e garfos, travessas de barro ou de peltre em que serve as comidas — das diferentes mãos que colaboraram no preparo de seu pão e sua cerveja, da vidraça que deixa entrar o calor e a luz e afasta o vento e a chuva — com todo o conhecimento e arte exigidos para chegar a essa bela e feliz invenção, sem a qual as nossas regiões do norte dificilmente teriam podido criar moradias tão confortáveis — juntamente com as ferramentas de todos os diversos operários empregados na produção dessas diferentes utilidades. Se examinarmos todas essas coisas e considerarmos a grande variedade de trabalhos empregados em cada uma dessas utilidades, perceberemos que sem a ajuda e cooperação de muitos milhares não seria possível prover às necessidades, nem mesmo de uma pessoa de classe mais baixa de um país civilizado, por mais que imaginemos — erroneamente — é muito pouco e muito simples aquilo de que tais pessoas necessitam. Em comparação com o luxo extravagante dos grandes, as necessidades e pertences de um operário certamente parecem ser extremamente simples e fáceis e, no entanto, talvez seja verdade que a diferença de necessidades de um príncipe europeu e de um camponês trabalhador e frugal nem sempre é muito maior do que a diferença que existe entre as necessidades deste último e as de muitos reis da África, que são senhores absolutos das vidas e das liberdades de 10 mil selvagens nus. 71
CAPÍTULO II O Princípio que Dá Origem à Divisão do Trabalho
Essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua origem, o efeito de uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria esta riqueza geral à qual dá origem. Ela é a conseqüência necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou propensão existente na natureza humana que não tem em vista essa utilidade extensa, ou seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra. Não é nossa tarefa investigar aqui se essa propensão é simplesmente um dos princípios originais da natureza humana, sobre o qual nada mais restaria a dizer, ou se — como parece mais provável — é uma conseqüência necessária das faculdades de raciocinar e falar. De qualquer maneira, essa propensão encontra-se em todos os homens, não se encontrando em nenhuma outra raça de animais, que não parecem conhecer nem essa nem qualquer outra espécie de contratos. Por vezes, tem-se a impressão de que dois galgos, ao irem ao encalço de uma lebre, parecem agir de comum acordo. Cada um a faz voltar-se para seu companheiro, ou procura interceptá-la quando seu companheiro a faz voltar-se para ele. Mas isso não é efeito de algum contrato, senão da concorrência casual de seus desejos acerca do mesmo objeto naquele momento específico. Ninguém jamais viu um cachorro fazer uma troca justa e deliberada de um osso por outro, com um segundo cachorro. Ninguém jamais viu um animal dando a entender a outro, através de gestos ou gritos naturais: isto é meu, isto é teu, estou disposto a trocar isto por aquilo. Quando um animal deseja obter alguma coisa, de uma pessoa ou de outro animal, não dispõe de outro meio de persuasão a não ser conseguir o favor daqueles de quem necessita ajuda. Um filhote acaricia e lisonjeia sua mãe, e um spaniel faz um sem número de mesuras e demonstrações para atrair a atenção de seu dono que está jantando, quando deseja receber comida. Às vezes o homem usa o mesmo estratagema com seus semelhantes, e quando não tem 73
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outro recurso para induzi-los a atenderem a seus desejos, tenta por todos os meios servis atingir este objetivo. Todavia, não terá tempo para fazer isso em todas as ocasiões. Numa sociedade civilizada, o homem a todo momento necessita da ajuda e cooperação de grandes multidões, e sua vida inteira mal seria suficiente para conquistar a amizade de algumas pessoas. No caso de quase todas as outras raças de animais, cada indivíduo, ao atingir a maturidade, é totalmente independente e, em seu estado natural, não tem necessidade da ajuda de nenhuma outra criatura vivente. O homem, entretanto, tem necessidade quase constante da ajuda dos semelhantes, e é inútil esperar esta ajuda simplesmente da benevolência alheia. Ele terá maior probabilidade de obter o que quer, se conseguir interessar a seu favor a auto-estima dos outros, mostrando-lhes que é vantajoso para eles fazer-lhe ou dar-lhe aquilo de que ele precisa. É isto o que faz toda pessoa que propõe um negócio a outra. Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer — esse é o significado de qualquer oferta desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua auto-estima, e nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles. Ninguém, a não ser o mendigo, sujeita-se a depender sobretudo da benevolência dos semelhantes. Mesmo o mendigo não depende inteiramente dessa benevolência. Com efeito, a caridade de pessoas com boa disposição lhe fornece tudo o de que carece para a subsistência. Mas embora esse princípio lhe assegure, em última análise, tudo o que é necessário para a sua subsistência, ele não pode garantir-lhe isso sempre, em determinados momentos em que precisar. A maior parte dos desejos ocasionais do mendigo são atendidos da mesma forma que os de outras pessoas, através de negociação, de permuta ou de compra. Com o dinheiro que alguém lhe dá, ele compra alimento. A roupa velha que um outro lhe dá, ele a troca por outras roupas velhas que lhe servem melhor, por moradia, alimento ou dinheiro, com o qual pode comprar alimento, roupas ou moradia, conforme tiver necessidade. Assim como é por negociação, por escambo ou por compra que conseguimos uns dos outros a maior parte dos serviços recíprocos de que necessitamos, da mesma forma é essa mesma propensão ou tendência a permutar que originalmente gera a divisão do trabalho. Em uma tribo de caçadores ou pastores, por exemplo, uma determinada pessoa faz arcos e flechas com mais habilidade e rapidez do que qualquer outra. Muitas vezes trocá-los-á com seus companheiros, por gado ou por carne de caça; considera que, dessa forma, pode conseguir mais gado e mais carne de caça do que conseguiria se ele mesmo fosse à procura deles no campo. Partindo pois da consideração de seu interesse próprio, resolve que o fazer arcos e flechas será sua ocupação principal, 74
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tornando-se uma espécie de armeiro. Um outro é particularmente hábil em fazer o madeiramento e as coberturas de suas pequenas cabanas ou casas removíveis. Ele está habituado a ser útil a seus vizinhos dessa forma, os quais o remuneram da mesma maneira, com gado e carne de caça, até que, ao final, acaba achando interessante dedicar-se inteiramente a essa ocupação, e tornar-se uma espécie de carpinteiro dedicado à construção de casas. Da mesma forma, um terceiro torna-se ferreiro ou apascentador de gado, um quarto se faz curtidor ou preparador de peles ou couros, componente primordial da roupa dos silvícolas. E dessa forma, a certeza de poder permutar toda a parte excedente da produção de seu próprio trabalho que ultrapasse seu consumo pessoal estimula cada pessoa a dedicar-se a uma ocupação específica, e a cultivar e aperfeiçoar todo e qualquer talento ou inclinação que possa ter por aquele tipo de ocupação ou negócio. Na realidade, a diferença de talentos naturais em pessoas diferentes é muito menor do que pensamos; a grande diferença de habilidade que distingue entre si pessoas de diferentes profissões, quando chegam à maturidade, em muitos casos não é tanto a causa, mas antes o efeito da divisão do trabalho. A diferença entre as personalidades mais diferentes, entre um filósofo e um carregador comum da rua, por exemplo, parece não provir tanto da natureza, mas antes do hábito, do costume, da educação ou formação. Ao virem ao mundo, e durante os seis ou oito primeiros anos de existência, talvez fossem muito semelhantes entre si, e nem seus pais nem seus companheiros de folguedo eram capazes de perceber nenhuma diferença notável. Em torno dessa idade, ou logo depois, começam a engajar-se em ocupações muito diferentes. Começa-se então a perceber a diferença de talentos, sendo que esta diferenciação vai-se ampliando gradualmente, até que, ao final, o filósofo dificilmente se disporá a reconhecer qualquer semelhança. Mas, sem a propensão à barganha, ao escambo e à troca, cada pessoa precisa ter conseguido para si mesma tudo o que lhe era necessário ou conveniente para a vida que desejava. Todos devem ter tido as mesmas obrigações a cumprir, e o mesmo trabalho a executar, e não pode ter havido uma tal diferença de ocupações que por si fosse suficiente para produzir uma diferença tão grande de talentos. Assim como é essa propensão que gera essa diferença de talentos, tão notável entre pessoas de profissões diferentes, da mesma forma, é essa mesma propensão que faz com que a diferença seja útil. Muitos grupos de animais, todos reconhecidamente da mesma espécie, trazem de nascença uma diferença de “índole” muito maior do que aquela que se verifica entre as pessoas, anteriormente à aquisição de hábitos e à educação. Por natureza, a diferença entre um filósofo e um carregador de rua, no tocante ao caráter básico e à disposição, não representa sequer 50% da diferença que existe entre um mastim e um galgo, ou entre um galgo e um spaniel, ou entre este último e um cão pastor. Entretanto, esses tipos de animais, embora sendo da mesma espécie, dificilmente têm qualquer utilidade uns em relação aos outros. A força 75
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do mastim não se beneficia em nada da velocidade ou rapidez do galgo ou da sagacidade do spaniel ou da docilidade do cão pastor. Os efeitos provenientes dessas diferenças de “índole” e talentos, por falta da faculdade ou propensão à troca, não são capazes de formar um patrimônio comum, e não contribuem o mínimo para o melhor atendimento das necessidades da espécie. Cada animal, individualmente, continua obrigado a ajudar-se e defender-se sozinho, não dependendo um do outro, não auferindo vantagem alguma da variedade de talentos com a qual a natureza distinguiu seus semelhantes. Ao contrário, entre os homens, os caracteres e as habilidades mais diferentes são úteis uns aos outros; as produções diferentes e dos respectivos talentos e habilidades, em virtude da capacidade e propensão geral ao intercâmbio, ao escambo e à troca, são como que somados em um cabedal comum, no qual cada um pode comprar qualquer parcela da produção dos talentos dos outros, de acordo com suas necessidades.
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CAPÍTULO III A Divisão do Trabalho Limitada pela Extensão do Mercado
Como é o poder de troca que leva à divisão do trabalho, assim a extensão dessa divisão deve sempre ser limitada pela extensão desse poder, ou, em outros termos, pela extensão do mercado. Quando o mercado é muito reduzido, ninguém pode sentir-se estimulado a dedicar-se inteiramente a uma ocupação, porque não poderá permutar toda a parcela excedente de sua produção que ultrapassa seu consumo pessoal pela parcela de produção do trabalho alheio, da qual tem necessidade. Existem certos tipos de trabalho, mesmo da categoria mais baixa, que só podem ser executados em uma cidade grande. Um carregador, por exemplo, não consegue encontrar emprego e subsistência em nenhum outro lugar. Uma aldeia é pequena demais para isto; é até difícil que uma cidade pequena, dotada de um mercado, seja suficientemente grande para oferecer ocupação constante para um carregador. Nas casas isoladas e nas minúsculas aldeias espalhadas pelas regiões montanhosas da Escócia, cada camponês deve ao mesmo tempo ser açougueiro, padeiro e fabricante de cerveja de sua própria família. Em tais situações, dificilmente podemos esperar encontrar sequer um ferreiro, um carpinteiro ou marceneiro num raio inferior a 30 milhas de um outro profissional da mesma ocupação. As famílias espalhadas, que vivem a 8 ou 10 milhas de distância uma da outra, têm que aprender elas mesmas um grande número de ofícios e trabalhos, para os quais, se morassem em localidades mais povoadas, chamariam os respectivos profissionais. Os trabalhadores do campo quase sempre são obrigados a executar eles mesmos todos os diversos tipos de trabalho que têm afinidade tão grande entre si, a ponto de poderem lidar com o mesmo tipo de materiais. Um carpinteiro do campo faz todo tipo de trabalho com madeira, e um ferreiro do campo faz qualquer tipo de serviço com ferro. O primeiro é não somente carpinteiro, mas também marceneiro, e até mesmo entalhador de madeira, construtor de carroças, fabricante 77
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de arados. E os trabalhos de um ferreiro no campo são ainda mais variados. Seria até impossível haver uma profissão como a do fabricante de pregos nas regiões afastadas e interioranas da Alta Escócia. Tal operário, produzindo 1000 pregos por dia, e com 300 dias de trabalho no ano, produzirá 300 mil pregos por ano. Acontece que, nessa região, seria impossível vender 1 000 pregos, ou seja, a produção de apenas um dia de trabalho. Já que o transporte fluvial ou marítimo abre um mercado mais vasto para qualquer tipo de trabalho do que unicamente o transporte terrestre, é na costa marítima e ao longo dos rios navegáveis que, naturalmente, todo tipo de trabalho ou ocupação começa a subdividir-se e aprimorar-se, e somente depois de muito tempo esses aperfeiçoamentos se estendem ao interior de um país. Uma carroça de rodas largas, servida por dois homens e puxada por oito cavalos, leva aproximadamente seis semanas para transportar de Londres a Edimburgo — ida e volta — mais ou menos 4 toneladas de mercadoria. Mais ou menos no mesmo tempo um barco ou navio tripulado por seis ou oito homens, e navegando entre os portos de Londres e Leith, muitas vezes transporta — ida e volta — 200 toneladas de mercadoria. Portanto, seis ou oito homens, por transporte aquático, podem levar e trazer, no mesmo tempo, a mesma quantidade de mercadoria entre Londres e Edimburgo que cinqüenta carroças de rodas largas, servidas por 100 homens e puxadas por 400 cavalos. Para 200 toneladas de mercadorias, portanto, transportadas por terra de Londres para Edimburgo, é necessário pagar a manutenção de 100 homens durante três semanas, e o desgaste e a mobilização de 400 cavalos, mais o de 50 carroças de rodas largas. Ao contrário, essa mesma quantidade de mercadorias, se transportada por hidrovia, será onerada apenas pela manutenção de 6 ou 8 homens, e pelo desgaste e movimentação de um navio ou barco com carga de 200 toneladas, além do valor do risco maior, ou seja, a diferença de seguro entre esses dois sistemas de transporte. Se, portanto, entre essas duas localidades não houvesse outra possibilidade de comunicação senão por terra, e já que não se poderia transportar entre as duas cidades nenhuma outra mercadoria a não ser aquela cujo preço fosse bem elevado em proporção com seu peso, só poderia haver uma pequena parte daquele comércio que atualmente existe entre as duas cidades; e por conseguinte elas só poderiam dar uma pequena parte do estímulo que atualmente dão uma à outra. Entre as regiões distantes da terra seria pequena ou até nula a possibilidade de comércio. Que mercadorias poderiam, por exemplo, comportar o preço do transporte terrestre entre Londres e Calcutá? Ou, se houvesse alguma mercadoria tão preciosa que pudesse comportar um transporte tão dispendioso, com que segurança se efetuaria tal transporte, passando por territórios habitados por tantas nações ainda em estado de barbárie? E no entanto, existe atualmente, entre Londres e Calcutá, um comércio considerável; intercambiando seus mercados, Londres e Calcutá estimulam muito o trabalho e a produção entre si. 78
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Se tais são, portanto, as vantagens do transporte fluvial ou marítimo, é natural que os primeiros aperfeiçoamentos das artes e da manufatura se operem lá onde essa circunstância abrir mercado do mundo inteiro para a produção de cada tipo de profissão e que esses aperfeiçoamentos levem muito tempo para estender-se ao interior do país. O interior do país pode durante muito tempo não ter nenhum outro mercado para a maior parte de suas mercadorias a não ser a região circunjacente, que o separa da costa marítima e dos grandes rios navegáveis. Por conseguinte, a extensão de seu mercado deverá durante muito tempo ser proporcional à riqueza e à reduzida densidade demográfica daquela região, e conseqüentemente seu aprimoramento sempre deverá vir depois do aprimoramento da região. Em nossas colônias norte-americanas, as plantações sempre acompanharam a costa marítima ou as margens dos rios navegáveis, e dificilmente se distanciaram muito dessas vias de transporte. Segundo a História bem documentada, as primeiras nações a serem civilizadas foram obviamente as localizadas ao redor da costa do Mediterrâneo. Esse mar — o maior braço de mar que se conhece no mundo —, por não ter marés e, conseqüentemente, não apresentar outras ondas senão as provocadas pelo vento, devido à lisura de sua superfície, à multidão de suas ilhas e à proximidade de suas praias vizinhas, demonstrou-se extremamente favorável a uma navegação mundial incipiente, épocas em que os homens, por ignorarem ainda a bússola, tinham receio de afastar-se da costa e, devido ao primitivismo da construção naval, receavam expor-se às ondas turbulentas do oceano. No mundo antigo, passar além das colunas de Hércules, isto é, além do estreito de Gibraltar, foi considerado por muito tempo como uma façanha naval altamente perigosa e quase miraculosa. Muito tempo decorreu até que os próprios fenícios e cartagineses, os mais hábeis navegadores e construtores navais dos tempos antigos, tentassem essa façanha; e durante muito tempo foram eles os únicos que assumiram tal risco. Dentre todos os países localizados na costa do Mediterrâneo, o Egito parece ter sido o primeiro no qual a agricultura ou as manufaturas foram praticadas e puderam acusar um grau considerável de aperfeiçoamento. Em parte alguma o alto Egito dista mais do que algumas milhas do rio Nilo; e no baixo Egito, o Nilo se ramifica em uma multiplicidade de canais, que, com alguma habilidade, parecem ter assegurado uma comunicação fluvial, não somente entre todas as grandes cidades, mas também entre todas as aldeias de maior envergadura, e até mesmo com muitas propriedades agrícolas do interior; mais ou menos da mesma forma como isso ocorre hoje na Holanda, em relação aos rios Reno e Mosa. A extensão e a facilidade dessa navegação interna constituiu provavelmente uma das causas primordiais do antigo progresso e aprimoramento do Egito. Os aperfeiçoamentos na agricultura e nas manufaturas parecem ter sido muito antigos também nas províncias de Bengala, localizadas 79
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nas Índias Orientais, e em algumas das províncias orientais da China, embora em nosso continente não disponhamos de fontes históricas autênticas que documentem com certeza essa antigüidade. Em Bengala, o Ganges e vários outros grandes rios formam grande número de canais navegáveis, da mesma forma que o Nilo no Egito. Também nas províncias orientais da China, vários rios grandes formam, com seus diversos afluentes, uma multidão de canais; a comunicação entre esses canais fez com que surgisse uma navegação interna muito mais extensa do que a assegurada pelo Nilo ou pelo Ganges, ou talvez até pelos dois juntos. É notável que nem os antigos egípcios nem os indianos e chineses da Antigüidade estimularam o comércio externo, e portanto parecem ter auferido sua grande riqueza de navegação puramente interna. Em contrapartida, todas as regiões do interior da África, e toda a parte da Ásia localizada a uma distância maior ao norte dos mares Euxino e Cáspio — a antiga Cítia, a Tartária e a Sibéria modernas — em todas as épocas, ao que parece, permaneceram no estado de barbárie que ainda hoje as caracteriza. O mar da Tartária é o oceano gelado que não permite navegação, e embora alguns dos maiores rios do mundo percorram essa região, a distância entre uns e outros é excessivamente grande para permitir comunicação e comércio ao longo da maior parte de sua extensão. Na África não existe nenhuma dessas grandes artérias como são o mar Báltico e o mar Adriático, na Europa, o Mediterrâneo e o Euxino na Europa e na Ásia, e os golfos da Arábia, Pérsia, Índia, Bengala e Sião na Ásia, sendo portanto impossível estender o comércio a essas distantes plagas do interior da África; por outro lado, os grandes rios da África são excessivamente distantes entre si para permitirem uma navegação de maior porte. Além disso, nunca pode ser muito considerável o comércio que uma nação pode manter através de um rio que não se ramifique em muitos afluentes ou canais, e que percorre território estrangeiro antes de desembocar no mar; isso porque a nação estrangeira pela qual passa a parte do rio que desemboca no mar pode, a qualquer momento, obstruir a comunicação entre o país vizinho e o mar. A navegação do Danúbio é de muito pouca utilidade para os Estados da Baviera, a Áustria e a Hungria, em comparação com o que seria se algum desses países possuísse todo o percurso do Danúbio, até ele desembocar no mar Negro.
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CAPÍTULO IV A Origem e o uso do Dinheiro
Uma vez plenamente estabelecida a divisão do trabalho, é muito reduzida a parcela de necessidades humanas que pode ser atendida pela produção individual do próprio trabalhador. A grande maioria de suas necessidades, ele a satisfaz permutando aquela parcela do produto de seu trabalho que ultrapassa o seu próprio consumo, por aquelas parcelas da produção alheia de que tiver necessidade. Assim sendo, todo homem subsiste por meio da troca, tornando-se de certo modo comerciante; e assim é que a própria sociedade se transforma naquilo que adequadamente se denomina sociedade comercial. Quando a divisão do trabalho estava apenas em seu início, este poder de troca deve ter deparado freqüentemente com grandes empecilhos. Podemos perfeitamente supor que um indivíduo possua uma mercadoria em quantidade superior àquela de que precisa, ao passo que um outro tem menos. Conseqüentemente, o primeiro estaria disposto a vender uma parte de seu supérfluo, e o segundo a comprá-la. Todavia, se esta segunda pessoa não possuir nada daquilo que a primeira necessita, não poderá haver nenhuma troca entre as duas. O açougueiro tem consigo mais carne do que a porção de que precisa para seu consumo, e o cervejeiro e o padeiro estariam dispostos a comprar uma parte do produto. Entretanto, não têm nada a oferecer em troca, a não ser os produtos diferentes de seu trabalho ou de suas transações comerciais, e o açougueiro já tem o pão e a cerveja de que precisa para seu consumo. Neste caso, não poderá haver nenhuma troca entre eles. No caso, o açougueiro não pode ser comerciante para o cervejeiro e o padeiro, nem estes podem ser clientes do açougueiro; e portanto diminui nos três a possibilidade de se ajudarem entre si. A fim de evitar o inconveniente de tais situações, toda pessoa prudente, em qualquer sociedade e em qualquer período da história, depois de adotar pela primeira vez a divisão do trabalho, deve naturalmente ter se empenhado em conduzir seus negócios de tal forma, que a cada 81
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momento tivesse consigo, além dos produtos diretos de seu próprio trabalho, uma certa quantidade de alguma(s) outra(s) mercadoria(s) — mercadoria ou mercadorias tais que, em seu entender, poucas pessoas recusariam receber em troca do produto de seus próprios trabalhos. Provavelmente, muitas foram as mercadorias sucessivas a serem cogitadas e também utilizadas para esse fim. Nas épocas de sociedade primitiva, afirma-se que o instrumento generalizado para trocas comerciais foi o gado. E embora se trate de uma mercadoria que apresenta muitos inconvenientes, constatamos que, entre os antigos, com freqüência os bens eram avaliados com base no número de cabeças de gado cedidas para comprá-los. A couraça de Diomedes, afirma Homero, custou somente 9 bois, ao passo que a de Glauco custou 100 bois. Na Abissínia, afirma-se que o instrumento comum para comércio e trocas era o sal; em algumas regiões da costa da Índia, o instrumento era um determinado tipo de conchas; na Terra Nova era o bacalhau seco; na Virgínia, o fumo; em algumas das nossas colônias do oeste da Índia, o açúcar; em alguns outros países, peles ou couros preparados; ainda hoje — segundo fui informado — existe na Escócia uma aldeia em que não é raro um trabalhador levar pregos em vez de dinheiro, quando vai ao padeiro ou à cervejaria. Entretanto, ao que parece, em todos os países as pessoas acabaram sendo levadas por motivos irresistíveis a atribuir essa função de instrumento de troca preferivelmente aos metais, acima de qualquer outra mercadoria. Os metais apresentam a vantagem de poderem ser conservados, sem perder valor, com a mesma facilidade que qualquer outra mercadoria, por ser difícil encontrar outra que seja menos perecível; não somente isso, mas podem ser divididos, sem perda alguma, em qualquer número de partes, já que eventuais fragmentos perdidos podem ser novamente recuperados pela fusão — uma característica que nenhuma outra mercadoria de durabilidade igual possui, e que, mais do que qualquer outra, torna os metais aptos como instrumentos para o comércio e a circulação. Assim, por exemplo, a pessoa que desejasse comprar sal e não tivesse outra coisa para dar em troca senão gado, estava obrigada a comprar de uma só vez sal na quantidade correspondente ao valor de um boi inteiro, ou de uma ovelha inteira. Raramente podia comprar menos, pois o que tinha que dar em troca pelo sal dificilmente era passível de divisão sem perda; e se desejasse comprar ainda mais, pelas mesmas razões estava obrigada a comprar o dobro ou o triplo da quantidade, ou seja, o valor de 2 ou 3 bois, ou 2 ou 3 ovelhas. Ao contrário, se em lugar de bois ou ovelhas tivesse metais a dar em troca, facilmente podia ajustar a quantidade do metal àquela quantidade de mercadorias de que tinha necessidade imediata. Diferentes foram os metais utilizados pelas diversas nações para esse fim. O ferro era o instrumento comum de comércio entre os espartanos; entre os antigos romanos era o cobre; o ouro e a prata eram o instrumento de comércio de todas as nações ricas e comerciantes. De início, parece que os referidos metais eram utilizados para 82
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esse fim em barras brutas, sem gravação e sem cunhagem. Assim, Plínio,120 baseando-se em Timeu, historiador antigo, nos conta que, até à época de Sérvio Túlio, os romanos não possuíam dinheiro cunhado, mas faziam uso das barras de cobre sem gravação quando queriam comprar algo. Por conseguinte, naquela época essas barras brutas de metal desempenhavam o papel de dinheiro. O uso de metais nesse estado apresentava dois inconvenientes muito grandes: o da pesagem e o da verificação da autenticidade ou qualidade do metal. Em se tratando dos metais preciosos, em que uma pequena diferença de quantidade representa uma grande diferença no valor, até mesmo o trabalho de pesagem, se tiver que ser feito com a exatidão necessária, requer no mínimo pesos e balanças muito exatos. Particularmente a pesagem do ouro é uma operação precisa e sutil. No caso de metais menos nobres, evidentemente, onde um erro pequeno não teria maiores conseqüências, não se exigia uma precisão tão elevada. Entretanto, consideraríamos altamente incômodo se, toda vez que um indivíduo tivesse que comprar ou vender uma quantidade de mercadoria do valor de um farthing,121 fosse obrigado a pesar essa minúscula moeda. A operação de verificar a autenticidade ou quilate é ainda mais difícil e mais tediosa; e, a menos que uma parte do metal seja fundida no cadinho ou crisol, utilizando dissolventes adequados, é extremamente incerta qualquer conclusão que se possa tirar. E no entanto, antes de se instituir a moeda cunhada, as pessoas que não se submetessem a essa operação difícil e tediosa estavam expostas às fraudes e imposições mais penosas, pois em vez de libra-peso de prata pura ou de cobre puro, estavam sujeitas a receber pelas suas mercadorias uma composição adulterada dos materiais mais ordinários e baratos, os quais, porém, em sua aparência se assemelhavam à prata ou ao cobre. Para evitar tais abusos, para facilitar as trocas e assim estimular todos os tipos de indústria e comércio, considerou-se necessário, em todos os países que conheceram um progresso notável, fazer uma gravação oficial naquelas determinadas quantidades de metal que se usavam comumente para comprar mercadorias. Daí a origem do dinheiro cunhado ou em moeda, bem como das assim chamadas casas da moeda: instituições essas exatamente da mesma natureza que as do aulnagers ("oficiais de inspeção e medição de tecido de lã"), stampmasters ("desbastadores") de tecido de lã e de linho. Todas elas têm por objetivo garantir, por meio de gravação oficial, a quantidade e a qualidade uniforme das diversas mercadorias quando trazidas ao mercado. As primeiras gravações oficiais desse tipo, impressas nos metais correntes, em muitos casos parecem ter tido o objetivo de garantir o que era mais difícil e mais importante de garantir, isto é, a qualidade ou quilate do metal; ao que parece, essas gravações se assemelhavam à marca de esterlina que atualmente é impressa em chapas e barras 120 PLÍNIO. História Naturalis. Livro Trigésimo Terceiro, capítulo III. 121 Moeda de cobre, equivalente a 1/4 do pêni inglês, que circulou até 1961. (N. do E.) 83
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de prata, ou à marca espanhola que às vezes é impressa em lingotes de ouro e que, por incidirem somente em um dos lados da peça e não cobrirem a superfície inteira, garantem o quilate mas não o peso do metal. Abraão pesou para Efrom os 400 ciclos de prata que tinha concordado em pagar pelo campo de Macpela. Afirma-se que eram o dinheiro corrente dos comerciantes de então, mas foram recebidos pelo peso e não por número, da mesma forma que hoje se recebem lingotes de ouro e barras de prata. Pelo que se conta, os antigos reis saxônios da Inglaterra recebiam sua remuneração não em dinheiro, mas em espécie, isto é, em alimentos e provisões de todo tipo. Foi Guilherme, o Conquistador, que introduziu o costume de pagá-los em dinheiro. Entretanto, esse dinheiro, durante muito tempo, era recebido no Tesouro Público, por peso e não de contado. O inconveniente e a dificuldade de pesar esses metais com exatidão deram origem à instituição de moedas, cuja gravação, cobrindo inteiramente os dois lados da peça e às vezes também as extremidades, visava a garantir não somente o quilate, mas também o peso do metal. Por isso, essas moedas eram recebidas, como hoje, por unidades, dispensando o incômodo de pesá-las. Ao que parece, as denominações dessas moedas de início expressavam o peso ou quantidade de metal nelas contido. Na época de Sérvio Túlio, o primeiro a cunhar moedas em Roma, o asse ou pondo romano continha 1 libra romana de cobre de boa qualidade. Foi dividida, da mesma maneira que a libra Troy,122 em 12 onças, cada uma das quais continha 1 onça real de bom cobre. A libra esterlina inglesa ao tempo de Eduardo I continha 1 libra-peso, peso Tower de prata de um quilate conhecido. A libra Tower parece ter sido algo mais do que a libra romana, e algo menos que a libra Troyes. Esta última só foi introduzida na Casa da Moeda da Inglaterra no 18º ano do reinado de Henrique VIII. A libra francesa, ao tempo de Carlos Magno, continha 1 libra Troyes de prata de um quilate conhecido. A feira de Troyes, na Champanha, era na época freqüentada por todas as nações da Europa, e os pesos e medidas desse famoso mercado eram conhecidos e apreciados por todos. A libra escocesa continha, desde a época de Alexandre I até a de Robert Bruce, 1 libra de prata do mesmo peso e quilate que a libra esterlina inglesa. Também os pence ingleses, escoceses e franceses continham, de início, o peso real de 1 pêni de prata, a 1/20 da onça, e a 1/240 da libra. Também o xelim parece ter sido originalmente a denominação de um peso. Quando o trigo vale 12 xelins o quarter — lê-se numa antiga estátua de Henrique II — 1 pão branco de 1 farthing deverá pesar 11 xelins e 4 pence. Todavia, a proporção entre o xelim e o pêni, de um lado, e o xelim e a libra, de outro, não parece ter sido tão constante e uniforme como a existente entre o pêni e a libra. Durante a primeira geração da linhagem dos reis de França, o sou ou xelim 122 Parte do sistema inglês de pesos, originariamente para pedras e metais preciosos, recebendo esse nome da cidade francesa de Troyes, onde era padrão. (N. do E.) 84
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francês tem, em ocasiões diferentes, ora 5, ora 20 e ora 40 pence. Entre os antigos saxões, 1 xelim parece ter tido, uma vez, somente 5 pence, não sendo improvável que tenha variado tanto quanto variava entre seus vizinhos, os francos. Desde o tempo de Carlos Magno, entre os franceses, e o de Guilherme, o Conquistador, entre os ingleses, a proporção entre a libra, o xelim e o pêni parece ter sido uniformemente a mesma de hoje, embora tenha sido muito diferente o valor de cada uma dessas moedas. Com efeito, em todos os países do mundo — assim acredito — a avareza e a injustiça dos príncipes e dos Estados soberanos, abusando da confiança de seus súditos, foram diminuindo gradualmente a quantidade real de metal que originalmente continham as moedas. O asse romano, nos últimos anos da República, foi reduzido 1/24 de seu valor original, e ao invés de pesar 1 libra, acabou pesando apenas 1/2 onça. A libra e o pêni ingleses atuais contêm apenas em torno de 1/3, a libra e o pêni escocês apenas 1/36, e a libra e o pêni franceses, apenas 1/66 de seu valor original. Aparentemente, mediante essas operações, os príncipes e os Estados soberanos foram capazes de pagar suas dívidas e cumprir seus compromissos, com uma quantidade de prata menor do que teria sido necessária em caso de não se alterarem os valores das moedas; digo apenas aparentemente, pois seus credores foram realmente fraudados de uma parte do que lhes era realmente devido. Permitiu-se a todos os demais credores, dentro do país, usarem do mesmo privilégio, podendo eles pagar o mesmo montante nominal da moeda nova e desvalorizada, qualquer que tivesse sido a quantidade que tivessem tomado de empréstimo em moeda velha. Por conseguinte, tais operações sempre se têm demonstrado favoráveis aos devedores e danosas para os credores, e às vezes provocaram uma revolução maior e mais generalizada nas fortunas de pessoas privadas do que a que poderia ter sido gerada por uma grande calamidade pública. Foi dessa maneira que em todas as nações civilizadas o dinheiro se transformou no instrumento universal de comércio, através do qual são compradas e vendidas — ou trocadas entre si — mercadorias de todos os tipos. Passarei agora a examinar quais são as normas que naturalmente as pessoas observam ao trocar suas mercadorias por dinheiro ou por outras mercadorias. Essas regras determinam o que se pode denominar valor relativo ou valor de troca dos bens. Importa observar que a palavra VALOR tem dois significados: às vezes designa a utilidade de um determinado objeto, e outras vezes o poder de compra que o referido objeto possui, em relação a outras mercadorias. O primeiro pode chamar-se “valor de uso”, e o segundo, “valor de troca”. As coisas que têm o mais alto valor de uso freqüentemente têm pouco ou nenhum valor de troca; vice-versa, os bens que têm o mais alto valor de troca muitas vezes têm pouco ou nenhum valor de uso. Nada é mais útil que a água, e no entanto dificilmente se comprará alguma coisa com ela, ou seja, dificilmente se conseguirá trocar água por alguma outra coisa. Ao contrário, um diamante difi85
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cilmente possui algum valor de uso, mas por ele se pode, muitas vezes, trocar uma quantidade muito grande de outros bens. A fim de investigar os princípios que regulam o valor de troca das mercadorias, procurarei mostrar: Primeiro, qual é o critério ou medida real desse valor de troca, ou seja, em que consiste o preço real de todas as mercadorias. Em segundo lugar, quais são as diferentes partes ou componentes que constituem esse preço real. Finalmente, quais são as diversas circunstâncias que por vezes fazem subir alguns desses componentes, ou todos eles, acima do natural ou normal, e às vezes os fazem descer abaixo desse nível; ou seja, quais são as causas que às vezes impedem o preço de mercado, isto é, o preço efetivo das mercadorias, de coincidir exatamente com o que se pode chamar de preço natural. Nos três capítulos subseqüentes, procurarei expor, da maneira mais completa e clara que estiver ao meu alcance, os três itens que acabei de citar. Para isso, desafio seriamente tanto a paciência quanto a atenção do leitor: sua paciência, pois examinarei um assunto que talvez possa parecer desnecessariamente tedioso em alguns pontos; sua atenção, para compreender aquilo que, mesmo depois da explicação completa que procurarei dar, talvez possa ainda parece algo obscuro. Estou sempre disposto a correr um certo risco de ser tedioso, visando à certeza de estar sendo claro; e após fazer tudo o que puder para ser claro, mesmo assim poderá parecer que resta alguma obscuridade sobre um assunto que, aliás, é por sua própria natureza extremamente abstrato.
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CAPÍTULO V O Preço Real e o Preço Nominal das Mercadorias ou seu Preço em Trabalho e seu Preço em Dinheiro
Todo homem é rico ou pobre, de acordo com o grau em que consegue desfrutar das coisas necessárias, das coisas convenientes e dos prazeres da vida. Todavia, uma vez implantada plenamente a divisão do trabalho, são muito poucas as necessidades que o homem consegue atender com o produto de seu próprio trabalho. A maior parte delas deverá ser atendida com o produto do trabalho de outros, e o homem será então rico ou pobre, conforme a quantidade de serviço alheio que está em condições de encomendar ou comprar. Portanto, o valor de qualquer mercadoria, para a pessoa que a possui, mas não tenciona usá-la ou consumi-la ela própria, senão trocá-la por outros bens, é igual à quantidade de trabalho que essa mercadoria lhe dá condições de comprar ou comandar. Conseqüentemente, o trabalho é a medida real do valor de troca de todas as mercadorias. O preço real de cada coisa — ou seja, o que ela custa à pessoa que deseja adquiri-la — é o trabalho e o incômodo que custa a sua aquisição. O valor real de cada coisa, para a pessoa que a adquiriu e deseja vendê-la ou trocá-la por qualquer outra coisa, é o trabalho e o incômodo que a pessoa pode poupar a si mesma e pode impor a outros. O que é comprado com dinheiro ou com bens, é adquirido pelo trabalho, tanto quanto aquilo que adquirimos com o nosso próprio trabalho. Aquele dinheiro ou aqueles bens na realidade nos poupam este trabalho. Eles contêm o valor de uma certa quantidade de trabalho que permutamos por aquilo que, na ocasião, supomos conter o valor de uma quantidade igual. O trabalho foi o primeiro preço, o dinheiro de compra original que foi pago por todas as coisas. Não foi por ouro ou por prata, mas pelo trabalho, que foi originalmente comprada toda a riqueza do mundo; e o valor dessa riqueza, para aqueles que a possuem, e desejam 87
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trocá-la por novos produtos, é exatamente igual à quantidade de trabalho que essa riqueza lhes dá condições de comprar ou comandar. Riqueza é poder, como diz Hobbes. Mas a pessoa que adquire ou herda uma grande fortuna não necessariamente adquire ou herda, com isto, qualquer poder político, seja civil ou militar. Possivelmente sua fortuna pode dar-lhe os meios para adquirir esses dois poderes, mas a simples posse da fortuna não lhe assegurará nenhum desses dois poderes. O poder que a posse dessa fortuna lhe assegura, de forma imediata e direta, é o poder de compra; um certo comando sobre todo o trabalho ou sobre todo o produto do trabalho que está então no mercado. Sua fortuna é maior ou menor, exatamente na proporção da extensão desse poder; ou seja, de acordo com a quantidade de trabalho alheio ou — o que é a mesma coisa — do produto do trabalho alheio que esse poder lhe dá condições de comprar ou comandar. O valor de troca de cada coisa será sempre exatamente igual à extensão desse poder que essa coisa traz para o seu proprietário. Entretanto, embora o trabalho seja a medida real do valor de troca de todas as mercadorias, não é essa a medida pela qual geralmente se avalia o valor das mercadorias. Muitas vezes é difícil determinar com certeza a proporção entre duas quantidades diferentes de trabalho. Não será sempre só o tempo gasto em dois tipos diferentes de trabalho que determinará essa proporção. Deve-se levar em conta também os graus diferentes de dificuldade e de engenho empregados nos respectivos trabalhos. Pode haver mais trabalho em uma tarefa dura de uma hora do que em duas horas de trabalho fácil; como pode haver mais trabalho em uma hora de aplicação a uma ocupação que custa dez anos de trabalho para aprender, do que em um trabalho de um mês em uma ocupação comum e de fácil aprendizado. Ora, não é fácil encontrar um critério exato para medir a dificuldade ou o engenho exigidos por um determinado trabalho. Efetivamente, ao permutar entre si produtos diferentes de tipos diferentes de trabalho, costuma-se considerar uma certa margem para os dois fatores. Essa, porém, é ajustada não por medição exata, mas pela pechincha ou regateio do mercado, de acordo com aquele tipo de igualdade aproximativa que, embora não exata, é suficiente para a vida diária normal. Além disso, é mais freqüente trocar uma mercadoria por outras mercadorias — e, portanto, comprá-las — do que por trabalho. Por conseguinte, é mais natural estimar seu valor de troca pela quantidade de alguma outra mercadoria, do que com base no trabalho que ela pode comprar. Aliás, a maior parte das pessoas tem mais facilidade em entender o que significa uma quantidade de uma mercadoria específica, do que o significado de uma quantidade de trabalho. Com efeito, a primeira é um objeto plenamente palpável, ao passo que a segunda é uma noção abstrata que, embora possamos torná-la suficientemente inteligível, não é basicamente tão natural e tão óbvia. Acontece porém que, quando cessa o comércio mediante troca de bens e o dinheiro se torna o instrumento comum, é mais freqüente 88
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trocar cada mercadoria específica por dinheiro, do que por qualquer outro bem. Raramente o açougueiro leva suas carnes de boi ou de carneiro ao padeiro ou ao cervejeiro, para trocá-las por pão ou por cerveja; o que faz é levar as carnes ao mercado, onde as troca por dinheiro, e depois troca esse dinheiro por pão ou cerveja. A quantidade de dinheiro que recebe pelas carnes determina também a quantidade de pão e de cerveja que poderá comprar depois. É, pois, mais natural e mais óbvio, para ele, estimar o valor das carnes pela quantidade de dinheiro — a mercadoria pela qual as troca direta e imediatamente — do que pela quantidade de pão e cerveja — as mercadorias pelas quais ele pode trocar as carnes somente por meio de uma outra mercadoria (o dinheiro); para ele, é mais fácil e mais óbvio dizer que suas carnes valem 3 pence ou 4 pence por libra-peso, do que dizer que valem 3 ou 4 libras-peso de pão ou 3 ou 4 quarters de cerveja. Ocorre, portanto, que o valor de troca das mercadorias é mais freqüentemente estimulado pela quantidade de dinheiro do que pela quantidade de trabalho ou pela quantidade de alguma outra mercadoria que se pode adquirir em troca da referida mercadoria. Entretanto, o ouro e a prata, como qualquer outra mercadoria, também variam em seu valor, são ora mais baratos, ora mais caros, e ora são mais fáceis de comprar, ora mais difíceis. A quantidade de trabalho que uma quantidade específica de ouro e prata pode comprar ou comandar, ou seja, a quantidade de outros bens pela qual pode ser trocada, depende sempre da abundância ou escassez das minas que eventualmente se conhecem, por ocasião das trocas. No século XVI, a descoberta das ricas minas da América reduziu o valor do ouro e da prata na Europa a aproximadamente 1/3 do valor que possuíam antes. Conseqüentemente, como custava menos trabalho trazer esses metais das minas para o mercado, assim, quando eram colocados no mercado, era menor a quantidade de trabalho que permitiam comprar ou comandar. Ora, essa revolução no valor do ouro e da prata, embora talvez a maior ocorrida, não é absolutamente a única registrada pela história. Assim como uma medida de quantidade como é o pé natural, a braça ou a mancheia que varia continuamente em sua própria quantidade, jamais pode ser uma medida exata do valor de outras coisas, da mesma forma uma mercadoria cujo valor muda constantemente jamais pode ser uma medida exata do valor de outras mercadorias. Pode-se dizer que quantidades iguais de trabalho têm valor igual para o trabalhador, sempre e em toda parte. Estando o trabalhador em seu estado normal de saúde, vigor e disposição, e no grau normal de sua habilidade e destreza, ele deverá aplicar sempre o mesmo contingente de seu desembaraço, de sua liberdade e de sua felicidade. O preço que ele paga deve ser sempre o mesmo, qualquer que seja a quantidade de bens que receba em troca de seu trabalho. Quanto a esses bens, a quantidade que terá condições de comprar será ora maior, ora menor; mas é o valor desses bens que varia, e não o valor do trabalho que os compra. Sempre e em toda parte valeu este princípio: é caro o que é difícil de 89
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se conseguir, ou aquilo que custa muito trabalho para adquirir, e é barato aquilo que pode ser conseguido facilmente ou com muito pouco trabalho. Por conseguinte, somente o trabalho, pelo fato de nunca variar em seu valor, constitui o padrão último e real com base no qual se pode sempre e em toda parte estimar e comparar o valor de todas as mercadorias. O trabalho é o preço real das mercadorias; o dinheiro é apenas o preço nominal delas. Contudo, embora quantidades iguais de trabalho sempre tenham valor igual para o trabalhador, para a pessoa que as emprega, essas quantidades de trabalho apresentam valor ora maior, ora menor, o empregador compra o trabalho do operário ora por uma quantidade maior de bens, ora por uma quantidade menor. E para o empregador, o preço do trabalho parece variar, da mesma forma como muda o valor de todas as outras coisas. Em um caso, o trabalho alheio se apresenta ao empregador como caro, em outro barato. Na realidade, porém, são os bens que num caso são baratos, em outro, caros. Em tal acepção popular, portanto, pode-se dizer que o trabalho, da mesma forma que as mercadorias, tem um preço real e um preço nominal. Pode-se dizer que seu preço real consiste na quantidade de bens necessários e convenientes que se permuta em troca dele; e que seu preço nominal consiste na quantidade de dinheiro. O trabalhador é rico ou pobre, é bem ou mal remunerado, em proporção ao preço real do seu trabalho, e não em proporção ao respectivo preço nominal. A distinção entre o valor real e o valor nominal do preço das mercadorias e do trabalho não é simplesmente assunto para especulação filosófica, mas às vezes pode ser de grande utilidade na prática. O mesmo preço real é sempre do mesmo valor; todavia, devido às variações ocorrentes no valor do ouro e da prata, o mesmo preço nominal às vezes tem valores muito diferentes. Eis por que, quando se vende uma propriedade territorial com uma reserva de renda perpétua, se quisermos que esta renda conserve sempre o mesmo valor, é importante, para a família em cujo favor se faz a reserva, que a renda não consista em determinada soma de dinheiro. Se tal ocorresse, o valor dessa renda estaria sujeito a variações de dois tipos: primeiro, às decorrentes das quantidades diferentes de ouro e prata que em tempos diferentes estão contidos na moeda da mesma denominação; em segundo lugar, estaria exposta às variações derivantes dos valores diferentes de quantidades iguais de ouro e prata em momentos diferentes. Os príncipes e os Estados soberanos freqüentemente imaginaram ter interesse temporário em diminuir a quantidade de metal puro contido em suas moedas, mas raramente imaginaram ter interesse em aumentá-la. Eis por que a quantidade de metal contido nas moedas — de todo o mundo, acredito — tem diminuído continuamente, e dificilmente aumentou em algum caso. Tais variações, portanto, tendem quase sempre a reduzir o valor de uma renda deixada em dinheiro. A descoberta das minas da América diminuiu o valor do ouro e da prata na Europa. Costuma-se supor — embora sem prová-lo com 90
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certeza, em meu modo de ver — que esta redução ainda continua gradualmente, e assim continuará por muito tempo. Com base nessa hipótese, portanto, tais variações têm mais probabilidade de diminuir do que de aumentar o valor de uma renda deixada em dinheiro, mesmo estipulando-se que ela seja paga não nessa ou naquela quantidade de dinheiro, em moeda desta ou daquela denominação (em tantas ou tantas libras esterlinas, por exemplo), mas em tantas ou tantas onças de prata pura ou de prata de um determinado padrão. As rendas que foram reservadas em trigo conservaram muito melhor seu valor do que as reservadas em dinheiro, mesmo que não tenham ocorrido mudanças na denominação do dinheiro. No 18º ano do reinado de Isabel foi decretado que 1/3 da renda de todos os arrendamentos de terras feitos por Universidades fosse reservado em trigo, e que essa renda fosse paga em espécie ou em conformidade com os preços correntes do trigo no mercado público mais próximo. Ora, segundo o Dr. Blasckstone, o dinheiro proveniente dessa renda em trigo, embora originalmente constituísse apenas 1/3 do total, na época atual representa quase o dobro do que provém dos outros 2/3. Segundo esse cálculo, portanto, as antigas rendas em dinheiro das Universidades ficaram reduzidas mais ou menos a 1/4 de seu antigo valor, ou seja, valem hoje apenas pouco mais de 1/4 da quantidade de trigo que valiam antigamente. Ora, desde o reinado de Filipe e de Maria a denominação do dinheiro inglês sofreu pouca ou nenhuma alteração, sendo que o mesmo número de libras, xelins e pence tem contido quase a mesma quantidade de prata pura. Logo, essa redução do valor das rendas em dinheiro das Universidades se deve inteiramente à diminuição do valor da prata. Quando a diminuição do valor da prata se associa à redução da quantidade de prata contida na moeda da mesma denominação, a perda é muitas vezes ainda maior. Na Escócia, onde a denominação da moeda passou por mudanças muito maiores do que na Inglaterra, e na França, onde as mudanças foram ainda maiores do que na Escócia, algumas rendas antigas, originariamente de grande valor, foram dessa forma reduzidas praticamente a zero. Quantidades iguais de trabalho são compradas com maior precisão, em um futuro distante, com quantidades iguais de trigo — a subsistência do trabalhador — do que com quantidades iguais de ouro ou de prata, ou talvez com quantidades iguais de qualquer outra mercadoria. Portanto, em um futuro distante, quantidades iguais de trigo terão o mesmo valor real com maior precisão, possibilitando, a quem as possui, comprar com maior precisão a mesma quantidade de trabalho alheio. Terão esse mesmo valor, digo, com maior exatidão do que quantidades iguais de praticamente qualquer outra mercadoria, já que mesmo em se tratando de trigo, quantidades iguais não terão exatamente o mesmo valor que terão quantidades iguais de trabalho. A subsistência do trabalhador, ou o preço real do trabalho, como procurarei demonstrar adiante, varia muito de acordo com as ocasiões, sendo mais liberal em uma sociedade que progride na riqueza do que em uma que está parada, 91
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e mais liberal em uma sociedade que está parada, do que em uma que está regredindo. Entretanto, qualquer outra mercadoria, em qualquer momento específico, comprará uma quantidade maior ou menor de trabalho, em proporção à quantidade de subsistência que ela pode comprar na referida ocasião. Por conseguinte, uma renda reservada em trigo está sujeita apenas às variações da quantidade de trabalho que pode ser comprada por uma determinada quantidade de trigo. Ao contrário, uma renda reservada em qualquer outra mercadoria está sujeita não somente às variações da quantidade de trabalho que se pode comprar por uma quantidade específica de trigo, mas também às variações da quantidade de trigo que se pode comprar com qualquer quantidade específica da respectiva mercadoria. Cumpre, porém, observar que, embora o valor real de uma renda em trigo varie muito menos, de um século para outro, do que o valor de uma renda em dinheiro, ele varia muito mais, de um ano para outro. O preço do trabalho em dinheiro, conforme procurarei demonstrar adiante, não flutua de ano para ano com a flutuação do preço do trigo em dinheiro, mas parece ajustar-se em toda parte; não ao preço temporário ou ocasional do trigo, mas ao seu preço médio ou comum. Por sua vez o preço médio ou comum do trigo — como tentarei igualmente demonstrar mais adiante — é regulado pelo valor da prata, pela abundância ou escassez das minas que fornecem este metal ao mercado, ou pela quantidade de trabalho que é preciso empregar — conseqüentemente pela quantidade de trigo que deverá ser consumida — para fazer chegar uma determinada quantidade de prata das minas até o mercado. Ora, o valor da prata, embora por vezes varie muito de um século para outro, raramente apresenta grande variação de um ano para outro, senão que geralmente continua inalterado ou quase inalterado durante meio século ou até durante um século inteiro. Em conseqüência, também o preço comum e médio do trigo em dinheiro pode continuar o mesmo ou quase o mesmo durante um período tão longo, e juntamente com ele, também o preço do trabalho em dinheiro, desde que, evidentemente, a sociedade permaneça, sob outros aspectos, em condição igual ou que esta pouco se altere. Nesse meio-tempo, o preço temporário ou ocasional do trigo pode muitas vezes, em um ano, dobrar em relação ao preço do ano anterior, ou flutuar entre 25 e 50 xelins o quarter.123 Mas, quando o trigo estiver a esse preço de 50 xelins o quarter, não somente o valor nominal mas também o valor real de uma renda em trigo terá o dobro do valor que tinha quando o quarter de trigo estava a 5 xelins, ou seja, conseguirá comprar o dobro da quantidade de trabalho ou da maior parte das outras mercadorias; em contrapartida, o preço do trabalho em dinheiro e, juntamente com ele, o da maioria das outras coisas, continuará inalterado no decurso de todas as flutuações mencionadas. 123 Como aparecerá nas páginas seguintes, quarter é uma medida inglesa para cereais, equivalente a 1/4 do quintal, ou seja, 28 libras. (N. do E.) 92
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Fica, pois, evidente que o trabalho é a única medida universal e a única medida precisa de valor, ou seja, o único padrão através do qual podemos comparar os valores de mercadorias diferentes, em todos os tempos e em todos os lugares. Não se pode estimar o valor real de mercadorias diferentes de um século para outro, pelas quantidades de prata pelas quais foram compradas. Não podemos estimar esse valor, de um ano para outro, com base nas quantidades de trigo. Pelas quantidades de trabalho podemos, com a máxima exatidão, calcular esse valor, tanto de um século para outro como de um ano para outro. De um século para outro, o trigo é uma medida melhor do que a prata, pois de século para século quantidades iguais de trigo poderão pagar a mesma quantidade de trabalho com maior precisão do que quantidades iguais de prata. De um ano para outro, ao contrário, a prata é uma medida melhor, já que quantidades iguais de prata podem pagar com maior precisão a mesma quantidade de trabalho. Contudo, embora ao estabelecer rendas perpétuas, ou mesmo no caso de arrendamentos muito longos, possa ser útil distinguir entre o preço real e o preço nominal, esta distinção não tem utilidade nas transações de compra e venda, as mais comuns e normais da vida humana. No mesmo tempo e no mesmo lugar, o preço real e o preço nominal de todas as mercadorias estão exatamente em proporção um com o outro. Por exemplo: quanto mais ou quanto menos dinheiro se receber por uma mercadoria qualquer no mercado de Londres, tanto mais ou tanto menos trabalho se poderá, no mesmo tempo e no mesmo lugar, comprar ou comandar. No mesmo tempo e lugar, portanto, o dinheiro é a medida exata do valor real de troca de todas as mercadorias. Assim é, porém, somente no mesmo tempo e no mesmo lugar. Embora em lugares distantes não haja proporção regular entre o preço real e o preço em dinheiro das mercadorias, o comerciante que leva bens de um lugar para outro só precisa considerar o preço em dinheiro, ou a diferença entre a quantidade de prata pela qual os compra e aquela pela qual tem probabilidade de vendê-los. Meia onça de prata em Cantão, na China, pode comandar uma quantidade maior de trabalho e de artigos necessários e convenientes para a vida, do que 1 onça em Londres. Portanto, uma mercadoria que se vende por 1/2 onça de prata em Cantão pode ser lá realmente mais cara, de importância real maior para a pessoa que a possui lá, do que uma mercadoria que se vende por 1/2 onça em Londres. Se, porém, um comerciante londrino puder comprar em Cantão, por 1/2 onça de prata, uma mercadoria que depois pode vender em Londres por 1 onça, ganhará 100% no negócio — exatamente tanto quanto se 1 onça de prata tivesse em Londres exatamente o mesmo valor que em Cantão. Não importa para ele se 1/2 onça de prata em Cantão lhe teria permitido comprar mais trabalho e quantidade maior de artigos necessários ou convenientes para a vida do que uma onça em Londres. Uma onça de prata em Londres sempre lhe permitirá comandar o duplo da quantidade de trabalho e de mercadorias, em relação ao que lhe poderia 93
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permitir 1/2 onça de prata em Cantão, é precisamente isso que o comerciante quer. Uma vez que, portanto, é o preço nominal das coisas, ou seja, o seu preço em dinheiro, que em última análise determina se uma certa compra ou venda é prudente ou imprudente, e conseqüentemente é esse o preço que regula quase toda a economia na vida real normal em que entra em jogo o preço, não é de admirar que se lhe tenha dispensado muito mais atenção do que ao preço real. Em uma obra como esta, porém, por vezes pode ser útil comparar os valores reais diferentes de uma mercadoria em tempos e lugares diferentes, ou seja, os diferentes graus de poder sobre o trabalho alheio que a referida mercadoria pode ter dado, em ocasiões diferentes, àqueles que a possuíam. Nesse caso, devemos comparar não tanto as diferentes quantidades de prata pelas quais a mercadoria era normalmente vendida, mas antes as diferentes quantidades de trabalho que poderiam ter sido compradas por essas quantidades diferentes de prata. Todavia, dificilmente se poderá saber, com algum grau de precisão, os preços correntes do trabalho em tempos e lugares distantes. Os do trigo, embora só tenham sido registrados com regularidade em certos lugares, geralmente são mais bem conhecidos e foram anotados com maior freqüência pelos historiadores e outros escritores. Geralmente, pois, temos que contentar-nos com esses preços, não como se estivessem sempre exatamente na mesma proporção que os preços correntes do trabalho, mas como sendo a maior aproximação que geralmente se pode ter em relação a essa proporção. Mais adiante terei ocasião de fazer várias comparações desse tipo. À medida que avançava a indústria, as nações comerciantes consideraram conveniente cunhar dinheiro-moeda em metais diferentes: em ouro para pagamentos maiores, em prata para compras de valor moderado e em cobre — ou outro metal menos nobre — para as compras de valor ainda menor. Todavia, sempre consideraram um desses metais como sendo a medida ou o padrão de valor mais peculiar do que o dos outros dois metais; essa preferência parece geralmente haver sido dada àquele metal que havia sido o primeiro a ser usado por essas nações como instrumento de comércio. Tendo uma vez começado a utilizar esse metal como seu padrão — e o devem ter feito quando não dispunham de outro dinheiro geralmente as nações continuaram a utilizar como dinheiro esse metal, mesmo quando a necessidade já não era mais a mesma. Pelo que se diz, os romanos só possuíam dinheiro em cobre até cinco anos antes da I Guerra Púnica,124 quando então começaram pela primeira vez a cunhar moeda em prata. Por isso, ao que parece, o cobre continuou, mesmo depois disso, a vigorar sempre como a medida de valor na República romana. Em Roma todos os cálculos eram feitos ou em asses ou em sestércios e na mesma moeda eram também computadas 124 PLÍNIO. Op. cit. Livro Trigésimo Terceiro, capítulo III. 94
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todas as propriedades fundiárias. Ora, o asse sempre foi a denominação de uma moeda de cobre. A palavra sestertius significa 2 1/2 asses. Embora, portanto, originalmente o sestércio fosse uma moeda de prata, seu valor era calculado em cobre. Em Roma, quem possuísse muito dinheiro, era mencionado como tendo muito cobre de outras pessoas. As nações nórdicas que se estabeleceram sobre as ruínas do Império Romano parecem ter adotado desde o início o dinheiro de prata, e não ter conhecido moedas de ouro ou de cobre por muito tempo depois. Havia moedas de prata na Inglaterra, ao tempo dos saxões, mas poucas moedas de ouro até à época de Eduardo III, e nenhuma moeda de cobre até à de Jaime I, da Grã-Bretanha. Na Inglaterra, portanto — e em todas as outras nações européias modernas, pelas mesmas razões, como acredito — todos os cálculos e a contabilidade são feitos em prata, sendo em prata que também se computa geralmente o valor de todos os bens e propriedades. Quando queremos expressar o valor da fortuna de alguém, raramente mencionamos o número de guinéus; o que fazemos é mencionar o número de libras esterlinas que supostamente se daria pela fortuna. Inicialmente, em todos os países, creio, um pagamento legal corrente só podia ser feito na moeda do metal que era particularmente considerado como padrão ou medida de valor. Na Inglaterra, o ouro não era inicialmente considerado como moeda corrente, ainda muito tempo depois de haver moedas de ouro. A proporção entre os valores do ouro e da prata não era determinada por lei pública ou por proclamação, mas sua fixação era deixada ao encargo do mercado. Se um devedor oferecia pagamento em ouro, o credor podia simplesmente recusar este pagamento, ou então aceitá-lo, mas o valor era acordado entre as duas partes. Atualmente, o cobre não é moeda legal, a não ser como troco para moedas de prata menores. Nessa conjuntura, a diferenciação entre o metal que era o padrão e o metal que não o era constituía algo mais que uma distinção nominal. No decorrer do tempo, e à medida em que as pessoas se familiarizavam cada vez mais com o uso dos diversos metais em moeda, e conseqüentemente também com a proporção existente entre os valores respectivos, considerou-se conveniente, na maioria dos países — conforme acredito —, fixar com segurança essa proporção, sancionando por lei, por exemplo, que 1 guinéu de tal peso e tal quilate equivale a 21 xelins, ou seja, representa um pagamento legal para um débito desse montante. Nessa situação, e enquanto durar uma proporção regulamentada desse tipo, a distinção entre o metal-padrão e o metal que não é padrão torna-se pouco mais do que uma distinção nominal. Todavia, se houver qualquer mudança nessa proporção regulamentada, novamente a distinção torna-se — ou ao menos parece tornar-se — algo mais do que uma distinção puramente nominal. Se, por exemplo, o valor de 1 guinéu regulamentado fosse reduzido para 20 xelins, ou subisse para 22 xelins, sendo todos os cálculos e a contabilidade feitos em moeda-prata e quase todas as obrigações de débito 95
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sendo expressas na mesma moeda, a maior parte dos pagamentos poderia ser feita com a mesma quantidade de moeda-prata que antes; todavia, seriam necessárias quantidades muito diferentes de moedaouro — uma quantidade maior em um caso, e uma quantidade menor, no outro. O valor da prata variaria menos que o do ouro. A prata serviria para medir o ouro, mas não vice-versa. O valor do ouro pareceria depender da quantidade de prata pela qual seria trocado, ao passo que o valor da prata não pareceria depender da quantidade de ouro pela qual seria trocada. Essa diferença, porém, dever-se-ia toda ela ao costume de contabilizar e exprimir o montante de todas as somas, grandes e pequenas, em moeda-prata, e não em moeda-ouro. Uma das notas promissórias do Sr. Drummond, de 25 ou 50 guinéus, continuaria a poder ser paga, após uma alteração desse tipo, com 25 ou 50 guinéus, da mesma forma que antes. Após tal mudança, a nota poderia ser paga com a mesma quantidade de ouro que antes, mas com quantidades muito diferentes de prata. No pagamento dessa nota, o valor de ouro seria menos variável do que o da prata. O ouro mediria o valor da prata, mas não vice-versa. No caso de se generalizar o costume de contabilizar, e de expressar dessa forma notas promissórias e outras obrigações em dinheiro, o ouro, e não a prata, seria considerado como o metal-padrão para medir o valor. Na realidade, enquanto perdurar alguma proporção regulamentada entre os respectivos valores dos diferentes metais em dinheiro, o valor dos metais mais preciosos determina o valor de todo o dinheiro. Doze pence de cobre contêm 1/2 libra avoirdupoids de cobre — não da melhor qualidade —, o qual, antes de ser cunhado, raramente vale 7 pence em prata. Mas, como a regulamentação estabelece que 12 desses pence equivalem a 1 xelim, o mercado considera que eles valem 1 xelim, podendo-se a qualquer momento receber por eles 1 xelim. Mesmo antes da última reforma da moeda-ouro da Grã-Bretanha, o ouro — ao menos a parte que circulava em Londres e nas vizinhanças —, em comparação com a maior parte da prata, desceu menos abaixo de seu peso-padrão. Todavia, 21 xelins já desgastados e com a inscrição um tanto apagada eram considerados como equivalentes a 1 guinéu, o qual talvez também já apresentava certo desgaste, mas raramente tão grande como as moedas de xelins. As últimas regulamentações talvez levaram a moeda-ouro o mais próximo de seu peso-padrão que é possível atingir em qualquer nação; e a ordem de só receber moeda-ouro nos locais públicos, por peso, provavelmente preservará essa garantia, enquanto essa ordem for aplicada. A moeda-prata continua ainda no mesmo estado de desgaste e desvalorização que antes da reforma da moeda-ouro. No mercado, porém, 21 xelins dessa moeda-prata desvalorizada continuam a ser considerados como valendo 1 guinéu dessa moeda de excelente ouro. Evidentemente, a reforma da moeda-ouro aumentou o valor da moeda-prata que se dá em troca. Na Casa da Moeda inglesa, 1 libra-peso de ouro é cunhada em 44 1/2 guinéus, os quais, valendo o guinéu 21 xelins, equivalem a 46 96
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libras, 14 xelins e 6 pence. Por conseguinte, 1 onça dessa moeda-ouro vale £ 3. 17 s. 10 1/2 d. em prata. Na Inglaterra, não se paga taxa pela cunhagem, razão pela qual quem leva 1 libra-peso ou 1 onça de ouro-padrão à Casa da Moeda, recebe de volta 1 libra-peso ou 1 onça de ouro em moeda, sem nenhuma dedução. Diz-se, pois, que 3 libras esterlinas, 17 xelins e 10 1/2 pence por onça são o preço do ouro na Casa da Moeda da Inglaterra, ou seja, a quantidade de ouro em moeda que a Casa da Moeda paga pelo ouro-padrão em lingote. Antes da reforma da moeda-ouro, o preço do ouro-padrão em lingote no mercado durante muitos anos esteve acima de £ 3. 18 s., às vezes acima de £ 3. 19 s., e com muita freqüência, acima de 4 libras esterlinas por onça, sendo que esse montante, no estado de desgaste e desvalorização da moeda-ouro, provavelmente em poucos casos continha mais do que 1 onça de ouro-padrão. Desde a reforma da moeda-ouro, o preço de mercado do ouro-padrão em lingote raramente supera £ 3. 17 s. 7 d. por onça. Antes da reforma da moeda-ouro, o preço de mercado estava sempre mais ou menos acima do preço da Casa da Moeda. A partir dessa reforma, o preço de mercado esteve constantemente abaixo do preço da Casa da Moeda. Mas esse preço de mercado é o mesmo, quer seja pago em moeda de ouro ou em moeda de prata. Por isso, a recente reforma da moeda-ouro elevou não somente o valor da moeda-ouro, mas também da moeda-prata, em proporção com o ouro em lingote, e provavelmente também em proporção a todas as outras mercadorias, embora pelo fato de o preço da maior parte das outras mercadorias ser influenciado por tantas outras causas, o aumento do valor da moeda-ouro ou da moeda-prata, em proporção com as mercadorias, possa não ser tão claro e perceptível. Na Casa da Moeda da Inglaterra, 1 libra-peso de prata-padrão em barras é cunhada em 62 xelins, contendo, da mesma forma, 1 libra-peso de prata-padrão. Diz-se, pois, que 5 xelins e 2 pence por onça constituem o preço da prata na Casa da Moeda da Inglaterra, ou a quantidade da moeda-prata que a Casa da Moeda dá em troco de prata-padrão em barras. Antes da reforma da moeda-ouro, o preço de mercado da prata-padrão em barras era, em ocasiões diferentes, 5 xelins e 4 pence, 5 xelins e 7 pence, e com muita freqüência 5 xelins e 8 pence, por onça. Todavia, 5 xelins e 7 pence parecem ter sido o preço mais comum. A partir da reforma da moeda-ouro, o preço de mercado da prata-padrão em barras caiu em certas ocasiões para 5 xelins e 3 pence, 5 xelins e 4 pence, e 5 xelins e 5 pence, por onça, sendo que dificilmente ultrapassou alguma vez esse último preço. Embora o preço de mercado da prata-padrão em barras tenha caído consideravelmente desde a reforma da moeda-ouro, não baixou tanto como o preço da Casa da Moeda. Na proporção entre os diversos metais na moeda inglesa, assim como o cobre é cotado muito acima do seu valor real, da mesma forma a prata é cotada levemente abaixo do seu valor real. No mercado da Europa, na moeda francesa e na holandesa, por 1 onça de ouro fino se obtêm aproximadamente 14 onças de prata fina. Já no dinheiro 97
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inglês, por 1 onça de ouro fino se obtém em torno de 15 onças de prata, isto é, mais do que vale o ouro na estimativa geral da Europa. Mas já que o preço do cobre em barras não é aumentado — mesmo na Inglaterra — pelo alto preço do cobre em dinheiro inglês, o preço da prata em barras não é baixado pelo baixo valor da prata em dinheiro inglês. A prata em barras ainda conserva sua proporção adequada com o ouro; e pela mesma razão, o cobre em barras conserva sua proporção adequada em relação à prata. Com a reforma da moeda-prata no reinado de Guilherme III, o preço da prata em barras ainda continuou algo acima do preço da Casa da Moeda. Locke atribuiu esse alto preço à permissão de exportar moeda-prata. Dizia ele que essa permissão de exportar fez com que a demanda de prata em barras fosse maior que a demanda de prata em moeda. Todavia, certamente o número de pessoas que desejam moeda-prata para os usos comuns de comprar e vender no país certamente é muito superior ao daqueles que querem prata em barras ou para exportar ou para alguma outra finalidade. Atualmente existe uma permissão semelhante para exportar ouro em lingote, e uma proibição semelhante de exportar ouro em moeda; e no entanto, o preço do ouro em lingote desceu abaixo do preço da Casa da Moeda. Ora, no dinheiro inglês, a prata estava, então como hoje, abaixo do preço, em proporção com o ouro; e o dinheiro-ouro, que na época não parecia necessitar de reforma, regulava, tanto então como hoje, o valor real de todo o dinheiro. Já que a reforma da moeda-prata não reduziu na época o preço da prata em barras ao preço da Casa da Moeda, não é muito provável que uma reforma similar o fizesse hoje. Se a moeda-prata fosse novamente aproximada ao seu peso-padrão, tanto quanto o ouro, é provável que 1 guinéu, de acordo com a proporção atual, pudesse ser trocado por mais prata em dinheiro do que aquilo que o guinéu poderia comprar em barra. Contendo a prata seu pleno pesopadrão, nesse caso haveria lucro em fundi-la, a fim de primeiro vender a barra por moeda-ouro, e depois trocar essa moeda-ouro por moeda-prata a ser fundida da mesma forma. Ao que parece, o único método de evitar esse inconveniente consiste em fazer alguma alteração na proporção atual. Possivelmente, o inconveniente seria menor se a moeda-prata fosse cotada acima da sua proporção adequada em relação ao ouro, na mesma porcentagem em que atualmente está cotada abaixo dele; isso, desde que ao mesmo tempo se decretasse que a prata não fosse moeda legal para mais do que o câmbio de 1 guinéu, da mesma forma como o cobre não é moeda legal para mais do que o câmbio de 1 xelim. Nesse caso, nenhum credor poderia ser fraudado em conseqüência da alta valorização da prata em dinheiro, da mesma forma que atualmente nenhum credor pode ser fraudado em decorrência da alta valorização do cobre. Somente os bancos sofreriam com tal regulamentação. Quando eles são pressionados por uma corrida, às vezes procuram ganhar tempo pagando em 6 pence, ao passo que uma tal regulamentação os impediria de utilizar o condenável método de deixar de efetuar imediatamente 98
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os pagamentos. Em conseqüência, seriam obrigados a conservar sempre nos cofres uma quantidade de dinheiro disponível maior do que atualmente; e embora essa regulamentação constituísse eventualmente um inconveniente considerável para os banqueiros, ao mesmo tempo representaria uma segurança apreciável para seus credores. £ 3. 17 s. e 10 1/2 d. (preço do ouro na Casa da Moeda) certamente não contêm, mesmo em nossa excelente moeda-ouro atual, mais do que 1 onça de ouro-padrão, e poder-se-ia pensar, portanto, que essa quantia não possa comprar mais ouro-padrão em lingotes do que isso. Mas o ouro em moeda é mais conveniente do que o ouro em lingote e embora na Inglaterra a cunhagem seja livre, o ouro que é levado em lingote à Casa da Moeda raramente pode ser restituído em dinheiro ao proprietário antes de algumas semanas — e no ritmo atual de operação da Casa da Moeda, isso não poderia ocorrer antes de vários meses. Essa demora equivale a certa taxa ou imposto, fazendo com que o ouro em dinheiro tenha valor algo maior do que uma quantidade igual de ouro em barra. Se no sistema monetário inglês a prata fosse cotada de acordo com sua proporção adequada em relação ao ouro, o preço da prata em barras provavelmente cairia abaixo do preço da Casa da Moeda, mesmo sem nenhuma reforma da moeda-prata; e até o valor das atuais moedas de prata, já tão desgastadas pelo uso, seria regulado pelo valor da excelente moeda-ouro pela qual podem ser cambiadas. Provavelmente, a introdução de uma pequena taxa cobrada pela cunhagem, tanto de ouro como de prata, aumentaria ainda mais a superioridade desses metais em moeda, em relação a uma quantidade igual de cada um desses dois metais em barra. Nesse caso, a cunhagem aumentaria o valor do metal cunhado em proporção à extensão dessa pequena taxa, pela mesma razão que a moda aumenta o valor das baixelas de prata ou ouro em proporção com o preço dessa moda. A superioridade da moeda sobre o metal em barras evitaria a fusão das moedas e desestimularia sua exportação. E se, por alguma exigência do bem-estar público, se tornasse necessário exportar as moedas, a maior parte delas voltaria logo, espontaneamente. No exterior, essas moedas só poderiam ser vendidas pelo seu peso em barras. Em nosso país, elas poderiam ser vendidas por mais do que isso. Por conseguinte, haveria um lucro em reconduzi-las ao país. Na França, impõe-se uma taxa de aproximadamente 8% na cunhagem; conforme se afirma, a moeda francesa, quando exportada, regressa novamente ao país espontaneamente. As flutuações ocasionais do preço de mercado do ouro e da prata em barras derivam das mesmas causas que as flutuações similares que ocorrem no preço de mercado de todas as outras mercadorias. A perda freqüente desses metais — devido a acidentes de transporte por mar e terra, ao consumo contínuo dos mesmos nas operações de douração e incrustação, à confecção de adornos etc., ao desgaste das moedas pelo uso freqüente — exige, em todos os países que não possuem minas próprias, uma importação contínua, a fim de compensar essas perdas. Os importadores — como aliás todos os comerciantes, suponho — procuram, na 99
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medida do possível, adaptar suas importações à demanda imediata conforme seu cálculo de probabilidade. Todavia, não obstante todas as cautelas, por vezes exageram nas importações, por vezes ficam abaixo da demanda real. Quando importam mais ouro ou prata do que a demanda exige, em vez de assumirem o risco e o incômodo de reexportar o excedente, às vezes preferem vender uma parte a preço levemente abaixo do preço normal ou médio. Ao contrário, quando importam menos do que o desejado pela demanda, às vezes conseguem preços superiores aos normais ou médios. Mas quando, com todas essas flutuações ocasionais, o preço de mercado, do ouro ou da prata em barras, continua durante vários anos consecutivos a manter-se constantemente mais ou menos acima ou mais ou menos abaixo do preço da Casa da Moeda, podemos estar certos de que essa constante superioridade ou inferioridade é resultante de alguma coisa no tocante ao estado da moeda, fator esse que faz com que certa quantidade de moeda equivalha a mais ou a menos do que a quantidade exata de metal em lingote que a moeda deve conter. A constância e a firmeza do efeito supõem constância e firmeza proporcionais na causa. O dinheiro de qualquer país constitui, em qualquer tempo e lugar específico, uma medida mais ou menos acurada do valor; conforme a moeda corrente compatibilizar mais ou menos exatamente com seu padrão, ou seja, conforme ela contiver com precisão maior ou menor a quantidade exata de ouro puro ou prata pura que deve conter. Se, por exemplo, na Inglaterra, 44 1/2 guinéus contivessem exatamente 1 libra-peso de ouro-padrão, ou 11 onças de ouro fino e 1 onça de ouro-liga, a moeda-ouro na Inglaterra seria uma medida tão precisa do valor efetivo das mercadorias a qualquer tempo e lugar, quanto a natureza das coisas permitisse. Se, ao contrário, devido à fricção constante e ao uso, 44 1/2 guinéus geralmente contiverem menos do que 1 libra-peso de ouro-padrão, e a diminuição for maior em algumas peças do que em outras, o dinheiro como medida do valor estará sujeito ao mesmo tipo de imprecisão ao qual estão expostos normalmente todos os outros pesos e medidas. Já que raramente acontece que as moedas estejam totalmente de acordo com o padrão, o comerciante ajusta o preço de suas mercadorias da melhor forma que pode, não aos pesos e medidas ideais, mas àquilo que, na média e baseado na experiência, considera serem os preços efetivos. Em conseqüência de tal desajuste da moeda ajusta-se o preço das mercadorias não à quantidade de ouro ou prata puros que a moeda deveria conter, mas àquilo que, na média, e com base na experiência, se considera que ela contém efetivamente. Cumpre observar que por preço das mercadorias em dinheiro entendo sempre a quantidade de ouro ou prata puros pela qual são vendidas, abstraindo totalmente da denominação da moeda. Por exemplo: considero que 6 xelins e 8 pence, na época de Eduardo I, são o mesmo preço em dinheiro que 1 libra esterlina no momento atual; isto porque os 6 xelins e 8 pence do tempo de Eduardo I continuam sendo — na medida em que possamos julgar — a mesma quantidade de prata pura de 1 libra esterlina nos dias de hoje. 100
CAPÍTULO VI Fatores que Compõem o Preço das Mercadorias
No estágio antigo e primitivo que precede ao acúmulo de patrimônio ou capital e à apropriação da terra, a proporção entre as quantidades de trabalho necessárias para adquirir os diversos objetos parece ser a única circunstância capaz de fornecer alguma norma ou padrão para trocar esses objetos uns pelos outros. Por exemplo, se em uma nação de caçadores abater um castor custa duas vezes mais trabalho do que abater um cervo, um castor deve ser trocado por — ou então, vale — dois cervos. É natural que aquilo que normalmente é o produto do trabalho de dois dias ou de duas horas valha o dobro daquilo que é produto do trabalho de um dia ou uma hora. Se um tipo de trabalho for mais duro que o outro, naturalmente deve-se deixar uma margem para essa maior dureza; nesse caso, o produto de uma hora de trabalho de um tipo freqüentemente pode equivaler ao de duas horas de trabalho de outro. Ou então, se um tipo de trabalho exige um grau incomum de destreza e engenho, a estima que as pessoas têm por esses talentos naturalmente dará ao respectivo produto um valor superior àquele que seria devido ao tempo nele empregado. Tais talentos raramente podem ser adquiridos senão mediante longa experiência e o valor superior do seu produto muitas vezes não pode consistir em outra coisa senão numa compensação razoável pelo tempo e trabalho despendidos na aquisição dessas habilidades. Em sociedades desenvolvidas, essa compensação pela maior dureza de trabalho ou pela maior habilidade costuma ser feita através dos salários pagos pelo trabalho: algo semelhante deve ter havido provavelmente nos estágios mais primitivos da civilização. Nessa situação, todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador; e a quantidade de trabalho normalmente empregada em adquirir ou produzir uma mercadoria é a única circunstância capaz de regular ou determinar a quantidade de trabalho que ela normalmente deve comprar, comandar ou pela qual deve ser trocada. 101
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No momento em que o patrimônio ou capital se acumulou nas mãos de pessoas particulares, algumas delas naturalmente empregarão esse capital para contratar pessoas laboriosas, fornecendo-lhes matérias-primas e subsistência a fim de auferir lucro com a venda do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que este trabalho acrescenta ao valor desses materiais. Ao trocar-se o produto acabado por dinheiro ou por trabalho, ou por outros bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e os salários dos trabalhadores, deverá resultar algo para pagar os lucros do empresário, pelo seu trabalho e pelo risco que ele assume ao empreender esse negócio. Nesse caso, o valor que os trabalhadores acrescentam aos materiais desdobra-se, pois, em duas partes ou componentes, sendo que a primeira paga os salários dos trabalhadores, e a outra, os lucros do empresário, por todo o capital e os salários que ele adianta no negócio. Com efeito, o empresário não poderia ter interesse algum em empenhar esses bens, se não esperasse da venda do trabalho de seus operários algo mais do que seria o suficiente para restituir-lhe o estoque, patrimônio ou capital investido; por outro lado, o empresário não poderia ter interesse algum em empregar um patrimônio maior, em lugar de um menor, caso seus lucros não tivessem alguma proporção com a extensão do patrimônio investido. Poder-se-ia talvez pensar que os lucros do patrimônio não passam de uma designação diferente para os salários de um tipo especial de trabalho, isto é, o trabalho de inspecionar e dirigir a empresa. No entanto, trata-se de duas coisas bem diferentes; o lucro é regulado por princípios totalmente distintos, não tendo nenhuma proporção com a quantidade, a dureza ou o engenho desse suposto trabalho de inspecionar e dirigir. É totalmente regulado pelo valor do capital ou patrimônio empregado, sendo o lucro maior ou menor em proporção com a extensão desse patrimônio. Suponhamos, por exemplo, que em determinada localidade, em que o lucro anual normal do patrimônio empenhado em manufatura é de 10%, existam duas manufaturas diferentes, que empregam, cada uma delas, vinte operários, recebendo cada um 15 libras esterlinas por ano, ou seja, tendo cada uma das duas manufaturas uma despesa de 300 libras esterlinas por ano para pagar os operários. Suponhamos também que os materiais usados e as matérias-primas processadas anualmente pela primeira manufatura sejam pouco refinadas e custem apenas 700 libras esterlinas, ao passo que as matérias-primas utilizadas pela segunda são mais refinadas e custam 7 mil libras esterlinas. Nesse caso, o capital anual empregado na primeira é de apenas 1 000 libras, ao passo que o capital empenhado na segunda será de 7 300 libras esterlinas. À taxa de 10%, portanto, o primeiro empresário esperará um lucro anual aproximado de apenas 100 libras, enquanto o segundo esperará um lucro anual de 730 libras esterlinas. Todavia, embora seus lucros sejam muito diferentes, seu trabalho de inspeção e direção pode ser quase ou totalmente igual. Em muitas manufaturas grandes, esse trabalho de inspeção e direção é confiado a algum funcionário de relevo. Seus salários expressam ade102
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quadamente o valor desse tipo de trabalho. Embora ao empregar esses funcionários geralmente se considere, até certo ponto, não somente seu trabalho e sua habilidade, mas também a confiança que nele se deposita, esses fatores nunca têm uma proporção regular cuja administração eles supervisionam; e o proprietário desse capital, embora fique assim quase isento desse trabalho, continua a esperar que seus lucros mantenham uma proporção regular com seu capital. Por conseguinte, no preço das mercadorias, os lucros do patrimônio ou capital empenhado constituem um componente totalmente distinto dos salários pagos pelo trabalho, sendo regulados por princípios bem diferentes. Já nessa situação, o produto total do trabalho nem sempre pertence ao trabalhador. Na maioria dos casos, este deve reparti-lo com o dono do capital que lhe dá emprego. Também já não se pode dizer que a quantidade de trabalho normalmente empregada para adquirir ou produzir uma mercadoria seja a única circunstância a determinar a quantidade que ele normalmente pode comprar, comandar ou pela qual pode ser trocada. É evidente que uma quantidade adicional é devida pelos lucros do capital, pois este adiantou os salários e forneceu os materiais para o trabalho dos operários. No momento em que toda a terra de um país se tornou propriedade privada, os donos das terras, como quaisquer outras pessoas, gostam de colher onde nunca semearam, exigindo uma renda, mesmo pelos produtos naturais da terra. A madeira da floresta, o capim do campo e todos os frutos da terra, os quais, quando a terra era comum a todos, custavam ao trabalhador apenas o trabalho de apanhá-los, a partir dessa nova situação têm o seu preço onerado por algo mais, inclusive para o trabalhador. Ele passa a ter que pagar pela permissão de apanhar esses bens, e deve dar ao proprietário da terra uma parte daquilo que o seu trabalho colhe ou produz. Essa porção, ou, o que é a mesma coisa, o preço dessa porção, constitui a renda da terra, constituindo, no caso da maior parte das mercadorias, um terceiro componente do preço. Importa observar que o valor real dos diversos componentes do preço é medido pela quantidade de trabalho que cada um deles pode comprar ou comandar. O trabalho mede o valor não somente daquela parte do preço que se desdobra em trabalho efetivo, mas também daquela representada pela renda da terra, e daquela que se desdobra no lucro devido ao empresário. Em toda sociedade, o preço de qualquer mercadoria, em última análise, se desdobra em um ou outro desses três fatores, ou então nos três conjuntamente; e em toda sociedade mais evoluída, os três componentes integram, em medida maior ou menor, o preço da grande maioria das mercadorias. No preço do trigo, por exemplo, uma parte paga a renda devida ao dono da terra, uma outra paga os salários ou manutenção dos trabalhadores e do gado empregado na produção do trigo, e a terceira paga o lucro do responsável pela exploração da terra. Essas três partes 103
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perfazem, diretamente ou em última análise, o preço total do trigo. Poder-se-ia talvez pensar que é necessária uma quarta parte, para substituir o capital do responsável direto pela exploração da terra, ou para compensar o desgaste do gado empregado no cultivo e o desgaste de outros equipamentos agrícolas. Todavia, deve-se considerar que o próprio preço e qualquer equipamento ou instrumento agrícola, como por exemplo de um cavalo utilizado no trabalho, se compõe também ele dos mesmos três itens enumerados: a renda da terra na qual o cavalo é criado, o trabalho despendido em criá-lo e cuidar dele, e os lucros do responsável pela exploração da terra, que adianta tanto a renda da terra como os salários do trabalho. Eis por que, embora o preço do trigo possa pagar o preço e a manutenção do cavalo, o preço total continua a desdobrar-se, diretamente ou em última análise, nos três componentes: renda da terra, trabalho e lucros. No preço da farinha de trigo ou de outras farinhas temos que acrescentar ao preço do trigo os lucros do moleiro e os salários de seus empregados; no preço do pão, os lucros do padeiro e os salários de seus empregados; e no preço de ambos, temos que acrescentar o trabalho necessário para transportar o trigo da casa do agricultor para o moinho, e do moinho para a padaria, juntamente com os lucros daqueles que adiantam os salários correspondentes àquele trabalho. O preço do linho em estado bruto desdobra-se nos mesmos três componentes que perfazem o preço do trigo. No preço do tecido de linho, é preciso acrescentar a esse preço os salários do preparador, do fiandeiro, do tecelão, do branqueador etc., além dos lucros de seus respectivos empregadores. Quanto mais determinada mercadoria sofre uma transformação manufatureira, a parte do preço representada pelos salários e pelo lucro se torna maior em comparação com a que consiste na renda da terra. Com o progresso da manufatura, não somente cresce o volume de lucros, mas também cada lucro subseqüente é maior do que o anterior, pois o capital do qual provém o lucro deve ser sempre maior. Por exemplo, o capital que dá emprego aos tecelões deve ser maior do que o capital que dá emprego aos fiandeiros, porque esse capital repõe aquele capital com seus lucros, como também paga os salários dos tecelões e os lucros sempre devem manter alguma proporção com o capital. Nas sociedades mais desenvolvidas, porém, existem sempre algumas mercadorias cujo preço se decompõe em apenas dois fatores: os salários do trabalho e os lucros do patrimônio ou capital; existindo também um número ainda menor de mercadorias, em que o preço total consiste unicamente nos salários do trabalho. No preço de peixe do mar, por exemplo, uma parte paga o trabalho dos pescadores, e a outra os lucros do capital empregado na pesca. É muito raro, neste caso, que a renda paga pelo arrendamento da terra também seja um componente do preço, embora isto aconteça às vezes, como exporei adiante. É diferente o caso da pesca fluvial, ao menos na maior parte dos países 104
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da Europa. A pesca de salmão paga uma renda, a qual, embora no caso não se possa propriamente denominá-la renda por arrendamento de terra, faz parte do preço de um salmão, tanto quanto os salários e o lucro. Em algumas regiões da Escócia, certas pessoas se ocupam com juntar, ao longo da praia, essas pedrinhas variegadas comumente conhecidas sob o nome de Scotch Pebbles. O preço que o canteiro lhes paga é simplesmente o salário de seu trabalho; no caso, nem a renda da terra nem o lucro fazem parte do preço. Entretanto, o preço total de uma mercadoria ainda deve, em última análise, constar de algum dos três componentes citados, ou dos três conjuntamente, visto que tudo o que restar desse preço total, depois de pagos a renda da terra e o preço de todo o trabalho empregado em obter a matéria-prima, em fabricar a mercadoria e levá-la ao mercado, necessariamente será o lucro de alguém. Assim como o preço ou valor de troca de cada mercadoria específica, considerada isoladamente, se decompõe em algum dos três itens ou nos três conjuntamente, da mesma forma o preço ou valor de troca de todas as mercadorias que constituem a renda anual completa de um país — considerando-se as mercadorias em seu complexo total — deve decompor-se nos mesmos três itens, devendo esse preço ser dividido entre os diferentes habitantes do país, ou como salários pelo trabalho, como lucros do capital investido, ou como renda da terra. Assim sendo, o que é anualmente obtido ou produzido pelo trabalho de cada sociedade, ou — o que é a mesma coisa — o preço total disso, é originariamente distribuído entre alguns dos membros da sociedade. Salários, lucro e renda da terra, eis as três fontes originais de toda receita ou renda, e de todo valor de troca. Qualquer outra receita ou renda provém, em última análise, de um ou de outro desses três fatores. Todo aquele que aufere sua renda de um fundo que lhe pertence necessariamente a aufere de seu trabalho, de seu patrimônio ou de sua terra. A renda auferida do trabalho denomina-se salário. A renda auferida do patrimônio ou capital, pela pessoa que o administra ou o emprega, chama-se lucro. A renda auferida por uma pessoa que não emprega ela mesma seu capital, mas o empresta a outra, denomina-se juros ou uso do dinheiro. É a compensação que o tomador paga a quem empresta, pelo lucro que pode auferir fazendo uso do dinheiro. Naturalmente, uma parte desse lucro pertence ao tomador, que assume o risco e arca com o incômodo de empregar o dinheiro; e a outra parte pertence a quem faz o empréstimo, proporcionando ao tomador a oportunidade de auferir seu lucro. Os juros do dinheiro são sempre uma renda derivativa, a qual, se não for paga do lucro auferido do uso do dinheiro, deve ser paga de alguma outra fonte de renda, a não ser que talvez o tomador seja um esbanjador que contrai uma segunda dívida para pagar os juros da primeira. A renda auferida integralmente do arrendamento da terra é denominada renda fundiária, pertencendo ao dono da terra. A renda do arrendatário provém em parte de seu trabalho e em parte de seu capital. Para ele, a terra é somente o 105
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instrumento que lhe permite ganhar os salários de seu trabalho e tirar lucro de seu próprio capital. Todas as taxas, impostos; e toda a renda ou receita fundada neles, todos os salários, pensões e anuidades de qualquer espécie, em última análise provêm de uma ou outra dessas três fontes originais de renda, sendo pagos, direta ou indiretamente, pelos salários do trabalho, pelos lucros do capital ou pela renda da terra. Quando esses três tipos de renda pertencem a pessoas diferentes, são distinguidos prontamente; mas quando pertencem os três à mesma pessoa, por vezes são confundidos entre si, ao menos no linguajar comum. Uma pessoa que cultiva uma parte de sua própria terra, depois de pagar as despesas do cultivo, deve receber tanto a renda que cabe ao proprietário da terra quanto o lucro de quem a explora. Tal pessoa propende, porém, a considerar como lucro os ganhos todos, confundindo assim a renda da terra com o lucro, ao menos no linguajar comum. Estão nessa situação a maioria dos nossos plantadores norte-americanos e da Índia Ocidental. A maior parte deles cultiva sua própria terra, razão pela qual raramente ouvimos falar da renda dessas terras, mas com freqüência ouvimos falar do lucro que elas produzem. É raro os agricultores empregarem um supervisor para dirigir as operações. Geralmente eles também trabalham muito com as próprias mãos, cultivando, arando, passando a grelha etc. Por conseguinte, o que resta da colheita, após paga a renda da terra, não somente deve restituir-lhes o patrimônio ou capital empregado no cultivo, juntamente com seu lucro normal, mas deve também pagar os salários que lhes são devidos, como trabalhadores e como supervisores. E no entanto, tudo o que resta, após pagar a renda da terra e restituir o capital empregado, é denominado lucro. Ora, evidentemente os salários representam uma parte desse todo. Economizando esses salários, necessariamente o arrendatário irá ganhá-los. Aqui, portanto, os salários são confundidos com os lucros. Um manufator independente, que tem capital suficiente tanto para comprar materiais como para manter-se até poder levar seu produto ao mercado, deve ganhar tanto os salários de um trabalhador contratado por um patrão quanto o lucro que o patrão realiza pela venda do produto do trabalhador. E no entanto, tudo o que esse manufator independente ganha é geralmente chamado de lucro; também nesse caso, os salários são confundidos com o lucro. Um horticultor que cultiva pessoalmente sua própria horta desempenha ao mesmo tempo três funções: proprietário da terra, responsável direto pela exploração da terra e trabalhador. Conseqüentemente, seu produto deve pagar-lhe a renda que cabe ao primeiro, o lucro que cabe ao segundo e os salários que cabem ao terceiro. No entanto, comumente tudo é considerado como proventos de seu trabalho. Nesse caso, tanto a renda da terra como o lucro são confundidos com os salários. Já que em um país evoluído há somente poucas mercadorias cujo valor de troca provém exclusivamente do trabalho, sendo que a renda 106
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da terra e o lucro contribuem em larga escala para perfazer o valor de troca da maior parte das mercadorias, a produção do trabalho anual sempre será suficiente para comprar ou comandar uma quantidade de trabalho muito maior do que a que foi empregada para obter, preparar e levar essa produção ao mercado. Se a sociedade empregasse todo o trabalho que pode comprar anualmente, já que a cada ano aumentaria consideravelmente a quantidade de trabalho, a produção de cada ano sucessivo teria um valor muito superior ao da produção do ano anterior. Entretanto, não existe país algum em que toda a produção anual seja empregada na manutenção dos trabalhadores ativos. Em toda parte, os ociosos consomem grande parte desta produção. De acordo, pois, com as diferentes proporções em que a produção anual é a cada ano dividida entre os ativos e os ociosos, o valor comum ou médio dessa produção deverá, de um ano para outro, aumentar, diminuir ou permanecer inalterado.
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CAPÍTULO VII O Preço Natural e o Preço de Mercado das Mercadorias
Em cada sociedade ou nas suas proximidades, existe uma taxa comum ou média para salários e para o lucro, em cada emprego diferente de trabalho ou capital. Essa taxa é regulada naturalmente — conforme exporei adiante — em parte pelas circunstâncias gerais da sociedade — sua riqueza ou pobreza, sua condição de progresso, estagnação ou declínio — e em parte pela natureza específica de cada emprego ou setor de ocupação. Existe outrossim, em cada sociedade ou nas suas proximidades uma taxa ou média de renda da terra, também ela regulada — como demonstrarei adiante — em parte pelas circunstâncias gerais da sociedade ou redondeza na qual a terra está localizada, e em parte pela fertilidade natural da terra ou pela fertilidade conseguida artificialmente. Essas taxas comuns ou médias podem ser denominadas taxas naturais dos salários, do lucro e da renda da terra, no tempo e lugar em que comumente vigoram. Quando o preço de uma mercadoria não é menor nem maior do que o suficiente para pagar ao mesmo tempo a renda da terra, os salários do trabalho e os lucros do patrimônio ou capital empregado em obter, preparar e levar a mercadoria ao mercado, de acordo com suas taxas naturais, a mercadoria é nesse caso vendida pelo que se pode chamar seu preço natural. Nesse caso, a mercadoria é vendida exatamente pelo que vale, ou pelo que ela custa realmente à pessoa que a coloca no mercado; com efeito, embora no linguajar comum, o que se chama custo primário de uma mercadoria não inclua o lucro da pessoa que a revenderá, se ele a vender a um preço que não lhe permite a taxa comum do lucro nas proximidades, ele está tendo perda no negócio, já que poderia ter auferido esse lucro empregando seu capital de alguma forma diferente. Além disso, seu lucro é sua renda, o fundo adequado para sua subsis109
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tência. Assim como, ao preparar e colocar os bens no mercado, ele adianta a seus empregados seus salários ou subsistência, da mesma forma adianta a si mesmo sua própria subsistência, a qual geralmente é consentânea ao lucro que ele pode esperar da venda de seus bens. Portanto, se esses bens não lhe proporcionarem esse lucro, não lhe pagarão o que realmente lhe custaram. Assim, portanto, embora o preço que lhe garante esse lucro não seja sempre o preço mais baixo ao qual um comerciante pode vender seus bens, é o preço mais baixo ao qual tem probabilidade de vender por um período de tempo considerável, ao menos onde existe plena liberdade, ou onde puder mudar de ocupação tantas vezes quantas quiser. O preço efetivo ao qual uma mercadoria é vendida denomina-se seu preço de mercado. Esse pode estar acima ou abaixo do preço natural, podendo também coincidir exatamente com ele. O preço de mercado de uma mercadoria específica é regulado pela proporção entre a quantidade que é efetivamente colocada no mercado e a demanda daqueles que estão dispostos a pagar o preço natural da mercadoria, ou seja, o valor total da renda fundiária, do trabalho e do lucro que devem ser pagos para levá-la ao mercado. Tais pessoas podem ser chamadas de interessados ou pretendentes efetivos, e sua demanda pode ser chamada de demanda efetiva, pelo fato de poder ser suficiente para induzir os comerciantes a colocar a mercadoria no mercado. A demanda efetiva difere da demanda absoluta. Em certo sentido pode-se dizer que uma pessoa muito pobre tem uma demanda de uma carruagem de luxo puxada por seis cavalos. Pode até ser que ela gostasse de possuí-la; entretanto, sua demanda não é uma demanda efetiva, uma vez que jamais será possível colocar essa mercadoria no mercado para satisfazer a essa demanda específica. Quando a quantidade de uma mercadoria colocada no mercado é inferior à demanda efetiva, não há possibilidade de fornecer a quantidade desejada a todos aqueles que estão dispostos a pagar o valor integral — renda da terra, salários e lucro — que deve ser pago para colocar a mercadoria no mercado. Em conseqüência, ao invés de desejar essa mercadoria ao preço em que está, alguns deles estarão dispostos a pagar mais. Começará imediatamente uma concorrência entre os pretendentes, e em conseqüência o preço de mercado subirá mais ou menos em relação ao preço natural, na proporção em que o grau de escassez da mercadoria ou a riqueza, a audácia e o luxo dos concorrentes acenderem mais ou menos a avidez em concorrer. Entre concorrentes de riqueza e luxo igual, o mesmo grau de escassez geralmente provocará uma concorrência mais ou menos forte, de acordo com a menor ou maior importância, para eles, da aquisição da mercadoria. Daí o preço exorbitante dos gêneros de primeira necessidade durante o bloqueio de uma cidade ou em caso de fome generalizada. Quando a quantidade da mercadoria colocada no mercado ultrapassa a demanda efetiva, não há possibilidade de ser toda vendida àqueles que desejam pagar o valor integral da renda da terra, dos 110
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salários e do lucro, que devem ser pagos para colocar essa mercadoria no mercado. Uma parte deve ser vendida àqueles que só aceitam pagar menos, e o baixo preço que pagam pela mercadoria necessariamente reduz o preço total. O preço de mercado descerá mais ou menos abaixo do preço natural, na proporção em que o excedente aumentar mais ou menos a concorrência entre os vendedores, ou segundo for para eles mais ou menos importante desembaraçar-se imediatamente da mercadoria. O mesmo excedente na importação de artigos perecíveis (laranjas, por exemplo) provocará uma concorrência muito maior do que na de mercadorias duráveis (ferro velho, por exemplo). Quando a quantidade colocada no mercado coincide exatamente com o suficiente e necessário para atender à demanda efetiva, muito naturalmente o preço de mercado coincidirá com o preço natural, exatamente ou muito aproximadamente. Poder-se-á vender toda a quantidade disponível ao preço natural, e não se conseguirá vendê-las a preço mais alto. A concorrência entre os diversos comerciantes os obriga todos a aceitar este preço natural, mas não os obriga a aceitar menos. A quantidade de cada mercadoria colocada no mercado ajusta-se naturalmente à demanda efetiva. É interesse de todos os que empregam sua terra, seu trabalho ou seu capital para colocar uma mercadoria no mercado, que essa quantidade não supere jamais a demanda efetiva; e todas as outras pessoas têm interesse em que jamais a quantidade seja inferior a essa demanda. Se em algum momento a quantidade posta no mercado superar a demanda efetiva, algum dos componentes de seu preço deverá ser pago abaixo de sua taxa natural. Se for a renda da terra, o interesse dos proprietários de terra imediatamente os levará a desviar dessa aplicação uma parte de suas terras; e se forem os salários ou o lucro, o interesse dos trabalhadores, num caso, e o dos seus empregadores, no outro, imediatamente os levará a deixar de aplicar uma parte de seu trabalho ou de seu capital ao negócio. Dentro em breve a quantidade colocada no mercado não será senão a estritamente suficiente para suprir a demanda efetiva. Todos os componentes do preço chegarão à sua taxa natural, e o preço integral será o preço natural. Se, ao contrário, em algum momento a quantidade colocada no mercado ficar abaixo da demanda efetiva, alguns dos componentes de seu preço necessariamente deverão subir além de sua taxa natural. Se for a renda da terra, o interesse de todos os outros proprietários de terra os levará naturalmente a preparar mais terra na produção da mercadoria; se forem os salários ou o lucro, o interesse de todos os demais trabalhadores e comerciantes logo os levará a aplicar mais trabalho e mais capital no preparo e na colocação da mercadoria no mercado. Em conseqüência, a quantidade colocada no mercado será logo suficiente para atender à demanda efetiva. Todos os componentes do preço dessa mercadoria logo descerão à sua taxa natural, e o preço total da mercadoria a seu preço natural. Conseqüentemente, o preço natural é como que o preço central 111
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ao redor do qual continuamente estão gravitando os preços de todas as mercadorias. Contingências diversas podem, às vezes, mantê-los bastante acima dele, e noutras vezes, forçá-los para baixo desse nível. Mas, quaisquer que possam ser os obstáculos que os impeçam de fixar-se nesse centro de repouso e continuidade, constantemente tenderão para ele. É dessa maneira que naturalmente todos os recursos anualmente empregados para colocar uma mercadoria no mercado se ajustam à demanda efetiva. Todos objetivam, naturalmente, colocar no mercado a quantidade precisa que seja suficiente para cobrir a demanda, sem, por outro lado, excedê-la. Não obstante isso, em alguns setores a mesma quantidade de trabalho produzirá, em anos diferentes, quantidades muito diferentes de mercadorias, enquanto em outros produzirá sempre a mesma ou quase a mesma quantidade. O mesmo número de trabalhadores na agricultura produzirá, em anos diferentes, quantidades muito variadas de trigo, vinho, azeite, lúpulo etc. Entretanto, o mesmo número de fiandeiros e tecelões produzirá cada ano a mesma ou quase a mesma quantidade de tecido de linho e lã; e já que sua produção efetiva freqüentemente é muito maior ou muito menor do que a sua produção média, às vezes a quantidade de mercadorias colocada no mercado superará muito a demanda efetiva, e outras vezes ficará bem abaixo da mesma. Somente a produção média de um tipo individual de ocupação pode ser ajustada sob todos os aspectos à demanda efetiva, e já que sua produção efetiva com freqüência é muito maior ou muito menor do que a produção média, a quantidade de mercadorias colocadas no mercado às vezes ultrapassará bastante a demanda efetiva, e às vezes ficará abaixo dela. Portanto, mesmo que essa demanda permanecesse sempre a mesma, seu preço de mercado estará sujeito a grandes flutuações, sendo que às vezes estará muito abaixo do preço natural, e outras vezes estará muito acima desse preço. Nos outros setores de trabalho, sendo a produção de quantidades iguais de trabalho sempre a mesma ou quase exatamente a mesma, ela pode ser ajustada com maior exatidão à demanda efetiva. Por isso, enquanto essa demanda continuar inalterada, também o preço de mercado das mercadorias provavelmente fará o mesmo, sendo totalmente ou muito aproximadamente o mesmo que o preço natural. A experiência geral informa que o preço do tecido de linho e de lã não está sujeito a variações tão freqüentes e tão grandes como o preço do trigo. O preço de um tipo de mercadorias varia somente com as variações de demanda, ao passo que o de outras varia não somente com as variações na demanda, mas também com as variações muito maiores e muito mais freqüentes da quantidade do que é colocado no mercado para suprir a demanda. As flutuações ocasionais e temporárias no preço de mercado de uma mercadoria recaem principalmente sobre as partes ou componentes de seu preço que consistem nos salários e no lucro. A parte que consiste na renda fundiária é menos afetada por tais variações. Uma renda certa em dinheiro em nada é atingida por elas, nem em sua taxa nem 112
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em seu valor. Uma renda que consiste em certa porcentagem ou em certa quantidade de produto em estado bruto, sem dúvida é afetada em seu valor anual por todas as flutuações ocasionais e temporárias que ocorrem no preço de mercado desse produto em estado bruto; raramente, porém, é afetada por elas em sua taxa anual. Ao acertar as cláusulas do arrendamento, o proprietário de terra e o arrendatário procuram, pelo melhor critério, ajustar a taxa não ao preço temporário e ocasional, mas ao preço médio e comum da produção. Tais flutuações afetam tanto o valor como a taxa dos salários e do lucro, conforme o mercado estiver saturado ou em falta de mercadorias ou de trabalho (trabalho já executado ou trabalho a ser ainda executado). Um luto público aumenta o preço do tecido preto (que quase sempre está em falta no mercado, em tais ocasiões) e aumenta os lucros dos comerciantes que possuem uma quantidade considerável desse tecido. Ele não tem efeito algum sobre os salários dos tecelões. O mercado está em falta de mercadorias, não de trabalho (de trabalho executado, não de trabalho a ser executado). Ele faz subir os salários dos oficiais de alfaiate. Aqui o mercado está em falta de mão-de-obra. Existe uma demanda efetiva de mais trabalho, de mais trabalho a ser feito, do que o que se pode conseguir. O luto público faz baixar o preço das sedas e roupas coloridas e com isso reduz os lucros dos comerciantes que têm consigo uma quantidade considerável desses tecidos coloridos. Faz também baixar os salários dos trabalhadores empregados na preparação de tais mercadorias, cuja demanda encontra-se paralisada durante seis meses, talvez até durante doze meses. Quanto a esse produto, o mercado fica abarrotado de mercadorias e de mão-de-obra. Entretanto, embora o preço de mercado de cada mercadoria esteja continuamente gravitando em torno do preço natural, se assim se pode dizer, ocorre por vezes que eventos específicos, às vezes por causas naturais e às vezes por regulamentos específicos, podem, em muitas mercadorias, manter por longo tempo o preço de mercado bem acima do preço natural. Quando, por efeito de um aumento da demanda efetiva, o preço de mercado de uma mercadoria específica eventualmente sobe muito acima do preço natural, os que empregam seu capital e estoques em suprir esse mercado geralmente tomam cuidado para esconder essa mudança. Se ela chegasse ao conhecimento público, seu alto lucro tentaria tantos novos rivais a empregarem seus estoques da mesma forma que, uma vez atendida plenamente a demanda efetiva, o preço de mercado seria logo reduzido ao preço natural e quiçá até abaixo dele, por algum tempo. Se o mercado estiver muito distante da residência dos seus fornecedores, às vezes pode preservar o segredo até por vários anos, podendo destarte auferir seus lucros extraordinários sem novos rivais. Reconhece-se, porém, que é raro tais segredos serem guardados por muito tempo; por outro lado, os lucros extraordinários podem durar muito pouco mais do que esses segredos. Os segredos industriais são suscetíveis de preservação por um 113
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tempo mais prolongado do que os comerciais. Um tintureiro que tenha descoberto o meio de produzir um corante específico, com materiais que custam apenas a metade do preço dos comumente utilizados, pode, se tomar cuidado e enquanto viver, desfrutar da vantagem de sua descoberta, e até deixá-la em herança aos descendentes. Seus ganhos extraordinários provêm do alto preço que é pago pelo seu trabalho privado. Esses ganhos consistem precisamente nos altos salários pagos por esse trabalho. Visto que, porém, tais ganhos se repetem sobre cada parcela do estoque, e já que em razão disso, o montante total desses ganhos mantém uma proporção regular em relação a esse estoque, são geralmente considerados como lucros extraordinários do capital ou estoque. Tais elevações do preço de mercado são evidentemente os efeitos de contingências especiais de incidência, porém, às vezes perdurável por muitos anos seguidos. Certos produtos naturais exigem características tais de solo e localização que até mesmo todas as terras de um grande país aptas para a produção deles podem ser insuficientes para atender à demanda efetiva. Por conseguinte, todo o estoque colocado no mercado pode ser vendido àqueles que estão dispostos a dar pelo produto mais do que o suficiente para pagar, de acordo com suas taxas naturais, a renda da terra que os produziu, juntamente com os salários do trabalho e os lucros do capital empregados em prepará-los e colocá-los no mercado. Tais mercadorias podem continuar a ser vendidas a esses preços altos durante séculos seguidos; é a parte do preço que consiste na renda da terra que, nesse caso, é geralmente paga acima de sua taxa natural. A renda da terra que proporciona tais produções singulares, como a renda de alguns vinhedos na França, de um solo e local particularmente favoráveis, não tem proporção regular com a renda de terras da mesma fertilidade e igualmente bem cultivadas, existentes nas proximidades. Ao contrário, os salários do trabalho e os lucros do capital empregado para colocar tais mercadorias no mercado raramente perdem sua proporção natural com os das outras aplicações de mão-de-obra e de capital, em sua vizinhança. Evidentemente, tais elevações do preço de mercado são efeito de causas naturais, que podem impedir que a demanda efetiva jamais seja plenamente atendida e que, portanto, podem perdurar para sempre. Um monopólio, outorgado a um indivíduo ou a uma companhia de comércio, tem o mesmo efeito que um segredo comercial ou industrial. Os monopolistas, por manterem o mercado sempre em falta, por nunca suprirem plenamente a demanda efetiva, vendem suas mercadorias muito acima do preço natural delas, auferindo ganhos — quer consistam em salários ou em lucros — muito acima de sua taxa natural. O preço de monopólio é em qualquer ocasião o mais alto que se possa conseguir. Ao contrário, o preço natural, ou seja, o preço da livre concorrência, é o mais baixo que se possa aceitar, não em cada ocasião, mas durante qualquer período de tempo considerável e sucessivo. O primeiro é, em qualquer ocasião, o preço mais alto que se possa ex114
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torquir dos compradores, ou que supostamente eles consentirão em pagar. O segundo é o preço mais baixo que os vendedores comumente podem aceitar se quiserem continuar a manter seu negócio. Os privilégios exclusivos detidos por corporações, estatutos de aprendizagem e todas as leis que limitam, em ocupações específicas, a concorrência a um número inferior ao dos que de outra forma concorreriam, têm a mesma tendência, embora em grau menor. Constituem uma espécie de monopólios ampliados, podendo freqüentemente, durante gerações sucessivas, e em categorias inteiras de ocupações, manter o preço de mercado de mercadorias específicas acima de seu preço natural, e manter algo acima de sua taxa natural tanto os salários do trabalho como os lucros do capital empregados nessas mercadorias. Tais elevações do preço de mercado podem perdurar enquanto durar os regulamentos que lhes deram origem. O preço de mercado de qualquer mercadoria específica pode, por muito tempo, continuar acima do preço natural da referida mercadoria, mas raramente pode manter-se muito tempo abaixo dele. Qualquer que fosse o componente do preço pago abaixo da taxa natural, as pessoas cujos interesses fossem afetados imediatamente perceberiam a perda e de imediato deixariam de aplicar na referida mercadoria um trato tal de terra ou tanto ou quanto de trabalho, ou de capital, e assim a quantidade colocada no mercado logo se reduziria ao estritamente suficiente para atender à demanda efetiva. Portanto, o preço de mercado dessa mercadoria logo subiria ao preço natural. Isso ocorreria, ao menos, onde reinasse plena liberdade. Os mesmos estatutos de aprendizagem e outras leis de corporações que na verdade possibilitam ao trabalhador salários bastante acima da taxa natural, quando uma manufatura está em fase de prosperidade, às vezes fazem com que seu salário desça bastante abaixo da taxa natural, quando a manufatura está em declínio. Assim, como na primeira hipótese, esses fatores tiram muitas pessoas do emprego, da mesma forma, na segunda hipótese, o trabalhador é excluído de muitos empregos. O efeito desses regulamentos não é tão duradouro, porém, para fazer com que os salários do trabalhador desçam abaixo da taxa natural, como o é para fazer com que os salários subam acima dessa taxa. Sua influência pode, no primeiro caso, durar por muitos séculos, ao passo que no segundo não pode durar mais do que o período de vida de alguns dos trabalhadores que se criaram no emprego, na fase da prosperidade. Quando estes desaparecerem, o número dos que depois forem educados para a ocupação certamente haverá de satisfazer à demanda efetiva. Somente uma política tão violenta como a do Industão ou a do Egito Antigo (onde todos eram obrigados, por um princípio religioso, a seguir a ocupação dos pais, incorrendo no mais horrendo sacrilégio quem ousasse mudar de profissão) é capaz de, em qualquer ocupação específica, e por várias gerações sucessivas, fazer os salários do trabalho ou lucros do capital descerem abaixo da taxa natural respectiva. 115
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Eis tudo o que por ora considero necessário observar no tocante à defasagem ocasional ou permanente, entre o preço de mercado e o preço natural das mercadorias. O próprio preço natural varia juntamente com a taxa natural de cada um dos componentes: salários, lucro e renda da terra; e em cada sociedade, essa taxa varia de acordo com as circunstâncias, sua riqueza ou pobreza, sua condição de economia em progresso, estacionária ou declinante. Nos próximos quatro capítulos procurarei explicar, da maneira mais completa e clara de que for capaz, as causas dessas variações. Primeiramente, procurarei explicar quais são as circunstâncias que naturalmente determinam a taxa dos salários, e de que maneira essas circunstâncias são afetadas pela riqueza ou pela pobreza de uma sociedade, pelo seu estado de progresso, sua situação estacionária ou seu declínio. Em segundo lugar, procurarei mostrar quais são as circunstâncias que naturalmente determinam a taxa de lucro, e de que forma também essas circunstâncias são afetadas pelas mesmas variações das condições da sociedade. Embora os salários em dinheiro e o lucro difiram muito de uma ocupação para outra e de um emprego de capital para outro, parece haver geralmente certa proporção entre os salários em dinheiro em todas as diversas ocupações e os lucros pecuniários em todos os diferentes empregos de capital. Essa proporção — como se verá adiante — depende em parte da natureza dos diversos empregos e em parte das diferentes leis e políticas da respectiva sociedade. Entretanto, embora sob muitos aspectos essa proporção dependa das leis e da política, ela parece ser pouco afetada pela riqueza ou pela pobreza da sociedade, pela sua condição de economia em progresso, estacionária ou em declínio, permanecendo a mesma ou quase a mesma em qualquer uma dessas condições. Em terceiro lugar, portanto, procurarei explicar todas as diversas circunstâncias que regulam essa proporção. Em quarto e último lugar, procurarei mostrar quais são as circunstâncias que regulam a renda da terra, renda essa que levanta ou abaixa o preço real de todas as mercadorias que a terra produz
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CAPÍTULO VIII Os Salários do Trabalho
O produto do trabalho é a recompensa natural do trabalho, ou seja, seu salário. Naquele estado original de coisas que precede tanto a apropriação da terra quanto o acúmulo de capital, o produto integral do trabalho pertence ao trabalhador. Este não tem nem proprietário fundiário nem patrão com quem deva repartir o fruto de seu trabalho. Se tal estado de coisas tivesse continuado, os salários do trabalho teriam aumentado conjuntamente com todos os aprimoramentos introduzidos nas forças produtivas do trabalho, gerados pela divisão do trabalho. Todas as coisas ter-se-iam tornado gradualmente mais baratas. Teriam sido produzidas por uma quantidade menor de trabalho; e já que, nesse estado de coisas, as mercadorias produzidas por quantidades iguais de trabalho teriam sido trocadas umas pelas outras, teriam também sido compradas com o produto de uma quantidade menor de trabalho. Contudo, embora na realidade todas as coisas se teriam tornado mais baratas, na aparência muitas poderiam ter-se tornado mais caras do que antes, ou ter sido trocadas por uma quantidade maior de outros bens. Suponhamos, por exemplo, que na maioria das ocupações as forças produtivas do trabalho tivessem melhorado dez vezes mais, ou seja, que em um dia o trabalhador pudesse produzir dez vezes mais trabalho do que antes; suponhamos também que, em uma determinada ocupação, a melhoria das forças produtivas de trabalho houvesse apenas duplicado, ou seja, que em um dia o trabalhador pudesse produzir apenas o dobro de trabalho do que produzia antes. Ao se permutar o produto de um dia de trabalho na maioria das ocupações pelo produto de um dia de trabalho nessa ocupação a que acabamos de nos referir, teríamos que uma quantidade de trabalho dez vezes maior do que antes, na primeira hipótese, compraria apenas o duplo da quantidade de trabalho de antes, na segunda hipótese. Em conseqüência, qualquer quantidade 117
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específica desse produto — digamos, por exemplo, uma libra-peso — pareceria cinco vezes mais cara do que antes. Na realidade, porém, seria duas vezes mais barata. Embora para comprá-la fosse necessário uma quantidade cinco vezes maior de outros bens, seria necessária apenas a metade da quantidade de trabalho para comprá-la ou para produzi-la. Por conseguinte, a aquisição seria duas vezes mais fácil do que antes. Mas esse estado original de coisas, no qual o trabalhador desfrutava do produto integral de seu trabalho, já não pôde perdurar quando se começou a introduzir a apropriação da terra e a acumular o capital. Já estava no fim, muito antes que se fizessem os aprimoramentos mais consideráveis nas forças produtivas do trabalho, e portanto não teria nenhum propósito prognosticar quais teriam sido seus defeitos sobre a recompensa ou os salários de trabalho. No momento em que a terra se torna propriedade privada, o dono da terra exige uma parte de quase toda a produção que o trabalhador pode cultivar ou colher da terra. Sua renda é a primeira dedução do produto do trabalho empregado na terra. Raramente a pessoa que cultiva a terra tem recursos para manter-se até o momento da colheita. Sua manutenção geralmente é adiantada do capital de um patrão, ou seja, do arrendatário que lhe dá emprego — o qual, aliás, não teria interesse em empregá-la a menos que pudesse ter parte no produto do seu trabalho, ou a menos que seu capital tivesse de lhe ser restituído com lucro. Esse lucro representa uma segunda dedução do produto do trabalho empregado na terra. O produto de quase todos os outros trabalhos está sujeito à mesma dedução do lucro. Em todos os ofícios e manufaturas, a maior parte dos trabalhos tem necessidade de um patrão que lhes adiante o material para o trabalho, salários e sua manutenção, até completar o trabalho. O patrão partilha do produto do trabalho dos empregados, ou seja, do valor que o trabalho acrescenta aos materiais trabalhados pelo empregado; é nessa participação que consiste o lucro do patrão. Às vezes, ocorre realmente que um trabalhador independente tenha capital suficiente tanto para comprar os materiais para seu trabalho, como para manter-se até completá-lo. Nesse caso, ele é ao mesmo tempo patrão e operário, desfrutando sozinho do produto integral de seu trabalho, ou seja, do valor integral que seu trabalho acrescenta aos materiais por ele processados. Esse valor inclui o que geralmente são duas rendas diferentes, pertencentes a duas pessoas distintas: o lucro do capital e os salários do trabalho. Contudo, esses casos não são muito freqüentes, e em todas as partes da Europa, para cada trabalhador autônomo existem vinte que servem a um patrão; subentende-se que os salários do trabalho são em todos os lugares como geralmente são, quando o trabalhador é uma pessoa, e o proprietário do capital que emprega o trabalhador é outra pessoa. Quais são os salários comuns ou normais do trabalho? Isso depende do contrato normalmente feito entre as duas partes, cujos inte118
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resses, aliás, de forma alguma são os mesmos. Os trabalhadores desejam ganhar o máximo possível, os patrões pagar o mínimo possível. Os primeiros procuram associar-se entre si para levantar os salários do trabalho, os patrões fazem o mesmo para baixá-los. Não é difícil prever qual das duas partes, normalmente, leva vantagem na disputa e no poder de forçar a outra a concordar com as suas próprias cláusulas. Os patrões, por serem menos numerosos, podem associar-se com maior facilidade; além disso, a lei autoriza ou pelo menos não os proíbe, ao passo que para os trabalhadores ela proíbe. Não há leis do Parlamento que proíbam os patrões de combinar uma redução dos salários; muitas são, porém, as leis do Parlamento que proíbem associações para aumentar os salários. Em todas essas disputas, o empresário tem capacidade para agüentar por muito mais tempo. Um proprietário rural, um agricultor ou um comerciante, mesmo sem empregar um trabalhador sequer, conseguiriam geralmente viver um ano ou dois com o patrimônio que já puderam acumular. Ao contrário, muitos trabalhadores não conseguiriam subsistir uma semana, poucos conseguiriam subsistir um mês e dificilmente algum conseguiria subsistir um ano, sem emprego. A longo prazo, o trabalhador pode ser tão necessário ao seu patrão, quanto este o é para o trabalhador; porém esta necessidade não é tão imediata. Tem-se afirmado que é raro ouvir falar das associações entre patrões, ao passo que com freqüência se ouve falar das associações entre operários. Entretanto, se alguém imaginar que os patrões raramente se associam para combinar medidas comuns, dá provas de que desconhece completamente o assunto. Os patrões estão sempre e em toda parte em conluio tácito, mas constante e uniforme para não elevar os salários do trabalho acima de sua taxa em vigor. Violar esse conluio é sempre um ato altamente impopular, e uma espécie de reprovação para o patrão no seio da categoria. Raramente ouvimos falar de conluios que tais porque costumeiros, podendo dizer-se constituírem o natural estado de coisas de que ninguém ouve falar freqüentemente, os patrões também fazem conchavos destinados a baixar os salários do trabalho, mesmo aquém de sua taxa em vigor. Essas combinações sempre são conduzidas sob o máximo silêncio e sigilo, que perdura até ao momento da execução; e quando os trabalhadores cedem, como fazem às vezes, sem resistir, embora profundamente ressentidos, isso jamais é sabido de público. Muitas vezes, porém, os trabalhadores reagem a tais conluios com suas associações defensivas; por vezes, sem serem provocados, os trabalhadores combinam entre si elevar o preço de seu trabalho. Seus pretextos usuais são, às vezes, os altos preços dos mantimentos; por vezes, reclamam contra os altos lucros que os patrões auferem do trabalho deles. Entretanto, quer se trate de conchavos ofensivos, quer defensivos, todos são sempre alvo de comentário geral. No intuito de resolver com rapidez o impasse, os trabalhadores sempre têm o recurso ao mais ruidoso clamor, e às vezes à violência mais chocante e atroz. 119
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Desesperam-se agindo com loucura e extravagância que caracterizam pessoas desesperadas que devem morrer de fome ou lutar contra seus patrões para que se chegue a um acordo imediato para com suas exigências. Em tais ocasiões, os patrões fazem o mesmo alarido de seu lado, e nunca cessam de clamar alto pela intervenção da autoridade e pelo cumprimento das leis estabelecidas com tanto rigor contra as associações dos serviçais, trabalhadores e diaristas. Por isso, os trabalhadores raramente auferem alguma vantagem da violência dessas associações tumultuosas, que, em parte devido à interferência da autoridade, em parte à firmeza dos patrões, e em parte por causa da necessidade à qual a maioria dos trabalhadores está sujeita por força da subsistência atual — geralmente não resultando senão na punição ou ruína dos líderes. Mas, embora nas disputas com os operários os patrões geralmente levem vantagem, existe uma determinada taxa abaixo da qual parece impossível reduzir por longo tempo os salários normais, mesmo em se tratando do tipo de trabalho menos qualificado. O homem sempre precisa viver de seu trabalho, e seu salário deve ser suficiente, no mínimo, para a sua manutenção. Esses salários devem até constituir-se em algo mais, na maioria das vezes; de outra forma seria impossível para ele sustentar uma família e os trabalhadores não poderiam ir além da primeira geração. Baseado nisso, o Sr. Cantillon parece supor que os trabalhadores comuns, da mais baixa qualificação, devem em toda parte ganhar no mínimo o dobro do que é necessário para se manterem, a fim de que possam criar dois filhos, já que o trabalho da esposa, pelo fato de ter ela que cuidar dos filhos, mal é suficiente para ela manter-se a si mesma. Calcula-se que a metade das crianças nascidas morrem antes de chegar à maioridade. De acordo com o que foi dito, os trabalhadores mais pobres devem tentar educar pelo menos quatro filhos, para que dois tenham igual possibilidade de chegar à idade adulta. Ora, supõe-se que o custo da manutenção de quatro crianças equivale ao da manutenção de um homem adulto. Acrescenta o mesmo autor, o trabalho de um escravo fisicamente capacitado é calculado para valer o dobro da sua manutenção, e o de um trabalhador livre, nível mais baixo — acredita ele não pode valer menos do que o de um escravo sadio. Pelo que parece certo, para criar uma família, o trabalho do marido e da esposa, juntos, mesmo em se tratando das categorias mais baixas de trabalho, deve ser capaz de proporcionar algo mais do que o estritamente necessário para a sua própria manutenção, mas não estou em condições de afirmar qual das proporções desse ganho é a maior. Existem, porém, certas circunstâncias que às vezes proporcionam vantagens aos trabalhadores, possibilitando-lhes aumentar seus salários consideravelmente acima dessa taxa normal, que evidentemente é a mais baixa que se coaduna com o mínimo humanitário. Quando, em qualquer país, a demanda de pessoas que vivem de salários — trabalhadores do campo, diaristas, empregados de todo tipo 120
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— está em contínuo aumento, se a cada ano surge emprego para um número maior de trabalhadores do que o número dos empregados do ano anterior, os operários não precisam associar-se para aumentar seus salários. A escassez de mão-de-obra provoca uma concorrência entre os patrões, que disputam entre si para conseguir operários, e dessa forma voluntariamente violam o natural conluio patronal para que não se elevem salários. É evidente que a demanda de pessoas que vivem de salário só pode aumentar na medida em que aumentam os fundos destinados ao pagamento de salários. Esses fundos são de dois tipos: primeiro, a renda que vai além do necessário para a manutenção; segundo, o excedente do cabedal necessário para os respectivos patrões manterem seu negócio. Quando o proprietário de terras, beneficiário de anuidade ou homem rico possui uma renda maior do que a que considera necessária para manter sua própria família, empregará todo o excedente ou parte dele, para manter um ou mais empregados domésticos. Aumentando esse excedente, naturalmente aumentará o número desses criados. Quando um trabalhador autônomo, tal como um tecelão ou um sapateiro, possui mais capital do que o suficiente para comprar os materiais necessários para seu trabalho e para manter-se até vender o produto, naturalmente empregará um ou mais diaristas com o excedente, a fim de conseguir um lucro com o trabalho desses diaristas. Aumentando esse excedente, ele naturalmente aumentará o número de seus diaristas. Por isso, a demanda de assalariados necessariamente cresce com o aumento da renda e do capital de um país, não sendo possível o aumento sem isso. O aumento da renda e de capital é o aumento da riqueza nacional. A demanda de assalariados, portanto, naturalmente aumenta com o crescimento da riqueza nacional, sendo simplesmente impossível quando isso não ocorre. Não é a extensão efetiva da riqueza nacional, mas seu incremento contínuo, que provoca uma elevação dos salários do trabalho. Não é, portanto, nos países mais ricos, mas nos países mais progressistas, ou seja, naqueles que estão se tornando ricos com maior rapidez, que os salários do trabalho são os mais altos. A Inglaterra é certamente, no momento, um país muito mais rico do que qualquer outra região da América do Norte. No entanto os salários do trabalho são mais altos na América do Norte do que em qualquer parte da Inglaterra. Na província de Nova York os trabalhadores comuns ganham,125 por dia, 3 xelins e 6 pence norte-americanos, iguais a 2 xelins esterlinos; os carpinteiros de navios ganham 10 xelins e 6 pence norte-americanos, com um quartilho de aguardente no valor de 6 pence esterlinos, equivalendo no total a 6 xelins e 6 pence esterlinos; carpinteiros de casas 125 Isso foi escrito em 1773, antes do início dos recentes distúrbios. 121
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e pedreiros ganham 8 xelins norte-americanos, iguais a 4 xelins e 6 pence esterlinos; oficiais de alfaiate ganham 5 xelins norte-americanos, iguais a aproximadamente 2 xelins e 10 pence esterlinos. Esses preços estão todos acima do preço de Londres, afirmando-se que são igualmente altos nas outras províncias que não Nova York. O preço dos mantimentos é muito mais baixo nos Estados Unidos do que na Inglaterra. Nunca se conheceu carestia naquele país. Nas piores estações, os norte-americanos sempre tiveram o suficiente para si, embora menos para exportação. Se o preço do trabalho em dinheiro for mais alto do que é em qualquer outro lugar da mãe-pátria, deve ser mais alto, em uma proporção ainda maior, o preço real, ou seja, o preço dos artigos necessários e dos confortos materiais para os trabalhadores. Embora a América do Norte não seja ainda tão rica como a Inglaterra, é muito mais progressista, avançando com rapidez muito maior para a aquisição de maiores riquezas. O indício mais claro da prosperidade de um país é o aumento do número de seus habitantes. Na Grã-Bretanha, e na maioria dos países europeus, supõe-se que a população necessita de no mínimo quinhentos anos para duplicar. Na América do Norte verificou-se que duplica em 20 ou 25 anos. E não se pode dizer que, atualmente, esse aumento se deva principalmente à imigração contínua de estrangeiros, devendo-se antes à multiplicação de espécie. Afirma-se que os norte-americanos que chegam a uma idade avançada, com freqüência chegam a conhecer entre 50 e 100 descendentes diretos, e às vezes até mais. O trabalho lá é tão bem remunerado, que uma família numerosa, ao invés de ser um peso, representa uma fonte de riqueza e prosperidade para o país. Calcula-se que o trabalho de cada filho, antes de deixar o lar, representa 100 libras esterlinas de ganho líquido para a família. Uma viúva jovem com 4 ou 5 filhos pequenos, a qual entre a classe média ou inferior da Europa teria tão pouco ensejo de conseguir um segundo marido, freqüentemente é cortejada com uma espécie de fortuna. O valor dos filhos é o maior estímulo que se possa dar ao matrimônio. Não há como admirar portanto que as pessoas na América do Norte casem muito cedo. Não obstante o grande aumento provocado por tais casamentos contraídos cedo, existe uma queixa contínua de escassez de mão-de-obra na América do Norte. Ao que parece a demanda de trabalhadores e os fundos destinados a mantê-los aumentam, com rapidez maior do que a possibilidade que os norte-americanos têm de encontrar mão-de-obra a empregar. Mesmo que a riqueza de um país seja muito grande, se ele estiver estagnado por muito tempo, não podemos esperar encontrar nele salários muito altos. Os fundos destinados ao pagamento dos salários — ou seja, a renda e o capital de seus habitantes — podem ser elevadíssimos; entretanto, se por vários séculos tiverem continuado os mesmos ou mais ou menos os mesmos, o número de trabalhadores empregados anualmente poderá facilmente ser suficiente para o ano seguinte, ou até ultrapassar o número necessário para o ano subseqüente. Em tal situação, raramente poderá ocorrer escassez de mão-de-obra, ou acon122
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tecer que os patrões sejam obrigados a disputá-la. No caso contrário, a mão-de-obra haveria de multiplicar-se naturalmente além do necessário. Haveria uma escassez constante de empregos, e os trabalhadores seriam obrigados a lutar entre si para consegui-los. Se em tal país os salários do trabalho alguma vez tivessem sido mais do que suficientes para a manutenção do trabalhador, além de capacitá-lo para criar uma família, a concorrência dos trabalhadores e o interesse dos patrões logo os reduziriam à taxa mínima consentânea com a humanidade em geral. A China foi por muito tempo um dos países mais ricos, isto é, um dos mais férteis, mais bem cultivados, mais industriosos e mais populosos do mundo. Ao que parece, porém, há muito tempo sua economia estacionou. Marco Polo, que a visitou há mais de quinhentos anos, descreve sua agricultura, sua indústria e densidade demográfica mais ou menos nos mesmos termos em que são descritos por viajantes de hoje. Talvez tivesse conseguido aquele complemento pleno de riqueza que a natureza e as leis e instituições permitem adquirir. Os relatos de muitos viajantes, contraditórios sob muitos outros aspectos, concordam em atestar a baixa taxa de salários e as dificuldades que um trabalhador tem para manter sua família na China. Ele se satisfaz se, após cavar o solo um dia inteiro, puder conseguir o suficiente para comprar uma pequena porção de arroz à noite. A situação dos artesãos é ainda pior, se é que é possível. Ao invés de esperar indolentemente pelos chamados dos clientes nas oficinas, como acontece na Europa, circulam continuamente pelas ruas empunhando os instrumentos de seu ofício, oferecendo seu serviço, e quase mendigando emprego. A pobreza das camadas mais baixas do povo chinês supera de muito a das nações mais pobres da Europa. Nas adjacências de Cantão afirma-se que muitas centenas e até milhares de famílias não têm moradia, vivendo constantemente em pequenos barcos de pesca nas margens dos rios e dos canais. A subsistência que ali encontram é tão escassa, que ficam ansiosos por apanhar o pior lixo lançado ao mar por qualquer navio europeu. Qualquer carniça, por exemplo a carcaça de um cachorro ou gato morto, embora já em estado de putrefação e fedendo, é para eles tão bem-vinda quanto o alimento mais sadio para as pessoas de outros países. O casamento é estimulado na China, não porque ter filhos represente algum proveito, mas pela liberdade que se tem de eliminá-los. Em todas as grandes cidades, várias crianças são abandonadas toda noite na rua, ou afogadas na água como filhotes de animais. Afirma-se até que eliminar crianças é uma profissão reconhecida, cujo desempenho assegura a subsistência de certos cidadãos. Embora a China pareça estacionária, não aparenta estar regredindo. Em todos os lugares se observam cidades abandonadas pelos seus habitantes. Em parte alguma observa-se que as áreas outrora cultivadas estejam agora negligenciadas. Deve, portanto, estar sendo executado o mesmo ou mais ou menos o mesmo montante de trabalho que antes, e portanto também os fundos destinados à manutenção da mão-de-obra não devem ter diminuído sensivelmente. Por conseguinte, 123
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os trabalhadores da classe mais baixa, não obstante sua subsistência deficiente, devem, de uma forma ou outra, estar conseguindo manter suas cifras habituais. Diversa seria a situação em um país em que estivessem diminuindo sensivelmente os fundos destinados à manutenção da mão-deobra. Em todas as categorias de emprego, cada ano a demanda de trabalhadores seria menor do que no ano anterior. Muitos dos que possuíam seu negócio próprio, não conseguindo encontrar emprego em sua própria atividade, seriam obrigados a procurá-lo em atividades do nível mais baixo. Uma vez que a classe mais baixa de empregos não somente já estaria supersaturada pelos operários dessa classe social, mas passaria agora a ser procurada ainda por trabalhadores de outras classes, a concorrência por emprego nessa classe mais baixa seria tão grande, a ponto de reduzir os salários à subsistência mais mísera e deficiente do trabalhador. Muitos não conseguiriam encontrar emprego, mesmo nessas árduas condições, e teriam que morrer de fome, procurar sua subsistência na mendicância ou praticar atos os mais indignos. Prevaleceriam imediatamente, nessa classe, a carência, a fome e a mortalidade, e a partir dali se estenderiam a todas as classes superiores, até que o número de habitantes do país fosse reduzido à quantidade que pudesse ser facilmente mantida pela renda e pelo capital que ainda tivessem escapado à tirania ou à calamidade que houvesse destruído todo o resto. Esse é talvez, aproximadamente, o estado atual de Bengala, e de algumas outras colônias inglesas nas Índias Orientais. Em um país fértil que antes tenha sido muito despovoado, onde, portanto, a subsistência não deveria ser muito difícil; e onde, apesar disso, 300 ou 400 mil pessoas morrem de fome a cada ano, podemos estar certos de que os fundos destinados à manutenção dos trabalhadores pobres estão diminuindo rapidamente. A diferença entre o caráter da Constituição britânica, que protege e governa a América do Norte, e o da Companhia Mercantil, que oprime e domina as Índias Orientais, não poderia talvez ser mais bem ilustrado do que pela diversidade das condições desses dois países. Eis por que a remuneração generosa do trabalho é não somente o efeito necessário da riqueza nacional em expansão, mas também seu sintoma natural. Por outro lado, a manutenção deficiente dos trabalhadores pobres constitui o sintoma natural de que a situação encontra-se estacionária, ao passo que a condição de fome dos trabalhadores é sintoma de que o país está regredindo rapidamente. Na Grã-Bretanha, nos tempos em que vivemos, parece evidente que os salários do trabalho são superiores ao que é estritamente necessário para permitir ao trabalhador manter uma família. Para não irmos muito longe no tocante a esse item, não há necessidade de entrar em cálculos tediosos e duvidosos sobre qual pode ser o montante ínfimo indispensável para isso. Há muitos sintomas claros de que em nenhuma parte desse país os salários do trabalho estão aquém da taxa ínfima que mal se coaduna com os mais comezinhos ditames da dignidade humana. 124
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Primeiramente, em quase todas as regiões da Grã-Bretanha, existe uma diferença entre os salários de verão e os de inverno, mesmo nos tipos de trabalho menos qualificados. Os salários de verão sempre são os mais altos. Entretanto, devido à despesa extraordinária de combustível, a manutenção de uma família é mais dispendiosa no inverno. Se, portanto, os salários são os mais altos quando as despesas de manutenção da família são as mais baixas, parece evidente que não são regulados pelo mínimo indispensável para essa despesa, mas pela quantidade e suposto valor do trabalho. Pode-se com efeito afirmar que um trabalhador deve economizar parte de seu ordenado de verão para cobrir sua despesa no inverno; e que, considerando-se o ano todo, os salários não excedem o necessário para manter sua família durante o ano inteiro. Todavia, um escravo, ou uma pessoa que dependesse de nós para sua subsistência imediata, não seria tratado dessa forma. Sua subsistência diária seria ajustada às suas necessidades diárias. Em segundo lugar, os salários do trabalho na Grã-Bretanha não flutuam com o preço dos mantimentos. Esses variam em toda parte, de ano para ano, muitas vezes de mês para mês. No entanto, em muitos lugares o preço do trabalho em dinheiro permanece inalterado às vezes durante 50 anos seguidos. Se, portanto, nesses lugares os trabalhadores pobres podem manter suas famílias em anos dispendiosos, devem estar em situação cômoda em tempos de abundância moderada, e em afluência em tempos de preços extraordinariamente baixos. O alto preço dos mantimentos durante esses últimos 10 anos em muitas partes do Reino não tem sido acompanhado por nenhuma elevação sensível no preço do trabalho em dinheiro; em algumas regiões isso ocorreu, provavelmente, mais devido ao aumento da demanda de mão-de-obra do que ao aumento do preço dos mantimentos. Em terceiro lugar, assim como o preço dos gêneros varia mais de um ano para outro do que os salários do trabalho, os salários do trabalho variam, por outro lado, mais de lugar para lugar do que o preço dos mantimentos. Os preços do pão e da carne vendida pelos açougueiros geralmente são os mesmos ou mais ou menos os mesmos na maior parte do território do Reino Unido. Esses artigos, e a maioria dos demais que são vendidos no varejo — maneira pela qual os trabalhadores pobres compram tudo — geralmente são tão baratos ou mais baratos em cidades grandes do que em longínquas regiões do país, por motivos que terei ocasião de explicar adiante. Mas os salários do trabalho em uma cidade grande e nas suas proximidades são com freqüência 1/4 ou 1/5, ou seja, 20 ou 25% mais altos do que a algumas milhas de distância. Pode-se dizer que o preço comum do trabalho em Londres e nos arredores é 18 pence por dia. À distância de algumas milhas esse preço cai para 14 e 15 pence. Em Edimburgo e seus arredores o preço do trabalho, por dia, está estimado em 10 pence. A distância de algumas milhas esse preço cai para 8 pence, o preço habitual de mão-de-obra comum na maior parte da região baixa da Escócia, onde varia bem menos do que na Inglaterra. Tal diferença de 125
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preços da mão-de-obra — a qual aliás nem sempre parece suficiente para motivar a migração de uma pessoa de uma freguesia para outra — necessariamente provocaria um transporte tal das mercadorias mais volumosas, não somente de uma freguesia para outra, mas de uma extremidade do Reino quase de uma extremidade do mundo para a outra, que logo reduziria os preços a um só nível. Depois de tudo o que foi dito sobre a leviandade e inconstância da natureza humana, a experiência evidencia que uma pessoa é, dentre todos os tipos de bagagem, a mais difícil de ser transportada. Se, portanto, os trabalhadores pobres conseguem manter suas famílias nas regiões do Reino em que o preço do trabalho é o mais baixo, devem estar em afluência lá onde ele é o mais alto. Em quarto lugar, as variações no preço do trabalho não somente não correspondem, nem em lugar nem em tempo, às variações no preço dos mantimentos, mas muitas vezes são totalmente opostas. Os cereais, o alimento do povo em geral, são mais caros na Escócia do que na Inglaterra, da qual a Escócia recebe quase todo ano suprimentos muito grandes. Mas o trigo inglês precisa ser vendido mais caro na Escócia, país para o qual é transportado, do que na Inglaterra, país do qual procede; e em proporção à sua qualidade, não pode ser vendido mais caro na Escócia do que o trigo escocês que compete com o trigo inglês no mesmo mercado. A qualidade dos cereais depende sobretudo da quantidade de farinha que ele rende no moinho, e sob este aspecto o trigo inglês é de tal forma superior ao escocês, que, embora muitas vezes seja aparentemente mais caro ou em proporção com a medida em volume, na realidade geralmente é mais barato, ou em proporção à sua qualidade, ou até em relação com seu peso. O preço da mão-de-obra, ao contrário, é mais caro na Inglaterra do que na Escócia. Se, portanto, os trabalhadores pobres conseguem manter suas famílias em uma parte do Reino Unido, devem estar em afluência em outro. A farinha de aveia fornece ao povo comum da Escócia a maior e a melhor parte de seu alimento, o qual geralmente é muito inferior ao de seus vizinhos do mesmo nível na Inglaterra. Essa diferença, porém, no modo de sua subsistência não é a causa, mas o efeito da diferença em seus salários, embora com freqüência se pense que é a causa, por falta de conhecimento. Não é porque um anda de carruagem e seu vizinho anda a pé, que um é rico e o outro pobre, mas vice-versa: por ser rico, um anda de carruagem, e por ser pobre, o outro anda a pé. No decurso do século passado, considerando-se a média dos diversos anos, os cereais eram mais caros nas duas partes do Reino Unido do que durante o decurso do presente século. Esse fato não padece de dúvida, e a prova disso é ainda mais decisiva — se é que é possível — em relação à Escócia do que em relação à Inglaterra. Na Escócia, o fato é confirmado pela evidência da fé pública, homologada sob juramento nas avaliações anuais de acordo com o estado efetivo dos mercados, de todos os vários tipos de cereais em cada condado da Escócia. Se essa prova direta pudesse exigir alguma evidência colateral 126
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para confirmá-la, observaria que isto ocorreu também na França, e provavelmente na maioria dos países da Europa. Com respeito à França, existe prova mais clara. Embora, porém, seja certo que nas duas partes do Reino Unido os cereais eram algo mais caros no século passado do que no atual, é igualmente certo que a mão-de-obra era muito mais barata. Se, pois, os trabalhadores pobres conseguiam manter suas famílias então devem estar muito mais à vontade hoje. No século passado, o salário diário mais comum na maior parte da Escócia era 6 pence no verão e 5 pence no inverno. Em algumas partes das regiões montanhosas e nas Ilhas Ocidentais ainda se continua a pagar 3 xelins por semana, aproximadamente o mesmo preço. Na maior parte da região baixa do País, o salário mais habitual do trabalho comum é hoje 8 pence por dia; e 10 pence, às vezes 1 xelim, em torno de Edimburgo, nos condados que confinam com a Inglaterra, provavelmente devido à vizinhança com a Escócia, e em alguns outros lugares em que recentemente houve um aumento considerável da demanda de trabalho, em torno de Glasgow, Carron, Ayr-Shire etc. Na Inglaterra os aperfeiçoamentos da agricultura, das indústrias e do comércio começaram muito antes do que na Escócia. A demanda de mão-de-obra, e conseqüentemente o seu preço, necessariamente deve ter aumentado com esses aprimoramentos. Em decorrência disso, no século passado, como no atual, os salários do trabalho eram mais altos na Inglaterra do que na Escócia. Aumentaram consideravelmente também desde aquele tempo, embora, devido à maior diferença de salários pagos lá, em lugares diferentes, seja mais difícil saber com certeza em quanto subiram. Em 1614, o soldo de um soldado de infantaria era o mesmo que hoje, 8 pence por dia. Quando foi fixado pela primeira vez, esse soldo teria naturalmente sido regulado pelos salários usuais dos trabalhadores comuns, a classe da qual comumente são recrutados os soldados de infantaria. O Lord Juiz Supremo Hales, que escreveu no tempo de Carlos II, calcula a despesa necessária de uma família operária de seis pessoas — pai, mãe, duas crianças capazes de executar algum trabalho, e duas incapazes de qualquer trabalho — em 10 xelins por semana, ou seja 26 libras esterlinas por ano. Se não conseguirem ganhar isso com seu trabalho, ele supõe que devam arranjar-se mendigando ou furtando. Ele parece ter pesquisado com muita atenção esse assunto.126 Em 1688, Gregory King, cuja habilidade em aritmética política é tão enaltecida pelo Dr. Davenant, calculou a renda comum de trabalhadores e empregados extraordinários em 15 libras anuais para uma família que supunha constar, em média, de 3,5 pessoas. Portanto, seu cálculo, embora diferente na aparência, coincide muito aproximadamente, no fundo, com o do juiz Hales. Ambos supõem que a despesa semanal dessas famílias gire em torno de 20 pence por cabeça. Tanto a renda pecuniária quanto a despesa dessas famílias aumentaram con126 Ver seu esquema para a manutenção dos pobres, em BURN. History of the Poorlaws. 127
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sideravelmente desde então, na maior parte do Reino Unido, em alguns lugares, mais, em outros, menos; embora dificilmente em algum lugar o aumento tenha sido tão grande quanto alguns relatos recentes sobre os salários atuais da mão-de-obra têm tentado fazer crer ao público. Deve-se observar que o preço do trabalho não pode ser determinado com muita precisão em um lugar, pelo fato de muitas vezes se pagarem diferentes preços no mesmo lugar e para o mesmo tipo de trabalho, não somente de acordo com a diferença de habilidades dos trabalhadores, mas também conforme a generosidade ou dureza dos patrões. Onde os salários não são regulados por lei, o máximo que possamos pretender determinar são os salários mais costumeiros; aliás, a experiência parece mostrar que a lei jamais consegue regular os salários adequadamente, embora muitas vezes tenha pretendido fazê-lo. A remuneração real do trabalho, ou seja, a quantidade real de bens necessários e confortos materiais que o salário pode assegurar ao trabalhador, tem aumentado, no decurso deste século, talvez em uma proporção ainda maior do que o preço dos salários em dinheiro. Não somente os cereais têm-se tornado algo mais baratos, mas muitas outras coisas, das quais o pobre que é laborioso obtém uma variedade razoável e saudável de alimentos, também se tornaram muito mais baratas. As batatas, por exemplo, hoje não custam, na maior parte do Reino Unido, a metade do preço que costumavam custar 30 ou 40 anos atrás. O mesmo pode-se dizer do nabo, da cenoura, do repolho, coisas que antigamente nunca eram cultivadas a não ser com pá, mas que hoje normalmente o são com arado. Tornaram-se mais baratos todos os tipos de artigo para horticultura. A maior parte das maçãs e mesmo das cebolas consumidas na Grã-Bretanha eram no século passado importadas do País de Flandres. Os grandes aperfeiçoamentos introduzidos nas indústrias do linho e da lã garantem aos trabalhadores roupa mais barata e de melhor qualidade, sendo que os aperfeiçoamentos introduzidos na indústria dos metais menos nobres lhes asseguram instrumentos de trabalho mais baratos e de melhor qualidade, bem como muitas peças bem-feitas e adequadas para uso doméstico. O sabão, o sal, as velas, o couro e licores fermentados se tornaram bem mais caros, sobretudo em razão das taxas que se lhes têm imposto. Todavia, a quantidade desses artigos que o trabalhador pobre é obrigado a consumir é tão irrelevante, que o aumento de seu preço não compensa a diminuição no preço de tantas outras coisas. A queixa comum de que o supérfluo se estende até as camadas mais baixas do povo, e de que o trabalhador pobre atualmente não se contentará mais com a mesma comida, a mesma roupa e alojamento que o satisfazia em tempos anteriores, pode convencer-nos de que o aumento não foi somente no preço da mão-de-obra em dinheiro, mas também na sua remuneração real. Dever-se-á considerar esta melhoria da situação das camadas mais baixas da sociedade como uma vantagem ou como um inconveniente para a sociedade? A resposta é tão óbvia, que salta à vista. Os criados, trabalhadores e operários dos diversos tipos representam a 128
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maior parte de toda grande sociedade política. Ora, o que faz melhorar a situação da maioria nunca pode ser considerado como um inconveniente para o todo. Nenhuma sociedade pode ser florescente e feliz, se a grande maioria de seus membros forem pobres e miseráveis. Além disso, manda a justiça que aqueles que alimentam, vestem e dão alojamento ao corpo inteiro da nação, tenham uma participação tal na produção de seu próprio trabalho, que eles mesmos possam ter mais do que alimentação, roupa e moradia apenas sofrível. A pobreza, embora sempre desestimule o casamento, nem sempre o impede. Pelo contrário, parece até favorecer mais a procriação. Uma mulher das regiões montanhosas, que passa fome, muitas vezes gera mais de vinte filhos, ao passo que uma mulher fina e bem alimentada muitas vezes não se dispõe sequer a gerar um, e na maioria dos casos sente-se esgotada se tiver 2 ou 3. A esterilidade, tão freqüente entre mulheres de posição, é muito rara entre as de classe inferior. A luxúria no sexo feminino, talvez por inflamar a paixão pelo prazer, parece sempre enfraquecer e com freqüência destruir totalmente as energias procriadoras. Entretanto, a pobreza, embora não evite a procriação, é extremamente desfavorável à educação dos filhos. A tenra planta é produzida, mas o solo é tão frio e o clima tão rigoroso, que logo murcha e morre. Tenho sido freqüentemente informado de que, na Alta Escócia, não é raro para uma mãe que deu à luz vinte filhos não ter dois vivos. Vários oficiais de grande experiência me asseguraram que, desde o recrutamento de seus regimentos, nunca foram capazes de supri-los com tambores e pífaros por causa de todos os filhos de soldados que lá haviam nascido. No entanto, raramente se pode ver um número maior de lindas crianças se não em uma barraca de soldados. Muito poucas delas, ao que parece, chegam à idade de 13 ou 14 anos. Em alguns lugares, a metade das crianças nascidas morrem antes de completar quatro anos de idade; em muitos lugares, antes de completar sete; e em quase todos os lugares, antes de atingirem os 9 ou 10 anos. Ora, essa grande mortalidade se encontrará sobretudo entre as crianças do povo comum, cujos pais não dispõem dos recursos para cuidar delas como as pessoas de melhor condição social. Embora o matrimônio dos pobres seja normalmente mais fecundo do que o das pessoas de boa condição, é menor a proporção de filhos dessas famílias que chegam à maturidade. Em hospitais de enjeitados e entre as crianças mantidas em instituições de caridade, a mortalidade é ainda maior do que entre as famílias de nível comum. Toda espécie animal multiplica-se naturalmente em proporção aos meios de que dispõe para sua subsistência, sendo que nenhuma espécie pode multiplicar-se sem esses meios. Mas em uma sociedade civilizada é somente entre as camadas inferiores da população que a escassez de gêneros alimentícios pode estabelecer limites para a posterior multiplicação da espécie humana; ora, só pode fazê-lo destruindo uma grande parte das crianças nascidas de um matrimônio fecundo. 129
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A remuneração generosa do trabalho, possibilitando aos trabalhadores cuidar melhor de seus filhos, e conseqüentemente criar um número maior deles, tende naturalmente a ampliar e estender esses limites. Além disso, cumpre observar que necessariamente faz isso tanto quanto possível, na proporção exigida pela demanda de mão-de-obra. Se essa demanda aumentar continuamente, a remuneração do trabalho necessariamente estimulará o matrimônio e a multiplicação de trabalhadores de tal forma que possa dar-lhes condições para atender a essa demanda em contínuo aumento com uma população cada vez mais numerosa. Se a remuneração em algum momento for inferior ao que se requer para esse fim, a carência de mão-de-obra logo a fará aumentar; e se em algum momento a remuneração for muito alta, a multiplicação excessiva de mão-de-obra logo a fará baixar para sua taxa necessária. O mercado acusará uma falta tão grande de mão-de-obra em um caso, e uma saturação tão grande em outro, que logo o preço da mão-de-obra será forçado a posicionar-se na taxa adequada exigida pelas circunstâncias da sociedade. É dessa forma que a necessidade de mão-de-obra, como a de qualquer outra mercadoria, necessariamente regula a produção, apressa-a quando é muito lenta, e a faz parar quando avança com excessiva rapidez. E essa demanda que regula e determina o estado de propagação da espécie em todos os países do mundo: na América do Norte, na Europa, e na China. É esta demanda que faz com que essa propagação aumente rapidamente na América do Norte, seja mais lenta e gradual na Europa, e permaneça basicamente estacionária na China. Tem-se dito que o desgaste de um escravo representa uma despesa que pesa sobre seu patrão, ao passo que o de um empregado livre pesaria sobre ele mesmo. Na realidade, porém, o desgaste deste último pesa tanto sobre o patrão quanto o do escravo. Os salários pagos a diaristas e empregados de todo tipo devem ser tais que lhes possibilitem continuar a procriar diaristas e empregados, conforme a demanda da sociedade — crescente, decrescente ou estacionária — exigir eventualmente. Mas embora o desgaste de um empregado livre também pese sobre seu patrão, geralmente custa-lhe muito menos do que o do escravo. O fundo destinado a substituir ou reparar, se assim se puder dizer, o desgaste de um escravo geralmente é administrado por um patrão negligente ou por um supervisor descuidado. O fundo destinado a reparar ou substituir o desgaste de um homem livre é administrado por ele mesmo. As desordens que geralmente prevalecem na economia dos ricos introduzem-se naturalmente na administração do primeiro fundo, da mesma forma que a estrita frugalidade e a atenção parcimoniosa dos pobres de modo natural se estabelecem na administração do segundo fundo. Com uma administração tão diferente, o mesmo objetivo deve exigir graus muito diferentes de despesa para executá-lo. Com base na experiência de todas as épocas e nações, acredito, pois, que o trabalho executado por pessoas livres ao final se torna mais barato do que o executado por escravos. Isso ocorre até em Boston, Nova York e Filadélfia, onde os salários do trabalho comum são altíssimos. 130
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Por conseguinte, assim como a remuneração generosa do trabalho é o efeito da riqueza crescente, da mesma forma é a causa do aumento da população. Queixar-se disso equivale a lamentar-se sobre a causa e o efeito necessário da prosperidade máxima da nação. Talvez mereça ser observado que a condição dos trabalhadores pobres parece ser a mais feliz e a mais tranqüila no estado de progresso, em que a sociedade avança para maior riqueza, e não no estado em que já conseguiu sua plena riqueza. A condição dos trabalhadores é dura na situação estacionária e miserável quando há declínio econômico da nação. O estado de progresso é, na realidade, o estado desejável e favorável para todas as classes sociais, ao passo que a situação estacionária é a inércia, e o estado de declínio é a melancolia. Assim como a remuneração generosa do trabalho estimula a propagação da espécie, da mesma forma aumenta a laboriosidade. Os salários representam o estímulo da operosidade, a qual, como qualquer outra qualidade humana, melhora em proporção ao estímulo que recebe. Meios de subsistência abundantes aumentam a força física do trabalhador, é a esperança confortante de melhorar sua condição e talvez terminar seus dias em tranqüilidade e abundância o anima a empenhar suas forças ao máximo. Portanto, onde os salários são altos, sempre veremos os empregados trabalhando mais ativamente, com maior diligência e com maior rapidez do que onde são baixos; é o que se verifica, por exemplo, na Inglaterra, em comparação com a Escócia, o mesmo acontecendo nas proximidades das cidades grandes, em comparação com as localidades mais recuadas do interior. Com efeito, certos trabalhadores, podendo ganhar em 4 dias o suficiente para se manterem durante uma semana, folgarão nos três outros dias. Este, porém, não é o caso da grande maioria. Pelo contrário, os empregados, quando bem pagos por peça, facilmente fazem horas extraordinárias e arruínam sua saúde e sua constituição em poucos anos. Supõe-se que um carpinteiro em Londres, e em alguns outros lugares, não mantém seu vigor máximo além de 8 anos. Algo semelhante ocorre em muitas outras ocupações, nas quais os trabalhadores são pagos por peça, como geralmente ocorre nas manufaturas e mesmo no trabalho rural, onde os salários são mais altos que os costumeiros. Quase todas as classes de artesãos estão sujeitas a uma enfermidade específica em decorrência da dedicação excessiva à profissão. Ramuzzini, eminente médico italiano, escreveu um livro especialmente sobre tais doenças. Não enquadramos nossos soldados entre as pessoas mais laboriosas deste país. Todavia, quando se lhes confiam certas modalidades de trabalho, e quando são pagos generosamente por peça, seus oficiais freqüentemente têm sido obrigados a ajustar com o patrão que não se lhes permita ganhar acima de um certo montante por dia, de acordo com o seu nível salarial. Antes dessa determinação, a emulação mútua e o desejo de maior ganho muitas vezes os estimulavam a fazer horas extraordinárias, prejudicando sua saúde com o trabalho excessivo. A aplicação excessiva durante 4 dias da semana é muitas vezes a causa real da 131
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ociosidade que se observa nos 3 outros dias restantes, alvo de tantas queixas. Um trabalho intenso, intelectual ou manual, continuado por vários dias, na maioria das pessoas é seguido naturalmente de um grande desejo de repouso o qual é praticamente irresistível, a não ser que se intervenha com a força ou com outra medida forte. Trata-se de um imperativo da natureza, a qual, para recuperação, exige recreação, não bastando às vezes somente relaxar, mas também dissipar e divertir. Se essa exigência não for atendida, as conseqüências são muitas vezes perigosas e por vezes fatais; e sempre, mais cedo ou mais tarde, acarretam a doença típica do ofício. Se os patrões se ativessem sempre aos ditames da razão e da justiça, muitas vezes fariam melhor em moderar a dedicação de muitos de seus operários, ao invés de estimulá-la. Poder-se-á verificar, parece-me em qualquer sorte de ocupação, que a pessoa que trabalha com moderação, de maneira a ter condições de trabalhar constantemente, não somente preserva sua saúde ao máximo, como executa a quantidade máxima de serviço, no decurso do ano. Afirma-se que em anos de preços baixos os operários são geralmente mais ociosos, e nos anos de preços altos são mais laboriosos do que comumente. Então tem-se concluído que uma subsistência abundante reduz a produtividade do trabalhador, ao passo que uma subsistência deficiente a aumenta. Não resta dúvida de que uma fartura um pouco maior do que a comum pode tornar preguiçosos certos empregados; mas, não parece muito provável que possa ter esse efeito sobre a maioria deles, ou que as pessoas geralmente trabalham melhor quando mal alimentadas, quando estão desanimadas, do que quando estão em boa forma, quando estão freqüentemente doentes do que quando gozam de boa saúde. Importa observar que os anos de carestia são geralmente, entre o povo comum, anos de doença e de mortalidade, que não podem deixar de diminuir a produção resultante de seu trabalho. Em anos de abundância, muitas vezes, os empregados abandonam seus patrões e procuram sua subsistência no trabalho autônomo. Mas os mesmos preços baixos dos mantimentos, por aumentarem o fundo destinado à manutenção dos empregados, estimula os patrões, sobretudo os da agricultura, a empregar um número maior de trabalhadores. Em tais ocasiões, os proprietários rurais esperam mais lucro de seu trigo, mantendo alguns trabalhadores a mais, do que vendendo-o a baixo preço no mercado. A demanda de mão-de-obra aumenta, ao passo que diminui o número dos que se oferecem para atender a tal demanda. Freqüentemente, portanto, o preço da mão-de-obra aumenta em anos de preços baixos. Em anos de escassez, a dificuldade e a incerteza da subsistência fazem toda essa gente voltar ansiosamente ao serviço. Mas o alto preço dos gêneros, por diminuir os fundos destinados à manutenção dos empregados, leva os patrões antes a diminuir do que a aumentar o número dos empregados; também em anos de preços altos, os trabalhadores autônomos pobres freqüentemente consomem o reduzido capital que haviam utilizado para adquirir os materiais necessários para seu tra132
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balho, sendo obrigados a tornar-se novamente diaristas, para poderem subsistir. O número de candidatos a emprego é maior do que as vagas disponíveis no mercado de mão-de-obra; muitos se dispõem a trabalhar por salários mais baixos do que os normais, sendo que tanto os salários dos empregados como o dos diaristas muitas vezes baixam em anos de preços altos. Eis por que os patrões de todos os tipos muitas vezes fazem melhor os negócios com seus empregados em anos de preços altos do que em anos de preços baixos, encontrando-os mais humildes e dependentes na primeira hipótese do que na segunda. É por isso que recomendam naturalmente o primeiro como o mais favorável à produtividade do trabalho. Além disso, os proprietários de terra e os arrendatários — duas das maiores categorias de patrões — têm outra razão para alegrar-se com os anos de preços altos. Com efeito, a renda dos primeiros e o lucro dos segundos dependem muito do preço dos mantimentos. Nada, porém, pode ser mais absurdo que imaginar que normalmente as pessoas trabalhem menos quando trabalham para si mesmos, do que quando trabalham para terceiros. De modo geral, um trabalhador independente pobre será mais laborioso do que um diarista pago por peça. O primeiro desfruta do produto integral de seu trabalho, ao passo que o segundo o reparte com o patrão. O primeiro, em sua condição de autônomo, está menos sujeito à tentação das más companhias, as quais em grandes manufaturas tão freqüentemente arruínam o moral dos outros. Ainda maior é, provavelmente a superioridade do trabalhador autônomo em relação a empregados contratados por mês ou por ano, e cujos salários não sofrem alteração, trabalhando muito ou pouco. Anos de preços baixos tendem a aumentar a proporção de trabalhadores independentes em relação a diaristas e empregados de todos os tipos, e anos de preços altos tendem a diminuir o número deles. Um autor francês de grande conhecimento e engenho, Messance, recebedor das talhas na eleição de St. Etienne, procura mostrar que os pobres produzem mais em anos de preços baixos do que em anos de preços altos, comparando a quantidade e o valor dos bens fabricados nessas ocasiões diferentes, nas três manufaturas seguintes: uma de lãs brutas, localizada em Elbeuf, outra de linho e outra de seda, estas duas estendendo-se a toda a província de Rouen. De seu relato, transcrito dos registros oficiais, aparece que a quantidade e o valor dos bens fabricados nessas três manufaturas geralmente têm sido maior em anos de preços baixos do que em anos de preços altos, e que as quantidades maiores sempre se registraram nos anos de preços mais baixos, e a produtividade mínima ocorre nos anos de preços mais altos. As três parecem ser manufaturas estacionárias, ou seja: embora sua produção possa apresentar alguma variação de um ano para outro, no global não estão progredindo nem regredindo. A manufatura de linho na Escócia e de lã bruta na parte ocidental do Yorkshire são manufaturas em crescimento, cuja produção, embora apresentando algumas variações, geralmente está aumentando. Toda133
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via, após examinar os relatos publicados sobre sua produção anual, não consegui comprovar que suas variações tenham alguma correlação sensível com os preços altos ou baixos das estações. Em 1740, ano de grande escassez, as duas manufaturas decaíram consideravelmente. Mas em 1756, outro ano de grande escassez, a manufatura escocesa registrou progressos acima do normal. A manufatura de Yorkshire declinou e sua produção não atingiu o que havia sido de 1755 até 1766, depois da rejeição da lei americana sobre o selo. Naquele ano, e no ano subseqüente, superou de muito o que havia atingido antes, e desde então tem continuado a crescer. A produção de todas as grandes manufaturas de bens para venda a grande distância deve necessariamente depender, não tanto dos preços altos ou baixos nos países em que operam, mas antes das circunstâncias que afetam a demanda nos países em que os bens são consumidos, da situação de paz ou de guerra, e da boa ou má disposição de seus clientes. Além disso, grande parte do trabalho extraordinário provavelmente executado nos anos de preços baixos nunca entra nos registros oficiais das manufaturas. Os empregados que abandonam o serviço de seus patrões tornam-se trabalhadores autônomos. As mulheres voltam à casa de seus pais e geralmente fiam para fazer tecidos para si e suas famílias. Mesmo os trabalhadores autônomos nem sempre trabalham para vender ao público, mas são empregados por alguns de seus vizinhos para fabricar artigos para uso familiar. Portanto, a produção de seu trabalho via de regra não figura nesses registros oficiais, cujos dados às vezes são publicados com tanto alarido, e com base nos quais seria inútil os nossos comerciantes e manufatores pretenderem proclamar a prosperidade ou o declínio dos maiores impérios. Embora as variações no preço da mão-de-obra não somente não coincidam sempre com as variações no preço dos mantimentos, mas muitas vezes sejam frontalmente opostas, não devemos, com base nisto, imaginar que o preço dos mantimentos não tenha nenhuma influência sobre o preço da mão-de-obra. O preço do trabalho em dinheiro é necessário por duas circunstâncias: a demanda de mão-de-obra e o preço dos artigos necessários e confortos materiais. A demanda de mão-deobra, conforme estiver em aumento, em estagnação ou em declínio, determina a quantidade dos artigos necessários e dos confortos materiais que devem ser assegurados ao trabalhador, e o preço do trabalho em dinheiro é determinado pelo que é necessário para comprar esta quantidade. Portanto, embora o preço da mão-de-obra em dinheiro seja às vezes alto quando o preço dos mantimentos é baixo, seria ainda mais alto, continuando a demanda inalterada, se o preço dos gêneros fosse alto. Se o preço da mão-de-obra em dinheiro às vezes sobe em um caso, e em outro desce, é porque a demanda de mão-de-obra aumenta em anos de abundância repentina e extraordinária, e diminui nos anos de escassez repentina e extraordinária. Em um ano de abundância repentina e extraordinária, muitos 134
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dos empregadores têm fundos suficientes para manter e empregar um número maior de pessoas laboriosas do que o contingente já empregado no ano anterior, e nem sempre se consegue este número extraordinário de trabalhadores. Por isso, os patrões que querem mais mão-de-obra disputam para consegui-lo, o que às vezes faz subir tanto o preço real do trabalho quanto seu preço em dinheiro. Em um ano de escassez repentina e extraordinária, ocorre o contrário. Os fundos destinados a empregar mão-de-obra são menores que os disponíveis no ano inteiro. Um número considerável de pessoas perde seu emprego, e esses desempregados disputam as poucas vagas existentes, o que por vezes faz baixar tanto o preço real da mão-de-obra quanto seu preço em dinheiro. Em 1740, ano de escassez incomum, muitos estavam dispostos a trabalhar apenas para sobreviver. Nos anos subseqüentes de abundância, era mais difícil conseguir trabalhadores e empregados. A escassez característica de um ano de preços altos, por diminuir a demanda de mão-de-obra, tende a baixar seu preço, assim como o alto preço dos mantimentos tende a levantá-lo. Ao contrário, a abundância de um ano de preços baixos, por aumentar a demanda, tende a elevar o preço da mão-de-obra, assim como o preço baixo dos mantimentos tende a baixá-lo. Nas variações comuns do preço dos gêneros, essas duas causas opostas parecem contrabalançar-se mutuamente; esta é provavelmente, em parte, a razão pela qual os salários do trabalho em toda parte são mais constantes e permanentes do que o preço dos gêneros. O aumento dos salários do trabalho necessariamente faz subir o preço de muitas mercadorias, por aumentar o componente “salários”, tendendo assim a reduzir seu consumo tanto no país como no exterior. Todavia, a mesma causa que faz subir os salários do trabalho, ou seja, o aumento do capital, tende a aumentar as forças produtivas do trabalho e fazer com que uma quantidade menor de mão-de-obra produza uma quantidade maior de trabalho. O dono do capital, que emprega um grande número de trabalhadores, necessariamente procura, para sua própria vantagem, fazer uma tal divisão e distribuição adequada do emprego, que possam produzir o máximo de trabalho possível. Pela mesma razão, ele procura colocar-lhes à disposição as melhores máquinas que tanto ele como os trabalhadores possam imaginar. Ora, o que ocorre entre os trabalhadores de uma oficina específica acontece, pelas mesmas razões, entre os trabalhadores de uma grande sociedade. Quanto maior for seu número, tanto mais se dividirão naturalmente em diferentes classes e subclasses de emprego. É maior o número de cérebros ocupados em inventar as máquinas mais adequadas para executar o trabalho de cada um, sendo, portanto, maior a probabilidade de se inventarem efetivamente tais máquinas. Haverá, portanto, muitas mercadorias que, em conseqüência desses aperfeiçoamentos, podem ser produzidas por um número tão reduzido de trabalhadores, que o aumento do preço delas é mais do que compensado pela diminuição de sua quantidade. 135
CAPÍTULO IX Os Lucros do Capital
O aumento e a diminuição dos lucros do capital dependem das mesmas causas que o aumento e a diminuição dos salários do trabalho, do estado de progresso ou de declínio da riqueza da sociedade; porém essas causas afetam um e outro de maneira muito diferente. O aumento do capital, o qual faz subir os salários, tende a baixar o lucro. Quando o capital de muitos comerciantes ricos é aplicado no mesmo negócio, naturalmente sua concorrência mútua tende a reduzir seus lucros; e quando há semelhante aumento de capital em todos os diversos ramos de negócio de uma mesma sociedade, a mesma concorrência produz necessariamente o mesmo efeito em todos eles. Já foi observado que não é fácil dizer com certeza quais são os salários médios do trabalho, mesmo em lugar determinado e em momento específico. Mesmo nesse caso, raramente podemos determinar outra coisa senão os salários mais comuns. Ora, mesmo isso raramente pode ser feito com referência aos lucros do capital. O lucro flutua tanto, que a própria pessoa que desenvolve determinado negócio nem sempre tem condições de dizer-nos qual é a média de seu lucro anual. Este é afetado não somente por cada variação do preço das mercadorias com as quais a pessoa negocia, mas também pela boa ou má sorte de seus concorrentes e de seus clientes, e por um sem-número de outras circunstâncias e eventos aos quais estão sujeitos os bens, quando transportados por mar ou por terra, ou mesmo quando estocados em um armazém. O lucro varia, portanto, não só de ano para ano, mas de um dia para o outro, e quase de uma hora para a outra. Saber com certeza qual é o lucro médio de todos os empreendimentos em um vasto Reino será uma tarefa muito mais difícil; e julgar com algum grau de precisão qual pode ter sido o lucro no passado recente ou em períodos remotos, eis uma tarefa totalmente impossível. Entretanto, ainda que seja impossível determinar com algum grau de precisão qual é ou foi a média dos lucros do capital, no presente 137
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ou em tempos antigos, a consideração dos juros do dinheiro é capaz de dar-nos uma idéia sobre os lucros. Pode-se adotar como máxima que, onde se pode ganhar muito com o uso do dinheiro, muito se pagará por esse uso; e onde pouco se pode ganhar com o uso dele, menos ainda é o que se pagará comumente por esse uso. Conforme, portanto, a taxa habitual de mercado dos juros variar em um país, podemos ter certeza de que os lucros do capital variarão com ela: baixam quando ela baixa, e sobem quando ela sobe. Portanto, a evolução dos juros do dinheiro pode levar-nos a formar alguma idéia sobre a evolução do lucro do capital. O Decreto 37 de Henrique VIII declarou ilegais quaisquer juros acima de 10%. Ao que parece, antes dele por vezes se cobrava uma taxa superior a essa. No reinado de Eduardo VI, o zelo religioso chegou a proibir qualquer tipo de juro. Afirma-se, porém, que essa proibição, como todas as outras desse tipo, não produziu efeito algum, e provavelmente aumentou o mal da usura, ao invés de reduzi-lo. O Estatuto de Henrique VIII foi renovado pelo Decreto 13 de Isabel, no capítulo 8, sendo que 10% continuou sendo a taxa legal de juros até o Decreto 21 de Jaime I, quando se operou uma redução para 8%. Logo após a Restauração, houve uma redução para 6%, e o Decreto 12 da Rainha Ana a reduziu para 5%. Todas essas regulamentações estatutárias parecem ter sido feitas com grande propriedade. Parecem ter seguido, e não antecipado, a taxa de juros de mercado, ou seja, a taxa à qual pessoas de bom crédito costumavam tomar empréstimos. Desde o tempo da rainha Ana, 5% parece ter sido uma taxa mais acima do que abaixo da taxa de mercado. Antes da última guerra, o Governo tomava empréstimos a 3% e pessoas de bom crédito na capital e em muitas outras partes do Reino, pagavam 3,5%, 4% e 4,5%. Desde o tempo de Henrique VIII, a riqueza e a renda do país têm progredido continuamente e, no decurso de seu progresso, parece que o ritmo foi sendo gradativamente acelerado e não retardado. Ao que parece, a riqueza e a renda do país não somente aumentaram, mas aumentaram em ritmo cada vez mais rápido. Durante o mesmo período, os salários do trabalho aumentaram continuamente, e na maior parte dos diversos ramos de comércio e das manufaturas os lucros do capital diminuíram. Via de regra, requer-se um capital maior para movimentar um negócio em uma cidade grande do que em um vilarejo. Os grandes capitais empregados em cada ramo de negócio, e o número de concorrentes ricos geralmente reduzem a taxa de lucro nas cidades grandes, abaixo da taxa que se pode conseguir no campo. Ao contrário, os salários do trabalho costumam ser mais altos em uma cidade grande do que em uma aldeia. Em uma cidade próspera, as pessoas que dispõem de grandes capitais a investir, muitas vezes não conseguem ter a quantidade de trabalhadores de que necessitam, e por isso concorrem entre si para conseguir a quantidade possível, o que aumenta os salários e 138
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diminui os lucros do capital. Nas regiões afastadas do país, muitas vezes não há capital suficiente para empregar todos os trabalhadores, e nesta situação eles concorrem entre si para conseguir emprego, o que faz baixar os salários e subir os lucros do capital. Na Escócia, embora a taxa de juros seja a mesma que na Inglaterra, a taxa do mercado é geralmente mais alta. As pessoas de excelente crédito raramente pagam menos de 5%. Mesmo banqueiros privados de Edimburgo pagam 4% pelas suas notas promissórias, cujo pagamento, total ou parcial, pode ser solicitado à vontade. Os banqueiros privados de Londres não pagam juros pelo dinheiro depositado em seus bancos. Poucos são os negócios que não se podem fazer com um capital menor na Escócia do que na Inglaterra. Por isso, a taxa comum de lucro deve ser algo mais alta. Já foi observado que os salários do trabalho são mais baixos na Escócia que na Inglaterra. O próprio país não somente é muito mais pobre, senão que também o ritmo do progresso — pois é evidente que esse existe — parece ser muito mais lento e retardado. Na França, a taxa legal de juros no decorrer deste século nem sempre se tem regulado pela taxa de mercado.127 Em 1720, os juros foram reduzidos do 20º para o 15º pêni, ou de 5% para 2%. Em 1724, a taxa foi elevada para o 13º pêni, ou seja, 3 1/3%. Em 1725, foi novamente aumentada para o 20º pêni ou 5%. Em 1766, durante a administração de Laverdy, os juros foram reduzidos para o 25º pêni, isto é, 4%. Depois disso, o padre Terray elevou-os depois à velha taxa de 5%. O suposto objetivo de tantas reduções violentas dos juros era preparar o caminho para reduzir o nível das dívidas públicas, objetivo que algumas vezes foi conseguido. Talvez a França hoje não seja tão rica como a Inglaterra; embora a taxa legal de juros no país muitas vezes tenha sido mais baixa que na Inglaterra, a taxa de mercado geralmente tem sido mais alta, pelo fato de que lá, como em outros países, se dispõem de métodos muito seguros e fáceis de evasão à lei. Foi-me assegurado por comerciantes britânicos que negociaram nos dois países que os lucros são maiores na França do que na Inglaterra; por isso, não há dúvida de que muitos súditos britânicos preferem antes empregar seu capital em um país em que o comércio está desacreditado do que em um país onde ele é altamente respeitado. Os salários do trabalho são mais baixos na França do que na Inglaterra. Quando passamos da Escócia para a Inglaterra, a diferença que podemos notar entre o modo de vestir e a aparência do povo em geral entre um país e outro constitui um indicador suficiente para aferir a diferença de condições entre os dois países. O contraste é ainda maior se regressarmos da França. A França, embora sem dúvida seja um país mais rico que a Escócia, parece não estar progredindo tão rapidamente quanto esta última. No país existe a idéia generalizada, mesmo 127 Ver DENISART. “Taux des Intérêts”. t. III, p. 18. 139
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entre o povo, de que a nação está regredindo — opinião que, em meu entender, carece de fundamento no tocante à França, e muito mais no caso da Escócia; com efeito, para convencer-se do contrário, basta olhar a Escócia hoje, depois de tê-la visto há 20 ou 30 anos. Por outro lado, a província da Holanda, em comparação com a extensão de seu território e o seu contingente populacional, é um país mais rico que a Inglaterra. Lá o Governo toma empréstimos a 2% e particulares de bom crédito pagam 3%. Afirma-se que os salários do trabalho são mais altos na Holanda do que na Inglaterra; e como se sabe muito bem, os holandeses negociam com taxas de lucro mais baixas do que qualquer outro povo da Europa. Alguns pretendem que o comércio na Holanda esteja em decadência; isso pode talvez ser verdade em relação a alguns setores. Todavia, esses sintomas parecem constituir indicação suficiente de que não existe uma queda generalizada. Quando o lucro diminui, os comerciantes ficam muito propensos a queixar-se de que o comércio em geral está em decadência, embora a redução do lucro seja o efeito natural e sua prosperidade, ou então uma conseqüência do fato de se estar aplicando um capital maior do que antes. Durante a última guerra, os holandeses conseguiram apoderar-se de todo o comércio internacional de intermediação da França, do qual ainda hoje conservam uma parcela ponderável. Os grandes bens que possuem tanto nos fundos franceses como nos ingleses — aproximadamente 40 milhões somente nos fundos ingleses, como se afirma (embora eu pessoalmente acredite haver muito exagero nesta cifra) — e as grandes quantias que empresta a particulares em países em que a taxa de juros é mais alta do que em seu país, são circunstâncias que indubitavelmente demonstram o excesso de seu capital, ou seja, que esse cresceu além do que conseguem aplicar com lucro aceitável em sua economia interna; entretanto, os holandeses não demonstram que seus negócios internos decresceram. Assim como o capital de um particular, embora adquirido por meio de um negócio determinado, pode aumentar além do que seja capaz de empregar nele, e, não obstante isso, esse negócio continua também a crescer, o mesmo pode acontecer com o capital de uma grande nação. Em nossas colônias norte-americanas e das Índias Ocidentais, são mais altos que na Inglaterra não somente os salários mas também os juros do dinheiro, e conseqüentemente, os lucros do capital. Nas diversas colônias, as taxas de juros, tanto a legal como a de mercado, vão de 6 a 8%. Entretanto, altos salários e altos lucros de capital são coisas que talvez muito dificilmente andam juntas, exceto nas circunstâncias peculiares a colônias novas. Uma colônia nova sempre deve, durante algum tempo, ter maior carência de capital em comparação com a extensão de seu território, e ser mais subpovoada em comparação com a extensão de seu capital, do que a maioria dos outros países. Essas colônias recentes têm mais terra do que capital para investir nela. O capital de que dispõem é, portanto, aplicado somente no cultivo das áreas mais férteis e melhor localizadas, ou seja, nas terras loca140
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lizadas perto da costa marítima e ao longo das margens dos rios navegáveis. Essas áreas, aliás, são muitas vezes compradas a um preço abaixo do valor, e mesmo abaixo do valor de sua produção natural. O capital aplicado na compra e no aprimoramento dessas áreas necessariamente produz um lucro muito grande, podendo-se portanto pagar juros muito altos. O acúmulo rápido de capital em um negócio tão rentável possibilita ao plantador aumentar sua mão-de-obra em um ritmo mais rápido do que pode encontrá-la em uma nova colônia. Os trabalhadores que o plantador consegue empregar, portanto, são muito liberalmente remunerados. À medida que a colônia se desenvolve, os lucros do capital diminuem gradualmente. Quando as áreas mais férteis e mais bem localizadas estiverem todas ocupadas, será menor o lucro que se poderá auferir do cultivo de áreas de qualidade e de localização menos privilegiadas, sendo também mais baixos os juros que poderão ser pagos pelo capital ali aplicado. Eis por que na maioria das nossas colônias tanto a taxa legal de juros como a taxa de mercado têm sido consideravelmente reduzidas durante o século atual. Na medida em que aumentaram a riqueza, os melhoramentos e a população, os juros declinaram. Os salários do trabalho não baixam com a diminuição dos lucros do capital. A demanda de mão-de-obra cresce com o aumento do capital, quaisquer que sejam os lucros dele auferidos, e depois que esses diminuem, o capital não somente pode continuar a aumentar, mas até a crescer mais rapidamente do que antes. Com as nações laboriosas que progridem na aquisição da riqueza ocorre o mesmo que com indivíduos laboriosos. Um capital grande, embora produza lucros pequenos, geralmente aumenta com maior rapidez que um capital reduzido com lucros elevados. Segundo diz o provérbio, dinheiro gera dinheiro. Quando se tem um pouco de capital, muitas vezes é fácil conseguir mais. O grande problema é conseguir esse pouco inicial. A correlação entre o aumento do capital e o aumento do trabalho, ou seja, da demanda de trabalho útil, já foi em parte explicada, mas explicação mais completa virá adiante, quando tratarmos do acúmulo de capital. A aquisição de novo território, ou de novos setores de comércio, às vezes pode aumentar os lucros do capital, e com isso os juros do dinheiro, mesmo em um país que está avançando com rapidez na aquisição da riqueza. Pelo fato de o capital do país não ser suficiente para todos os negócios que as riquezas conquistadas propiciam às diversas pessoas entre as quais está dividido o capital, este passa a ser aplicado somente naqueles setores específicos que asseguram o máximo de lucro. Uma parte do capital que anteriormente havia sido aplicado a outros tipos de comércio necessariamente passa a ser retirado dali e canalizado para algum negócio novo e mais rendoso. Em conseqüência, em todos esses negócios antigos, a concorrência passa a ser menor do que antes. O mercado passa a ser suprido com menor abundância de muitos tipos de bens. O preço desses bens necessariamente aumenta mais ou menos, dando um grande lucro para aqueles que os comercializam, podendo eles, portanto, permitir-se pagar juros mais altos. Durante algum tempo 141
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após o término da última guerra, era comum não somente particulares com melhor crédito, mas também algumas das melhores companhias de Londres contraírem empréstimos a 5%, quando antes disso não costumavam pagar mais do que 4 ou 4,5%. A grande conquista, tanto de território como de comércio, por nossas aquisições na América do Norte e nas Índias Ocidentais, explicarão suficientemente esse fato, sem se ter que supor uma diminuição no capital da sociedade. Uma tão grande conquista de novos negócios a ser levados a cabo pelo antigo capital devem necessariamente ter diminuído a quantidade empregada em grande número de setores particulares, nos quais, sendo menor a concorrência, o lucro deve ter-se tornado maior. Mais adiante terei oportunidade de mencionar as razões que me levam a crer que o estoque de capital da Grã-Bretanha não diminui, nem mesmo em conseqüência da enorme despesa ocasionada pela última guerra. Entretanto, a diminuição do estoque do capital de uma sociedade, ou dos fundos destinados à manutenção da mão-de-obra, assim como baixa os salários, aumenta os lucros do capital, e conseqüentemente também os juros do dinheiro. Pelo fato de baixarem os salários, os donos do capital remanescente na sociedade têm condições para colocar suas mercadorias no mercado com despesas menores do que antes, podendo vendê-las mais caro, já que é menor do que antes o capital empregado para colocá-las no mercado. Portanto, suas mercadorias custam menos para eles, porém eles as vendem mais caro. Pelo fato, portanto, de estarem lucrando tanto na compra como na venda delas, podem permitir-se pagar juros mais altos. As grandes fortunas adquiridas tão de repente e com tanta facilidade em Bengala e nos outros estabelecimentos britânicos nas Índias Orientais comprovam-nos que, assim como os salários são muito baixos, os lucros do capital são muito altos nesses países arruinados. Com os juros do dinheiro ocorre a mesma correlação. Em Bengala, empresta-se dinheiro aos agricultores a 40, 50 e até 60% e a próxima colheita é hipotecada para o pagamento. Assim como os lucros permitidos por essas taxas de juros necessariamente comem quase toda a renda devida ao dono da terra, da mesma forma essa usura de tal monta devora por seu turno a maior parte daqueles lucros. Antes da queda da República dos romanos, parece ter sido generalizada uma usura do mesmo tipo nas províncias sob a administração desastrosa de seus procônsules. Segundo nos informam as cartas de Cícero, o virtuoso Brutus emprestava dinheiro em Chipre a 48%. Em um país que tivesse adquirido toda a riqueza compatível com a natureza de seu solo e clima e com a sua localização em relação a outros países, e que portanto não tivesse mais possibilidade de progredir, mas ao mesmo tempo não estivesse regredindo, aconteceria o seguinte: tanto os salários do trabalho como os lucros do capital seriam provavelmente muito baixos. Em um país totalmente povoado, tanto em relação ao território necessário para manter essa população, quanto em relação ao capital necessário para dar-lhe emprego, a concorrência para conseguir emprego necessariamente seria tão grande que reduziria 142
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os salários ao estritamente necessário para conservar o número de trabalhadores, sendo que esse número jamais poderia ser aumentado, pois o país já estaria, no caso, totalmente povoado. Em um país saturado de capital, em relação a todos os negócios a transacionar, esse montante tão alto de capital seria aplicado em todo e qualquer setor específico que a extensão do comércio comportasse. Em conseqüência, a concorrência seria em toda parte a máxima imaginável, e o lucro comum do capital seria igualmente o mais baixo possível. Talvez, porém, nenhum país tenha ainda chegado a esse grau de opulência. A China parece ter permanecido estacionária por muito tempo, e provavelmente muito antes havia atingido aquele máximo de riqueza consentâneo com a natureza de suas leis e instituições. Entretanto, esse máximo pode ser muito inferior ao que comportaria a natureza de seu solo, seu clima e sua localização, com outras leis e instituições. Um país que negligencia ou menospreza o comércio exterior, e que só permite a entrada dos navios de outras nações em um ou outro de seus portos, não pode efetuar o mesmo volume de negócios que teria condições de fazer com leis e instituições diferentes. Além disso, em um país em que, embora os ricos, ou seja, os donos de grandes capitais, desfrutam de muita segurança, e os pobres, ou seja, os donos de capitais pequenos, não têm praticamente nenhuma segurança e além disso estão sujeitos, sob pretexto de justiça, a serem pilhados e saqueados a qualquer momento pelos mandarins inferiores, o volume de capital empregado nos diversos setores de comércio jamais pode ser igual àquilo que a natureza e a extensão desse negócio comportaria. Em cada setor, a opressão dos pobres deve levar ao monopólio dos ricos, os quais, reservando todo o comércio para si, terão condições de auferir lucros extraordinários. Afirma-se, pois, que os juros comuns na China são de 12%, sendo óbvio que os lucros normais auferidos do capital devem ser suficientes para permitir juros tão elevados. Uma deficiência na lei pode às vezes aumentar consideravelmente a taxa de juros acima daquilo que seria exigido pela condição do país, no tocante à riqueza ou pobreza. Quando a lei não obriga o cumprimento dos contratos, ela coloca os tomadores de empréstimos no mesmo pé e situação em que se encontram, em países mais bem organizados, os que foram à bancarrota ou as pessoas de crédito duvidoso. A incerteza de recuperar o dinheiro emprestado faz com que o emprestador de dinheiro pratique o mesmo grau de usura que geralmente se espera de quem foi à bancarrota. Entre as nações bárbaras que invadiram as províncias ocidentais do Império Romano, o cumprimento dos contratos foi durante muito tempo deixado à boa-fé das partes contratantes. Raramente os tribunais de justiça intervinham neste assunto. É talvez a esta razão que se devem, em parte, as altas taxas de juros apresentadas nessas épocas antigas. Quando a lei proíbe totalmente os juros, não conseguirá impedilos. Muitas pessoas terão que tomar empréstimos, e ninguém dará empréstimo sem levar em conta o uso de seu dinheiro que seja con143
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sentâneo não somente com o que se possa fazer com esse uso, mas também com a dificuldade e o perigo de infringir a lei. Para Montesquieu, as altas taxas de juros vigentes entre as nações maometanas devem atribuir-se não à pobreza desses povos, mas em parte a essa causa, e em parte à dificuldade de reaver o dinheiro emprestado. A taxa normal mínima de juros deve sempre ser algo superior ao que é suficiente para compensar as perdas ocasionais, às quais está exposta qualquer aplicação de capital. Somente esse excedente pode ser considerado como lucro limpo ou líquido. O que se denomina lucro bruto muitas vezes engloba não somente esse excedente, mas também o que é retido para compensar tais perdas extraordinárias. Os juros que o tomador de empréstimo pode permitir-se pagar são proporcionais somente ao lucro líquido. Analogamente, a taxa normal mínima de juros deve ser algo mais do que o suficiente para compensar as perdas ocasionais às quais está exposto quem dá o empréstimo, mesmo usando de razoável prudência. Se a taxa de juros não englobar esse algo mais, os únicos motivos que levam ao empréstimo só podem ser a caridade ou a amizade. Em um país que tivesse atingido seu grau pleno de riqueza, e no qual em todo ramo específico de negócios houvesse o volume máximo de capital que nele pudesse ser aplicado, assim como a taxa normal de lucro líquido seria muito baixa, da mesma forma a taxa normal de juros de mercado admissível seria tão baixa, que seria impossível uma pessoa viver dos juros de seu dinheiro, a não ser que se tratasse dos indivíduos mais ricos. Todas as pessoas de fortuna pequena ou média seriam obrigadas a supervisionar, elas mesmas, o emprego de seu capital. Seria necessário que praticamente cada um fosse um homem de negócios, ou se empenhasse em algum tipo de comércio. A província da Holanda parece estar se aproximando desse estágio. Lá está fora da moda não ser um homem de negócios. A necessidade fez com que seja normal cada um ser assim, e em toda parte é o costume que regula a moda. Assim como é ridículo não vestir-se, da mesma forma é ridículo, até certo ponto, não ter ocupação como os outros. Assim como um civil se sente mal em um acampamento ou em uma guarnição militar, correndo até o risco de ser alvo da chacota nesse ambiente, o mesmo acontece com uma pessoa ociosa entre homens de negócio. A taxa normal máxima de lucro pode ser tal, que, no preço da maioria das mercadorias, absorve integralmente o que deve ir para a renda da terra, e deixa somente o que é suficiente para pagar o trabalho de prepará-las e levá-las ao mercado, de acordo com a taxa mínima à qual se pode em qualquer lugar pagar a mão-de-obra, ou seja, a mera subsistência do trabalhador. De uma forma ou de outra, o trabalhador, em qualquer hipótese, deve ter ganho o suficiente para manter-se enquanto estava trabalhando, mas o dono da terra nem sempre já recebeu necessariamente o seu pagamento. Os lucros do comércio executado pelos empregados da Companhia das Índias Orientais em Bengala talvez não estejam muito longe dessa taxa. 144
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A proporção que a taxa comum de mercado dos juros deve manter com a taxa normal de lucro líquido, necessariamente varia conforme o lucro aumentar ou diminuir. Juros duplos na Grã-Bretanha é o que os comerciantes denominam um lucro bom, moderado, razoável — termos que, entendo eu, significam o mesmo que um lucro comum e normal. Em um país em que a taxa normal de lucro líquido é 8 ou 10%, pode ser razoável que a metade se integre aos juros onde quer que o negócio seja executado com dinheiro emprestado. O capital fica sob o risco do tomador do empréstimo, o qual por assim dizer assegura-o ao emprestador; e 4 ou 5% podem, na maioria dos casos, ser um lucro suficiente sobre o risco do seguro e uma remuneração suficiente para o trabalho empregar o capital. Todavia, a proporção entre os juros e o lucro líquido não poderia ser a mesma em países em que a taxa normal de lucro fosse muito mais baixa ou muito mais alta. Se fosse muito mais baixa, talvez não se poderia atribuir a metade dela aos juros; e se fosse muito mais alta, poder-se-ia atribuir-lhe mais da metade. Em países que avançam rapidamente para a riqueza, a baixa taxa de lucro pode, no preço de muitas mercadorias, compensar os altos salários do trabalho, e possibilitar a esses países vender tão barato quanto seus vizinhos menos prósperos, entre os quais os salários do trabalho podem ser mais baixos. Na realidade, os lucros altos tendem muito mais a aumentar o preço do trabalho do que os altos salários. Se, por exemplo, na manufatura do linho, os salários das diversas categorias de trabalhadores — cardadores de linho, fiandeiros, tecelões etc. — fossem todos aumentados em 2 pence por dia, seria necessário aumentar o preço de uma peça de linho somente em 2 pence vezes o número de trabalhadores empregados nesse serviço, multiplicando o resultado pelo número de dias empregados na fabricação dessa peça. Portanto, aquela parte do preço que é representada pelos salários haveria de subir, através de todos os estágios da fabricação, somente em proporção aritmética a esse aumento salarial. Ao contrário, se aumentarmos de 5% o lucro de todos os empregadores desses trabalhadores, a parte do preço da mercadoria que é representada pelo lucro aumentaria, através dos diversos estágios da fabricação, em proporção geométrica a essa taxa de lucro. O empregador dos cardadores de linho, ao vender seu produto, exigiria um adicional de 5% sobre o valor total dos materiais e salários que adiantou a seus empregados. O empregador dos fiandeiros exigiria um adicional de 5%, tanto sobre o preço do linho que pagou adiantado como sobre os salários dos fiandeiros, que também foram antecipados. E o empregador dos tecelões exigiria também seus 5%, tanto sobre o preço dos fios de linho que pagou adiantado como sobre os salários dos tecelões. Ao aumentar o preço das mercadorias, o aumento dos salários opera da mesma forma que juros simples o fazem no acúmulo do débito, ao passo que o aumento do lucro opera como juros compostos. Nossos comerciantes e donos de manufaturas reclamam muito dos efei145
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tos perniciosos dos altos salários, aumentando o preço das mercadorias, e assim diminuindo a venda de seus produtos tanto no país como no exterior. Nada dizem sobre os efeitos prejudiciais dos lucros altos. Silenciam sobre os efeitos danosos de seus próprios ganhos. Queixam-se somente dos ganhos dos outros.
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CAPÍTULO X Os Salários e o Lucro nos Diversos Empregos de Mão-de-Obra e de Capital
Em seu conjunto, as vantagens e desvantagens dos diversos empregos de mão-de-obra e de capital, em regiões vizinhas entre si, devem ser perfeitamente iguais ou continuamente devem tender à igualdade. Se na mesma região houvesse alguma ocupação ou emprego que visivelmente fosse mais ou menos vantajoso que os demais, no primeiro caso seriam tantos que o procurariam — e no segundo seriam tantos os que o abandonariam — que as vantagens logo voltariam ao nível dos demais empregos. Isso aconteceria, em todo caso, em uma sociedade em que se deixasse as coisas seguirem seu curso natural, e em que houvesse perfeita liberdade, tanto para cada um escolher as profissões que acreditasse apropriadas, como para mudar de profissão sempre que considerasse conveniente. O interesse de cada um o levaria a procurar o emprego vantajoso e evitar o desvantajoso. Os salários em dinheiro e o lucro, na realidade, são extremamente diferentes em toda a Europa, de acordo com os diferentes empregos de mão-de-obra e de capital. Essa diferença tem origem, em parte, em certas circunstâncias ou fatores inerentes aos próprios empregos, fatores esses que, realmente ou ao menos na imaginação das pessoas, respondem por um pequeno ganho pecuniário em alguns, e contrabalançam um grande ganho em outros — e em parte na política vigente na Europa, que em nenhum lugar permite que as coisas ocorram com plena liberdade. A consideração específica dessas circunstâncias e da mencionada política faz com que este capítulo se divida em duas partes. PARTE PRIMEIRA Desigualdades decorrentes da natureza dos próprios empregos São cinco as principais circunstâncias que, segundo tenho podido 147
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observar, respondem por um pequeno ganho pecuniário em alguns empregos e contrabalançam um ganho grande em outros: primeiro, o caráter agradável ou desagradável dos próprios empregos; segundo, a facilidade e o pouco dispêndio, ou a dificuldade e o alto dispêndio exigidos para a aprendizagem dos empregos; terceiro, a constância ou inconstância desses empregos; quarto, o grau pequeno ou grande de confiança, colocado naqueles que os ocupam; quinto, a probabilidade ou improbabilidade de ter sucesso neles. Primeiramente, os salários do trabalho variam segundo a facilidade ou dureza, o grau de limpeza ou sujeira, o prestígio ou desprestígio da profissão. Assim, na maioria dos lugares, considerando-se o ano todo, um oficial de alfaiate ganha menos do que um oficial de tecelão. Seu trabalho é muito mais fácil. Um oficial de tecelão ganha menos do que um oficial de ferreiro. Seu trabalho nem sempre é mais fácil, mas é muito mais limpo. Um oficial de ferrador, embora seja um artesão, raramente ganha tanto, em 12 horas, o que um mineiro, que é apenas um operário, ganha em 8 horas. Seu trabalho não é tão sujo, é menos perigoso e é executado à luz do dia e em cima do solo. A honra representa uma grande parcela na remuneração de todas as profissões honrosas. Quanto aos ganhos pecuniários, considerando tudo, geralmente essas profissões são mal remuneradas, como procurarei mostrar depois. O desprestígio tem um efeito contrário. A ocupação de um açougueiro é brutal e odiosa; mas em muitos lugares é mais rendosa do que a maior parte das ocupações comuns. O emprego mais detestável é de carrasco público, que, em comparação com o volume de trabalho executado, é mais bem remunerado do que qualquer outro emprego comum. A caça e a pesca, ocupações mais importantes da humanidade no estágio primitivo da sociedade, transformaram-se, no estágio social adiantado, na diversão mais agradável, sendo que as pessoas fazem então por prazer o que antes faziam por necessidade. Portanto, no estágio social adiantado, são todas pessoas muito pobres aquelas que abraçam como profissão o que para outros é um passatempo. Os pescadores são os mesmos desde o tempo de Teócrito.128 Um caçador furtivo é em toda parte da Grã-Bretanha uma pessoa muito pobre. Em países em que o rigor da lei não admite essa ocupação, o caçador com permissão legal não está em muito melhores condições. O gosto natural por aqueles empregos faz com que um maior número de pessoas os prefiram em relação àquelas que podem viver confortavelmente por meio deles, e o produto de seu trabalho, em proporção à sua quantidade, chega sempre ao mercado muito barato para que possa permitir mais do que os meios mínimos de subsistência aos trabalhadores. O caráter desagradável e o desprestígio afetam os lucros do capital da mesma maneira que os salários do trabalho. O proprietário de uma estalagem ou taverna, que nunca é dono de sua própria casa, e que 128 Ver Idyllium. XXI. 148
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está exposto à brutalidade de qualquer beberrão, exerce uma profissão que não é nem muito agradável nem muito prestigiada. No entanto, dificilmente existe uma profissão comum na qual um capital tão reduzido produza um lucro tão grande. Em segundo lugar, os salários do trabalho variam com a facilidade e o pouco dispêndio, ou a dificuldade e a alta despesa requeridas para aprender a ocupação. Quando se instala uma máquina cara, deve-se esperar que o trabalho extraordinário a ser executado por ela antes que se desgaste permita recuperar o capital nela investido, no mínimo com o lucro normal. Uma pessoa formada ou treinada a custo de muito trabalho e tempo para qualquer ocupação que exija destreza e habilidade extraordinárias pode ser comparada a uma dessas máquinas dispendiosas. Espera-se que o trabalho que essa pessoa aprende a executar, além de garantir-lhe o salário normal de um trabalho comum, lhe permita recuperar toda a despesa de sua formação, no mínimo com os lucros normais de um capital do mesmo valor. E isso deve acontecer dentro de um prazo razoável, levando-se em conta a duração muito incerta da vida humana, da mesma forma como se leva em conta a durabilidade mais certa da máquina. A diferença entre os salários do trabalho qualificado e os do trabalho comum está fundada nesse princípio. A política européia considera o trabalho de todos os mecânicos, artífices e operários de manufaturas como trabalho qualificado, e o de todos os trabalhadores do campo como trabalho comum. Parece supor que o trabalho dos primeiros é de natureza mais exata e mais delicada que o dos segundos. Em alguns casos talvez isso seja verdade, mas na maioria dos casos ocorre coisa bem diferente, como procurarei mostrar mais adiante. Eis por que as leis e costumes da Europa, para qualificar uma pessoa a executar um determinado tipo de trabalho, impõem a necessidade de uma aprendizagem, embora com rigor diferente conforme os lugares. Os outros empregos deixam-nos livres e abertos a quem queira. Durante o período de aprendizagem, o trabalho integral do aprendiz pertence a seu patrão. Durante esse período, o aprendiz, em muitos casos, deve ser mantido pelos seus pais ou parentes, e quase em todos os casos depende deles para vestir-se. Costuma-se também pagar algum dinheiro ao patrão por ensinar ao aprendiz a ocupação. Os que não podem dar dinheiro, dão tempo, ou então permanecem sem remuneração por um período de anos maior do que o costumeiro — um tratamento que, além de não ser sempre vantajoso para o patrão, devido à habitual preguiça dos aprendizes, representa sempre uma desvantagem para estes últimos. Ao contrário, no trabalho do campo, o trabalhador, enquanto desempenha as tarefas mais fáceis, aprende as tarefas mais difíceis da profissão, e com seu próprio trabalho mantém-se em todos os estágios de seu emprego. É pois razoável que, na Europa, os salários dos mecânicos, artífices e operários de manufaturas sejam algo mais altos que os dos trabalhadores comuns. E 149
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realmente o são; e seus ganhos maiores fazem com que, na maioria dos lugares, sejam considerados como uma categoria superior de pessoas. Todavia, essa superioridade é geralmente muito pequena: os ganhos diários ou semanais dos oficiais nos tipos mais comuns de manufatura, tais como a de tecidos simples de linho e lã, se computada a média, na maioria dos lugares representam pouco mais do que o salário diário dos trabalhadores comuns. Certamente, sua profissão é mais constante e uniforme, e a superioridade de seus ganhos, considerado o ano todo, pode ser algo maior. Entretanto, parece evidente que não é maior do que o suficiente para compensar o custo mais alto de sua formação. A formação para as artes inventivas e para as profissões liberais é ainda mais cansativa e dispendiosa. Em conseqüência disso, a remuneração de pintores e escultores, de advogados e médicos deve ser muito superior, e realmente o é. Os lucros do capital parecem ser muito pouco afetados pela facilidade de ou dificuldade de aprender a ocupação em que o capital é aplicado. Com efeito, todos os diversos modos de emprego comum de capital nas grandes cidades parecem ser mais ou menos igualmente fáceis e igualmente difíceis de aprender. Determinado setor do comércio externo ou interno dificilmente pode ser uma ocupação muito mais complexa do que outra. Em terceiro lugar, os salários do trabalho em ocupações diferentes variam com a constância ou a inconstância do emprego. O emprego é muito mais constante em algumas ocupações do que em outras. Na maior parte das manufaturas, um diarista pode estar bastante seguro de emprego quase todos os dias do ano em que tiver condições de trabalhar. Ao contrário, um pedreiro não tem condições de trabalhar com geada forte ou com mau tempo, e nas outras ocasiões seu emprego depende dos chamados ocasionais de seus clientes. Conseqüentemente, ele está com freqüência sujeito a não ter trabalho. Por esse motivo, o que ele ganha enquanto está ocupado, não somente deve ser suficiente para mantê-lo quando está ocioso, mas também para dar-lhe alguma compensação por aqueles momentos de ansiedade e tristeza pelos quais às vezes passa, ao pensar em sua situação precária. Portanto, lá onde os ganhos da maior parte dos operários manufatureiros estão mais ou menos ao mesmo nível dos salários diários dos trabalhadores comuns, os salários dos pedreiros são entre 50 e 100% mais altos que aqueles. Lá onde os trabalhadores comuns ganham 4 ou 5 xelins por semana, os pedreiros com freqüência ganham 7 ou 8; lá onde os primeiros ganham 6, os segundos ganham 9 ou 10, e onde os primeiros ganham 9 ou 10, como em Londres, os segundos geralmente ganham 15 ou 18. E no entanto nenhum tipo de trabalho qualificado parece mais fácil de se aprender do que o dos pedreiros. Afirma-se que os carregadores de cadeirinhas de Londres durante o verão, às vezes se empregam como pedreiros. Por conseguinte, os altos salários desses trabalhadores não são tanto a recompensa de sua ha150
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bilidade, senão mais a remuneração pela instabilidade que caracteriza sua profissão. Um carpinteiro de casas parece exercer uma ocupação de tipo mais aperfeiçoado e mais inventivo que um pedreiro. No entanto, em alguns lugares — pois não é assim em todos — seu salário diário é algo mais baixo. Sua ocupação, embora dependa muito dos clientes, não depende tanto quanto a do pedreiro; além disso, seu trabalho não está sujeito a ser interrompido pelo mau tempo. Em se tratando de ocupações que geralmente garantem emprego constante, quando eventualmente deixam de oferecer essa segurança em um determinado lugar, os salários dos trabalhadores em questão sobem bastante em relação à proporção normal dos salários dos trabalhadores comuns. Em Londres, quase todos os artífices diaristas estão expostos a serem despedidos pelos seus patrões de um dia para outro, de uma semana para outra, da mesma forma que os diaristas de outros lugares. Por isso, a categoria mais baixa de artesãos, os oficiais de alfaiate, ganham em Londres meia coroa por dia, embora o salário de um trabalhador comum gire em torno de 18 pence. Em cidades pequenas e vilarejos, os salários dos oficiais de alfaiates muitas vezes dificilmente igualam os dos trabalhadores comuns; entretanto, em Londres esses profissionais muitas vezes permanecem semanas inteiras desocupados, sobretudo durante o verão. Quando a instabilidade do emprego se associa à dureza do trabalho, à sua natureza desagradável e à sujeira do serviço, essas circunstâncias por vezes fazem o salário dos trabalhadores comuns subir acima do salário dos artesãos mais qualificados. Supõe-se que em Newcastle um mineiro que trabalha por tarefa ganha geralmente em torno do dobro — em muitos lugares da Escócia, até o triplo — do salário pago ao trabalho comum. Esses salários altos são totalmente devidos à dureza do trabalho, à sua natureza desagradável e à sujeira com que tem que lidar o trabalhador no exercício de sua profissão. Na maioria dos casos, essa profissão lhe pode assegurar a estabilidade que ele quiser. Os carregadores de carvão de Londres exercem uma profissão que, no tocante à dureza, ao caráter desagradável e sujo do serviço, quase se emparelha com a dos mineiros; devido à irregularidade inevitável das chegadas dos navios transportadores de carvão, essa profissão necessariamente oferece muito pouca estabilidade para a maioria deles. Se, portanto, os mineiros ganham duas e até três vezes o salário dos trabalhadores comuns, não deve parecer estranho que os carregadores de carvão devam ganhar às vezes quatro ou cinco vezes o que ganham os trabalhadores comuns. Na pesquisa feita sobre a condição deles, alguns anos atrás, constatou-se que, com a taxa de salário vigente para eles, podiam ganhar de 6 a 10 xelins por dia. Seis xelins correspondem mais ou menos a quatro vezes o salário de um trabalhador comum em Londres, sendo que em cada ocupação específica o salário mínimo comum pode sempre ser considerado como o ganho efetivamente auferido pela maioria. Entretanto, por mais exorbitantes 151
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que possam parecer esses salários, se fossem mais do que o suficiente para compensar todos os fatores desagradáveis da profissão, surgiria logo um número tão grande de concorrentes que obrigaria a reduzir esses salários a um nível mais baixo, tanto mais em se tratando de uma ocupação que não tem nenhum privilégio exclusivo. A estabilidade ou instabilidade oferecida por uma ocupação não pode afetar o lucro normal do capital em nenhuma ocupação. Empregar constantemente ou não o capital não depende da ocupação, mas de quem aplica o capital. Em quarto lugar, os salários do trabalho variam de acordo com o grau de confiança — pequeno ou grande — que se deve depositar nos trabalhadores. Os salários dos ourives e joalheiros em toda parte são superiores aos de muitos outros trabalhadores de aptidão igual ou até de habilidade superior; isso em razão dos materiais preciosos que lhes são confiados. Confiamos nossa saúde ao médico, nossa fortuna e às vezes nossa própria vida ao advogado ou procurador. Tal confiança não poderia, seguramente, ser depositada em pessoas de condição menos que mediana ou baixa. Por isso, a remuneração desses profissionais deve ser tal, que lhes permita ocupar na sociedade aquela posição exigida pela confiança tão grande que neles se deposita. O grande dispêndio de tempo e de dinheiro necessário para formar um profissional dessa categoria, se aliado a essa circunstância, aumenta necessariamente ainda mais o preço de seu trabalho. Quando uma pessoa aplica somente seu próprio capital em um negócio, não há lugar para confiança, e o crédito que pode receber de outras pessoas não depende da natureza do seu negócio; mas do conceito que esses têm sobre a fortuna, a probidade e a prudência do investidor do capital. Por isso, as diferenças de taxas de lucro, de um negócio ou tipo de comércio para outro, não podem provir dos diferentes graus de confiança depositada nos comerciantes. Em quinto lugar, o salário do trabalho em ocupações diferentes varia de acordo com a probabilidade ou improbabilidade de sucesso que elas oferecem. Difere muito de uma ocupação para a outra, a probabilidade de que uma determinada pessoa se qualifique um dia para a ocupação para a qual é formada. Na maior parte das ocupações mecânicas, o sucesso é mais ou menos certo, sendo porém muito incerto nas profissões liberais. Coloquemos nosso filho como aprendiz de sapateiro, e poucas dúvidas haverá de que aprenderá a fazer um par de sapatos. Se, porém, o fizermos estudar Direito, veremos que dentre vinte haverá no máximo um cuja eficiência seja suficiente para possibilitar-lhe viver dessa ocupação. Em uma loteria perfeitamente honesta, os que ganham os prêmios deveriam ganhar tudo aquilo que perdem os que não acertaram. Em uma profissão em que vinte fracassam e apenas um tem sucesso, este deveria ganhar tudo aquilo que deveria ser ganho pelos vinte que fracassaram. O assessor jurídico que, talvez já próximo aos 40 anos 152
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de idade, começa a ganhar algo com sua profissão, deve receber a retribuição não somente pela sua própria formação, tão demorada e dispendiosa, mas também a de mais de vinte outros que jamais terão a probabilidade de ganhar alguma coisa como advogados. Por mais exorbitantes que possam parecer os honorários cobrados pelos advogados ou assessores jurídicos, sua retribuição real nunca é igual a isso. Calcule-se, em qualquer lugar específico, o que ganha provavelmente por ano, e o que provavelmente gastam anualmente todos os diferentes trabalhadores comuns, tais como os sapateiros, ou tecelões, e se verá que os ganhos geralmente superam os gastos. Faça-se agora o mesmo cálculo em relação a todos os advogados e estudantes de Direito, em todas as diversas escolas de Direito, em Londres, e se verá que seus ganhos anuais têm muito pouca proporção com seu gasto anual, mesmo que se acredite que os ganhos são grandes e as despesas pequenas. A loteria do Direito está, portanto, muito longe de ser uma loteria perfeitamente honesta; essa, como muitas outras profissões liberais e respeitáveis, é evidentemente mal remunerada, em termos de dinheiro. Não obstante isso, essas profissões mantêm-se ao nível de outras ocupações e, a despeito desses desestímulos, todos os espíritos mais generosos e liberais anseiam por exercê-las. Duas são as causas que contribuem para recomendá-las: primeiro, o desejo da reputação que a carreira lhes promete; segundo, a confiança natural, alimentada mais ou menos por cada um, não somente em suas próprias capacidades, mas também na boa sorte. Sobressair em uma profissão, na qual apenas alguns conseguem atingir a mediocridade, constitui a marca mais decisiva do que se chama gênio ou talento superior. A admiração pública que se dispensa a tais habilidades exímias sempre faz parte da remuneração que merecem: maior ou menor, na medida em que o grau for mais ou menos alto. Em se tratando de uma profissão médica, esta admiração pública representa uma parte considerável da remuneração que lhe é efetivamente paga; uma parte talvez ainda maior no caso de um advogado; no caso de um poeta e de um filósofo, a admiração e o respeito públicos representam quase a remuneração completa que se lhes dá. Existem alguns belos e apreciáveis talentos, que provocam uma espécie de admiração em relação àqueles que os possuem; mas o exercício desses talentos por amor ao lucro é considerado, quer com razão ou por preconceito, como uma espécie de prostituição pública. A remuneração pecuniária, portanto, daqueles que exercem tal profissão deve ser suficiente não somente para pagar o tempo, o trabalho e a despesa de adquirir os talentos, como também para o descrédito que envolve o seu emprego como meio de subsistência. Os honorários exorbitantes pagos a atores, cantores de ópera, dançarinos de ópera etc. estão fundados nesses dois princípios: a raridade e beleza dos talentos e o descrédito de empregá-los dessa maneira. Salta à vista que seria absurdo menosprezar suas pessoas e, não obstante isso, remunerar seus talentos com prodigalidade tão excessiva. Fazendo uma coisa, porém, necessa153
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riamente fazemos a outra. Se a opinião ou o preconceito público algum dia mudassem em relação a essas ocupações, sua remuneração pecuniária logo diminuiria. Seriam mais numerosas as pessoas que as abraçariam, e a concorrência logo reduziria rapidamente o preço de seu trabalho. Esses talentos, embora estejam longe de ser comuns, de forma alguma são tão raros como se imagina. Muitas pessoas os possuem à perfeição, mas desdenham em utilizá-los; e muitas mais seriam as capazes de adquirir tais talentos, se com eles se pudesse fazer algo digno de respeito. O altíssimo conceito que a maior parte das pessoas tem de suas próprias habilidades constitui um mal antigo, salientado pelos filósofos e moralistas de todas as épocas. Tem-se dado pouca atenção à absurda presunção que elas têm quanto à própria sorte. E, no entanto, quando possível, ela é ainda mais ilimitada. Não existe ninguém que, com razoável saúde e disposição, esteja totalmente isento desse defeito. A possibilidade de lucro é mais ou menos supervalorizada por todos, ao passo que a perda é subvalorizada pela maioria, sendo pouquíssimos os que, com razoável saúde e boa disposição, são mais valorizados do que merecem. Que a possibilidade de lucro é naturalmente supervalorizada, conclui-se do sucesso universal das loterias. O mundo jamais viu nem nunca verá uma loteria perfeitamente honesta ou em que o lucro total compense a perda total; porque o empreiteiro nada poderia fazer nesse sentido. Nas loterias do Estado, os bilhetes realmente não valem o preço que é pago pelos assinantes originários, e apesar disso geralmente se vendem no mercado por 20, 30 e às vezes 40%, com pagamento adiantado. A esperança vã de ganhar algum dos grandes prêmios é a única razão dessa demanda. As pessoas mais sóbrias dificilmente consideram loucura pagar uma pequena quantia pela possibilidade de ganhar 10 ou 20 mil libras, embora saibam que mesmo essa pequena quantia é talvez 20 ou 30% mais do que vale a possibilidade. Em uma loteria em que nenhum prêmio passasse de 20 libras não haveria a mesma procura de bilhetes. Para ter melhor probabilidade de ganhar algum dos grandes prêmios, alguns compram vários bilhetes, e outros compram pequenas cotas em número ainda maior. E, no entanto, não existe axioma mais certo em matemática do que o seguinte: quanto mais bilhete se arrisca, tanto maior é a probabilidade de perder. Arrisque-se a comprar todos os bilhetes de uma loteria, e a certeza de perder é absoluta; e quanto maior for o número de bilhetes que se comprar, tanto maior será a certeza de perder. Que o risco de perder é freqüentemente subvalorizado, e dificilmente valorizado mais do que merece, deduzimo-lo do lucro muito modesto das seguradoras. Para fazer seguro contra fogo ou contra os riscos do mar, de toda maneira o prêmio normal deve ser suficiente para compensar as perdas comuns, para pagar as despesas de administração e garantir um lucro igual ao que se teria auferido empregando o capital em qualquer negócio comum. A pessoa que não paga mais do que isso, 154
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evidentemente não paga mais do que o valor real do risco, ou seja, o preço mínimo ao qual pode razoavelmente esperar segurança contra o risco. Mas, enquanto muitos são os que ganharam pouco dinheiro com seguros, muito poucos são os que conseguiram fazer uma grande fortuna com isso; já a partir dessa consideração, parece suficientemente óbvio que normalmente o balanço de lucros e perdas não é mais vantajoso nesse negócio do que em outros negócios comuns com os quais tantas pessoas fazem fortuna. Por mais moderado que seja o prêmio geralmente pago pelo seguro, muitos menosprezam excessivamente o risco, despreocupando-se de pagar por ele. Considerando a média de todo o Reino Unido, 19 casas dentre 20, ou talvez 99 dentre 100 não têm seguro contra fogo. O caso do seguro contra riscos marítimos é mais alarmante para a maior parte das pessoas, e a proporção dos navios assegurados em relação aos não assegurados é muito maior. Muitos são os que navegam em qualquer estação, e mesmo em tempo de guerra, sem qualquer seguro. É possível que às vezes isso não represente nenhuma imprudência. Quando uma grande companhia, ou mesmo um grande comerciante tem 20 ou 30 navios no mar, estes podem, por assim dizer, garantir segurança um ao outro. O prêmio economizado por todos eles pode mais que compensar as perdas, assim como são suscetíveis de enfrentar o curso comum de possibilidades. Todavia, a negligência que se observa no tocante ao seguro de navegação, da mesma forma que com referência a casas, na maioria das vezes não é conseqüência de um cálculo ponderado das vantagens e desvantagens, mas de mera precipitação despreocupada e de menosprezo presunçoso do risco. O menosprezo do risco e a esperança presunçosa do sucesso em nenhuma fase da vida estão mais presentes do que na idade em que os jovens escolhem sua profissão. Nessa idade, o receio do insucesso tem muito pouca capacidade para equilibrar a esperança de sucesso. Isso se evidencia na presteza do povo em geral de alistar-se como soldado ou como marinheiro, do que na ansiedade por parte dos de melhor posição, de entrar nas chamadas profissões liberais. São suficientemente óbvias as perdas às quais está sujeito um soldado comum. Todavia, sem levar em conta o perigo, os voluntários jovens nunca se alistam com tanta prontidão como no início de uma nova guerra; e embora dificilmente tenham pouquíssima oportunidade de ser promovidos, imaginam, em suas fantasias juvenis, mil oportunidades para conquistar honrarias e distinções que nunca ocorrem. Essas esperanças românticas representam o preço total de seu sangue. Sua remuneração é inferior à dos trabalhadores comuns, e seu desgaste físico no serviço ativo é muito maior. A loteria da vida no mar, em seu conjunto, não apresenta tantas desvantagens quanto a do exército. O filho de um bom trabalhador ou artesão pode muitas vezes ser marinheiro com o consentimento de seu pai; mas se se alista como soldado, o faz sempre sem esse consentimento. Outras pessoas enxergam algum jeito dele conseguir algo numa car155
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reira: somente ele acha que nada se pode conseguir abraçando outra carreira. O grande almirante é menos alvo de admiração pública de que o grande general, e o maior sucesso no serviço da Marinha promete uma fortuna e uma reputação menos brilhantes do que igual sucesso em terra. A mesma diferença encontra-se em todos os graus inferiores de promoção nas duas carreiras. Pelas regras da precedência, um capitão da Marinha emparelha com um coronel de Exército, mas aquele não emparelha com este no conceito comum. Assim como os grandes prêmios da loteria são menos numerosos, da mesma forma os prêmios menores são mais numerosos. Por isso, os marujos comuns fazem alguma fortuna e obtêm alguma promoção com mais freqüência que os soldados comuns, sendo a esperança dos grandes prêmios que mais recomenda a carreira. Embora sua habilidade e destreza sejam superiores às de qualquer artesão, e embora toda a sua vida seja um cenário contínuo de dureza e perigo, por todas essas durezas e perigos, enquanto permanecerem na condição de marujos comuns, dificilmente recebem outra remuneração a não ser o prazer de se exercerem na vida dura e vencer os perigos. Seus salários não são superiores aos dos trabalhadores comuns do porto, que regulam o nível dos salários do pessoal da Marinha. Já que estão continuamente navegando de um porto a outro, o pagamento mensal dos que navegam partindo de todos os diversos portos da Grã-Bretanha aproxima-se mais da faixa do que o de quaisquer outros trabalhadores nesses diversos lugares, e o nível que regula o salário de todos os restantes é o vigente no porto para o qual ou a partir do qual navega a maior parte deles. Em Londres, o salário da maior parte das diversas categorias de trabalhadores é mais ou menos o dobro do que é o dos da mesma categoria em Edimburgo. Mas os marujos que navegam a partir do porto de Londres raramente ganham acima de 3 ou 4 xelins por mês mais do que os que navegam a partir do porto de Leith, e muitas vezes a diferença não é tão grande. Em tempo de paz e no serviço comercial, o preço de Londres é de um guinéu até aproximadamente 25 xelins por mês civil. Um trabalhador comum de Londres à taxa de 9 ou 10 xelins por semana, pode ganhar, em um mês civil, de 40 a 45 xelins. Certamente o marujo, além de sua remuneração em dinheiro, recebe alimentação. Contudo, o valor desta talvez nem sempre supere a diferença entre sua remuneração e a do trabalhador comum; e mesmo que às vezes pudesse superar, o excedente não representaria um ganho real para o marujo, pois não pode partilhá-lo com sua esposa e família, que precisa manter em casa, com seu salário. Os perigos e a difícil fuga de uma vida de aventuras, ao invés de desencorajar os jovens, parecem freqüentemente constituir uma carta de recomendação para eles. Uma mãe carinhosa, entre as classes inferiores do povo, muitas vezes tem medo de mandar o filho à escola em uma cidade portuária, com medo de que a vista dos navios e as conversas e aventuras dos marujos o atraiam para o mar. A perspectiva distante dos azares dos quais podemos esperar livrar-nos pela coragem 156
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e habilidade não é desagradável para nós e não aumenta o salário do trabalho em nenhum emprego. Acontece o contrário com aqueles em que a coragem e a habilidade podem não ser de nenhuma valia. Nas ocupações que sabidamente são muito insalubres, os salários são sempre muito elevados. A insalubridade é algo de desagradável, sendo sob esse item que se deve enquadrar seus efeitos sobre os salários do trabalho. Em todos os diversos empregos de capital, a taxa normal de lucro varia mais ou menos de acordo com a certeza ou a incerteza do retorno. Este geralmente é menos incerto no comércio interno do que no comércio exterior, sendo também menos incerto em certos setores do comércio exterior, do que em outros — por exemplo, o retorno é menos incerto no comércio com a América do Norte do que no comércio com a Jamaica. A taxa normal de lucro sempre aumenta mais ou menos, de acordo com o risco. Todavia, não parece variar sempre proporcionalmente ao risco, ou de forma a compensá-lo por completo. As bancarrotas são mais freqüentes nas ocupações mais arriscadas. A mais arriscada de todas as profissões, a dos contrabandistas — embora seja também a mais rendosa, quando as aventuras logram êxito — é o caminho infalível para a bancarrota. A esperança presunçosa de sucesso parece agir aqui, assim como em todas as outras ocasiões, e atrair tantos aventureiros a estas profissões arriscadas, do que a sua competição reduz o lucro abaixo do suficiente para compensar o risco. Para compensá-lo por completo, o retorno normal deve, além do lucro normal do capital, não somente cobrir todas as perdas ocasionais, mas também assegurar um lucro excedente, da mesma natureza que o lucro das seguradoras. Ora, se o retorno normal fosse suficiente para cobrir tudo isso, as bancarrotas não seriam mais freqüentes nessa ocupação do que em outras. Portanto, das cinco circunstâncias que fazem variar os salários do trabalho, somente duas afetam os lucros do capital: o caráter agradável ou desagradável da ocupação, e o risco ou segurança que a caracteriza. Quanto ao caráter agradável ou desagradável, pouca ou nenhuma diferença existe entre a maioria dos diversos tipos de aplicação de capital, mas a diferença é grande entre os diversos tipos de trabalho. Quanto ao risco, embora o lucro normal do capital aumente com ele, nem sempre parece aumentar na mesma proporção que ele. De tudo o que expus, segue-se que, na mesma sociedade ou em suas proximidades, as taxas normais e médias de lucro nos diversos empregos de capital devem estar mais niveladas do que os salários em dinheiro dos diversos tipos de trabalhos. Na realidade, assim é. A diferença entre o salário de um trabalhador comum e o de um advogado ou médico bem empregados é evidentemente muito maior do que a diferença existente entre os lucros normais em dois setores quaisquer de emprego de capital. Além disso, a diferença aparente nos lucros de empregos diferentes de capital é geralmente uma ilusão derivante do fato de nem sempre distinguirmos o que deve ser considerado como salário do que deve ser considerado como lucro. O lucro dos farmacêuticos tornou-se proverbial, denotando alguma 157
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coisa fora do comum. Todavia, esse aparente lucro extraordinário muitas vezes não é outra coisa senão o salário razoável do trabalho. A habilidade exigida de um farmacêutico é algo muito maior e muito mais delicado do que o trabalho de qualquer artesão, sendo muito maior a confiança que nele se deposita. Ele é o médico dos pobres, em todos os casos, e também dos ricos, quando o perigo não é muito grande. Em conseqüência, sua remuneração deve ser consentânea à habilidade que dele se requer e à confiança que nele se deposita, e ela geralmente vem do preço ao qual ele vende seus remédios. Por outro lado, o total de remédios que um bom farmacêutico venderá em um ano, em uma grande cidade, talvez não lhe custe mais do que 30 ou 40 libras. Embora, portanto, ele os venda por 300 ou 400, ou seja, a 1000% a mais, isso muitas vezes pode não representar mais do que o salário razoável de seu trabalho, já que esse é o único meio de que dispõe para cobrar sua mão-de-obra, ou seja, incluindo-a no preço de seus remédios. Como se vê, a maior parte do lucro aparente é representada pelos salários reais, disfarçados em forma de lucro. Em uma pequena cidade portuária, um pequeno merceeiro ganhará 40 ou 50% sobre um capital de 100 libras, enquanto que um grande atacadista, na mesma localidade, dificilmente ganhará 8 ou 10% sobre um capital de 10 mil. O trabalho do merceeiro pode ser necessário para a conveniência dos moradores, e a estreiteza do mercado pode não comportar o emprego de um capital maior. Entretanto, o trabalho de uma pessoa deve não somente dar-lhe o necessário para viver, mas o necessário para viver de acordo com as qualificações que a profissão dela exige. Além de possuir um pequeno capital, ela deve ser capaz de ler, escrever, calcular, e deve também ser um juiz razoável, tendo talvez que emitir julgamento sobre 50 ou 60 tipos diferentes de mercadorias, sobre seus preços, sua qualidade, e os mercados em que pode comprá-las ao preço mais baixo. Em suma, deve ter todo o conhecimento necessário para um grande comerciante, sendo que nada o impede de sê-lo, senão a falta de capital suficiente. Trinta ou 40 libras por ano não podem ser consideradas como remuneração excessiva pelo trabalho de tal pessoa com tantas aptidões. Deduza-se isso do lucro aparentemente grande de seu capital, e pouco mais restará, talvez, do que os lucros normais do capital. Também nesse caso, portanto, a maior parte do lucro aparente representa salários reais. A diferença entre o lucro aparente do varejista e o do atacadista é muito menor na capital do que em cidades pequenas e nos vilarejos. Onde se pode empregar um capital de 10 mil libras em uma mercearia, os salários do trabalho do merceeiro representam um acréscimo insignificante ao lucro real de um capital tão grande. O lucro aparente do varejista rico, portanto, está mais ou menos no mesmo nível daquele do atacadista. É por isso que as mercadorias vendidas no varejo são geralmente tão baratas e freqüentemente muito mais baratas na capital do que nas cidades pequenas e nas aldeias. Por exemplo, os artigos de mercearia geralmente são muito mais baratos; o pão e a carne 158
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comprados do açougueiro muitas vezes têm o mesmo preço. O custo do transporte de artigos de mercearia para uma grande cidade não é maior do que para um vilarejo; entretanto, é muito mais caro transportar cereais e gado, já que a maior parte dessas mercadorias devem ser trazidas de uma distância muito maior. Por isso, sendo igual o custo primário de artigos de mercearia nas duas localidades, os artigos são mais baratos lá onde sobre eles pesa o menor lucro. O custo primário do pão e da carne do açougueiro é maior na cidade grande do que no vilarejo, embora o lucro seja menor; por essa razão nem sempre são mais baratos lá, mas muitas vezes têm o mesmo preço. Tratando-se de artigos como pão e carne de açougueiro, a mesma causa que diminui o lucro aparente aumenta o custo primário. A extensão do mercado, por possibilitar a aplicação de um capital maior, diminui o lucro aparente, mas por exigir suprimentos vindos de uma distância maior, aumenta o custo primário. Na maioria dos casos, essa diminuição de um e o aumento do outro parecem quase contrabalançar-se mutuamente; essa é provavelmente a razão pela qual, embora os preços do trigo e do gado geralmente sejam muito diferentes nas diversas regiões do Reino, os do pão e os da carne de açougueiro geralmente são mais ou menos os mesmos na maior parte do Reino. Embora o lucro do capital, tanto no comércio atacadista como no varejista, seja geralmente menor na capital do que em cidades pequenas e aldeias, apesar disso é freqüente ganhar-se grandes fortunas com capital inicial pequeno no comércio atacadista, ao passo que dificilmente isso ocorre no comércio varejista. Em cidades pequenas e em aldeias, devido à estreiteza do mercado, o comércio nem sempre pode ampliar-se, aumentando-se o capital. Por isso, em tais localidades, embora a taxa de lucro de uma pessoa específica possa ser muito alta, a soma ou montante dos lucros nunca pode ser muito grande, nem, portanto, a soma de seu acúmulo anual. Ao contrário, nas grandes cidades, pode-se ampliar o comércio aumentando o capital, sendo que o crédito de uma pessoa econômica e progressista aumenta com rapidez muito maior do que seu capital. Seu comércio se amplia em proporção com o montante dos dois, e a soma ou montante de seu lucro é proporcional à extensão de seu comércio, sendo que seu acúmulo anual é proporcional ao montante de seu lucro. Entretanto, raramente acontece ganhar-se grandes fortunas; mesmo em cidades grandes, num setor de comércio regular, estabelecido e bem conhecido, mas em conseqüência de uma longa vida industriosa, de economia e atenção. Às vezes é possível ganhar fortunas repentinas em tais lugares, mediante o que se chama comércio de especulação. Com efeito, o especulador não explora nenhuma atividade ou profissão regular, estabelecida ou bem conhecida. Nesse ano ele comercia com trigo, no próximo trabalha com vinho, e no ano seguinte opera com açúcar, tabaco ou chá. Entra em qualquer negócio ao prever que há probabilidade de auferir um lucro acima do normal, e o abandona no momento em que prevê que os lucros desse negócio voltarão ao nível dos outros. Seus lucros e perdas, portanto, não podem manter 159
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nenhuma proporção regular em relação àqueles de quem quer que tenha estabelecido um ramo de negócio bem conhecido. Um especulador audaz pode às vezes adquirir uma fortuna considerável com duas ou três especulações sucessivas, porém tem probabilidade de perder sua fortuna em duas ou três especulações malsucedidas. Esse tipo de comércio só pode ter lugar em grandes cidades. Somente em localidades de grande comércio e correspondência é possível obter as informações necessárias. As cinco circunstâncias acima mencionadas, embora gerem desigualdades consideráveis de salário e de lucro do capital, não produzem nenhuma desigualdade no conjunto global das vantagens e desvantagens, reais ou imaginárias, dos diferentes empregos de mão-de-obra e de capital. A natureza dessas circunstâncias é tal que respondem por um ganho pequeno em alguns e contrabalançam com um ganho grande em outros. Entretanto, para que esta igualdade possa ocorrer no conjunto global de suas vantagens e desvantagens, requerem-se três coisas, mesmo onde exista a liberdade mais completa. Primeiro, os empregos devem ser bem conhecidos e estar bem estabelecidos há muito tempo nas redondezas; segundo, devem estar em seu estado ou condição normal, ou seja, no que se pode chamar seu estado natural; terceiro, devem ser o único ou o principal emprego dos que os ocupam. Primeiro: essa igualdade só pode ocorrer naquelas ocupações que são bem conhecidas e que há muito tempo estão estabelecidas na região. Em paridade com as demais circunstâncias, os salários, via de regra, são mais altos em profissões novas do que em antigas. Quando um planejador tenta estabelecer uma nova manufatura deve primeiro atrair seus operários de outros empregos, oferecendo salários mais altos do que aqueles que esses podem perceber em seu emprego atual, ou salários mais altos do que os que a natureza de seu trabalho de outra forma exigiria, não esquecendo que passará muito tempo até ele poder aventurar-se a reduzi-los ao nível normal. As manufaturas cuja demanda se deve totalmente à moda ou à imaginação mudam continuamente, e raramente duram o suficiente para ser consideradas como manufaturas estabelecidas. Ao contrário, aqueles cuja demanda aumenta principalmente em virtude do uso e da necessidade, são menos suscetíveis de mudança, sendo que a mesma forma ou textura podem continuar a ser objeto de demanda por vários séculos. Portanto, os salários do trabalho serão provavelmente mais altos nas manufaturas do primeiro tipo do que nas do segundo. Birmingham tem sobretudo manufaturas do primeiro tipo, ao passo que Sheffield tem mais das do segundo. Pelo que se afirma, as diferenças de salários entre essas duas cidades devem-se a esta diferença de natureza desses dois tipos de manufatura. A implantação de uma nova manufatura qualquer, de um novo setor de comércio, de uma nova prática na agricultura é sempre uma especulação, da qual o planejador espera auferir lucros extraordinários. 160
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Esses lucros são às vezes muito grandes; em outros casos — talvez mais freqüentes — ocorre bem outra coisa: de modo geral, porém, esses lucros não guardam qualquer proporção em relação a outros antigos comércios na vizinhança. Se o negócio tiver êxito, os lucros costumam ser muito altos no início. Quando sua implantação estiver plenamente estabelecida e for completamente conhecida, a concorrência reduzirá o lucro ao nível de outros investimentos. Em segundo lugar, essa igualdade no conjunto global das vantagens e desvantagens dos diferentes empregos de mão-de-obra e capital só pode ocorrer no estado normal desses empregos, ou seja, o que se pode chamar de estado natural desses empregos. A demanda de quase todos os tipos de mão-de-obra é às vezes maior e às vezes menor do que a costumeira. No primeiro caso, as vantagens da ocupação aumentam acima do nível comum, e no segundo descem abaixo dele. A demanda de mão-de-obra agrícola é maior na época do feno e na época da colheita do que durante a maior parte do ano; ora, os salários sobem com a demanda de mão-de-obra. Em tempo de guerra, quando 40 ou 50 mil marinheiros são obrigados a passar da Marinha mercante para o serviço do rei, a demanda de marinheiros para os navios mercantes necessariamente sobe devido à respectiva escassez, sendo que em tais ocasiões seus salários normalmente sobem de 1 guinéu e 27 xelins, para 40 xelins e 3 libras por mês. Ao contrário, em uma manufatura decadente, muitos empregados, em vez de abandonar seu velho emprego, se satisfazem com salários menores do que os que, em outras circunstâncias, seriam adequados à natureza de seu trabalho. O lucro do capital varia com o preço das mercadorias nas quais ele é aplicado. Quando o preço de alguma mercadoria sobe acima da taxa normal ou média, sobe acima de seu nível adequado também o lucro de pelo menos alguma parte do capital empregado para colocar a mercadoria no mercado; e quando o preço da mercadoria cai, o lucro do capital desce abaixo de sua taxa adequada. Todas as mercadorias são mais ou menos sujeitas a variações de preço, mas algumas delas o são muito mais que outras. Em todas as mercadorias que são produto do trabalho humano, o volume de trabalho empregado cada ano é necessariamente regulado pela demanda anual, de sorte que a produção anual média possa, quanto possível, ser igual ao consumo anual médio. Já se observou que em alguns empregos a mesma quantidade de trabalho produzirá sempre a mesma ou quase a mesma quantidade de mercadorias. Nas manufaturas de linho e de lã, por exemplo, o mesmo número de operários fabricará, cada ano, mais ou menos a mesma quantidade de tecido de linho ou de lã. Por isso, as variações no preço de mercado de tais produtos só podem provir de alguma variação acidental da demanda. Um luto público faz subir o preço do tecido preto. Mas já que é mais ou menos uniforme a demanda da maioria dos tipos de tecidos de linho simples e lã simples, o mesmo acontecerá provavelmente com o preço. Todavia, há outros empregos nos quais o mesmo 161
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volume de trabalho nem sempre produz a mesma quantidade de mercadorias. Por exemplo, o mesmo volume de trabalho produzirá em anos diferentes quantidades muito diferentes de trigo, vinho, lúpulo, açúcar, tabaco etc. Portanto, o preço dessas mercadorias varia não somente de acordo com a demanda, mas também de acordo com as variações — bem maiores e mais freqüentes — da quantidade produzida, e por conseguinte, nesse caso, o preço das mercadorias é extremamente flutuante. Ora, o lucro de alguns comerciantes necessariamente também flutuará de acordo com o preço das mercadorias. É com tais mercadorias que trabalham sobretudo os especuladores. Eles procuram comprar todo o estoque disponível quando prevêem que o seu preço está para subir, e vendê-lo antes que ele provavelmente baixe. Em terceiro lugar, essa igualdade no conjunto global das vantagens e desvantagens dos diversos empregos de mão-de-obra e de capital só pode ocorrer nas ocupações que constituem o único ou principal emprego que as pessoas ocupam. Quando uma pessoa ganha sua subsistência com uma ocupação que não lhe absorve a maior parte do tempo, nos intervalos de lazer ela muitas vezes está disposta a exercer outra ocupação, por um salário inferior ao normalmente exigido pela natureza da atividade. Em muitas regiões da Escócia subsiste ainda um tipo de pessoas denominadas cotters ou cottagers, embora menos freqüente hoje do que há alguns anos. São uma espécie de servos de fora dos donos das terras e dos arrendatários. A remuneração que costumam receber de seus patrões consiste em uma casa, uma pequena horta para legumes, bem como grama, suficiente para alimentar uma vaca, e talvez um ou dois acres de terra arável de má qualidade. Quando o patrão tem necessidade de seu trabalho, dá-lhes além disso 2 celamins de farinha de aveia por semana, valendo aproximadamente 16 pence esterlinos. Durante grande parte do ano o patrão tem pouca ou nenhuma necessidade do trabalho deles, mas o cultivo do pequeno terreno de que dispõem não é suficiente para ocupá-los plenamente. Na época em que essas pessoas eram mais numerosas do que hoje, diz-se que estavam dispostas a dar seu tempo livre a qualquer um, por uma remuneração muito pequena, e que trabalhavam por salários mais baixos que outros empregados. Antigamente, parece que isso era comum em toda a Europa. Em regiões mal cultivadas e pouco habitadas, a maioria dos proprietários e arrendatários dispunham de outro meio para conseguir o contingente extraordinário de mão-de-obra que o trabalho no campo exige em certas épocas do ano. A remuneração diária ou semanal que esses trabalhadores recebiam de seus patrões evidentemente não representava o preço total de seu trabalho, já que sua pequena moradia representava uma parte considerável do preço. Parece, porém, que essa remuneração diária ou semanal foi considerada como a remuneração total paga, por muitos escritores que pesquisaram os preços do trabalho e dos mantimentos em tempos antigos, e que sentiram prazer em apresentar como extremamente baixa essa remuneração. 162
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O produto desse tipo de trabalho, por sua natureza, muitas vezes chega ao mercado com preço inferior àquele que lhe conviria. Em muitas partes da Escócia, pode-se comprar meias tricotadas em casa por preço muito abaixo daquelas feitas no tear, em qualquer lugar que seja. Elas são produzidas por criados e trabalhadores que auferem a maior parte de sua subsistência de algum outro emprego. Anualmente Leith importa mais de 1 000 pares de meias de Shetland, sendo seu preço 5 a 7 pence o par. Em Learwick, pequena capital das ilhas Shetland, asseguraram-me que normalmente se paga 10 pence por dia a um trabalhador comum. Nas mesmas ilhas, tricotam meias de lã ao valor de 1 guinéu ou mais o par. Na Escócia, a fiação de linho é feita por pessoas cujo emprego principal é outro — mais ou menos da mesma forma como se fazem meias com tricô. As pessoas que quisessem ganhar a vida só com uma dessas duas ocupações teriam que contentar-se com uma subsistência muito precária. Na maior parte da Escócia, é uma boa fiandeira a mulher que conseguir ganhar 20 pence por semana. Em países ricos, o mercado geralmente é tão vasto, que qualquer comércio é suficiente para empregar todo o trabalho e capital daqueles que o exercem. É sobretudo em regiões pobres que ocorrem casos em que a pessoa vive de um emprego e ao mesmo tempo aufere algum ganho de outra ocupação. Todavia, na capital de um país muito rico encontra-se o seguinte exemplo, de algo do mesmo tipo. Não existe nenhuma cidade da Europa, acredito, em que o aluguel de casa seja mais caro do que em Londres, e no entanto não conheço nenhuma capital em que se possa alugar um apartamento mobiliado por preço tão baixo. O alojamento não somente é muito mais barato em Londres do que em Paris, mas é mais barato do que em Edimburgo, com o mesmo grau de qualidade; e o que pode parecer mais estranho: o alto preço do aluguel de casa é a causa do baixo preço do alojamento. O alto preço do aluguel de casa em Londres provém não somente daquelas causas que o tornam caro em todas as grandes capitais — o alto preço da mão-de-obra, de todos os materiais de construção, os quais geralmente precisam ser trazidos de longe, e sobretudo o alto preço da renda da terra, já que cada dono de terra age como monopolista, exigindo muitas vezes, por 1 acre de terra de má qualidade em uma cidade, uma renda maior do que a que se pode auferir de 100 acres da melhor terra no campo — mas deriva também, em parte, das maneiras e costumes peculiares do povo, que obrigam o chefe de uma família a alugar uma casa inteira, de cima a baixo. Na Inglaterra, uma casa para morar significa tudo o que está contido debaixo do mesmo teto, ao passo que na França, na Escócia e em muitas outras partes da Europa, geralmente não mais do que um só andar. Um comerciante em Londres é obrigado a alugar uma casa inteira naquele bairro da cidade em que vivem seus clientes. Sua loja é no andar térreo, sendo que ele e sua família dormem no sótão, e o inquilino procura pagar uma parte do aluguel da casa, sublocando os dois andares 163
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do meio a locatários. Ele espera manter sua família com seu negócio, e não com o dinheiro que recebe de seus inquilinos, ao passo que em Paris e Edimburgo as pessoas que alugam imóveis geralmente não dispõem de outro meio de subsistência, sendo que o preço do aluguel deve pagar não somente o aluguel da casa, mas também toda a despesa da família. PARTE SEGUNDA Desigualdades oriundas da política na Europa Essas são as desigualdades, no conjunto global das vantagens e desvantagens dos diversos empregos de mão-de-obra e de capital, geradas necessariamente pela falta de algum dos três requisitos que acabamos de mencionar, mesmo onde existir a mais completa liberdade. Mas a política vigente na Europa, por não deixar as coisas terem seu livre curso, provoca outras desigualdades, muito mais importantes. Três são as maneiras pelas quais a política européia provoca essas desigualdades. Primeiro, limitando a concorrência, em se tratando de alguns empregos, a um número menor de pessoas do que o número daquelas que de outra forma estariam dispostas a concorrer; segundo, aumentando em outros empregos a concorrência, além da que ocorreria naturalmente; terceiro, criando obstáculos à livre circulação de mãode-obra e de capital, tanto de uma profissão para outra como de um lugar para outro. Primeiramente, a política vigente na Europa gera uma desigualdade muito ponderável no conjunto global das vantagens e desvantagens dos diversos empregos de mão-de-obra e de capital, ao restringir a concorrência, em algumas profissões, a um número menor de pessoas do que aquelas que de outra forma poderiam estar dispostas a participar dela. Os privilégios exclusivos das corporações constituem o meio principal de que se lança mão para atingir esse objetivo. O privilégio exclusivo de um comércio incorporado restringe necessariamente a concorrência, na cidade em que ele está estabelecido, àqueles que estão livres dessa ocupação. O requisito necessário geralmente exigido para obter essa liberdade é ter passado por uma aprendizagem na cidade, sob um mestre devidamente qualificado. Por vezes os regimentos internos da corporação regulam o número de aprendizes que cada mestre pode ter e quase sempre determinam o número de anos de aprendizagem que cada aprendiz deve cumprir. A intenção dessas duas normas é limitar a concorrência a um número muito menor do que o que de outra forma estaria disposto a entrar na profissão. A limitação do número de aprendizes restringe-o diretamente, e a longa duração da aprendizagem o restringe de maneira mais indireta, porém com a mesma eficiência, aumentando a despesa do aprendizado. Em Sheffield, nenhum mestre cuteleiro pode ter mais que um aprendiz por vez, por força do regimento interno da corporação. Em 164
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Norfolk e Norwich nenhum mestre tecelão pode ter mais de dois aprendizes, sob pena de pagar 5 libras mensais ao rei. Em qualquer lugar da Inglaterra, ou nos estabelecimentos ingleses, nenhum mestre chapeleiro pode ter mais de dois aprendizes, sob pena de pagar 5 libras por mês, sendo metade para o rei e a outra para aquele que mover processo em algum tribunal. Esses dois regulamentos, embora confirmados por um decreto oficial do Reino, são evidentemente ditados pelo mesmo espírito de corporação sancionado pelo regimento interno de Sheffield. Os tecelões de seda de Londres, após apenas um ano de seu reconhecimento como corporação, sancionaram um regimento interno proibindo a qualquer mestre de ter mais de dois aprendizes ao mesmo tempo. Foi necessário um decreto especial do Parlamento para invalidar esse regimento. Ao que parece, o período normal de aprendizagem determinado para a maioria dos comércios incorporados parece ter sido, antigamente, de sete anos, em toda a Europa. Todas essas incorporações se chamavam antigamente de “universidades” — termo latino efetivamente adequado para qualquer incorporação. A “universidade” dos ferreiros, a “universidade” dos alfaiates etc. são expressões com que deparamos comumente nas velhas patentes de antigas cidades. Quando se estabeleceram pela primeira vez essas corporações que agora se denominam “universidades”, o número de anos que era necessário estudar até obter o grau de mestre de artes e ofícios foi evidentemente copiado da duração do aprendizado para as ocupações comuns, cujas incorporações eram muito mais antigas. Assim como o ter trabalhado sete anos sob a direção de um mestre devidamente qualificado era necessário para que uma pessoa se qualificasse como mestre e pudesse ter aprendizes em uma ocupação comum, da mesma forma era necessário ter estudado sete anos com um mestre devidamente qualificado para se tornar mestre, professor ou doutor (termos sinônimos, antigamente) nas artes liberais e para poder ter alunos ou aprendizes (termos também sinônimos, em sua origem) para ensinar sob sua orientação. Pelo 5º Decreto de Elizabeth, comumente denominado Estatuto de Aprendizagem, ninguém poderia futuramente exercer qualquer comércio, ofício ou mister existente na Inglaterra da época, se não tivesse passado pela respectiva aprendizagem durante o mínimo de sete anos; assim, o que até ali havia sido o regimento de muitas corporações específicas, tornou-se na Inglaterra a lei geral e oficial para todas as ocupações existentes em cidades-mercado. Com efeito, embora os termos do estatuto sejam muito genéricos, parecendo incluir o Reino todo, a interpretação limitou sua aplicação às cidades-mercado, levando-se em conta que em vilarejos uma pessoa pode exercer várias ocupações diferentes sem ter passado por sete anos de aprendizado em cada uma, sendo isto necessário para convivência da população, e porque muitas vezes o número de pessoas não era suficiente para se poder exigir que cada ocupação fosse exercida por trabalhadores preparados para ela. Por efeito de uma interpretação estrita dos termos do estatuto, 165
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a aplicação estatutária foi limitada àquelas ocupações que estavam estabelecidas na Inglaterra antes do 5º Decreto de Isabel, não tendo nunca sido aplicado desde aquele tempo. Essa limitação resultou em uma série de distinções, as quais, se consideradas como normas de política, parecem tão tolas quanto se possa imaginar. Foi decretado, por exemplo, que um fabricante de carruagens não pode fazer ele mesmo as rodas nem contratar oficiais para fazê-las, devendo comprá-las de um mestre carpinteiro de rodas, já que esta última ocupação existia na Inglaterra antes do 5º Decreto de Isabel; por outro lado, um carpinteiro de rodas, embora nunca tivesse passado por uma aprendizagem junto a um fabricante de carruagens, está autorizado a fabricar carruagens ou contratar oficiais para fabricá-las, já que o ofício de fabricante de carruagens não se enquadra no Estatuto, por não ser uma profissão exercida na Inglaterra ao tempo em que o estatuto foi sancionado. Por esse motivo, muitas das manufaturas de Manchester, Birmingham e Wolverhampton não se enquadram no Estatuto, por não serem profissões exercidas na Inglaterra antes do 5º Decreto de Isabel. Na França, a duração da aprendizagem difere conforme as cidades e as profissões. Em Paris, exige-se cinco anos para um grande número de ocupações, mas para muitas delas se requer mais cinco anos de trabalho como oficial, se o interessado quiser ser qualificado para exercer a profissão como mestre. Durante esses cinco anos adicionais, o trabalhador é chamado de companheiro de seu mestre e o termo em si é companheirismo. Na Escócia, não há nenhuma lei geral que regule, com validade geral, a duração da aprendizagem. A duração do aprendizado difere de uma corporação para outra. Quando a duração é longa, uma parte pode geralmente ser remida pagando-se uma pequena multa. Além disso, na maioria das cidades uma multa insignificante é suficiente para comprar a liberdade de entrar em corporação. Os tecelões de roupa de linho e cânhamo, principais manufaturas do país, bem como outros artesãos filiados a elas, os carpinteiros de rodas, os fabricantes de carretéis etc. podem exercer sua profissão em qualquer cidade em que haja uma corporação, sem pagar multa alguma. Em todas as cidades em que há corporação, todos podem vender carne de açougue em qualquer dia permitido da semana. A duração habitual da aprendizagem na Escócia é de três anos, mesmo em certas profissões muito qualificadas; de modo geral não conheço nenhum país europeu onde as leis corporativistas sejam tão pouco opressivas. A propriedade que cada pessoa tem em sua própria ocupação, assim como é o fundamento original de toda e qualquer outra propriedade, da mesma forma constitui a propriedade mais sagrada e inviolável. O patrimônio do pobre reside na força e destreza de suas mãos, sendo que impedi-lo de utilizar essa força e essa destreza da maneira que ele considerar adequada, desde que não lese o próximo, constitui uma violação pura e simples dessa propriedade sagrada. Estamos diante de uma evidente interferência na justa liberdade, tanto do trabalhador como daqueles que poderiam desejar, a qualquer momento, con166
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tratar seus serviços. Assim como se impede o trabalhador de trabalhar como lhe parecer mais indicado, da mesma forma impede-se os outros de empregar a quem considerarem mais oportuno. Julgar se o trabalhador é apto para o emprego é uma função que seguramente pode ser confiada à discrição dos empregadores, que tanto interesse têm no caso. O receio, por parte do legislador, de que os empregadores contratem pessoas inadequadas evidencia-se como uma medida impertinente e opressiva. A instituição de longa aprendizagem não é capaz de oferecer garantia alguma de comercializar mão-de-obra incapaz. Quando isso ocorre, geralmente é por fraude e não por falta de habilidade; ora, nem o aprendizado mais longo é capaz de oferecer garantias contra a fraude. Para evitar esses abusos requer-se normas bem diferentes. A marca identificadora de uma libra esterlina e o carimbo impresso nos tecidos de linho e de lã proporcionam ao comprador uma garantia muito maior do que qualquer estatuto de aprendizagem. O comprador costuma examinar essas marcas identificadoras do dinheiro ou dos tecidos, mas nunca perderá tempo em verificar se os trabalhadores passaram ou não por sete anos de aprendizagem regulamentar. A instituição de longa aprendizagem não tende absolutamente a formar jovens para o trabalho. Um oficial que trabalha por peça ou tarefa provavelmente será laborioso, pois aufere um benefício de cada produto do seu trabalho. Um aprendiz provavelmente será preguiçoso — e quase sempre isso acontece — porque não tem nenhum interesse imediato em comportar-se de outra forma. Nas ocupações inferiores, o prêmio que se espera consiste pura e simplesmente na remuneração do trabalho. Os que chegam antes à condição de desfrutar da recompensa do trabalho são provavelmente os que antes chegam a sentir gosto por ele e cedo adquirem o hábito da aplicação. Um jovem naturalmente contrai aversão ao trabalho, se durante muito tempo não aufere nenhum benefício dele. Os meninos entregues pelas casas de caridade ao aprendizado geralmente estão vinculados por um período superior ao número habitual de anos, e ao saírem da aprendizagem via de regra são extremamente preguiçosos e imprestáveis para o trabalho. O instituto da aprendizagem era totalmente desconhecido entre os antigos. Os deveres recíprocos de mestres e aprendizes perfazem um capítulo considerável em todos os códigos modernos. Ao contrário, o Direito Romano não conhece uma palavra sobre isso. Desconheço qualquer palavra grega ou latina (creio poder arriscar-me a afirmar que não existe nenhuma) que expresse o conceito que hoje atribuímos à palavra “aprendiz”, ou seja, um servo obrigado a trabalhar em uma determinada ocupação em benefício de um mestre, durante certo número de anos, sob a condição de que o mestre lhe ensine essa profissão. As longas aprendizagens são totalmente desnecessárias. As artes que são muito superiores aos ofícios comuns — tais como fazer relógios de parede, de bolso — não encerram nenhum mistério do tipo que exija um longo período de aprendizagem. Com efeito, a invenção propriamente dita dessas maravilhosas máquinas, e mesmo de alguns dos 167
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instrumentos utilizados para fabricá-las, sem dúvida deve ter sido a obra de reflexão e pesquisa profunda e diuturna, podendo com justiça ser catalogada entre as realizações mais felizes do engenho humano. Uma vez inventadas essas máquinas, porém, e uma vez bem entendido seu mecanismo, não se pode honestamente afirmar que para ensinar a um jovem, da maneira mais completa possível, como utilizar os instrumentos e como construir tais máquinas, se requeira mais do que algumas semanas; talvez até se possa dizer que bastam alguns dias de ensinamento. Em se tratando das ocupações mecânicas comuns, certamente o ensino de alguns dias é suficiente. Com efeito, a destreza manual no trabalho, mesmo nas ocupações comuns, não pode ser adquirida sem muito exercício e experiência. Todavia, um jovem haveria de exercitar-se com muito mais aplicação e atenção, se desde o início trabalhasse como oficial, sendo pago proporcionalmente ao pouco serviço que pode executar, e pagando, por sua vez, os materiais que eventualmente estragar por incúria ou inexperiência. Dessa maneira, sua formação geralmente seria mais eficaz, e em qualquer hipótese, menos cansativa e menos dispendiosa. Quem perderia com isso seria o mestre. Ele perderia todos os salários do aprendiz, que agora são dele, durante sete anos seguidos. Ao final, talvez também o aprendiz perderia, pois em uma ocupação tão fácil de ser aprendida ele teria mais concorrentes, e seu salário, quando ele viesse a ser um profissional completo, estaria muito abaixo do nível atual. O mesmo aumento da concorrência reduziria o lucro dos mestres e os salários dos trabalhadores. As profissões, os ofícios e os misteres, todos sairiam perdendo. Mas o público sairia ganhando, pois se assim se fizesse, o produto de todos os artífices e trabalhadores chegaria ao mercado com preços muito mais baixos. Todas as corporações, bem como a maior parte das leis relativas a elas, foram implantadas precisamente para impedir essa redução dos preços, e conseqüentemente a redução dos salários e dos lucros, restringindo aquela livre concorrência que certamente haveria de conseguir esse objetivo. Para constituir uma corporação, em muitas regiões da Europa não se exigia antigamente nenhuma outra autoridade senão a da Câmara Municipal da cidade em que a corporação se estabelecia. Na Inglaterra, porém, exigia-se uma licença do rei. Mas essa prerrogativa da Coroa parece ter-lhe sido reservada mais para extorquir dinheiro do súdito do que para a defesa da liberdade em geral e contra tais monopólios opressivos. Pagando-se uma multa ao rei, parece que se concedia a patente; e quando uma categoria específica de artesãos ou comerciantes consideravam bom agir como uma corporação sem ter patente, essas corporações adulterinas — como se chamavam — nem sempre perdiam o privilégio por essa razão, mas eram obrigadas a pagar anualmente ao rei a permissão de exercer seus privilégios usurpados.129 A inspeção imediata de todas as corporações e dos regimentos 129 Ver MADOX. Firma Burgi, p. 26 etc. 168
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internos que elas pudessem considerar adequados sancionar para seu governo cabia à Câmara Municipal da cidade em que estavam estabelecidas; e qualquer punição que fosse imposta a elas, geralmente procedia não do rei, mas daquela incorporação maior, da qual aqueles subordinados eram apenas partes ou membros. O governo das câmaras municipais estava totalmente nas mãos de comerciantes e artesãos, tendo evidentemente cada categoria deles interesse em evitar que o mercado de cada tipo de mão-de-obra específica ficasse saturado, o que na realidade significava mantê-lo sempre carente de mão-de-obra. Cada categoria porfiava em baixar determinações adequadas para esse propósito e, se isso lhe fosse permitido, de bom grado consentia em que todas as outras categorias profissionais fizessem outro tanto. Em conseqüência desses regulamentos, cada categoria era obrigada a comprar de cada um dos outros, dentro da cidade, as mercadorias de que necessitava, a preço um pouco mais caro do que o faria normalmente. Em compensação, eles, por sua vez, tinham o direito de vender suas próprias mercadorias a preço bem mais alto, de sorte que, até aqui, diziam eles, “dá no mesmo”. Portanto, nos negócios que as diversas categorias faziam entre si no âmbito da cidade, ninguém perdia com essas normas. Nos negócios com o campo, porém, todos ganhavam; ora, é nesses negócios que consiste todo o comércio que sustenta e enriquece cada cidade. Toda cidade, com efeito, tira do campo toda a sua subsistência, todas as matérias-primas para o trabalho. E o pagamento que a cidade faz ao campo é feito sobretudo de duas maneiras: primeiro, reenviando ao campo uma parte desses materiais processados pelas manufaturas, caso em que seus preços são aumentados pelos salários dos trabalhadores e os lucros dos patrões ou empregadores diretos; em segundo lugar, enviando-lhe uma parte dos produtos brutos e manufaturados de outros países ou de regiões distantes do mesmo país, importados à cidade, sendo que também nesse caso os preços originais desses bens são aumentados pelos salários dos transportadores ou marinheiros, e pelos lucros dos comerciantes que os empregam. A vantagem que a cidade aufere pelas suas manufaturas consiste no que ganha no primeiro dos dois ramos de comércio que acabei de mencionar; e a que aufere de seu comércio interno e externo consiste naquilo que ganha no segundo. Os salários dos trabalhadores e os lucros de seus diversos empregadores representam tudo o que é ganho nesses dois tipos de negócio. Por conseguinte, quaisquer regulamentos tendentes a aumentar esses salários e lucros, além do que seriam normalmente, tendem a possibilitar à cidade comprar, com uma quantidade menor de seu trabalho, o produto de uma quantidade maior de trabalho do campo. Essas normas dão aos comerciantes e artesãos da cidade uma vantagem sobre os senhores de terra, arrendatários e trabalhadores do campo, quebrando essa igualdade natural que de outra forma reinaria no comércio executado entre a cidade e o campo. Toda a produção anual do trabalho da sociedade é anualmente dividida entre duas categorias de 169
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pessoas. Mediante essas leis, os habitantes da cidade recebem um quinhão maior do que normalmente lhes caberia, e os do campo têm que contentar-se com um quinhão menor. O preço que a cidade paga realmente pelos mantimentos e matérias-primas que nela entram anualmente é a quantidade de produtos manufaturados e outros bens que ela envia anualmente para fora. Quanto maior for o preço ao qual foram vendidos estes últimos, tanto mais baixo será o preço pelo qual são comprados os primeiros. O trabalho da cidade torna-se mais vantajoso, e o do campo passa a ser menos vantajoso. Que o trabalho executado nas cidades, em toda a Europa, é mais vantajoso do que o executado no campo, sem querermos entrar em cálculos muito detalhados, podemos constatá-lo partindo de uma observação muito simples e óbvia. Em todos os países da Europa encontramos no mínimo 100 pessoas que adquiriram grandes fortunas começando modestamente no comércio e na manufatura — tipo de ocupação específica das cidades — para um que conseguiu enriquecer somente com o trabalho do campo, ou seja, colhendo a produção através dos aprimoramentos e do cultivo da terra. A indústria, portanto, deve ser mais bem recompensada, os salários de trabalho e os lucros de capital evidentemente maiores numa situação do que na outra. Ora, tanto o capital como a mão-de-obra procuram naturalmente os empregos mais vantajosos, acorrendo, portanto, o mais que podem, para a cidade e desertando o campo. Os habitantes de uma cidade, por estarem reunidos num só lugar, podem associar-se com facilidade. Eis por que as ocupações mais insignificantes nas cidades têm formado corporações, em um lugar ou em outro; e mesmo onde nunca houve tal incorporação, geralmente prevalecem nelas o espírito de corporação, o ciúme em relação aos estranhos à profissão, a aversão a admitirem aprendizes ou a transmitirem o segredo da profissão, ensinando-lhes muitas vezes, mediante associações e acordos voluntários, a impedir a livre concorrência, quando não conseguem proibi-la por regimentos internos. As profissões que empregam apenas um número reduzido de trabalhadores, com a máxima facilidade, participam de tais associações. Talvez seja suficiente meia dúzia de cardadores de lã para manter ocupados 1 000 fiadores e tecelões. Combinando entre si não admitir aprendizes, não somente podem monopolizar a profissão, mas também reduzir a manufatura toda a uma espécie de sua escrava, e a elevar o preço de seu trabalho muito acima do que lhe é devido por sua natureza. Os habitantes do campo, dispersos que estão em localidades distantes, não têm facilidade em associar-se. Não somente jamais formaram corporações oficiais, mas também o próprio espírito de corporação nunca prevaleceu entre eles. Nunca se considerou necessária nenhuma aprendizagem para os trabalhos da agricultura, a grande ocupação dos que vivem no campo. E no entanto, depois das belas-artes e das profissões liberais, não existe talvez nenhuma ocupação que exija uma 170
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variedade tão grande de conhecimento e de experiência. Os inúmeros volumes que se têm escrito sobre a matéria em todos os idiomas podem convencer-nos de que, entre as nações mais sábias e mais instruídas, a agricultura jamais foi considerada uma ocupação tão fácil de ser aprendida. Seria inútil pretender coligir de todos esses volumes o conhecimento das operações variadas e complexas da profissão agrícola, possuído geralmente até pelo agricultor comum, por maior que seja o menosprezo com o qual alguns autores desprezíveis falam do assunto. Ao contrário, dificilmente existe algum ofício mecânico normal cujas operações não possam ser explicadas de forma mais completa e mais clara em um simples panfleto de pouquíssimas páginas, ilustrado com dizeres e figuras. Na história das artes atualmente publicada pela Academia Francesa de Ciências, várias dessas ocupações mecânicas são efetivamente explicadas dessa forma. Além disso, a direção das operações agrícolas, devendo variar conforme as mudanças meteorológicas e em decorrência de muitos outros eventos e circunstâncias, requer muito mais capacidade de julgamento e discrição do que a gestão das operações mecânicas, que são sempre as mesmas, ou quase sempre as mesmas. Não somente a arte do agricultor e a direção geral das operações da agricultura, mas também muitos setores inferiores do trabalho do campo requerem muito maior habilidade e experiência do que a maioria dos ofícios mecânicos. A pessoa que trabalha com latão e ferro, trabalha com instrumentos e com materiais cuja têmpera é sempre a mesma, ou aproximadamente a mesma. Ao contrário, a pessoa que ara a terra com vários cavalos ou bois, trabalha com instrumentos cuja saúde, força e disposição diferem muito, de acordo com as circunstâncias. Também a condição dos materiais é tão variável quanto a dos instrumentos com os quais trabalha, sendo que ambos precisam ser manuseados com muito bom senso e discrição. Ao arador comum, embora geralmente considerado como o protótipo da ignorância e da estultície, dificilmente falta discernimento e discrição. Certamente, ele está menos habituado ao intercâmbio social do que o mecânico que vive na cidade. Sua voz e seu falar são menos polidos e mais difíceis de serem entendidos por aqueles que não estão habituados a eles. Todavia, pelo fato de estar ele habituado a lidar com uma variedade maior de objetos, sua inteligência geralmente é muito superior à do mecânico da cidade, o qual desde a manhã até à noite concentra toda a sua atenção em uma ou duas operações muito simples. Até onde vai a superioridade real das pessoas mais simples do campo em confronto com os habitantes da cidade, sabem-no todos os que, por curiosidade ou em virtude de sua ocupação, tiveram oportunidade de entrar em contato com os dois tipos de pessoa. Eis por que na China e no Industão se afirma que tanto a classe social como os salários dos trabalhadores do campo são superiores aos da maior parte dos artesãos e manufatureiros. O mesmo aconteceria provavelmente em toda parte, se isso não tivesse sido impedido pelas leis e pelo espírito de corporação. A superioridade que o trabalho das cidades apresenta em todos 171
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os países da Europa, em relação ao trabalho do campo, não é devida exclusivamente às corporações e suas leis. Ela é também apoiada por muitos outros regulamentos. Visam a esse objetivo todas as altas taxas impostas a manufaturados estrangeiros e a todos os bens importados. As leis das corporações possibilitam aos habitantes das cidades aumentar seus preços, em temor de preços mais baixos por parte da concorrência de seus próprios conterrâneos. Os regulamentos lhes proporcionam, outrossim, segurança contra a concorrência estrangeira. Em última análise, a elevação dos preços provocada por ambos é paga pelos proprietários de terras, pelos arrendatários e pelos trabalhadores do campo, que raramente se têm oposto à formação desses monopólios. Os que trabalham na terra geralmente não têm inclinação nem capacidade para fazer parte de tais conluios, sendo que o clamor e os sofismas dos comerciantes e dos manufatores facilmente os persuadem de que o interesse particular de um partido — aliás, uma parcela subordinada da sociedade — representa o interesse geral da nação. Na Grã-Bretanha, a superioridade do trabalho das cidades em relação ao do campo parece haver sido maior em épocas antigas do que hoje. Atualmente, os salários dos trabalhadores do campo aproximam-se mais dos salários dos operários das fábricas, sendo que também os lucros do capital empregado na agricultura se aproximam mais dos lucros do capital empregado no comércio e na manufatura em relação ao que se afirma ter existido no século passado ou no início deste. Esta mudança pode ser considerada como conseqüência necessária, embora muito tardia, dos estímulos extraordinários concedidos ao trabalho nas cidades. O capital acumulado nas cidades por vezes chega a ser tão elevado, que não pode mais ser aplicado com o antigo lucro e àquele tipo de trabalho que lhe é peculiar. Esse trabalho tem seus limites, como qualquer outro, e o aumento do capital, pelo fato de aumentar a concorrência, diminui o lucro. A redução do lucro nas cidades força o capital a migrar para o campo, onde, criando uma nova demanda de mão-de-obra agrícola, necessariamente aumenta seus salários. O capital como que se expande através das regiões agrícolas, e ao ser aplicado na agricultura, é em parte restituído ao campo, donde havia originariamente fugido para acumular-se nas cidades, em prejuízo da economia rural. Mais adiante, procurarei mostrar que em toda parte, na Europa, os maiores progressos no campo são devidos à volta do capital das cidades para a economia rural; ao mesmo tempo, procurarei mostrar que, embora alguns países tenham dessa forma atingido um grau apreciável de riqueza, este avanço é em si mesmo necessariamente lento, incerto, estando sujeito a ser perturbado e interrompido por inúmeros eventos, e sob todos os aspectos é contrário à ordem da natureza e à razão. No terceiro e quarto livros desta obra procurarei explicar da maneira mais completa e clara possível os interesses, os preconceitos, as leis e os costumes que levaram a isso. As pessoas da mesma profissão raramente se reúnem, mesmo que seja para momentos alegres e divertidos, mas as conversações 172
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terminam em uma conspiração contra o público, ou em algum incitamento para aumentar os preços. Efetivamente, é impossível evitar tais reuniões, por meio de leis que possam vir a ser cumpridas e se coadunem com espírito de liberdade e de justiça. Todavia, embora a lei não possa impedir as pessoas da mesma ocupação de se reunirem às vezes, nada deve fazer no sentido de facilitar tais reuniões e muito menos para torná-las necessárias. Essas reuniões são facilitadas por um regulamento que obriga todos os pertencentes à mesma profissão a inscreverem seus nomes e endereços em um registro público. Isso faz com que possam entrar em contato entre si pessoas que de outra forma nunca se teriam conhecido, dando a cada um o endereço em que pode localizar qualquer outra pessoa do grupo. O que torna tais reuniões necessárias é um regulamento que possibilita aos membros da mesma profissão a se imporem taxas, com o objetivo de cuidar do sustento de seus pobres, seus doentes, suas viúvas e órfãos, inspirando em todos um interesse comum. Uma incorporação não somente torna essas reuniões necessárias, como ainda faz com que as decisões da maioria sejam obrigatórias para todos. Em uma profissão livre, não é possível estabelecer uma combinação ou acordo efetivo a não ser mediante o consentimento unânime de todos, não podendo esse acordo perdurar a não ser enquanto cada um continuar a manter seu consentimento. Ao contrário, em uma corporação, a maioria pode sancionar um regimento com punições adequadas, as quais limitem a concorrência de maneira mais eficiente e mais durável do que qualquer outra combinação voluntária. Carece de qualquer fundamento a pretensão de que as corporações são necessárias para o melhor funcionamento das profissões e do comércio. A inspeção real e efetiva exercida sobre um trabalhador não é a da sua corporação, mas a de seus clientes. É o medo de perder o emprego que limita as fraudes e corrige as negligências do trabalhador. Uma corporação exclusiva necessariamente enfraquece a força dessa inspeção, obrigando a contratar determinados trabalhadores, quer se comporte bem ou mal. É por essa razão que em muitas cidades grandes, com muitas corporações, não se consegue encontrar trabalhadores razoáveis, mesmo em algumas das profissões mais indispensáveis. Se alguém quiser que seu trabalho seja razoavelmente executado, isso deve ser feito nos subúrbios, onde os trabalhadores, não tendo nenhum privilégio exclusivo, só dependem do próprio caráter, devendo-se, então, introduzi-lo na cidade como puder. É dessa maneira que a política adotada na Europa, limitando a concorrência em algumas profissões a um número menor do que aquele que de outra forma participaria da concorrência, provoca uma desigualdade muito grande no conjunto global das vantagens e desvantagens dos diversos empregos de mão-de-obra e de capital. Em segundo lugar, a política européia, ao aumentar, em algumas profissões, a concorrência além do que ocorreria naturalmente, gera 173
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uma outra desigualdade, do tipo oposto, no conjunto das vantagens e desvantagens dos diversos empregos de mão-de-obra e de capital. Tem-se atribuído tamanha importância a que seja educado um número adequado de jovens para certas profissões, que às vezes o público ou a piedade dos fundadores privados tem estabelecido muitos pensionatos, escolas, bolsas de estudo etc. para essa finalidade — o que faz com que a essas profissões acorra um número de pessoas muito maior do que os que normalmente as abraçariam. Em todos os países cristãos, creio que a formação da maior parte dos eclesiásticos é paga dessa forma. Pouquíssimos são totalmente formados às próprias expensas. Acontece então que a educação longa, cansativa e dispendiosa desses elementos nem sempre lhes proporcionará uma remuneração conveniente, uma vez que a igreja está cheia de pessoas que, para conseguir emprego, estão dispostas a aceitar uma remuneração inferior àquela à qual lhes daria direito a formação que tiveram; dessa forma, a concorrência dos pobres sempre absorve e desvia a remuneração dos ricos. Sem dúvida, seria indecente comparar um pároco ou um capelão a um oficial de qualquer profissão comum. Contudo, o pagamento dado a um pároco ou a um capelão pode ser considerado, sem exagero, do mesmo valor que o salário de um desses diaristas. Os três são pagos de acordo com o contrato eventualmente feito com seus respectivos superiores. Até depois da metade do século XIV, 5 merks,130 contendo praticamente a mesma quantidade de prata que dez libras do nosso dinheiro atual, representaram, na Inglaterra, o salário normal de um pároco ou de um padre coadjutor, como podemos depreender dos decretos de vários concílios nacionais. Na mesma época, verificamos que a remuneração de um mestre pedreiro era de 4 pence diários, contendo a mesma quantidade de prata que um xelim dos nossos dias, sendo que um oficial pedreiro recebia 3 pence por dia, iguais a 9 pence em nosso dinheiro atual.131 Como se vê, os salários desses dois profissionais, se os considerarmos como constantes, eram muito superiores aos de um pároco. O salário do mestre pedreiro, supondo que este ficasse desocupado durante uma terça parte do ano, seria perfeitamente igual ao do eclesiástico. Com efeito, o Decreto 12º da Rainha Ana, no capítulo 12, estabelece o seguinte: “Já que, em vários lugares os párocos têm recebido uma remuneração insuficiente para sua manutenção e para seu estímulo, fica facultado ao bispo, decretar de próprio punho e com seu selo, uma certa remuneração suficiente ou máxima não acima de 50 e não abaixo de 20 libras por ano”. Atualmente, consideram-se 40 libras por ano como sendo uma remuneração muito boa para um pároco, mas apesar desta lei do parlamento, existem muitos párocos recebendo menos de 20 libras por 130 Antiga moeda de prata da Escócia, equivalente a 13 s 4 d. (N. do E.) 131 Ver Statute of Labourers, p. 25, 3ª ed. 174
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ano. Há em Londres oficiais de sapateiro ganhando 40 libras por ano, sendo difícil entrar nessa cidade algum trabalhador operoso que não ganhe mais do que 20 libras. Essa soma realmente não ultrapassa o que muitas vezes ganham os trabalhadores comuns em muitas paróquias do país. Sempre que a lei tentou regular os salários dos trabalhadores, foi mais para baixá-los do que para aumentá-los. Todavia, a lei tentou muitas vezes levantar os salários dos eclesiásticos e, para a dignidade da Igreja, tentou obrigar vigários administradores a lhes pagar mais do que a mísera manutenção com a qual às vezes tinham que contentar-se. Nos dois casos a lei parece ter sido sempre ineficaz, não sendo capaz de elevar os salários dos eclesiásticos nem de reduzir os salários dos trabalhadores ao nível desejado; isto porque a lei nunca foi capaz de impedir os eclesiásticos de aceitar menos que aquilo a que por lei teriam direito, devido à indigência de sua situação e à multidão de concorrentes; da mesma forma, a lei nunca foi capaz de impedir os outros — os demais trabalhadores — de receberem mais, devido à concorrência contrária daqueles que esperavam auferir lucro ou prazer do fato de os empregarem. Os grandes benefícios e outras dignidades eclesiásticas sustentam a honra e o prestígio da Igreja, não obstante a situação precária de alguns seus membros inferiores. Também o respeito público votado a essa profissão compensa, de alguma forma, a insignificância da remuneração pecuniária. Efetivamente, na Inglaterra, e em todos os países católico-romanos, a loteria da Igreja é muito mais vantajosa do que o necessário. O exemplo das Igrejas da Escócia, de Genebra e de várias outras Igrejas protestantes demonstra que, em uma profissão tão respeitável, na qual existem tantas facilidades para a formação, a esperança de benefícios muito mais modestos será capaz de atrair para as sacras ordens um número suficiente de homens instruídos, decentes e respeitáveis. Em profissões nas quais não existem benefícios, tais como o Direito e a Medicina, se um contingente igual de pessoas fosse formado às expensas públicas, a concorrência logo cresceria a tal ponto que a remuneração pecuniária desses profissionais baixaria muito; poder-se-ia chegar à situação de que já não valeria a pena os pais formarem um filho às suas custas para essa profissão. Os meninos e rapazes ficariam então inteiramente abandonados à formação dada pelos institutos de caridade e devido ao grande número e às necessidades, teriam que contentar-se com uma remuneração muito miserável, para degradação completa das profissões do Direito e da Medicina, hoje tão respeitadas. A estirpe, não próspera, das pessoas comumente chamadas homens de letras está hoje mais ou menos na mesma situação em que estariam os advogados e os médicos, na hipótese que acabamos de apontar. Na maior parte da Europa, a maioria desses letrados foram educados para a Igreja, porém foram impedidos de abraçar as ordens sacras por motivos diversos. Por isso, geralmente foram formados às expensas públicas, e o seu número em toda parte é tão grande, que a remuneração financeira de seu trabalho geralmente é miserável. 175
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Antes da invenção da imprensa, a única ocupação na qual uma pessoa de letras podia empregar seus talentos era a de professor público ou particular, ou seja, transmitindo a outros os conhecimentos curiosos e úteis por ele previamente adquiridos; esse é ainda um ofício certamente mais digno, mais útil e, de modo geral até mais rendoso do que o ofício de livreiro, profissão essa gerada pela invenção da imprensa. O tempo e o estudo, o talento, o conhecimento e a aplicação necessários para qualificar um eminente mestre de ciências são no mínimo iguais aos exigidos para formar os grandes advogados e médicos. No entanto, a remuneração costumeira do professor ilustre não tem proporção alguma com a do advogado ou a do médico; isso porque a profissão de professor está apinhada de pobres formados às expensas do público, ao passo que entre os advogados e médicos são muito poucos os que não se tenham formado às próprias custas. Todavia, a remuneração costumeira dos professores públicos e particulares seria sem dúvida ainda menor, se não se tivesse excluído do mercado a concorrência daqueles letrados ainda mais pobres, que escrevem apenas para ganhar o pão. Antes da invenção da imprensa, os termos “letrado” e “mendigo” parecem ter sido mais ou menos sinônimos. Ao que parece, os reitores das universidades muitas vezes outorgavam a seus professores e alunos licença para mendigar. Nos tempos antigos, antes de se estabelecerem quaisquer instituições de caridade para a formação de pobres para essas profissões de letrados, parece ter sido muito melhor a remuneração paga aos professores ilustres. Isócrates, no chamado discurso contra os sofistas, repreende a incoerência dos professores de seu tempo: “Eles fazem as promessas mais estupendas a seus alunos” — diz ele — “e lhes ensinam a serem sábios, felizes e justos, e como recompensa por um serviço tão importante estipulam a miserável remuneração de 4 ou 5 minas.132 Os que ensinam a sabedoria” — continua ele — “devem ser eles mesmos sábios; ora, uma pessoa disposta a vender um serviço desses por tal preço seria condenada por insanidade”. Certamente Isócrates não pretende exagerar na remuneração, podemos estar certos de que ela não era menor do que ele descreve. Quatro minas eram iguais a £ 13 6 s 8 d, e 5 minas representavam £ 16 13 s 4 d. Portanto, não menos do que essa última soma deve ter sido a remuneração usual paga naquela época aos mestres mais eminentes de Atenas. O próprio Isócrates exige de cada aluno 10 minas, ou seja, £ 33 6 s 8 d. Quando era professor em Atenas, afirma-se que tinha 100 alunos. Entendo que esse era o número de alunos a quem ele ensinava em um único turno, ou seja, o número de pessoas que freqüentavam um de seus cursos, contingente esse que não parece ser 132 Unidade de peso e moeda da Grécia Antiga, equivalente a 100 dracmas. (N. do E.) 176
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extraordinário para um professor de tanto renome, em uma cidade grande, sendo ainda que a matéria por ele ensinada era a Retórica, uma das ciências mais em voga na época. Portanto, para cada curso deve ter ganho 1 000 minas, ou seja, £ 3 333 6 s 8 d. Em outra passagem, Plutarco diz ter sido de 1 000 minas, portanto, o seu Didactron, ou seja, o preço habitual pago pelo ensino. Muitos outros ilustres professores dessa época parecem ter ganho grandes fortunas. Górgias fez um presente ao templo de Delfos, oferecendo sua própria estátua em ouro maciço, embora não deva ter sido uma estátua de tamanho natural, presumo. Seu padrão de vida, assim como o de Hípias e Protágoras, dois outros ilustres professores da época, é descrito por Platão como sendo esplêndido, chegando à ostentação. Afirma-se que o próprio Platão vivia na magnificência. Aristóteles, depois de ter sido tutor de Alexandre, recebendo para isto uma remuneração muito elevada, do próprio Alexandre como de seu pai Filipe — como é atestado por todos —, não obstante isso, considerou valer a pena regressar a Atenas, para reassumir a sua escola. Professores de ciências provavelmente eram, a esse tempo, menos freqüentes do que uma ou duas gerações posteriores, quando a concorrência provavelmente reduziu ligeiramente o preço de seu trabalho e a admiração de que eram alvo. Ao que parece, porém, os mais eminentes deles desfrutavam de um grau de consideração muito superior à que hoje se dispensa a qualquer desses profissionais. Os atenienses enviaram o acadêmico Carnéades e o estóico Diógenes a Roma, na qualidade de emissários especiais; embora Atenas não estivesse mais em seu antigo esplendor, ainda constituía uma república independente e considerável. Carnéades era babilônio de nascimento, e portanto, já que nunca houve povo tão zeloso como os atenienses a ponto de não admitir estrangeiros para cargos públicos, a consideração que tinham por esse sábio deve ter sido muito grande. Essa desigualdade de remuneração, no global, talvez seja mais vantajosa do que prejudicial ao público. Pode até certo ponto degradar a profissão de um professor oficial, mas o baixo preço da formação literária representa uma vantagem que supera de muito esse pequeno inconveniente. Além disso, o público poderia auferir benefício ainda maior, se a constituição ou estrutura dessas escolas e institutos fosse mais razoável do que é no presente, na maior parte da Europa. Em terceiro lugar, a política européia, pelo fato de dificultar a livre circulação da mão-de-obra e do capital, tanto de um emprego para outro como de um lugar para outro, em certos casos provoca uma desigualdade muito inconveniente no conjunto das vantagens e desvantagens dos diferentes empregos de mão-de-obra e de capital. O Estatuto da Aprendizagem dificulta a livre circulação de mãode-obra de um emprego para outro, até no mesmo lugar. E os privilégios exclusivos das corporações dificultam essa livre circulação de um lugar para outro, até na mesma ocupação. Acontece com freqüência que em uma manufatura se pagam altos salários aos trabalhadores, ao passo que os de outra precisam conten177
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tar-se com o indispensável para a subsistência. A primeira ocupação está em estado de progresso, o que faz com que seja contínua a demanda de nova mão-de-obra; ao contrário, a segunda está em declínio, o que faz aumentar ainda mais a disponibilidade de mão-de-obra, já superabundante. Essas duas manufaturas às vezes podem estar localizadas na mesma cidade, e às vezes na mesma região circunvizinha, não havendo possibilidade alguma de ajudarem uma à outra, pois no primeiro caso isso é impedido pelo estatuto da aprendizagem, e no segundo é impedido tanto pelo estatuto da aprendizagem como pelos privilégios exclusivos das corporações. Ora, em muitas manufaturas diferentes, as operações executadas são tão semelhantes, que os trabalhadores com facilidade poderiam mudar de ocupação entre si, se isso não fosse impedido por essas leis absurdas. Assim, por exemplo, a arte de tecer linho e seda comuns são praticamente quase a mesma coisa. A arte de tecer lã comum é algo diverso, porém, essa diferença é tão insignificante que tanto um tecelão de linho como um tecelão de seda podem em poucos dias transformar-se em razoável tecelão de lã. No caso, portanto, de alguma dessas três manufaturas de capital importância vir a entrar em declínio, os trabalhadores poderiam encontrar emprego nas duas outras que estivessem em condições mais prósperas; além disso, os salários não subiriam demais na manufatura próspera, nem desceriam demais na decadente. A manufatura do linho, na Inglaterra, está efetivamente aberta a todos, em virtude de um estatuto peculiar, todavia ela não é muito cultivada na maior parte do país, não podendo, portanto, oferecer grandes possibilidades a trabalhadores egressos de outras manufaturas decadentes; esses trabalhadores, em toda parte onde vigora o estatuto da aprendizagem, não têm outro recurso senão amparar-se nas paróquias, ou então, passar a operar como trabalhadores comuns, trabalhos esses para os quais, devido a seus hábitos, estão muito menos qualificados do que para qualquer outro ofício semelhante ao que tiveram que abandonar. Eis por que geralmente acabam refugiando-se nas paróquias. Tudo o que dificulta a livre circulação de mão-de-obra de uma profissão para outra, dificulta igualmente a circulação do capital de um emprego para outro, uma vez que o volume de capital que se pode aplicar em determinado setor depende muito da quantidade de mãode-obra que o setor pode empregar. Todavia, as leis das corporações criam obstáculos menos à livre circulação de capital de um emprego para outro, do que à livre circulação da mão-de-obra. Em toda parte, é muito mais fácil um comerciante rico obter o privilégio de exercer o comércio em uma cidade em que existe corporação, do que um artesão pobre obter o privilégio de trabalhar nessa cidade. Segundo acredito, são comuns a todos os países da Europa os obstáculos colocados pelas leis das corporações à livre circulação de mão-de-obra. Entretanto, quanto saiba, são peculiares à Inglaterra os obstáculos colocados pela legislação sobre os pobres. Esse obstáculo consiste na dificuldade que o pobre tem para conseguir estabelecer-se 178
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ou mesmo para ser admitido a exercer sua profissão em qualquer paróquia a não ser a que pertence. As leis das corporações só impedem a livre circulação de artesãos e operários de manufatura. Ao contrário, a dificuldade de estabelecer-se cria obstáculo até mesmo à livre circulação da mão-de-obra comum. Pode ser útil expor algo sobre a origem, a evolução e o estado atual dessa desordem, talvez a maior de todas, existente na política da Inglaterra. Quando, em virtude da destruição dos mosteiros, os pobres foram privados do recurso à caridade dessas casas religiosas, depois de algumas tentativas infrutíferas de solucionar o problema, o Decreto 43, capítulo 2, da Rainha Isabel, determinou que cada paróquia deveria cuidar de seus próprios pobres, e que anualmente se nomeasse inspetores para os pobres; esses, juntamente com os fabriqueiros das Igrejas, deveriam recolher quantias de dinheiro para assistência aos pobres, por meio de uma taxa paroquial. Esse estatuto impunha a cada paróquia em particular a necessidade de cuidar ela mesma de seus próprios pobres. Em conseqüência, passou a assumir uma certa importância esta questão: quem deve ser considerado como os pobres de cada paróquia? Depois de algumas incertezas e variações, este problema foi resolvido pelos Decretos 13 e 14, de Carlos II, os quais estabelecem que 40 dias de moradia ininterrupta garantiam a qualquer pessoa a residência em uma paróquia, acrescentando, porém, que, dentro desse período, se os curadores de igreja ou os zeladores dos pobres apresentassem alguma queixa contra o recém-chegado, dois juízes de paz tinham o direito legal de removê-lo novamente para a paróquia donde havia saído, a menos que ele alugasse um alojamento de 10 libras por ano, ou então estivesse em condições de oferecer à nova paróquia algum valor que os referidos juízes de paz considerassem suficiente para desonerar financeiramente a paróquia. Pelo que se afirma, esse estatuto deu margem a fraudes. Havia funcionários que às vezes subornavam os pobres de sua paróquia e os convenciam a se estabelecer em outra, mantendo-os porém nessa outra paróquia em situação clandestina durante os quarenta dias necessários para adquirirem o direito de residência, visando com isso desonerar a paróquia à qual pertenciam originariamente os pobres. Eis por que o Decreto 1, de Jaime II, determinou que os quarenta dias necessários para se obter a residência deviam ser contados somente a partir do momento em que o respectivo pobre entregasse a um dos curadores ou dos zeladores da nova paróquia uma notificação por escrito, indicando o seu endereço e o número de pessoas que compunha sua família. Entretanto, ao que parece, os oficiais paroquiais nem sempre eram mais honestos em relação à sua paróquia do que haviam sido em relação a outras, e por vezes se mostravam coniventes com tais intrusões, recebendo a notificação mas não adotando as medidas adequadas depois disso. Já que, portanto, supostamente cada membro da paróquia tinha o máximo interesse em não onerar mais os custos de sua paróquia com novos “intrusos”, o Decreto 3, de Guilherme III, 179
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sancionou que os quarenta dias deveriam ser contados somente a partir da publicação da notificação por escrito, na respectiva igreja, no domingo imediatamente após o serviço divino. “Tudo somado — afirma o Dr. Burn — é muito raro alguém conseguir essa residência, decorridos quarenta dias contínuos de moradia após a publicação escrita da notícia; o intento da lei não é tanto favorecer a concessão de novos direitos de residências, mas impedi-la, criando obstáculos a entradas clandestinas; com efeito, a notificação é uma arma a mais para a paróquia poder remover o novo candidato. Entretanto, se a situação de uma pessoa é tal, que é duvidoso se pode ou não ser removida, ou a notificação obriga a paróquia a conceder a residência sem contestação, deixando que o cidadão continue a residir ali os quarenta dias, ou então, obriga a remover o candidato da paróquia, mediante denúncia e processo judicial”. Conseqüentemente, esse estatuto praticamente tornou impossível a qualquer pobre a obtenção de uma nova residência pelo velho sistema da moradia, durante quarenta dias consecutivos na nova paróquia. Contudo, para não fechar totalmente a possibilidade de pessoas comuns de uma paróquia conseguirem residência em outra, o estatuto oferecia quatro outros meios para conseguir isto, sem ter que entregar uma notificação e sem necessidade de publicação da mesma. O primeiro consistia em comprometer-se a pagar as taxas paroquiais, e pagá-las efetivamente; o segundo, em ser eleito para um ofício paroquial anual, servindo nessa função durante um ano; o terceiro, passando por uma aprendizagem na paróquia; e o quarto, sendo contratado para o serviço da paróquia durante um ano e permanecendo no mesmo serviço durante todo o referido ano. Pelos dois primeiros meios, nenhum pobre podia obter uma residência, a não ser por consentimento da paróquia inteira, a qual estava perfeitamente consciente das conseqüências financeiras decorrentes da adoção de um novo habitante que não dispusesse de outro patrimônio senão seu próprio trabalho. Por outro lado, mesmo os dois últimos meios estavam praticamente fechados a um homem casado. Dificilmente um aprendiz pode ser casado; aliás, a lei prescreve expressamente que não se dê residência a nenhum casado, através de contratação por um ano. O efeito principal da introdução da concessão de residência por serviço foi abolir em grande parte o velho costume de contratar para um ano, costume esse anteriormente tão habitual na Inglaterra, que mesmo hoje, se não houver cláusula específica que diga o contrário, a lei entende que todo empregado é contratado por um ano. Todavia, nem sempre os mestres estão dispostos a conceder residência a seus empregados, contratando-os dessa maneira; e os próprios empregados nem sempre estão dispostos a ser contratados dessa forma, pois, já que uma nova residência implica em cancelamento das anteriores, os empregados poderiam vir 180
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a perder sua residência original nos lugares em que nasceram — moradia de seus pais e de seus parentes. É evidente que nenhum trabalhador independente, quer seja operário ou artesão, tem probabilidade de obter uma nova residência, seja por aprendizagem ou por serviço. Se, portanto, tal pessoa levasse sua atividade para uma nova paróquia, estaria sujeita a ser afastada, por mais saudável e operosa que fosse, ao arbítrio de qualquer curador de igreja ou inspetor, a menos que pagasse 10 libras por ano — coisa impossível para quem vive exclusivamente de seu trabalho — ou então pudesse oferecer uma garantia financeira considerada por dois juízes de paz como suficiente para desonerar financeiramente a paróquia. A lei deixava a critério da pessoa o tipo de garantia a ser oferecida: na realidade, porém, não se tinha condições de exigir menos de 30 libras, pois era lei que mesmo a compra de uma propriedade livre e alodial de menos de 30 libras não assegura a uma pessoa uma nova residência, por não ser suficiente para desonerar financeiramente a paróquia. Ora, isto é uma garantia que dificilmente pode ser oferecida por uma pessoa que vive de seu trabalho; aliás, na realidade muitas vezes se exige uma garantia bem superior. Com o objetivo de restaurar de alguma forma aquela circulação livre de mão-de-obra, impossibilitada quase totalmente por esses diversos estatutos, partiu-se para a invenção dos certificados. Os Decretos 8 e 9, de Guilherme III, determinaram que toda pessoa que trouxesse um certificado da última paróquia dizendo que possuía residência legal, certificado esse assinado pelos curadores da igreja e pelos inspetores dos pobres, e com a permissão de dois juízes de paz, qualquer outra paróquia estava obrigada a receber tal pessoa; os decretos estabeleciam além disso que tal pessoa não poderia ser removida da paróquia somente pelo fato de haver alguma probabilidade de se tornar onerosa, mas, somente pelo fato de se tornar efetivamente onerosa, e que nesse caso a paróquia que expediu o certificado é obrigada a pagar tanto a manutenção da pessoa como as despesas de sua remoção à nova paróquia. E para dar segurança máxima à paróquia em que viesse a residir tal pessoa munida de certificado, o mesmo estatuto prescreveu que a pessoa não poderia obter ali nenhum direito de residência, por nenhum meio, a não ser pagando 10 libras por ano, ou então servindo por conta própria em um ofício paroquial, durante um ano inteiro, excluindo-se, portanto, a possibilidade de conseguir a residência por notificação, por aprendizagem ou por pagamento de taxas paroquiais. Além disso, o Decreto 12, da Rainha Ana, estatuto Ic. 18, determinou que nem os empregados nem os aprendizes de tal pessoa munida de certificado podiam obter residência na paróquia na qual viesse a residir tal pessoa munida de certificado passado por outra paróquia. Até onde essa invenção conseguiu restabelecer aquela livre circulação de mão-de-obra, que havia sido quase inteiramente impossibilitada pelos estatutos anteriores, podemos deduzir das observações muito judiciosas do Dr. Burn, que passo a transcrever: “É óbvio que há várias boas razões para exigir certificados para 181
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pessoas que passam a instalar-se em uma nova localidade: isto é, que tais pessoas não podem obter residência, nem mediante aprendizagem, nem prestando serviço, nem por notificação, nem pagando taxas paroquiais; que não podem obter residência nem para aprendizes nem para empregados seus; que, no caso de tais pessoas se tornarem onerosas, sabe-se para onde removêlas, sendo que a paróquia anterior está obrigada a pagar tanto as despesas da remoção como da manutenção da pessoa, nesse meio-tempo; e que, se tal pessoa adoecer, a paróquia que emitiu o certificado deve mantê-la. Tudo isto não pode ocorrer sem certificado. Ora, essas mesmas razões valem proporcionalmente para paróquias que não concediam certificados em casos ordinários, pois é muito provável que mais cedo ou mais tarde terão que receber de volta as pessoas a quem haviam dado certificado, aliás em condições piores do que antes”. A lição a ser tirada dessas observações é que, ao que parece, o certificado deve ser exigido pela paróquia na qual passa a residir um novo pobre, mas que ao mesmo tempo esse certificado muito raramente deve ser fornecido pela paróquia que o pobre pretende deixar. “Existe certa crueldade nessa matéria de certificados” — afirma o mesmo inteligente autor, em sua History of the Poor Laws — “ao confiar ao critério de um funcionário paroquial o poder de aprisionar uma pessoa como se fosse para o resto da vida; isso, por mais inconveniente que seja para esse pobre continuar a morar no lugar onde teve a infelicidade de adquirir o que se chama de residência, ou, por maior que seja a vantagem que ele possa esperar, propondo-se a morar alhures.” Embora o certificado não contenha nenhum testemunho de boa conduta, pois se limita a atestar que a pessoa faz parte da paróquia à qual pertence realmente, fica inteiramente a critério dos funcionários paroquiais conceder ou negar tal certificado. Segundo o Dr. Burn, foi feito um mandato no sentido de obrigar os curadores e inspetores a assinarem o certificado; todavia, os juízes da Corte Real rejeitaram essa moção como uma tentativa muito estranha. Os salários extremamente desiguais com que deparamos freqüentemente na Inglaterra, em localidades não muito distantes uma da outra, são provavelmente devidos aos obstáculos que a lei da residência coloca para um pobre que, destituído de certificado, deseja transferir seu trabalho de uma paróquia para outra. Com efeito, um trabalhador solteiro operoso e dotado de boa saúde poderá às vezes residir em outra paróquia sem certificado, embora enfrentando sofrimentos; mas um homem com mulher e família que tentasse essa aventura, na maioria das paróquias certamente acabaria sendo removido, o mesmo acontecendo geralmente a um solteiro, no momento em que viesse a casar-se. Por isso, a escassez de mão-de-obra em uma paróquia nem sempre pode ser remediada pela superabundância existente em outra, como acontece constantemente na Escócia e, conforme 182
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acredito, em todos os outros países em que não existem essas dificuldades para a residência. Nesses países, embora os salários possam ser um pouco mais altos nas proximidades de uma cidade grande, ou em outros lugares em que existir uma demanda extraordinária de mãode-obra, e diminuir gradualmente à medida em que aumenta a distância de tais centros, até recaírem novamente na taxa comum do país, nunca deparamos com essas diferenças repentinas e imprevisíveis que por vezes encontramos na Inglaterra, em localidades vizinhas, onde freqüentemente é mais difícil para uma pessoa pobre atravessar os limites artificiais de uma paróquia, do que atravessar um braço de mar ou uma cadeia de altas montanhas, divisas naturais que às vezes separam níveis salariais nitidamente diferenciados, em outros países. Remover uma pessoa, que não cometeu nenhuma falta, de uma paróquia onde escolheu residir, constitui uma violação evidente da liberdade e da justiça natural. E, no entanto, as pessoas simples do povo da Inglaterra, tão ciosas da sua liberdade, mas nunca perfeitamente conscientes do conteúdo e do significado autêntico dessa prerrogativa — como aliás acontece na maioria dos outros países — têm suportado já durante mais de um século tal tipo de opressão, sem encontrar saída para esse impasse. Embora também pessoas ponderadas por vezes se tenham queixado da lei da residência como de uma calamidade pública, esta nunca foi objeto de clamor geral do povo, como ocorreu contra as garantias gerais, sem dúvida uma prática abusiva, mas que provavelmente não provocava uma opressão geral. Arriscar-me-ia a afirmar que dificilmente existe na Inglaterra um pobre de quarenta anos de idade que em algum período de sua vida não tenha sentido em sua própria pele a opressão cruel dessa infeliz lei sobre a residência. Concluirei este longo capítulo observando que, embora antigamente fosse costume definir níveis salariais, primeiro por meio de leis gerais extensivas ao país inteiro, e depois mediante regulamentos particulares dos juízes de paz em cada condado específico, atualmente essas duas práticas estão totalmente em desuso. “Com base na experiência de mais de 400 anos” — diz o Dr. Burn “parece chegado o momento de deixar de lado todas as tentativas de definir rigorosamente por lei aquilo que pela própria natureza parece impossível de delimitação estrita; com efeito, se todas as pessoas que exercem o mesmo tipo de trabalho devessem receber salários iguais, não haveria emulação, não haveria margem para a iniciativa e a generosidade.” A despeito disso, às vezes o Parlamento, mediante leis específicas, tenta regulamentar os salários em ocupações específicas e em determinados lugares. Assim, o Decreto 8, de Jorge III, proíbe, sob ameaça de incorrer em penalidades severas, todos os mestres alfaiates de Londres, e até 5 milhas ao seu redor, pagar — e aos seus trabalhadores, aceitar — mais do que 2 xelins e 7 1/2 pence por dia, excetuado o caso de um luto oficial. Sempre que os legisladores tentam regulamentar as 183
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diferenças entre os mestres e seus trabalhadores, seus conselheiros são sempre os mestres. Por isso, quando a regulamentação favorece os trabalhadores, é sempre justa e eqüitativa, ao passo que às vezes ocorre o contrário, quando a regulamentação favorece aos mestres. Assim, a lei que obriga os mestres, em várias profissões, a pagar seus trabalhadores em dinheiro e não em bens é perfeitamente justa e eqüitativa. Ela não impõe nada de duro aos mestres, mas simplesmente os obriga a pagar em dinheiro aquele valor que pretendiam pagar em bens, e que na realidade nem sempre pagavam. Essa lei favorece os operários. Mas o Decreto 8, de Jorge III, favorece os mestres. Quando estes combinam entre si para reduzir os salários de seus empregados, é comum assumirem um compromisso particular de, sob pena de incorrerem em alguma penalidade, não pagar mais do que um determinado salário. Se os empregados fizessem entre si um acordo contrário do mesmo tipo, de não aceitarem determinado salário, sob pena de incorrerem em alguma penalidade, a lei os puniria com grande rigor. Ora, se a lei fosse imparcial, deveria tratar os mestres da mesma forma. No entanto, o Decreto 8, de Jorge III, seleciona por lei aquela mesma regulamentação que os patrões às vezes tentam estabelecer em seus conluios. Parece totalmente fundada a queixa dos trabalhadores de que tal lei coloca os mais capazes e os mais aplicados em pé de igualdade com o trabalhador comum. Também nos tempos antigos era habitual tentar regulamentar os lucros dos comerciantes e de outros profissionais, determinando o preço dos mantimentos e de outros bens. Pelo que sei, o único remanescente desse antigo costume é a questão do preço do pão. Onde existe uma corporação com direitos exclusivos, talvez seja recomendável regulamentar o preço do alimento mais elementar. Mas onde isso não existe, a concorrência regulará tal preço de maneira muito mais eficaz do que qualquer tribunal. A questão de fixar o preço do pão, estabelecido pelo Decreto 31, de Jorge II, não pôde ser aplicado na Escócia, devido a uma deficiência na lei, já que a sua execução depende do cargo de amanuense do mercado, que lá não existe. Essa deficiência só foi remediada com o Decreto 3, de Jorge III. A falta de uma sessão de um tribunal para fixação do preço não gerou nenhum inconveniente sério, e por outro lado a existência de tal órgão nos poucos lugares onde até agora funcionou, não acarretou nenhuma vantagem significativa. Todavia, na maior parte das cidades da Escócia existe uma corporação de padeiros que reclama privilégios exclusivos, embora esses não sejam observados com muito rigor. Ao que parece, a proporção entre os diferentes níveis salariais e de lucro, nos diferentes empregos de mão-de-obra e de capital, não é muito afetada — como já observei — pela riqueza ou pobreza de uma sociedade ou pela sua condição de progresso, estacionária ou de declínio. Tais transformações no bem-estar público, embora afetem os níveis gerais dos salários e do lucro, em última análise os afetam de maneira igual, em todos os empregos ou ocupações. Por conseguinte, a proporção entre eles permanece necessariamente a mesma, não podendo ser alterada por tais transformações, ao menos por um período significativo. 184
CAPÍTULO XI A Renda da Terra
A renda da terra, considerada como o preço pago pelo uso da terra, é naturalmente a maior que o arrendatário pode permitir-se pagar, nas circunstâncias efetivas da terra. Ao ajustar as cláusulas do arrendamento, o dono da terra faz o possível para deixar ao arrendatário uma parcela da produção não superior ao que é suficiente para pagar ao arrendatário o capital do qual ele fornece as sementes, paga a mão-de-obra, compra e mantém o gado e outros instrumentos e dispositivos agrícolas, juntamente com o lucro normal do capital empregado, segundo a taxa vigente na região. Evidentemente, isso é o mínimo com o qual o arrendatário pode contentar-se, se não quiser sair perdendo no negócio; e raramente o proprietário da terra está disposto a dar-lhe mais do que isso. Toda e qualquer parcela da produção ou — o que é a mesma coisa — toda parcela do preço da produção que ultrapasse a porcentagem destinada ao arrendatário, o dono da terra naturalmente procura reservá-la para si, como sendo a renda que lhe é devida pelo uso da terra; essa renda pleiteada pelo proprietário naturalmente é a máxima que o arrendatário puder pagar-lhe, nas circunstâncias concretas da terra. Por vezes, de fato, a liberdade do proprietário — mais freqüentemente, a ignorância dele — o leva a contentar-se com uma parcela algo inferior a isso; por outro lado, às vezes, embora mais raramente, a ignorância do arrendatário o faz submeter-se a pagar algo mais do que a citada porcentagem, ou a contentar-se com algo menos do que o lucro do capital a investir, lucro esse calculado pelo índice vigente na redondeza. Entretanto, essa parcela ainda pode ser considerada como a renda natural que deriva do uso da terra, ou seja, a renda pela qual naturalmente se entende que deva ser geralmente locada a propriedade. Poder-se-ia pensar que a renda proveniente da locação da terra freqüentemente não seja outra coisa senão um razoável lucro ou juros pelo capital empatado pelo dono da terra para melhorá-la. Sem dúvida, 185
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isso pode ocorrer, em determinados casos, mas só em parte; o proprietário exige uma renda, mesmo pela terra em que não implantou nenhuma melhoria, e os supostos juros ou lucro sobre as despesas das melhorias constituem geralmente um acréscimo a essa renda original. Além disso, as melhorias introduzidas na terra nem sempre são feitas com o capital do proprietário, mas às vezes com o do arrendatário. No entanto, quando se renova a locação, geralmente o locador exige o mesmo aumento da renda que pleitearia no caso de todas as melhorias terem sido feitas com seu próprio capital. Por vezes o proprietário exige renda por uma terra que simplesmente não está em condições de receber melhorias. A alga marinha é uma espécie de planta que, ao ser queimada, produz um sal alcalino, útil para fazer vidro, sabão, e para várias outras finalidades. Cresce em várias regiões da Grã-Bretanha, particularmente na Escócia, somente sobre rochas banhadas pela maré alta, rochas essas que são cobertas pelo mar duas vezes ao dia, e cujo produto, portanto, nunca foi aumentado pelo trabalho humano. No entanto, o proprietário de faixas de terra limitadas por praias de algas marinhas exige no caso a mesma renda que pleiteia por seus campos cerealíferos. Nas proximidades das ilhas de Shetland, quase sempre o mar tem peixes em grande abundância, que constituem grande parte da subsistência dos que ali moram. Todavia, a fim de auferir proveito desse produto da água, esses moradores precisam ter uma moradia na terra vizinha. A renda do proprietário da terra é proporcional, não àquilo que seu dono pode auferir dela, mas àquilo que o arrendatário consegue auferir tanto da terra como da água. Essa renda é em parte paga com peixe do mar; efetivamente, é nessa região que se encontra um dos poucos exemplos em que a renda da terra representa um componente do preço dessa mercadoria, o peixe. Conseqüentemente, a renda da terra, considerada como o preço pago pelo uso da terra, é naturalmente um preço de monopólio. De forma alguma é ela proporcional àquilo que o proprietário pode ter investido na melhoria da terra, ou àquilo que ele pode extrair dela; mas ela é proporcional ao que o arrendatário pode pagar. Geralmente, só podem ser comercializados aqueles produtos da terra, cujo preço normal é suficiente para repor o capital que deve ser empregado para colocar os produtos no mercado, juntamente com os lucros normais desse capital. Se o preço normal da mercadoria for superior a isso, a parcela excedente irá naturalmente para a renda da terra. Se o preço normal não for superior a isso, embora a mercadoria possa ser colocada no mercado, não poderá proporcionar nenhuma renda ao proprietário da terra. Quanto ao preço da mercadoria — maior ou menor —, isso depende da demanda. Há certos produtos da terra para os quais a demanda deve sempre ser tal que permita um preço superior ao que é suficiente para colocá-los no mercado; e outros há, para os quais a demanda pode ou não ser tal que permita esse preço mais alto. Os primeiros sempre devem pro186
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porcionar uma renda ao proprietário da terra. Os segundos às vezes podem proporcionar tal renda e às vezes não, conforme as circunstâncias. Cumpre observar, portanto, que a renda entra na composição do preço das mercadorias de uma forma diferente dos salários e do lucro. Salários e lucros altos ou baixos são a causa do preço alto ou baixo das mercadorias, ao passo que a renda da locação da terra, alta ou baixa, constitui o efeito dos preços altos ou baixos das mercadorias. Se o preço de uma mercadoria é alto ou baixo, é porque se precisa pagar salários e lucro altos ou baixos para comercializá-la. Ao contrário, é porque o preço da mercadoria é alto ou baixo, muito mais, pouco mais ou não mais do que o suficiente para pagar esses salários e esse lucro, que a mercadoria proporciona uma renda alta, uma renda baixa ou nenhuma renda. O presente capítulo se divide em três partes, nas quais se estudará respectivamente: primeiro, aqueles produtos da terra que sempre proporcionam alguma renda; segundo, aqueles produtos da terra que às vezes podem proporcionar renda e às vezes não; terceiro, as variações que, nos diferentes períodos de aprimoramento ou desenvolvimento da terra, ocorrem naturalmente, no tocante ao valor relativo dos dois tipos de produtos naturais da terra, comparados tanto entre si como com as mercadorias manufaturadas. PARTE PRIMEIRA Os produtos da terra que sempre proporcionam renda Uma vez que os homens, como todos os outros animais, se multiplicam naturalmente em proporção aos meios de sua subsistência, pode-se dizer que, basicamente, sempre há demanda de alimentos. Os alimentos sempre podem comprar ou comandar um volume maior ou menor de trabalho, e sempre é possível encontrar alguém disposto a fazer algo para consegui-los. Efetivamente, o volume de trabalho que os alimentos podem comprar nem sempre é igual àquele que poderiam sustentar, se geridos da maneira mais econômica, devido aos altos salários que por vezes são pagos pela mão-de-obra. Todavia, os alimentos sempre podem comprar ou comandar um volume tal de trabalho que possam sustentar, de acordo com a taxa pela qual esse tipo de trabalho é sustentado na região. A terra, em quase todas as situações, produz uma quantidade maior de alimentos do que o suficiente para manter toda a mão-de-obra necessária para colocá-los no mercado, por mais liberal que seja a remuneração paga à mão-de-obra. Também o excedente é sempre mais do que suficiente para repor o capital que deu emprego a essa mãode-obra, juntamente com o lucro desse capital. Por isso, sempre permanece algo para uma renda destinada ao proprietário da terra. As charnecas mais desertas da Noruega e da Escócia produzem algum tipo de pastagem para o gado, cujo leite e cuja procriação são 187
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sempre mais do que suficiente, não somente para manter toda a mãode-obra necessária para isso e para pagar o lucro normal do arrendatário ou do dono do rebanho, mas também para proporcionar alguma renda ao dono da terra. A renda aumenta proporcionalmente à boa qualidade das pastagens. A mesma extensão de terra não somente mantém um número maior de cabeças de gado, senão que, pelo fato de esse gado ser mantido dentro de uma área menor, requer menos mão-de-obra para cuidar dele para fazer a coleta do produto. O proprietário da terra ganha de duas maneiras: pelo aumento da produção e pela diminuição da mão-de-obra mantida com esta produção. A renda da terra varia não somente conforme a fertilidade — qualquer que seja seu produto — mas também de acordo com a sua localização, qualquer que seja a fertilidade. A propriedade localizada perto de uma cidade produz uma perda superior à que é proporcionada por uma terra da mesma fertilidade localizada no interior do país. Embora o cultivo de uma não requeira maior mão-de-obra ou trabalho do que o cultivo da outra, necessariamente o custo será maior no caso de ter que colocar no mercado gêneros alimentícios trazidos de uma região longínqua. Uma quantidade maior de trabalho, portanto, pode ser mantida fora dela; e o excedente do qual se tira o lucro do agricultor e a renda do proprietário deve ser diminuído. Mas, nos locais distantes do país, a taxa de lucro, como já se demonstrou, geralmente é maior do que nas proximidades de uma cidade grande. Por conseguinte, será menor também a porcentagem desse excedente diminuído que pertencerá ao dono da terra. As boas estradas, os canais e os rios navegáveis, por diminuírem as despesas de transporte, fazem com que as regiões mais longínquas do país possam aproximar-se mais do nível vigente nas proximidades de uma cidade. Sob esse aspecto, essas facilidades de transporte representam as maiores melhorias. Estimulam e encorajam o cultivo das regiões interioranas, que necessariamente representarão sempre a maior parte do país. Trazem vantagem à cidade, por quebrarem o monopólio do campo em suas proximidades. Acarretam vantagem até mesmo para aquela parte do campo. Embora introduzam algumas mercadorias concorrentes no mercado tradicional, abrem muitos mercados novos para sua produção. Além disso, o monopólio representa um grande inimigo para a boa administração, a qual só pode ser implantada em toda parte em conseqüência daquela concorrência livre e geral que obriga todos a recorrerem a ela em sua própria defesa. Não faz mais de cinqüenta anos que alguns condados perto de Londres pleitearam ao Parlamento que não permitisse prolongar as grandes estradas com pedágio até os condados mais longínquos do país. Alegavam que, devido ao baixo preço da mão-de-obra vigente nessas regiões mais afastadas, esses condados teriam a possibilidade de vender sua forragem e seus cereais no mercado de Londres a preço mais baixo do que em seus próprios, reduzindo com isso suas rendas e arruinando sua agricultura. No entanto, suas rendas aumentaram e sua agricultura se aprimorou, desde essa época. 188
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Um campo de cereais de razoável fertilidade produz uma quantidade muito maior de alimento humano do que a melhor pastagem de igual extensão. Embora seu cultivo exija muito mais trabalho, é também muito maior o excedente que resta, após repostas as sementes e mantida toda a mão-de-obra. Por isso, se nunca se julgasse que uma libra-peso de carne de açougue valesse mais do que uma libra de pão, esse excedente maior seria em toda parte de valor maior, e constituiria um fundo maior tanto para o lucro do arrendatário quanto para a renda do proprietário. Parece ter ocorrido isso em toda parte, nos rudes primórdios da agricultura. Efetivamente, os valores relativos desses dois alimentos — o pão e a carne de açougue — diferem muito nos diversos períodos da agricultura. Nos rudes primórdios da agricultura, as regiões agrestes destituídas de qualquer melhoria, que nesse estágio ocupam a maior parte do país, estão totalmente abandonadas ao gado. Há mais carne de açougue do que pão, e por isso é em torno do pão que encontramos a maior concorrência, o que faz subir seu preço. Segundo Ulloa, em Buenos Aires, há 40 ou 50 anos, o preço normal de um boi escolhido num rebanho de 200 ou 300 cabeças era de 4 reais, ou seja, 21 pence e 1/2 esterlino. Ulloa não diz nada sobre o preço do pão, provavelmente porque não havia notado nada de especial quanto a isso. Diz ele que um boi em Buenos Aires custava pouco mais do que o trabalho de pegá-lo no pasto. Ao contrário, em toda parte o cultivo do trigo requer muito trabalho, e num país localizado na região do rio da Prata — naquela época, o caminho direto da Europa para as minas de prata de Potosi — o preço da mão-de-obra em dinheiro não podia ser muito baixo. É diferente quando o cultivo de cereais cobre a maior parte do país. Nesse caso, há mais pão do que carne de açougue. A concorrência concentra-se na carne, sendo que então o preço dela ultrapassa o do pão. Além disso, à medida que o cultivo se amplia, as regiões agrestes sem melhorias tornam-se insuficientes para suprir a demanda de carne de açougue. Grande parte das terras cultivadas precisa ser utilizada para criar e engordar gado, cujo preço, portanto, deve ser suficiente para pagar não somente a mão-de-obra exigida, mas também a renda que teria o dono da terra e o lucro que teria o locatário utilizando a terra para cultivo. O gado criado nas charnecas menos cultivadas, ao ser colocado no mercado, é vendido ao mesmo preço que o gado criado nas terras mais cuidadas, se seu peso e a qualidade forem os mesmos. Os proprietários dessas charnecas tiram proveito disso e auferem a renda de sua terra em proporção com o preço de seu gado. Não faz mais de um século que nas regiões montanhosas da Escócia, a carne de açougue era tão barata ou até mais barata que o próprio pão feito de farinha de aveia. A união133 abriu o mercado da Inglaterra ao gado das montanhas escocesas. Seu preço comum hoje é aproximadamente 133 Adam Smith se refere à formação do Reino Unido em 1707, quando a Escócia se ligou à Inglaterra. (N. do E.) 189
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três vezes superior ao do início do século, sendo que as rendas de muitas propriedades das montanhas triplicam ou quadruplicam no mesmo espaço de tempo. Atualmente, quase em toda a Grã-Bretanha, 1 libra-peso da melhor carne de açougue vale geralmente mais do que 2 libras-peso do melhor pão branco, e em anos de abundância, vale às vezes 3 ou 4 libras-peso. É assim que, com a continuidade dos melhoramentos, a renda e o lucro das pastagens não melhoradas vêm a ser regulados, até certo ponto, pela renda e pelo lucro daquelas que tiveram melhoria e, em ambos os casos, pela renda e pelo lucro dos trigais. O trigo se colhe uma vez ao ano. A carne de açougue é um produto que requer, para seu aproveitamento, quatro ou cinco anos. Já que, portanto, um acre de terra produzirá uma quantidade muito menor de um tipo de alimento do que do outro, a inferioridade da quantidade deve ser compensada pela superioridade do preço. Se fosse mais do que compensada, seria maior a quantidade de terras para trigo que se transformaria em pastagem; e se não fosse compensada, uma parte das terras utilizadas como pastagem voltaria a ser empregada para o plantio de trigo. Todavia, essa igualdade entre a renda e lucro das pastagens e a renda e lucro dos trigais, da terra cujo produto imediato é o alimento para o gado, e da terra cujo produto imediato é o alimento humano, ocorre somente na maior parte das terras bem cuidadas de uma grande região. Em certas situações locais especiais acontece bem outra coisa, sendo a renda e o lucro das pastagens muito superiores ao que se pode auferir plantando cereais. Assim, nas redondezas de uma cidade grande, a demanda de leite e de forragem para cavalos freqüentemente contribui juntamente com o alto preço da carne de açougue para elevar o preço da forragem acima daquilo que se pode chamar de sua proporção natural ao valor do trigo. É evidente que essa vantagem local não pode estender-se às terras distantes. Determinadas circunstâncias, por vezes, fizeram com que alguns países se tornassem tão povoados que o território inteiro, como as terras localizadas nas proximidades de uma grande cidade, não era suficiente para produzir tanto a forragem como para produzir o trigo necessário para a subsistência de seus habitantes. Por esta razão, suas terras eram empregadas sobretudo na produção de forragem, a mercadoria mais volumosa, que além disso não se pode facilmente fazer vir de grandes distâncias, sendo que os cereais, alimentos da grande parte do povo, eram importados de países estrangeiros. A Holanda está hoje nessa situação, sendo que também uma parte considerável da antiga Itália parece ter estado nessa situação durante a época de prosperidade dos romanos. Segundo nos refere Cícero, o velho Catão dizia que dar boas pastagens para o gado era a primeira coisa, e a mais rentável, na administração de uma propriedade particular; dar pastagens razoáveis ao gado era a segunda, e dar más pastagens era a terceira. Arar a terra, para ele, estava apenas em 190
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quarto lugar, no tocante ao lucro e às vantagens. Efetivamente, na parte da antiga Itália localizada nas proximidades de Roma, o cultivo da terra parece ter sido muito pouco estimulado pelas distribuições de trigo feitas com freqüência ao povo, gratuitamente ou a preço extremamente baixo. Esse trigo era trazido das províncias conquistadas, dentre as quais, ao invés de pagar impostos, muitas eram obrigadas a fornecer à República de Roma um décimo de sua produção a um determinado preço, aproximadamente seis pence por celamim. O baixo preço desse trigo distribuído ao povo deve necessariamente ter feito baixar o preço do trigo que poderia ser trazido ao mercado de Roma, do Lácio, ou seja, o antigo território de Roma, e deve ter desestimulado o cultivo do trigo nessa região. Além disso, em um país aberto, cujo produto principal é o trigo, uma área bem delimitada e cercada de pastagem muitas vezes produzirá mais do que qualquer campo de trigo das proximidades. É conveniente para o sustento do gado empregado no cultivo do trigo, sendo que sua alta renda, neste caso, é paga não tanto do valor de sua própria produção, mas antes do valor das terras empregadas para o trigo, cultivadas com a respectiva renda. Essa renda e lucro provavelmente baixarão no momento em que eventualmente as terras da região forem completamente cercadas. A alta renda atual da terra cercada na Escócia parece dever-se à escassez de terreno cercado, perdurando provavelmente apenas enquanto perdurar a escassez. A vantagem do cercado é maior para as pastagens do que para o trigo. Poupa a mão-de-obra necessária para guardar o gado, que também se alimenta melhor quando não está sujeito a ser perturbado pelo guardador ou por seu cão. Entretanto, onde não existe uma vantagem local desse tipo, a renda e o lucro do trigo — ou de qualquer outro alimento vegetal comum do povo — deve naturalmente regular a renda e o lucro das pastagens, na terra que seja adequada para a produção de trigo. Poder-se-ia esperar que o uso de pastagens artificiais, de nabos, cenouras, couve e dos outros vegetais a que se recorreu para obter uma quantidade igual de terra, alimenta maior número de cabeças de gado do que a pastagem natural e poderia de alguma forma reduzir, acredita-se, a superioridade que, em uma região melhorada, o preço da carne de açougue tem naturalmente em relação ao do pão. Efetivamente, parece que isso tem ocorrido, havendo, até certo ponto, motivos para crer que, ao menos no mercado londrino, o preço da carne de açougue, em proporção com o preço do pão, é hoje bastante mais baixo do que era no início do século passado. No apêndice à Vida do Príncipe Henrique, o Dr. Birch nos deixou um relato sobre os preços da carne de açougue comumente pagos por esse príncipe. O relato diz que quatro quartos de um boi pesando 600 libras normalmente lhe custavam 9 libras esterlinas e 10 xelins, ou aproximadamente isso, ou seja 31 xelins e 8 pence por cem libras-peso. O Príncipe Henrique morreu a 6 de novembro de 1612, com 19 anos de idade. 191
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Em março de 1763 houve uma investigação do Parlamento sobre as causas do alto preço dos mantimentos na época. Entre outras provas alegadas, um comerciante da Virgínia evidenciou que em março de 1763 ele havia abastecido seus navios com um quintal de carne bovina por 24 ou 25 xelins, que considerava como preço normal, ao passo que, naquele ano de preços elevados, havia pago 27 xelins pelo mesmo peso e qualidade. Entretanto, esse alto preço em 1764 é 4 xelins e 8 pence mais barato do que o preço normal pago pelo Príncipe Henrique, devendo-se aliás observar que somente a carne bovina de melhor qualidade pode ser salgada para viagens tão longas. O preço pago pelo Príncipe Henrique é de 3 4/5 pence por librapeso de toda carcaça, englobando as partes melhores e as piores do boi; e a essa taxa, as partes melhores não podiam ter sido vendidas no varejo por menos do que 4 1/2 ou 5 pence por libra-peso. No inquérito parlamentar de 1764, as testemunhas constataram que o preço das melhores carnes bovinas, para o consumidor, era quatro e 4 1/4 pence por libra-peso, sendo que o preço das carnes inferiores em geral era de sete farthings até 2 1/2 e 2 3/4 pence; e esse preço, no dizer das testemunhas, geralmente era 1/2 pêni mais caro do que o preço do mesmo tipo de carne vendida no mês de março. Mas mesmo esse preço alto é ainda bastante mais barato do que bem podemos supor haver sido o preço vigente ao tempo do Príncipe Henrique. Durante os doze primeiros anos do século passado, o preço médio do melhor trigo no mercado de Windsor era de £ 1. 18 s e 3 1/6 d. pelo quarter de 9 bushels de Winchester. Mas nos doze anos anteriores a 1764, incluindo aquele ano, o preço médio da mesma medida do melhor trigo, no mesmo mercado, era de £ 2. l s e 9 1/2 d. Portanto, nos doze primeiros anos do século passado, o trigo parece ter sido bem mais barato, e a carne de açougue bem mais cara do que nos doze anos anteriores a 1764, incluindo aquele ano. Em todos os grandes países, a maior parte das terras cultivadas é empregada para produzir alimento humano ou alimento para o gado. A renda e o lucro dessas terras determinam a renda e o lucro de todas as outras terras cultivadas. Se um determinado produto proporcionasse renda e lucro menor, a terra seria logo utilizada para trigo ou pastagem; e se outro proporcionasse renda e lucro maior, parte das terras de trigo ou de pastagem seria logo empregada para plantar aquele produto respectivo. Com efeito, os produtos que exigem uma despesa inicial maior de aprimoramento da terra ou uma despesa anual maior para o cultivo, a fim de preparar a terra para esses produtos, geralmente parecem proporcionar uma renda maior do que o trigo ou as pastagens — no primeiro caso — ou um lucro maior do que o trigo ou as pastagens — no segundo caso. Entretanto, raramente essa superioridade representará mais do que os juros ou uma compensação razoável por essa despesa superior. 192
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Em um campo de lúpulo, em um pomar, em uma horta, tanto a renda do proprietário como o lucro do arrendatário geralmente são maiores do que em um campo de trigo ou de pastagem. Mas é maior a despesa que se requer para preparar a terra para esses tipos de cultivo. Em conseqüência, o proprietário da terra precisa auferir uma renda maior. Além disso, faz-se mister também uma administração mais atenta e mais habilidosa, razão pela qual também o lucro a ser auferido pelo arrendatário deverá ser maior. Também a colheita, ao menos no tocante ao lúpulo e às frutas, é mais precária. Portanto, o seu preço, além de compensar todas as perdas ocasionadas, deve proporcionar algo semelhante ao lucro do seguro. A situação econômica dos horticultores, geralmente pouco propícia e sempre modesta, convence-nos de que sua grande engenhosidade geralmente não é muito bem recompensada. Sua agradável arte é praticada por tantas pessoas ricas, como lazer, que pouca vantagem podem auferir os que se dedicam a essa ocupação para ganhar dinheiro, uma vez que as pessoas que por natureza seriam seus melhores clientes produzem para si mesmas o melhor desse tipo de produtos. Ao que parece, a vantagem auferida de tais melhorias pelo dono da terra nunca foi maior do que o suficiente para compensar as despesas originais para implantá-las. Na agricultura antiga, depois dos vinhedos, uma horta bem irrigada parece ter sido a parte da propriedade que supostamente dava produtos mais valiosos. Todavia, Demócrito, que escreveu sobre agricultura há mais ou menos 2 mil anos, e que foi considerado pelos antigos como um dos pais desse tipo de cultivo, opinava não ser grande negócio cercar e manter uma horta. Diz ele que o lucro não compensa a despesa de um muro de pedras; além disso, os tijolos (dizia ele, suponho eu, tijolos cozidos ao sol) se estragavam com a chuva e as intempéries do inverno, exigindo reparos contínuos. Columella, que divulga esse parecer de Demócrito, não o contesta, mas propõe um método muito simples para cercado com uma cerca de sarça e urzes, a qual, baseando-se em sua experiência, afirma ser uma cerca duradoura e intransponível; mas esse método não era conhecido na época de Demócrito, ao que parece. Paládio adota a opinião de Columella, a qual já antes havia sido recomendada por Varrão. No parecer desses antigos promotores de melhorias, parece que a produção de uma horta era pouco mais do que o suficiente para cobrir a cultura extraordinária e a despesa da irrigação, pois em países tão ensolarados se considerava apropriado, tanto naquela época como hoje, ter o controle de uma corrente d’água que pudesse ser conduzida a todos os recantos da horta. Na maior parte da Europa, supõe-se atualmente que uma horta não merece uma cerca melhor do que a recomendada por Columella. Na Grã-Bretanha, e em alguns outros países do norte, não se consegue obter os melhores resultados com perfeição a não ser com a ajuda de muros. Por isso, nesses países o preço dos produtos deve ser suficiente para pagar a despesa da construção e da manutenção desses muros. Com freqüência, o muro do pomar rodeia a horta, a qual dessa 193
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forma desfruta do benefício de uma cerca que sua própria produção raramente seria capaz de pagar. Que os vinhedos, quando devidamente plantados e mantidos à perfeição, representavam a parte mais valiosa da propriedade rural, parece ter sido uma máxima pacificamente aceita na agricultura antiga, o mesmo ocorrendo hoje, em todos os países produtores de vinho. Todavia, Columella nos diz que os antigos agricultores italianos discutiam sobre se era vantajoso plantar um vinhedo novo. Ele se decide a favor da viticultura — na qualidade de um verdadeiro amante de todas as culturas curiosas — e procura demonstrar, confrontando o lucro com a despesa, que se tratava de um investimento altamente vantajoso. Todavia, tais comparações entre o lucro e a despesa de projetos novos são geralmente muito enganosas, sobretudo na agricultura. Se os ganhos auferidos efetivamente com tais plantações tivessem sido geralmente tão grandes como ele imaginava, não poderia ter havido controvérsia sobre o assunto. Ainda hoje trata-se de matéria muitas vezes controvertida nos países produtores de vinho. Na realidade, os autores que nesses países escrevem sobre agricultura, bem como os amantes e promotores dessa cultura, parecem em geral inclinados a apoiar a tese de Columella a favor da viticultura. Na França, a preocupação dos proprietários dos vinhedos velhos em evitar o plantio de novos parece favorecer essa opinião, indicando também uma consciência, naqueles que devem ter a devida experiência, de que esse tipo de cultura é, no momento, no respectivo país, mais rentável do que qualquer outra. Todavia, ao mesmo tempo parece indicar uma outra tese, isto é, de que o lucro maior só poderá durar enquanto durarem as leis que atualmente restringem a liberdade na viticultura. Em 1731, obtiveram uma determinação do Conselho de Ministros proibindo tanto o plantio de novos vinhedos como a renovação dos velhos, cujo cultivo estivesse interrompido por dois anos, sem uma permissão específica do rei, a ser concedida somente em conseqüência de uma informação do intendente da Província, atestando que havia examinado a terra e a considerara inapta para qualquer outro tipo de cultura. A alegação desse regulamento era a escassez de trigo e de pastagens e a superabundância de vinho. Mas, se essa superabundância tivesse sido real, ela teria, sem nenhuma intervenção do Conselho, efetivamente impedido a plantação de novos vinhedos, através da redução dos lucros desse tipo de cultura, abaixo da sua taxa natural em relação ao trigo e às pastagens. Quanto à suposta escassez de trigo, gerada pela multiplicação dos vinhedos, deve-se dizer que em parte alguma, na França, existe um cultivo do trigo tão esmerado como nas províncias viticultoras, onde a terra é adequada para o trigo — como é o caso da Borgonha, Guienne e o Alto Languedoc. A numerosa mão-de-obra empregada em uma cultura necessariamente estimula a outra, garantindo um mercado pronto para seus produtos. Diminuir o número daqueles que são capazes de pagar isso certamente constitui um meio muito pouco promissor para 194
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estimular o cultivo do trigo. É como a política que pretendesse promover a agricultura, desestimulando as manufaturas. Por isso, a renda e o lucro desses produtos que exigem uma despesa original maior para aprimorar a terra para prepará-la para a cultura ou uma despesa maior do cultivo anual, embora muitas vezes sejam muito superiores aos gerados pelo trigo e pelas pastagens, todavia, quando apenas conseguem compensar tal despesa extraordinária, na realidade são regulados pela renda e pelo lucro dessas colheitas comuns. Efetivamente, acontece por vezes que a quantidade de terra que pode ser preparada para determinado produto é muito pequena para atender à demanda efetiva. Toda produção pode ser utilizada por aqueles que estão dispostos a dar algo mais do que é suficiente para pagar a renda total, os salários e o lucro necessários para cultivar e comercializar o produto, de acordo com suas taxas naturais, ou então de acordo com as taxas com as quais são pagos, na maior parte de outras terras cultivadas. Nesse caso, e somente nesse, a parte excedente do preço — a que resta depois de cobrir toda a despesa de melhorias efetuadas na terra e para o cultivo — pode geralmente não manter nenhuma proporção regular com o excedente similar de trigo ou de pastagem, senão que o ultrapassa em muito; ora, a maior parte desse excedente vai naturalmente para a renda do proprietário da terra. Por exemplo, deve-se entender que a proporção usual e natural entre a renda e o lucro do vinho e os do trigo e pastagens só existe efetivamente em relação aos vinhedos que só produzem vinho comum de boa qualidade, tal como se pode obter praticamente em qualquer terra, em qualquer solo leve, cascalhoso ou arenoso, e que não tem outro título de recomendação a não ser o fato de ser um vinho forte e saudável. Somente com tais vinhedos é que a terra comum do país pode competir com outras — já que evidentemente não poderá nunca competir com terras de qualidade especial. A videira é mais afetada pela diferença de solos do que qualquer árvore frutífera. Em certos tipos de solo, a uva produzida apresenta um gosto que supostamente nenhum cultivo ou habilidade é capaz de igualar, em nenhum outro solo. Esse sabor, real ou imaginário, às vezes é específico à produção de alguns vinhedos, às vezes estende-se à maior parte de um pequeno distrito, e às vezes estende-se a uma parte considerável de uma grande província. Toda a quantidade de tais vinhos que se colocar no mercado é insuficiente para atender à demanda efetiva, ou seja, à demanda daqueles que estariam dispostos a pagar toda a renda, o lucro e os salários necessários para comercializar tais vinhos, de acordo com a taxa normal, ou seja, de acordo com a taxa pela qual são pagos nos vinhedos comuns. Portanto, pode-se vender toda a quantidade produzida àqueles que estão dispostos a pagar mais — o que necessariamente eleva o preço acima dos vinhos comuns. A diferença de preço é maior ou menor, conforme o prestígio ou a escassez do vinho fizerem com que os concorrentes à compra sejam mais ou menos afoitos. Qualquer que seja o preço, é certo que a maior parcela 195
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dele vai para a renda do proprietário da terra. Pois, embora tais vinhedos geralmente sejam cultivados com mais cuidado do que a maior parte dos demais, o alto preço do vinho não parece ser tanto o efeito, mas antes a causa desse cultivo esmerado. Em se tratando de um produto tão valioso, a perda provocada pela negligência é tão grande, que mesmo os mais descuidados se sentem obrigados a esmerar-se. Por isso, uma pequena parcela desse preço é suficiente para pagar os salários da mão-de-obra extraordinária empregada em seu cultivo, bem como o lucro do capital extraordinário que é necessário para manter em ação essa mão-de-obra. A esses vinhedos preciosos podem ser comparadas as colônias açucareiras dominadas pelas nações européias nas Índias Ocidentais. A produção total dessas colônias é insuficiente para atender à demanda efetiva européia, e dela podem dispor aqueles que podem dar mais do que o suficiente para cobrir toda a renda, o lucro e os salários necessários para cultivar e comercializar esse açúcar, segundo a taxa à qual os preços são normalmente pagos por qualquer outro produto. Na Cochinchina, o açúcar branco da melhor qualidade é vendido por 3 piastras o quintal, aproximadamente 13 xelins e 6 pence em nosso dinheiro, conforme nos diz o Sr. Poivre,134 um observador muito atento da agricultura daquele país. O que lá se denomina quintal pesa de 150 a 200 libras parisienses, ou seja, em média 175 libras francesas, o que reduz o preço das 100 libras-peso inglesas a aproximadamente 8 xelins, que não corresponde sequer à quarta parte do que comumente se paga pelo açúcar castanho ou pelo mascavo, importado de nossas colônias, e nem sequer à sexta parte do que se paga pelo açúcar branco da melhor qualidade. A maior parte das terras cultiváveis da Cochinchina são empregadas para produzir trigo e arroz, o alimento básico da população. Provavelmente, nesse país os preços respectivos do trigo, do arroz e do açúcar estão em sua proporção natural, ou seja, aquela que ocorre naturalmente nas diferentes safras da maior parte da terra cultivada e que remunera o dono da terra e o arrendatário, com a exatidão de cálculo possível, de acordo com o que é geralmente a despesa original das melhorias da terra e a despesa anual do cultivo. Entretanto, em nossas colônias açucareiras, o preço do açúcar não tem essa proporção com o preço da produção de um arrozal ou de um trigal, na Europa ou na América. Costuma-se dizer que um plantador de cana-deaçúcar espera que a aguardente e o melaço cubram a despesa integral do cultivo e que o açúcar seja lucro líquido em sua totalidade. Se isto for verdade, pois não pretendo afirmá-lo taxativamente, é como se um cultivador de trigo esperasse custear as despesas do seu cultivo com o debulho e a palha, e que o grão constituísse um lucro total. Com freqüência, vemos sociedades de comerciantes em Londres e em outras cidades comerciais comprarem terras devolutas em nossas colônias açucareiras, terras essas que esperam melhorar e cultivar com lucro, através de seus feitores e 134 Voyages d’un Philosophe. 196
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representantes; não obstante a grande distância e o retorno incerto, em razão das precárias condições de funcionamento da justiça nesses países. Ninguém tentará aprimorar e cultivar da mesma forma as terras mais férteis da Escócia, da Irlanda, ou as províncias tritícolas da América do Norte, mesmo sabendo-se que, sob o ponto de vista do bom funcionamento da justiça em tais países, poder-se-ia esperar retornos mais normais. Nos Estados da Virgínia e Maryland, prefere-se o cultivo do tabaco, como sendo mais rentável que o dos cereais. O tabaco poderia ser cultivado com vantagem na maior parte da Europa; todavia, em quase todos os países europeus, o tabaco se tornou o principal alvo de taxação e se supôs que cobrar um imposto de cada propriedade do país na qual o produto viesse a ser cultivado seria muito mais difícil do que cobrar um imposto único na importação do produto, nos postos alfandegários. Essa é a razão pela qual se tomou a absurda decisão de proibir o cultivo do tabaco na maior parte da Europa, o que necessariamente confere uma espécie de monopólio aos países em que é permitida a cultura do tabaco, sendo que a Virgínia e o Maryland produzem a maior quantidade, beneficiando-se em larga escala dessa vantagem, embora tenham alguns concorrentes. Todavia, a cultura do tabaco não parece ter sido tão vantajosa como a da cana-de-açúcar. Nunca ouvi sequer falar de alguma plantação de tabaco que tivesse sido aprimorada e cultivada com o capital de comerciantes residentes na Grã-Bretanha, sendo que as nossas colônias cultivadoras de tabaco não mandam para a Inglaterra esses plantadores ricos que com freqüência nos vêm das nossas ilhas açucareiras. Embora, devido à preferência dada nessas colônias ao cultivo do tabaco em relação ao do trigo, possa parecer que a demanda efetiva européia de tabaco não está plenamente atendida, provavelmente essa demanda está mais bem atendida do que no caso do açúcar; e embora o preço atual do tabaco seja provavelmente mais do que suficiente para cobrir toda a renda, o lucro e os salários exigidos para o cultivo e a comercialização do produto, de acordo com a taxa à qual eles são normalmente pagos nas terras de cultivo de trigo, o preço atual do fumo não deve estar muito acima do preço atual do açúcar. Em conseqüência, os nossos plantadores de tabaco têm demonstrado o mesmo receio em relação ao excesso de fumo no mercado que os proprietários de vinhedos na França têm em relação à superabundância de vinho. Por uma decisão da Assembléia, limitaram seu cultivo a 6 mil pés de tabaco, que supostamente produzirão mil libras de tabaco, para cada negro entre 16 e 60 anos de idade. O negro, calculam eles, além dessa quantidade de tabaco consegue cultivar quatro acres de trigo indiano. Além disso, para evitar que o mercado fique supersaturado em anos de abundância, às vezes queimavam uma certa quantidade de tabaco para cada negro, conforme nos conta o Dr. Douglas135 (suponho que ele tenha sido mal informado), 135 Douglas’s Summary, v. II, pp. 372-373. 197
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da mesma forma como se diz terem feito os holandeses com referência às especiarias. Se há efetivamente a necessidade de recorrer a tais métodos violentos para manter o atual alto preço do tabaco, a maior vantagem dessa cultura em relação ao cultivo do trigo — se é que ainda existe — provavelmente não terá longa duração. É dessa maneira que a renda da terra cultivada, na qual se produz alimentos para o homem, regula a renda da maior parte das outras terras cultivadas. Nenhum produto específico pode proporcionar uma renda inferior a essa, pois se tal acontecer a terra seria imediatamente empregada para outro tipo de cultura; e se algum tipo de cultura produzir uma renda superior à do cultivo de alimentos humanos, é porque a quantidade de terra que pode ser preparada para esse fim será muito pequena para atender à demanda efetiva desse produto. Na Europa, o trigo é o produto principal da terra que serve imediatamente como alimento humano. Excetuadas certas situações específicas, é a renda da triticultura na Europa que regula a renda de todas as outras terras cultivadas. A Grã-Bretanha não precisa invejar nem os vinhedos da França nem os olivais da Itália. Exceto em determinadas situações, o valor desses é regulado pelo valor do trigo, no qual a fertilidade da Grã-Bretanha não é muito inferior à desses dois países. Se, em algum país, o alimento vegetal normal e favorito da população fosse tirado de uma planta cuja terra mais comum, com o mesmo ou mais ou menos o mesmo cultivo, produzisse uma quantidade muito maior do que a produzida pela terra mais fértil para trigo, seria necessariamente muito maior a renda do proprietário, ou seja, a quantidade excedente de alimento que restaria para o arrendatário, após pagar a mão-de-obra e repor o capital do proprietário juntamente com os lucros normais deste. Qualquer que fosse a taxa normal pela qual esta mão-de-obra fosse remunerada no respectivo país, esse excedente maior sempre poderia manter um contingente maior de mão-de-obra, e conseqüentemente possibilitaria ao dono da terra a compra dum contingente maior de trabalho. Necessariamente seriam muito maiores o valor real de sua renda, seu poder e autoridade reais, seu controle sobre os artigos necessários e convenientes para a vida, que o trabalho de outras pessoas poderia proporcionar-lhe. Um arrozal produz uma quantidade maior de alimento que o mais fértil campo de trigo. Com efeito, segundo se afirma, a produção normal de um acre de terra de arroz dá duas colheitas por ano, com a produção de 30 a 60 bushels136 cada uma. Embora, portanto, o cultivo do arroz requeira mais trabalho, é muito maior seu excedente, depois de paga toda essa mão-de-obra. Por isso, nos países cultivadores de arroz, em que este é o alimento vegetal comum e favorito da população, e onde os cultivadores se mantêm sobretudo com o arroz, o proprietário da terra deverá obter uma parcela maior desse excedente maior, do 136 Medida inglesa de capacidade para cereais, equivalente a 36,36 litros. (N. do E.) 198
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que nos países que se dedicam à triticultura. Na Carolina, onde, como em outras colônias britânicas, os plantadores são ao mesmo tempo os proprietários da terra e os cultivadores, e onde, portanto, a renda se confunde com o lucro, o cultivo do arroz se mostra mais rendoso do que o do trigo, ainda que os arrozais produzam apenas uma colheita anual, e embora, devido à prevalência dos costumes europeus, o arroz não seja, naquele país, o alimento vegetal comum e favorito da população. Um bom arrozal é um pantanal em todas as estações do ano, e em uma das estações é um pantanal coberto de água. Ele não é adequado nem para o cultivo do trigo, nem para pastagens ou vinhedos, nem, na realidade, para qualquer outro produto vegetal de grande utilidade para o homem; em contrapartida, as terras adequadas para esses produtos não o são para o cultivo do arroz. Por isso, mesmo nos países cultivadores de arroz, a renda proporcionada pelas terras de arroz não pode determinar a renda de outras terras de cultivo, as quais nunca poderão ser empregadas para o cultivo de arroz. O alimento produzido por um campo de batatas não é inferior em quantidade ao produzido por um arrozal, e é muito superior ao que é produzido por uma plantação de trigo. Doze mil libras-peso de batatas, produzidas por um acre de terra, tão normal como uma produção de 2 mil libras-peso de trigo. Com efeito, a comida ou o alimento sólido que se pode extrair dessas duas plantas de forma alguma é proporcional a seu peso, devido à natureza aquosa das batatas. Supondo, porém, que a metade do peso dessa raiz é constituída de água — margem muito grande —, temos que um acre de batatas ainda produz 6000 libras-peso de alimento sólido, ou seja, três vezes a quantidade produzida por um acre de trigo. O cultivo de um acre de batatas acarreta uma despesa inferior à de um acre de trigo, já que o alqueive que geralmente precede à semeadura do trigo mais do que compensa o lavrar da terra e outros cuidados sempre indispensáveis para o cultivo da batata. Se algum dia essa planta tuberosa viesse a se tornar em alguma região da Europa, como o arroz em alguns países, o alimento vegetal comum e favorito da população, de maneira a ocupar a mesma proporção de terra agriculturável que a ocupada atualmente pelos cereais para alimentação humana, a mesma quantidade de terra cultivada manteria um número muito maior de pessoas, e alimentando-se geralmente os trabalhadores com batatas, sobraria um excedente maior, após repor todo o capital e pagar toda a mão-de-obra empregada no cultivo. Maior seria também a parcela desse excedente que pertenceria ao dono da terra. A população se tornaria mais densa, e as rendas aumentariam muito mais do que atualmente. A terra adequada para a plantação de batatas é também indicada para quase todos os demais vegetais úteis. Se a cultura de batatas ocupasse a mesma proporção de terra cultivada que o trigo ocupa no momento, regularia da mesma forma a renda da maior parte das outras terras cultivadas. Tenho ouvido dizer que em Lancashire se afirma constituir o pão 199
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de farinha de aveia um alimento que dá mais vigor aos trabalhadores do que o pão de trigo, e também na Escócia ouvi muitas vezes a mesma teoria. Entretanto, tenho alguma dúvida a respeito da veracidade dessa tese. Com efeito, o povo comum que na Escócia se alimenta com farinha de aveia geralmente não é tão forte nem tão saudável como a mesma classe de pessoas na Inglaterra, que se alimenta com pão de trigo. Nem o trabalho deles é da mesma qualidade, nem a sua aparência é tão boa; e já que não existe a mesma diferença entre as pessoas de posição nos dois países, a experiência parece mostrar que o alimento do povo comum da Escócia não é tão adequado à constituição humana como o de seus vizinhos da mesma condição na Inglaterra. Entretanto, não parece ocorrer a mesma coisa com as batatas. Os carregadores de cadeirinhas, os carregadores e os transportadores de carvão de Londres, bem como essas infelizes mulheres que vivem da prostituição, talvez os homens mais fortes e as mais lindas mulheres dos domínios britânicos, que geralmente se alimentam de batata, são considerados, em sua maior parte, como pertencentes à mais baixa categoria da população da Irlanda. Nenhum alimento oferece uma demonstração mais concludente de sua qualidade nutritiva ou de ser especialmente adequado à constituição humana. E difícil conservar batatas durante todo o ano e impossível estocá-las, como se faz com o trigo, por dois ou três anos sucessivos. O medo de não se conseguir vendê-las antes de apodrecerem desestimula o seu cultivo, constituindo talvez esse o obstáculo principal para que a batata se tome um dia, em algum grande país, o alimento vegetal básico de todas as classes da população, como ocorre com o trigo. PARTE SEGUNDA O produto da terra que às vezes proporciona renda e às vezes não O alimento humano parece ser o único produto da terra que sempre e necessariamente proporciona alguma renda ao proprietário da terra. Os outros tipos de produto às vezes podem gerar tal renda para o proprietário da terra, e às vezes não, de acordo com a diversidade das circunstâncias. Depois da alimentação, as duas grandes necessidades do homem são o vestuário e a moradia. A terra, em seu estado original e não tratada, é capaz de proporcionar os materiais para o vestuário e para a moradia a um número muito maior de pessoas do que ela pode alimentar. Quando devidamente tratada, a terra pode às vezes alimentar um número maior de pessoas do que o número de pessoas ao qual pode garantir vestuário e moradia, ao menos da forma em que as pessoas exigem e estão dispostas a pagar. No primeiro estado, portanto, existe sempre uma superabundância daqueles materiais que são freqüentemente, nesse sentido, de pouco ou nenhum valor. No outro estado existe freqüentemente escas200
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sez, que necessariamente aumenta seu valor. No primeiro estado, jogase fora como inúteis uma grande parte desses materiais, e o preço dos materiais efetivamente empregados é apenas o trabalho e a despesa necessários para prepará-los e adequá-los para o uso real e, portanto, não são capazes de proporcionar renda alguma ao proprietário da terra. No segundo estado — da terra já trabalhada —, os materiais para vestuário e para moradia são sempre utilizados, e muitas vezes a demanda supera a oferta. Nessas circunstâncias, sempre existe alguém disposto a pagar por cada parcela desses materiais, mais do que é suficiente para cobrir as despesas necessárias para a sua comercialização. Seu preço, portanto, sempre pode proporcionar alguma renda ao proprietário da terra. As peles dos animais de maior porte constituíram os primeiros materiais de vestuário. Por isso, entre as nações de caçadores e pastores cujo alimento consiste principalmente na carne desses animais, cada homem, providenciando ele mesmo sua alimentação, adquire os materiais em quantidade maior do que poderá vestir. Se não houvesse nenhum comércio exterior, a maior parte desses materiais seria jogada fora como objetos sem valor. Esse era provavelmente o caso nas nações de caçadores da América do Norte, antes de seu país ser descoberto pelos europeus, com os quais agora permutam seu excedente de peles por cobertores, armas de fogo e aguardente, o que lhes dá algum valor. No atual estágio comercial do mundo conhecido, as nações mais primitivas, acredito, entre as quais está estabelecida a propriedade da terra, têm algum comércio exterior desse tipo e encontram entre seus vizinhos mais ricos uma demanda de todos os materiais de vestuário, produzidos pela sua terra, e que não podem ser processados nem consumidos internamente, já que aumenta seu preço acima do que custa para exportá-los a esses vizinhos mais ricos. Portanto, proporcionam alguma renda ao proprietário da terra. Quando a maior parte do gado montanhês era consumido em suas próprias colinas, a exportação de seus couros constituía o artigo mais considerável do comércio daquele país, e aquilo pelo que eram trocados proporcionava algum acréscimo à renda das propriedades montanhesas. A lã da Inglaterra, que em tempos antigos não podia ser consumida nem produzida internamente, encontrou um mercado no então mais rico e mais operoso país de Flandres, sendo que o seu preço proporcionava algo para a renda da terra de produção dessa lã. Em países não tão bem cultivados como era então a Inglaterra, ou como são atualmente as Terras Altas da Escócia, e que não tinham nenhum comércio exterior, os materiais para vestuário evidentemente abundariam a tal ponto, que grande parte deles seria jogada fora como algo de inútil, e nesse caso nenhuma parcela dessa produção poderia proporcionar qualquer renda ao proprietário da terra. Os materiais para construção de moradia nem sempre podem ser transportados a distâncias tão grandes quanto os destinados ao vestuário, não sendo também possível prepará-los com tanta rapidez 201
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para exportação. Quando superabundam no país que os produz, acontece com freqüência, mesmo no atual estágio do comércio mundial, que não tenham valor algum para o dono da terra. Uma boa pedreira nas proximidades de Londres geraria uma renda considerável. Em muitas partes da Escócia e do País de Gales, ela não produz renda alguma. As árvores não frutíferas, de madeira destinada à construção, têm grande valor em um país bem povoado e cultivado, sendo que a terra que as produz proporciona uma renda considerável. Entretanto, em muitas regiões da América do Norte, o dono da terra agradeceria muito a quem levasse embora a maior parte das suas grandes árvores. Em algumas partes das Terras Altas da Escócia, a casca é a única parte da madeira que, por falta de estradas e de transporte aquático, pode ser comercializada. Deixa-se a madeira apodrecer no solo. Quando os materiais para construção de casa são superabundantes a esse ponto, a parte utilizada vale apenas o trabalho e a despesa necessários para adequá-los ao respectivo emprego. Não proporcionam renda alguma ao proprietário da terra, o qual geralmente permite o uso deles a toda pessoa que solicitar permissão. Entretanto, às vezes a demanda de nações mais ricas lhe dá a possibilidade de auferir uma renda. A pavimentação das ruas de Londres possibilitou aos proprietários de algumas pedreiras áridas da costa da Escócia auferir uma renda daquilo que nunca pudera ser aproveitado antes. As madeiras da Noruega e das costas do Báltico encontram mercado em muitas regiões da GrãBretanha, mercado esse que não conseguiriam no respectivo país, e portanto proporcionam alguma renda a seus proprietários. Os países são populosos não em proporção ao número de pessoas que podem se vestir e morar com seus produtos, mas em proporção ao número de pessoas que podem alimentar. Quando há alimentação, é fácil encontrar o necessário para vestir e morar. Mas, embora esses materiais estejam à mão, freqüentemente pode ser difícil encontrar alimentos. Mesmo em certas partes dos domínios britânicos, o que se chama uma casa pode ser construído com o trabalho de um dia de um único homem. Os tipos mais simples de vestimenta, ou seja, as peles de animais, exigem um trabalho um tanto maior para adequá-los a seu uso. Eles não exigem, no entanto, muita coisa. Entre nações selvagens e primitivas, a centésima parte — ou pouco mais — do trabalho de todo o ano será suficiente para prover de vestimenta e moradia satisfatórias a maior parte do povo. As outras noventa e nove partes muitas vezes mal são suficientes para suprir esse povo de alimentos. Entretanto, quando, em razão do aprimoramento e do cultivo da terra, o trabalho de uma família é capaz de produzir alimentos para duas, basta o trabalho da metade da sociedade para prover de alimentos o país inteiro. A outra metade da população, portanto, ou ao menos a maior parte dela, pode ser empregada em produzir outras coisas ou para atender a outras necessidades ou caprichos da humanidade. Os objetos principais para satisfazer a maior parte dessas necessidades e caprichos são representados pelo vestuário e pela moradia, 202
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pelos móveis domésticos e pelo que é chamado de equipamentos. O rico não consome mais alimento do que seu vizinho pobre. Pode haver muita diferença na qualidade, sendo que para escolher e preparar essa melhor qualidade pode ser necessário mais trabalho e arte; mas, no que tange à quantidade, é quase a mesma coisa. Compare-se, porém, a grande mansão e o grande guarda-roupa do rico com o casebre e os poucos trapos do pobre, e se notará que a diferença no vestuário e no mobiliário da casa é quase tão grande em quantidade quanto em qualidade. O desejo de alimento é limitado em cada um pela restrita capacidade do estômago humano; mas o desejo de comodidades e de artigos ornamentais para a casa, do vestuário, dos pertences familiares e da mobília parece não ter limites ou fronteiras definidas. Por isso, aqueles que dispõem de mais alimentos do que a quantidade necessária para seu consumo, sempre estão dispostos a trocar o excedente, ou seja, o que é a mesma coisa, o preço deles, por gratificações desse outro tipo. O que vai muito além da satisfação do desejo limitado é dado para o atendimento daqueles desejos que não podem ser satisfeitos, mas que parecem ser todos eles infinitos. Os pobres, para obter alimento, esforçam-se por atender a esse capricho dos ricos e, para ter mais certeza de conseguir esse objetivo, porfiam entre si para manter o baixo preço e a perfeição de seu trabalho. O número de trabalhadores cresce proporcionalmente ao aumento da quantidade de alimento, ou seja, ao crescente aprimoramento e cultivo das terras; e já que a natureza de suas ocupações permite a máxima subdivisão de trabalho, a quantidade de materiais que podem elaborar aumenta em uma proporção muito maior do que seu número. Daí surge uma demanda por todo tipo de material que a criatividade humana pode empregar, de maneira útil ou ornamental, na construção, no vestuário, nos equipamentos ou na mobília do lar, surgindo também a demanda pelos fósseis e minerais contidos nas entranhas da terra, pelos metais e pedras preciosas. Dessa forma, o alimento não é somente a fonte original da renda, mas qualquer outra parte do produto da terra que depois proporciona renda, deriva essa parcela de seu valor do aperfeiçoamento das forças de trabalho na produção de alimento através do aprimoramento e do cultivo da terra. Contudo, esses outros produtos da terra, que depois geram renda, não a geram sempre. Mesmo em países desenvolvidos e cultivados, a demanda desses produtos nem sempre é tal que garanta um preço maior do que o suficiente para pagar a mão-de-obra e repor, juntamente com seus lucros normais, o capital que precisa ser aplicado para comercializá-los. Se a renda é ou não suficiente para tanto, depende de várias circunstâncias. Por exemplo, se uma mina de carvão gerar alguma renda isso depende em parte de sua fertilidade, em parte de sua localização. Pode-se dizer que qualquer tipo de mina é produtivo ou improdutivo, conforme a quantidade de minerais que dela se pode obter com 203
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determinada quantidade de trabalho seja maior ou menor do que pode ser conseguido com uma quantidade igual, pela maior parte das outras minas do mesmo tipo. Algumas minas de carvão bem localizadas não podem ser exploradas devido à sua infertilidade. A produção não paga a despesa. Não podem gerar lucro nem renda. Outras existem cuja produção é apenas suficiente para pagar a mão-de-obra e repor, juntamente com seu lucro normal, o capital investido na exploração. Proporcionam algum lucro ao empreiteiro, mas nenhuma renda ao proprietário. Só podem ser exploradas com vantagem pelo proprietário da terra, o qual, sendo ele mesmo o empresário da obra, aufere o lucro normal do capital por ele investido. Muitas das minas de carvão da Escócia são exploradas dessa forma, não podendo ser de outra. O proprietário da terra não permitirá a nenhuma outra pessoa a exploração dessas minas, sem que esta pague alguma renda, e ninguém tem condições para fazê-lo. Outras minas de carvão do mesmo país, suficientemente produtivas, não podem ser exploradas devido à sua localização. Uma quantidade de minério suficiente para cobrir a despesa da exploração poderia ser obtida pela quantidade normal de mão-de-obra, ou até menos do que isso. Porém, em se tratando de uma região interiorana pouco povoada e destituída de boas estradas ou de bom transporte fluvial, esta quantidade não poderia ser vendida. O carvão é um combustível menos aprimorado que a madeira, e segundo alguns é também menos saudável. Por isso, geralmente a despesa com carvão, nos lugares em que é consumido, deve ser algo menor do que com a madeira. O preço da madeira varia com o estado da agricultura, mais ou menos da mesma forma, e exatamente pela mesma razão que o preço do gado. Em seu estado primitivo, a maior parte da área de qualquer país está coberta de florestas, que nessa situação não representam mais do que um estorvo, sem nenhum valor para o proprietário da terra, o qual teria prazer em presenteá-las, a quem quer que fosse, para o corte. À medida que progride a agricultura, a mata é em parte roçada e limpa em função do cultivo, e uma parte se deteriora em conseqüência do aumento do número de cabeças de gado. Este, embora não aumente na mesma proporção que o trigo, que é integralmente uma aquisição do trabalho humano, multiplica-se sob o cuidado e a proteção do homem; este último estoca na época da abundância aquilo que pode manter o gado no tempo da escassez, fornece durante todo o ano uma quantidade de alimento maior do que a natureza hostil dá ao gado, destruindo e extirpando todos os seus inimigos, o que lhe dá segurança para desfrutar de tudo aquilo que a natureza lhe fornece. Os numerosos rebanhos de gado, quando se lhes permite andar pelas florestas, embora não destruam as árvores velhas, impedem árvores novas de crescerem, de sorte que durante um século ou dois a floresta inteira se perde. A escassez da madeira faz, então, com que seu preço 204
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suba. Ela proporciona uma boa renda, e por vezes o proprietário das terras acredita que dificilmente pode empregar suas melhores terras com mais vantagem do que cultivando árvores não frutíferas, sendo que nesse caso o grande montante do lucro muitas vezes compensa a demora do retorno. Este parece ser, mais ou menos, o estágio atual em que nos encontramos, em várias regiões da Grã-Bretanha, regiões essas nas quais se constata que o lucro que se tira das florestas é o mesmo que se aufere da cultura do trigo ou das pastagens. A vantagem que o proprietário da terra usufrui das florestas em parte alguma pode ser maior, ao menos durante um período considerável, do que a renda que pode auferir do cultivo do trigo ou das pastagens; e numa região do interior altamente cultivada, muitas vezes não ficará muito abaixo dessa renda. Com efeito, na costa marítima de um país bem cultivado, se o carvão pode ser usado como combustível, às vezes pode ser mais barato trazer madeira de construção de países estrangeiros menos cultivados, do que cultivar a madeira no próprio país. Na nova cidade de Edimburgo, construída nesses poucos anos, talvez não haja uma única peça de madeira escocesa. Qualquer que seja o preço da madeira, se o do carvão é tal que a despesa do fogo de carvão é quase igual ao obtido com madeira, podemos estar certos de que, nesse lugar, e em paridade de circunstâncias, o preço do carvão é o mais alto possível. Assim parece ser em algumas regiões do interior da Inglaterra, especialmente no Oxfordshire, onde é costume, mesmo nos fogões do povo, misturar carvão e madeira, e onde, portanto, não pode ser muito grande a diferença de preço desses dois combustíveis. Nos países em que abunda o carvão, o custo desse combustível em toda parte está muito abaixo desse preço mais alto. Se assim não fosse, o carvão não poderia suportar a despesa de um transporte a longa distância, quer por terra, quer por água. Só se conseguiria vender uma quantidade pequena e os proprietários do carvão consideram mais interessante para eles vender uma quantidade maior a um preço pouco acima do mínimo, do que vender uma quantidade pequena ao preço máximo. Além disso, a mina de carvão mais fértil regula o preço do carvão em todas as outras minas da região. Tanto o proprietário como o empreiteiro da mina consideram, o primeiro, que pode obter uma renda maior, e o segundo, que pode auferir um lucro maior, vendendo um pouco mais barato que todos os seus vizinhos, que logo serão obrigados a vender pelo mesmo preço, embora não possam facilmente fazê-lo e embora isso sempre diminua sua renda e seu lucro, às vezes até eliminando-os totalmente. Algumas minas acabam sendo totalmente abandonadas, ao passo que outras não têm condições para proporcionar renda alguma, só podendo ser exploradas de forma rentável pelos proprietários. O preço mínimo pelo qual o carvão pode ser vendido, durante um período mais longo, é, como no caso de todas as demais mercadorias, o preço apenas suficiente para repor, juntamente com seu lucro normal, 205
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o capital que deve ser empregado para colocá-lo no mercado. Em uma mina de carvão em que o proprietário da terra não tem condições de auferir nenhuma renda, mas que deve explorá-la ele mesmo ou deixá-la simplesmente abandonada, o preço real do carvão deve geralmente aproximar-se desse preço mínimo. A renda, mesmo onde o carvão a proporciona, geralmente representa uma parcela do preço menor do que em se tratando da maioria dos outros tipos de produtos brutos da terra. A renda de uma propriedade acima do solo costuma representar aproximadamente um terço da produção bruta, sendo geralmente uma renda certa, que independe das variações ocasionais da safra. Em se tratando de minas de carvão, um quinto da produção bruta representa uma renda considerável; o normal é ela representar um décimo da produção bruta, sendo raramente uma renda certa, pois dependerá das variações ocasionais da produção. Elas são tão grandes, que em um país em que trinta anos de compra são considerados como um preço moderado para o proprietário de terra, dez anos de compra são considerados como um bom preço para o caso de uma mina de carvão. O valor de uma mina de carvão para o proprietário muitas vezes depende tanto de sua localização quanto de sua riqueza. O de uma mina de metais depende mais da riqueza e menos de sua localização. Os metais menos nobres, e mais ainda os metais preciosos, quando separados do minério, são tão valiosos, que geralmente podem suportar a despesa de um transporte de muito longe por terra e de mais distante ainda por mar. Seu mercado não se limita aos países próximos à mina, mas estende-se ao mundo inteiro. O cobre do Japão é comercializado na Europa; o ferro da Espanha é comercializado no Chile e no Peru. A prata do Peru é exportada não somente para a Europa, mas da Europa para a China. O preço do carvão em Westmorland ou em Shropshire pouco efeito pode ter sobre o seu preço em Newcastle, sendo que o preço em Lionnois não pode ter efeito algum. As produções dessas minas de carvão tão distantes jamais podem fazer concorrência entre si. Isso pode ocorrer, com freqüência, porém, com as produções das minas de metais mais distantes, e de fato isso ocorre comumente. Eis por que o preço dos metais menos nobres, e mais ainda o dos metais preciosos nas minas mais ricas do mundo, necessariamente afeta, em medida maior ou menor, o preço em qualquer outra parte. O preço do cobre no Japão deve ter alguma influência sobre o seu preço nas minas de cobre européias. O preço da prata no Peru, ou a quantidade de trabalho ou de outros bens que ela pode comprar naquele país, deve ter alguma influência em seu preço, não somente nas minas de prata da Europa, mas também nas da China. Após a descoberta das minas do Peru, as minas de prata da Europa em sua maior parte foram abandonadas. O valor da prata foi reduzido a tal ponto, que a produção já não era suficiente para pagar o trabalho da exploração das minas, ou seja, para repor, juntamente com o lucro, a alimentação, a roupa, a moradia 206
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e outros artigos consumidos naquela operação. Foi o que ocorreu também com as minas de Cuba e São Domingos, e até mesmo com as antigas minas do Peru, depois da descoberta das de Potosi. Por isso, o preço de cada metal em cada mina, já que é regulado, até certo ponto, pelo seu preço nas minas mais ricas do mundo efetivamente em operação, pode, na maior parte das minas, conseguir muito mais do que pagar as despesas de trabalho, e raramente pode proporcionar uma renda muito elevada ao dono da terra. Portanto, ao que parece, na maior parte das minas a renda da terra representa uma pequena parcela no preço dos metais menos nobres, e uma parcela ainda menor do preço dos metais preciosos. Em ambos os casos, a mão-de-obra e o lucro representam a maior parte do preço. Como nos diz o Rev. Sr. Borlace, vice-diretor das minas de estanho, no caso de minas de estanho da Cornualha — as mais ricas que se conhecem no mundo todo — a renda média proporcionada representa a sexta parte da produção bruta. Algumas delas, afirma ele, proporcionam uma renda maior e em outras a renda não é tão elevada. Também em várias minas muito ricas de chumbo da Escócia, a renda da terra representa a sexta parte da produção bruta. Segundo nos referem Frezier e Ulloa, nas minas de prata do Peru o proprietário muitas vezes não consegue outra garantia a não ser o compromisso de que vai processar o minério em sua usina, pagando-lhe a gratificação ou preço normal de processamento. Com efeito, até 1736, o imposto pago ao rei da Espanha era de 1/5 da prata-padrão, o que até então podia ser considerado como a renda real da maior parte das minas de prata do Peru, as maiores e mais ricas que se conheciam no mundo. Se não tivesse havido imposto, esse 1/5 naturalmente teria pertencido ao dono da terra, e ter-se-ia podido explorar muitas minas que permaneceram inativas, por não poderem pagar esse imposto. Supõe-se que o imposto pago ao Duque de Cornualha sobre o estanho era de mais de 5%, ou seja, 1/20 do valor; e qualquer que possa ser sua proporção, naturalmente ela pertenceria ao dono da mina, se o estanho fosse isento de imposto. Se porém somarmos 1/20 com 1/6, constataremos que a renda média integral das minas de estanho da Cornualha estava para a renda média integral das minas de prata do Peru como treze está para doze. Atualmente, porém, as minas de prata peruanas não têm sequer condições para cobrir essa baixa renda, sendo que, em 1736, o imposto sobre a prata caiu de 1/5 para 1/10. Mesmo esse imposto sobre a prata é mais tentador para o contrabando, do que o imposto de 1/20 sobre o estanho; ora, o contrabando deve ser muito mais fácil de ser praticado com metais preciosos do que com mercadorias volumosas. Afirma-se, portanto, que o imposto devido ao rei da Espanha é muito sonegado, ao passo que o devido ao Duque de Cornualha geralmente é pago. É provável, pois, que a renda represente uma parcela maior do preço nas minas de estanho mais ricas, do que do preço da prata nas minas de prata mais ricas do mundo. Após repor o capital investido na exploração 207
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das diversas minas, juntamente com seu lucro normal, a parcela que resta para o proprietário, ao que parece, é maior nos metais menos nobres do que nos metais preciosos. Também o lucro dos empreiteiros das minas de prata do Peru não costuma ser muito grande. Os dois autores já citados, altamente respeitáveis e bem informados, relatam que quando uma pessoa empreende a exploração de uma nova mina no Peru, é por todos considerada como uma pessoa destinada à bancarrota e à ruína, e é por isso evitada por todos. Como aqui, também lá, ao que parece, a mineração é considerada uma loteria, na qual os prêmios não compensam os bilhetes brancos, embora o montante de alguns prêmios tente muitos aventureiros a jogar fora suas fortunas em projetos não propícios. Todavia, uma vez que o soberano aufere da produção de prata das minas uma parte apreciável de sua receita, a lei peruana oferece toda sorte de estímulos à descoberta e à exploração de novas minas. Toda pessoa que descobrir uma nova mina está autorizada a demarcar 246 pés de comprimento, na direção que supõe ser a do veio, e a metade disso em largura. Torna-se proprietário dessa porção da mina, podendo explorá-la sem nada pagar ao proprietário da terra. Os interesses do Duque de Cornualha o levaram a baixar um regulamento semelhante, nesse antigo ducado. Em terras agrestes e não cercadas, qualquer pessoa que descobrir uma nova mina pode fixar seus limites em uma certa extensão, o que se chama de demarcar uma mina. O demarcador torna-se o proprietário real da mina, podendo explorá-la ele mesmo ou arrendá-la a outro, sem o consentimento do dono da terra, ao qual, porém, deverá pagar uma remuneração muito irrelevante, por ocasião da exploração. Nos dois regulamentos, os sagrados direitos da propriedade privada são sacrificados aos supostos interesses da receita pública. O mesmo incentivo é dado no Peru à descoberta e à exploração de minas de ouro, sendo que, no tocante ao ouro, o imposto régio é apenas a vigésima parte do metal-padrão. Antigamente era 1/5, e depois 1/10, como o da prata; constatou-se, porém, que a exploração não suportaria sequer esse último imposto. Entretanto, segundo afirmam os mesmos Frezier e Ulloa, é raro deparar com alguém que tenha feito fortuna com uma mina de prata, e muito mais raro ainda é encontrar alguém que o tenha conseguido com uma mina de ouro. A vigésima parte parece ser renda total paga pela maior parte das minas de ouro no Chile e no Peru. Além disso, o ouro também é muito mais passível de contrabando do que a própria prata; não somente devido ao maior valor do metal em proporção com seu volume, mas também em razão da maneira peculiar como a natureza o produz. É muito mais raro encontrar a prata em estado virgem, mas, como a maior parte dos outros metais, também ela geralmente está mesclada a outros corpos, dos quais é impossível separá-la em uma quantidade que compense a despesa a não ser por uma operação muito laboriosa e cansativa, que só pode ser executada em oficinas montadas para esse fim, e portanto sujeitas à inspeção dos oficiais do rei. Ao contrário, o ouro quase sempre 208
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se encontra em estado virgem. Por vezes é encontrado em peças de certo volume; e mesmo quando se encontra mesclado a partículas quase imperceptíveis de areia, terra e outros corpos estranhos, pode ser isolado mediante uma operação muito breve e simples, que pode ser executada em qualquer casa particular, por qualquer pessoa que disponha de uma pequena quantidade de mercúrio. Se, pois, se sonega o imposto real da prata, é provável que a sonegação seja muito maior no caso do ouro; conseqüentemente, a renda representará uma parcela muito menor do preço do ouro do que do preço da própria prata. O preço mínimo pelo qual se pode vender os metais preciosos ou a quantidade mínima de outros bens pela qual eles podem ser trocados durante um período de tempo considerável é regulado pelos mesmos princípios que determinam o preço normal mínimo de todos os demais bens. O capital que deve comumente ser empregado, os alimentos, as roupas e o alojamento normalmente consumidos para extraí-los da mina e colocá-los no mercado são seus fatores determinantes. O preço deles deve ser no mínimo suficiente para repor o capital, com o lucro normal. Entretanto, o preço máximo dos metais preciosos não parece ser necessariamente determinado por outro fator a não ser a escassez ou abundância dos próprios metais. Não é determinado pela escassez ou abundância de qualquer outra mercadoria, como o preço do carvão é determinado pelo da madeira, além do que nenhuma escassez pode aumentá-lo. Aumente-se a escassez do ouro até certo grau e a mínima parcela dele se tornará mais preciosa que um diamante, podendo ser trocada por uma quantidade maior de outros bens. A demanda desses metais provém em parte de sua utilidade e em parte de sua beleza. Se excetuarmos o ferro, são talvez mais úteis do que qualquer outro metal. Por serem menos sujeitos à ferrugem e à impureza, é mais fácil conservá-los limpos, sendo por isso que os utensílios de mesa e de cozinha muitas vezes são mais agradáveis quando feitos com esses metais. Um caldeirão de prata é mais limpo e higiênico do que um de chumbo, cobre ou estanho, e a mesma característica tornaria um caldeirão de ouro ainda melhor do que um de prata. O mérito principal dos metais preciosos, porém, reside em sua beleza, que os torna particularmente indicados para ornamentos do vestuário e do mobiliário. Nenhuma pintura ou tintura é capaz de dar uma cor tão esplêndida quanto uma douração. O mérito de sua beleza é grandemente realçado pela sua escassez. Para a maior parte das pessoas ricas, o prazer principal da riqueza consiste na ostentação dessa riqueza, que a seus olhos nunca é totalmente completa como quando são vistas pelos outros como possuidoras daquelas marcas decisivas de opulência, que ninguém mais, a não ser elas, possuem. Aos olhos dos ricos, o mérito de um objeto que de certa forma seja útil ou belo é altamente realçado pela sua raridade ou pelo grande trabalho que se requer para juntar uma quantidade considerável dele, trabalho esse que ninguém tem condições de pagar, a não ser eles. Os ricos desejam comprar tais objetos a um preço mais alto que coisas muito 209
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mais belas e úteis, porém mais comuns. Essas características de utilidade, beleza e raridade constituem a razão e o fundamento básico do alto preço desses metais, ou seja, da grande quantidade de outros bens pela qual podem ser trocados em qualquer lugar. Esse valor foi anterior e independente de terem sido empregados como moeda e foi a qualidade que os levou a tal emprego. O emprego, no entanto, ocasionando nova demanda e diminuindo a quantidade que poderia ser empregada de qualquer outra maneira, pode ter, posteriormente, contribuído para manter ou aumentar seu valor. A demanda de pedras preciosas provém totalmente da sua beleza. Não têm utilidade, mas servem como ornamentos, sendo que o mérito de sua beleza é grandemente realçado pela sua raridade, ou seja, pela dificuldade e despesa para extraí-las da mina. Por conseguinte, na maior parte dos casos, os salários e o lucro perfazem o seu alto preço quase na sua totalidade. A renda surge no preço, mas com uma parcela mínima; freqüentemente, nenhuma; somente as minas mais ricas proporcionam uma renda considerável. Quando Tavernier, um joalheiro, visitou as minas de diamantes de Golconda e Visiapour, foi informado de que o soberano do país, para cujo benefício as minas eram exploradas, havia ordenado o fechamento de todas elas, excetuadas as que forneciam as pedras maiores e mais preciosas. As outras, ao que parece, não compensavam ao proprietário sua exploração. Já que o preço tanto dos metais preciosos como das pedras preciosas é regulado em todo o mundo pelo preço que têm na mina mais rica, a renda que uma mina de metais preciosos ou de pedras preciosas pode oferecer ao proprietário é proporcional, não à sua riqueza absoluta, mas ao que se pode chamar sua riqueza relativa, ou seja, à sua superioridade em relação a outras minas da mesma espécie. Se fossem descobertas novas minas, tão superiores quanto às de Potosi como estas eram superiores àquelas da Europa, o valor da prata poderia degradar-se tanto a ponto de mesmo as minas de Potosi não serem dignas de exploração. Antes da descoberta das Índias Ocidentais Espanholas, as minas mais ricas da Europa podem ter dado a seus proprietários uma renda tão grande como as que as minas mais ricas do Peru proporcionam atualmente. Embora a quantidade de prata fosse muito menor possivelmente talvez pudesse ser trocada por uma quantidade igual de outros bens, e a parcela do proprietário poderia ter-lhe possibilitado comprar ou comandar uma quantidade igual de mão-de-obra ou de mercadorias. O valor, tanto da produção quanto da renda, o rendimento real que proporcionavam, tanto ao público quanto ao proprietário, deveriam ter sido os mesmos. As minas mais abundantes de metais preciosos ou de pedras preciosas pouco poderiam acrescentar à riqueza do mundo. Um produto cujo valor principal deriva de sua raridade é necessariamente desvalorizado por sua abundância. Uma baixela de prata e os outros frívolos ornamentos de vestuário e mobiliário poderiam ser comprados por uma quantidade menor de trabalho ou por uma quantidade menor de mer210
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cadorias; e nisso consistiria a única vantagem que o mundo poderia auferir dessa abundância. A situação é outra em se tratando de propriedades acima do solo. O valor de sua produção e da renda da terra é proporcional à sua fertilidade absoluta e não à sua fertilidade relativa. A terra que produz uma certa quantidade de alimentos, material de vestuário e moradia sempre pode alimentar, vestir e alojar certo número de pessoas; e qualquer que seja a porcentagem que fica para o proprietário da terra, sempre ela tem condições de oferecer-lhe um controle proporcional do trabalho daquelas pessoas e das mercadorias com as quais aquele trabalho pode supri-los. O valor das terras mais estéreis não é diminuído pela proximidade das terras mais férteis. Pelo contrário, é geralmente aumentado por ela. O grande número de pessoas mantidas pelas terras férteis proporciona um mercado para muitas partes da produção das terras estéreis, que jamais teriam podido encontrar entre aqueles que sua própria produção poderia manter. Tudo aquilo que aumenta a fertilidade da terra na produção de alimentos aumenta não somente o valor das terras nas quais se implantam aprimoramentos, mas contribui igualmente para aumentar o valor de muitas outras terras, criando uma nova demanda de sua produção. Aquela abundância de alimentos da qual, em conseqüência do aprimoramento da terra, muitas pessoas dispõem além do que elas próprias podem consumir, constitui a grande causa da demanda dos metais preciosos e das pedras preciosas, bem como de quaisquer outras comodidades e ornamentos de vestuário, moradia, mobiliário e demais equipamentos. O alimento não somente constitui a parte principal das riquezas do mundo, mas é a abundância de alimentos que confere a parcela principal de valor a muitos outros tipos de riqueza. Os habitantes pobres de Cuba e de São Domingos, ao serem descobertos pelos espanhóis, costumavam usar pequenas peças de ouro como ornamento dos cabelos e de algumas peças de sua roupa. Pareciam dar-lhes o mesmo valor que nós daríamos a quaisquer pequenos seixos de beleza pouco mais que a normal, considerando-as como algo que paga apenas o trabalho de apanhá-las mas que não se pensaria em recusar a quem os pedisse. Davam-nas aos seus hóspedes recém-chegados, ao primeiro pedido, não dando a impressão de pensarem que estavam dando algum presente de valor. Pasmavam-se em observar como os espanhóis cobiçavam esses objetos, não imaginando que poderia haver um país em que muitas pessoas dispusessem de tantos alimentos supérfluos — sempre tão escassos entre eles — que por uma quantidade mínima dessas bugigangas cintilantes estavam dispostas a pagar o que seria suficiente para manter uma família inteira durante muitos anos. Se tivessem podido compreender isso, a sofreguidão dos espanhóis não lhes teria causado surpresa. 211
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PARTE TERCEIRA As variações na proporção entre os respectivos valores daqueles tipos de produto que sempre proporcionam renda e daqueles tipos de produto que às vezes geram renda e às vezes não A abundância crescente de alimentos, decorrente do aumento das melhorias e do cultivo da terra, necessariamente aumenta a demanda de todo produto da terra que não seja alimento, e que possa ser utilizado para o uso ou para ornamentação. Poder-se-ia, portanto, esperar que, à medida que avança o desenvolvimento, só deveria haver uma variação nos valores comparativos desses dois tipos de produtos. O valor daquele tipo de produtos que às vezes proporcionam e às vezes não proporcionam renda deveria aumentar constantemente, em proporção àquele tipo que sempre proporciona renda. À medida que progridem a arte e os ofícios, os materiais do vestuário e de moradia, os fósseis e os minerais úteis da terra, os metais preciosos e as pedras preciosas deveriam gradualmente transformar-se em objetos de maior demanda, deveriam gradualmente poder ser permutados por uma quantidade sempre maior de alimentos ou, em outras palavras, deveriam tornar-se gradualmente cada vez mais caros. Isso ocorreu efetivamente com a maioria desses bens, na maioria dos casos, e teria acontecido com todos eles, em qualquer caso, se determinados eventos, em determinadas ocasiões, não tivessem aumentado a oferta de alguns deles em uma proporção ainda maior do que a demanda. O valor de uma canteira de pedra lavrada, por exemplo, aumentará necessariamente, aumentando o aprimoramento e a população das terras que lhe estão próximas, sobretudo se a pedreira for a única da região. Em contrapartida, o valor de uma mina de prata, mesmo que não houvesse outra dentro de um raio de mil milhas, não necessariamente aumentará com o aprimoramento da terra em que a mina está localizada. O mercado do produto de uma pedreira raramente pode estender-se mais do que algumas milhas ao redor, e a demanda geralmente será proporcional ao grau de aprimoramento e à população desse pequeno distrito. Mas, o mercado para a produção de uma mina de prata pode estender-se a todo o mundo conhecido. A menos, portanto, que o mundo todo crescesse em desenvolvimento e em população, a demanda de prata poderia não aumentar em absoluto, mesmo com o aprimoramento de uma grande região nas proximidades da mina. Mesmo que o mundo todo fosse aprimorado, se, no decurso de seu aprimoramento, se descobrissem novas minas, muito mais ricas do que qualquer outra até então conhecida, embora aumentasse necessariamente a demanda de prata, não obstante isso a oferta poderia aumentar em uma proporção tanto maior, de tal modo que o preço real desse metal poderia baixar gradualmente; em outros termos, qual212
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quer quantidade de prata, uma libra-peso, por exemplo, poderia gradualmente comprar ou controlar uma quantidade cada vez menor de trabalho, ou ser permutada por uma quantidade cada vez menor de trigo, artigo principal para a sobrevivência do trabalhador. O grande mercado da prata é a parte comercial e civilizada do mundo. Se, em razão do progresso geral dos aprimoramentos, aumentasse a demanda desse mercado, ao passo que a oferta não aumentasse na mesma proporção, o valor da prata aumentaria gradualmente em proporção ao do trigo. Qualquer quantidade de prata poderia ser trocada por uma quantidade cada vez maior de trigo ou, em outras palavras, o preço médio do trigo em dinheiro se tornaria progressivamente cada vez mais baixo. Se, pelo contrário, por alguma eventualidade, a oferta aumentasse por vários anos seguidos, em proporção maior que a demanda, o metal tornar-se-ia cada vez mais barato; ou em outras palavras, o preço médio do trigo em dinheiro continuaria cada vez mais alto, a despeito de todos os aprimoramentos. Se, porém, o fornecimento do metal aumentasse mais ou menos na mesma proporção que a demanda, continuaria a ser comprado ou trocado mais ou menos pela mesma quantidade de trigo, sendo que o preço médio do trigo em dinheiro, a despeito de todos os aperfeiçoamentos, continuaria mais ou menos o mesmo. Essas parecem ser as três únicas combinações possíveis de eventos que podem ocorrer no progresso dos aprimoramentos; no decurso dos quatro séculos que precedem o atual, se pudermos julgar com base no que aconteceu tanto na França como na Grã-Bretanha, cada uma dessas três diferentes combinações parece haver ocorrido no mercado europeu, aliás mais ou menos na mesma ordem na qual acabei de enumerá-las.
DIGRESSÃO SOBRE AS VARIAÇÕES DE VALOR DA PRATA NO DECURSO DOS QUATRO ÚLTIMOS SÉCULOS Primeiro Período Em 1350, e durante algum tempo antes, o preço médio do quarter de trigo na Inglaterra não parece ter sido cotado a menos de 4 onças de prata, peso Tower, equivalentes a aproximadamente 20 xelins em nosso dinheiro atual. Dali parece ter caído gradativamente para 2 onças de prata, equivalentes a aproximadamente 10 xelins em nosso dinheiro atual; essa é a cotação de preço que encontramos no início do século XVI, e que parece ter permanecido até por volta de 1570. Em 1350, 25º ano do reinado de Eduardo III, foi sancionado o chamado Estatuto dos Trabalhadores. No preâmbulo, ele reclama muito da insolência dos servos que se empenhavam em aumentar seus salários acima do de seus senhores. O decreto ordena, pois, que todos os servos e trabalhadores deveriam para o futuro contentar-se com os mesmos 213
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salários e provisões (na época provisões significavam não somente a roupa, mas também os mantimentos) que costumavam receber no 20º ano de governo do rei e nos quatro anos precedentes; e que por esse motivo, suas provisões de trigo não deveriam, em nenhuma parte, ser estimadas além de 10 pence por bushel e ficar sempre a critério do patrão fazer o pagamento em trigo ou em dinheiro. Portanto, no 25º ano de reinado de Eduardo III, considerava-se que 10 pence por bushel representava um preço bem modesto do trigo, já que foi necessário um estatuto específico para obrigar os servos a contentar-se com isso em troca de suas provisões habituais de mantimentos; e esse preço havia sido considerado um preço razoável dez anos antes, ou seja, no 16º ano de governo do rei, termo ao qual se refere o Estatuto. Mas, no 16º ano de reinado de Eduardo III, 10 pence continham aproximadamente 1/2 onça de prata, peso Tower, sendo quase igual a 1/2 coroa em nosso dinheiro atual. Portanto, 4 onças de prata, peso Tower, iguais a 6 xelins e 8 pence do dinheiro da época, e a mais ou menos 20 xelins do dinheiro atual, deve ter sido considerado um preço modesto para o quarter de 8 bushels. Certamente, esse Estatuto evidencia melhor o que na época se considerava como sendo um preço moderado de cereal, do que os preços, característicos de alguns anos específicos, que geralmente têm sido relatados por historiadores e outros escritores em razão de serem extraordinariamente altos ou baixos, e com base nos quais, portanto, é difícil fazer um julgamento sobre qual possa ter sido o preço normal. Além disso, há outras razões para crer que, no início do século XIV e durante algum tempo antes, o preço usual do trigo não estava abaixo de 4 onças de prata por quarter, e o de outros cereais da mesma proporção. Em 1309, Ralph de Born, prior da igreja de Santo Agostinho em Cantuária, ofereceu uma festa no dia de sua posse, festa essa da qual William Thorn conservou não somente o preço do cardápio mas também os preços de muitos itens específicos. Naquela festa foram consumidos: primeiro, 53 quarters de trigo, que custaram 19 libras, ou seja, 7 xelins e 2 pence por quarter, iguais a aproximadamente 21 xelins e 6 pence em nosso dinheiro atual; segundo, 58 quarters de malte, que custaram 17 esterlinos e 10 xelins, ou seja, 6 xelins por quarter, equivalentes mais ou menos a 18 xelins de nosso dinheiro de hoje; terceiro, 20 quarters de aveia, que custaram 4 libras; ou 4 xelins por quarter, equivalentes a aproximadamente 12 xelins em nosso dinheiro atual. Os preços do malte e da aveia parecem aqui ser superiores à sua proporção normal com o preço de trigo. Esses preços são registrados em virtude de seus preços extraordinariamente altos ou baixos, mas são mencionados incidentalmente como sendo os preços efetivamente pagos por grandes quantidades de cereais consumidos em uma festa famosa pela sua magnificência. Em 1262, no 51º ano do reinado de Henrique III, foi restabelecido um antigo estatuto denominado Determinação do Preço do Pão e da Cerveja Inglesa, o qual, como diz o rei no preâmbulo, foi elaborado na 214
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época de seus progenitores, já reis da Inglaterra. Portanto, o estatuto provavelmente remonta, no mínimo, à época de seu avô Henrique II, podendo até remontar à época da conquista. O estatuto regula o preço do pão de acordo com os eventuais preços do trigo, de 1 até 20 xelins o quarter, no dinheiro da época. Mas, geralmente se presume que estatutos desse gênero zelam com cuidado igual por todos os desvios do preço médio, tanto para os preços abaixo como para os preços acima da média. A ser correta essa suposição, portanto, 10 xelins, contendo 6 onças de prata, peso Tower, equivalentes a aproximadamente 30 xelins do nosso dinheiro de hoje, eis o que deve ter sido calculado como o preço médio do quarter de trigo quando esse estatuto foi promulgado, devendo ter permanecido durante o 50º ano do reinado de Henrique III. Não podemos, portanto, estar muito enganados ao supor que o preço médio não era menor do que 1/3 do preço mais alto pelo qual o Estatuto regula o preço do pão, ou do que 6 xelins e 8 pence do dinheiro daquela época, contendo 4 onças de prata, peso Tower. Partindo desses diversos fatos, portanto, parece haver alguma razão para concluir que, pelos meados do século XIV, e durante muito tempo antes, não se supunha que o preço médio ou comum do quarter de trigo fosse inferior a 4 onças de prata, peso Tower. Dos meados do século XIV até o início do século XVI, ao que parece, o que se considerava o preço razoável e moderado, ou seja, o preço médio comum do trigo, baixou gradativamente para aproximadamente a metade do preço acima, chegando, ao final, a cair a cerca de 2 onças de prata, peso Tower, equivalentes a mais ou menos 10 xelins do nosso dinheiro atual, continuando esse preço até cerca de 1570. No livro familiar de Henrique, o quinto conde de Northumberland, datado de 1512, deparamos com duas estimativas diferentes do trigo. Em uma delas ele é computado a 6 xelins e 8 pence o quarter, na outra apenas a 5 xelins e 8 pence. Em 1512, 6 xelins e 8 pence continham somente 2 onças de prata, peso Tower, sendo iguais a aproximadamente 10 xelins de nosso dinheiro de hoje. Desde o 25º ano de Eduardo III até o início do reinado de Isabel, durante o espaço de mais de duzentos anos, 6 xelins e 8 pence, segundo se infere de vários estatutos, continuava a ser o preço moderado e razoável, isto é, preço médio ou comum do trigo. Todavia, a quantidade de prata contida nessa soma nominal diminuíra continuamente durante o curso desse período, em conseqüência de algumas alterações introduzidas na moeda. Parece, porém, que o aumento do valor da prata havia compensado a tal ponto a diminuição da quantidade contida na mesma soma nominal, que a legislação não considerou valer a pena atender a essa circunstância. Assim, em 1436 foi decretado que o trigo podia ser exportado sem autorização específica, quando o preço baixasse a 6 xelins e 8 pence. E em 1463 resolveu-se que não se importasse qualquer espécie de trigo, se o preço não fosse superior a 6 xelins e 8 pence o quarter. Os legisladores imaginavam que, quando o preço estivesse tão baixo, 215
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não haveria inconveniente em exportar, e quando ele subisse, seria prudente permitir a importação. Por conseguinte, 6 xelins e 8 pence, contendo mais ou menos a mesma quantidade de prata que 13 xelins e 4 pence de nosso dinheiro atual (1/3 a menos do que a mesma soma nominal contida ao tempo de Eduardo III), foi naquela época considerado como sendo o que se chama o preço moderado e razoável do trigo. Em 1554, nos anos primeiro e segundo de Filipe e Maria, e em 1558, no ano primeiro de Isabel, proibiu-se de maneira similar a exportação de trigo, toda vez que o preço do quarter excedesse a 6 xelins e 8 pence, que na época não continha 2 pence, equivalente a mais prata que atualmente contém a mesma soma nominal. Mas logo achouse que limitar a importação de trigo até que o preço baixasse tanto equivalia na realidade a proibi-la totalmente. Por isso, em 1562, ano 5º de Isabel, permitiu-se a exportação de trigo a partir de certos pontos, toda vez que o preço do quarter não ultrapassasse os 10 xelins, contendo quase a mesma quantidade de prata que a mesma soma nominal de hoje. Esse era, pois, o que se considerava na época o preço moderado e razoável do trigo. Esse preço coincide aproximadamente com a estimativa do livro de Northumberland, de 1512. Que também na França o preço médio dos cereais era muito mais baixo ao final do século XV e no início do século XVI, do que nos dois séculos anteriores, foi observado tanto pelo Sr. Duprè de St. Maur quanto pelo elegante autor do Ensaio sobre a política dos cereais. O preço dos cereais, durante o mesmo período, havia provavelmente baixado da mesma maneira na maior parte da Europa. Esse aumento do valor da prata, em proporção ao valor do trigo, pode haver ocorrido inteiramente devido ao aumento da demanda desse metal, em conseqüência de crescentes melhoramentos e do cultivo, continuando o suprimento, nesse meio tempo, o mesmo de antes; ou então, permanecendo igual à demanda, o aumento do valor da prata pode ter sido inteiramente decorrente da redução gradual da oferta, tendo-se esgotado em grande parte a maioria das reservas então conhecidas, e portanto aumentando muito a despesa da sua exploração; ou então, o fato pode ter-se devido em parte a uma dessas circunstâncias, e em parte à outra. Ao final do século XV e no início do século XVI, a maior parte dos países europeus se aproximava de uma forma de governo mais estável do que havia vigorado durante várias gerações anteriores. Evidentemente, o aumento da segurança fazia aumentar o trabalho, a operosidade e os aprimoramentos. E também a demanda de metais preciosos bem como de qualquer outro artigo de luxo e ornamentos naturalmente aumentariam com o crescimento da riqueza. Uma produção anual maior exigiria uma quantidade maior de moeda para circular essa produção, e um número maior de pessoas ricas exigiria uma quantidade maior de baixelas e outros ornamentos de prata. É outrossim natural supor que a maior parte das minas que forneciam prata ao mercado europeu estivessem bastante esgotadas e a sua exploração 216
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se tornasse mais dispendiosa. Isto havia ocorrido com muitas delas, desde o tempo dos romanos. No entanto, a opinião comum da maior parte dos autores que escreveram sobre os preços das mercadorias nos tempos antigos é que, desde a Conquista, talvez até desde a invasão de Júlio César, até à descoberta das minas da América, o valor da prata diminuiu continuamente. Os autores parecem ter chegado a essa opinião, em parte pelas observações que puderam fazer quanto aos preços do trigo e de alguns outros produtos da terra, e em parte fundados no conceito popular de que, da mesma forma como a quantidade de prata naturalmente aumenta em cada país com o aumento da riqueza, da mesma forma seu valor diminui quando sua quantidade aumenta. Nas observações feitas por esses autores sobre os preços do trigo, três circunstâncias parecem havê-los com freqüência conduzido a conclusões errôneas. Primeiramente, nos tempos antigos quase todas as rendas da terra eram pagas em espécie; isto é, em certa quantidade de trigo, gado, aves domésticas etc. Todavia, às vezes o dono da terra estipulava que o arrendatário pudesse optar entre o pagamento anual em espécie ou o pagamento de uma certa soma de dinheiro. O preço pelo qual o pagamento em espécie era trocado por uma certa soma em dinheiro denomina-se preço de conversão, na Escócia. Já que cabe sempre ao proprietário da terra optar entre o pagamento em espécie ou em dinheiro, é necessário, para a segurança do arrendatário, que o preço de conversão esteja antes abaixo do que acima do preço médio de mercado. Por isso, em muitos lugares não está muito acima da metade desse preço. Na maior parte da Escócia, esse costume ainda continua vigorando em relação às aves domésticas, e em algumas localidades também em relação ao gado. Poderia provavelmente ter continuado a ocorrer isso também em relação ao trigo, se a instituição dos arrendamentos públicos permanentes não tivesse posto fim a isso. Trata-se, no caso, de avaliações anuais, feitas de acordo com o julgamento de uma comissão do preço médio de todos os tipos de cereais e de cada qualidade dos mesmos, conforme o preço efetivo de mercado vigente em cada condado. Essa instituição tornou suficientemente seguro para o arrendatário, e muito mais conveniente para o proprietário da terra, converter como se diz, a renda do trigo, mais segundo o preço eventual dos arrendatários permanentes de cada ano do que segundo um determinado preço fixo. Mas, os autores que pesquisaram os preços do trigo nos tempos antigos parecem muitas vezes ter confundido o que se chama, na Escócia, de preço de conversão com o preço efetivo de mercado. Em uma ocasião, Fleetwood reconhece haver cometido esse erro. Já que, porém, escreveu seu livro em função de um determinado objetivo, não considera indicado reconhecer esse equívoco senão depois de transcrever esse preço de conversão quinze vezes. O preço é 8 xelins o quarter do trigo. Essa soma, em 1423, ano em que começa sua pesquisa, continha a mesma quantidade de prata de 16 xelins, de acordo 217
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com a nossa moeda atual. Mas em 1562, ano em que ele conclui a pesquisa, ela não continha mais do que a mesma soma nominal atualmente. Em segundo lugar, os autores foram induzidos a equívocos pelo desleixo com o qual alguns antigos estatutos de fixação dos preços foram às vezes transcritos por copistas negligentes, e às vezes talvez efetivamente redigidos pelos legisladores. Ao que parece, os antigos estatutos de fixação dos preços começavam determinando qual deveria ser o preço do pão e da cerveja inglesa quando o preço do trigo e da cevada eram os mais baixos passando progressivamente a determinar qual deveria ser o preço, à medida que os preços desses dois tipos de cereais subissem progressivamente acima de seu preço mínimo. Entretanto, os que transcreveram esses estatutos parecem haver com freqüência considerado suficiente copiar as determinações até os três ou quatro primeiros preços mais baixos, economizando assim trabalho e tempo, e pensando — como suponho — que isso era suficiente para mostrar qual devia ser a proporção de aumento a ser observada em todos os preços mais altos. Assim, por exemplo, na determinação do preço do pão e da cerveja, pelo Decreto 51, de Henrique III, o preço do pão foi regulado de acordo com os diferentes preços do trigo, desde 1 xelim até 20 xelins o quarter na moeda da época. Entretanto, nos manuscritos dos quais se extraíram todas as edições dos estatutos, anteriores à do Sr. Ruffhead, os amanuenses nunca transcreveram essa determinação além do preço de 12 xelins. Com isso, vários autores, deixando-se conduzir por essa transcrição defeituosa, concluíram com muita naturalidade que o preço médio — 6 xelins o quarter, equivalente a aproximadamente 18 xelins de nosso dinheiro atual — era o preço comum ou médio do trigo naquela época. No estatuto de Tumbrel e Pillory, sancionado mais ou menos na mesma época, o preço da cerveja inglesa é regulado segundo o aumento de cada 6 pence no preço da cevada, desde 2 até 4 xelins o quarter. Ora, que 4 xelins não eram considerados como o preço máximo que poderia na época atingir com freqüência a cevada, e que esses preços só foram indicados como um exemplo da proporção que deveria ser observada em todos os outros preços, fossem eles mais altos ou mais baixos, podemos inferir das últimas palavras do estatuto: “et sic de inceps crescetur uel diminuetur per sex denarios”. A expressão não é das mais felizes, mas o significado é suficientemente claro: “que o preço da cerveja deve ser aumentado ou diminuído de acordo com cada aumento ou redução de 6 pence no preço da cevada”. Na redação desse estatuto, os próprios legisladores parecem ter sido tão negligentes quanto os copistas na transcrição do estatuto. Em um manuscrito antigo do Regiam Majestatem, antigo tratado de leis da Escócia, existe um estatuto de padrões no qual o preço do pão é regulado de acordo com todos os diversos preços do trigo, desde 10 pence até 3 xelins o boll escocês, igual a mais ou menos 1/2 quarter inglês. Três xelins escoceses, ao tempo em que se supõe ter sido emitida essa determinação, eqüivaliam a aproximadamente 9 xelins esterlinos 218
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ingleses atuais. Disso o Sr. Ruddiman parece concluir137 que 3 xelins era o preço máximo jamais atingido pelo trigo naquele tempo, e que os preços comuns eram 10 pence, 1 xelim, ou geralmente, no máximo, 2 xelins. A consulta do manuscrito, porém, evidencia que todos os preços são indicados apenas a título de exemplo da proporção que deve ser observada entre os preços respectivos do trigo e do pão. As últimas palavras do estatuto são: “reliqua judicabis secundum praescripta habendo respectum ad pretium bladi”. “Os demais casos sejam julgados à luz do acima prescrito, levando em conta o preço do trigo”. Em terceiro lugar, os autores parecem ter sido induzidos a erro pelo preço muito baixo pelo qual o trigo às vezes era vendido em tempos muito antigos; e ter imaginado que, sendo o seu preço mínimo muito mais baixo do que em épocas anteriores, seu preço comum deve, igualmente, ter sido muito mais baixo. Todavia, poderiam ter verificado que naqueles tempos antigos, que seu preço máximo atingia valores tanto mais acima como o preço mínimo atingia valores abaixo do que jamais viria a se conhecer em épocas posteriores. Assim, em 1270, Fleetwood nos indica dois preços do quarter de trigo. Um é 4 libras e 16 xelins, em dinheiro da época, equivalentes a 14 libras e 8 xelins do dinheiro atual; o outro é 6 libras esterlinas e 8 xelins, equivalendo a 19 libras e 4 xelins em dinheiro atual. No final do século XV ou no início do século XVI, não conseguimos encontrar preço algum que se aproxime desses preços exorbitantes. O preço do trigo, ainda que sujeito a variações em todos os tempos, varia mais naquelas sociedades turbulentas e desorganizadas, nas quais a interrupção de todo comércio e comunicação impede a fartura de uma parte do país de aliviar a escassez de outra região. Na situação desordenada da Inglaterra sob os Plantagenetas, que a governaram mais ou menos desde meados do século XII até mais ou menos o fim do século XV, um distrito podia ter fartura enquanto outro, não muito distante do primeiro, por ter sido sua safra destruída pelas intempéries ou incursão de algum barão vizinho, podia estar sofrendo todos os horrores da fome; nessa situação, se entre os dois distritos estivessem localizadas as terras de algum senhor hostil, um deles poderia não estar em condições de dar a menor assistência ao outro. Sob a vigorosa administração dos Tudor, que governaram a Inglaterra durante a última parte do século XV e por todo o século XVI, nenhum barão tinha poder suficiente para ousar perturbar a segurança pública. No final do presente capítulo, o leitor encontrará todos os preços do trigo, pesquisados por Fleetwood de 1202 até 1597, incluindo os dois anos extremos, sendo esses preços convertidos ao valor do dinheiro atual, e ordenados em ordem cronológica, distribuídos em sete divisões de doze anos cada. Ao final de cada divisão, encontrará o preço médio dos doze anos de que ela consiste. Nesse longo período de tempo, Fleetwood conseguiu coligir os preços de não mais do que 80 anos, de sorte 137 Ver seu prefácio a Diplomata Scotiae, de Anderson. 219
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que faltam 4 anos para perfazer os últimos doze anos. Eis por que acrescentei os preços de 1598,1599,1600 e 1601, baseado nos relatos do Eton College. É o único acréscimo feito por mim. O leitor observará que, desde o início do século XIII até depois dos meados do século XVI, o preço médio de cada doze anos se torna gradativamente mais baixo, e que pelo final do século XVI, o preço começa a subir novamente. Com efeito, os preços que Fleetwood conseguiu pesquisar parecem ter sido sobretudo aqueles notáveis por serem extraordinariamente altos ou baixos e não pretendo afirmar que deles se possa tirar alguma conclusão muito segura. Na medida, porém, em que provam alguma coisa, confirmam aquilo que venho tentando expor. O próprio Fleetwood, porém, como a maioria dos demais autores, parece haver acreditado que durante todo esse período o valor da prata, devido à sua abundância crescente, diminuía constantemente. Os preços do trigo pesquisados por ele próprio certamente não abonam essa opinião. Concordam perfeitamente com aquela opinião do Sr. Duprè de St. Maur e com a que venho procurando explanar. O Bispo Fleetwood e o Sr. Duprè de St. Maur são os dois autores que parecem haver coligido com maior diligência e fidelidade os preços das mercadorias em tempos antigos. Não deixa de ser curioso que, embora suas opiniões difiram tanto, os fatos por eles apontados, ao menos no que tange ao preço do trigo, coincidam com tanta precisão. Todavia, não é tanto do baixo preço do trigo do que de algumas outras partes da rústica produção da terra que os mais judiciosos escritores inferiram o grande valor da prata naqueles velhos tempos. Tem se afirmado que sendo o trigo um tipo de produto manufaturado era naquelas épocas rudes muito mais caro em relação à maior parte de outras mercadorias; isso significa, quero crer, que a maior parte das mercadorias não manufaturadas, tais como gado, aves domésticas, caça de todos os tipos etc., naquela época de pobreza e de barbarismo, eram sem dúvida proporcionalmente muito mais baratas do que o trigo. Mas esse baixo preço não era conseqüência do alto valor da prata, porém do baixo valor daquelas mercadorias. Isso ocorria não porque a prata comprasse ou representasse, naquela época, uma quantidade maior de trabalho, mas porque tais mercadorias comprariam ou representariam uma quantidade muito menor do que em tempos de maior opulência e desenvolvimento. Certamente, a prata deve ser mais barata na América espanhola do que na Europa; no país onde ela é produzida, do que naquele para o qual é levada à custa de um transporte a longa distância tanto por terra como por mar, de um frete e um seguro. Todavia, como nos refere Ulloa, não faz muitos anos que, em Buenos Aires, o preço de um boi escolhido em um rebanho de 300 ou 400 cabeças era de 21 1/2 pence esterlinos. E o Sr. Byron nos conta que, na capital do Chile, o preço de um bom cavalo era 16 xelins esterlinos. Em um país naturalmente fértil, mas no qual a maior parte da terra ainda é completamente não cultivada, o gado, as aves domésticas, a caça de todos os tipos etc., pelo fato de poderem ser adquiridos com 220
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muito pouco trabalho, serão comprados ou encomendados em pequeníssima quantidade. O baixo preço em dinheiro, pelo qual podem ser vendidos, não constitui prova de que o valor real da prata seja ali muito alto, mas sim de que o valor real daquelas mercadorias é muito baixo. O trabalho, não se deve esquecer, e não qualquer mercadoria ou conjunto de mercadorias em especial, constitui a medida real do valor, tanto da prata como de todas as outras mercadorias. Mas, em países quase desérticos, com pequena densidade demográfica, o gado, as aves domésticas, a caça de todos os tipos etc., por serem produções espontâneas da natureza, muitas vezes são em muito maior número do que o exigido por seus habitantes. Em tal estado de coisas, é comum a oferta superar a procura. Por isso, em condições diferentes da sociedade, em estágios diferentes de aperfeiçoamento e desenvolvimento, essas mercadorias representarão — serão equivalentes a quantidades muito diferentes de trabalho. Em qualquer condição da sociedade, em qualquer estágio de desenvolvimento, o trigo é produto do trabalho humano. Ora, a produção média de todo tipo de trabalho sempre é adequada, com precisão maior ou menor, ao consumo médio, e portanto, a oferta média costuma adequar-se à demanda média. Além disso, em cada novo estágio diferente de desenvolvimento, o cultivo de quantidades iguais de trigo no mesmo solo e clima em média exigirá mais ou menos as mesmas quantidades de trabalho; ou, o que dá no mesmo, o preço de quantidades iguais de trabalho. O aumento contínuo das forças produtivas do trabalho em um estágio de cultivo em desenvolvimento é mais ou menos contrabalançado pelo preço continuamente crescente do gado, instrumento principal da agricultura. Por isso, em virtude de todas essas razões, podemos ter certeza de que quantidades iguais de trigo, em qualquer sociedade, em qualquer estágio de desenvolvimento, representarão com maior aproximação — ou seja, equivalerão com maior aproximação — quantidades iguais de trabalho ou mão-de-obra, do que quantidades iguais de qualquer outro produto natural da terra. Por isso, como já observei, o trigo constitui, em todos os estágios de riqueza e de desenvolvimento, uma medida muito mais precisa de valor do que qualquer outra mercadoria ou conjunto de mercadorias. Eis por que, em todos esses diversos estágios, o melhor critério para avaliar o valor da prata é compará-lo com o valor do trigo — melhor do que comparando-o com o de qualquer outra mercadoria ou conjunto de mercadorias. O trigo, portanto — ou qualquer outro que seja o alimento vegetal comum e favorito da população —, constitui, em todo país civilizado, a parte principal da subsistência do trabalhador. Em conseqüência da extensão da agricultura, a terra de cada país produz uma quantidade muito maior de alimentos vegetais do que de alimento derivado de animais, sendo que o trabalhador, em toda parte, vive sobretudo do alimento saudável que é mais barato e mais abundante. A carne de açougue, se excetuarmos os países mais prósperos, ou aqueles em que o trabalho recebe uma remuneração particularmente alta, perfaz ape221
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nas uma parte insignificante da subsistência do trabalhador, sendo que as aves domésticas representam uma parcela ainda menor, e a caça não representa parcela alguma. Na França, e mesmo na Escócia, onde a mão-de-obra é um pouco mais bem remunerada do que na França, os pobres que trabalham raramente comem carne de açougue, a não ser em dias santos, e em outras ocasiões extraordinárias. O preço da mão-de-obra em dinheiro, portanto, depende muito mais do preço médio em dinheiro do trigo — a subsistência do trabalhador — do que do preço médio da carne de açougue ou de qualquer outro produto natural da terra. Por conseguinte, o valor real do ouro e da prata, ou seja, a quantidade real de trabalho que poderão comprar ou comandar, depende muito mais da quantidade de trigo que conseguem comprar, ou comandar, do que da quantidade de carne de açougue ou de qualquer outro produto natural da terra. Entretanto, essas ligeiras observações sobre os preços do trigo ou de outras mercadorias não teriam provavelmente confundido tantos autores inteligentes, se não tivessem sido influenciados ao mesmo tempo pela concepção popular segundo a qual, enquanto a quantidade de prata aumenta naturalmente em todo país, à medida em que aumenta a riqueza do país, da mesma forma o seu valor diminui na medida em que sua quantidade aumenta. Ora, essa noção parece totalmente destituída de fundamento. Duas são as causas que em qualquer país podem gerar um aumento da quantidade de metais preciosos: ou a maior abundância das minas que fornecem esses metais, ou o aumento da riqueza do povo, decorrente do aumento da produção resultante de seu trabalho anual. A primeira dessas causas sem dúvida tem conexão necessária com a diminuição do valor dos metais preciosos, ao passo que isso não ocorre com a segunda. Ao descobrirem-se minas mais abundantes, aumenta a quantidade de metais preciosos colocados no mercado, e, se continuar inalterada a quantidade de artigos necessários ou convenientes para a vida, pelos quais se trocará essa maior quantidade de metais preciosos, necessariamente se terá que quantidades iguais de metais poderão ser trocadas por quantidades menores de mercadoria. Na medida, portanto, em que o aumento da quantidade de metais preciosos em um país provém da maior abundância das minas, necessariamente esse aumento provoca uma redução de seu valor. Ao contrário, quando aumenta a riqueza de um país, quando a produção anual de seu trabalho gradativamente vai se tornando maior, torna-se necessária uma quantidade maior de moeda para fazer circular uma quantidade maior de mercadorias; conseqüentemente, o povo, na medida em que puder permitir-se isso, na medida em que tiver mais mercadorias para trocar por prata, naturalmente comprará uma quantidade sempre crescente de prataria. A quantidade de moedas que comprarão aumentará por necessidade; e a quantidade de sua prataria aumentará por variedade e ostentação ou pelo fato de que a quantidade 222
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de finas estátuas, quadros e de qualquer outro artigo de luxo ou que desperte curiosidade é suscetível de aumentar entre eles. Mas, assim como não há probabilidade de que os pintores e fabricantes de estátuas se contentem em tempos de riqueza e prosperidade com uma remuneração inferior à que recebem em tempos de pobreza e depressão, da mesma forma não há probabilidade de que o ouro e a prata sejam mais baratos. O preço do ouro e da prata, a não ser quando a eventual descoberta de minas mais abundantes o mantenha baixo, assim como aumenta naturalmente com a riqueza de um país, da mesma forma, qualquer que seja o estado das minas, é sempre naturalmente mais alto em um país rico do que em um país pobre. O ouro e a prata, como aliás todas as demais mercadorias, naturalmente procuram os mercados em que se pagam os melhores preços, e o melhor preço — para qualquer mercadoria — geralmente é pago no país que tiver melhores condições para isso. O trabalho — cumpre recordar novamente — é, em última análise, o preço básico que se paga por qualquer coisa; e em países em que a remuneração da mão-de-obra é do mesmo nível, o preço do trabalho em dinheiro será proporcional ao preço da subsistência do trabalhador. Ora, o ouro e a prata naturalmente poderão ser trocados por uma quantidade maior de subsistência em um país rico que em um país pobre, ou seja, em um país onde a subsistência é farta, do que em outro onde ela é razoavelmente suprida. Se os dois países estiverem muito distantes entre si, a diferença poderá ser muito grande, pois, embora os metais naturalmente passem do mercado pior para o melhor, pode ser difícil transportá-los em quantidades suficientes para aproximar ou igualar o seu preço nos dois países. Se os países estiverem próximos, a diferença será menor, podendo às vezes ser apenas perceptível, pois nesse caso o transporte será fácil. A China é um país muito mais rico do que qualquer região da Europa, e a diferença de preço dos gêneros alimentícios, na China e na Europa, é muito grande. O arroz na China é muito mais barato do que o trigo em qualquer parte da Europa. A Inglaterra é muito mais rica que a Escócia, mas a diferença entre o preço do trigo em dinheiro nesses dois países é muito menor, sendo apenas perceptível. Em comparação com a quantidade ou medida, o trigo escocês geralmente parece ser muito mais barato que o inglês, mas em comparação com sua qualidade, certamente é um pouco mais caro. A Escócia recebe quase todo ano enormes suprimentos da Inglaterra, sendo que cada mercadoria deve normalmente ser um pouco mais cara no país ao qual é transportada, do que naquele do qual provém. Por isso, o trigo inglês deve ser mais caro na Escócia do que na Inglaterra e não obstante isso, em proporção com sua qualidade, ou seja, à quantidade e qualidade da farinha ou alimento que dele se extrai, geralmente não pode ser vendido mais caro do que o trigo escocês que vem a competir com ele no mercado. A diferença entre o preço da mão-de-obra em dinheiro na China e na Europa é ainda maior do que a diferença entre o preço dos man223
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timentos em dinheiro, nas duas regiões, pois a remuneração real do trabalho é mais elevada na Europa do que na China, já que a maior parte da Europa está desenvolvida, ao passo que a China ainda parece estacionária. O preço do trabalho em dinheiro é mais baixo na Escócia do que na Inglaterra, porque a remuneração real da mão-de-obra é muito mais baixa pois a Escócia, embora avançando para uma riqueza maior, avança muito mais lentamente do que a Inglaterra. A freqüência da emigração da Escócia, e a raridade da emigração da Inglaterra demonstram suficientemente que a demanda de mão-de-obra nos dois países é muito diferente. A proporção entre a remuneração real do trabalho em países diferentes — importa relembrar — é naturalmente regulada, não pela riqueza ou pobreza efetiva, mas pelo seu estado de progresso, de declínio, ou pela sua situação estacionária. O ouro e a prata, assim como têm naturalmente o valor máximo entre as nações ricas, da mesma forma têm o valor mínimo nas nações mais pobres. Entre os selvagens, que representam as nações mais pobres, não têm praticamente valor algum. Em cidades grandes, o trigo sempre é mais caro do que nas regiões afastadas do país. Isso, porém, não é efeito do baixo preço real da prata, mas do baixo preço real do trigo. Não custa menos trabalho transportar prata para uma grande cidade do que para as longínquas regiões do país; mas custa muito mais trabalho transportar trigo. Em alguns países muito ricos e comerciais, tais como a Holanda e o território de Gênova, o trigo é caro pela mesma razão que o é nas cidades grandes. Não produzem o suficiente para manter seus habitantes. São países ricos no trabalho e na habilidade de seus artífices e manufatores em todo tipo de máquina capazes de facilitar e abreviar o trabalho; são ricos também em navegação e em todos os outros instrumentos e meios de transporte e comércio, porém são pobres em trigo, o qual, pelo fato de precisar vir de países distantes, deve, com um acréscimo no preço, pagar pelo transporte daqueles países. Não custa menos trabalho transportar prata de Amsterdam para Dantzig, mas custa muito mais transportar trigo. O custo real da prata deve ser mais ou menos o mesmo nos dois lugares mas será muito diferente o do trigo. Diminua-se a opulência real da Holanda ou do território de Gênova, permanecendo inalterado o seu contingente populacional; diminua-se sua capacidade de importar mercadorias de países distantes, e o preço do trigo, ao invés de baixar com essa diminuição da quantidade de sua prata — a qual necessariamente acompanhará esse declínio, como causa ou como efeito — subirá tanto quanto em época de penúria. Quando temos falta de gêneros de primeira necessidade, devemos renunciar a todas as coisas supérfluas, cujo valor, assim como sobe em tempos de opulência e prosperidade, da mesma forma desce em tempos de pobreza e miséria. Com os gêneros de primeira necessidade não é assim. Seu preço real, a quantidade de trabalho que podem comprar ou comandar, aumenta em tempos de pobreza e miséria, e baixa em tempos de opulência e prosperidade, que são sempre tempos 224
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de grande abundância, pois de outra forma não seriam tempos de opulência e prosperidade. O trigo é um gênero de primeira necessidade, mas a prata não passa de um produto supérfluo. Eis por que, qualquer que possa ter sido o aumento da quantidade de metais preciosos que, durante o período entre meados do século XIV e do século XVI, ocorreu devido ao aumento da riqueza e do desenvolvimento, esse aumento não poderia tender a diminuir seu valor, quer na Grã-Bretanha ou em qualquer outra região da Europa. Se, portanto, aqueles que pesquisaram os preços das mercadorias em tempos antigos não tiveram nenhuma razão em inferir a diminuição do valor da prata, partindo de observações que fizeram sobre os preços do trigo ou de outras mercadorias, menos razão ainda tinham para inferir isso de qualquer outro suposto aumento de riqueza e desenvolvimento. Segundo Período Por mais diferentes que possam ter sido as opiniões dos eruditos no tocante à evolução do valor da prata durante o primeiro período, são unânimes quanto a esse valor no segundo período. Desde aproximadamente 1570 até mais ou menos 1640, durante um período de aproximadamente setenta anos, a variação da proporção entre o valor da prata e o do trigo manteve um ritmo totalmente oposto. A prata baixou em seu valor real, ou seja, era trocada por uma quantidade menor de trabalho do que antes; e o trigo aumentou em seu preço nominal, e ao invés de ser vendido comumente por aproximadamente duas onças de prata o quarter, ou seja, em torno de 10 xelins de nosso dinheiro atual, veio a ser vendido por 6 e 8 onças de prata o quarter, ou seja, aproximadamente 30 e 40 xelins de nosso dinheiro atual. A descoberta das abundantes minas da América parece haver sido a única razão dessa redução do valor da prata em comparação com o valor do trigo. Todos são acordes quanto a isso, e nunca houve qualquer discussão a respeito do fato ou de sua causa. Durante esse período, a maior parte da Europa estava progredindo em termos de trabalho e desenvolvimento, e portanto a demanda de prata deve ter conseqüentemente aumentado. Mas, o aumento da oferta, ao que parece, superou a tal ponto o da demanda, que o valor desse metal diminuiu consideravelmente. Observe-se que as descobertas das minas da América não parecem ter tido nenhum efeito muito sensível sobre os preços na Inglaterra até os anos que se seguiram a 1570, embora mesmo as minas de Potosi tivessem sido descobertas mais de vinte anos antes. De 1595 até 1620 — incluindo esses dois anos — o preço médio do quarter de 9 bushels do melhor trigo no mercado de Windsor parece, com base nos relatos do Eton College, ter sido £ 2 1 s 6 9/13 d. Partindo-se dessa soma, desprezada a fração, e deduzindo-se 1/9, ou seja, 4 xelins e 7 1/3 pence, o preço de um quarter de 8 bushels resulta em £ 1 16 s 10 2/3 d. E partindo-se dessa soma, desprezada igualmente 225
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a fração, e deduzindo-se 1/9, ou seja, 4 xelins e 1 1/9 pence, para a diferença entre o preço do melhor trigo e o do médio, o preço do trigo médio resulta ter sido aproximadamente £ 1 12 s 8 8/9 d, isto é, em torno de 6 1/3 onças de prata. De 1621 a 1636, incluídos os dois anos, o preço médio da mesma medida do melhor trigo, no mesmo mercado e com base nos mesmos relatos, parece ter sido 2 libras e 10 xelins; partindo-se dessa soma, e fazendo-se as mesmas deduções que no caso anterior, o preço médio do quarter de 8 bushels de trigo médio resulta ter sido £ 1 19 s 6 d, isto é, aproximadamente 7 2/3 onças de prata. Terceiro Período Entre 1630 e 1640, ou seja, em torno de 1636, parece ter se completado o efeito da descoberta das minas da América na redução do valor da prata; ao que parece, em tempo algum o valor da prata baixou mais do que nessa época, em proporção com o preço do trigo. Parece ter subido algo no decurso do século atual, sendo provável que o aumento tenha começado mesmo algum tempo antes do fim do século passado. De 1637 até 1700, incluindo os dois anos, sendo esses os últimos 64 anos do século passado, o preço médio do quarter de 9 bushels do melhor trigo, no mercado de Windsor e com base nos mesmos relatos, parece ter sido £ 2 11 s 1/3 d, portanto, apenas 1 xelim e 1/3 pêni mais caro do que havia sido durante os 16 anos precedentes. Todavia, no decurso desses 64 anos ocorreram dois eventos que devem ter produzido uma escassez muito maior de trigo do que a que poderia ter sido provocada normalmente pelo curso das estações, a qual, portanto, sem supor qualquer outra redução do valor da prata, é muito mais do que suficiente para explicar esse aumento muito pequeno do preço. O primeiro desses eventos foi a guerra civil, a qual, desestimulando a agricultura e interrompendo o comércio, deve ter aumentado muito mais o preço dos cereais do que o faria normalmente o curso das estações. Deve ter tido esse efeito mais ou menos em todos os mercados do Reino, mas particularmente nas proximidades de Londres, mercados esses que tiveram que ser supridos pelos mercados mais longínquos. Em 1648, portanto, com base nos mesmos relatos, o preço do trigo de melhor qualidade no mercado de Windsor parece ter sido de 4 libras e 5 xelins, e em 1649 parece ter sido 4 libras o quarter de 9 bushels. O excedente que ultrapassa 2 libras e 10 xelins desses dois anos (preço médio dos 16 anos anteriores a 1637) é de 3 libras e 5 xelins; o que, dividido entre os últimos 64 anos do século passado, é mais ou menos suficiente para explicar esse pequeno aumento do preço que parece haver ocorrido neles. Entretanto, embora esses sejam os preços máximos, de maneira alguma parecem ter sido os únicos preços altos provocados pelas guerras civis. O segundo evento foi o subsídio à exportação do trigo, concedido 226
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em 1688. Muitos têm pensado que o subsídio, estimulando a agricultura, pode, a longo prazo, ter provocado uma abundância maior do trigo e por conseguinte uma maior baixa do seu preço no mercado interno, do que se ele não tivesse existido. Mais adiante mostrarei como o subsídio está longe de produzir esse efeito; no momento, limito-me a observar que, entre 1688 e 1700, o subsídio não teve tempo para gerar esse efeito. Durante esse curto período, o seu único efeito deve ter sido — encorajando a exportação do excedente de produção de cada ano e, dessa forma, impedindo a abundância de um ano de compensar a escassez do outro — o de aumentar o preço no mercado interno. A escassez que prevaleceu na Inglaterra, de 1693 a 1699, incluídos esses dois anos, embora incontestavelmente se deva sobretudo às intempéries, e portanto abrangeu grande parte da Europa, deve ter sido agravada em algo pelo subsídio. Em conseqüência, em 1699 proibiu-se a ulterior exportação de trigo por nove meses. Um terceiro evento ocorreu no decurso do citado período, o qual, apesar de não poder ser a causa da escassez do trigo, nem, talvez, de qualquer aumento real da quantidade de prata costumeiramente paga por ele, deve ter necessariamente ocasionado algum aumento da soma nominal. Esse evento foi a grande desvalorização da moeda de prata, em virtude do desgaste e do uso. Esse mal começara no reinado de Carlos II e veio aumentando continuamente até 1695, quando, conforme nos relata o Sr. Lowndes, o valor da moeda corrente de prata esteve, em média, aproximadamente 25% abaixo de seu valor-padrão. Ora, a soma nominal que constitui o preço de mercado de qualquer mercadoria é regulada não tanto pela quantidade de prata que, pelo seu padrão, a moeda deveria conter, mas antes pela quantidade que, na prática, ela contém realmente. Essa soma nominal, pois, é necessariamente superior quando a moeda está muito desvalorizada pelo desgaste e pelo uso, do que quando está próxima de seu valor-padrão. No decurso do século atual, o dinheiro em prata nunca esteve mais abaixo de seu peso padrão do que no momento. Mas embora muito desfigurado, o valor da moeda de prata foi mantido pela moeda de ouro pela qual é trocada. Com efeito, embora antes da última recunhagem, a moeda de ouro também estivesse muito desfigurada, não o estava tanto como a de prata. Ao contrário, em 1695, o valor do dinheiro-prata não foi mantido pela moeda-ouro, pois um guinéu era cambiado, nessa época, por 30 xelins de prata desgastada e usada. Antes da última recunhagem do ouro, o preço do lingote de prata raramente ultrapassou 5 xelins e 7 pence por onça, o que representa em torno de 5 pence acima do preço da casa da moeda. Mas em 1695, o preço comum da prata em lingotes era de 6 xelins e 5 pence por onça,138 o que representa 15 pence acima do preço da casa da moeda. Mesmo antes da última recunhagem do ouro, pois, tanto a moeda-ouro como 138 LOWNDES. Essay on the Silver Coin. p. 68. 227
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a moeda-prata, se comparada ao lingote de prata, não se supunha estar mais de 8% abaixo de seu valor-padrão. Em 1695, ao contrário, supõe-se haver estado aproximadamente 25% abaixo desse valor. Mas no início do século atual, isto é, imediatamente depois da grande recunhagem no tempo do rei Guilherme, a maior parte da moeda-prata corrente deve ter estado ainda mais próxima ao seu peso padrão do que atualmente. No decurso do século atual, aliás, não houve nenhuma calamidade pública comparável à guerra civil, que pudesse desestimular a agricultura ou interromper o comércio interno do país. E embora o subsídio havido durante a maior parte deste século sempre fizesse subir o preço do trigo um pouco acima do que aconteceria normalmente na situação atual da agricultura, todavia, já que, no decurso deste século, o subsídio teve tempo suficiente para produzir todos os bons efeitos comumente imputados a ele, de estimular a agricultura e, portanto, aumentar a quantidade de trigo no mercado interno, pode-se supor, com base nos princípios de um sistema que explicarei e examinarei mais adiante, que ele deve ter contribuído em algo para baixar o preço dessa mercadoria de um lado, e aumentá-lo de outro. Muitos supõem que ele fez mais. Nos primeiros 64 anos do século atual, portanto, o preço médio do quarter de 9 bushels do melhor trigo no mercado de Windsor, com base nos relatos do Eton College, parece ter sido £ 2 0 s 6 19/32 d, isto é, mais do que 25% mais barato do que havia sido durante os últimos 64 anos do século passado e aproximadamente 9 xelins e 6 pence mais barato do que havia sido durante os 16 anos que precederam 1636, quando se acredita que a descoberta das abundantes minas da América tenha produzido seu pleno efeito; e aproximadamente 1 xelim mais barato do que havia sido nos 26 anos que precederam 1620, antes que aquela descoberta pudesse ter produzido seu pleno efeito, como se pode supor. Segundo esse cálculo, o preço médio do trigo médio, durante esses 64 primeiros anos do século atual resulta haver sido em torno de 32 xelins o quarter de 8 bushels. Em conseqüência, o valor da prata parece ter subido algo em proporção ao do trigo durante o curso do presente século, tendo provavelmente até começado a subir algum tempo antes do fim do século passado. Em 1687, o preço do quarter de 9 bushels do melhor trigo no mercado de Windsor era de £ 1 5 s 2 d, o preço mais baixo desde 1595. Em 1688, o Sr. Gregory King, famoso pelo seu conhecimento de matérias desse gênero, estimou o preço médio do trigo para o produtor, em anos de fartura moderada, em 3 s 6 d o bushel, isto é, 28 xelins o quarter. Entendo que o preço para o produtor seja o mesmo que às vezes se chama de preço de contrato, ou seja, o preço pelo qual o agricultor se compromete, durante um certo número de anos, a entregar uma determinada quantidade de trigo a um comerciante. Já que um contrato desse tipo poupa ao agricultor a despesa e o incômodo da comercialização, o preço de contrato geralmente é mais baixo do que se supõe ser o preço médio de mercado. O Sr. King julgou que 28 228
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xelins o quarter era o preço normal de contrato em anos de fartura moderada. Foi-me assegurado que, antes da escassez ocasionada pela última série extraordinária de más estações, esse era o preço normal de contrato em todos os anos normais. Em 1688, foi concedido o subsídio parlamentar para a exportação do trigo. Os senhores do campo, que na época tinham no corpo legislativo ainda mais representantes do que atualmente, sentiram que o preço do trigo em dinheiro estava baixando. O subsídio foi um expediente para elevá-lo artificialmente ao alto preço pelo qual tinha sido freqüentemente vendido nos tempos de Carlos I e Carlos II. Esse subsídio deveria ter vigência, portanto, até que o trigo alcançasse o preço de 48 xelins o quarter, isto é, 20 xelins, ou 5/7 mais caro do que o preço estimado pelo Sr. King, exatamente naquele ano, como preço para o produtor, em tempos de fartura moderada. Se os cálculos do Sr. King merecerem algo da reputação que granjearam universalmente, 48 xelins o quarter era um preço que, sem um expediente como o subsídio, não se podia esperar naquele tempo, a não ser em anos de escassez fora do comum. Mas o governo do rei Guilherme não estava plenamente consolidado. Ele não tinha absolutamente condições para recusar algo aos senhores do campo, dos quais estava solicitando, exatamente nessa época, a implantação do imposto territorial anual. Portanto, o valor da prata, em proporção ao preço do trigo, provavelmente havia subido pouco antes do fim do século passado, e parece ter continuado a subir durante o curso da maior parte do presente, embora o processamento necessário do subsídio deva ter impedido que o aumento se tornasse tão sensível como aconteceria se ocorresse na situação real da lavoura. Em anos de fartura, o subsídio, provocando uma exportação extraordinária, necessariamente aumenta o preço do trigo acima do que seria nesses anos. Estimular a agricultura, mantendo o preço do trigo mesmo nos anos mais fartos, era o objetivo confesso da instituição. Na realidade, o subsídio geralmente era suspenso em anos de grande escassez. Todavia, deve ter tido algum efeito, mesmo sobre os preços de muitos desses anos. Pela exportação extraordinária que gera em anos de fartura, deve freqüentemente impedir que a fartura de um ano compense a escassez de outro. Por conseguinte, tanto em anos de fartura como em anos de escassez, o subsídio eleva o preço do trigo acima do que naturalmente aconteceria no estado real da agricultura. Se, portanto, durante os primeiros 64 anos do século atual o preço médio foi mais baixo do que durante os últimos 64 anos do século passado, necessariamente teria sido muito mais baixo, no mesmo estado da agricultura, se não fosse esse subsídio. Poder-se-ia, porém, dizer que, sem o subsídio, o estado da agricultura não teria sido o mesmo. Quaisquer que possam ter sido os efeitos dessa instituição sobre a agricultura do país, procurarei mostrar adiante quando tratar explicitamente dos subsídios. De momento, limito-me a observar que esse aumento do valor da prata, em proporção 229
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ao do trigo, não tem sido uma peculiaridade da Inglaterra. Três pesquisadores de preço do trigo, extremamente confiáveis, atentos e laboriosos, os Srs. Duprè de St. Maur, Messance e o autor do Ensaio Sobre a Política dos Cereais, observaram esse fenômeno na França durante o mesmo período, e mais ou menos na mesma proporção. Mas na França, até 1764, a exportação de cereais era proibida por lei; ora, é difícil supor que mais ou menos a mesma redução do preço que se verificou em um país, apesar dessa proibição, em outro país fosse devida ao estímulo extraordinário dado à exportação. Talvez seja mais apropriado considerar essa variação no preço médio do trigo em dinheiro mais como o efeito de algum aumento gradual do valor da prata no mercado europeu, do que de alguma queda no valor real médio do trigo. O trigo, como já se tem observado, em períodos de tempo distantes, constitui uma medida mais acurada de valor do que a prata ou talvez qualquer outra mercadoria. Quando, depois da descoberta das abundantes minas da América, o preço do trigo chegou a ser três e quatro vezes seu preço original em dinheiro, esta mudança foi universalmente atribuída, não a qualquer aumento do valor real do trigo, mas à queda do valor real da prata. Se pois, durante os 64 primeiros anos do presente século, o preço médio do trigo em dinheiro caiu algo abaixo do que havia sido durante a maior parte de século passado, devemos igualmente atribuir essa mudança, não a alguma queda no valor real do trigo, mas a alguma elevação do valor real da prata no mercado europeu. Com efeito, o alto preço do trigo durante esses dez ou doze anos passados gerou uma suspeita de que o valor real da prata continua ainda a cair no mercado europeu. Todavia, esse alto preço do trigo parece ter sido o efeito das condições atmosféricas extraordinariamente desfavoráveis, devendo, pois, ser considerado não como um evento permanente, mas como um fato transitório e ocasional. As estações para esses dez ou doze anos passados foram desfavoráveis na maior parte da Europa, e as desordens da Polônia aumentaram em muito a escassez em todos esses países, os quais, em anos de altos preços, costumavam ser supridos por aquele mercado. Uma série tão longa de estações desfavoráveis, embora não seja um evento muito comum, não é de forma alguma um acontecimento singular e quem quer que tenha investigado a fundo a história dos preços do trigo nos tempos anteriores não terá dificuldade em deparar com vários outros exemplos do mesmo tipo. Além disso, dez anos de escassez extraordinária não são de se admirar mais do que dez anos de fartura extraordinária. O baixo preço do trigo, de 1741 até 1750, incluídos esses dois anos, pode muito bem estar em oposição a seu alto preço durante esses oito ou dez últimos anos. De 1741 até 1750, o preço médio do quarter de 9 bushels do melhor trigo, no mercado de Windsor, com base nos dados do Eton College, era apenas £ 1 13 s 9 4/5 d, o que é aproximadamente 6 s e 3 d abaixo do preço médio dos 64 primeiros anos do presente século. O preço médio do quarter de 8 bushels de trigo de qualidade média, 230
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segundo esse cálculo, resulta ter sido somente £ 1, 6 s 8 d durante esses dez anos. Entre 1741 e 1750, porém, o subsídio deve ter impedido o preço do trigo de baixar no mercado interno, como naturalmente teria acontecido. Dos registros alfandegários consta que, durante esses dez anos, a quantidade de todos os tipos de cereais exportados ascendeu a nada menos do que 8 029 156 quarter de bushel. O subsídio pago por isto ascendeu a £ 1 514 962 17 s 4 1/2 d, Eis por que, em 1749, o Sr. Pelham, primeiro-ministro na época, observou à Câmara dos Comuns que, para os três anos anteriores, se havia pago uma soma muito alta como subsídio para a exportação de trigo. Tinha ele boas razões para fazer essa observação, e no ano seguinte poderia tê-la feito com maior razão ainda. Naquele único ano, o subsídio pago representou nada menos de £ 324 176 10 s 6 d.139 É supérfluo observar quanto essa exportação forçada deve ter feito subir o preço do trigo acima do que teria acontecido normalmente no mercado interno. No fim da lista de preços anexa a este capítulo, o leitor encontrará o cálculo específico desses dez anos separados do resto. Encontrará ali também o cálculo específico dos dez anos anteriores, cuja média está também abaixo, embora não muito, da média geral dos primeiros 64 anos do século. O ano de 1740, porém, foi um ano de escassez fora do comum. Esses vinte anos anteriores a 1750 podem muito bem ser colocados em oposição aos vinte anos anteriores a 1770. Assim como os primeiros estiveram bastante abaixo da média geral do país, apesar da presença intermediária de 1 ou 2 anos de alta, da mesma forma os últimos estiveram bastante acima dela, apesar da presença intermediária de 1 ou 2 anos de baixa, o de 1759, por exemplo. Se os primeiros não estiveram tanto abaixo da média geral como os últimos estiveram acima, devemos provavelmente atribuí-lo ao subsídio. Evidentemente, a mudança foi repentina demais para poder ser atribuída a alguma mudança no valor da prata, que sempre é lenta e gradual. O caráter repentino do efeito só pode ser explicado por uma causa que possa ocorrer subitamente — a variação acidental das estações. Com efeito, o preço da mão-de-obra em dinheiro aumentou na Grã-Bretanha durante o curso do século atual. Isso, porém, parece ter sido o efeito, não tanto de alguma diminuição no valor da prata no mercado europeu, mas antes do aumento da demanda de mão-de-obra na Grã-Bretanha, devido ao grande e mais ou menos geral aumento da prosperidade do país. Na França, um país não tão próspero, observou-se que o preço da mão-de-obra em dinheiro, desde meados do século passado, caiu gradualmente com o preço médio do trigo em dinheiro. Tanto no século passado como no atual, afirma-se que os salários diários do trabalho comum têm sido, segundo se tem dito, bastante uniformes, cerca de 1/20 do preço médio do septier de trigo, medida que contém 139 Cf. Tracts on the Corn Trade. Tract 3. 231
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pouco mais de 4 bushels de Winchester. Na Grã-Bretanha, a remuneração real do trabalho, como já demonstrado, as quantidades reais de artigos necessários e de confortos materiais que se pagam ao trabalhador, aumentaram consideravelmente durante o curso do século atual. O aumento de seu preço em dinheiro parece ter sido o efeito, não de uma diminuição do valor da prata no mercado geral da Europa, mas de um aumento no preço real do trabalho no mercado específico da Grã-Bretanha, em razão das circunstâncias particularmente favoráveis do país. Durante algum tempo após a primeira descoberta da América, a prata continuaria a ser vendida a seu preço anterior, ou não muito abaixo. Os lucros da mineração seriam muito altos, durante algum tempo, muito acima de sua taxa natural. Todavia, os que na Europa importavam esse metal logo constatariam ser impossível vender toda a importação anual a esse preço elevado. A prata passaria gradativamente a ser trocada por uma quantidade sempre menor de bens. Seu preço baixaria gradativamente, até chegar a seu preço natural; ou ao preço apenas suficiente para pagar, de acordo com suas taxas naturais, a mão-de-obra, os lucros do capital e a renda da terra, preço este a ser pago para trazer o produto das minas para o mercado. Na maior parte das minas de prata do Peru, o imposto pago ao rei da Espanha, que chega a 1/10 da produção bruta, devora, como já se observou, toda a renda proveniente do uso da terra. Esse imposto era inicialmente a metade da produção bruta; logo depois baixou para 1/3, depois para 1/5, e finalmente para 1/10, continuando assim até hoje. Ao que parece, na maior parte das minas de prata do Peru, isso é tudo o que resta, após repor o capital do empreiteiro, juntamente com seus lucros normais; e parece reconhecer-se universalmente que esses lucros, que eram muito elevados, agora são tão baixos quanto possam sê-lo, de conformidade com a continuação das obras. O imposto pago ao rei da Espanha foi reduzido à quinta parte da prata registrada, em 1504,140 41 anos antes de 1545, a data da descoberta das minas de Potosi. No decurso de noventa anos, ou antes de 1636, essas minas, as mais ricas de toda a América, tiveram tempo suficiente para produzir seu pleno efeito, ou para fazer descer o valor da prata no mercado europeu tão baixo quanto podia cair, enquanto continuavam a pagar esse imposto ao rei da Espanha. Noventa anos são tempo suficiente para reduzir qualquer mercadoria que não seja objeto de monopólio, a seu preço natural, ou ao preço mínimo pelo qual, enquanto paga um imposto específico, continua ao mesmo tempo sendo vendido durante um período considerável. O preço da prata no mercado europeu poderia talvez ter baixado ainda mais, e poderia ter-se tornado necessário reduzir o imposto, não somente a 1/10, como em 1736, mas a 1/20, da mesma forma que o 140 SOLORZANO, v. II. 232
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imposto sobre o ouro, ou interromper a exploração da maior parte das minas americanas hoje em funcionamento. O aumento gradativo da demanda da prata, ou a ampliação gradual do mercado para a produção das minas de prata da América, constitui provavelmente a causa que impediu que isso acontecesse, e que não só manteve o valor da prata no mercado europeu, como tem talvez mesmo tornado mais alto do que era em torno dos meados do século passado. Desde a primeira descoberta da América, o mercado para a produção de suas minas de prata tornou-se gradualmente mais amplo. Primeiramente, foi o mercado europeu que se ampliou cada vez mais, de forma gradual. Desde a descoberta da América, a maior parte da Europa se desenvolveu muito. A Inglaterra, a Holanda, a França, a Alemanha, e mesmo a Suécia, a Dinamarca e a Rússia, todas elas progrediram consideravelmente, tanto na agricultura como em manufaturas. A Itália não parece haver regredido. A queda da Itália precedeu à conquista do Peru. Desde aquela época, parece haver-se recuperado um pouco. Espanha e Portugal, ao contrário, parece haverem retrocedido. Entretanto, Portugal representa uma parte mínima da Europa, e o declínio da Espanha talvez não seja tão grande quanto geralmente se imagina. No início do século XVI, a Espanha era um país muito pobre, mesmo em comparação com a França, que tanto evoluiu desde essa época. O imperador Carlos que com tanta freqüência viajava pelos dois países fez a conhecida observação de que na França tudo se encontrava com fartura, ao passo que na Espanha havia falta de tudo. A produção crescente da agricultura e das manufaturas européias deve necessariamente ter exigido um aumento gradual da quantidade de dinheiro-prata para fazer circular essa riqueza e o número crescente de indivíduos ricos deve ter exigido o mesmo aumento da quantidade de baixelas e demais ornamentos de prata. Em segundo lugar, a própria América é um novo mercado para a produção de suas minas de prata; e uma vez que seus progressos na agricultura, na indústria e na população são muito mais rápidos do que os dos países europeus mais prósperos, sua demanda de prata deve também aumentar com rapidez muito maior. As colônias inglesas constituem um novo mercado, o qual, em parte para a moeda e em parte para os artigos de prata, exige um fornecimento em contínuo aumento de prata em um grande continente, onde nunca antes houve tal demanda. Também a maior parte das colônias espanholas e portuguesas representam novos mercados. A Nova Granada, o Iucatan, o Paraguai e os Brasis, antes de serem descobertos pelos europeus, eram habitados por nações selvagens, que não possuíam nem artes nem agricultura. Entrementes, todos esses países já evoluíram muito sob este aspecto. Mesmo o México e o Peru, embora não possam ser considerados absolutamente como mercados novos, certamente constituem hoje mercados muito maiores do que em qualquer época anterior. Depois de todas as histórias fantasiosas publicadas sobre o estado esplêndido desses países em tempos antigos, toda pessoa que ler, com algum grau 233
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de discernimento a história de sua primeira descoberta e conquista, evidentemente saberá que, nas artes, na agricultura e no comércio, os habitantes desses países eram muito mais ignorantes do que são hoje os tártaros da Ucrânia. Mesmo os peruanos, a nação mais civilizada, embora usassem ouro e prata como ornamentos, não conheciam dinheiro cunhado de espécie alguma. Todo o seu comércio era por escambo, e por isso dificilmente conheciam alguma divisão do trabalho. Os que cultivavam a terra eram obrigados a construir suas próprias casas, a fazer suas próprias mobílias, suas próprias roupas, sapatos e instrumentos agrícolas. Segundo se afirma, os poucos artesãos entre eles eram todos mantidos pelo soberano, os nobres, os sacerdotes, e provavelmente eram seus servos ou escravos. Todas as antigas artes do México e do Peru jamais forneceram um único manufaturado à Europa. Os exércitos espanhóis, apesar de raramente ultrapassarem 500 homens — muitas vezes não chegavam sequer à metade disso — quase sempre tinham dificuldade em encontrar o necessário para sua subsistência. A epidemia de fome que, segundo se diz, eles causavam em quase todos os lugares para onde iam, em países tidos ao mesmo tempo como muito populosos e bem cultivados, demonstram à saciedade que esta quantidade de habitantes e este alto nível de cultivo são, em alto grau, histórias fabulosas. As colônias espanholas estão sob um governo que, sob muitos aspectos, é menos favorável à agricultura, ao desenvolvimento e ao aumento populacional, do que o das colônias inglesas. Entretanto, todas essas nações americanas parecem estar progredindo em ritmo muito mais rápido que qualquer país europeu. Em um solo fértil e um clima propício, ao que parece a grande abundância e o baixo preço da terra — circunstância comum a todas as colônias novas — representam uma vantagem tão grande, que compensa muitas deficiências no governo civil. Frezier, que visitou o Peru em 1713, descreve Lima como tendo entre 25 e 28 mil habitantes. Ulloa, que residiu no mesmo país entre 1740 e 1746, fala em mais de 50 mil. A diferença de seus relatos no tocante ao alto número de habitantes de várias outras cidades principais do Chile e do Peru é mais ou menos a mesma; e já que não parece haver motivo algum para duvidar de que ambos estavam bem informados, esta diferença denota um aumento pouco inferior ao aumento da população das colônias inglesas. Portanto, a América é um novo mercado para a produção de sua própria prata, cuja demanda deve crescer muito mais rapidamente do que a do mais próspero país da Europa. Em terceiro lugar, as Índias Orientais constituem outro mercado para a produção de prata das minas da América — um mercado que, desde o tempo da primeira descoberta dessas minas, tem absorvido uma quantidade sempre maior de prata. Desde aquela época, o comércio direto entre a América e as Índias Orientais, mantido pelos navios de Acapulco, tem aumentado continuamente, sendo que o intercâmbio indireto, através da Europa, tem aumentado em uma proporção ainda maior. Durante o século XVI, os portugueses eram a única nação eu234
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ropéia que mantinha um comércio regular com as Índias Orientais. Nos últimos anos daquele século os holandeses começaram a interferir nesse monopólio, e em poucos anos expulsaram os portugueses de suas fundações principais na Índia. Durante a maior parte do século passado, essas duas nações dividiram entre si a parcela mais considerável do comércio com a Índia Oriental, sendo que o comércio dos holandeses continuamente aumentou em uma proporção muito maior do que declinou o dos portugueses. Os ingleses e franceses mantiveram algum comércio com a Índia no século passado, aumentando muito no decurso deste. O comércio dos suecos e dinamarqueses com a Índia Oriental começou no decurso do século atual. Até os moscovitas agora mantêm comércio regular com a China, através de uma espécie de caravanas, que atravessam por terra a Sibéria e a Tartária, indo até Pequim. Tem estado em contínuo aumento o comércio de todos esses países com a Índia Oriental, se excetuarmos o dos franceses, que foi quase aniquilado pela última guerra. O crescente consumo de bens da Índia Oriental na Europa é, ao que parece, tão grande, que proporciona um aumento gradual do emprego de todos esses bens. O chá, por exemplo, era um produto muito pouco usado na Europa, antes da metade do século passado. Atualmente, o valor do chá importado anualmente pela Companhia Inglesa das Índias Orientais, para consumo de seus conterrâneos, sobe a mais de 1,5 milhão por ano; e mesmo isso não basta, pois é constante a entrada de outras cargas de chá por contrabando, que entram no país através dos portos da Holanda, de Gottenburg na Suécia, e também da costa francesa, enquanto prosperava a Companhia Francesa das Índias Orientais. O consumo de porcelana da China e das especiarias das Molucas, das quinquilharias de Bengala e de inúmeros outros artigos, aumentou mais ou menos em proporção semelhante. Por isso, a tonelagem de todos os navios empregados no comércio com as Índias Orientais, em qualquer período do século passado, talvez não fosse muito maior do que a da Companhia Inglesa das Índias Orientais antes da última redução de sua esquadra. Ora, nas Índias Orientais, especialmente na China e no Industão, o valor dos metais preciosos, quando os europeus começaram a manter comércio com aqueles países, era muito mais alto do que na Europa, e ainda hoje assim é. Em países produtores de arroz, com geralmente duas ou três colheitas por ano, cada uma delas mais abundante do que qualquer colheita de trigo, a abundância de alimentos deve ser muito maior do que em qualquer país produtor de trigo de igual extensão. Tais países são, portanto, mais populosos. Neles, igualmente, tendo os ricos uma superabundância de alimento a seu dispor maior do que eles mesmos podem consumir, têm meios para comprar uma quantidade muito maior do trabalho de outros povos. Conseqüentemente, a comitiva de uma pessoa de posição na China ou no Industão é, assim, em todos os sentidos, muito mais numerosa e esplêndida do que a dos indivíduos mais ricos da Europa. A mesma superabundância de alimento, do qual dispõem para vender, lhes possibilita pagar uma 235
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quantidade maior dele por todos esses produtos singulares e raros que a natureza fornece em quantidade muito pequena, tais como os metais e as pedras preciosas, grandes objetos de concorrência entre os ricos. Embora, portanto, as minas que supriam o mercado indiano fossem tão abundantes quanto as que supriam o mercado europeu, tais mercadorias seriam naturalmente trocadas por uma quantidade maior de alimento na Índia do que na Europa. Mas, as minas que forneciam metais preciosos ao mercado indiano parecem ter sido muito menos abundantes, e as que lhe forneciam pedras preciosas, muito mais abundantes que as minas que supriam o mercado europeu. Por isso, os metais preciosos podiam ser trocados na Índia por uma quantidade algo maior de pedras preciosas, e por uma quantidade muito maior de alimento do que na Europa. O preço monetário dos diamantes, o maior dos supérfluos, era um tanto mais baixo, e o do alimento, o primeiro dos artigos necessários, bastante mais baixo em um país em relação ao outro. Entretanto, como já se observou, o preço real do trabalho, a quantidade real de produtos vitais que é dada ao trabalhador, é menor, tanto na China como no Industão, os dois grandes mercados da Índia, do que na maior parte da Europa. Os salários do trabalhador comprarão quantidades menores de alimento, e já que o preço dos alimentos em dinheiro é muito mais baixo na Índia do que na Europa, o preço do trabalho em dinheiro é lá mais baixo por duas razões: devido à pequena quantidade de alimentos que poderá comprar, e devido ao baixo preço desses alimentos. Mas, em países de artes e indústria iguais, o preço monetário da maior parte dos manufaturados será proporcional ao preço do trabalho em dinheiro; e nas artes manufatureiras e industriais, a China e o Industão, embora inferiores, não parecem ser muito mais inferiores a qualquer parte da Europa. O preço em dinheiro da maior parte das manufaturas, por isso, será naturalmente muito mais baixo naqueles grandes impérios do que em qualquer lugar na Europa. Através da maior parte da Europa, a despesa do transporte terrestre aumenta muito mais tanto o preço real como o nominal de muitas manufaturas. Custa mais trabalho, e portanto mais dinheiro, trazer ao mercado primeiro os materiais, e depois a manufatura completa. Na China e no Industão, a extensão e a variedade nas navegações internas poupam a maior parte desse trabalho e, conseqüentemente, desse dinheiro, e com isso reduzem ainda mais o preço real e nominal da maioria de suas manufaturas. Por todos esses motivos, os metais preciosos constituem uma mercadoria que sempre foi e ainda continua a ser de extrema vantagem levar da Europa à Índia. Dificilmente há uma mercadoria que obtenha lá melhor preço, ou que, em proporção à quantidade de trabalho e de mercadorias que custa na Europa, compensará ou comandará maior quantidade de trabalho e de mercadorias na Índia. Também é mais vantajoso levar para lá prata do que ouro, porque na China, e na maioria dos outros mercados da Índia, a proporção entre a prata pura e o ouro puro é apenas de 10 ou no máximo de 12 para 1, ao passo que na Europa é de 14 ou 236
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15 para 1. Na China e na maior parte dos outros mercados da Índia, 10, ou no máximo 12 onças de prata, comprarão 1 onça de ouro, enquanto que na Europa requerem-se de 14 a 15 onças. Por isso, nas cargas da maior parte dos navios europeus que navegam para a Índia, a prata tem sido geralmente um dos artigos mais valiosos. É o artigo mais valioso nos navios de Acapulco que navegam para Manila. A prata do Novo Continente parece assim ser uma das mercadorias principais mediante as quais é feito o comércio entre as duas extremidades do Velho Continente, sendo por esse meio que, em grande parte, aquelas regiões longínquas se interligam entre si. Para suprir um mercado tão amplo, a quantidade de prata extraída anualmente das minas deve não somente ser suficiente para suportar esse contínuo aumento tanto de moeda quanto de prataria que se exige em todos os países em progresso, mas também para reparar aquele desperdício e consumo contínuo de prata que ocorre em todos os países em que esse metal é utilizado. É muito considerável o contínuo consumo de metais preciosos em moeda pelo uso, e da prataria, tanto pelo uso como pelas operações de limpeza; e tratando-se de mercadorias cujo uso é tão extenso e amplo, isso bastaria para exigir um suprimento anual muito elevado. O consumo desses metais em alguns manufaturados específicos, embora no global talvez possa não ser maior do que esse consumo gradual, é no entanto muito mais sensível, por ser muito mais rápido. Somente nas manufaturas de Birmingham, afirma-se que a quantidade de ouro e prata anualmente empregada na douração e no prateamento — quantidade essa que, portanto, fica desqualificada para aparecer depois na forma desses metais — ascende a mais de 500 mil libras esterlinas. Daí podemos ter uma noção de como pode ser grande o consumo anual em todas as partes do mundo, ou nas manufaturas do mesmo tipo que as de Birmingham, em rendas, bordados, objetos de ouro e prata, douração de livros, mobílias etc. Uma quantidade considerável também deve perder-se ao se transportar os metais de um lugar a outro, tanto por mar como por terra. Além disso, na maior parte dos governos da Ásia, o costume mais ou menos universal de esconder tesouros nas entranhas da terra, sendo que o segredo do paradeiro deles muitas vezes morre com o falecimento de quem os escondeu, deve gerar a perda de uma quantidade ainda maior. A quantidade de ouro e prata importada em Cádiz e Lisboa (incluindo-se não somente o que vem registrado, mas também o que se pode supor venha de contrabando) representa, segundo os melhores cálculos, aproximadamente 6 milhões de esterlinos, ao ano. Segundo o Sr. Meggens,141 a importação anual de metais preciosos na Espanha, em uma média de seis anos — isto é, de 1748 até 1753, 141 Post-scriptum ao Universal Merchant. pp. 15 e 16. Esse post-scriptum só foi impresso em 1756, três anos após a publicação do livro, o qual nunca teve uma segunda edição. Por isso, só há poucas cópias do post-scriptum. Ele corrige vários erros contidos no livro. 237
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incluídos os dois anos — e em Portugal, em uma média de sete anos — de 1747 até 1753, incluídos os dois anos — foi de 1 101 107 libras-peso de prata, e de 49 940 libras-peso de ouro. A prata, a 62 xelins por libra-troy, ascende a 3 413 431 libras e 10 xelins esterlinos. O ouro, a 44 1/2 guinéus por libra-troy, ascende a 2 333 446 libras e 14 xelins esterlinos. Os dois juntos representam a soma de 5 746 878 libras e 4 xelins esterlinos. Meggens assegura-nos ser exato o cálculo da quantidade importada sob registro. Indica-nos os detalhes dos lugares específicos dos quais foram trazidos o ouro e a prata, e da quantidade específica de cada metal que, segundo os registros, cada um deles proporcionou. Ele também deixa uma margem para a quantidade dos dois metais que supõe poder ter sido contrabandeada. A grande experiência desse criterioso comerciante confere grande peso à sua opinião. Segundo o eloqüente e às vezes bem informado autor da Philosophical and Political History of the Establishment of the Europeans in the Two Indies, a importação anual de ouro e prata registrada na Espanha, em uma média de onze anos — de 1754 a 1764, incluídos os dois anos — foi de 13 984 185 3/4 piastras de 10 reais. Levando-se em conta, porém, o que pode ter entrado por contrabando, supõe ele que o total da importação anual pode ter ascendido a 17 milhões de piastras — o que, equivalendo a piastra a 4 s 6 d, é igual a 3,825 milhões de libras esterlinas. Também ele indica os detalhes dos lugares específicos donde vieram o ouro e a prata, e das quantidades específicas dos dois metais, fornecidos por cada lugar, segundo os registros. Informa-nos também que, se avaliássemos a quantidade de ouro anualmente importada dos Brasis para Lisboa com base na soma total dos impostos pagos ao rei de Portugal — que parece ser 1/5 do metal-padrão — poderíamos avaliá-la em 18 milhões de cruzados, isto é, 45 milhões de libras francesas, equivalendo mais ou menos a 2 milhões de libras esterlinas. Todavia, considerando o que pode ter entrado de contrabando, diz ele que podemos com segurança acrescentar à referida soma 1/8 a mais, isto é, 250 mil libras esterlinas, de sorte que o total ascenderia a 2,25 milhões de libras esterlinas. Segundo esse relato, portanto, o total das importações anuais de metais preciosos na Espanha e Portugal sobe a aproximadamente 6 075 000 de libras esterlinas. Foi-me assegurado que vários outros relatos muito fidedignos, ainda que manuscritos, concordam em indicar como soma anual dessas importações uma média em torno de 6 milhões de esterlinos às vezes um pouco mais, às vezes um pouco menos. Com efeito, a importação anual de metais preciosos em Cádiz e em Lisboa não é igual ao total da produção anual das minas da América. Uma parte é enviada anualmente a Manila, pelos navios de Acapulco, outra parte é empregada no comércio de contrabando que as colônias espanholas mantêm com as de outras nações européias; e uma outra parte certamente permanece no país. Além disso, as minas da América não representam em absoluto as únicas minas de ouro e prata do mundo. São, porém, por larga margem, as mais abundantes. Reconhe238
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ce-se que a produção de todas as outras minas conhecidas é significativa, em comparação com a das americanas; reconhece-se também que a maior parte da produção dessas outras minas é anualmente importada por Cádiz e Lisboa. Mas somente o consumo de Birmingham, à taxa de 50 mil libras por ano, equivale à 120ª parte dessa importação anual à taxa de 6 milhões por ano. Portanto, o total do consumo anual de ouro e prata, em todos os países do mundo nos quais esses metais são utilizados, pode talvez ser mais ou menos igual a toda a produção anual. É possível que o resto não seja mais do que suficiente para atender à demanda crescente de todos os países em progresso, podendo até ter ficado abaixo dessa demanda, aumentando um pouco o preço desses metais no mercado europeu. A quantidade de latão e de ferro trazida das minas para o mercado é, fora de todas as proporções, maior do que a de ouro e prata. Nem por isso, porém, imaginamos que aqueles metais menos nobres tenham a probabilidade de multiplicar-se além dessa demanda, ou que se tornem gradativamente mais baratos. Por que motivo imaginaríamos que os metais preciosos tenham essa probabilidade? Os metais menos nobres, com efeito, embora mais duros, são empregados para usos muito mais pesados, e, por terem menos valor, cuida-se menos de sua preservação. Os metais preciosos, tanto quanto os outros, não são necessariamente imperecíveis, mas estão também sujeitos a perda, a desgaste e a serem consumidos das formas as mais variadas. O preço de todos os metais, ainda que sujeito a variações lentas e graduais, varia menos, de ano para ano, do que o preço de quase todos os outros produtos naturais da terra, sendo que o preço dos metais preciosos é ainda menos sujeito a variações repentinas do que o dos metais menos nobres. A durabilidade dos metais constitui o fundamento dessa extraordinária firmeza de preço. O trigo colocado no mercado no ano passado estará totalmente — ou quase totalmente — consumido muito antes do final do presente ano. Mas uma parte do ferro extraído das minas há 200 ou 300 anos ainda pode estar em uso, acontecendo talvez o mesmo com uma parte do ouro extraído há 2 ou 3 mil anos. Os diferentes volumes de trigo, que nos diferentes anos devem suprir o consumo do mundo, sempre serão mais ou menos proporcionais à produção respectiva desses diferentes anos. No entanto, a proporção entre os diferentes volumes de ferro que podem estar em uso em dois anos diferentes será muito pouco afetada por alguma diferença acidental na produção das minas de ferro dos dois anos; e a proporção entre os volumes de ouro será ainda menos afetada por alguma diferença na produção das minas de ouro. Ainda que, portanto, a produção da maior parte das minas metálicas varie, talvez, ainda mais de ano para ano do que a da maior parte dos campos de trigo, essas variações não têm o mesmo efeito sobre o preço de um tipo de mercadoria e o da outra. 239
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VARIAÇÕES NA PROPORÇÃO ENTRE OS VALORES RESPECTIVOS DO OURO E DA PRATA Antes da descoberta das minas da América, o valor do ouro puro em relação à prata pura era regulado, nas diversas casas da moeda européias, entre as proporções de 1 para 10 e 1 para 12, isto é, supunha-se que 1 onça de ouro puro valia de 10 a 12 onças de prata pura. Pelos meados do século passado, o valor foi regulado entre as proporções de 1 para 14 e 1 para 15, isto é, 1 onça de ouro puro supunha-se igual a 14 ou 15 onças de prata pura. O ouro aumentou seu valor nominal, ou seja, na quantidade de prata a ser paga por ele. O valor real dos dois metais baixou, ou seja, na quantidade de trabalho que tinham condições de comprar; mas a prata baixou mais que o ouro. Embora o ouro e a prata das minas da América excedessem em abundância todas as minas que se conheciam até então, parece que a riqueza das minas de prata era proporcionalmente ainda maior que a das minas de ouro. As grandes quantidades de prata transportadas anualmente da Europa à Índia reduziram gradualmente, em algumas das colônias inglesas, o valor da prata em comparação com o do ouro. Em Calcutá, supõe-se que 1 onça de ouro puro vale 15 onças de prata pura, da mesma forma que na Europa. Na casa da moeda, talvez seja avaliado muito alto em relação ao valor que tem no mercado de Bengala. Na China, a proporção do ouro para a prata continua sendo de 1 para 10, ou 1 para 12. No Japão, afirma-se que é de 1 para 8. A proporção entre as quantidades de ouro e prata anualmente importadas na Europa, segundo o relato do Sr. Meggens, é aproximadamente de 1 para 22, isto é, para 1 onça de ouro importa-se um pouco mais que 21 onças de prata. A grande quantidade de prata enviada anualmente às Índias Orientais reduz, supõe ele, as quantidades daqueles metais que permanecem na Europa à proporção de 1 para 14 ou 15, a proporção dos valores respectivos. Ele parece pensar que a proporção entre seus valores deve necessariamente ser a mesma que a existente entre suas quantidades, e seria portanto de 1 para 22, não fosse por essa maior exportação de prata. Mas a proporção normal entre os valores respectivos de duas mercadorias não é necessariamente a mesma que a proporção entre as quantidades que normalmente estão no mercado. O preço de um boi, calculado em 10 guinéus, é aproximadamente 60 vezes o preço de um cordeiro, calculado em 3 s 6 d. Entretanto, seria absurdo inferir daí que comumente existem no mercado 60 cordeiros para cada boi; e seria exatamente tão absurdo concluir, do fato de 1 onça de ouro comprar geralmente de 14 a 15 onças de prata, que comumente há no mercado somente 14 ou 15 onças de prata por cada onça de ouro. É provável que a quantidade de prata existente geralmente no mercado seja muito maior em relação à quantidade de ouro, do que o 240
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valor de uma certa quantidade de ouro seja maior em proporção com uma quantidade igual de prata. A quantidade total de uma mercadoria barata colocada no mercado não é somente maior, mas também de maior valor do que a quantidade total de uma mercadoria cara. A quantidade total de pão comercializada anualmente não somente é maior, mas também seu valor total é maior do que o da quantidade anual total de carne de açougue; por sua vez, a quantidade total de carne de açougue é maior que a quantidade total de carne de aves domésticas e a quantidade total de carne de aves domésticas, do que a quantidade total de aves selvagens de caça. Os compradores de mercadorias baratas são tão mais numerosos que os de mercadorias caras, que geralmente se pode vender não somente uma quantidade maior daquelas, mas também um valor maior. Portanto, a quantidade total da mercadoria barata deve geralmente ser maior, em proporção com a quantidade total da mercadoria cara, do que o valor de uma certa quantidade da mercadoria cara o é em proporção de uma quantidade igual da mercadoria barata. Quando comparamos os metais preciosos entre si, a prata é barata e o ouro é caro. Naturalmente devemos, pois, esperar que no mercado deve haver sempre não somente uma quantidade maior, mas também um valor maior de prata do que de ouro. Façamos qualquer pessoa, que tenha um pouco de ouro e de prata, comparar sua própria prata com sua baixela de ouro, e ela provavelmente constatará que não somente a quantidade mas também o valor da prata excedem de muito o do ouro. Além disso, existem muitas pessoas que têm uma boa quantidade de prata mas não têm baixela de ouro; este, mesmo no caso dos que possuem, geralmente se limita a caixas de relógio, caixinhas de rapé e outras quinquilharias similares, cuja quantia total raramente é de grande valor. Na moeda britânica, realmente, o valor da prata é muito preponderante, mas tal não ocorre na moeda de todos os países. Na moeda de alguns países, o valor dos dois metais é mais ou menos igual. Na moeda escocesa, antes da união com a Inglaterra, o ouro tinha muito pouca preponderância, embora houvesse alguma preponderância,142 como transparece dos relatórios da casa da moeda. Na moeda de muitos países prepondera a prata. Na França, as somas maiores são geralmente pagas em moedas de prata, sendo lá difícil obter mais ouro do que o necessário para carregarmos conosco no bolso. Entretanto, o valor superior da prataria em relação ao do ouro, que existe em todos os países, mais do que compensa a preponderância da moeda de ouro sobre a prata, que só existe em alguns países. Embora, em certo sentido, a prata sempre foi e provavelmente sempre será mais barata que o ouro, em outro sentido, pode-se talvez dizer que, no atual estado do mercado espanhol, o ouro é algo mais barato que a prata. Pode-se dizer que uma mercadoria é cara ou barata, 142 Ver o prefácio de Ruddiman a Diplomata Scotiae, de Anderson. 241
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não somente de acordo com o nível absoluto alto ou baixo de seu preço real, mas também de acordo com que o preço esteja mais ou menos acima do preço mínimo pelo qual é possível colocá-la no mercado por um período de tempo considerável. Esse preço mínimo é o que simplesmente repõe, com um lucro moderado, o capital que se precisa empregar para colocar a mercadoria no mercado. É o preço que nenhuma renda proporciona ao dono da terra, é o preço no qual a renda não entra como componente, pois ele se decompõe integralmente em salários e lucro. Ora, no presente estado do mercado espanhol, o ouro certamente está algo mais próximo desse preço mínimo do que a prata. O imposto do rei da Espanha sobre o ouro é apenas 1/20 do metal-padrão, isto é, 5%, enquanto o imposto sobre a prata ascende a 1/10, ou 10%. Já tem sido observado que é nesses impostos que consiste toda a renda da maior parte das minas de ouro e prata da América Espanhola; e o imposto sobre o ouro é ainda mais sonegado que o que incide sobre a prata. O lucro dos empreiteiros das minas de ouro, além disso, por ser mais raro fazerem fortuna, via de regra é necessariamente mais modesto que o dos empreiteiros das minas de prata. Por isso, o preço do ouro espanhol, pelo fato de proporcionar menos renda e menos lucro, deverá, no mercado espanhol, estar algo mais próximo do preço mínimo pelo qual é possível comercializá-lo, do que o preço da prata espanhola. Uma vez computadas todas as despesas, ao que parece, a quantidade total de ouro não pode, no mercado espanhol, ser vendida com tanta vantagem como a quantidade total de prata. Com efeito, o imposto do rei de Portugal sobre o ouro dos Brasis é o mesmo que o antigo imposto do rei da Espanha sobre a prata do México e do Peru, ou seja, 1/5 do metal-padrão. Pode, assim, ser incerto se, para o mercado geral da Europa, o volume total do ouro americano se aproxima mais do preço mínimo pelo qual é possível levá-lo para lá, do que o volume total de prata americana. Talvez o preço dos diamantes e de outras pedras preciosas possa estar ainda mais perto do preço mínimo ao qual é possível comercializá-los que o próprio preço do ouro. É improvável que um dia se abra mão — ao menos enquanto for possível pagá-lo — de uma parcela do imposto que se impõe não somente a um dos artigos mais adequados à taxação, por ser um simples artigo supérfluo e de luxo, mas que assegura uma receita tão ponderável, como é o imposto sobre a prata; não obstante isso, a própria impossibilidade de recolher este imposto, que em 1736 obrigou a reduzi-lo de 1/5 para 1/10, pode eventualmente obrigar a reduzi-lo ainda mais da mesma forma como obrigou a reduzir o imposto sobre o ouro a 1/20. Toda pessoa que examinou o estado das minas reconhece que as minas de prata da América espanhola, como todas as outras, se tornam cada vez mais caras em sua exploração, devido às grandes profundidades em que é preciso escavar, e devido à ingente despesa necessária para extrair a água e fornecer ar fresco naquelas profundidades. Essas causas, que equivalem a uma escassez crescente da prata 242
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(já que se pode dizer que uma mercadoria se torna mais rara quando passa a ser mais difícil e dispendioso conseguir determinada quantidade dela), deverão, com o tempo, provocar um ou outro dos três seguintes eventos. O aumento da despesa deverá: 1) ser totalmente compensado por um aumento proporcional do preço do metal; 2) ser compensado totalmente por uma diminuição proporcional do imposto sobre a prata; 3) ser compensado parcialmente por um daqueles dois eventos. Este terceiro evento é muito possível. Assim como o ouro aumentou de preço, em relação à prata, não obstante uma grande redução do imposto incidente sobre ele, da mesma forma a prata poderia aumentar de preço em proporção com o trabalho e as mercadorias, apesar de uma redução igual do imposto sobre a prata. Tais reduções sucessivas do imposto, embora não possam impedir totalmente o aumento do valor da prata no mercado europeu, devem certamente retardá-lo em grau maior ou menor. Em conseqüência de tal redução, pode-se explorar muitas minas que antes era impossível explorar, porque não tinham condições para cobrir o antigo imposto; e a quantidade de prata colocada então no mercado anualmente deverá ser sempre algo maior, e o valor de qualquer quantidade dada será algo menor do que teria sido de outra forma. Em conseqüência da redução de 1736, provavelmente o valor da prata no mercado europeu, embora hoje possa não ser mais baixo do que antes da redução, é no mínimo 10% mais baixo do que teria sido, se a Corte espanhola tivesse continuado a exigir a antiga taxa. Os fatos e argumentos que acabei de mencionar levam-me a crer — ou melhor, a suspeitar e conjecturar — que, apesar dessa redução, o valor da prata, durante o curso do século atual, começou a subir um pouco no mercado europeu; pois a melhor opinião que posso formar sobre esse assunto dificilmente mereça talvez o nome de crença. Com efeito, o aumento, se é que houve, foi até agora tão pequeno que, depois de tudo o que se disse, talvez a muitos poderá parecer incerto não somente se o fato aconteceu realmente, mas também se talvez não, terá ocorrido o contrário, ou seja, se o valor da prata não pode estar continuando a cair no mercado europeu. Pode-se observar, porém, que, qualquer que possa ser a suposta importação anual de ouro e prata, deve haver um certo período em que o consumo anual desses metais será igual a essa importação anual. Seu consumo deve aumentar na medida em que aumenta seu volume, ou então, em uma proporção muito maior. Aumentado seu volume, diminui seu valor. Os metais passam então a ser mais usados, haverá menos cuidado, e conseqüentemente seu consumo aumentará em proporção maior do que seu volume. Portanto, depois de um certo período, o consumo anual desses metais deve assim tornar-se igual à quantidade importada, desde que a importação não aumente continuamente — o que não se supõe ser o caso, no momento atual. Se, quando o consumo anual tiver se tornado igual à importação anual, essa começar a diminuir gradualmente, poderá durante algum 243
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tempo haver um excesso de consumo anual sobre a importação anual. O volume daqueles metais pode diminuir gradual e imperceptivelmente, aumentando seu valor também gradual e imperceptivelmente, até que tornando-se a importação anual novamente estacionária, o consumo anual gradualmente e de maneira imperceptível se ajuste àquilo que a importação anual puder manter. FUNDAMENTOS PARA SUSPEITAR QUE O VALOR DA PRATA CONTINUA A DECRESCER O crescimento da riqueza da Europa e a idéia popular de que assim como a quantidade dos metais preciosos naturalmente aumenta com o crescimento da riqueza da mesma forma seu valor diminui na medida em que aumenta a quantidade dos mesmos, pode talvez induzir muitos a pensar que o valor dos metais preciosos ainda continua a baixar no mercado europeu; e o preço ainda gradualmente em aumento de muitos produtos naturais da terra pode confirmá-los ainda mais nessa opinião. Já procurei mostrar que esse aumento da quantidade dos metais preciosos, que em todo país deriva do aumento da riqueza, não tem nenhuma tendência a diminuir o valor deles. O ouro e prata naturalmente se canalizam para países ricos, pela mesma razão que todos os tipos de artigos de luxo e novidades o fazem; não porque lá sejam mais baratos do que em países mais pobres, mas porque são mais caros, porque se paga um melhor preço por eles. É a superioridade dos preços que os atrai a esses países mais ricos, e tão logo cesse tal superioridade, os metais preciosos deixam de se encaminhar para lá. Já procurei mostrar que, se excetuarmos os cereais e outros vegetais cultivados inteiramente pelo trabalho humano, todos os outros tipos de produtos naturais, o gado, as aves domésticas, a caça de todos os tipos, os fósseis e minerais úteis da terra etc. naturalmente se tornam mais caros na medida em que a sociedade progride em riqueza e desenvolvimento. Embora, pois, essas mercadorias possam ser trocadas por uma quantidade maior de prata do que antes, disso não se conclui que a prata se tenha realmente tornado mais barata, ou que permita comprar menos trabalho do que antes, mas que tais mercadorias se tornaram efetivamente mais caras, isto é, têm condições para comprar mais trabalho do que antes. Não é somente seu preço nominal, mas seu preço real que sobe com o avanço do desenvolvimento. O aumento de seu preço nominal é o efeito, não de alguma desvalorização da prata, mas do aumento de seu preço real. EFEITOS DIFERENTES DO AVANÇO DO DESENVOLVIMENTO SOBRE TRÊS DIFERENTES TIPOS DE PRODUTOS NATURAIS Esses diversos tipos de produtos naturais podem ser divididos em três categorias. A primeira engloba aqueles que dificilmente o tra244
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balho humano pode multiplicar. A segunda, aqueles que o trabalho humano pode multiplicar, em proporção à demanda. A terceira, aqueles em que a eficácia do trabalho para multiplicá-los é limitada ou incerta. Com o avanço da riqueza e do desenvolvimento, o preço real dos primeiros pode aumentar indefinidamente, não parecendo ter limites fixos. O preço real dos bens da segunda categoria, embora possa aumentar muito, tem um certo limite, além do qual não pode passar, conjuntamente, durante um período considerável de tempo. O preço real dos produtos da terceira categoria, embora sua tendência natural seja aumentar com o avanço do desenvolvimento, pode às vezes até cair no mesmo grau de desenvolvimento, podendo às vezes continuar inalterado, e às vezes pode aumentar mais ou menos, conforme eventos diversos tornem mais ou menos bem-sucedidos os esforços humanos feitos no sentido de multiplicar esses produtos naturais. Primeiro tipo de produto O primeiro tipo de produtos naturais, cujo preço sobe na medida em que avança o desenvolvimento é aquele que dificilmente o trabalho humano pode multiplicar. Consiste naquelas coisas que a natureza produz apenas em certas quantidades e que, sendo elas de natureza muito perecível, é impossível acumular a produção de diversas estações. Tais são, por exemplo, a maior parte dos pássaros e peixes raros e únicos, muitos tipos de caça, quase todas as aves selvagens de caça, todas as aves migratórias, em particular, bem como muitas outras coisas. Ao crescer a riqueza e o luxo que costuma acompanhá-la, provavelmente aumentará a demanda desses produtos e não há trabalho humano capaz de aumentar a oferta para muito além do que ela era antes desse aumento de demanda. Permanecendo, portanto, inalterada ou quase inalterada, a quantidade dessas mercadorias, ao passo que aumenta continuamente a concorrência para comprá-las, seu preço pode subir a uma escala exorbitante e ao que parece sem limites. Se as galinholas viessem a se tornar de tal modo requisitadas a ponto de serem vendidas por 20 guinéus o exemplar, nenhum esforço humano seria capaz de aumentar o número de galinholas muito além do que ele é atualmente. Isso explica o alto preço pago pelos romanos, na época de seu maior esplendor, por pássaros e peixes raros. Esses preços não eram efeito do baixo valor da prata na época, mas do alto valor dessas raridades e curiosidades que o homem não tem condições de multiplicar a seu bel-prazer. Durante algum tempo, antes e depois da queda da República, o valor real da prata era maior em Roma do que é atualmente na maior parte da Europa. O preço que a República pagava pelo modius ou celamim de trigo siciliano pago a título de dízimo era de 3 sestércios, equivalentes a mais ou menos 6 pence. Entretanto, esse preço provavelmente estava abaixo do preço médio de mercado e a obrigação de os sicilianos fornecerem seu trigo a esse preço era considerada como uma taxa incidente sobre os agricultores 245
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da Sicília. Quando, portanto, os romanos precisavam encomendar mais trigo do que aquele a que se elevava o dízimo de trigo eram obrigados a pagar o excedente à taxa de 4 sestércios, isto é, 8 pence por celamim; sendo que este era provavelmente considerado o preço moderado e razoável, isto é, o preço de contrato médio ou normal daqueles tempos equivalendo aproximadamente a 21 xelins o quarter. Antes dos recentes anos de escassez, 28 xelins o quarter era o preço normal de contrato do trigo inglês, que em qualidade é inferior ao siciliano, e geralmente se vende mais barato no mercado europeu. Por isso, o valor da prata nos tempos dos antigos romanos deve ter sido em relação ao seu valor atual, como 3 está para 4, inversamente, ou seja, 3 onças de prata teriam então comprado a mesma quantidade de trabalho e de mercadorias que quatro onças compram hoje. Quando, portanto, lemos em Plínio que Seio143 comprou um rouxinol branco de presente para a imperatriz Agripina, ao preço de 6 mil sestércios, equivalendo a mais ou menos 50 libras esterlinas de hoje, e que Asínio Céler144 comprou um salmonete ao preço de 8 mil sestércios, equivalentes a aproximadamente £ 66 13 s 4 d em nossa moeda corrente, a extravagância desses preços, por muito que nos possa deixar surpresos, no entanto pode nos parecer cerca de um terço a menos do que realmente custou. Seu preço real, a quantidade de trabalho e de subsistência que se pagava por eles, era aproximadamente um terço mais do que seu preço nominal pode constituir um símbolo para nós na época atual. Seio pagou pelo rouxinol o comando de uma quantidade de trabalho e de subsistência igual ao que £ 66 13 s 4 d comprariam hoje; e Asínio Céler pagou pelo salmonete uma quantidade igual à que hoje se compraria com £ 88 17 s 9 1/3 d. A causa da exorbitância desses preços não foi a abundância da prata, mas antes a abundância de trabalho e subsistência de que os romanos dispunham, além do que era necessário para seu próprio uso. A quantidade de prata de que dispunham era muito menor do que aquela que o comando da mesma quantidade de trabalho e subsistência poderia proporcionar-lhes atualmente. Segundo tipo de produto O segundo tipo de produtos naturais, cujo preço sobe com o avanço do desenvolvimento, é aquele que o trabalho humano pode multiplicar em proporção à demanda. Consiste naquelas plantas e animais úteis, que em países não cultivados a natureza produz em tal profusão, que são de pouco ou nenhum valor e que, à medida em que o cultivo aumenta, são obrigados a ceder lugar a algum produto mais rentável. Durante um longo período no processo de avanço do desenvolvimento, a quantidade desses produtos diminui continuamente, ao mesmo tempo 143 Livro Décimo, cap. XXIX - “Seios” parece ser resultado de uma má interpretação da palavra latina “scio” (N. do E. inglês.) 144 Livro Nono, capítulo XVII. 246
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que cresce continuamente a demanda deles. Por isso, seu valor real, a quantidade real de trabalho que podem comprar ou comandar, aumenta gradualmente, acabando por tornar-se tão alto que se torna um produto tão rentável como qualquer outra coisa que o trabalho humano pode cultivar na terra mais fértil e mais bem tratada. Quando subiu tão alto, não pode subir mais. Se isso acontecesse, mais terra e mais trabalho seriam logo empregados para aumentar sua quantidade. Quando, por exemplo, o preço do gado aumenta ao ponto de ser rentável cultivar terra para alimentar gado — tanto quanto seria rentável cultivá-la para produzir alimento humano — não pode subir mais. Se subisse, mais terra de trigo se transformaria logo em pastagem. A ampliação da lavoura, diminuindo a quantidade de pastagens agrestes, faz diminuir a quantidade de carne de açougue que o país naturalmente produz sem trabalho e cultivo e faz aumentar o número daqueles que têm cereais ou o que dá no mesmo — o preço de cereais para dar em troca pela carne de açougue, aumentando também a demanda. Por isso, o preço da carne de açougue, e conseqüentemente do gado, deve subir gradualmente até tornar-se tão alto, que se torne tão aproveitável para empregar as terras mais férteis e melhor cultivadas na produção de alimento para o gado quanto no cultivo de trigo. Mas é preciso muito avanço de desenvolvimento antes que o cultivo possa se estender a um ponto tal que aumente o preço do gado a esse teto; e até esse ponto, se o país estiver efetivamente progredindo, seu preço deve aumentar continuamente. Existem talvez algumas regiões em que o preço do gado ainda não alcançou esse teto. Antes da União, em parte alguma da Escócia isso havia ocorrido. Se o gado escocês sempre tivesse sido limitado ao mercado da Escócia, em um país em que a quantidade de terra que só pode ser utilizada para a alimentação do gado é tão grande em proporção às que podem ser utilizáveis para outros objetivos, talvez dificilmente poderia ocorrer que o preço do gado jamais pudesse subir ao ponto de ser rentável cultivar terra para alimentá-lo. Na Inglaterra, como já se observou, o preço do gado parece, nas proximidades de Londres, ter atingido esse teto por volta do início do último século, porém provavelmente foi muito mais tarde que isso ocorreu na maior parte dos condados mais afastados, sendo que em alguns deles talvez dificilmente chegou a atingir esse alto preço. De todos os produtos de subsistência, porém, que integram esse segundo grupo de produtos naturais da terra, o gado é, talvez, aquele cujo preço primeiro atinge esse teto, com o avanço do desenvolvimento. Com efeito, até que o preço do gado tenha atingido esse ponto máximo, dificilmente parece possível que a maior parte das terras, mesmo das que comportam o cultivo máximo, possam estar completamente cultivadas. Em todas as propriedades excessivamente distantes de uma cidade para transportar dali adubo — ou seja, na grande maioria das terras de um país extenso — a quantidade de terra bem cultivada deve ser proporcional à quantidade de adubo que a própria propriedade produz; e esta, por sua vez, deve ser proporcional à quan247
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tidade de gado mantido nela. A adubação da terra se faz deixando o gado pastar na própria terra, ou alimentando-o nos estábulos e carregando o adubo dali para a terra. Mas, a menos que o preço do gado seja suficiente para pagar tanto a renda como o lucro da terra cultivada, o agricultor não pode permitir que o gado paste na terra, podendo ainda menos permitir que ele se alimente nos estábulos. Somente com a produção da terra aprimorada e cultivada é possível alimentar o gado no estábulo, pois exigiria muito trabalho e seria excessivamente dispendioso coletar o produto escasso e espalhado das terras desgastadas e não cultivadas. Se, portanto, o preço do gado não for suficiente para pagar a produção da terra aprimorada e cultivada, quando se deixa o gado pastar esse preço será ainda menos suficiente para pagar aquele produto, quando ele precisa ser coletado com muito trabalho adicional e levado ao estábulo. Nessas circunstâncias, portanto, não se pode alimentar com lucro mais gado no estábulo do que o necessário para o cultivo. Mas esse gado jamais tem condições de produzir adubo suficiente para conservar sempre em bom estado todas as terras que ele é capaz de cultivar. O adubo que o gado produz, sendo insuficiente para toda a propriedade, será naturalmente reservado para as terras cuja adubação seja mais vantajosa: as mais férteis ou talvez as localizadas nas proximidades de um pátio da propriedade. Essas, portanto, serão constantemente mantidas em boas condições para a cultura. O restante — a maior parte delas — será deixado sem adubação e trato, e dificilmente produzirá outra coisa senão pastagens precárias, suficientes apenas para manter vivas algumas errantes e famintas cabeças de gado; acontecerá então que a propriedade, embora muito carente e desprovida em proporção com o que seria necessário para seu cultivo completo, muitas vezes está provida em excesso com relação à produção real. Entretanto, uma porção dessa terra não cultivada, depois de ter servido como pastagem precária durante 6 ou 7 anos seguidos, pode ser arada, podendo então proporcionar talvez uma ou duas colheitas pobres de aveia ou de algum outro cereal inferior, e depois disso, inteiramente esgotada, precisa ficar novamente em repouso e servir novamente como pastagem, como antes, depois do que novamente a terra poderá ser arada para ser novamente esgotada e devolvida ao repouso. Esse era, antes da União, o sistema geral de administração das propriedades rurais na Escócia, em todas as terras baixas. As terras que eram continuamente mantidas bem adubadas e em boas condições de cultivo dificilmente ultrapassavam a terceira ou quarta parte da propriedade, e às vezes não chegavam à quinta ou à sexta parte. O resto nunca era adubado, mas uma certa parte delas era no entanto regularmente cultivada e se exauria. Sob esse sistema de administração, evidentemente mesmo aquelas partes de terras da Escócia suscetíveis de bom cultivo não produziriam muito, em comparação ao que poderiam produzir. Todavia, por mais desvantajoso que se considere esse sistema, parece que, antes da União, o baixo preço do gado o tornou mais ou menos inevitável. Se, não obstante um grande aumento do preço do 248
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gado, esse sistema continua vigente na maior parte do país, sem dúvida isso se deve, em muitos lugares, à ignorância e ao apego aos velhos usos, mas em muitos outros, aos obstáculos inevitáveis que o curso natural das coisas opõe à implantação imediata ou rápida de um sistema melhor: em primeiro lugar, à pobreza dos arrendatários, ao fato de não se ter ainda tido tempo de adquirir uma quantidade de gado suficiente para cultivar a terra de modo mais completo, o mesmo aumento do preço, que lhes tornaria vantajosa a manutenção de uma maior quantidade, tomando-lhes mais difícil adquiri-la; e, em segundo lugar, por não terem ainda tido tempo de colocar suas terras em condições de manter devidamente essa maior quantidade, na suposição de que sejam capazes de adquiri-la. O aumento da quantidade de gado e o aprimoramento da terra são duas coisas que devem andar de mãos dadas, sendo que uma nunca pode avançar mais que a outra. Sem algum aumento da quantidade de gado, dificilmente poderá haver qualquer melhoria da terra, mas só pode haver um aumento considerável da quantidade de gado apenas em conseqüência de um melhoramento considerável da terra; porque, de outra maneira, a terra não poderia mantê-lo. Esses obstáculos naturais à implantação de um sistema melhor só podem ser eliminados por um longo período de economia e trabalho; talvez seja necessário meio século ou um século inteiro para ficar totalmente abolido no país inteiro o velho sistema, que se está desgastando progressivamente. Ora, de todas as vantagens comerciais auferidas pela Escócia de sua união com a Inglaterra, esse aumento do preço do gado talvez seja a maior. Isso não somente fez aumentar o valor de todas as propriedades da Alta Escócia como também constituiu, talvez, a causa principal do desenvolvimento das terras da Baixa Escócia. Em todas as colônias novas, a grande quantidade de terras incultas, que durante muitos anos não podem ser utilizadas para outra coisa senão a criação de gado, logo torna extremamente abundante o gado e seus preços baixos são a conseqüência necessária da sua grande abundância. Embora todo o gado das colônias européias na América tenha inicialmente vindo da Europa, logo ele se multiplicou tanto lá, e seu valor se tornou tão baixo, que mesmo os cavalos andavam soltos nas florestas, sem que algum proprietário considerasse valer a pena reclamar sua posse. Deve passar muito tempo após a fundação dessas colônias, antes que se torne rentável alimentar gado com o produto das terras cultivadas. Por conseguinte, as mesmas causas, a falta de adubo, e a desproporção entre a quantidade de gado empregado no cultivo e a terra que o gado precisa cultivar, provavelmente levarão a introduzir no local um sistema agrícola não muito diferente do que continua a funcionar em tantas regiões da Escócia. O viajante sueco Sr. Kalm, ao referir-se à agricultura de algumas colônias inglesas na América do Norte, tal como as viu em 1749, observa que dificilmente conseguiu lá descobrir as características da nação inglesa, tão habilidosa em todos os setores agrícolas. Dificilmente adubam seus campos de trigo, diz ele; quando uma área de terra está esgotada por colheitas 249
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contínuas, roçam e cultivam uma outra extensão de terra virgem; e quando esta também se esgota, fazem o mesmo com uma terceira. Deixam seu gado andar solto pelas florestas e outros solos não cultivados, onde o gado vive esfomeado, tendo há muito tempo arrancado quase todo o capim anual, cortando-o muito cedo na primavera antes que pudesse florescer e dar sementes.145 Ao que parece, o capinzal anual era o melhor naquela região da América do Norte; e quando os europeus lá chegaram, ficando-se pela primeira vez, esses capinzais eram muito densos, atingindo a altura de 3 ou 4 pés. Uma área de terra que, quando o autor escreveu, não era suficiente para manter uma vaca, anteriormente — como foi informado — tinha condições de manter quatro, sendo que cada uma delas teria dado o quádruplo da quantidade de leite de uma. Em sua opinião, a pobreza das pastagens gerou o deterioramento do gado, o qual degenerou sensivelmente, de uma geração para outra. O gado de lá provavelmente se assemelhava a essa raça decaída que era comum em toda a Escócia, há trinta ou quarenta anos atrás, e que agora está tão melhorada na maior parte da região baixa da Escócia, não tanto por mudança de raça — embora este meio tenha sido empregado em alguns lugares — mas antes mediante um método mais completo de alimentação. Embora, portanto, se requeira um período de desenvolvimento considerável para que o gado atinja um preço que torne rentável o cultivo de terras para alimentá-lo, talvez se possa afirmar que, de todos os produtos naturais que compõem a segunda categoria, o gado é talvez o primeiro a atingir tal preço compensador; antes que isso aconteça, parece impossível que o desenvolvimento possa atingir sequer aquele grau de perfeição que atingiu em muitas regiões da Europa. Se o gado está entre os primeiros, talvez o veado esteja entre as últimas categorias dessa espécie de produção rústica que atingem tal preço. O preço da carne de veado, na Grã-Bretanha, por mais exorbitante que possa parecer, nem sequer é suficiente para compensar a despesa de uma criação de cervídeos, como sabem muito bem todos os que têm alguma experiência nesse setor. Se não fosse assim, a alimentação de cervos logo se tornaria um negócio generalizado, da mesma forma como ocorria entre os antigos romanos com a alimentação desses pequenos pássaros chamados turdídeos. Varrão e Columela garantemnos que se tratava de um negócio altamente rendoso. Afirma-se que, em algumas regiões da França, é bom negócio engordar hortulanas, aves migratórias que chegam magras ao país. Se a caça ao veado continuar na moda, e se a riqueza e o luxo continuarem a aumentar na Grã-Bretanha, como aconteceu durante algum tempo no passado, é muito provável que seu preço suba ainda muito mais do que atualmente. Entre o período de avanço do desenvolvimento, que eleva ao máximo o preço de um artigo tão necessário como o gado, e aquele que 145 KALM. Travels, v. I, pp. 343-344. 250
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faz o mesmo com a carne de cervo, artigo tão supérfluo, há um intervalo muito grande, no decurso do qual muitos outros tipos de produtos brutos atingem gradualmente seu preço máximo — alguns mais cedo e outros mais tarde, de acordo com circunstâncias diferentes. Assim, em toda propriedade rural, os restos dos celeiros e estábulos manterão certo número de aves domésticas. Pelo fato de serem estas alimentadas com coisas que de outra forma se perderiam, constituem uma medida de economia; e já que pouco ou nada custa sua criação, o agricultor pode vendê-las a preço muito baixo. Quase tudo o que ele obtém da venda é ganho líquido, sendo que o preço dificilmente será tão baixo que desestimule a criar esse número. Em países mal cultivados e, portanto, pouco povoados, as aves domésticas, criadas sem despesas, muitas vezes são plenamente suficientes para atender a toda a demanda. Nessa situação, muitas vezes são tão baratas como a carne de açougue ou qualquer outro tipo de alimento animal. Entretanto, a quantidade total de carne de aves domésticas que a propriedade produz sem despesas deve sempre ser muito inferior à quantidade de carne de açougue produzida na respectiva propriedade; e em épocas de riqueza e luxo, o que é raro, em paridade de mérito, sempre é preferida àquilo que é comum. Já que, portanto, a riqueza e o luxo aumentam em conseqüência do aprimoramento e do cultivo da terra, o preço da carne de aves domésticas aos poucos supera o preço da carne de açougue, até atingir um ponto em que se torna rentável cultivar terra para criar tais aves. Quando se atinge esse preço, dificilmente ele pode subir mais. E se subisse, maiores áreas de terra seriam empregadas para isso. Em várias províncias da França, a criação de aves domésticas é considerada como um item muito importante na economia rural, além de suficientemente rendoso para encorajar a cultivar uma quantidade considerável de milho e trigo mourisco para esse fim. Um proprietário médio poderá às vezes manter quatrocentas aves em seu galinheiro. Na Inglaterra, a criação de aves domésticas dificilmente chega a ser considerada geralmente como coisa de grande importância. Certamente, porém, são mais caras na Inglaterra do que na França, já que a Inglaterra importa quantidades consideráveis da França. Com o avanço do desenvolvimento, o período no qual cada tipo de carne animal é mais caro deve naturalmente ser aquele que precede imediatamente a prática geral de cultivar terra para criar o respectivo tipo de animal. Pois algum tempo antes que essa prática se generalize, a escassez necessariamente fará subir o preço. Depois de se generalizar, costuma-se introduzir novos métodos de criação e alimentação, os quais possibilitam auferir da mesma quantidade de terra uma quantidade muito maior do tipo específico de animal. A abundância não somente obriga o agricultor a vender mais barato, senão que também, em conseqüência desses aprimoramentos, ele pode permitir-se vender mais barato, pois se não o pudesse, a abundância não seria de longa duração. Foi provavelmente dessa maneira que a introdução de trevo, nabos, cenouras, repolhos etc. contribui para fazer o preço normal da carne 251
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de açougue no mercado londrino descer algo abaixo do que era por volta do início do século passado. O porco, que encontra seu alimento no esterco, e devora avidamente muitas coisas rejeitadas por qualquer outro animal útil, também é originalmente mantido como uma medida de economia da mesma forma que as aves domésticas. Enquanto o número de tais animais que podem ser assim criados com pouca ou nenhuma despesa for plenamente suficiente para atender à demanda, este tipo de carne de açougue se vende a um preço muito mais baixo que qualquer outra carne de açougue. Mas quando a demanda ultrapassa essa quantidade, quando se torna necessário conseguir alimento para engordar porcos, da mesma maneira que para alimentar e engordar gado, o preço necessariamente sobe e se torna proporcionalmente mais alto ou mais baixo do que outras carnes de açougue, conforme a natureza do país e o estado da sua agricultura tornarem a criação de porcos mais cara ou mais barata do que a de outros tipos de animais. Segundo o Sr. Buffon, na França o preço da carne de porco é quase igual à de boi. Na maior parte da Grã-Bretanha, é atualmente um pouco mais cara. O grande aumento do preço dos porcos e das aves domésticas tem sido freqüentemente atribuído, na Grã-Bretanha, à diminuição do número de aldeões e de outros pequenos sitiantes — evento este que em toda a Europa foi o precursor imediato do desenvolvimento e do melhor cultivo, mas que ao mesmo tempo pode haver contribuído para elevar o preço desses artigos, porém um pouco antes e um pouco mais rapidamente do que de outra forma teria subido. Assim como a família mais pobre pode muitas vezes manter um gato ou um cachorro sem nenhuma despesa, da mesma forma os sitiantes mais pobres têm condições para manter algumas aves domésticas, ou uma porca e alguns porcos, com muito pouca despesa. Os pequenos restos de sua própria mesa, o leite desnatado e o leiteiro fornecem uma parte da alimentação desses animais, sendo que o resto podem encontrá-lo nos campos vizinhos, sem causarem prejuízo sensível a ninguém. Ao diminuir o número desses pequenos sitiantes, portanto a quantidade desse tipo de mantimento, produzido com pouca ou nenhuma despesa, deve certamente haver diminuído bastante, e conseqüentemente seu preço deve haver aumentado antes e mais rapidamente do que teria ocorrido de outra forma. Mais cedo ou mais tarde, porém, à medida em que avança o desenvolvimento, o preço deve ter subido ao máximo possível, ou seja, ao ponto em que ele paga a mão-de-obra e a despesa necessária para cultivar a terra que proporciona alimento a esses animais, com a mesma compensação que na maior parte das outras terras cultivadas. O negócio dos laticínios, similarmente à criação de porcos e aves domésticas, de início é feito como medida de economia. O gado necessariamente mantido em uma propriedade rural produz mais leite do que o necessário para a alimentação das crias e o consumo da família do criador, sendo que em determinada estação a produção atinge o máximo. Mas de todos os produtos da terra, o leite talvez seja o mais 252
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perecível. No verão, quando sua abundância é maior, dificilmente ele se conserva por vinte e quatro horas. O agricultor, ao transformá-lo em manteiga fresca, estoca uma parte dele para uma semana, e, transformando-o em manteiga salgada, conserva-o por um ano; fazendo queijo, conserva uma parcela muito maior de leite por vários anos. Uma parte disto é reservada para o uso da própria família. O resto é comercializado, à procura do melhor preço que se possa obter, e que dificilmente pode ser tão baixo ao ponto de desestimular o agricultor a colocar no mercado o que além disso não é utilizado para o consumo de sua própria família. Com efeito, se o preço for muito baixo ele provavelmente administrará seus laticínios de forma muito desleixada e sem higiene, e dificilmente achará que vale a pena manter um espaço ou construção específica para este fim, contentando-se em fazer a manteiga, o queijo etc. no meio de fumaça, fuligem e sujeira de sua própria cozinha como acontecia em quase todos os laticínios de agricultores da Escócia, 30 ou 40 anos atrás, e como ocorre ainda hoje em muitos deles. As mesmas causas que gradualmente fazem subir o preço da carne de açougue, isto é, o aumento da demanda e, em conseqüência do aprimoramento da terra, a diminuição da quantidade de animais que podem ser criados com pouca ou nenhuma despesa, fazem subir igualmente o preço dos laticínios, que naturalmente está ligado ao da carne de açougue ou à despesa de manutenção do gado. O aumento do preço paga maior quantidade de trabalho, de cuidado e de limpeza. O negócio se torna mais convidativo para o agricultor, melhorando gradualmente a qualidade do produto. Ao final, o preço sobe tanto que vale a pena empregar uma parte das terras mais férteis e melhor cultivadas para criar gado somente para comercializar laticínios; quando o preço chegou a essa altura, dificilmente poderá aumentar. E se aumentasse, logo se destacaria mais terra para este fim. Parece que o preço chegou a essa altura na maior parte da Inglaterra, onde se costuma utilizar muitas áreas de boa terra para tal finalidade. Se excetuarmos os arredores de algumas cidades grandes, parece que ainda não se chegou a esse teto em nenhum lugar da Escócia, onde os agricultores comuns raramente empregam terra boa para plantar alimento para o gado, visando somente a comercialização dos laticínios. Embora o preço desses produtos tenha aumentado consideravelmente nesses poucos anos, provavelmente ainda é muito baixo para que isso seja admitido. Com efeito, a inferioridade da qualidade, comparada à encontrada nos laticínios ingleses, é perfeitamente igual à inferioridade do preço. Mas esta inferioridade da qualidade talvez seja mais efeito do baixo preço do que sua causa. Mesmo que a qualidade fosse muito melhor, penso que a maior parte do que pode ser levado ao mercado não poderia, nas atuais circunstâncias do país, ser vendida a um preço muito melhor, sendo provável que o preço atual não pagaria a despesa da terra e da mão-de-obra necessária para produzir uma qualidade muito superior. Na maior parte da Inglaterra, apesar da superioridade do preço, o negócio dos laticínios não é considerado como um emprego 253
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mais rendoso da terra do que o cultivo de cereais ou a engorda de gado, os dois grandes objetivos da agricultura. Portanto, na maior parte da Escócia, muito menos esse negócio já pode ser considerado como particularmente rendoso. Evidentemente, em nenhum país as terras podem ser completamente cultivadas e aprimoradas, antes que o preço de cada produto nelas cultivado seja tão compensador que pague a despesa de todo o melhoramento e cultivo. Para isto, o preço de cada produto específico deve ser suficiente, em primeiro lugar, para pagar a renda de uma boa terra para cereais, já que é esta que regula a renda da maior parte de outras terras cultivadas; em segundo lugar, deve ser suficiente para pagar a mão-de-obra e as despesas do arrendatário, com a mesma compensação garantida por uma terra em que se cultivam cereais; em outras palavras, o preço do produto deve ser suficiente para repor, juntamente com o lucro normal, o capital empregado na terra pelo arrendatário. Evidentemente, este aumento do preço de cada produto específico deve anteceder ao aprimoramento e ao cultivo da terra destinada a cultivá-lo. O ganho é o objetivo de toda melhoria, e uma coisa cuja conseqüência necessária fosse o prejuízo não mereceria o nome de melhoria ou aprimoramento. Ora, o prejuízo seria a conseqüência necessária do aprimoramento de uma terra, se feito para produzir uma coisa cujo preço nunca pudesse cobrir os custos da melhoria implantada. Se o aprimoramento e o cultivo constituírem — como certamente constituem — a maior vantagem pública, esse aumento do preço de todos os tipos de produtos naturais da terra, ao invés de ser considerado calamidade pública, deve ser visto como o precursor necessário e responsável pelas maiores de todas as vantagens públicas. Esse aumento do preço nominal ou em dinheiro desses diversos tipos de produtos naturais da terra foi o efeito, não de uma perda de valor da prata, mas de um aumento de seu próprio preço real. Passaram a valer, não somente uma quantidade maior de prata, mas também uma quantidade maior de trabalho e de alimentos do que antes. Assim como custa mais trabalho e mais alimentos para colocá-los no mercado, da mesma forma, quando lá chegam, representam ou são equivalentes a uma quantidade maior. Terceiro tipo de produto O terceiro e último tipo de produtos naturais da terra, cujo preço naturalmente sobe com o avanço do desenvolvimento, é aquele no qual é limitada ou incerta a eficácia do trabalho humano para aumentar a quantidade dos mesmos. Embora, pois, o preço real desse tipo de produtos naturais tenda a aumentar com o avanço do desenvolvimento, todavia, como diversos eventos podem tornar os esforços do trabalho humano mais ou menos bem-sucedidos no sentido de aumentar a quantidade, pode às vezes acontecer que essa quantidade caia, às vezes, para continuar a 254
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mesma em períodos muito diferentes de aprimoramento, e outras vezes aumente em maior ou menor grau, no mesmo período. Há alguns tipos de produtos naturais que a natureza fez como uma espécie de acessórios de outros tipos de produtos, de forma que a quantidade de um, que o país pode produzir, seja necessariamente limitada pela quantidade de outro. Por exemplo, a quantidade de lã ou de couro cru que um país pode produzir é necessariamente limitada pelo número, grande ou pequeno, de cabeças de gado que ele mantém. Por sua vez, este número é determinado pelo estágio de aprimoramento e pela natureza de sua agricultura. Poder-se-ia pensar que as mesmas causas que, na medida em que avança o desenvolvimento, aumentam gradualmente o preço da carne de açougue deveriam ter o mesmo efeito sobre os preços da lã e dos couros, e que devessem fazê-los subir também nas mesmas proporções. Isso provavelmente seria assim, se nos estágios iniciais e primitivos do desenvolvimento o mercado dessas últimas mercadorias fosse tão limitado quanto o das primeiras. Ocorre, porém, que a extensão de seus respectivos mercados costuma ser extremamente diferente. O mercado de carne de açougue é em toda parte mais ou menos confinado ao país que a produz. Com efeito, a Irlanda, e uma parte da América britânica, mantêm um comércio considerável de mantimentos salgados; acredito, porém, que sejam os únicos países do mundo comercial que façam isto, isto é, que exportam a outros países uma parte considerável de sua carne de açougue. Ao contrário, o mercado da lã e dos couros crus muito raramente está, nos estágios iniciais do desenvolvimento, limitado ao país que os produz. Podem ser facilmente transportados a países distantes; a lã, sem preparo algum, e o couro cru, com muito pouco preparo; e por constituírem a matéria-prima para muitos manufaturados, outros países podem ter demanda deles, mesmo que a indústria do país que os produz não tenha nenhuma. Em países mal cultivados, e portanto pouco habitados, o preço da lã e dos couros mantém sempre uma proporção muito maior em relação ao animal inteiro do que em países onde, devido ao estágio mais avançado do desenvolvimento agrícola e populacional, há mais demanda de carne de açougue. O Sr. Hume observa que no tempo dos saxões o velo era calculado a 2/5 do valor da ovelha inteira, e que isto estava muito acima do cálculo atual. Foi-me assegurado que em algumas províncias da Espanha mata-se a ovelha simplesmente por causa do velo e do sebo. Deixa-se muitas vezes a carcaça do animal apodrecer no chão, ou então deixa-se que seja devorada por animais e aves de rapina. Se isso acontece por vezes até na Espanha, ocorre quase constantemente no Chile, em Buenos Aires e em muitas outras regiões da América espanhola, onde o gado de chifre quase sempre é abatido simplesmente em função do couro e do sebo. Isso costumava acontecer quase sempre em Hispaniola, quando infestada pelos piratas, antes que a implantação, o aprimoramento e a abundância das plantações 255
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francesas (que hoje se estendem em torno da costa de toda a metade ocidental da ilha) dessem algum valor ao gado dos espanhóis, que ainda possuem uma parte, não somente a parte oriental da costa, mas também todo o interior e a parte montanhosa da região. Embora com o avanço de desenvolvimento e com o crescimento populacional aumente necessariamente o preço de todos os animais, o preço da carcaça tem probabilidade de ser muito mais afetado por esse aumento do que o da lã e o do couro. Pelo fato de estar o mercado da carcaça sempre limitado ao país produtor no estágio primitivo da sociedade, ele necessariamente se estende em proporção ao aprimoramento e à população do país. Mas, já que o mercado da lã e dos couros, mesmo em um país primitivo, muitas vezes se estende a todo o mundo comercial, muito raramente ele pode ser ampliado na mesma proporção. A situação de todo o mundo comercial raramente pode ser muito afetada pelo aprimoramento de um país específico; e o mercado para tais mercadorias pode permanecer o mesmo, ou mais ou menos o mesmo que antes, depois desse desenvolvimento. Pelo curso natural das coisas, porém, deveria, de modo global, ser levemente ampliado em conseqüência dele. Sobretudo, se especialmente as manufaturas das quais aquelas mercadorias constituíssem a matéria-prima florescessem no país, seu mercado, embora talvez não fosse muito ampliado, estaria mais próximo do que antes e seu preço poderia ser no mínimo aumentado na proporção daquilo que costumeiramente era a despesa de transportá-los a países distantes. Embora, portanto, o preço talvez não aumentasse na mesma proporção que o da carne de açougue, deveria naturalmente aumentar em algo e certamente não deveria baixar. Na Inglaterra, a despeito do estado florescente de sua manufatura de lã, o preço da lã inglesa caiu consideravelmente desde o tempo de Eduardo III. Há muitos documentos autênticos demonstrando que durante o reinado desse príncipe (em meados do século XIV, ou em torno de 1339) o que se considerava como preço razoável do tod, isto é, vinte e oito libras peso de lã inglesa, era nada menos de 10 xelins do dinheiro da época,146 contendo, à taxa de 20 pence por onça, 6 onças de prata, peso Tower, equivalentes a mais ou menos 30 xelins em dinheiro de hoje. Atualmente, 2 xelins por tod pode ser considerado como um bom preço para a lã inglesa de primeira qualidade. Portanto, o preço da lã em dinheiro, na época de Eduardo III, estava para o seu preço atual em dinheiro como 10 está para 7. A superioridade de seu preço real era ainda maior. À taxa de 6 xelins e 8 pence o quarter, 10 xelins eram naquela época o preço de 12 bushels de trigo. À taxa de 28 xelins o quarter, 21 xelins é atualmente o preço de apenas 6 bushels. Portanto, a proporção entre os preços reais de então e de agora é como 12 para 6, ou 2 para 1. Nessa época antiga, um tod de lã teria comprado o dobro da quantidade de mantimentos que compraria hoje, e, conse146 Ver SMITH. Memoirs of Wool, v. I, capítulos V, VI e VII; também v. II, capítulo CLXXVI. 256
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qüentemente, o dobro da quantidade de trabalho, se a remuneração real da mão-de-obra tivesse sido a mesma nas duas épocas. Essa baixa do preço — tanto do real como do nominal — da lã jamais poderia ter ocorrido em conseqüência do curso normal das coisas. Foi, portanto, efeito da violência e do artifício: primeiro, da proibição absoluta de exportar lã da Inglaterra; segundo, da permissão de importá-la da Espanha, com isenção de imposto; terceiro, da proibição de exportá-la da Irlanda para qualquer outro país que não fosse a Inglaterra. Em decorrência desses regulamentos, o mercado da lã inglesa, em vez de ampliar um pouco em conseqüência do desenvolvimento da Inglaterra, tem-se confinado ao mercado interno, onde se permite à lã de vários outros países concorrer com ela, e onde a lã irlandesa é obrigada a concorrer com ela. Já que também a manufatura de lã da Irlanda está tão completamente desestimulada, quanto conseqüente com a justiça e a honestidade dos negócios, os irlandeses podem elaborar no país apenas uma pequena parte de sua lã, sendo portanto obrigados a enviar uma quantidade maior à Grã-Bretanha, único mercado em que lhe é permitido vendê-la. Não tenho conseguido encontrar documentação autêntica similar no tocante ao preço dos couros crus nos tempos antigos. A lã costumava ser paga como um subsídio ao rei, e o valor deste subsídio nos dá certeza, ao menos até certo grau, sobre o preço comum então vigente. Mas isto não parece ter sido o caso do couro cru. Entretanto, Fleetwood, baseado em prestação de contas de 1425, entre o prior de Burcester Oxford e um de seus cônegos, nos indica os preços, ao menos como eram, naquela ocasião específica, ou seja: 5 couros de boi a 12 xelins; 5 couros de vaca, a 7 xelins e 3 pence; 36 peles de ovelha de dois anos de idade, a 9 xelins; 16 peles de bezerro, a 2 xelins. Em 1425, 12 xelins continham aproximadamente a mesma quantidade de prata que 24 xelins de hoje. Portanto, um couro de boi, segundo esse cálculo, valia a mesma quantidade de prata que hoje valem 4 4/5 xelins do nosso dinheiro atual. Seu preço nominal era bastante mais baixo que o de hoje. Mas, à taxa de 6 xelins e 8 pence o quarter, 12 xelins daquela época poderiam comprar 14 4/5 bushels de trigo, os quais, a 3 xelins e 6 pence o bushel, atualmente custariam 51 xelins e 4 pence. Um couro de boi, portanto, compraria na época uma quantidade de trigo correspondente ao que hoje se compraria com 10 xelins e 3 pence. Seu valor era igual a 10 xelins e 3 pence do nosso dinheiro atual. Naquela época, quando o gado quase morria de fome na maior parte do inverno, não podemos supor que o gado tivesse um tamanho muito grande. Um couro de boi que pesa 4 stone147 de 16 libras avoirdupois não é hoje considerado como ruim, e naquela época provavelmente era 147 Unidade de peso usada na Inglaterra, em geral equivalente a 14 libras avoirdupois. O sistema avoirdupois era usado para todo tipo de mercadoria e, nele, 1 libra correspondia a 16 onças e não a 12, como no sistema troy, empregado para metais e pedras preciosas. (N. do E.) 257
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considerado como um couro muito bom. Entretanto, a meia coroa por stone — que neste momento (fevereiro de 1773) entendo ser o preço habitual — tal couro custaria hoje apenas 10 xelins. Portanto, apesar de seu preço nominal ser mais alto hoje do que era nessa época antiga, seu preço real, isto é, a quantidade real de mantimentos que pode comprar ou comandar, é algo mais baixo. O preço dos couros de vaca, como estão documentados na referida prestação de contas, está quase na proporção normal com o dos couros de boi. O das peles de ovelha está bastante acima dos de boi, pois provavelmente eram vendidos com a lã. Ao contrário, o preço das peles de bezerro estava bem abaixo das de boi. Nos países em que o preço do gado é muito baixo, os bezerros, que não se pretende criar para manter o rebanho, geralmente são abatidos em idade muito tenra, como se fazia na Escócia, há 20 ou 30 anos atrás. Isto representa economia de leite, que o preço dos bezerros não seria suficiente para pagar. Por isso, suas peles geralmente não valem quase nada. O preço dos couros é bastante mais baixo hoje do que era alguns anos atrás, provavelmente devido à supressão do imposto sobre peles de foca, e por causa da permissão, para um tempo limitado, da importação, sem imposto, de couros da Irlanda e das colônias, feita em 1769. Considerando o total deste século como média, o preço real dos couros provavelmente tem sido um pouco superior ao que foi na época. A natureza dessa mercadoria não a torna tão indicada para transporte a mercados longínquos, como ocorre com a lã. Os couros sofrem mais com a conservação. Um couro salgado é considerado inferior a um fresco, vendendo-se por preço mais baixo. Esta circunstância deve necessariamente influir no sentido de baixar o preço dos couros crus produzidos em um país que os manufatura. Deve ter alguma tendência a fazer baixar seu preço em um país primitivo, e a aumentá-lo em um país aperfeiçoado e manufatureiro. Por isso, deve ter tido alguma tendência a fazer baixar o preço antigamente, e a aumentá-lo nos tempos modernos. Além disso, nossos curtidores não têm tido tanto sucesso como nossos fabricantes de roupas, levando o bom senso geral a acreditar que a segurança da comunidade do reino depende da prosperidade de sua manufatura. Por esse motivo, têm sido muito menos favorecidos. Com efeito, foi proibida a exportação de couros, sendo considerada como um prejuízo, enquanto que sua importação de países estrangeiros tem sido sujeita a imposto aduaneiro; e embora este imposto tenha sido suprido em se tratando de couros importados da Irlanda e das colônias (somente para o tempo limitado de cinco anos), apesar disso a Irlanda não foi obrigada a limitar à Grã-Bretanha a venda de seu excedente de couros, isto é, os que não são manufaturados no país. Os couros de gado comum, dentro desses poucos anos, foram enquadrados entre as mercadorias que as colônias só podem exportar para a mãe-pátria; nem o comércio da Irlanda foi até agora oprimido neste caso, a fim de ajudar as manufaturas da Grã-Bretanha. 258
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Todas as medidas que tendem a fazer baixar o preço da lã ou dos couros abaixo do que seria o preço natural devem, em um país desenvolvido e cultivado, tender de alguma forma a aumentar o preço da carne de açougue. O preço do gado de grande e pequeno porte, que é criado em terras trabalhadas e cultivadas, deve ser suficiente para pagar ao proprietário da terra a renda, e ao locatário o lucro que têm o direito de esperar de uma terra tratada e cultivada. Se assim não for, logo deixarão de criar gado. Ora, toda parcela desse preço que não for paga pela lã e pelo couro, deve ser paga pela carcaça. Quanto menos se pagar pela lã e pelo couro, tanto mais se deverá pagar pela carne. Desde que o dono da terra e o arrendatário recebam o preço devido, não lhes interessa de que maneira os componentes do preço são subdivididos entre a lã, o couro e a carne. Por isso, em um país onde as terras são trabalhadas e cultivadas tanto o interesse dos proprietários da terra como o dos arrendatários não pode ser muito afetado por esses detalhes, embora isto lhes interesse como consumidores, devido ao aumento do preço dos mantimentos. Seria completamente diferente, no entanto, em um país não desenvolvido e não cultivado onde a maior parte das terras só pudessem servir para criar gado, e onde a lã e o couro constituíssem a parcela principal do valor do gado. Neste caso, o interesse dos proprietários das terras e dos arrendatários seria profundamente afetado por essas regulamentações, ao passo que seu interesse como consumidores seria muito pouco afetado. A queda do preço da lã e do couro nesse caso não haveria de gerar aumento do preço da carcaça; porque, com a maior parte das terras sendo utilizadas apenas, para criar gado, o mesmo número de cabeças continuaria a ser mantido. Continuaria sendo igual a quantidade de carne de açougue colocada no comércio. A demanda de carne de açougue não seria maior do que antes, e portanto seu preço seria o mesmo que antes. O preço total do gado diminuiria e com isto, tanto a renda do proprietário como o lucro do arrendatário de todas as terras em que o gado fosse o produto principal, isto é, da maior parte das terras do país. A proibição perpétua de exportar lã, que se costuma — muito erroneamente — atribuir a Eduardo III, nas circunstâncias de então teria representado a medida mais destrutiva que se teria podido imaginar. Não somente teria reduzido o valor efetivo da maior parte das terras do reino, senão que, reduzindo o preço do mais importante tipo de gado de pequeno porte, teria retardado muito seu subseqüente aprimoramento. A lã da Escócia perdeu muito de preço, em conseqüência da união com a Inglaterra, que a excluiu do grande mercado da Europa, ficando confinada ao limitado mercado da Grã-Bretanha. O valor da maioria das terras dos condados do sul da Escócia, que são sobretudo uma região de ovelhas, teria sido profundamente afetado por tal evento, se o aumento do preço da carne de açougue não tivesse compensado plenamente a queda do preço da lã. Assim como é limitada a eficácia do empenho humano em aumentar a quantidade de lã e de couros, na medida em que depende 259
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da produção do país, da mesma forma ela é incerta, na medida em que depende da produção de outros países. Ela depende, não tanto da quantidade que produzem, senão mais da quantidade que não manufaturam, bem como das restrições que esses países possam considerar oportuno impor ou não à exportação desse tipo de produto natural. Essas circunstâncias, pelo fato de independerem totalmente do trabalho e dos esforços internos, necessariamente fazem com que a eficácia dos esforços feitos no país seja mais ou menos incerta. Ao multiplicar, portanto, esse tipo de produto natural, a eficácia dos esforços internos da nação, além de ser limitada, é incerta. Existe um outro tipo importante de produto natural, o peixe, cuja quantidade comercializada é igualmente limitada e incerta. Ela é limitada pela situação local do país, pela proximidade ou distância que separa do mar suas diversas províncias, pelo número de seus lagos e rios e pelo que pode ser chamado de fertilidade ou esterilidade desses mares, lagos e rios, no tocante a peixes. Na medida em que a população aumenta, na medida em que a produção da terra e a mão-de-obra do país aumentam sempre mais, crescerá o número de compradores de peixe, compradores esses que, por sua vez, terão maior quantidade e variedade de outros bens — ou, o que dá no mesmo, o preço de uma maior quantidade e variedade de outros bens — com que comprar peixe. Por outro lado, de modo geral, será impossível suprir o grande e amplo mercado sem empregar uma quantidade de mão-de-obra maior do que a que se exigiria para suprir um mercado limitado e confinado. Um mercado que antes exigia apenas mil toneladas de peixe e agora passa a exigir 10 mil toneladas, raramente poderá ser atendido sem empregar mais de 10 vezes a quantidade de mão-de-obra até então suficiente para supri-lo. Normalmente, o peixe deve ter trazido de uma distância maior, devendo-se empregar embarcações maiores e utilizar máquinas mais dispendiosas de todos os tipos. É pois natural que o preço real desta mercadoria aumente na medida em que cresce o desenvolvimento. Efetivamente, isto aconteceu mais ou menos em todos os países, segundo acredito. Embora o êxito de um dia de pesca possa ser muito incerto, talvez se pense que, supondo-se a situação local do país, seja suficientemente certa a eficácia do trabalho empreendido para colocar no mercado uma determinada quantidade de peixe, considerando-se um ano inteiro, ou vários anos seguidos: e sem dúvida assim é. Mas, já que depende mais da situação local do país do que de sua condição de riqueza e de trabalho; já que, por este motivo, o sucesso pode, em países diferentes, ser o mesmo em períodos de desenvolvimento muito distintos, e muito diferente no mesmo período; sua conexão com o estado de desenvolvimento é incerta, sendo desse tipo de incerteza de que estou falando. Para aumentar a quantidade dos diversos minerais e metais extraídos das entranhas da terra, sobretudo em se tratando em particular 260
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dos metais mais preciosos, a eficácia do trabalho humano não parece ser limitada mas sim totalmente incerta. A quantidade de metais preciosos que se pode encontrar em um país não é limitada por algo existente em sua situação local, como seria a riqueza ou a pobreza de suas próprias minas. Esses metais muitas vezes abundam em países que não possuem minas. Sua quantidade em cada país específico parece depender de duas circunstâncias: primeiro de seu poder de compra, do estado de sua indústria, da produção anual de sua terra e de sua mão-de-obra, em conseqüência do que pode permitir-se empregar uma quantidade maior ou menor de mão-de-obra e mantimentos para trazer ou comprar esses artigos supérfluos como ouro e prata, de suas próprias minas ou das de outros países; em segundo lugar, depende da riqueza ou pobreza das minas que, em determinado momento, fornecem esses metais ao mundo comercial. A quantidade desses metais nos países mais distantes das minas deve ser mais ou menos afetada por essa riqueza ou pobreza, devido ao transporte fácil e barato dos metais, de seu pequeno volume e grande valor. Sua quantidade na China e no Industão deve ter sido mais ou menos afetada pela riqueza das minas da América. Na medida em que a sua quantidade em determinado país depende da primeira das duas circunstâncias mencionadas (o poder de compra), o preço real dos metais, como o de todos os artigos de luxo e supérfluos, provavelmente sobe com a riqueza e o desenvolvimento do país, e baixa com sua pobreza e recessão. Países que dispõem de uma grande quantidade de mão-de-obra e de mantimentos em excesso, podem permitir-se comprar qualquer quantidade desses metais às expensas de uma quantidade maior de mão-de-obra e de mantimentos, do que países que têm menos excedente. Na medida em que a quantidade desses metais em determinado país depende da segunda circunstância citada (a riqueza ou pobreza das minas que suprem o mundo comercial), seu preço real, a quantidade real de mão-de-obra e de mantimentos que poderão comprar ou dar em troca, certamente baixará mais ou menos, em proporção à riqueza das minas, e aumentará, em proporção à sua pobreza. Todavia, a riqueza ou pobreza das minas que eventualmente, em um determinado país, suprem o mundo comercial, é uma circunstância que, como é evidente, pode não ter nenhuma conexão com o estado da indústria em um país. Parece até não ter nenhuma conexão necessária com o estado da indústria do mundo em geral. Com efeito, como as artes e o comércio gradualmente se espalham cada vez mais pela terra, a busca de novas minas, por estender-se a uma área maior, pode ter mais chance de sucesso do que quando está circunscrita a limites mais estreitos. Todavia, a descoberta de novas minas, quando as velhas vão se esgotando gradualmente, é algo que está sujeito ao grau máximo de incerteza, não havendo habilidade ou engenho humano que possa assegurar isto. Reconhecidamente, todas as indicações são duvidosas, sendo que a descoberta efetiva e a exploração bem-sucedida de uma 261
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nova mina são as únicas coisas que podem proporcionar certeza sobre a realidade de seu valor, ou até de sua existência. Nessa busca, parece não existir nenhum limite certo: nem para a possibilidade de sucesso do empenho humano, nem para a possibilidade de uma decepção. No decurso de um ou dois séculos, é possível que sejam descobertas novas minas, mais ricas do que todas as que se conheceram até então, mas igual é também a possibilidade de que a mina mais rica até então conhecida possa ser mais pobre do que qualquer outra explorada antes da descoberta das minas da América. Qual desses dois eventos ou hipóteses ocorre efetivamente, isto tem muito pouca importância para a riqueza e prosperidade real do mundo, para o valor real da produção anual da terra e do trabalho da humanidade. Sem dúvida, seu valor nominal, a quantidade de ouro e prata pela qual essa produção anual poderia ser expressa ou representada, seria muito diferente; mas seu valor real, a quantidade real de trabalho que poderia comprar ou comandar seria exatamente a mesma. Em um caso, 1 xelim poderia não representar mais trabalho do que representa 1 pêni atualmente; no outro caso, 1 pêni poderia representar tanto quanto 1 xelim atualmente. Mas em um caso, aquele que tivesse 1 xelim no bolso não seria mais rico do que aquele que atualmente tem 1 pêni; e no outro caso, aquele que tem 1 pêni seria exatamente tão rico quanto o que tem 1 xelim hoje. O preço baixo e a abundância do ouro e da prataria constituiriam a única vantagem que o mundo poderia auferir do primeiro evento; e o preço alto e a escassez dessas coisas supérfluas seriam o único inconveniente que o mundo poderia experimentar do segundo evento. CONCLUSÃO DA DIGRESSÃO SOBRE AS VARIAÇÕES DO VALOR DA PRATA A maior parte dos escritores que pesquisaram os preços das mercadorias em dinheiro, nos tempos antigos, parecem ter considerado o baixo preço dos cereais em dinheiro, e dos bens em geral — ou, em outras palavras, o alto valor do ouro e da prata — como uma prova, não somente da escassez desses metais, mas também da pobreza ou primitivismo do país ao tempo em que esse baixo preço ocorreu. Essa idéia está ligada ao sistema de economia política que representa a riqueza nacional como consistindo na abundância do ouro e da prata, e a pobreza nacional na sua escassez — sistema que procurarei explicar e examinar em detalhe no IV livro desta obra. De momento, limitarme-ei a observar que o alto valor dos metais preciosos não constitui nenhuma prova da pobreza ou primitivismo de um país no tempo em que ocorreu. Prova apenas a pobreza das minas, ocorrida na época, para suprir o mundo comercial. Um país pobre, assim como não pode permitir-se comprar mais ouro e prata que um país rico, da mesma forma e muito menos pode permitir-se pagar mais caro por esses produtos e, por isso, o valor desses metais não tem probabilidade de ser maior no país pobre do que no país rico. Na China, país mais rico do 262
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que qualquer outro da Europa, o valor dos metais preciosos é muito maior do que em qualquer parte da Europa. Com efeito, assim como a riqueza da Europa aumentou muito desde a descoberta das minas da América, da mesma forma o valor do ouro e da prata diminuiu progressivamente. Entretanto, esta diminuição de seu valor não se deveu ao aumento da riqueza real da Europa, da produção anual de sua terra e de seu trabalho, mas à descoberta de minas mais abundantes do que todas as que antes se conhecia. O aumento da quantidade de ouro e prata na Europa e o aumento de suas manufaturas e de sua agricultura constituem dois eventos que, embora tenham ocorrido mais ou menos ao mesmo tempo, derivam de causas muito diferentes e dificilmente apresentam alguma correlação entre si. Um se deve a um mero acidente, no qual a prudência e a política não tiveram nem poderiam ter responsabilidade alguma; o outro deve-se à queda do sistema feudal, e à implantação de um governo que proporcionou à indústria o único estímulo que ela exige, ou seja, uma segurança razoável de que colherá os frutos de seu próprio trabalho. A Polônia, onde o sistema feudal ainda continua a vigorar, é ainda um país tão pobre como antes do descobrimento da América. No entanto, o preço em dinheiro do trigo tem aumentado na Polônia; e o valor real dos metais preciosos tem diminuído, da mesma forma que em outras partes da Europa. Sua quantidade, portanto, deve ter aumentado ali como em outras partes, e aproximadamente na mesma proporção da produção anual da terra e do trabalho. Apesar disso, esse aumento da quantidade dos metais preciosos parece não ter aumentado a produção anual, nem desenvolveu a manufatura e a agricultura do país, nem melhorou as condições de seus habitantes. Espanha e Portugal, países que possuem as minas, são, talvez, depois da Polônia, os dois países mais miseráveis da Europa. Todavia, o valor dos metais preciosos deve ser mais baixo na Espanha e em Portugal do que em qualquer outra parte da Europa por ser desses dois países que os metais vêm para todos os outros países da Europa, onerados não somente pelo frete e o seguro, mas também pela despesa do contrabando, sendo sua exportação proibida ou sujeita a pagamento de taxas alfandegárias. Portanto, em proporção com a produção anual da terra e do trabalho, sua quantidade deve ser maior em Espanha e Portugal do que em qualquer outra parte da Europa; e no entanto esses dois países são mais pobres do que a maior parte da Europa. Embora o sistema feudal tenha sido abolido na Espanha e em Portugal, ainda não foi substituído por um sistema muito melhor. Portanto, assim como o baixo valor do ouro e da prata não constitui prova alguma da riqueza ou condição florescente do país onde isso acontece, da mesma forma, nem o alto valor dos metais, nem o baixo preço em dinheiro dos bens em geral, ou dos cereais em especial, constituem qualquer prova da sua pobreza ou da sua condição primitiva. Entretanto, embora o baixo preço em dinheiro dos bens em geral ou dos cereais em particular não seja nenhuma prova da pobreza ou do primitivismo da época, o baixo preço em dinheiro de alguns tipos 263
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de bens — tais como o gado, as aves domésticas, a caça de todos os tipos etc. — em proporção ao dos cereais, certamente constitui uma prova muito decisiva disso. Demonstra claramente, primeiro, a grande abundância dos mesmos em comparação com a dos cereais, e conseqüentemente a grande extensão de terra que ocupavam em comparação com a terra ocupada para a cultura dos cereais; segundo, demonstra o baixo valor dessa terra, em relação ao valor da terra ocupada pela cultura dos cereais, e conseqüentemente o estado não cultivado e não trabalhado da maioria das terras do país. Demonstra claramente que o capital e a população do país não mantiveram com a extensão de seu território a mesma proporção que costumam manter em países desenvolvidos, e que a sociedade estava em sua infância, naquele país e naquela época. Do preço em dinheiro, alto ou baixo, dos bens em geral, e dos cereais em especial, só podemos deduzir que as minas que na época forneciam ouro e prata ao mundo comercial eram ricas ou pobres, e não que o país era rico ou pobre. Em contrapartida, do alto ou baixo preço em dinheiro de alguns tipos de bens em comparação com o dos outros, podemos inferir, com um grau de probabilidade que se aproxima da certeza em maior ou menor grau, que o país era rico ou pobre, que a maior parte de suas terras estavam em condição desenvolvida ou não e que ele estava em um estágio mais ou menos primitivo, ou em um estágio mais ou menos desenvolvido. Qualquer aumento do preço em dinheiro dos bens, que derivasse totalmente da redução do valor da prata, afetaria de maneira igual todos os tipos de bens, elevando seu preço em toda parte de 1/3, 1/4 ou 1/5, conforme a prata perdesse eventualmente 1/3, 1/4 ou 1/5 de seu valor anterior. Ao contrário, o aumento do preço dos mantimentos, que tem constituído objeto de tanto raciocínio e discussão, não afeta de maneira igual todos os tipos de mantimentos. Tomando em média o curso do século atual, reconhecidamente o preço dos cereais aumentou muito menos do que o preço de alguns outros tipos de mantimento. Portanto, o aumento do preço de alguns outros tipos de mantimento não pode dever-se totalmente à redução do valor da prata. Deve-se levar em conta igualmente algumas outras causas; talvez as que acima assinalei expliquem suficientemente esse aumento de preço dos tipos específicos de mantimentos, cujo preço efetivamente subiu em relação ao dos cereais — sem que seja necessário, para isso, recorrer às supostas reduções do valor da prata. Quanto ao preço do próprio trigo, tem sido um tanto mais baixo, durante os primeiros 64 anos do século atual e antes da recente série anormal de más estações, do que foi durante os últimos 64 anos do século anterior. Esse fato é atestado não somente pelos registros do mercado de Windsor, mas também pelos arrendatários de todos os condados da Escócia, e pelas cifras de vários mercados da França, coligidas com grande diligência e fidelidade pelos Srs. Messance e Duprè de St. Maur. A evidência é muito maior do que a que se poderia esperar, 264
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tratando-se de um assunto que, pela sua própria natureza, é tão difícil de proporcionar certeza. Quanto ao alto preço dos cereais durante estes últimos 10 ou 12 anos, ele pode ser suficientemente explicado pelas más estações, sem supor qualquer redução do valor da prata. Conseqüentemente, a opinião de que a prata está continuamente perdendo valor não parece fundar-se em boas observações sobre, os preços dos cereais ou sobre os preços de outros mantimentos. Poder-se-ia talvez alegar que a mesma quantidade de prata, atualmente mesmo de acordo com o cálculo por mim feito aqui, compra uma quantidade muito menor de vários tipos de mantimento do que teria comprado durante uma parte do século passado; e que constatar se esta mudança se deve a um aumento do valor desses bens ou a uma queda do valor da prata equivale apenas a colocar uma distinção vã e inútil, que de nada serve para a pessoa que tem somente uma certa quantidade de prata para comercializar, ou uma certa renda fixa em dinheiro. Certamente, não pretendo que o conhecimento dessa distinção lhe dará a possibilidade de comprar mais barato. Nem por isso, porém, a distinção será necessariamente inútil. A distinção feita acima pode ser de alguma utilidade para o público, por oferecer uma prova fácil da condição de prosperidade do país. Se o aumento do preço de alguns tipos de mantimento se dever integralmente a uma queda do valor da prata, ele é devido a uma circunstância da qual nada se pode concluir senão a riqueza das minas americanas. Todavia, não obstante essa circunstância, a riqueza real do país, a produção anual de sua terra e de seu trabalho podem estar declinando gradualmente — como em Portugal e na Polônia; ou podem estar progredindo, como na maior parte dos outros países da Europa. Mas se esse aumento do preço de alguns tipos de mantimento se dever a um aumento do valor real da terra que os produz, à sua maior fertilidade, ou, em conseqüência de um desenvolvimento mais amplo e de um bom cultivo, ao fato de ter sido a terra tratada para produzir cereais, nesse caso o aumento de preço se deve a uma circunstância que indica da maneira mais clara a condição próspera e progressista do país. A terra constitui de longe a parte maior, a mais importante e a mais durável da riqueza de todo país extenso. Pode certamente ser de alguma utilidade, ou, ao menos, pode dar alguma satisfação ao público dispor de uma prova tão decisiva do crescente valor da parte maior, mais importante e mais durável de sua riqueza. A distinção feita acima pode ser também de alguma utilidade para o público, na regulamentação da remuneração pecuniária de alguns de seus empregados de categoria inferior. Se este aumento do preço de alguns tipos de mantimento for devido a uma queda do valor da prata, certamente sua recompensa pecuniária deve ser aumentada em proporção à extensão dessa queda, a menos que essa remuneração já anteriormente fosse excessivamente liberal. Mas se o aumento do preço se dever ao aumento do valor desses mantimentos, em conse265
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qüência da maior fertilidade da terra que os produz, torna-se muito mais fácil julgar em que proporção se deve aumentar qualquer recompensa pecuniária, ou se esse aumento não deve sequer ocorrer. Segundo acredito, a ampliação do aprimoramento e do cultivo da terra, assim como necessariamente aumenta mais ou menos o preço de todo tipo de alimento derivado de animais, em proporção ao preço dos cereais, da mesma forma necessariamente baixa o preço de todo tipo de alimento vegetal. Aumenta o preço do alimento derivado de animais, porque, pelo fato de se adequar para a produção de cereais uma grande parte da terra que produz alimento derivado de animais, ela deve proporcionar ao dono da terra e ao arrendatário a renda e o lucro normais para uma terra em que se cultivam cereais, já que, aumentando a fertilidade da terra, aumenta a abundância deles. Além disso, os aprimoramentos da agricultura introduzem muitos tipos de alimentos vegetais, os quais, exigindo menos terra e não exigindo mais mão-de-obra do que os cereais, são vendidos mais barato. Tais são a batata e o milho, que se denomina indian corn — as duas melhorias mais importantes que a agricultura européia, talvez a própria Europa, recebeu através da grande extensão de seu comércio e de sua navegação. Além disso, muitos tipos de alimentos vegetais, que no estágio primitivo da agricultura estão limitados à horta e são cultivados exclusivamente com a enxada, quando a agricultura progride, passam a ser introduzidos nos campos comuns e começam a ser cultivados com arado, tais como nabo, cenoura, couve etc. Se, portanto, progredindo a agricultura, o preço real de uma espécie de alimento necessariamente aumenta, e o de outra necessariamente cai, torna-se mais fácil julgar até que ponto o aumento de um pode ser compensado pela queda do outro. Quando o preço real da carne de açougue uma vez chegou ao máximo (o que, em relação a todos os tipos, excetuada talvez a carne de porco, parece ter ocorrido em grande parte da Inglaterra há mais de um século), qualquer aumento que possa ocorrer posteriormente no preço de qualquer outro tipo de alimento derivado de animais não pode afetar muito a situação das classes inferiores do povo. Assim, a situação dos pobres na maior parte da Inglaterra certamente não pode ser tão afetada por qualquer aumento do preço da carne das aves domésticas, do peixe, das aves silvestres ou de caça pelo fato de ser necessariamente aliviado pela queda do preço da batata. Na atual estação de escassez, o alto preço dos cereais certamente prejudica os pobres. Mas em tempos de abundância razoável, quando os cereais são vendidos a preço normal ou médio, o aumento natural do preço de qualquer outro tipo de produto natural da terra não pode afetar muito os pobres. Estes talvez sofram mais pelo aumento artificial que tem sido provocado por impostos e taxas no preço de algumas mercadorias manufaturadas, tais como o sal, o sabão, o couro, as velas, o malte, a cerveja, a cerveja inglesa etc. 266
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EFEITOS DO AVANÇO DO DESENVOLVIMENTO SOBRE O PREÇO REAL DOS MANUFATURADOS É efeito natural do desenvolvimento, contudo, reduzir gradualmente o preço real de quase todos os manufaturados. O preço da mãode-obra manufatora diminui, talvez, em todos eles, sem exceção. Em conseqüência do uso de máquinas mais perfeitas, da maior destreza e de uma divisão e distribuição mais adequada do trabalho — efeitos naturais do desenvolvimento — requer-se muito menos mão-de-obra para executar qualquer parte determinada de trabalho; e embora, em conseqüência da situação florescente da sociedade, o preço real da mãode-obra possa aumentar consideravelmente, a grande diminuição de sua quantidade será em geral mais do que compensadora do máximo aumento que possa ocorrer no preço dos manufaturados. Há realmente alguns manufaturados em que o necessário aumento do preço real das matérias-primas anulará todas as vantagens que o aprimoramento pode introduzir na execução do trabalho. Nos trabalhos de carpintaria, marcenaria e no trabalho mais grosseiro de fabricação de móveis, o aumento necessário no preço real da madeira, em conseqüência dos melhoramentos da terra, compensará em muito todas as vantagens que podem provir de melhores máquinas, da destreza máxima e da mais adequada divisão e distribuição do trabalho. Todavia, em todos os casos em que o preço real das matériasprimas não aumenta ou aumenta muito pouco, o preço do material manufaturado baixa muito consideravelmente. Essa diminuição do preço, no decurso do século atual e do anterior, tem sido mais acentuada nos manufaturados cuja matéria-prima são os metais menos nobres. Um relógio melhor do que aquele que se podia comprar em meados do século passado por 20 libras talvez agora possa ser comprado por 20 xelins. No trabalho dos cuteleiros e serralheiros, em todos os brinquedos fabricados com metais menos nobres, e em todos os bens normalmente conhecidos sob o nome de produtos manufaturados de Birmingham e Sheffield, houve, durante o mesmo período, uma grande redução de preço, embora não tão grande como ocorreu nos relógios. Entretanto, foi suficiente para causar admiração a trabalhadores de todas as outras regiões da Europa, que em muitos casos reconhecem não serem capazes de produzir um trabalho de qualidade igual pelo dobro ou até pelo triplo desse preço. Talvez não exista nenhuma manufatura em que a divisão do trabalho possa ser maior, ou na qual a maquinaria comporte maior variedade de aprimoramentos, do que aquelas cujas matérias-primas são os metais menos nobres. Na manufatura de roupas não se registrou, no mesmo período, tal redução sensível dos preços. Pelo contrário, foi-me assegurado que o preço do tecido superfino subiu um pouco em proporção com sua qualidade, no decurso desses 25 ou 30 anos; isto, segundo se disse, devido a um considerável aumento do preço dos materiais, que con267
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sistem totalmente em lã importada da Espanha. Com efeito, afirma-se que o preço dos tecidos em Yorkshire, fabricados exclusivamente com lã inglesa, baixou muito, em proporção à sua qualidade, no decurso do século atual. Entretanto, a qualidade é um item tão discutível, que considero mais ou menos inseguras todas as informações desse gênero. Na manufatura de roupas, a divisão do trabalho hoje é mais ou menos o que era há um século, e também a maquinaria não é muito diferente. Pode ter havido algum pequeno aprimoramento sob estes dois aspectos, o qual pode ter provocado alguma redução do preço dos respectivos manufaturados. Mas a redução se evidencia muito mais sensível e inegável, se compararmos o preço desses manufaturados atualmente ao que vigorava em uma época mais remota, em torno do final do século XV, quando provavelmente a subdivisão do trabalho era muito menos desenvolvida, e as máquinas utilizadas muito mais imperfeitas do que atualmente. Em 1487, que é o quarto ano do reinado de Henrique VII, foi decretado por lei que “toda pessoa que vender a varejo, por mais de 16 xelins, uma jarda do mais fino tecido escarlate tingido na fibra, ou de outro tecido tingido na fibra e da melhor qualidade, deverá pagar 40 xelins por cada jarda assim vendida”. Portanto, 16 xelins, contendo aproximadamente a mesma quantidade de prata que 24 xelins do dinheiro de hoje, eram naquela época considerados como um preço razoável de uma jarda do tecido de melhor qualidade; e já que, no caso, se trata de uma lei suntuária, esse tecido provavelmente era vendido a um preço algo mais caro. Hoje se pode dizer que o preço máximo é de 1 guinéu. Portanto, mesmo que a qualidade dos tecidos se supunha igual — com muita probabilidade a dos tecidos de hoje é muito superior —, mesmo nessa hipótese, o preço em dinheiro dos tecidos mais finos caiu consideravelmente desde o final do século XV. Seu preço real, porém, sofreu uma redução muito maior. Calcula-se que o preço médio de um quarto de trigo, na época — e ainda por muito tempo depois —, era 6 xelins e 8 pence. Dezesseis xelins, portanto, era o preço de 2 quarters e mais de 3 bushels de trigo. Avaliando atualmente 1 quarter de trigo a 28 xelins, o preço real de uma jarda de tecido de primeira qualidade deve, naquela época, ter equivalido no mínimo a £ 3 6 s 6 d do nosso dinheiro atual. O comprador deste tecido deve ter pago uma quantidade de trabalho e de mantimentos igual à que esta soma compraria hoje. A redução do preço real do tecido de tipo inferior, embora considerável, não foi tão grande como no caso dos tecidos finos. Em 1463, no terceiro ano do reinado de Eduardo IV, decretou-se que “nenhum trabalhador agrícola, nenhum trabalhador comum ou empregado de artesão, que morar fora de uma cidade ou burgo, vista qualquer tecido que custe acima de 2 xelins por jarda longa”. No terceiro ano do reinado de Eduardo IV, 2 xelins continham praticamente a mesma quantidade de prata que 4 xelins de nossa moeda atual. Mas 268
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o tecido de Yorkshire, que hoje é vendido por 4 xelins a jarda, provavelmente é muito superior a qualquer tecido fabricado então para ser usado pela classe mais pobre dos servos comuns. Portanto, mesmo o preço nominal dos tecidos dos servos, em proporção à qualidade, pode ser um pouco inferior hoje, em relação ao que era naquela época. O preço real certamente é muito mais baixo. O preço razoável de um bushel de trigo calcula-se, naquela época, ter sido de 10 pence. Portanto, 2 xelins era o preço de 2 bushels e quase 2 celamins de trigo, o que hoje — a 3 xelins e 6 pence o bushel — equivaleria a 8 xelins e 9 pence. Por uma jarda deste tecido o trabalhador pobre deve ter pago o poder de comprar uma quantidade de mantimentos igual à que hoje comprariam 8 xelins e 9 pence. Também essa é uma lei suntuária, que coibia o luxo e a extravagância dos pobres. Por conseguinte, sua roupa normalmente deve ter sido muito mais cara. A mesma classe de pessoas, em virtude da mesma lei, é proibida de usar meias, cujo preço devia superar 14 pence o par, equivalentes a aproximadamente 28 pence de nosso dinheiro de hoje. Ora, 14 pence era naquela época o preço de um bushel e quase dois celamins de trigo, que, atualmente, a 3 xelins e 6 pence o bushel, custariam 5 xelins e 3 pence. Atualmente deveríamos considerar isso como um preço muito alto para um par de meias para um trabalhador da classe mais pobre e mais baixa. Todavia, é efetivamente o equivalente a isso que ele deve ter pago na época, por um par de meias. No tempo de Eduardo IV, a arte de fazer meias de tricô provavelmente não era conhecida em parte alguma da Europa. As meias eram feitas de tecido comum, o que pode ter sido uma das causas do seu alto preço. Diz-se que a primeira pessoa que usou meias na Inglaterra foi a Rainha Isabel, tendo-as recebido de presente do embaixador espanhol. Tanto na manufatura de lá menos fina como na mais fina a maquinaria empregada era muito mais imperfeita naquela época do que hoje. Essa maquinaria recebeu, desde então, três melhorias muito importantes, provavelmente além de muitas outras menores, cujo número e importância talvez seja difícil verificar. Os três aprimoramentos capitais são: primeiro, a substituição da roca e do fuso pela roda de fiar, a qual, com o mesmo número de operários, será capaz de executar mais que o dobro da qualidade de trabalho. Em segundo lugar, o uso de várias máquinas extremamente aperfeiçoadas, que facilitam e abreviam em proporção ainda maior o enrolamento do fio fiado pronto para ser tecido e o do fio de lã, ou seja, a combinação adequada da urdidura com a trama, antes dos fios serem colocados no tear — uma operação que, antes da invenção dessas máquinas, deve ter sido extremamente cansativa e incômoda. Em terceiro lugar, o emprego do fulling mill para engrossar o tecido, ao invés de calcá-lo com os pés na água. Antes do início do século XVI, não se conheciam na Inglaterra nem moinhos de vento nem moinhos de água de qualquer espécie, nem, quanto eu 269
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saiba, em qualquer parte da Europa ao norte dos Alpes. Eles haviam sido introduzidos na Itália, algum tempo antes. A consideração dessas circunstâncias pode talvez até certo ponto explicar-nos por que o preço real, tanto do tecido inferior como do fino, era tão mais alto nesses tempos antigos do que hoje. Custava muita mão-de-obra a colocação desses bens no mercado. Ao serem comercializados, devem ter comprado ou ter sido trocados pelo preço de uma quantidade maior. Na Inglaterra, os tecidos de tipo inferior provavelmente eram fabricados, naquela época, da mesma forma que sempre o foram em países em que as artes e as manufaturas estão em seu estágio primário. Provavelmente a fabricação era feita em casa, onde cada parte do trabalho era ocasionalmente executada por todos os diversos membros de quase toda família isoladamente, mas de tal forma que se ocupavam com isso somente quando não tinham outra coisa a fazer, sem que isso fosse a ocupação principal de onde todos eles auferiam a maior parte de sua subsistência. O trabalho executado dessa forma, como já observei, sempre chega mais barato ao mercado do que aquele que constitui o fundo principal ou único da subsistência do trabalhador. Por outro lado, artigo de tipo mais fino não era naquela época fabricado na Inglaterra, mas no rico e altamente comercial País de Flandres, sendo lá confeccionado, na época como ainda hoje, por pessoas que auferiam disso toda a sua subsistência ou ao menos a parte principal dela. Além disso, era um manufaturado estrangeiro, devendo ter pago algum imposto ao rei, no mínimo o antigo tonnage e poundage;148 esse imposto, na realidade, provavelmente não deve ter sido muito elevado. Na época, não era política da Europa limitar, por meio de altas taxas alfandegárias, a importação de produtos manufaturados estrangeiros, mas antes estimulá-la, para que os comerciantes tivessem condições de fornecer, às pessoas abastadas, a uma taxa mais fácil possível, os artigos convenientes e de luxo que desejavam, e que a indústria de seu próprio país era incapaz de fornecer-lhes. A consideração dessas circunstâncias talvez possa explicar-nos, até certo ponto, por que, naqueles tempos antigos, o preço real dos tecidos de qualidade inferior, em comparação com o dos tecidos finos, era de tal modo mais baixo do que atualmente. CONCLUSÃO DO CAPÍTULO Concluirei este capítulo extremamente longo, observando que toda melhoria da situação da sociedade tende, direta ou indiretamente, a elevar a renda real da terra, a aumentar a riqueza real do proprietário da terra, seu poder de comprar trabalho, ou a produção do trabalho de outras pessoas. 148 Respectivamente, imposto pago por tonelada de carga num porto ou canal; e imposto baseado no peso por libra esterlina. (N. do E.) 270
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A expansão das melhorias e do cultivo da terra tende a elevar a renda da terra de maneira direta. A parcela do proprietário da terra na produção necessariamente aumenta com o crescimento da produção. O aumento do preço real desses produtos naturais da terra, que primeiro é efeito da extensão do desenvolvimento e do cultivo, e depois a causa de que se estendam ainda mais, por exemplo, a alta do preço do gado, também tende a elevar diretamente a renda da terra, aliás numa proporção ainda maior. O valor real da parcela do proprietário da terra, seu controle real sobre o trabalho de outras pessoas, não somente aumenta com o valor real da produção, como também a proporção de sua parcela na produção total aumenta com ele. Esse produto, depois do aumento de seu preço real, não requer mais mão-de-obra do que antes para ser obtido. Conseqüentemente, uma porcentagem maior do produto deve pertencer ao proprietário da terra. Todos esses aperfeiçoamentos das forças produtivas da mão-deobra que diretamente tendem a reduzir o preço real dos artigos manufaturados tendem indiretamente a aumentar a renda da terra. O proprietário da terra troca aquela parte de sua produção natural que está além de seu próprio consumo — ou, o que dá no mesmo, o preço daquela parte do produto por produto manufaturado. Tudo o que reduz o preço real do produto manufaturado aumenta o do produto natural. Com isso, uma quantidade igual do primeiro torna-se equivalente a uma quantidade maior do segundo, e o proprietário da terra tem a possibilidade de comprar uma quantidade maior de comodidades, ornamentos ou artigos de luxo de que necessita. Todo aumento na riqueza real da sociedade, todo aumento na quantidade de mão-de-obra útil nela empregada, indiretamente tende a aumentar a renda real da terra. Certa porcentagem dessa mão-deobra vai naturalmente para a terra. Emprega-se um número maior de pessoas e de gado no cultivo da terra; a produção aumenta com o aumento do capital assim aplicado no cultivo, e a renda aumenta com a produção. Por outro lado, a situação contrária, o menosprezo do cultivo e do aprimoramento da terra, a queda do preço real de qualquer parcela da produção natural da terra, o aumento do preço real dos produtos manufaturados, devido ao declínio da arte manufatora, o declínio da riqueza real da sociedade, todos esses fatores tendem a baixar a renda real da terra, a reduzir a riqueza real do proprietário da terra, a diminuir seu poder de comprar trabalho ou o produto do trabalho de outras pessoas. A produção anual total da terra e do trabalho de cada país — ou, o que é a mesma coisa, o preço total dessa produção anual — naturalmente se divide, como já foi observado, em três partes: a renda da terra, os salários da mão-de-obra e o lucro do capital, constituindo uma renda para três categorias de pessoas: para aquelas que vivem da renda da terra, para aquelas que vivem de salário, e para aquelas que vivem do lucro. Essas são as três grandes categorias originais e 271
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constituintes de toda sociedade evoluída, de cuja receita deriva, em última análise, a renda de todas as demais categorias. O interesse da primeira dessas três grandes categorias, como se depreende do que foi dito até agora, está íntima e inseparavelmente ligado ao interesse geral da sociedade. Tudo o que fomente ou obstrua o interesse do proprietário da terra necessariamente fomenta ou obstrui o interesse da sociedade. Quando o público delibera em relação a qualquer regulamento ou lei de comércio ou política, os proprietários da terra jamais podem enganá-lo visando promover o interesse de sua categoria específica, ao menos se tiverem um conhecimento razoável desse interesse próprio. Efetivamente, muitas vezes falta-lhes este conhecimento razoável. Eles são a única das três categorias cuja renda não lhes custa nem trabalho nem cuidado, pois esta renda lhes vem, por assim dizer, espontaneamente, independentemente de qualquer plano ou projeto deles. Essa indolência, que constitui o efeito natural da tranqüilidade e segurança de sua situação, muitas vezes os torna não somente ignorantes, mas também incapazes de usar a inteligência no sentido de prever e compreender as conseqüências de toda e qualquer lei pública. O interesse da segunda categoria — a dos que vivem de salário — está tão intimamente vinculado ao interesse da sociedade como o da primeira. Já mostrei que os salários do trabalhador nunca são tão altos como quando a demanda de mão-de-obra cresce continuamente ou quando o volume de mão-de-obra empregado a cada ano aumenta consideravelmente. Quando essa riqueza real da sociedade estaciona, os salários são logo reduzidos ao estritamente suficiente para possibilitar-lhe manter uma família, ou seja, perpetuar a descendência dos trabalhadores. Quando a sociedade declina, os salários caem até abaixo desse nível. Talvez a categoria dos proprietários possa ganhar mais com a prosperidade da sociedade do que a dos trabalhadores; não existe porém nenhuma classe que sofra tão cruelmente com o declínio da riqueza da sociedade quanto a dos operários. Mas, embora o interesse da classe trabalhadora esteja intimamente ligado ao interesse da sociedade, o trabalhador é incapaz tanto de compreender esse interesse quanto de compreender a vinculação do interesse da sociedade ao seu próprio. Sua condição não lhe deixa tempo para receber a necessária informação, e sua educação e hábitos costumam ser tais que o tomam inapto para discernir, mesmo que esteja plenamente informado. Por isso, nas deliberações públicas, sua voz é pouco ouvida e ainda menos levada em conta, excetuadas algumas ocasiões específicas, quando suas reivindicações são animadas, incitadas e apoiadas pelos seus empregadores, que no caso lutam não pelos objetivos dos trabalhadores, mas pelos seus próprios. Os empregadores de mão-de-obra representam a terceira categoria, a daqueles que vivem do lucro. É o capital investido em função do lucro que movimenta a maior parte do trabalho útil de cada sociedade. Os planos e projetos dos investidores de capital regulam e dirigem 272
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todas as operações mais importantes do trabalho, sendo que o lucro constitui o objetivo proposto e visado por todos esses planos e projetos. Entretanto, a taxa de lucro não aumenta com a prosperidade da sociedade e não diminui com o seu declínio — como acontece com a renda da terra e com os salários. Ao contrário, essa taxa de lucro é naturalmente baixa em países ricos e alta em países pobres, sendo a mais alta, invariavelmente, nos países que caminham mais rapidamente para a ruína. Por isso, o interesse dessa terceira categoria não tem a mesma vinculação com o interesse da sociedade como o das outras duas. Nessa categoria, os comerciantes e os donos de manufaturas são as duas classes de pessoas que comunente aplicam os maiores capitais, e que pela sua riqueza atraem a si a maior parcela da consideração pública. Uma vez que durante toda a sua vida estão engajados em planos e projetos, muitas vezes têm mais agudeza de entendimento do que a maioria dos senhores do campo. Já que, porém, suas idéias giram mais em torno do interesse de seu próprio ramo específico de negócios do que em torno do interesse específico da sociedade, seu julgamento mesmo quando emitido com a maior imparcialidade (o que não tem acontecido em todas as ocasiões) deve ser considerado muito mais dependente em relação ao primeiro daqueles dois objetos do que ao do último. Sua superioridade em relação aos senhores do campo não está tanto no conhecimento que têm do interesse público, mas antes no fato de conhecerem melhor seu interesse próprio do que os homens do campo conhecem o seu. É em razão deste melhor conhecimento que possuem de seus próprios interesses que muitas vezes têm feito imposições à generosidade do proprietário rural, persuadindo-o a abrir mão tanto de seu próprio interesse quanto do interesse do público, partindo de uma convicção muito simples mas muito legítima de que o interesse público é o deles e não o do proprietário de terras. Ora, o interesse dos negociantes, em qualquer ramo específico de comércio ou de manufatura, sempre difere sob algum aspecto do interesse público, e até se lhe opõe. O interesse dos empresários é sempre ampliar o mercado e limitar a concorrência. Ampliar o mercado muitas vezes pode ser benéfico para o interesse público, mas limitar a concorrência sempre contraria necessariamente ao interesse público, e só pode servir para possibilitar aos negociantes, pelo aumento de seus lucros acima do que seria natural, cobrar, em seu próprio benefício, uma taxa absurda dos demais concidadãos. A proposta de qualquer nova lei ou regulamento comercial que provenha de sua categoria sempre deve ser examinada com grande precaução e cautela, não devendo nunca ser adotada antes de ser longa e cuidadosamente estudada, não somente com a atenção mais escrupulosa, mas também com a maior desconfiança. É proposta que advém de uma categoria de pessoas cujo interesse jamais coincide exatamente com o do povo, as quais geralmente têm interesse em enganá-lo e mesmo oprimi-lo e que, conseqüentemente, têm em muitas oportunidades tanto iludido quanto oprimido esse povo. 273
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Preços do quarter de 9 bushels do melhor ou mais caro trigo no mercado de Windsor, no dia da Anunciação e no dia de São Miguel, desde 1595 até 1794, incluídos os dois anos, sendo que o preço de cada ano é a média dos preços máximos ocorridos nos dois mencionados dias de mercado.
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LIVRO SEGUNDO
A Natureza, o Acúmulo e o Emprego do Capital
INTRODUÇÃO
No estágio primitivo da sociedade, em que não existe divisão do trabalho, em que as trocas são raras e em que cada um se supre do necessário, não é preciso de antemão acumular ou armazenar capital, para o andamento dos negócios da sociedade. Cada qual empenha-se, com seu próprio trabalho, em atender às suas necessidades ocasionais, conforme ocorrerem. Quando tem fome, vai caçar na floresta; quando sua veste está gasta, veste-se com a pele do primeiro animal de porte que consegue abater; e quando sua choupana começa a arruinar-se, repara-a, da melhor maneira que puder, com as árvores e a turfa que lhe estão mais próximas. Entretanto, uma vez implantada plenamente a divisão do trabalho, o produto do trabalho de uma pessoa só consegue atender a uma parcela muito pequena de suas necessidades. A maior parte delas é atendida com o produto do trabalho de outros, que a pessoa compra com o produto de seu próprio trabalho, ou seja, com o preço do produto de seu trabalho. Ora, isto não pode ser feito enquanto a pessoa não terminar seu próprio trabalho, e também enquanto não o tiver vendido. Portanto, antes de a pessoa executar seu trabalho e vendê-lo, é necessário acumular em algum lugar certo estoque de bens de diversos tipos, estoque este suficiente para manter o trabalhador e provê-lo dos materiais e instrumentos necessários para seu trabalho. Um tecelão não pode dedicar-se inteiramente a seu trabalho específico, se de antemão não houver, em algum lugar, em sua posse ou na posse de outra pessoa, um capital suficiente para mantê-lo e para fornecer-lhe os materiais e instrumentos necessários para ele executar seu serviço, antes que ele termine e também venda seu tecido. Evidentemente, essa acumulação de capital deve anteceder à aplicação de seu trabalho por tanto tempo quanto exija um negócio particular. Assim como a acumulação de capital, por sua natureza, deve ser anterior à divisão do trabalho, da mesma forma o trabalho pode ser cada vez mais subdividido, somente na proporção em, que o estoque for previamente cada vez mais acumulado. A quantidade de materiais que o mesmo número de pessoas pode processar aumenta em grande proporção, na medida em que o trabalho se subdivide cada vez mais; e já que as operações de cada trabalhador são gradualmente reduzidas 285
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a um maior grau de simplicidade, inventa-se uma variedade de novas máquinas para facilitar e abreviar essas operações. Portanto, na medida em que progride a divisão do trabalho, para se poder dar emprego constante a um número igual de trabalhadores é preciso acumular previamente um estoque igual de mantimentos e um estoque maior de materiais e instrumentos do que o que teria sido necessário em uma sociedade em estágio primitivo. Ora, o número de trabalhadores em cada setor ocupacional geralmente aumenta com a divisão do trabalho nesse setor; ou melhor, é o aumento de seu número que possibilita aos trabalhadores subdividir o trabalho dessa maneira. Assim como a acumulação prévia de capital é necessária para se efetuar esse grande aprimoramento das forças produtivas do trabalho, da mesma forma ela conduz naturalmente a esse aprimoramento. A pessoa que emprega seu capital para manter mão-de-obra necessariamente deseja empregá-lo de maneira a produzir a maior quantidade de trabalho possível. Por isso, ela procura distribuir o trabalho entre seus operários da melhor forma possível, e procura fornecer-lhes as melhores máquinas que ela mesma puder inventar ou comprar. Normalmente, suas habilidades e capacidades, sob esses dois aspectos, são proporcionais à quantidade de seu capital, ou seja, ao número de pessoas que tiver condições de empregar. Por conseguinte, a quantidade de atividades não somente aumenta em cada país na medida em que aumenta o capital que lhe dá emprego, mas também, em conseqüência desse aumento, a mesma quantidade de atividades produz uma quantidade muito maior de trabalho. Esses são, de modo geral, os efeitos do aumento do capital sobre as atividades e sobre suas forças produtivas. Neste segundo livro procurarei explicar a natureza do capital, os efeitos de seu acúmulo em capitais de diferentes tipos, e os efeitos dos diferentes empregos desses capitais. Este livro está dividido em cinco capítulos. No capítulo I, procurei mostrar quais são as diversas partes ou setores nas quais naturalmente se divide o capital, seja de um indivíduo, seja de uma grande sociedade. No capítulo II procurei explicar a natureza e a operação do dinheiro, considerado como um setor específico do estoque geral da sociedade. O estoque acumulado em forma de capital pode ser empregado pela pessoa ao qual pertence, ou pode ser emprestado a alguma outra pessoa. Nos capítulos III e IV procurei, pois, examinar a maneira como ele opera nas duas situações. O capítulo V e último trata dos diferentes efeitos que diferentes empregos de capital produzem imediatamente sobre a quantidade de trabalho da nação, e sobre a quantidade da produção anual da terra e do trabalho.
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CAPÍTULO I A Divisão do Capital
Quando o capital possuído por uma pessoa é suficiente apenas para mantê-la durante alguns dias ou semanas, raramente ela pensa em auferir alguma renda dele. Consome-o da maneira mais econômica que puder, e procura com seu trabalho adquirir algo com o qual possa repô-lo, antes de consumi-lo totalmente. Nesse caso, sua renda deriva exclusivamente de seu trabalho. Essa é a condição da maior parte de todos os pobres que trabalham em todos os países. Quando, porém, a pessoa possui capital suficiente para manter-se durante meses ou anos, naturalmente procurará auferir uma renda da maior parte dele, reservando para seu consumo imediato somente o suficiente para manter-se até que a renda comece a entrar. Seu estoque total, portanto, distingue-se em duas partes. A parte que, segundo espera, lhe proporcionará a citada renda denomina-se capital. A outra parte é a que lhe garante seu consumo imediato; esta parte consiste, primeiro, naquela porção de seu estoque total originalmente reservada para este fim; segundo, em sua renda, auferida de qualquer forma, na medida em que entra; ou, terceiro, em coisas que ele havia comprado com uma dessas duas em anos anteriores, e que ainda não estão totalmente consumidas, tais como: estoque de roupas, mobília doméstica, e similares. Em um ou outro desses três itens consiste o estoque que as pessoas normalmente reservam para seu próprio consumo imediato. Há duas maneiras de se empregar um capital, para que ele proporcione uma renda ou lucro a quem o emprega. Primeiro, o capital pode ser empregado para obter, fabricar ou comprar bens, e vendê-los novamente, com lucro. O capital empregado desta forma não gera renda ou lucro a quem o emprega, já que permanece na posse da pessoa ou conserva a mesma forma. As mercadorias do comerciante não lhe proporcionam renda alguma nem lucro, enquanto ele não os vender por dinheiro, e também o dinheiro não lhe 287
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proporciona renda ou lucro, enquanto por sua vez não for trocado por bens. Seu capital continuamente sai dele em uma forma e volta a ele de outra; somente mediante essa circulação ou trocas sucessivas pode ele proporcionar-lhe algum lucro. Por isso, esses capitais são adequadamente denominados de capitais circulantes. Em segundo lugar, o capital pode ser empregado no aprimoramento da terra, na compra de máquinas úteis ou instrumentos de trabalho, ou em coisas similares que geram uma renda ou lucro sem mudar de donos, ou seja, sem circularem ulteriormente. Por isso, tais capitais podem com muita propriedade ser chamados de capitais fixos. Ocupações diferentes exigem porcentagens muito diferentes de capital fixo e de capital circulante empregados nelas. O capital de um comerciante, por exemplo, é integralmente um capital circulante. Ele não tem necessidade de máquinas ou de instrumentos de trabalho, a não ser que os considere como tais sua loja ou armazém. Uma parte do capital de todo mestre artesão ou manufator deve consistir nos instrumentos de seu ofício. Essa parte é muito pequena em alguns ofícios e muito grande em outros. Um mestre alfaiate não precisa de outros instrumentos senão de certa quantidade de agulhas. Já os instrumentos de um mestre sapateiro são um pouco mais caros — embora muito pouco. Os do tecelão são bem mais caros do que os do sapateiro. Entretanto, a maior parte do capital de tais mestres artesãos é capital circulante, consistindo nos salários de seus empregados ou no preço de seus materiais, reembolsados com lucro pelo preço do trabalho. Em outras ocupações, requer-se um capital fixo muito maior. Por exemplo, em uma grande fundição o forno para fundir minério, a forja, a máquina de corte são instrumentos de trabalho que só podem ser implantados com uma despesa muito elevada. Em minas de carvão e nas minas de qualquer espécie, as máquinas necessárias para extrair a água e para outras finalidades não raro são ainda mais dispendiosas. A parte do capital do agricultor que é empregada nos instrumentos agrícolas constitui capital fixo; e a empregada nos salários e na manutenção de seus empregados é capital circulante. O agricultor aufere lucro do capital fixo, conservando-o em sua própria posse; e do capital circulante, gastando-o. O preço ou valor de seu gado empregado na agricultura é capital fixo, bem como o dos instrumentos e equipamentos agrícolas; sua manutenção é um capital circulante, da mesma forma como a manutenção dos empregados. O agricultor aufere seu lucro mantendo o gado empregado na agricultura, como gastando na manutenção desse gado. Tanto o preço como a manutenção do gado que é comprado e engordado, não para trabalho na agricultura mas para venda, constituem capital circulante. O agricultor aufere seu lucro gastando na compra e na manutenção do gado. Um rebanho de ovelhas ou de gado que é comprado, não para trabalhar na agricultura, nem para ser vendido, mas para se tirar lucro da lã, do leite e da procriação 288
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do mesmo, constitui um capital fixo. Aufere-se lucro, conservando esses rebanhos. A manutenção desse gado é um capital circulante. Aufere-se lucro desfazendo-se dele; sendo que ele retorna, juntamente com seu próprio lucro e com o lucro do preço total do gado, no preço da lã, do leite e de novas cabeças. Também o valor total das sementes é capital fixo. Embora esse capital circule continuamente entre o solo e o celeiro, essas sementes nunca mudam de proprietário, e por isso não se pode dizer adequadamente que constituam capital circulante. O agricultor aufere lucro das sementes, não vendendo-as, mas multiplicando-as. O capital geral de um país ou de uma sociedade é o mesmo que a soma do capital de todos seus habitantes ou membros, e por isso se divide naturalmente nas mesmas três partes, e cada uma das quais tem uma função diferente. A primeira é a parte reservada para o consumo imediato da sociedade, sendo que a característica dessa parte consiste em não gerar renda nem lucro. Consiste no capital em alimentos, roupas, mobílias domésticas etc. que foram comprados pelos seus consumidores mas ainda não estão totalmente consumidos. Também o capital total em casas para moradia, existente em um determinado momento do país, faz parte desta primeira porção. O capital investido em uma casa, se esta se destina à moradia do proprietário, deixa a partir deste momento de ser capital, ou seja, deixa de proporcionar renda ao dono. Uma moradia como tal não traz renda alguma a quem mora nela; embora sem dúvida ela seja extremamente útil ao morador, é útil da mesma forma que lhe são a roupa e a mobília doméstica, as quais, porém, fazem parte de sua despesa, e não de sua renda. Se a casa for alugada a um inquilino para efeito de renda, já que a própria casa nada pode produzir, o inquilino sempre deverá pagar ao proprietário o aluguel, tirando-o de alguma outra renda, a qual o inquilino auferirá do trabalho, do capital ou da terra. Embora, portanto, uma casa possa proporcionar renda a seu proprietário, e conseqüentemente tenha para ele a função de capital, não gera renda alguma para o público, nem pode ter a função de capital para este, sendo que uma casa jamais poderá aumentar, no mínimo que seja, a renda da sociedade como tal. Da mesma forma, as roupas e peças de mobília às vezes geram renda, cumprindo assim a função de capital para determinadas pessoas. Em países em que costuma haver baile de máscaras, é uma ocupação alugar máscaras e roupas para uma noite. Com freqüência, os tapeceiros alugam peças de mobília por mês ou por ano. Os donos de casas funerárias alugam por dia ou por semana os equipamentos para enterros. Muitas pessoas alugam casas mobiliadas, recebendo uma renda não somente pelo uso da casa, mas também pelo uso da mobília. Todavia, a renda conseguida deve sempre ser, em última análise, obtida de alguma outra fonte de renda. De todas as partes do capital, seja de um indivíduo seja de uma sociedade, reservadas para o consumo imediato, a que consiste em casas é a que leva mais tempo para ser consumida. Um capital em roupas pode durar vários anos, mas um estoque de mobília pode 289
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durar meio século ou até um século inteiro; e um capital em casas, bem construídas e bem cuidadas, pode durar muitos séculos. Embora, porém, leve mais tempo para consumi-las totalmente, durante todo este período elas continuam constituindo um estoque real reservado para o consumo imediato, tanto quanto as roupas e a mobília doméstica. A segunda parte na qual se divide o capital geral da sociedade é o capital fixo, cuja característica consiste em proporcionar renda ou lucro, sem circular ou mudar de proprietário. Ela consiste sobretudo nos quatro itens seguintes: Primeiro, todas as máquinas úteis e instrumentos que facilitam e abreviam o trabalho. Segundo, todas as construções que constituem meios de renda, não somente para seu proprietário, que as aluga para renda, mas também para a pessoa que as ocupa e paga o aluguel: tais são, entre outras, as lojas, depósitos, casas comerciais, sedes de propriedade rural com todas as suas construções necessárias; além disso, estábulos, celeiros etc. Diferem muito das casas para moradia. São uma espécie de instrumento de trabalho, podendo portanto ser classificadas pelo mesmo critério. Terceiro, as melhorias ou benfeitorias da terra, ou seja, o que se investiu rentavelmente em roçar, limpar, drenar, cercar, adubar e colocá-la nas condições mais adequadas para amanho e cultura. Uma propriedade assim aprimorada pode com todo o direito ser considerada sob a mesma luz que as máquinas úteis que facilitam e abreviam o trabalho, e mediante as quais um capital circulante igual pode proporcionar uma renda muito maior a quem o emprega. Uma propriedade dotada dessas melhorias é tão vantajosa como a mais durável de qualquer dessas máquinas, e freqüentemente não requer outros reparos senão a mais rentável aplicação de capital do arrendatário empregado no cultivo dessa terra. Em quarto lugar, as habilidades úteis adquiridas por todos os habitantes ou membros da sociedade. A aquisição dessas habilidades para a manutenção de quem as adquiriu durante o período de sua formação, estudo ou aprendizagem, sempre custa uma despesa real, que constitui um capital fixo e como que encarnado na sua pessoa. Assim como essas habilidades fazem parte da fortuna da pessoa, da mesma forma fazem parte da sociedade à qual ela pertence. A destreza de um trabalhador pode ser enquadrada na mesma categoria que uma máquina ou instrumento de trabalho que facilita e abrevia o trabalho e que, embora custe certa despesa, compensa essa despesa com lucro. A terceira e última das três partes em que naturalmente se divide o capital geral da sociedade é o capital circulante, cuja característica consiste em proporcionar renda somente circulando ou mudando de donos. Também essa porção divide-se em quatro partes: Primeiro, o dinheiro, por meio do qual se faz a circulação das outras três, e a distribuição aos respectivos consumidores; Segundo, o estoque de provisões em poder do açougueiro, do cria290
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dor de gado, do arrendatário, do comerciante de cereal, do fabricante de cerveja etc., e de cuja venda eles esperam auferir um lucro; Terceiro, os materiais, quer em estado totalmente bruto quer mais ou menos manufaturados, para fabricação de tecidos, mobílias e construções, que ainda não se inserem em nenhum desses três tipos mas que permanecem nas mãos dos cultivadores, dos manufatureiros e dos merceeiros, negociantes de fazendas, madeireiros, e marceneiros, dos fabricantes de tijolos etc. Quarto e último, do trabalho acabado, mas que ainda está nas mãos do comerciante ou do manufator, e que ainda não foi vendido ou distribuído aos respectivos consumidores, tal como o produto acabado que freqüentemente encontramos pronto nas lojas do ferreiro, do marceneiro, do ourives, do joalheiro, do comerciante de porcelana etc. No caso, o capital circulante consiste nos suprimentos, nos materiais e nos produtos acabados de todos os tipos, que estão nas mãos de seus respectivos negociantes e no dinheiro necessário para fazê-los circular e distribuí-los aos que os utilizarão ou consumirão. Dessas quatro partes, três — os suprimentos, os materiais e o produto acabado — são, anualmente ou em período mais curto, regularmente retiradas do capital circulante, sendo incorporadas ao capital fixo ou ao capital reservado para consumo imediato. Todo capital fixo deriva originalmente de um capital circulante, devendo ser continuamente mantido por ele. Todas as máquinas e instrumentos de trabalho úteis derivam originalmente de um capital circulante, que fornece os materiais dos quais são feitos, bem como a manutenção dos trabalhadores que os fabricam. Além disso, requerem um capital da mesma espécie para mantê-los constantemente em bom estado. Nenhum capital fixo pode proporcionar renda a não ser através de um capital circulante. As máquinas e instrumentos mais úteis de trabalho não produzirão nada sem o capital circulante que assegure os materiais nos quais são usados e a manutenção dos empregados. A terra, mesmo que devidamente preparada, não proporcionará nenhuma renda sem um capital circulante, que mantenha os trabalhadores que a cultivam e colhem os produtos. O único objetivo e finalidade, tanto do capital fixo como do circulante, consiste em manter e aumentar o capital que pode ser reservado para o consumo imediato. É esse capital que alimenta, veste e dá moradia à população. A riqueza ou pobreza da população depende do suprimento abundante ou escasso que esses dois tipos de capital têm condições de garantir ao capital reservado para o consumo imediato. Uma vez que uma parte tão grande do capital circulante é continuamente retirada dele para ser incorporada aos dois outros setores do capital geral da sociedade, é preciso reabastecer continuamente esse capital circulante, sob pena de logo deixar ele de existir. Essas fontes de abastecimento são sobretudo três: a produção da terra, das minas e da pesca. Estas três fontes asseguram suprimentos e materiais con291
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tínuos, dos quais uma parte é depois transformada em produto acabado, e através dos quais são repostos os suprimentos, os materiais e o produto acabado continuamente retirados do capital circulante. Das minas extrai-se também o necessário para manter e aumentar aquela parte do capital circulante que consiste em dinheiro. Com efeito, embora, no curso normal da economia, o dinheiro não seja, como as outras três partes, necessariamente retirado do capital circulante para ser incorporado aos dois outros setores do capital geral da sociedade, também ele, como todas as outras coisas, acaba desgastando-se necessariamente, e às vezes se perde ou tem que ser exportado — motivo pelo qual também esta parte do capital circulante precisa ser continuamente reabastecida com novos suprimentos, embora, sem dúvida, muito menores. As terras, as minas e a pesca requerem tanto um capital fixo como um capital circulante para explorá-las; sendo que a sua produção repõe com lucro não somente esses dois tipos de capital, mas todos os demais existentes na sociedade. Assim, o arrendatário repõe anualmente ao manufator os mantimentos que este consumiu e os materiais que ele processou no ano anterior; e o manufator repõe ao arrendatário o produto acabado que este gastou no mesmo período. Este é o intercâmbio real anualmente efetuado entre essas duas categorias de pessoa, embora seja raro acontecer que o produto natural bruto do agricultor e o produto manufaturado do manufator sejam trocados diretamente um pelo outro, já que muito raramente acontece que o agricultor venda seus cereais e seu gado, seu fio de linha e sua lã exatamente à mesma pessoa da qual compra os tecidos, a mobília e os instrumentos de que necessita. Ele vende sua produção bruta por dinheiro, com o qual pode então comprar, onde for possível, os produtos manufaturados de que carece. A terra até repõe, ao menos em parte, os capitais com os quais são exploradas a pesca e as minas. É a produção da terra que tira o peixe das águas; e é a produção da superfície da terra que extrai os minerais de suas entranhas. A produção da terra, das minas e da pesca, quando sua fertilidade natural for igual, é proporcional à extensão e à aplicação adequada dos capitais nelas empregados. Quando os capitais são iguais e sua aplicação também é igual, a produção das três é proporcional à sua fertilidade natural. Em todos os países onde houver uma segurança razoável, toda pessoa de bom senso procurará empregar todo o capital sob seu controle, para desfrutá-lo atualmente ou para auferir dele um lucro no futuro. Se for empregado para uma satisfação imediata, temos um capital reservado para o consumo imediato. Se o empregar em função de um lucro futuro, este capital deverá proporcionar o referido lucro permanecendo com o dono ou procurando outras mãos. No primeiro caso será um capital fixo, no segundo, um capital circulante. Num país onde houver tolerável segurança, insensata seria a pessoa que não empregasse todo o capital sob seu controle — quer se trate de capital de 292
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sua propriedade ou de capital emprestado de terceiros — de uma das três maneiras assinaladas. Com efeito, nesses países desafortunados, onde as pessoas estão continuamente expostas à violência de seus superiores, estas muitas vezes escondem grande parte de seu capital, a fim de tê-lo sempre à mão para levá-lo a algum lugar seguro, em caso de serem ameaçadas por algum desses infortúnios aos quais se sentem continuamente expostas. Pelo que se conta, essa é uma situação que costuma ocorrer na Turquia, no Industão e, como acredito, na maior parte dos países da Ásia. Parece também ter sido uma prática comum entre os nossos antepassados, durante a época de violência dos governos feudais. Naquela época, considerava-se um tesouro descoberto e ainda sem dono como uma parte relevante da renda dos maiores soberanos da Europa. Consistia em tesouros escondidos na terra e em relação aos quais ninguém podia alegar direitos. Naquela época, dava-se tanta importância a esses tesouros, que se considerava pertencerem sempre ao soberano, não cabendo direito nem a quem os descobrisse nem ao seu proprietário, a não ser que na escritura constasse uma cláusula expressa que garantisse a este último tal direito. Colocavam-se esses tesouros em pé de igualdade com as minas de ouro e prata, as quais, salvo em casos de uma cláusula expressa na escritura, nunca se supunha pertencer à concessão geral das terras — embora as minas de chumbo, cobre, estanho e carvão o estivessem, por serem coisas de menor valor.
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CAPÍTULO II O Dinheiro Considerado Como um Setor Específico do Capital Geral da Sociedade, ou seja, a Despesa da Manutenção do Capital Nacional
No Livro Primeiro, mostrei que o preço da maior parte das mercadorias se decompõe em três elementos, sendo que o primeiro paga os salários do trabalho, o segundo paga os lucros do capital e o terceiro paga a renda da terra utilizada para produzi-las e colocá-las no mercado. Mostrei, outrossim, que há algumas mercadorias cujo preço se compõe somente de dois elementos, os salários de mão-de-obra e os lucros do capital; e algumas pouquíssimas, nas quais consiste apenas em um, os salários da mão-de-obra. Finalmente, mostrei que o preço de cada mercadoria necessariamente se compõe de um ou outro desses elementos, ou dos três simultaneamente, sendo que a parte que não vai para a renda da terra nem para os salários necessariamente constitui lucro para alguém. Observei que, sendo isso o que acontece com respeito a cada mercadoria considerada isoladamente, deve ocorrer o mesmo em relação a todas as mercadorias que compõem a produção anual total da terra e da mão-de-obra de cada país, considerada no conjunto. O preço total do valor de troca dessa produção anual deve decompor-se nessas mesmas três partes, sendo distribuído entre os diversos habitantes do país como salários de seu trabalho, como lucro de seu capital ou como renda de sua terra. Mas, embora o valor total da produção anual da terra e do trabalho de cada país esteja assim dividido entre os diversos habitantes e constitua uma renda para eles, assim como na renda de uma propriedade privada distinguimos entre a renda bruta da terra e a renda líquida da terra, da mesma forma ocorre com a renda de todos os habitantes de um país. A renda bruta da terra de uma propriedade privada engloba tudo o que é pago pelo arrendatário; a renda líquida da terra, o que resta 295
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para o proprietário da terra, após deduzir as despesas administrativas, os reparos e todos os demais encargos necessários: ou seja, aquilo que, sem prejudicar a sua propriedade, ele pode incorporar ao seu capital reservado para o consumo imediato, ou gastar em sua mesa, em seus pertences, nos acessórios de sua casa e sua mobília, em seus divertimentos e lazeres particulares. Sua riqueza real é proporcional não à sua renda bruta, mas à sua renda líquida da terra. A renda bruta de todos os habitantes de um grande país compreende a produção anual total de sua terra e de seu trabalho; a renda líquida engloba o que lhes resta livre, após deduzir a despesa necessária à manutenção: primeiro, seu capital fixo; segundo, seu capital circulante; ou seja, aquilo que, sem interferir em seu capital, conseguem incorporar a seu capital reservado para consumo imediato, ou gastar em sua subsistência, em suas comodidades e divertimentos. Também aqui, sua riqueza real está em proporção à sua renda líquida, e não à sua renda bruta. É evidente que o total de despesas necessárias para manter o capital fixo deve ser excluído da renda líquida da sociedade. Jamais podem fazer parte dessa renda líquida os materiais necessários para suas máquinas úteis e seus instrumentos de trabalho, suas construções etc., nem o produto do trabalho necessário para processar esses materiais. O preço dessa mão-de-obra pode fazer parte da renda líquida, já que os trabalhadores assim empregados podem incorporar o valor total de seus salários em seu capital reservado para o consumo imediato. Mas em outros tipos de trabalho, tanto seu preço como seu produto vão para esse capital: o preço, para o capital dos trabalhadores, e o produto, para o capital de outras pessoas, cuja manutenção, comodidades e divertimentos são aumentados pelo trabalho desses empregados. O propósito do capital fixo é aumentar as forças produtivas do trabalho, ou possibilitar que o mesmo número de trabalhadores execute uma quantidade muito maior de trabalho. Em uma propriedade em que todas as construções necessárias, cercas, escoadouros, comunicações etc. estão na mais perfeita ordem, o mesmo número de trabalhadores e o mesmo número de cabeças de gado utilizadas na agricultura darão uma produção muito maior do que em uma propriedade da mesma extensão e com solo da mesma qualidade, destituída dessas benfeitorias. Nas manufaturas, o mesmo número de trabalhadores, utilizando as melhores máquinas, processarão uma quantidade muito maior de bens do que se os instrumentos de trabalho forem menos perfeitos. A despesa adequadamente investida em um capital fixo de qualquer espécie sempre é reembolsada com grande lucro, e acrescenta à produção anual um valor muito superior àquele representado pela manutenção dessas melhorias. Essa manutenção, porém, ainda exige certa porção dessa produção. Certa quantidade de materiais, e o trabalho de certo número de operários, os quais poderiam ter sido empregados imediatamente para aumentar o alimento, a roupa e moradia, a subsistência e os artigos úteis à sociedade, são dessa forma desviados para outro em296
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prego, sem dúvida altamente vantajoso, mas diferente daquele. É por essa razão que se considera sempre como vantajosas para toda a sociedade todas essas melhorias mecânicas que possibilitam ao mesmo número de operários executar com máquinas mais baratas e mais simples uma quantidade de trabalho igual à que se costumava executar antes. Certa quantidade de materiais e o trabalho de certo número de operários, que antes eram empregados para manter máquinas mais complexas e mais caras, podem ser aplicados depois para aumentar a quantidade de trabalho que somente essas ou outras máquinas podem produzir. O empresário de alguma grande manufatura, que emprega uma quantia de mil por ano para manter sua maquinaria, se puder reduzir essa despesa a quinhentos, naturalmente empregará os outros quinhentos para comprar uma quantidade adicional de materiais a serem processados por um número maior de operários. Portanto, a quantidade de trabalho que somente suas máquinas foram capazes de executar, será naturalmente aumentada, e com isso aumentarão todas as vantagens e conveniências que a sociedade pode auferir desse trabalho. A despesa necessária para manter o capital fixo em um grande país pode com muita propriedade ser comparada à despesa necessária para reparos em uma propriedade privada. A despesa dos reparos pode muitas vezes ser necessária para manter a produção da propriedade, e conseqüentemente tanto a renda bruta da terra como a renda líquida do dono da terra. Se, porém, essa despesa puder ser diminuída mediante uma administração mais adequada, sem acarretar nenhuma redução da produção, a renda bruta da terra permanece no mínimo igual ao que era antes, e a renda líquida da terra necessariamente aumentará. Embora a despesa total de manutenção do capital fixo necessariamente deva ser excluída da renda líquida da sociedade, não acontece o mesmo com a despesa necessária para manter o capital circulante. Dos quatro elementos que compõem esse capital — o dinheiro, os suprimentos, os materiais, o produto acabado — os três últimos, como já observei, são normalmente retirados do capital circulante e incorporados ao capital fixo da sociedade ou a seu capital reservado para o consumo imediato. Toda porção desses bens de consumo, que não for empregada na manutenção do capital circulante, vai para o capital da sociedade, constituindo uma parte da renda líquida desta. Portanto, a manutenção desses três componentes do capital circulante não retira da renda líquida da sociedade nenhuma porção da produção anual, além do que é necessário para manter o capital fixo. Sob esse aspecto, o capital circulante de uma sociedade é diferente do de um indivíduo. Em se tratando do capital circulante de um indivíduo, está totalmente excluída a possibilidade dele fazer parte da sua renda líquida, a qual deve consistir unicamente no lucro auferido pelo indivíduo. Embora o capital circulante de cada indivíduo constitua uma parte do capital circulante da sociedade à qual pertence, nem por isso está totalmente excluído que possa fazer parte também da renda líquida da sociedade. Embora de forma alguma seja necessário incor297
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porar todos os bens existentes na loja de um comerciante ao seu próprio capital reservado para consumo imediato, podem ser incorporados ao capital de outras pessoas, as quais, com uma renda auferida de outros fundos, podem regularmente repor ao comerciante o valor dos bens, juntamente com o lucro, sem gerar nenhuma diminuição de seu capital ou do delas. O dinheiro, portanto, é o único componente do capital circulante de uma sociedade, cuja manutenção pode acarretar alguma diminuição na renda líquida da mesma. O capital fixo, e aquela parte do capital circulante que consiste em dinheiro, assemelham-se muito entre si, no que tange à maneira de afetarem a renda da sociedade. Primeiramente: assim como aquelas máquinas e instrumentos de trabalho etc. exigem certa despesa, primeiro para serem implantadas e depois para serem mantidas — despesas essas que, embora façam parte da renda bruta da sociedade, representam deduções de sua renda líquida — da mesma forma o capital em dinheiro que circula em cada país exige necessariamente certa despesa, primeiro para ser recolhido e depois para ser mantido — despesas essas que, analogamente, embora representem uma parte da renda bruta da sociedade, representam deduções da renda líquida da mesma. Certa quantidade de materiais muito valiosos, ouro e prata, e de mão-de-obra muito rara em vez de aumentarem o capital reservado para consumo imediato, os bens necessários para a subsistência, as comodidades e os divertimentos dos indivíduos, são empregados para manter esse grande mas dispendioso instrumento de comércio, através do qual se distribuem a cada indivíduo da sociedade, na proporção adequada, os bens necessários para sua subsistência, suas comodidades e seus divertimentos. Em segundo lugar, assim como as máquinas e instrumentos de trabalho etc. que compõem o capital fixo de um indivíduo e de uma sociedade e não fazem parte nem da renda bruta nem da renda líquida do indivíduo nem da sociedade, da mesma forma o dinheiro, através do qual toda a renda da sociedade é regularmente distribuída a cada um de seus membros, não faz parte dessa renda. A grande engrenagem da circulação é totalmente diferente dos bens que essa roda faz circular. A renda da sociedade consiste integralmente nesses bens, e não na engrenagem que os faz circular. Ao computar a renda bruta ou a renda líquida de uma sociedade, devemos sempre deduzir da circulação anual total de dinheiro e de bens o valor total do dinheiro, sendo que nem sequer um ceitil pode fazer parte da renda bruta ou da renda líquida da sociedade. Somente a ambigüidade da linguagem pode fazer com que essa proposição pareça duvidosa ou paradoxal. Se devidamente explicada e compreendida, a proposição quase se evidencia por si mesma. Quando falamos de determinada soma de dinheiro, às vezes não entendemos outra coisa senão as peças metálicas de que ela se compõe; e às vezes incluímos no significado alguma referência obscura aos bens 298
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que podemos obter em troca dele, ou ao poder de compra que a posse do dinheiro nos dá. Assim, quando dizemos que o dinheiro em circulação na Inglaterra foi calculado em 18 milhões, tencionamos apenas expressar a soma ou montante de peças metálicas que alguns autores consideraram, ou antes supuseram, circular nesse país. Mas quando dizemos que um homem vale 50 ou 100 libras por ano, entendemos geralmente expressar não somente o montante de peças metálicas que lhe são pagas anualmente, mas também o valor dos bens que ele pode anualmente comprar ou consumir. Costumamos geralmente constatar qual é ou deve ser seu padrão de vida, ou a quantidade e a qualidade dos bens necessários e dos confortos que ele pode adequadamente se permitir. Quando, ao falar de uma quantia específica de dinheiro, tencionamos expressar não somente a soma de peças metálicas de que se compõe esta quantia, mas também incluir no seu significado alguma referência indefinida aos bens que se pode obter em troca da referida soma, a riqueza ou renda que nesse caso a soma de dinheiro exprime é igual somente a um desses dois valores designados, com alguma ambigüidade, pelo mesmo termo: nesse caso, o termo dinheiro designa mais adequadamente o segundo sentido, isto é, o valor do dinheiro, do que propriamente o dinheiro em si mesmo. Assim, se a pensão semanal de determinada pessoa for de um guinéu, ela pode, no decurso da semana, comprar com essa soma certa quantidade de coisas necessárias e de confortos, além de lazeres. Conforme essa quantidade for grande ou pequena, sua riqueza real, sua renda semanal real será grande ou pequena. Sua renda semanal certamente não é igual ao guinéu e àquilo que com o guinéu ela pode comprar, mas é igual somente a um desses dois valores iguais: mais adequadamente ao segundo do que ao primeiro, ou seja, mais adequadamente ao valor de um guinéu do que ao guinéu em si mesmo. Se a pensão dessa pessoa lhe fosse paga, não em ouro, mas em um vale semanal de um guinéu, sua renda certamente não consistiria propriamente em um pedaço de papel, mas antes naquilo que a pessoa poderia comprar com isso. Um guinéu pode ser considerado como uma nota de crédito, equivalente a certa quantidade de bens necessários e de confortos que a pessoa pode emitir contra todos os comerciantes da região. A renda da pessoa a quem se paga esse guinéu não consiste propriamente numa peça de ouro, mas antes naquilo que ela pode comprar com essa moeda, ou naquilo que a pessoa pode obter em troca da moeda. Se a moeda não pudesse ser trocada por nada, como seria o caso de uma nota de crédito emitida por alguém em bancarrota, não teria mais valor do que o pedaço de papel mais inútil. Analogamente, embora a renda semanal ou anual de todos os diversos habitantes de um país possa ser-lhes — e com freqüência é realmente — paga em dinheiro, sua riqueza real, a renda real, semanal ou anual de todos eles considerados em conjunto será sempre grande ou pequena, conforme for grande ou pequena em proporção à quantidade 299
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de bens de consumo que todos eles têm condições de comprar com esse dinheiro. Evidentemente, a renda total de todos eles tomados em conjunto não é igual ao dinheiro e aos bens de consumo, mas somente a um desses dois valores: mais propriamente ao segundo do que ao primeiro. Por isso, embora com freqüência expressemos a renda de uma pessoa pelas peças metálicas que lhe são pagas anualmente, isso acontece porque o montante dessas peças determina a extensão de seu poder de compra, ou de valor dos bens que ela pode permitir-se consumir anualmente. Consideramos ainda que a renda da pessoa consiste nesse poder de compra ou de consumo, e não nas peças que representam esse poder. Mas, se isso é suficientemente evidente com respeito a um indivíduo, mais evidente ainda é no tocante a uma sociedade. O montante de peças metálicas anualmente pago a um indivíduo é muitas vezes exatamente igual à sua renda, e por isso constitui a expressão mais concisa e mais adequada do valor dessa renda. Mas o montante de peças metálicas que circula em uma sociedade nunca pode ser igual à renda de todos os seus membros. Já que o mesmo guinéu que paga a pensão semanal de uma pessoa hoje pode pagar a pensão semanal de outra pessoa amanhã, e a de uma terceira depois de amanhã, o montante de peças metálicas que circulam anualmente em qualquer país terá sempre muito menos valor do que a soma de todas as pensões em dinheiro pagas anualmente aos cidadãos. Mas, o poder de compra, ou os bens que se pode sucessivamente comprar com o total dessas pensões em dinheiro, quando são pagas sucessivamente, sempre terá exatamente o mesmo valor que o dessas pensões, como será também igual à renda das diversas pessoas às quais as pensões são pagas. Essa renda, portanto, não pode consistir nessas peças metálicas, cujo montante é tão inferior ao valor das pensões; consistirá, sim, no poder de compra, nos bens que se pode sucessivamente comprar com elas, ao circularem de mão em mão. O dinheiro, portanto, a grande roda da circulação, o grande instrumento do comércio, como todos os outros instrumentos de comércio, embora constitua uma parte, e parte muito importante do capital, não faz parte da renda da sociedade à qual pertence; e embora as peças metálicas que compõem o dinheiro distribuam, no curso de sua circulação anual, a cada pessoa a renda que adequadamente lhe pertence, elas mesmas não fazem parte da citada renda. Em terceiro lugar, finalmente, as máquinas e instrumentos de trabalho etc. que compõem o capital fixo, apresentam outra semelhança com a parte do capital circulante que consiste em dinheiro: assim como toda economia de despesas que se fizerem na implantação e na manutenção das citadas máquinas, desde que não sejam reduzidas as forças produtivas do trabalho, constitui uma melhoria da renda líquida da sociedade, da mesma forma, toda economia de despesas de coleta 300
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e de manutenção da parte do capital circulante que consiste em dinheiro representa uma melhoria exatamente do mesmo tipo. É suficientemente óbvio — e isso já foi explicado, em parte — de que modo toda a economia de despesas feita na manutenção do capital fixo significa um aumento da renda líquida da sociedade. O capital total do empresário de qualquer setor de trabalho divide-se necessariamente entre seu capital fixo e seu capital circulante. Enquanto seu capital total permanecer o mesmo, quanto menor for um dos dois capitais, tanto maior será necessariamente o outro. É o capital circulante que fornece os materiais e os salários do trabalho e movimenta a indústria. Por conseguinte, toda economia feita nas despesas de manutenção do capital fixo, que não diminua as forças produtivas do trabalho, deve necessariamente aumentar o fundo que movimenta a indústria e, conseqüentemente, a produção anual da terra e da mãode-obra, a renda real de cada sociedade. A substituição do dinheiro em moeda de ouro e prata por papelmoeda substitui um instrumento muito dispendioso de comércio por outro muito mais barato e às vezes igualmente adequado. A circulação do dinheiro passa a ser feita através de uma nova roda, cuja implantação e manutenção custam menos do que a antiga. De que maneira isso se faz, e de que modo essa transformação tende a aumentar ou a renda bruta ou a renda líquida da sociedade, eis um ponto não totalmente evidente, e que portanto exige explicação mais detalhada. Há vários tipos diferentes de papel-moeda; entretanto, as notas em circulação, dos bancos e banqueiros, são o tipo mais conhecido e que parece mais adequado para essa finalidade. Quando a população de determinado país tem tal confiança na fortuna, na probidade e na prudência de determinado banqueiro, a ponto de acreditar que ele está sempre pronto a pagar, quando solicitado, as notas promissórias de sua emissão, que lhes foram apresentadas, essas notas passam a ter a mesma aceitação que as moedas de ouro ou prata, devido à confiança que se tem de que a qualquer momento elas podem ser trocadas por dinheiro. Suponhamos que determinado banqueiro empreste a seus clientes suas próprias notas promissórias, digamos, até ao valor de 100 mil libras. Uma vez que essas notas atendem a todos os objetivos do dinheiro, seus devedores lhe pagam os mesmos juros como se o banqueiro lhes tivesse emprestado esse montante em dinheiro. Esses juros constituem a fonte de seu ganho. Embora algumas dessas notas retornem continuamente ao banqueiro como pagamento, parte delas continua a circular por meses e anos sucessivos. Embora, portanto, ele geralmente tenha em circulação notas até ao valor de 100 mil libras, o montante de 20 mil libras em ouro e prata pode, muitas vezes, constituir a provisão suficiente para atender às demandas ocasionais. Por essa operação, portanto, 20 mil libras esterlinas em ouro e prata cumprem todas as funções que, de outra forma, poderiam ter sido cumpridas por 100 mil libras. Com as notas promissórias do banqueiro, no valor 301
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total de 100 mil libras, é possível efetuar as mesmas trocas, podendo-se fazer circular e distribuir entre seus consumidores específicos a mesma quantidade de bens de consumo que se faria circular e se distribuiria com 100 mil libras em ouro e prata. Com isso pode-se poupar a circulação de 80 mil libras de ouro e prata no país. E se ao mesmo tempo outros bancos e banqueiros fizerem coisa semelhante, toda a circulação de bens no país pode ser efetuada com apenas 1/5 do montante de ouro e prata que de outra forma se exigiria. Suponhamos, por exemplo, que o total da moeda circulante de determinado país, em um dado momento, seja de 1 milhão de libras esterlinas, soma esta suficiente para fazer circular o total da produção anual da terra e da mão-de-obra do respectivo país. Suponhamos também que, algum tempo depois, diversos bancos e banqueiros emitam notas promissórias, pagáveis ao portador, até ao valor de 1 milhão, mantendo em seus diversos cofres uma reserva de 200 mil libras em ouro e prata para atender a demandas ocasionais. Portanto, permaneceriam em circulação 800 mil libras em ouro e prata, e 1 milhão de notas bancárias, ou seja, um total de 1,8 milhão de libras. Mas a produção anual da terra e da mão-de-obra do país exigira antes apenas 1 milhão de libras para fazê-la circular e a distribuir a seus consumidores específicos e essa produção anual não podia ser imediatamente aumentada por aquelas operações bancárias. Portanto, depois das citadas operações bancárias, será suficiente 1 milhão pra fazer circular essa produção. Sendo exatamente os mesmos que antes os bens a serem comprados e vendidos, será suficiente a mesma quantidade de dinheiro para comprá-los e vendê-los. O canal de circulação — se me for permitido usar essa expressão — permanecerá exatamente o mesmo que antes. Supusemos que 1 milhão é suficiente para encher o canal. Tudo que, portanto, seja lançado no canal, além dessa soma, não poderá deslizar nele, vindo a transbordar. Coloca-se agora nesse canal 1,8 milhão de libras. Portanto, 800 mil libras esterlinas devem transbordar, já que esta soma está além do que pode ser empregado na circulação deste país. Todavia, embora esta soma excedente não possa ser empregada na circulação do país, ela é muito valiosa para que se possa deixá-la ociosa. Esta soma será, portanto, enviada ao exterior, à procura de uma aplicação rentável que não é possível no país. Mas não se pode enviar papel ao exterior, pois ele não será recebido em pagamentos comuns normais, devido a distância dos bancos emissores e do país no qual o pagamento pode ser cobrado por lei. Enviar-se-ão portanto ouro e prata, no montante de 800 mil libras, ao exterior e o canal da circulação interna permanecerá cheio com 1 milhão de dinheiro em papel, em lugar do 1 milhão daqueles metais que o enchiam anteriormente. Embora essa quantidade tão grande de ouro e prata seja enviada ao exterior, não devemos imaginar que o seja de graça, ou que os proprietários dêem essa quantia de presente a outras nações. Trocála-ão por bens do exterior, deste ou daquele tipo, a fim de suprir o consumo de algum outro país ou do seu próprio. 302
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Se empregarem essa remessa comprando mercadorias em um país estrangeiro, a fim de suprir o consumo de outro país, ou seja, no que se denomina comércio de transporte, qualquer lucro que aufiram será um acréscimo à renda líquida de seu próprio país. É como um novo fundo, criado para desenvolver uma nova atividade comercial; no comércio interno, as transações serão efetuadas com papel-moeda, sendo o ouro e a prata convertidos em um fundo para este novo tipo de comércio. Se o dinheiro enviado ao exterior for empregado para comprar bens estrangeiros destinados ao consumo interno, os proprietários do dinheiro exportado poderão: primeiro, comprar bens suscetíveis de serem consumidos por pessoas ociosas que não produzem nada, tais como vinhos estrangeiros, sedas estrangeiras etc.; ou, então, poderão comprar um estoque adicional de materiais, ferramentas e provisões a fim de manter e empregar um número adicional de pessoas operosas, que reproduzem, com lucro, o valor de seu consumo anual. Na medida em que o dinheiro exportado é utilizado da primeira forma, ele promove esbanjamento, aumenta a despesa e o consumo sem aumentar a produção ou sem criar qualquer fundo permanente para custear essa despesa, o que é, sob todos os aspectos, prejudicial à sociedade. Na medida em que o dinheiro for empregado da segunda maneira, promove o trabalho e, embora faça aumentar o consumo da sociedade, gera um fundo permanente para custear esse consumo, já que as pessoas que consomem, no caso, reproduzem, com lucro, o valor total de seu consumo anual. A renda bruta da sociedade, a produção anual de sua terra e de sua mão-de-obra é aumentada pelo valor total que o trabalho daqueles trabalhadores acrescenta aos materiais com que eles lidam; e a renda líquida é aumentada pelo que sobra desse valor, após deduzir o que é necessário para as ferramentas e instrumentos de sua profissão. Parece não somente provável mas quase inevitável que a maior parte do ouro e da prata que, por força das citadas operações bancárias, é enviada ao exterior, seja empregada para comprar bens estrangeiros para o consumo interno. Embora certas pessoas às vezes possam aumentar sua despesa consideravelmente apesar de não aumentar em nada sua renda, podemos estar certos de que nenhuma classe ou categoria de pessoas faz isso pois, embora os princípios da prudência comum nem sempre dirijam a conduta de cada indivíduo, sempre influenciam a conduta da maioria dos membros de cada classe ou categoria. Mas a renda das pessoas ociosas, consideradas como uma classe ou categoria, não pode ser aumentada, o mínimo que seja, por essas operações bancárias. Por isso, sua despesa em geral não pode ser muito aumentada por elas, embora a de alguns poucos indivíduos dentre eles o possa e, na realidade, às vezes o seja. Portanto, sendo a mesma ou quase a mesma que antes a procura de bens importados por parte das pessoas ociosas, é provável que uma pequena parte do dinheiro enviado ao exterior, por força das operações bancárias, destinada a comprar 303
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bens estrangeiros para o consumo interno, seja suscetível de ser empregada para comprar artigos de consumo para a classe dos ociosos. A maior parte será naturalmente utilizada para a manutenção e dinamização do trabalho, e não para manter a ociosidade. Ao computarmos a quantidade de trabalho que o capital circulante de uma sociedade pode empregar, devemos sempre levar em conta apenas aquelas partes do mesmo que consistem em mantimentos, materiais e serviço acabado; a outra parte, consistente em dinheiro, e que serve somente para fazer circular as três primeiras, deve sempre ser deduzida. Para movimentar a indústria, requerem-se três coisas: materiais com que trabalhar, instrumentos de trabalho e salários ou remuneração em função dos quais se executa o trabalho. O dinheiro não constitui material a ser trabalhado, nem instrumento de trabalho: e embora os salários do operário geralmente sejam pagos em dinheiro, sua renda real, como a de todas as outras pessoas, não consiste no dinheiro, mas no valor do dinheiro; não consiste nas peças metálicas, mas naquilo que com elas se pode comprar. Evidentemente, a quantidade de trabalho que um capital pode empregar deve ser igual ao número de operários aos quais pode fornecer materiais, instrumentos e uma remuneração condigna com a natureza do serviço. O dinheiro pode ser necessário para comprar os materiais e os instrumentos do trabalho, bem como a manutenção dos trabalhadores. Mas a quantidade de trabalho que o capital total pode empregar certamente não é igual ao dinheiro que compra, aos materiais, instrumentos e salários comprados com o dinheiro; é igual somente a um ou outro desses dois valores e ao último mais adequadamente do que ao primeiro. Quando se substitui o dinheiro em ouro e prata pelo dinheiro em papel, a quantidade de materiais, ferramentas e manutenção da mão-de-obra que o total do capital circulante pode suprir deve ser aumentada pelo valor total do ouro e prata que antes costumavam ser empregados para comprá-los. O valor total da grande roda de circulação e distribuição é acrescido aos bens que circulam e são distribuídos pelo dinheiro. Até certo ponto a operação assemelha-se à do empresário de uma grande organização de trabalho, o qual, em conseqüência de alguma melhoria ou aperfeiçoamento mecânico, elimina suas máquinas velhas e acrescenta a diferença entre o preço delas e o das máquinas novas ao seu capital circulante ao fundo através do qual compra materiais e paga salários a seus trabalhadores. Talvez seja impossível determinar qual a proporção que o dinheiro circulante de qualquer país tem com o valor total da produção anual que é posta em circulação por esse capital. Segundo diversos autores, esta proporção tem sido calculada em 1/5, 1/10, 1/20 e 1/30 daquele valor. Mas, por pequena que seja a proporção que o dinheiro em circulação possa ter com o valor total da produção anual, já que somente uma parte e muitas vezes somente uma pequena parte dessa produção é destinada à manutenção do trabalho, o dinheiro deve sempre repre304
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sentar uma porcentagem considerável em relação a essa parte. Quando, portanto, em virtude da entrada em vigor do papel-moeda, o ouro e a prata necessários para a circulação são reduzidos a talvez 1/5 da quantidade anterior, se for acrescentado o valor de apenas a maior parte dos outros 4/5 aos fundos destinados à manutenção da indústria, deve constituir um acréscimo bastante considerável à quantidade desse trabalho e, conseqüentemente, ao valor da produção anual da terra e do trabalho. Uma operação desse tipo foi efetuada, no decorrer dos últimos 20 ou 30 anos, na Escócia, pela implantação de novas sociedades bancárias em quase todas as cidades de porte e até mesmo em algumas aldeias do interior. Os efeitos dessa operação foram exatamente os acima descritos. Os negócios do país são quase inteiramente efetuados com notas de emissão dessas sociedades bancárias, notas essas com as quais se costuma fazer compras e pagamentos de todos os tipos. A prata aparece muito raramente, a não ser como troca de uma nota bancária de 20 xelins, e o ouro ainda mais raramente. Embora a conduta dessas sociedades bancárias não tenha sido totalmente correta, exigindo até uma lei do Parlamento para regulamentá-la, é evidente, no entanto, que o país hauriu grandes benefícios dessas operações. Ouvi contar que o comércio da cidade de Glasgow duplicou em aproximadamente 15 anos, depois da implantação dos bancos; e que o comércio da Escócia mais que quadruplicou desde a implantação dos dois bancos oficiais de Edimburgo, dos quais um, denominado The Bank of Scotland, foi criado por lei do Parlamento em 1695; o outro, chamado The Royal Bank, foi criado por decreto régio de 1727. Não me é dado saber com certeza se o comércio, seja na Escócia em geral, seja na cidade de Glasgow em especial, aumentou realmente tanto, durante um período tão breve. Se o crescimento foi dessa ordem, parece-me que o efeito é muito grande para poder ser atribuído exclusivamente a essa causa. Que o comércio e a indústria da Escócia aumentaram muito durante o citado período, e que os bancos contribuíram muito para que isso ocorresse, eis um fato incontestável. O valor do dinheiro em prata que circulava na Escócia antes da união com a Inglaterra, em 1707, e que, imediatamente depois, foi levado ao banco da Escócia, para ser recunhado, montava a £ 411 117 10 s e 9 d. Não se tem qualquer cálculo relativo à moeda de ouro; todavia, com base nos antigos relatos da casa de moeda da Escócia, presume-se que o valor do ouro cunhado anualmente superava um pouco o da prata.149 Houve muitas pessoas, na época, que, por desconfiarem do reembolso, não levaram sua prata ao banco da Escócia, havendo também alguma moeda inglesa que não foi entregue. Por isso, o valor total do ouro e da prata que circulava na Escócia antes da união, não pode ser calculado em menos do que 1 milhão de libras esterlinas. Este parece haver sido mais ou menos o total da moeda 149 Ver o prefácio de Ruddiman a Anderson, Diplomata Scotiae. 305
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circulante naquele país, pois, embora a circulação do banco da Escócia, que não tinha então nenhum concorrente, fosse considerável, ela parece ter representado apenas uma pequena parte do total. Atualmente, o total do dinheiro em circulação na Escócia não pode ser calculado em menos de 2 milhões de libras esterlinas, dos quais a parte consistente em moeda de ouro e prata muito provavelmente não chega a representar 0,5 milhão. Mas, ainda que durante esse período tenha diminuído muito o dinheiro em ouro e prata circulante na Escócia, a riqueza real e a prosperidade do país não parecem ter nada sofrido. Ao contrário, sua agricultura, sua manufatura, comércio e a produção anual da terra e da mão-de-obra obviamente aumentaram. É sobretudo descontando letras de câmbio, isto é, adiantando dinheiro por elas antes de seu vencimento, que a maior parte dos bancos e banqueiros emitem suas notas promissórias. De qualquer soma adiantada deduzem sempre os juros de lei, até o vencimento dos títulos. O pagamento do título na data do vencimento restitui ao banco o valor do que tinha sido adiantado juntamente com o lucro completo dos juros. O banqueiro que adianta dinheiro ao comerciante, cujos títulos desconta, não ouro e prata, mas suas próprias notas promissórias, tem a vantagem de poder descontar uma soma muito maior pelo valor total de suas notas promissórias, que, ele o sabe por experiência, estão geralmente em circulação. Com isto, ele tem a possibilidade de ganhar juros líquidos sobre uma soma tanto maior. O comércio da Escócia, que no momento não é muito grande, era ainda muito menor quando se criaram as duas primeiras sociedades bancárias mencionadas; e essas sociedades teriam feito poucos negócios, caso tivessem limitado suas operações a descontar letras de câmbio. Por isso, inventaram outro método de emissão de suas notas promissórias, permitindo as chamadas contas de caixa, isto é, liberando crédito até uma certa quantia (2 ou 3 mil libras, por exemplo) a todo indivíduo que pudesse apresentar dois avalistas de crédito inquestionável e donos de propriedades fundiárias, garantindo que todo o dinheiro adiantado pelo banco, até o montante do crédito concedido, seria reembolsado quando solicitado, juntamente com os juros de lei. Segundo acredito, créditos deste tipo costumam ser concedidos por bancos e banqueiros de todas as partes do mundo. Mas as facilidades de reembolso que as sociedades bancárias da Escócia oferecem constituem algo de peculiar a elas, pelo que sei, constituindo, talvez, a causa principal do grande comércio desses bancos e do benefício que o país tem auferido dessas operações. Toda pessoa que tem um crédito de tal gênero, com um desses bancos, e, por exemplo, toma dele um empréstimo de 1 000 libras, pode reembolsar esta soma gradualmente em prestações, em 20 e 30 libras por vez, sendo que o banco desconta uma parte proporcional dos juros da soma total desde o dia em que cada parcela é paga, até que o pagamento do total seja reembolsado. Todos os comerciantes, portanto, e quase todos os homens de negócio, consideram convenientes 306
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manter tais contas de caixa nos bancos, interessando-se com isso em promover o comércio desses bancos, recebendo prontamente suas notas em todos os pagamentos e encorajando todos aqueles junto aos quais exercem alguma influência a fazer outro tanto. Os bancos, quando os clientes os procuram para tomar empréstimos, geralmente adiantamlhes o dinheiro em suas próprias notas promissórias. Com estas, por sua vez, os comerciantes pagam aos manufatores pelas mercadorias, os manufatores aos arrendatários pelos materiais e mantimentos, os arrendatários aos proprietários de terra pelo arrendamento; os donos da terra, por sua vez, pagam com elas aos comerciantes pelas comodidades e artigos de luxo, e os comerciantes as devolvem aos bancos para equilibrar suas contas de caixa ou para repor-lhes o que eventualmente tomaram de empréstimo; assim, quase todos os negócios financeiros do país são transacionados por esses títulos bancários. Daí o grande comércio dessas instituições bancárias. Mediante essas contas de caixa, sem cometer nenhuma imprudência, cada comerciante pode efetuar um volume maior de negócios do que poderia sem elas. Se há dois comerciantes, um em Londres e outro em Edimburgo, que aplicam capitais iguais no mesmo ramo comercial, o comerciante de Edimburgo pode, sem imprudência, efetuar maior volume de negócios e empregar um contingente maior de mãode-obra do que o de Londres. Este deverá sempre conservar consigo soma considerável de dinheiro, ou em seus próprios cofres ou nos de seu banqueiro, o qual não lhe paga juros por tal dinheiro; essa reserva de dinheiro é necessária para atender aos pedidos de pagamento que lhe vêm continuamente dos fornecedores de quem comprou bens a crédito. Suponhamos que o montante normal dessa soma seja 500 libras. O valor das mercadorias que ele manterá em seu depósito deverá ser sempre 500 libras a menos do que teria sido se ele não fosse obrigado a conservar essa soma sem aplicá-la. Suponhamos que ele geralmente venda o estoque inteiro de que dispõe — ou seja, o valor correspondente a esses bens — uma vez ao ano. Por ser obrigado a manter uma soma de dinheiro tão grande sem aplicá-la, ele é obrigado a vender em um ano 500 libras de valor em bens a menos do que poderia vender de outra forma. Seu lucro anual será menor: tanto quanto seria o lucro adicional que auferiria se pudesse vender bens no valor correspondente às 500 libras que mantém em reserva; e também o contingente de mão-de-obra à qual dará emprego será menor: tanto quanto o acréscimo que poderia empregar para preparar as mercadorias que poderia comercializar dispondo dessas 500 libras. O comerciante em Edimburgo, por outro lado, não precisa manter dinheiro não aplicado, para atender a tais demandas ocasionais de pagamento. Quando estas aparecem, ele as atende com sua conta de caixa que mantém no banco, e progressivamente repõe a soma emprestada com o dinheiro ou os títulos que entram de vendas ocasionais de suas mercadorias. Portanto, com o mesmo capital ele pode, sem imprudência, ter a qualquer momento em seu depósito uma quantidade maior de mercadorias do que o co307
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merciante londrino; podendo assim auferir um lucro maior e oferecer emprego constante a um contingente maior de trabalhadores que preparam esses bens para o mercado. Daí o grande benefício que o país tem conseguido com essas operações bancárias. Poder-se-ia pensar que a facilidade de descontar letras de câmbio oferece ao comerciante inglês uma vantagem equivalente às contas de caixa do comerciante escocês. Entretanto, cumpre lembrar que os comerciantes escoceses podem descontar suas letras de câmbio com a mesma facilidade que os ingleses, e, além disso, dispõem da vantagem adicional de suas contas de caixa. O total de papel-moeda de qualquer tipo, que pode facilmente circular em um país, jamais pode ultrapassar o valor do ouro e prata, com o qual supre a praça ou que circularia no país (supondo-se que o comércio e seja o mesmo) se não houvesse papel-moeda. Se, por exemplo, cédulas de 20 xelins são o mais baixo papel-moeda corrente na Escócia, o total dessas notas que pode facilmente circular no país não pode ultrapassar a soma de ouro e prata que seria necessária para efetuar as trocas no valor de 20 xelins ou mais, usualmente realizadas no interior daquele país. Se em determinado momento o papel-moeda em circulação ultrapassar essa soma, o excedente, não podendo ser enviado ao exterior nem ser empregado na circulação do país, deveria retornar imediatamente aos bancos, para ser cambiado por ouro e prata. Muitas pessoas perceberiam imediatamente que têm mais papel-moeda do que o necessário para suas operações comerciais no país, e, por não poderem enviar esse dinheiro ao exterior, solicitariam imediatamente o pagamento do mesmo aos bancos. Quando esse papel-moeda supérfluo fosse convertido em ouro e prata, facilmente poderiam utilizá-lo, enviando-o ao exterior, ao passo que nenhuma utilização haveria, enquanto permanecesse em forma de papel. Portanto, haveria imediatamente uma corrida aos bancos, à procura de todo o papel supérfluo, e se estes dificultassem ou atrasassem o pagamento, a corrida seria ainda maior, devido ao alarme gerado por esta situação. Além das despesas comuns a todo tipo de negócio — tais como despesa do aluguel de casa, salários dos empregados, funcionários, contadores etc. — as despesas específicas dos bancos englobam sobretudo dois itens: primeiro, a despesa de manter a cada momento em seus cofres, para atendimento às solicitações ocasionais de pagamento dos detentores de suas notas, uma grande soma de dinheiro, sobre a qual os bancos não ganham juros; segundo, a despesa de reabastecer esses cofres, tão logo são esvaziados pelos pedidos ocasionais de pagamento das notas ou títulos emitidos pelo banco. Um banco que emite mais papel do que o que pode ser empregado na circulação do país, e cujo excesso continuamente retorna ao banco para pagamento, deve aumentar a quantidade de ouro e prata que conserva sempre em seus cofres, não somente em proporção a este aumento excessivo na circulação das notas, mas, em proporção muito maior, já que suas notas voltam a ele muito mais rapidamente do que 308
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em proporção ao excesso de sua quantidade. Tal banco, portanto, deve aumentar seu primeiro item de despesa, não somente em proporção a este aumento forçado de seus negócios, mas em escala muito maior. Além disso, os cofres desse banco, embora devam ser reabastecidos muito mais generosamente, devem também esvaziar-se com rapidez maior do que no caso de seus negócios permanecerem dentro de limites mais razoáveis, exigindo não somente uma despesa mais drástica como também mais constante e ininterrupta para reabastecer os mencionados cofres. Essa moeda, continuamente retirada em quantidades tão grandes de seus cofres, não pode ser empregada na circulação do país. Ela substitui um papel cuja quantidade ultrapassa o que a circulação comporta, ultrapassando também ela, portanto, a circulação que o país permite. Todavia, uma vez que não é possível que tal moeda permaneça ociosa, é preciso, de uma forma ou de outra, enviá-la ao exterior, a fim de encontrar aquela aplicação rentável que não encontra no país; e esta contínua exportação de ouro e prata, aumentando as dificuldades, deverá intensificar ainda mais a despesa do banco, que consiste em encontrar mais ouro e mais prata para reabastecer seus cofres, que se esvaziam com intensa rapidez. Tal banco, pois, em proporção a esse aumento forçado de seus negócios, deverá aumentar o segundo item de sua despesa ainda mais do que o primeiro. Suponhamos que o total de papel de determinado banco, que a circulação do país pode com facilidade absorver e empregar, represente exatamente 40 mil libras; e que para atender aos pedidos ocasionais de pagamentos, o banco seja obrigado a manter constantemente em seus cofres 10 mil libras em ouro e prata. Se este banco tentar fazer circular 44 mil libras, as 4 mil libras que ultrapassam o que a circulação pode facilmente absorver e empregar voltarão ao banco quase com a mesma rapidez com que são emitidas. Portanto, para atender aos pedidos ocasionais de pagamentos, o banco deve manter constantemente, em seus cofres, não apenas 11 mil libras mas 14 mil. Com isto, não ganhará nada pois não receberá juros sobre as 4 mil libras que ultrapassam a capacidade de circulação; além disso, perderá toda a despesa de recolher continuamente 4 mil libras em ouro e prata, que sem cessar saem de seus cofres com a mesma rapidez com que entraram. Se cada sociedade bancária tivesse sempre compreendido e atendido a seu próprio interesse específico, nunca poderia ter ocorrido um excesso de papel-moeda em circulação. Todavia, nem sempre todos os bancos compreenderam ou atenderam a seu próprio interesse, ocorrendo com freqüência uma saturação de papel-moeda em circulação. Ao emitir uma quantidade excessiva de papel-moeda, cujo excesso voltava continuamente ao banco para ser cambiado por ouro e prata, o Banco da Inglaterra, durante muitos anos, foi obrigado a cunhar ouro até o montante entre 800 mil e 1 milhão de libras por ano; em média, portanto, aproximadamente 850 mil libras por ano. Devido a esta grande cunhagem de dinheiro (em conseqüência do estado de desgaste e desvalorização em que caíra o ouro há alguns anos), o banco 309
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muitas vezes foi obrigado a comprar ouro em lingotes ao alto preço de 4 libras por onça, as quais logo emitiu em forma de moeda a £ 3 17 s 10 1/2 d por onça, perdendo, desta forma, entre 2 e 2,5% na cunhagem de montante tão elevado. Portanto, embora o banco não pagasse senhoriagem, embora o Governo estivesse praticamente às expensas da cunhagem, essa liberalidade do Governo não impediu totalmente a despesa do banco. Os bancos escoceses, em conseqüência de um excesso do mesmo tipo, foram todos obrigados constantemente a empregar agentes em Londres para recolher dinheiro para eles, tendo com isso uma despesa que raramente era inferior a 1,5 ou 2%. Esse dinheiro era enviado por carroça à Escócia, sendo assegurado pelas transportadoras a uma despesa adicional de 3/4%, ou 15 xelins para cada 100 libras-peso. Nem sempre esses agentes conseguiam reabastecer os cofres de seus empregadores com a mesma rapidez com que estes se esvaziavam. Nesse caso, o recurso dos bancos consiste em emitir sobre os seus correspondentes em Londres letras de câmbio até ao montante que eles precisavam. Depois, quando esses correspondentes solicitavam ao banco o pagamento dessa soma, juntamente com os juros e uma comissão, alguns desses bancos, devido à situação desastrosa em que se encontravam em decorrência da emissão excessiva, às vezes não tinham outra alternativa senão emitir uma segunda série de letras de câmbio, para o mesmo ou para outros correspondentes londrinos; e a mesma soma, ou melhor, letras correspondentes à mesma soma, dessa forma às vezes faziam mais que duas ou três viagens, sendo que o banco devedor sempre pagava os juros e a comissão sobre o valor total da soma acumulada. Mesmo os bancos escoceses que nunca se distinguiram por imprudência extrema, viram-se às vezes obrigados a lançar mão desse recurso altamente prejudicial. A moeda de ouro, que era paga pelo Banco da Inglaterra ou pelos bancos escoceses em troca daquela parte de papel-moeda que ultrapassava o montante que podia circular no país, pelo fato de também ele ultrapassar o que a circulação do país comportava, às vezes era enviado ao exterior em forma de moeda, às vezes era fundido e enviado ao exterior sob a forma de lingotes e, às vezes, fundido e vendido ao Banco da Inglaterra ao alto preço de 4 libras a onça. Somente as peças mais novas, mais pesadas e melhores eram cuidadosamente recolhidas, sendo enviadas ao exterior ou fundidas. No próprio país, e enquanto permaneciam na forma de moeda, essas peças pesadas não tinham mais valor que as moedas leves; valiam, porém, mais que elas, quando eram enviadas ao exterior ou quando, fundidas em lingotes, permaneciam no país. O Banco da Inglaterra, apesar da grande cunhagem anual que fazia, constatou, com surpresa, que todo ano havia a mesma escassez de moedas que no ano anterior, e que, a despeito da grande quantidade de moedas boas e novas emitidas anualmente pelo Banco, o estado da moeda, ao invés de melhorar, tornava-se pior de ano para ano. Cada ano via-se na necessidade de cunhar quase a mesma quan310
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tidade de ouro do ano anterior, e devido ao aumento contínuo do preço do ouro em lingote, decorrência do incessante uso e desgaste das moedas, a cada ano tornava-se maior a despesa dessa grande cunhagem anual. Cumpre observar que o Banco da Inglaterra, ao suprir seus próprios cofres com moeda, é indiretamente obrigado a suprir o reino todo, para o qual as moedas continuamente fluem desses cofres, de múltiplas maneiras. Por isso, todo dinheiro em moeda que era necessário para manter essa circulação excessiva de papel-moeda inglês e escocês, todos os vazios que essa circulação excessiva gerava nas reservas de moeda do reino, o Banco da Inglaterra era obrigado a supri-los. Sem dúvida, os bancos escoceses, todos eles, pagaram muito caro por sua própria imprudência e falta de atenção. O Banco da Inglaterra, porém, pagou muito caro, não somente pela própria imprudência, mas também pela imprudência muito maior de quase todos os bancos escoceses. O comércio excessivo de certos planejadores ousados, tanto na Inglaterra como na Escócia, foi a causa original desse excesso de circulação de papel-moeda. O que um banco pode adequadamente adiantar a um comerciante ou a um empresário de qualquer tipo não é o capital total com o qual ele comercializa, nem mesmo uma parte considerável do mesmo, mas somente aquela parte do capital que o tomador, de outra forma, teria que conservar consigo sem aplicá-la, ou seja, em dinheiro vivo, para atender a pedidos ocasionais. Se o papel-moeda que o banco empresta nunca ultrapassar este valor, nunca poderá superar o valor do ouro e da prata que necessariamente circularia no país se não houvesse papel-moeda, jamais poderá exceder a quantidade que a circulação do país pode com facilidade absorver e empregar. Quando um banco desconta para um comerciante uma letra de câmbio real emitida por um credor real sobre um devedor real, e que, na data do vencimento, é realmente paga pelo devedor, o banco somente adianta ao comerciante uma parte do valor que, de outra forma, seria obrigado a manter consigo, sem empregá-la, em forma de dinheiro vivo, para atender aos pagamentos solicitados. O pagamento do título, na data do vencimento, repõe ao banco o valor que ele adiantara, juntamente com os juros. Os cofres do banco, na medida em que seus negócios se limitam a tais clientes, assemelham-se a um reservatório d’água, do qual, embora continuamente saia uma torrente, uma outra torrente continuamente entra, perfeitamente igual à que sai, de modo que, sem outra atenção ou cuidado, o reservatório mantém sempre um nível igual ou quase igual. Pouca ou nenhuma despesa pode ser necessária para reabastecer os cofres de tal banco. Um comerciante, mesmo sem ter um comércio excessivo, muitas vezes pode ter necessidade de uma soma em dinheiro vivo, mesmo que não tenha título algum para descontar. Quando um banco, além de descontar seus títulos, lhe adianta em tais ocasiões essas somas em sua conta de caixa, aceitando reembolso parcelado na medida em que 311
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o comerciante recebe da venda de suas mercadorias, com as mesmas facilidades oferecidas pelos bancos da Escócia, dispensa-o inteiramente da necessidade de ele conservar consigo qualquer parte de seu capital não aplicado em forma de dinheiro vivo para atender aos pedidos ocasionais. Quando tais pedidos realmente vencem, o comerciante pode atendê-los suficientemente com sua conta de caixa. O banco, porém, ao negociar com tais clientes, deve observar com grande cuidado se no decurso de um breve período (por exemplo, 4, 5, 6 ou 8 meses) a soma dos reembolsos que ele costuma receber dos clientes é ou não exatamente igual à soma dos adiantamentos que costuma conceder a esses tomadores. Se, nesses breves períodos, a soma dos reembolsos feitos por certos clientes na maioria dos casos é igual à soma dos adiantamentos concedidos, pode o banco tranqüilamente continuar a negociar com eles. Embora a torrente que nesse caso sai constantemente de seus cofres seja muito grande, a torrente que entra continuamente neles deve ser pelo menos igualmente grande, de maneira que, sem outros cuidados ou cautelas, é provável que esses cofres sempre estarão plena ou quase plenamente cheios, e dificilmente ocorrerá a necessidade de uma despesa extraordinária para reabastecê-los. Se, ao contrário, a soma dos reembolsos de certos outros clientes costuma com muita freqüência ficar muito abaixo dos adiantamentos a eles concedidos, o banco não poderá com segurança continuar a negociar com tais tomadores, pelo menos enquanto continuarem a agir dessa forma. A torrente que neste caso continuamente jorra de seus cofres será muito maior do que a torrente que constantemente entra, de maneira que esses cofres cedo estarão totalmente esgotados, a menos que sejam reabastecidos por algum esforço de despesa grande e contínua. Em razão disto, as sociedades bancárias da Escócia durante muito tempo tiveram muito cuidado em exigir reembolsos freqüentes e regulares de seus tomadores, recusando-se a negociar com qualquer pessoa por maior que fosse sua fortuna e por melhor que fosse seu crédito, que não efetuasse com eles o que chamavam de operações freqüentes e regulares. Esta atenção, além de poupar quase totalmente a despesa extraordinária para reabastecer seus cofres, lhes assegurou duas outras vantagens consideráveis. Em primeiro lugar, esse cuidado lhes possibilitou fazer um julgamento razoável sobre a condição boa ou má de seus devedores, sem terem de que procurar outra prova senão a fornecida pelos seus livros contábeis, já que na maioria dos casos as pessoas são regulares ou irregulares em seus reembolsos, conforme sua situação financeira ascendente ou descendente. Um particular que empresta seu dinheiro talvez a 6 ou 12 devedores pode, pessoalmente ou através de seus agentes, observar e investigar constante e cuidadosamente a conduta e a situação de cada um deles. Mas um banco, que empresta dinheiro talvez a quinhentas pessoas diferentes e cuja atenção é continuamente ocupada por assuntos de natureza muito diferente, não poderá ter informações regulares sobre a conduta e a situação financeira da maior 312
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parte de seus devedores, além do controle resultante de sua própria contabilidade. Exigindo reembolsos freqüentes e regulares de seus tomadores, os bancos da Escócia provavelmente tiveram em vista essa vantagem. Em segundo lugar, usando desse cuidado os bancos se garantiram contra a possibilidade de emitir mais papel-moeda do que o quanto podia facilmente absorver e comportar a circulação no país. Quando observavam que, dentro de curtos períodos de tempo, os reembolsos dos clientes na maioria dos casos eram perfeitamente iguais aos empréstimos que iam fazer-lhes, podiam ter a certeza de que o papelmoeda que lhes haviam adiantado nunca excedia a reserva de ouro e prata que, de outra forma, teriam sido obrigados a manter para atender aos pagamentos ocasionais; e que, conseqüentemente, o papel-moeda que circulava desta forma nunca tinha excedido a quantidade de ouro e prata que teria circulado no país, na hipótese de não haver papelmoeda. A freqüência, a regularidade e as somas dos reembolsos eram suficientes para demonstrar que o montante de seus adiantamentos nunca superara aquela parte de seu capital que de outra forma teriam sido obrigados a conservar consigo não aplicada e em forma de dinheiro vivo para pagamentos ocasionais, isto é, com o propósito de manter o resto de seu capital em constante movimentação. É somente esta parte de seu capital que, dentro de curtos períodos de tempo, retoma continuamente a todo comerciante em forma de dinheiro, em moeda ou em papel, e continuamente sai dele da mesma forma. Se os adiantamentos do banco tinham comumente excedido esta parte de seu capital, o montante normal de seus reembolsos não poderia, nos limites de curtos períodos de tempo, igualar o montante normal de seus adiantamentos. A torrente que, através de suas transações, entrava continuamente nos cofres do banco, não poderia ter sido igual à torrente que, mediante essas mesmas operações, saía continuamente deles. Os adiantamentos dos títulos do banco, por excederem a quantidade de ouro e prata que, se não tivessem ocorrido tais empréstimos, teria sido obrigado a manter consigo para o atendimento dos pagamentos ocasionais, logo poderiam superar a quantidade total de ouro e prata que (supondo-se que o comércio permaneça o mesmo) teria circulado no país, se não tivesse havido papel-moeda; e conseqüentemente, o papel-moeda superaria a quantidade que a circulação do país poderia facilmente absorver e aplicar, e o excesso desse papel-moeda teria imediatamente retornado ao banco, para ser cambiado por dinheiro em ouro e prata. Esta segunda vantagem, embora igualmente real, talvez não tenha sido imediatamente bem compreendida por todos os bancos da Escócia. Quando, em parte pela conveniência de descontar títulos, e em parte pela conveniência das contas de caixa, os comerciantes dignos de crédito de qualquer país podem ser dispensados da necessidade de manter qualquer parte de seu capital sem aplicação e em forma de dinheiro vivo para pagamentos ocasionais, não podem razoavelmente esperar mais ajuda dos bancos e banqueiros, os quais, tendo chegado 313
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tão longe, não podem ir ainda mais além sob risco de comprometerem seus interesses e sua segurança. Um banco, se quiser salvaguardar seus próprios interesses, não pode adiantar a um comerciante toda ou mesmo a maior parte do capital circulante com o qual opera; com efeito, embora esse capital retorne constantemente ao banco em forma de dinheiro, e continuamente saia dele na mesma forma, ainda assim é excessivamente longo o tempo que decorre entre o total das saídas e o total dos retornos, e a soma de desembolsos não poderia igualar a soma de seus adiantamentos nos limitados períodos de tempo, como convém aos interesses de um banco. Muito menos o banco poderia permitir-se adiantar ao comerciante uma parte considerável de seu capital fixo: por exemplo, do capital que o empresário de uma forjaria emprega em implantar sua forja e sua oficina de fundição, seus albergues e seus depósitos, as moradias de seus trabalhadores etc., ou, então, do capital que o explorador de uma mina emprega em cavar seus poços, na instalação das máquinas para extração de água, em construir estradas e trilhos para os vagões etc.; ou então, do capital que uma pessoa que empreende a melhoria da terra emprega em roçar, drenar, cercar, adubar e arar campos baldios e não cultivados, em construir sedes de propriedades rurais com todos os acessórios exigidos, estábulos, celeiros etc. Os retornos do capital fixo, em quase todos os casos, são muito mais lentos do que os do capital circulante; e tais despesas, mesmo quando feitas com a máxima prudência e discernimento, geralmente só dão retorno ao empresário depois de muitos anos, período excessivamente longo para um banco. Sem dúvida, os comerciantes e outros empresários podem muito bem executar parte considerável de seus projetos com dinheiro emprestado. Se, porém, quiserem ser justos para com seus credores, neste caso seu capital próprio deve ser suficiente para garantir, se assim posso dizer, o capital desses credores; ou garantir que seja extremamente improvável que tais credores incorram em alguma perda, mesmo que o êxito do projeto fique bem aquém do esperado pelos planejadores. Mesmo com essa precaução, o dinheiro que é tomado em empréstimo e que supostamente só poderá ser reembolsado após decorridos vários anos, não deve ser tomado de um banco, mas deve ser emprestado, sob garantia de obrigação ou hipoteca, de pessoas particulares que se propõem a viver dos juros de seu dinheiro, por não quererem sofrer, elas mesmas, os incômodos de aplicar seu capital; e que, portanto, estão dispostas a emprestar este capital a pessoas de bom crédito com possibilidades de mantê-lo por vários anos. Com efeito, um banco que emprestasse seu dinheiro sem a despesa de papel selado, ou dos honorários advocatícios para garantir obrigações ou hipotecas, e que aceitasse reembolsos nos termos facilitados oferecidos pelos bancos escoceses, sem dúvida seria um credor muito indicado para tais comerciantes e empresários. Mas esses comerciantes e empresários seriam, certamente, devedores muito pouco indicados para tal banco. Faz agora mais de 25 anos que o papel-moeda emitido pelas 314
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diversas sociedades bancárias da Escócia equivalia plenamente ou era até um tanto superior àquilo que a circulação do país podia facilmente absorver e empregar. Tais bancos, portanto, deram por longo tempo toda assistência aos comerciantes e outros empresários da Escócia — o que é possível a bancos e banqueiros dar em consonância com seus próprios interesses. Haviam feito até algo mais. Haviam comercializado um pouco, arcando eles mesmos com aquela perda, ou pelo menos com aquela redução de lucro que, neste ramo específico de negócios, jamais deixa de ocorrer ao menor grau de supercomercialização. Entretanto, esses comerciantes e empresários, depois de receber tanta assistência dos bancos e banqueiros, desejavam ainda mais. Os bancos — assim pareciam pensar — poderiam ampliar seus créditos até quanto precisassem, sem incorrer em nenhuma outra despesa, afora algumas poucas resmas de papel. Queixavam-se da estreiteza de vistas e da covardia das diretorias dos bancos, que — segundo alegavam — se recusavam a ampliar seus créditos na proporção da extensão do comércio do país — entendendo, sem dúvida, por extensão do comércio do país, a ampliação de seus próprios projetos, além daquilo que eles mesmos tinham capacidade para executar, quer com seu próprio capital, quer com o que tinham de crédito para emprestar de particulares pelo costumeiro sistema de obrigações ou hipotecas. Pareciam imaginar que os bancos tinham a honrosa obrigação de suprir esta falta de dinheiro e de fornecer-lhes todo o capital que desejassem para comerciar. Os bancos, porém, tinham opinião diferente, e ao recusarem ampliar seus créditos, alguns desses comerciantes lançaram mão de um expediente que, durante algum tempo, atendeu a seus propósitos, embora acarretando uma despesa muito maior do que ocorreria se os bancos ampliassem ao máximo os créditos. Esse expediente outro não foi senão a bem conhecida prática de sacar e ressacar — recurso ao qual comerciantes menos avisados às vezes recorrem quando estão à beira da falência. A prática de levantar dinheiro desta forma era de há muito conhecida na Inglaterra, e parece ter sido muito comum no decurso da última guerra, quando os altos lucros do comércio constituíam uma grande tentação no sentido de fechar negócios em excesso. Da Inglaterra esta prática passou para a Escócia, onde, em proporção ao comércio muito limitado e devido à reduzida disponibilidade de capital no país, o sistema foi praticado com intensidade muito maior do que na Inglaterra. A prática de sacar e ressacar é tão conhecida de todos os homens de negócio, que poderia talvez parecer supérfluo deter-se nela. Mas, já que este livro pode cair nas mãos de muitas pessoas que não são homens de negócios, e já que os efeitos dessa prática sobre o comércio bancário talvez não sejam suficientemente conhecidos pelos próprios homens de negócio, tentarei explicá-la da maneira mais clara possível. Os hábitos comerciais implantados quando as leis bárbaras da Europa não garantiam o cumprimento das cláusulas dos contratos, e que durante o curso dos dois últimos séculos foram incorporados à legislação de todas as nações européias, têm dado privilégios tão ex315
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traordinários às letras de câmbio, que se costuma adiantar dinheiro mediante o aceite dessas letras, com muito mais rapidez do que através de qualquer outro tipo de títulos ou obrigações; isto, sobretudo, quando o vencimento das letras é de apenas 2 ou 3 meses após a data da emissão. Se, no vencimento do título, o aceitante não paga no próprio ato da apresentação, a partir deste momento ele entra em falência. O título é protestado e retorna ao sacador, o qual, se não o pagar imediatamente, também entra em falência. Se, antes de chegar o título às mãos da pessoa que o apresenta ao aceitante para pagamento, tivesse passado por várias outras pessoas, que houvessem adiantado sucessivamente, um ao outro, o valor do título em dinheiro ou em mercadorias, e se essas pessoas, para atestarem que cada uma delas tinha recebido esses valores, tivessem todas endossado o título — isto é, assinado seu nome no dorso do título — cada endossador, por sua vez, assume a responsabilidade e a obrigação, perante o proprietário do título, pelo valor expresso no mesmo, e se deixar de pagar, ele também, a partir daquele momento entra em falência. Embora o sacador, o aceitante e os endossadores do título sejam todos eles pessoas de crédito duvidoso; mesmo assim o curto prazo de vencimento da letra dá certa segurança ao seu proprietário. Embora todos eles tenham muita probabilidade de entrar em falência, é casual que isto ocorra com todos dentro de um prazo tão curto. A casa está para ruir — assim raciocina um viajante exausto; a casa não resistirá por muito tempo, mas só casualmente cairá esta noite; arriscarei, portanto, dormir nela esta noite. Suponhamos que o comerciante A, de Edimburgo, saca uma letra contra B, comerciante de Londres — letra esta com vencimento de dois meses após a data da emissão. Na realidade, o comerciante londrino B não deve nada a A, comerciante de Edimburgo; mas ele concorda em aceitar a letra de A, sob condição de que, antes do vencimento, ele possa ressacar contra A, em Edimburgo pela mesma soma e mais os juros e uma comissão, uma outra letra, letra esta que, também ela, terá vencimento dois meses após a emissão. Assim, antes de expirar os dois meses do vencimento da primeira letra, B ressaca esta letra contra A, comerciante de Edimburgo; este, novamente, antes de expirarem os dois meses do vencimento da segunda letra, emite uma segunda letra contra B, igualmente pagável dois meses após a data da emissão; e antes de expirarem esses dois meses deste terceiro, B saca outra letra contra A de Edimburgo, também ela com vencimento dois meses após a emissão. Essa prática, às vezes, estendeu-se não somente durante vários meses, mas até vários anos, com a letra sempre retornando a A em Edimburgo, com os juros e comissão acumulados de todos os títulos anteriores. Os juros eram de 5% ao ano e as comissões nunca ficavam abaixo de 0,5% em cada nova emissão. Repetindo-se esta comissão mais de seis vezes por ano, qualquer soma que A conseguisse levantar com este expediente necessariamente deveria custar-lhe um pouco mais de 8% ao ano, e às vezes muito mais, isto é, quando o preço da comissão subia, ou quando era obrigado a pagar 316
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juros compostos sobre os juros e a comissão de títulos anteriores. A esta prática deu-se o nome de levantar dinheiro mediante circulação. Em um país em que os lucros normais do capital na maioria dos projetos comerciais, supostamente oscilam entre 6 e 10%, deve ter sido uma especulação muito bem-sucedida, cujo retorno era capaz, não somente de cobrir a enorme despesa do empréstimo do dinheiro necessário para executar o projeto, mas também de garantir um bom excedente ao planejador. Muitos projetos de grande porte foram empreendidos, e executados durante vários anos, sem outro fundo a não ser o dinheiro recolhido dessa forma, com despesas tão elevadas. Sem dúvida, os comerciantes que empreendiam tais projetos tinham um visão nítida desse grande lucro em seus sonhos dourados. Ao acordarem do sonho, porém, no final dos projetos, ou mesmo antes, quando percebiam que já não tinham mais capacidade de levá-los adiante, muito raramente, segundo acredito, constatavam que o lucro sonhado correspondia à realidade.150 Quanto aos títulos emitidos por A em Edimburgo, contra B, em Londres, A regularmente os descontava dois meses antes de seu vencimento, em algum banco ou banqueiro de Edimburgo; e quanto aos títulos reemitidos por B em Londres contra A em Edimburgo, B também os descontava, com a mesma regularidade que A, no Banco da Inglaterra ou com alguns outros banqueiros em Londres. Todo o dinheiro adiantado contra a apresentação de tais letras circulantes era adiantado em Edimburgo em papel-moeda dos bancos escoceses e, em Londres, quando eram descontados no Banco da Inglaterra, no papel-moeda desse banco. Embora os títulos contra os quais esse papel-moeda era adian150 O método descrito no texto de forma alguma era o mais comum ou o mais dispendioso que esses aventureiros às vezes utilizavam para levantar dinheiro através da circulação. Acontecia com freqüência que A em Edimburgo possibilitava a B em Londres pagar a primeira letra de câmbio sacando, poucos dias antes do vencimento desta, uma segunda letra, com vencimento para três meses depois, contra o mesmo B em Londres. Essa letra, sendo pagável à sua própria ordem, A vendia-a em Edimburgo, em paridade de câmbio, e com esse dinheiro comprava títulos sobre Londres, pagáveis a vista à ordem de B, ao qual os enviava por correio. No final da última guerra, o câmbio entre Edimburgo e Londres apresentava muitas vezes uma defasagem de 3% em desfavor de Edimburgo, sendo esse o prêmio ou ágio que esses títulos a vista devem ter custado a A. Sendo essa transação repetida no mínimo quatro vezes por ano, e incluindo um encargo de comissão de no mínimo 0,5% em cada repetição, a transação deve ter custado a A, no mínimo, 14% ao ano. Em outras ocasiões, A possibilitava a B liberar a primeira letra de câmbio sacando, poucos dias antes do vencimento desta, uma segunda letra, com data de vencimento para dois meses depois, a uma terceira pessoa, C, por exemplo, em Londres. Essa outra letra era pagável à ordem de B, o qual após o aceite de C, a descontava em algum banco de Londres; e A possibilitava a C liquidá-la, sacando, alguns dias antes do vencimento desta, uma terceira letra, também ela com vencimento para dois meses depois, ora contra seu primeiro correspondente B, ora contra uma quarta ou quinta pessoa, D ou E, por exemplo. Essa terceira letra era pagável à ordem de C, o qual, tão logo ela fosse aceita, a descontava da mesma forma em algum banco londrino. Sendo tais operações repetidas no mínimo seis vezes por ano, e sendo a comissão sobre cada repetição no mínimo 0,5%, juntamente com os juros de lei de 5%, esse método de levantar dinheiro, da mesma forma como o descrito no texto, deve ter custado a A algo mais do que 8%. Todavia, pelo fato de se poupar o câmbio entre Edimburgo e Londres, esse método era pouco menos dispendioso do que o mencionado na primeira parte desta nota; nesse caso, porém, exigia-se que a pessoa tivesse bom crédito em mais de um estabelecimento em Londres, condição esta que muitos desses aventureiros não conseguiam cumprir. 317
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tado fossem todos reembolsados, por sua vez, na data do vencimento, nunca o valor que tinha sido realmente adiantado contra a primeira letra voltava aos bancos que haviam adiantado esse dinheiro; isso porque, antes do vencimento de cada título, sempre se emitia um outro com uma quantia um pouco maior do que a letra cujo vencimento era iminente, e o desconto desta outra letra era essencialmente necessário para o pagamento daquele em vias de vencimento. Portanto, este pagamento era totalmente fictício. A torrente que uma vez saía necessariamente dos cofres dos bancos, através dessas letras de câmbio circulantes, nunca era substituída por qualquer torrente real que entrasse nos cofres. O papel-moeda emitido para cobrir essas letras de câmbio circulantes, representava, em muitos casos, o total do fundo necessário para executar algum amplo e extenso projeto de agricultura, comércio ou manufatura; e não somente para aquela parte da soma total que, se não tivesse havido emissão de papel-moeda, o autor do projeto teria sido obrigado a conservar consigo, sem empregá-la, mantendo-a disponível para eventuais pagamentos solicitados. Por conseguinte, a maior parte deste papel-moeda ultrapassava o valor do ouro e prata que teria circulado efetivamente no país, se não tivesse ocorrido emissão de papel-moeda. Portanto, estava além daquilo que a circulação no país tinha condições de absorver e empregar com facilidade e assim voltava imediatamente aos bancos, a fim de ser trocado por ouro e prata, que se podia encontrar quando se desejasse. Era um capital que esses autores de projetos muito habilmente conseguiam tomar emprestado dos bancos, não somente sem o conhecimento ou o consentimento deliberado desses últimos, mas, durante algum tempo, talvez, até sem que os bancos sequer suspeitassem haver efetivamente adiantado este dinheiro. Quando duas pessoas continuamente sacam e ressacam uma contra a outra, descontam seus títulos sempre no mesmo banqueiro, este imediatamente descobrirá o truque, constatando que as duas estão comerciando não com capital próprio mas com o capital que o banqueiro lhes adianta. Todavia, não é tão fácil descobrir isto quando as duas descontam seus títulos ora num banco ora em outro, e quando elas não sacam e ressacam sempre uma contra a outra, mas eventualmente alargam o círculo, englobando na operação outros autores de projetos, que acham interessante ajudar-se entre si na prática deste método de levantar dinheiro, contribuindo para que seja o mais difícil possível distinguir entre uma letra de câmbio real e uma fictícia, ou seja, entre um título emitido por um credor real contra um devedor real, e um título para o qual não havia propriamente nenhum credor real a não ser o banco que o descontou, nem nenhum devedor real a não ser o autor do projeto, que utilizava o dinheiro. E mesmo que um banco descobrisse este artifício, às vezes isso poderia acontecer quando já era muito tarde, e já havia descontado os títulos desses autores de projetos em tal quantidade que, se deixasse de descontar outros títulos, talvez pudesse levá-los todos à falência, e arruinando-os assim, talvez 318
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se arruinasse a si próprio. Portanto, em tal situação, o banco, atendendo a seu próprio interesse e segurança, podia considerar necessário continuar a descontar tais títulos fictícios por algum tempo, empenhando-se, contudo, gradualmente, em dificultar cada vez mais o desconto deles, a fim de forçar progressivamente os responsáveis de tais projetos a recorrerem a outros bancos ou a outros métodos de levantar dinheiro, de sorte que o referido banco conseguisse sair deste círculo, o mais cedo possível. Efetivamente, as dificuldades que o Banco da Inglaterra, os principais banqueiros de Londres e mesmo os bancos mais prudentes da Escócia começaram a opor depois de certo tempo — e quando já haviam avançado demais — para descontar tais títulos fictícios, não somente alarmaram esses empresários, senão que os irritaram ao extremo. Alegavam que sua calamidade — cuja causa imediata foi, sem dúvida, essa reserva prudente e necessária por parte dos bancos — era a calamidade do país, e essa calamidade, diziam eles, devia-se à ignorância, à pusilanimidade e à má conduta dos bancos, que não davam ajuda suficientemente generosa à iniciativa daqueles que tudo faziam para embelezar, melhorar e enriquecer o país. Era dever dos bancos — pareciam pensar — continuar a conceder empréstimos, por quanto tempo e na medida que eles mesmos desejassem. Entretanto, os bancos, ao recusarem conceder mais crédito àqueles aos quais já haviam adiantado dinheiro em excesso, adotaram o único método viável para salvar seu próprio crédito ou o crédito público do país. Em meio a esse clamor e a essa calamidade, criou-se na Escócia um novo banco, com a finalidade expressa de aliviar a calamidade do país. O propósito era generoso; mas a execução foi imprudente, sendo que talvez não se tenha compreendido bem a natureza e as causas da calamidade que era preciso remediar. Esse banco era mais liberal do que jamais o havia sido qualquer outro banco anteriormente, tanto na concessão de contas de caixa como no desconto de letras de câmbio. Quanto a estas últimas, parece ter raramente feito a distinção entre títulos reais e títulos circulantes, descontando todos indistintamente. Era princípio confesso desse banco fazer adiantamento com qualquer garantia razoável, o capital integral a ser investido em melhorias cujos retornos são os mais lentos e demorados, tais como as melhorias da terra. Chegou-se a afirmar que a principal função pública para a qual foi criado esse banco era promover tais melhorias. Pela sua liberalidade em conceder contas de caixa e em descontar letras de câmbio, sem dúvida, esse banco emitiu grandes quantidades de notas bancárias. Mas, já que a maioria dessas notas ultrapassava aquilo que a circulação no país tinha condições de absorver e empregar com facilidade, elas voltavam ao banco para serem trocadas por dinheiro em ouro e prata, com a mesma rapidez com que as notas eram emitidas. Seus cofres nunca estavam bem abastecidos. O capital deste banco, subscrito em duas ocasiões diferentes, ascendia a 160 mil libras, sendo que apenas 80% foram pagos. A soma deve ter sido paga em várias prestações. Grande parte dos proprietários, ao pagarem a primeira prestação, abri319
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ram uma conta de caixa no banco; e os diretores, acreditando-se obrigados a tratar seus acionistas com a mesma liberalidade que dispensavam a todas as outras pessoas, permitiram a muitos deles tomar emprestado do banco, através de sua conta de caixa, o que elas pagaram ao banco com todas as suas prestações subseqüentes. Tais pagamentos feitos pelos acionistas, portanto, não faziam outra coisa senão repor em um cofre aquilo que, pouco antes, havia sido retirado de outro. Mas, mesmo que os cofres desse banco fossem reabastecidos sempre tão bem, sua circulação excessiva deve tê-los esvaziado mais rapidamente do que poderiam ser abastecidos por qualquer outro expediente que não fosse a prática ruinosa de sacar sobre Londres e, no vencimento da letra, pagando-a, juntamente com juros e comissão, com outra emissão contra Londres. Tendo seus cofres sido tão mal abastecidos, afirma-se que o banco foi forçado a apelar para esse recurso poucos meses depois de começar a operar. As terras dos proprietários deste banco valiam vários milhões, e, no ato de assinarem o contrato original de acionistas do banco, foram efetivamente penhoradas como aval para atender a todos os compromissos e obrigações do banco. Em virtude do vasto crédito representado por uma penhora tão grande de bens, apesar da conduta excessivamente liberal do banco, ele teve condições de operar durante mais de dois anos. Quando foi obrigado a fechar suas portas ele havia colocado em circulação cerca de 200 mil libras em notas de banco. A fim de dar sustentação à circulação dessas notas bancárias, que continuamente retornavam ao banco com a mesma rapidez com que eram emitidas, o banco continuamente sacava letras de câmbio sobre Londres, cujo número e valor estavam aumentando continuamente, sendo que, quando o banco cessou de operar, ascendiam a mais de 600 mil libras. Por conseguinte, este banco, em pouco mais de dois anos de operação, emprestou a várias e diferentes pessoas mais de 800 mil libras, a 5%. Sobre as 200 mil libras que o banco fez circular em notas bancárias, esses 5% poderiam talvez ser considerados como lucro líquido, sem qualquer outra dedução a não ser as de despesas da administração. Entretanto, sobre as mais de 600 mil libras, pelas quais o banco continuamente emitia letras de câmbio sobre Londres, ele estava pagando, em forma de juros e comissões, mais de 8%, e portanto perdendo mais de 3% sobre mais de 3/4 de todos os seus negócios. As operações desse banco parecem ter produzido efeitos totalmente contrários aos desejados pelas pessoas que o planejaram e dirigiram. Essas pessoas parecem ter pretendido apoiar as iniciativas pioneiras como elas consideravam as que estavam sendo tomadas em diversas regiões do país; ao mesmo tempo, queriam reservar para si todas as operações bancárias, suplantar todos os outros bancos escoceses, sobretudo os estabelecidos em Edimburgo, cuja relutância em descontar letras de câmbio era motivo de escândalo. Sem dúvida, o referido banco deu algum apoio temporário àqueles planejadores, possibilitando-lhes executar seus projetos durante cerca de dois anos a 320
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mais do que poderiam de outra forma ter agüentado. Isto, porém, não fez outra coisa senão enterrá-los em dívidas tais, que quando a ruína chegou, ela se abateu com tanto mais peso tanto sobre eles quanto sobre seus credores. Portanto, as operações desse banco, ao invés de aliviarem, agravaram a longo prazo a má situação a que esses empresários levaram a si próprios e a seu país. Teria sido muito melhor, tanto para eles como para seus credores e seu país, se a maioria deles tivesse sido obrigada a paralisar suas atividades dois anos antes do que realmente aconteceu. No entanto, o alívio temporário que o referido banco deu a esses planejadores constituiu um alívio real e permanente para os outros bancos escoceses. Com efeito, todos os que comerciavam com letras de câmbio circulantes — letras essas que os outros bancos tanto relutavam em descontar — recorriam a este novo banco, onde eram recebidos de braços abertos. Por isso, os outros bancos puderam, com grande facilidade, sair desse círculo fatal, do qual de outra forma não teriam podido evadir-se sem incorrer em perdas consideráveis e talvez até parte de seu crédito. A longo prazo, portanto, as operações do citado banco acabaram agravando a calamidade nacional para cujo alívio ele havia sido criado; na realidade, livraram de uma grande crise precisamente aqueles bancos rivais que pretendia suplantar. Quando o referido banco iniciou suas operações, alguns pensavam que, por mais que seus cofres se esvaziassem rapidamente, ele poderia facilmente reabastecê-los, levantando dinheiro sobre as garantias das pessoas às quais o banco havia adiantado seu dinheiro em papel. Segundo acredito, a experiência logo os convenceu de que este método de levantar dinheiro era excessivamente lento para atender a seus propósitos; e de que os cofres, que inicialmente estavam tão mal abastecidos e que se esvaziavam com tanta rapidez, não poderiam ser reabastecidos de outra forma senão pelo método danoso de sacar letras sobre Londres e, no ato do vencimento dessas letras, pagando-as por outro saque sobre o mesmo local, com juros e comissão acumulados. Entretanto, embora através desse método o banco tivesse condições de levantar dinheiro com tanta rapidez quanto o desejava, todavia, em vez de auferir lucro, deve ter sofrido uma perda em cada operação deste gênero; de sorte que, a longo prazo, necessariamente deve ter-se arruinado como sociedade mercantil embora talvez não tão cedo como teria acontecido, recorrendo à dispendiosa prática de sacar e ressacar. Mesmo assim, o banco não poderia ganhar nada com os juros do papel que, ultrapassando aquilo que a circulação no país podia absorver e empregar, voltava ao banco, para ser trocado por ouro e prata, com a mesma rapidez com a qual era emitido, e para cujo pagamento o próprio banco era continuamente obrigado a tomar empréstimos em dinheiro. Ao contrário, toda a despesa dessa tomada de empréstimos, para empregar agentes para procurar pessoas que tivessem dinheiro para emprestar, para negociar com essas pessoas e para sacar a própria obrigação, deve ter recaído sobre o banco, representando uma perda ainda 321
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mais evidente no equilíbrio de suas contas. O projeto de reabastecer seus cofres dessa forma pode ser comparado ao de uma pessoa que tivesse um tanque d’água do qual saísse continuamente uma torrente, sem que nele entrasse constantemente outra torrente, sendo que a pessoa se propusesse a manter a água do tanque sempre ao mesmo nível, empregando uma série de pessoas que continuamente fossem com baldes a um poço a algumas milhas de distância, a fim de trazerem água para reabastecer seu tanque. Mas mesmo que essa operação se comprovasse não somente praticável e até rendosa para o banco como sociedade mercantil, o país não poderia auferir disto ganho algum; pelo contrário, teria sofrido uma perda muito considerável. Essa operação não poderia aumentar em nada a quantidade de dinheiro a ser emprestado. O máximo que poderia fazer seria transformar esse banco numa espécie de agência de empréstimos para todo o país. Os que desejassem tomar empréstimos deveriam solicitá-los a esse banco, ao invés de recorrer a pessoas particulares que lhes teriam emprestado o dinheiro. Mas um banco que empresta dinheiro, talvez a 500 pessoas, sobre a maioria das quais os diretores podem conhecer muito pouco, não tem probabilidade de ter mais discernimento na seleção dos devedores do que um particular que empresta dinheiro a umas poucas pessoas que conhece e em cuja conduta sóbria e moderada tem boas razões para confiar. Os devedores de tal banco, sobre cuja conduta fiz alguma referência, provavelmente seriam planejadores visionários, pelo menos a maioria desses sacadores e ressacadores de letras de câmbio circulantes, que aplicariam o dinheiro em projetos extravagantes, que, não obstante toda a ajuda que se lhes desse, jamais seriam capazes provavelmente de levar a termo, e que, mesmo que os levassem, jamais reembolsariam a despesa que tinham realmente custado, e nunca seriam capazes de conseguir um fundo suficiente para manter o contingente de mão-de-obra igual àquele que tinha sido empregado. Ao contrário, os devedores sóbrios e moderados de pessoas particulares teriam mais probabilidade de empregar o dinheiro emprestado em projetos sóbrios, proporcionais a seu capital, projetos que, embora não tão grandiosos e mirabolantes, seriam mais sólidos e rentáveis e, assim, reembolsariam com grande lucro tudo o que se investira neles e que, portanto, assegurariam um fundo capaz de manter um contingente de mão-de-obra muito maior do que a efetivamente empregada no projeto. Portanto, o sucesso de tal operação, sem aumentar em nada o capital do país, não teria feito outra coisa senão transferir grande parte do mesmo de empreendimentos prudentes e rentáveis para empreendimentos imprudentes e não lucrativos. O célebre Sr. Law era de opinião de que a Escócia definhava por falta de dinheiro; e propunha-se a remediar essa falta de dinheiro, criando um banco de caráter particular, o qual, em sua concepção, deveria emitir papel-moeda até a soma de valor de todas as terras existentes no país. O Parlamento da Escócia não considerou aconselhável aceitar o projeto, quando Law o propôs pela primeira vez. Mas 322
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ele foi mais tarde adotado, com algumas variações, pelo Duque de Orleans, na época, regente da França. A idéia da possibilidade de multiplicar o papel-moeda quase indefinidamente constituiu o fundamento real do que se chama o esquema Mississípi, o projeto mais extravagante tanto na área bancária quanto na especulação da bolsa que o mundo talvez já tenha conhecido. As diversas operações desse esquema são explicadas com tantos detalhes, clareza, ordem e precisão pelo Sr. Du Verney, em seu Examination of the Political Reflections upon Commerce and Finances of Mr. Du Tot, que não me deterei sobre o assunto. Os princípios sobre os quais se fundava o esquema são explicados pelo próprio Sr. Law, em uma exposição sobre o dinheiro e o comércio, que publicou na Escócia ao propor pela primeira vez seu projeto. As idéias maravilhosas mas visionárias apresentadas nesta e em algumas outras obras, sobre os mesmos princípios, continuam a impressionar muitas pessoas, tendo talvez contribuído, em parte, para o excesso de instituições bancárias, do qual ultimamente se tem lamentado, tanto na Escócia como em outros lugares. O Banco da Inglaterra é o maior banco de circulação na Europa. Foi fundado em decorrência de uma lei do Parlamento, por uma carta patente do selo real, em data de 27 de julho de 1694. Naquela época, o banco emprestou ao governo a soma de 1,2 milhão de libras com uma anuidade de 100 mil libras, correspondente a 96 mil libras de juros anuais, à taxa de 8%, e a 4 mil libras anuais por despesas administrativas. Somos levados a crer que o crédito do novo governo, criado pela Revolução, deve ter sido muito baixo, já que ele foi obrigado a levantar um empréstimo a juros tão elevados. Em 1697, permitiu-se ao banco aumentar seu capital por ações com um enxerto de £ 1 001 171 10 s. Seu capital por ações, portanto, ascendia então a £ 2 201 171 10 s. Segundo se afirma, essa injeção de capital foi para reforçar o crédito do banco junto ao público. Em 1696, os registros de contas tinham um desconto de 40,50 e 60% e as notas bancárias de 20%.151 Durante a grande recunhagem da prata, que se realizou nessa época, o banco considerou conveniente interromper o pagamento de suas notas, o que necessariamente acarretou o descrédito das mesmas. Em cumprimento do Decreto 7º da Rainha Ana, capítulo VII, o banco adiantou e pagou ao erário público a soma de 400 mil libras completando ao todo a soma de 1,6 milhões de libras, que tinha adiantado sobre sua anuidade inicial de 96 mil libras de juros e 4 mil libras por despesas administrativas. Em 1708, portanto, o crédito do Governo era tão bom quanto o de pessoas particulares, já que ele podia tomar empréstimos a 6% de juros, taxa legal e de mercado normal da época. Em obediência ao mesmo decreto, o banco cancelou letras do Tesouro Público no montante de £ 1 775 027 17 s 10 1/2 d a 6% de juros e ao 151 POSTLETHWAITE, James. History of the Public Revenue. p. 301. 323
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mesmo tempo obteve permissão para aceitar subscrições a fim de duplicar seu capital. Em 1708, portanto, o capital do banco era de 4 402 343 libras, tendo adiantado ao Governo a soma de £ 3 375 027 17 s 10 1/2 d. Através de uma solicitação de 15% em 1709, foi pago, e feito capital de £ 656 204 1 s 9 d e, de outra solicitação de 10% em 1710, houve outro de £ 501 448 12 s 11 d. Em conseqüência dessas duas solicitações, pois, o capital do banco ascendeu a £ 5 559 995 14 s 8 d. Em obediência ao Decreto 3º de Jorge I, capítulo 8, o banco entregou 2 milhões de letras do Tesouro Público para serem canceladas. Nessa época, portanto, havia adiantado ao Governo £ 5 375 027 17 s 10 d. Em cumprimento ao Decreto 8º de Jorge I, capítulo 21, o banco comprou da South Sea Company capital no montante de 4 milhões de libras; e em 1722, em conseqüência das subscrições feitas para possibilitar-lhe fazer esta compra, seu capital por ações foi acrescido de 3,4 milhões de libras. Nessa época, portanto, o banco havia adiantado ao público £ 9 375 027 17 s 10 1/2 d, ao passo que seu capital por ações era de apenas £ 8 959 995 14 s 8 d. Foi nessa ocasião que a quantia adiantada pelo banco ao público, e pela qual recebia juros, pela primeira vez começou a superar seu capital por ações, isto é, a soma pela qual pagava dividendos aos proprietários do capital por ações; em outros termos, foi a primeira vez que o banco passou a ter um capital indiviso, além de seu capital dividido. A partir de então, o banco passou a ter sempre um capital indiviso do mesmo tipo. Em 1746, o banco havia, em diversas ocasiões, adiantado ao público 11 686 800 libras e seu capital dividido havia aumentado, através de várias solicitações e subscrições, para 10,78 milhões de libras. Desde então, a situação dessas duas quantias continuou a ser a mesma. Em cumprimento do Decreto 4º de Jorge III, capítulo 25, o banco concordou em pagar ao Governo, para renovação de sua patente, 110 mil libras sem juros ou reembolso. Essa soma, portanto, não aumentou nenhuma dessas duas quantias. Os dividendos pagos pelo banco têm variado de acordo com as flutuações da taxa de juros que tem recebido em épocas diversas, pelo dinheiro adiantado ao público, bem como em virtude de outras circunstâncias. Essa taxa de juros foi sendo gradualmente reduzida de 8 para 3%. Durante alguns anos os dividendos pagos pelo banco foram de 5,5%. A estabilidade do Banco da Inglaterra é igual à do Governo britânico. Tudo o que foi adiantado ao Estado deve figurar na conta de perdas antes que seus credores possam sofrer qualquer perda. Nenhuma outra instituição bancária na Inglaterra pode ser criada por uma lei do Parlamento, nem pode ter mais de seis membros. Ele age, não somente como qualquer banco comum, mas como uma grande máquina do Estado. Recebe e paga a maior parte das anuidades devidas aos credores do Estado, coloca em circulação títulos do Tesouro e adianta ao Governo o montante anual dos impostos territoriais e taxas sobre o malte, dinheiro que muitas vezes só é pago anos depois. Nessas diversas operações, em virtude de suas obrigações para com o Estado, 324
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ele às vezes pode ser obrigado a emitir papel-moeda em excesso, sem culpa de seus diretores. Da mesma forma desconta letras mercantis, e, em várias ocasiões, teve de sustentar o crédito dos principais bancos, não somente da Inglaterra, como também de Hamburgo e da Holanda. Certa ocasião, em 1763, afirma-se ter adiantado, em uma semana, cerca de 1,6 milhão de libras para esse fim, grande parte dessa soma em lingotes de ouro. Não posso assegurar, porém, que o empréstimo tenha atingido esse montante ou o período tenha sido tão curto. Em outras ocasiões, esse grande banco foi constrangido a pagar em dinheiro contado. Não é aumentando o capital do país, mas tornando ativa e produtiva uma parcela maior desse capital, que as operações bancárias mais acertadas podem desenvolver a indústria do país. A parte de seu capital que um agente financeiro é obrigado a manter consigo, sem aplicar, e em forma de dinheiro disponível para atender a eventuais pedidos, permanece como capital ocioso e, enquanto permanecer assim, nada produz para ele nem para o país. São as operações bancárias criteriosas que permitem ao banco converter esse capital ocioso em capital ativo e produtivo; em materiais com que trabalhar; em instrumentos de trabalho e em suprimentos e mantimentos para a manutenção de mão-de-obra; em capital que produza algo para si próprio e para o país. O dinheiro em ouro e em prata que circula em qualquer país, e através do qual o produto de sua terra e de seu trabalho circula e é distribuído aos consumidores próprios, é, da mesma forma que o dinheiro disponível do agente financeiro, capital ocioso. Trata-se de uma parcela altamente valiosa do capital do país, mas que nada produz para ele. As operações bancárias criteriosas, substituindo grande parte desse ouro e dessa prata por papel-moeda, possibilitam ao país converter grande parte deste capital ocioso em capital ativo e produtivo, isto é, em capital que produza algo para o país. O dinheiro em ouro e prata que circula em qualquer país pode com muita propriedade ser comparado a uma grande rodovia, a qual, embora faça circular e transporte ao mercado toda a forragem e os cereais do país, não produz, ela mesma, a mínima parcela desses produtos. As operações bancárias criteriosas, pelo fato de proporcionar uma espécie de rodovia suspensa no ar — se me for permitida metáfora tão extremada —, possibilita ao país, digamos assim, converter grande parte de suas rodovias em boas pastagens e em campos de cereais, aumentando consideravelmente desta forma a produção anual de sua terra e de seu trabalho. Importa reconhecer, porém, que o comércio e a indústria do país, embora possam ser de certo modo ampliados por essas operações bancárias, no global não desfrutam de tanta segurança, já que estão, por assim dizer, suspensas nas asas de Dédalo do papel-moeda, viajam sobre o solo firme do ouro e da prata. Além dos acidentes aos quais ficam expostos em razão da inabilidade dos administradores desse papel-moeda, estão sujeitos a vários outros, que nem a prudência nem a habilidade desses administradores são capazes de eliminar. Uma guerra malsucedida, por exemplo, na qual o inimigo se apos325
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sasse do capital e, conseqüentemente, do tesouro que dá sustentação ao crédito do papel-moeda, causaria uma confusão muito maior em um país em que toda a circulação se operasse através de papel-moeda, do que em um país no qual a maior parte dela fosse feita em moedas de ouro e prata. No momento em que o instrumento usual de comércio perdesse seu valor, não se poderia fazer trocas senão por escambo ou por crédito. Se todas as taxas tivessem sido usualmente pagas em papel-moeda, o príncipe não teria mais com que pagar suas tropas ou reabastecer seus depósitos; e a situação do país seria muito mais irreparável do que se a maior parte da sua circulação consistisse em ouro e prata. Por essa razão, um príncipe preocupado em manter seus domínios sempre no estado em que tenha maiores condições de defendê-los com a máxima facilidade, deve precaver-se, não somente contra o perigo da multiplicação excessiva de papel-moeda, a qual arruína os próprios bancos que a emitem, mas também contra aquela multiplicação de papel-moeda que lhes possibilita realizar com ele a maior parte da circulação do país. Pode-se dizer que a circulação de qualquer país se divide em dois diferentes ramos: a circulação entre os próprios comerciantes, e a circulação entre os comerciantes e os consumidores. Embora as mesmas unidades de dinheiro em papel ou em metal possam ser às vezes empregadas em uma circulação e às vezes na outra, todavia, já que constantemente ocorre que as duas se efetuam ao mesmo tempo, cada qual exige certo capital em dinheiro de um ou outro tipo para se efetivar. O valor das mercadorias que circulam entre os diversos comerciantes nunca pode superar o das que circulam entre os comerciantes e os consumidores; tudo quanto é comprado pelos comerciantes destina-se, em última análise, a ser vendido aos consumidores. A circulação entre os comerciantes, pelo fato de se efetuar no atacado, geralmente exige uma soma bastante elevada para cada transação específica. Ao contrário, a circulação entre os comerciantes e os consumidores, já que é efetuada geralmente no varejo, muitas vezes requer apenas somas muito pequenas, sendo que com freqüência basta 1 xelim, ou até 1/2 pêni. Mas quantias pequenas circulam com rapidez muito maior do que as grandes. Um xelim muda de dono com mais facilidade do que 1 guinéu e uma moeda de 1/2 pêni, com mais freqüência do que 1 xelim. Por isso, embora as compras anuais de todos os consumidores sejam no mínimo iguais em valor às de todos os comerciantes, comumente elas podem efetuar-se com uma quantidade muito menor de dinheiro; as mesmas peças, circulando com maior rapidez, servem como instrumento de muito mais compras num caso do que no outro. O papel-moeda pode ser regulado de tal forma que se limite basicamente seu uso à circulação entre os diversos comerciantes, ou então, seu uso se estenda também a grande parte daquela entre os comerciantes e os consumidores. Onde não circulam notas bancárias de valor inferior a 10 libras como em Londres, o papel-moeda limita-se basicamente à circulação entre os comerciantes. Quando uma cédula bancária 326
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de 10 libras chega às mãos de um consumidor, ele geralmente é obrigado a trocá-la na primeira loja em que tiver que comprar mercadorias no valor de 5 xelins, de sorte que ela muitas vezes retorna às mãos do comerciante antes que o consumidor gaste a quadragésima parte do dinheiro. Onde cédulas bancárias são emitidas em somas tão pequenas como de 20 xelins, como na Escócia, o papel-moeda é utilizado também em considerável parte da circulação entre comerciantes e consumidores. Antes da lei do Parlamento que suspendeu a circulação de notas de 10 e 5 xelins, o papel-moeda respondia ainda pela maior parte da circulação entre comerciantes e consumidores. Nos dinheiros em circulação da América do Norte o papel era comumente emitido em soma tão diminuta como 1 xelim, e englobava quase que o total dessa circulação. Em alguns papéis-moeda em circulação no Yorkshire, sua emissão foi até no valor irrelevante de 6 pence. Onde a emissão de cédulas bancárias de valor mínimo é permitida e comumente praticada, possibilita-se e encoraja-se muitas pessoas de condições modestas a se tornar banqueiros. De uma pessoa cuja nota promissória de 5 libras ou mesmo de 20 xelins fosse rejeitada por todo mundo, essa nota seria recebida sem escrúpulos quando emitida no valor irrelevante de 6 pence. Entretanto, as falências freqüentes, às quais devem estar sujeitos os banqueiros em situação precária, podem gerar um inconveniente muito grande, e às vezes até uma calamidade imensa para muitas pessoas pobres que tivessem recebido suas notas promissórias em pagamento. Talvez fosse melhor que em nenhuma parte do reino se emitissem cédulas de valor abaixo de 5 libras. Nesse caso, o uso de papel-moeda provavelmente ficasse circunscrito, em todo o território do reino, à circulação entre os vários comerciantes, como ocorre atualmente em Londres, onde não se emitem cédulas de valor abaixo de 10 libras, uma vez que, na maioria das regiões do reino, 5 libras representam uma quantia que, embora compre talvez pouco mais da metade da quantidade de mercadorias, é tão considerada e tão raramente gasta totalmente de uma vez, quanto 10 libras nos intensos gastos de Londres. Cumpre observar que, onde o papel-moeda está praticamente limitado à circulação entre os próprios comerciantes, como no caso de Londres, há sempre muito ouro e prata. Em contrapartida, o papelmoeda encontra amplo uso na circulação entre comerciantes e consumidores, como na Escócia, e ainda mais na América do Norte, e acaba expulsando quase inteiramente do país o ouro e a prata, já que quase todas as transações comuns de seu comércio interno são feitas em papel. A supressão de notas bancárias de 10 e 5 xelins remediou de certa forma a escassez de ouro e prata na Escócia, e a supressão das notas de 20 xelins provavelmente a aliviaria ainda mais. Pelo que se diz, esses metais se tornaram mais abundantes na América, após a supressão de alguns de seus papéis-moeda em circulação. Afirma-se, também, terem sido eles mais abundantes antes da instituição desse meio circulante. 327
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Embora o papel-moeda devesse ficar muito mais circunscrito à circulação entre os próprios comerciantes, os bancos e banqueiros poderiam ainda estar em condições de dispensar mais ou menos a mesma assistência à indústria e ao comércio do país, como tinham feito quando o papel-moeda era quase a única moeda em circulação. O dinheiro disponível que um comerciante é obrigado a conservar consigo para atender a pagamentos ocasionais é totalmente destinado à circulação entre ele e outros comerciantes, dos quais ele compra mercadorias. Esse comerciante não tem oportunidade de conservar consigo dinheiro disponível para a circulação entre ele próprio e seus consumidores, que são seus clientes e que lhe trazem dinheiro disponível ao invés de tomar dele qualquer soma. Embora, portanto, não se permitisse emitir qualquer papel-moeda, a não ser em quantias tais que se circunscrevesse em certa medida à circulação entre os comerciantes, ainda assim, seja em parte para o desconto de letras de câmbio reais, seja também para emprestar através de contas de caixa, os bancos e banqueiros poderiam ainda estar em condições de liberar a maior parte desses comerciantes da necessidade de conservar uma parte considerável de seu capital sob a forma de dinheiro não aplicado e disponível para atender a pedidos ocasionais. Poderiam ainda estar em condições de dispensar a máxima ajuda que os bancos e banqueiros podem, com justeza, dar a todos os comerciantes. Poder-se-á alegar que impedir particulares de receber em pagamento as notas promissórias de um banqueiro, qualquer soma que fosse, grande ou pequena, quando estão dispostos a aceitá-las, ou impedir um banqueiro de emitir tais notas quando todos os seus vizinhos desejam aceitá-las, é uma violação manifesta da liberdade natural, que constitui o próprio objetivo da lei, não infringir, mas apoiar. Sem dúvida, tais regulamentos podem ser considerados sob certo aspecto uma violação da liberdade natural. Todavia, tais atos de liberdade natural de alguns poucos indivíduos, pelo fato de poderem representar um risco para a segurança de toda a sociedade, são e devem ser restringidos pelas leis de todos os governos; tanto dos países mais livres como dos mais despóticos. A obrigação de erguer muros refratários, visando a impedir a propagação de um incêndio, constitui uma violação da liberdade natural, exatamente do mesmo tipo dos regulamentos do comércio bancário aqui propostos. O papel-moeda que consiste em notas bancárias, emitidas por pessoas de crédito indiscutível, e pagáveis incondicionalmente quando cobradas, e na realidade sempre pagas quando apresentadas, tem sob todos os aspectos, valor igual ao do dinheiro em ouro e prata, já que a qualquer momento pode ser trocado por ouro e prata. Tudo o que se compra ou se vende com tal papel-moeda deve necessariamente ser comprado ou vendido tão barato como se fosse com ouro e prata. Tem-se alegado que o aumento de papel-moeda, por aumentar a quantidade e conseqüentemente diminuir o valor de todo o dinheiro em circulação, necessariamente aumenta o preço das mercadorias em 328
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dinheiro. Entretanto, uma vez que a quantidade de ouro e prata que é retirada do dinheiro em circulação sempre é igual à quantidade de papel acrescentada à mesma, o papel-moeda não aumenta necessariamente toda a quantidade do dinheiro em circulação. Desde o início do século passado até hoje, os mantimentos nunca foram mais baratos na Escócia do que em 1759, embora, nesse ano, devido à circulação de células de 10 e de 5 xelins, houvesse no país mais papel-moeda do que atualmente. A proporção entre o preço dos mantimentos na Escócia e o preço dos mantimentos na Inglaterra é hoje a mesma que antes da grande proliferação de instituições bancárias na Escócia. Na maioria das vezes, o trigo é tão extremamente barato na Inglaterra como na França, embora haja uma grande quantidade de papel-moeda na Inglaterra e muito pouca na França. Em 1751 e 1752, quando o Sr. Hume publicou seus Political Discourses, e logo após a grande proliferação de papel-moeda na Escócia, houve uma alta muito sensível do preço dos mantimentos, provavelmente devido às intempéries, e não em razão da multiplicação do papel-moeda. Outra seria realmente a situação, se o papel-moeda consistisse em notas promissórias, cujo pagamento imediato dependesse, sob qualquer aspecto, da boa vontade dos seus emitentes ou de uma condição que o portador das notas nem sempre pudesse cumprir; ou então, de que o pagamento não fosse exigível a não ser depois de certo número de anos, e que durante esse tempo não rendesse juros. Indubitavelmente, o papel-moeda cairia mais ou menos abaixo do valor da prata, caso a dificuldade ou incerteza de obter pagamento imediato fosse supostamente maior ou menor; ou de acordo com o maior ou menor lapso de tempo em que o pagamento fosse exigível. Alguns anos atrás, as diversas instituições bancárias da Escócia adotaram a prática de inserir em suas notas bancárias o que denominavam cláusula opcional pela qual prometiam pagamento ao portador tão logo a nota fosse apresentada, ou, por opção dos diretores do banco, somente seis meses após a apresentação, juntamente com os juros de lei pelos seis meses transcorridos. Por vezes, os diretores de alguns bancos valiam-se dessa cláusula opcional, e às vezes ameaçavam os que exigiam ouro e prata em troca de um grande número de suas notas, de que se aproveitariam, a menos que os solicitantes se contentassem com apenas parte do que exigiam. As notas promissórias desses bancos constituíam decididamente na época a maior parte do dinheiro em circulação da Escócia, que essa incerteza de pagamento necessariamente aviltou, pondo-as abaixo do valor do dinheiro de ouro e prata. Enquanto continuava esse abuso (que prevaleceu sobretudo em 1762, 1763 e 1764), quando entre Londres e Carlisle havia paridade de câmbio, entre Londres e Dumfries o câmbio acusava às vezes uma diferença de 4% em desfavor de Dumfries, embora essa cidade não diste 30 milhas de Carlisle. É que em Carlisle os títulos eram pagos em ouro e prata, ao passo que em Dumfries eram pagos em notas de bancos escoceses, e a incerteza em trocar essas notas por moedas de ouro e 329
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prata fazia com que o valor das mesmas fosse 4% inferior ao da moeda. A mesma lei do Parlamento que suprimiu as cédulas de 10 e 5 xelins suprimiu também essa cláusula opcional, restaurando assim o câmbio entre a Inglaterra e a Escócia à sua taxa natural, ou à que o rumo de comércio e das remessas poderia permitir. No dinheiro circulante em papel-moeda de Yorkshire, o pagamento de notas do valor irrelevante de 6 pence às vezes dependia da condição de o portador apresentar em troco 1 guinéu ao emitente da nota — condição que os portadores de tais notas muitas vezes consideravam muito difícil satisfazer e que deve ter desvalorizado esse dinheiro em circulação abaixo do valor em dinheiro de ouro e de prata. Por esse motivo, uma lei do Parlamento declarou ilegais todas essas cláusulas, e suprimindo, da mesma forma que na Escócia, todas as notas promissórias pagáveis ao portador abaixo do valor de 20 xelins. O dinheiro circulante em papel-moeda vigente na América do Norte consistia, não em notas bancárias pagáveis ao portador sob solicitação, mas em títulos do Governo, cujo pagamento só era exigível vários anos após a emissão. E embora os Governos da colônia não pagassem nenhum juro aos portadores desses títulos, declararam que era, e de fato o interpretaram como moeda legal de pagamento, no valor total em que foi emitida. Todavia, admitindo-se que a garantia da colônia fosse perfeitamente segura, 100 libras pagáveis quinze anos depois, por exemplo, num país em que a taxa de juros é de 6%, equivalem a pouco mais do que 40 libras de dinheiro à vista. Eis por que obrigar um credor a aceitar isso como pagamento integral de uma dívida de 100 libras, efetivamente pagas em dinheiro à vista, constituía um ato de injustiça tão clamorosa, que dificilmente, talvez, jamais tenha sido tentado pelo Governo de qualquer outro país que se considerasse livre. Tal medida traz as marcas evidentes daquilo que o honesto e decidido Dr. Douglas afirma ter ela sido realmente, em sua origem: um método usado por devedores fraudulentos para enganar seus credores. Efetivamente, o Governo da Pensilvânia, ao fazer sua primeira emissão de papel-moeda, em 1722, pretendeu dar a esses papéis o mesmo valor das moedas de ouro e prata, impondo penalidades a todos aqueles que estabelecessem alguma diferença de preço de suas mercadorias quando as vendiam por tais títulos coloniais ou quando as vendiam por moedas de ouro e prata — um regulamento igualmente tirânico, porém muito menos efetivo do que aquele que pretendia apoiar. Uma lei positiva pode trocar uma moeda legal de 1 xelim por 1 guinéu, já que pode orientar as cortes de justiça a desonerarem o devedor que fez aquela moeda. Todavia, nenhuma lei positiva pode obrigar uma pessoa que vende mercadorias, e que tem a liberdade de vender ou não vender, conforme lhe aprouver, a aceitar como preço de suas mercadorias 1 xelim como equivalente a 1 guinéu. Não obstante todas as leis desse gênero, constatou-se, no decurso do intercâmbio com a Grã-Bretanha, que 100 libras eram em certas ocasiões consideradas como equivalentes, em algumas colônias, a 130 libras e, em outras, 330
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a até 1 100 libras em dinheiro circulante, sendo que esta diferença de valor provinha da diferença de quantidade de papel emitido nas diversas colônias, e da distância e da probabilidade do termo de sua quitação e resgate finais. Por isto, nada mais justo do que a lei do Parlamento — tão injustamente atacada nas colônias — para a qual nenhum dinheiro circulante em papel-moeda que se viesse a emitir futuramente nas colônias pudesse ser considerado moeda legal de pagamentos. A Pensilvânia sempre foi mais moderada em suas emissões de papel-moeda do que qualquer outra de nossas colônias. Eis por que seu dinheiro circulante em papel-moeda, segundo se diz, nunca desceu abaixo do valor do ouro e da prata correntes na colônia antes da primeira emissão de seu papel-moeda. Antes dessa emissão, a colônia havia elevado a denominação de sua moeda, determinando por uma decisão da Assembléia, que 5 xelins passariam na colônia para 6 xelins e 3 pence, e depois para 6 xelins e 8 pence. A moeda circulante em libras na colônia, portanto, mesmo quando essa moeda era em ouro e prata, era mais de 30% inferior ao valor de uma libra esterlina, e quando aquela moeda corrente se transformou em papel-moeda raramente seu valor foi mais do que 30% inferior àquele valor. O objetivo alegado para elevar a denominação da moeda era evitar a exportação de ouro e prata, fazendo com que quantidades iguais desses metais passassem por quantias maiores na colônia do que na mãe-pátria. Constatou-se, porém, que o preço de todas as mercadorias provenientes da Grã-Bretanha elevou-se exatamente na proporção em que a colônia elevou a denominação de sua moeda, de sorte que seu ouro e prata eram exportados com a mesma rapidez de sempre. Já que o papel-moeda emitido por cada colônia era aceito no pagamento das taxas provinciais, pelo valor integral de sua emissão, esse uso fez com que as notas adquirissem um valor adicional, além do valor que elas teriam tido, com base no prazo real ou presumido de seu resgate e quitação finais. Esse valor adicional era maior ou menor, conforme a quantidade de papel emitido estivesse mais ou menos acima da quantidade que podia ser empregada para o pagamento das taxas da respectiva colônia que o emitisse. Em todas as colônias, essa quantidade emitida estava muito acima do que podia ser utilizado dessa forma. Com isso, um príncipe que decretasse que certa parte de seus impostos fosse paga em papel-moeda de um certo tipo podia dar um determinado valor a esse papel-moeda, mesmo que o prazo de seu resgate e quitação finais dependesse totalmente da vontade do príncipe. Se o banco que emitia esse papel tivesse cuidado em conservar a quantidade dele sempre um tanto abaixo do que podia ser facilmente empregado dessa forma, a demanda desse papel-moeda poderia ser tal que ele poderia até mesmo fazê-lo constituir um prêmio, ou ser vendido no mercado por um valor levemente superior ao da quantidade de dinheiro circulante de ouro ou prata pelo qual fora emitido. É a isso que alguns atribuem o assim chamado ágio do banco de Amsterdam, 331
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ou a superioridade das notas bancárias em relação à moeda corrente, embora este dinheiro bancário pretensamente não possa ser retirado do banco à vontade do proprietário. A maior parte das letras de câmbio estrangeiras deve ser paga com dinheiro de banco, isto é, por uma transferência nos livros do banco; alega-se que os diretores do banco têm o cuidado de manter a quantidade total de dinheiro bancário sempre abaixo da demanda gerada por esta utilização. Afirma-se ser esta a causa pela qual o dinheiro de banco se vende com um prêmio, ou encerra um ágio de 4 ou 5% sobre a mesma quantia nominal de dinheiro circulante em ouro e prata do país. Todavia, como se verá abaixo, esta versão do banco de Amsterdam em grande parte é uma quimera. O dinheiro circulante em papel-moeda que cai abaixo do valor da moeda de ouro e prata nem por isto faz descer o valor desses metais, nem faz com que quantidades iguais dos mesmos possam ser trocadas por uma quantidade menor de mercadorias de qualquer outro gênero. A proporção entre o valor do ouro e da prata e o valor das mercadorias de qualquer outro tipo depende, em todos os casos, não da natureza ou da quantidade de determinado papel-moeda vigente neste ou naquele país, mas da riqueza ou pobreza das minas que no momento possam estar fornecendo esses metais ao grande mercado do mundo comercial. Depende da proporção entre a quantidade de mão-de-obra necessária para lançar determinada quantidade de ouro e prata no mercado, e aquilo que é necessário para levar ao mercado certa quantidade de qualquer outra espécie de mercadoria. Se os banqueiros forem impedidos de emitir quaisquer notas bancárias circulantes ou notas pagáveis ao portador, abaixo de um determinado valor, e se ficarem sujeitos a um pagamento imediato e incondicional de tais notas, tão logo forem apresentadas, seu negócio pode, com segurança para o público, deixar-lhes inteira liberdade em todos os outros sentidos. A última proliferação de bancos, tanto na Inglaterra como na Escócia — evento que tem alarmado a muitos — ao invés de diminuir, aumenta a segurança do público. Obriga todos os bancos a serem mais cuidadosos em sua conduta e, evitando aumentar seu dinheiro circulante além da devida proporção com seu dinheiro em caixa, leva-os a se acautelarem contra esses golpes maliciosos que a rivalidade de tantos concorrentes está sempre pronta a infligir-lhes. Essa multiplicação de instituições bancárias restringe a circulação de cada banco em particular a um círculo mais estreito, reduzindo o número de suas notas circulantes. Dividindo-se a circulação total entre um número maior de partes, terão conseqüências menos danosas para o público eventuais erros cometidos por um determinado banco — acidentes que não se pode excluir totalmente, pelo curso normal das coisas. Além disso, esta livre concorrência obriga todos os banqueiros a serem mais liberais ao tratar com sua clientela, sob pena de que seus rivais atraiam seus clientes. De modo geral, se determinado ramo de comércio ou qualquer divisão de trabalho trouxer vantagens para o público, haverá sempre uma concorrência mais livre e mais generalizada. 332
CAPÍTULO III A Acumulação de Capital, ou o Trabalho Produtivo e o Improdutivo
Existe um tipo de trabalho que acrescenta algo ao valor do objeto sobre o qual é aplicado; e existe outro tipo, que não tem tal efeito. O primeiro, pelo fato de produzir um valor, pode ser denominado produtivo; o segundo, trabalho improdutivo.152 Assim, o trabalho de um manufator geralmente acrescenta algo ao valor dos materiais com que trabalha: o de sua própria manutenção e o do lucro de seu patrão. Ao contrário, o trabalho de um criado doméstico não acrescenta valor algum a nada. Embora o manufator tenha seus salários adiantados pelo seu patrão, na realidade ele não custa nenhuma despesa ao patrão, já que o valor dos salários geralmente é reposto juntamente com um lucro, na forma de um maior valor do objeto no qual seu trabalho é aplicado. Ao contrário, a despesa de manutenção de um criado doméstico nunca é reposta. Uma pessoa enriquece empregando muitos operários, e empobrece mantendo muitos criados domésticos. O trabalho destes últimos não deixa de ter o seu valor, merecendo sua remuneração tanto quanto o dos primeiros. Mas o trabalho do manufator fixa-se e realiza-se em um objeto específico ou mercadoria vendável, a qual perdura, no mínimo, algum tempo depois de encerrado o trabalho. É, por assim dizer, uma certa quantidade de trabalho estocado e acumulado para ser empregado, se necessário, em alguma outra ocasião. Este objeto ou, o que é a mesma coisa, o preço deste objeto, pode posteriormente, se necessário, movimentar uma quantidade de trabalho igual àquela que originalmente o produziu. Ao contrário, o trabalho do criado doméstico não se fixa nem se realiza em um objeto específico ou mercadoria vendável. Seus serviços normalmente morrem no próprio 152 Alguns autores franceses de grande erudição e engenho têm empregado essas palavras em um sentido diferente. No último capítulo do Livro Quarto procurarei mostrar que sua conceituação é inadequada. 333
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instante em que são executados, e raramente deixam atrás de si algum traço ou valor, pelo qual igual quantidade de serviço poderia, posteriormente, ser obtida. O trabalho de algumas das categorias sociais mais respeitáveis, analogamente ao dos criados domésticos, não tem nenhum valor produtivo, não se fixando nem se realizando em nenhum objeto permanente ou mercadoria vendável que perdure após encerrado o serviço, e pelo qual igual quantidade de trabalho pudesse ser conseguida posteriormente. O soberano, por exemplo, com todos os oficiais de justiça e de guerra que servem sob suas ordens, todo o Exército e Marinha, são trabalhadores improdutivos. Servem ao Estado, sendo mantidos por uma parte da produção anual do trabalho de outros cidadãos. Seu serviço, por mais honroso, útil ou necessário que seja, não produz nada com o que igual quantidade de serviço possa posteriormente ser obtida. A proteção, a segurança e a defesa da comunidade, o efeito do trabalho dessas pessoas, neste ano, não comprarão sua proteção, segurança e defesa para o ano seguinte. Na mesma categoria devem ser enquadradas algumas das profissões mais sérias e mais importantes, bem como algumas das mais frívolas: eclesiásticos, advogados, médicos, homens de letras de todos os tipos, atores, palhaços, músicos, cantores de ópera, dançarinos de ópera etc. O trabalho de qualquer dessas pessoas, mesmo da categoria mais medíocre, tem um certo valor, regulado exatamente pelos mesmos princípios que regulam o de qualquer outro tipo de serviço; e aquela das mais nobres e mais úteis nada produz que pudesse posteriormente comprar ou obter uma quantidade igual de trabalho. Paralelamente ao que ocorre com a declamação do ator, a fala do orador ou a melodia do músico, o trabalho de todos eles morre no próprio instante de sua produção. Tanto os trabalhadores produtivos como os improdutivos, e bem assim os que não executam trabalho algum, todos são igualmente mantidos pela produção anual da terra e da mão-de-obra do país. Esta produção, por maior que seja, nunca pode ser infinita, necessariamente tem certos limites. Conforme, portanto, se empregar uma porcentagem menor ou maior dela, em qualquer ano, para a manutenção de mãos improdutivas, tanto mais, no primeiro caso, e tanto menos, no segundo, sobrará para as pessoas produtivas, e na mesma medida, a produção do ano seguinte será maior ou menor, uma vez que se excetuarmos os produtos espontâneos da terra, o total da produção anual é efeito do trabalho produtivo. Embora o total da produção anual da terra e do trabalho de um país seja, sem dúvida, em última análise, destinado a suprir o consumo de seus habitantes e a proporcionar-lhes uma renda, não deixa de ser verdade que a produção, no momento em que sai do solo ou das mãos dos trabalhadores produtivos, se divide naturalmente em duas partes. Uma delas, muitas vezes a maior, destina-se, em primeiro lugar, a repor um capital ou renovar as provisões de mantimentos materiais e o trabalho acabado, retirados de um capital; a outra parcela destina-se 334
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a constituir uma renda, para o dono deste capital, como lucro de seu capital, ou para outras pessoas, como renda de sua terra. Assim, da produção da terra, uma parte repõe o capital investido pelo arrendatário, e a outra paga seu lucro e a renda da terra ao dono desta, constituindo, portanto, uma renda, tanto para o proprietário deste capital — como sendo o lucro de seu capital — como para algumas outras pessoas — por exemplo, o aluguel pago ao dono da terra pela locação da mesma. Igualmente, da produção de uma grande manufatura, uma parte — sempre a maior — repõe o capital do empresário da obra, sendo que a outra paga seu lucro, constituindo destarte uma renda ao proprietário desse capital. A parte da produção anual da terra e do trabalho de qualquer país que repõe um capital, nunca é imediatamente empregada para outra finalidade que não seja a manutenção de pessoas produtivas. Essa parte paga exclusivamente os salários do trabalho produtivo. A parte que se destina imediatamente a constituir uma renda, como lucro ou como renda da terra, pode ser empregada para manter, indiferentemente, pessoas produtivas ou pessoas improdutivas. Toda parcela do estoque que um proprietário emprega como capital, ele sempre espera que lhe seja reposta com lucro. Ele a emprega, portanto, exclusivamente para manter trabalhadores produtivos; esta parte, após servir-lhe como capital, constitui uma renda para esses trabalhadores. Toda vez que ele empregar qualquer parte do mesmo para manter pessoas improdutivas de qualquer espécie, esta parte, a partir desse momento, é retirada de seu capital e colocada em seu estoque reservado para consumo imediato. Os trabalhadores improdutivos, e os que não trabalham, são todos mantidos por uma renda: primeiramente, por aquela parte da produção anual, originalmente destinada a constituir uma renda para determinadas pessoas, seja como renda da terra ou como lucros do capital; ou, em segundo lugar, por aquela parte da produção que, embora originalmente destinada apenas a repor um capital ou a manter trabalhadores produtivos, não obstante isso, quando chega às suas mãos, toda porção dela que ultrapassar sua própria manutenção pode ser empregada para manter, indiferentemente, pessoas produtivas ou pessoas improdutivas. Portanto, não somente o grande proprietário de terras ou o comerciante rico, mas até mesmo o trabalhador comum, desde que seus salários sejam consideráveis, têm condições de manter um criado doméstico; que também pode às vezes assistir a uma peça ou show de marionetes, contribuindo com a sua parcela para manter um grupo de trabalhadores improdutivos; ou, então, pode pagar certos impostos e dessa forma ajudar a manter outro grupo, mais respeitável e útil, sim, mas igualmente improdutivo. Entretanto, nenhuma parte da produção anual originalmente destinada a repor um capital jamais é dirigida para a manutenção de mãos improdutivas, antes de haver posto em movimento seu complemento pleno de trabalho produtivo, ou tudo aquilo que poderia movimentar da maneira como foi empregado. 335
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Antes de poder empregar qualquer parcela de seus salários dessa forma, o trabalhador deve tê-los ganho pelo serviço prestado. Aliás, essa parte geralmente é pequena. É apenas a renda que lhe sobra, a qual, no caso dos trabalhadores produtivos, raramente representa muito. Mas geralmente têm um pouco dessa renda; e, com o pagamento de impostos, o número elevado desses contribuintes pode, até certo ponto, compensar a pequenez da contribuição. Portanto, a renda da terra e os lucros do capital constituem, em toda a parte, as fontes primordiais das quais as pessoas improdutivas haurem sua subsistência. Esses são os dois tipos de renda que os proprietários geralmente costumam ter à disposição para gastar. Com isso, podem manter, indiferentemente, pessoas produtivas ou improdutivas. No geral, porém, parecem ter predileção pelo segundo grupo. Basicamente, a despesa de um grande senhor alimenta mais as pessoas ociosas do que as que trabalham. O comerciante rico, embora com seu capital só mantenha pessoas operosas, ainda assim, com sua despesa, isto é, pelo emprego de sua renda, geralmente mantém exatamente o mesmo tipo de pessoas que o grande senhor. Donde se infere que a proporção entre pessoas produtivas e improdutivas depende muitíssimo, em todo país, da proporção entre aquela parte da produção anual que, tão logo sai do solo ou das mãos dos trabalhadores produtivos, se destina a repor um capital, e aquela que se destina a constituir uma renda, como renda da terra ou como lucro. Essa proporção difere muito, conforme o país for rico ou pobre. Assim, atualmente, nos países ricos da Europa, uma parte muito grande, freqüentemente a maior, da produção da terra, destina-se a repor o capital do agricultor rico e independente, sendo que a outra parte serve para pagar seu lucro e a renda que cabe ao dono da terra. Antigamente, porém, quando prevalecia o governo feudal, bastava uma porção muito pequena da produção para repor o capital empregado no cultivo da terra. Consistia geralmente em umas poucas e magras cabeças de gado, mantidas integralmente pela produção espontânea da terra não cultivada, e que, portanto, podiam ser consideradas como parte dessa produção espontânea. Além disso, essa parcela geralmente pertencia também ao proprietário da terra, sendo por ele adiantada aos ocupantes da terra. Todo o restante da produção também lhe pertencia no verdadeiro sentido da palavra: como renda da terra ou como lucro do precário capital empatado. Os ocupantes da terra costumavam ser servos cujas pessoas e pertences também eram propriedade do dono da terra. Os que não eram servos eram locatários a título precário, e, embora o aluguel nominal que pagavam muitas vezes não passasse de um pagamento em moeda, em lugar da prestação de serviços, na realidade equivalia à produção total da terra. Em qualquer momento o proprietário da terra tinha o direito de exigir seu trabalho em tempos de paz, e seu serviço na guerra. Embora vivessem distante da casa do proprietário da terra, dependiam tanto dele quanto os domésticos que viviam em sua casa. Mas a produção total da terra indubitavelmente pertence àquele que dispõe do trabalho e dos serviços de todos aqueles 336
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que mantém. Na atual situação da Europa, a parcela da produção que cabe ao dono da terra raramente ultrapassa a 1/3, e por vezes nem sequer a 1/4 de toda a produção da mesma. Todavia, a renda da terra, em todas as regiões evoluídas, triplicou e quadruplicou desde aquela época remota, e esse 1/3 ou 1/4 da produção anual da terra, ao que parece, representa hoje 3 ou 4 vezes mais do que representava antigamente a produção total. Com o progresso dos aperfeiçoamentos, a renda da terra, embora aumente em proporção com a extensão, diminui em proporção com a produção da terra. Nos países ricos da Europa, empregam-se atualmente grandes capitais — no comércio e nas manufaturas. Na situação antiga, o reduzido comércio e as poucas manufaturas domésticas e primitivas existentes exigiam capitais muito pequenos. No entanto, devem ter dado lucros muito grandes. A taxa de juros em lugar algum era inferior a 10% e os lucros auferidos devem ter sido suficientes para pagar juros tão altos. Atualmente a taxa de juros nas regiões evoluídas da Europa em lugar algum está acima de 6% e, em algumas das áreas mais desenvolvidas, é tão baixa que chega a 4, 3 e até 2%. Ainda que a parcela da renda dos habitantes decorrente do lucro do capital seja sempre muito maior nos países ricos do que nos pobres, isto é porque o capital é muito maior; em proporção ao capital, os lucros geralmente são muito menores. Eis por que a parcela da produção anual que, tão logo sai do solo ou das mãos dos trabalhadores produtivos, é destinada a repor um capital não somente é maior nos países ricos do que nos pobres, mas mantém uma proporção muito maior em relação à parte destinada imediatamente a constituir uma renda, como renda da terra ou como lucro. Os fundos destinados à manutenção de trabalhadores produtivos não somente são muito maiores nos países ricos do que nos pobres, como também representam proporção muito maior em relação aos fundos que, embora possam servir para a manutenção dos cidadãos produtivos ou dos improdutivos, em geral são empregados para a manutenção dos improdutivos. A proporção entre esses dois fundos necessariamente determina, em cada país, o caráter geral dos habitantes, no tocante ao trabalho ou à ociosidade. Trabalhamos mais do que nossos antepassados, porque nos dias de hoje, em relação ao que ocorria há dois ou três séculos, os fundos destinados à manutenção do trabalho são muito maiores em proporção aos destinados à manutenção dos ociosos. Nossos ancestrais eram indolentes por falta de estímulos suficientes para o trabalho. Segundo diz o provérbio, é melhor brincar de graça do que trabalhar de graça. Nas cidades comerciais e industriais, onde as classes inferiores da população são mantidas sobretudo pelo emprego de capital, a população costuma ser operosa, sóbria e progressista, como acontece em muitas cidades inglesas e na maioria das cidades da Holanda. Nas cidades que se mantêm primordialmente com os fundos e rendas provenientes da residência constante ou ocasional de uma corte, e onde 337
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as classes inferiores da população se mantêm primordialmente com os gastos da renda dos grandes, a população em geral é indolente, dissoluta e pobre, como ocorre em Roma, Versalhes, Compiegne e Fontainebleau. Se excetuarmos Rouen e Bordéus, existe pouco comércio ou indústria em todas as cidades francesas que sediam uma assembléia legislativa; e as classes inferiores da população, por se manterem sobretudo às expensas dos membros das cortes de Justiça e daqueles que ocorrem a elas para apelações, costumam ser ociosas e pobres. O grande comércio existente em Rouen e Bordéus parece dever-se totalmente à localização das duas cidades. Rouen é necessariamente o entreposto de quase todas as mercadorias trazidas de países estrangeiros ou das províncias marítimas da França para o consumo da grande cidade de Paris. Analogamente, Bordéus é o entreposto dos vinhos fabricados nas regiões localizadas nas margens do rio Garonne e dos que nele desembocam, uma das regiões mais ricas em vinhos do mundo, e que parece produzir o melhor vinho para exportação, ou o mais condizente com o paladar dos estrangeiros. Tais localizações vantajosas necessariamente atraem um grande capital, pela vasta aplicação que a região lhe proporciona, sendo o emprego desse capital a causa do progresso dessas duas cidades. Nas demais cidades francesas que são sede de assembléias legislativas, parece haver-se empregado muito pouco capital, além do necessário para suprir seu próprio consumo, vale dizer, pouco mais do que o capital mínimo que nelas se pode investir. O mesmo se pode dizer de Paris, Madri e Viena. Dessas três cidades, Paris é de longe a mais progressista, sendo também o principal mercado de todas as manufaturas nela estabelecidas, e seu próprio consumo é o objetivo primordial de todo o comércio que desenvolve. Londres, Lisboa e Copenhague são talvez as únicas cidades européias em que ao mesmo tempo reside uma corte e podem também ser consideradas cidades comerciais, isto é, cidades que comerciam não somente para seu próprio consumo, como também para o de outras cidades e países. A localização das três é extremamente vantajosa, naturalmente propícia para servir-lhes como entrepostos de grande parte das mercadorias destinadas ao consumo de regiões distantes. Em uma cidade em que se gasta uma renda elevada, empregar com vantagem um capital para qualquer outro objetivo que não seja suprir o consumo da própria cidade é provavelmente mais difícil do que em uma cidade na qual as classes inferiores da população só conseguem manter-se com o que auferem do emprego desse capital. A ociosidade da maior parte das pessoas mantidas pelos gastos da renda corrompe provavelmente a operosidade dos que deveriam manter-se pelo emprego de capital, fazendo com que seja menos vantajoso aplicar um capital lá do que em outros lugares. Antes da união com a Inglaterra, havia pouco comércio ou indústria em Edimburgo; ela tornou-se uma cidade de algum comércio e indústria quando o Parlamento escocês deixou de ter sede nela, quando deixou de ser a residência necessária da principal nobreza e da pequena nobreza da Escócia. Todavia, Edimburgo continua a ser a sede dos principais tribunais de Justiça da 338
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Escócia e dos postos alfandegários, de recolhimento de impostos etc. Portanto, continua-se a gastar na cidade uma renda considerável. Em comércio e indústria, é muito inferior a Glasgow, cujos habitantes se mantêm sobretudo mediante emprego de capital. Tem-se às vezes observado que os habitantes de uma aldeia grande, depois de terem progredido consideravelmente nas manufaturas, se tornaram indolentes e pobres, pelo fato de um grande senhor ter passado a residir na redondeza. Em conseqüência, a proporção entre o capital e a renda parece regular em todo lugar a proporção entre pessoas trabalhadoras e pessoas ociosas. Onde quer que predomine o capital, prevalece o trabalho; e onde quer que predomine a renda, prevalece a ociosidade. Por isso, todo aumento ou diminuição de capital tende a aumentar ou a diminuir a quantidade real de trabalho, o contingente de cidadãos produtivos e, conseqüentemente, o valor de troca da produção anual da terra e do trabalho do país, a riqueza e renda reais de todos os seus habitantes. Os capitais são aumentados pela parcimônia e diminuídos pelo esbanjamento e pela má administração. Tudo aquilo que uma pessoa economiza de sua renda, ela o acrescenta a seu capital: quer empregando-o ela mesma para manter um contingente adicional de mão-de-obra produtiva, quer dando possibilidade a outra pessoa de fazê-lo, emprestando-lhe o capital com juros, vale dizer, em troca de uma participação nos lucros. Assim como o capital de um indivíduo só pode ser aumentado por aquilo que poupa de sua renda anual ou de seus ganhos anuais, da mesma forma o capital de uma sociedade, que é equivalente à soma dos capitais de todos os indivíduos que a compõem, só pode ser aumentado dessa maneira. A parcimônia, e não o trabalho, é a causa imediata do aumento de capital. Com efeito, o trabalho fornece o objeto que a parcimônia acumula. Com tudo o que o trabalho consegue adquirir, se a parcimônia não economizasse e não acumulasse, o capital nunca seria maior. A parcimônia, aumentando o fundo destinado à manutenção de mão-de-obra produtiva, tende a ampliar o contingente daquelas pessoas cujo trabalho enriquece o valor do objeto ao qual é aplicado. Tende, pois, a aumentar o valor cambiável da produção anual da terra e do trabalho do país. Põe em movimento uma quantidade adicional de trabalho, o qual dá um valor extra à produção anual. O que se economiza anualmente é consumido com a mesma regularidade que aquilo que se gasta anualmente, e também quase ao mesmo tempo; todavia, o consumo é feito por uma categoria diferente de pessoas. A parte da renda do rico que este gasta anualmente, na maioria dos casos, é consumida por hóspedes ociosos e criados domésticos, que nada deixam atrás de si em troca de seu consumo. Aquela parte da renda que ele economiza anualmente, já que é imediatamente empregada como capital em função do lucro, é igualmente consumida, e quase simultaneamente, mas por uma categoria diferente de pessoas: trabalhadores, manufatores e artífices, que reproduzem com lucro o valor de que consomem anualmente. Suponhamos que a renda do rico 339
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lhe fosse paga em dinheiro. Se ele tivesse gasto toda esta renda em alimento, roupa e moradia que a renda total teria podido comprar, teriam sido distribuídos entre os ociosos ou improdutivos. Ao economizar, porém, parte dessa renda, já que esta parcela é imediatamente aplicada como capital em função do lucro, por ele mesmo ou por qualquer outra pessoa, o alimento, a roupa e a moradia que se pode comprar com esta parte são necessariamente reservados a pessoas produtivas. O consumo é o mesmo, mas os consumidores são diferentes. Através daquilo que uma pessoa frugal poupa anualmente, não somente se assegura manutenção a um contingente adicional de mãode-obra produtiva, para aquele ano ou para o próximo, senão que, como o fundador de um albergue, cria, por assim dizer, um fundo perpétuo para a manutenção de um contingente igual em todas as ocasiões futuras. Com efeito, a alocação e a destinação permanente deste fundo nem sempre são asseguradas por uma lei positiva, por um documento jurídico ou título de bens; no entanto, elas são sempre asseguradas por um princípio muito poderoso, isto é, o interesse óbvio de todo indivíduo a quem pertença o fundo. Nenhuma porção dele poderá futuramente ser empregada a não ser para manter mão-de-obra produtiva, sem que haja uma perda evidente para a pessoa que o desvia de sua destinação própria. Assim, o esbanjador desvia o capital da destinação correta. Por não limitar sua despesa à sua renda, ele interfere em seu capital. Como aquele que desvia para objetivos profanos as rendas de uma fundação pia, ele paga os salários dos ociosos com os fundos que a frugalidade de seus antepassados tinha, por assim dizer, consagrado à manutenção de pessoas produtivas. Diminuindo os fundos destinados ao emprego de mão-de-obra produtiva, necessariamente ele diminui, na medida em que isso depende dele, a quantidade daquele tipo de trabalho que acrescenta valor ao objeto ao qual é aplicado e, em conseqüência, ao valor da produção anual da terra e do trabalho do país inteiro, à riqueza e à renda de seus habitantes. Se a prodigalidade de alguns não for compensada pela frugalidade de outros, a conduta de todo perdulário, por alimentar os ociosos com o pão pertencente aos trabalhadores produtivos, tende não só a reduzi-lo à miséria, como a empobrecer o país. Mesmo que os gastos do esbanjador fossem com mercadorias do próprio país, e não com mercadorias estrangeiras, seriam iguais os efeitos sobre os fundos produtivos da sociedade. Todo ano continuaria havendo uma certa quantidade de alimento e roupa que deveria ter servido para a manutenção de mão-de-obra produtiva, no entanto é empregada para manter pessoal improdutivo. Portanto, em cada ano continuaria a haver ainda alguma diminuição daquilo que, de outra forma, teria o valor da produção anual da terra e do trabalho do país. Poder-se-á alegar talvez que, pelo fato de tal despesa não ser gasta em mercadorias estrangeiras, não acarretando, portanto, exportação de ouro e prata para fora do país, este ficaria com a mesma 340
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quantidade de dinheiro que antes. Entretanto, se a quantidade de alimentos e de roupas que, nessa hipótese, seria consumida por pessoal improdutivo, tivesse sido distribuída entre pessoas produtivas, estas teriam reproduzido, com lucro, o valor integral consumido. Nesse caso, além de ter permanecido no país a mesma quantidade de dinheiro, teria havido uma reprodução de um valor igual de bens de consumo. A mesma quantidade de dinheiro, portanto, teria igualmente permanecido no país e haveria, além disso, a reprodução de um valor igual de mercadorias consumíveis. Haveria dois valores ao invés de um. Além disso, a mesma quantidade de dinheiro não pode permanecer por muito tempo em um país no qual diminuiu o valor da produção anual. A única utilidade do dinheiro é fazer circular bens de consumo. Ora, é através do dinheiro que os mantimentos, materiais e o produto acabado são comprados e vendidos, bem como distribuídos a seus próprios consumidores. Conseqüentemente, a quantidade de dinheiro que se pode anualmente empregar em um país deve ser determinada pelo valor dos bens de consumo que anualmente o dinheiro faz circular nele. Esses bens de consumo devem consistir necessariamente na produção direta da terra e do trabalho do próprio país ou em algo que tivesse sido comprado com uma parte dessa produção. Seu valor, portanto, deve diminuir na medida em que diminui o valor dessa produção e, com ele, também a quantidade de dinheiro que pode ser empregada em fazê-la circular. Entretanto, o dinheiro que, em virtude dessa redução anual da produção, é cada ano retirado da circulação interna do país, não poderá permanecer ocioso. O interesse dos proprietários desse dinheiro exige que ele seja aplicado. Mas, não havendo qualquer aplicação no país, ele será enviado ao exterior, a despeito de todas as leis e proibições, para a compra de bens de consumo que possam ser de alguma utilidade no país. Dessa forma, a exportação anual desse dinheiro continuará por algum tempo a acrescentar alguma coisa ao consumo anual do país, além do valor de sua própria produção anual. O que se conseguira economizar nos dias de prosperidade dessa produção anual e que fora empregado em comprar ouro e prata, contribuirá por algum tempo — pouco, aliás — para sustentar seu consumo em épocas adversas. Nesse caso, a exportação de ouro e prata não é a causa, mas o efeito do declínio do país, e pode até, por pouco tempo, aliviar a calamidade desse declínio. Ao contrário, a quantidade de dinheiro deve, em cada país, crescer naturalmente na medida em que aumenta o valor da produção anual. Sendo maior o valor dos bens de consumo que anualmente circulam no seio da sociedade, exigir-se-á uma quantidade maior de dinheiro para operar tal circulação. Por isso, parte da produção aumentada será naturalmente empregada para comprar, onde for possível, a quantidade adicional de ouro e prata necessária para fazer circular o restante da produção anual. O aumento desses metais será, neste caso, o efeito e não a causa da prosperidade pública. O ouro e a prata em toda parte são comprados da mesma forma. O alimento, roupa e moradia, a renda e a manutenção 341
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de todos aqueles cujo trabalho ou capital é empregado em trazer os metais das minas ao mercado, é o preço pago para isto, tanto no Peru como na Inglaterra. O país que tiver esse dinheiro para pagar nunca permanecerá muito tempo sem a quantidade desses metais de que carece; em contrapartida, nenhum país reterá por muito tempo uma quantidade de ouro e prata de que não tiver necessidade. Conseqüentemente, o que quer que imaginemos consistir a riqueza e a renda reais de um país — seja no valor da produção anual de sua terra e de seu trabalho, como parece indicá-lo a sã razão, seja na quantidade de metais preciosos que circulam no país, como o supõem preconceitos populares — qualquer que seja a teoria defendida, um fato é certo: todo esbanjador é um inimigo do público, e toda pessoa que poupa é um benfeitor do público. Os efeitos da má administração são muitas vezes os mesmos que os do esbanjamento. Todo projeto imprudente e malsucedido na agricultura, mineração, pesca, comércio ou manufaturas tende igualmente a diminuir os fundos destinados à manutenção do trabalho produtivo. Em todo projeto desse tipo, embora o capital seja consumido somente por mão-de-obra produtiva, ainda assim, devido ao mau emprego que se faz desse capital, esses trabalhadores não reproduzem o valor integral do que consomem, devendo ocorrer sempre certa diminuição daquilo que, de outra forma, teriam sido os fundos produtivos da sociedade. Na realidade, raramente poderá acontecer que a situação de uma grande nação seja muito afetada pela prodigalidade ou má administração dos indivíduos, já que o esbanjamento e a imprudência de alguns sempre são mais do que compensados pela frugalidade e boa administração de outros. Quanto ao esbanjamento, o princípio que leva a gastar é a paixão de divertir-se no presente — paixão que embora por vezes violenta e muito difícil de ser contida, é em geral apenas momentânea e ocasional. Ao contrário, o princípio que leva a poupar é o desejo de melhorar nossa condição, um desejo que, embora comumente calmo e isento de paixão, herdamos do seio materno e nunca nos abandonará até a sepultura. Em todo o espaço de tempo que medeia entre o berço e a sepultura, dificilmente talvez haverá um só momento em que uma pessoa esteja tão perfeita e completamente satisfeita com sua situação, que não deseje alguma mudança ou melhoria, de qualquer tipo que seja. Um aumento de fortuna é o meio pelo qual a maior parte das pessoas se propõe e deseja melhorar sua condição. É o meio mais comum e mais óbvio; e o meio mais suscetível de aumentar a fortuna é poupar e acumular uma parte do que as pessoas adquirem, regular e anualmente, ou então em condições extraordinárias. Embora, portanto, o princípio de gastar prevaleça em relação a quase todas as pessoas em algumas ocasiões e em outras quase sempre, na maioria das pessoas, tomando por média todo o decurso de sua vida, o princípio da frugalidade parece não só prevalecer, mas prevalecer muitíssimo. No que concerne à má administração, o número de empreendi342
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mentos conduzidos com prudência e com sucesso é em toda parte muito maior do que o de empreendimentos imprudentes e malogrados. Apesar de todas as nossas queixas sobre a freqüência das bancarrotas, os infelizes que caem nesse infortúnio representam uma porcentagem muito reduzida do total de pessoas empenhadas no comércio e em todos os outros tipos de negócios; talvez não ultrapasse muito a média de um por mil. A bancarrota é, talvez, a maior e mais humilhante calamidade que possa acometer uma pessoa ingênua. Por isso, a maioria das pessoas são suficientemente cuidadosas para evitá-la. Algumas, porém, não a evitam, como há quem não evite a forca. As grandes nações nunca empobrecem devido ao esbanjamento ou à imprudência de particulares, embora empobreçam às vezes em conseqüência do esbanjamento e da imprudência cometidos pela administração pública. Toda ou quase toda a renda pública é empregada, na maioria dos países, em manter cidadãos improdutivos. Tais pessoas constituem uma corte numerosa e esplêndida, um grande estabelecimento eclesiástico; grandes esquadras e exércitos, que em tempos de paz nada produzem, e em tempo de guerra nada adquirem que possa compensar os gastos de sua manutenção, mesmo enquanto perdura a guerra. Essas pessoas, que nada produzem, são mantidas pela produção do trabalho de terceiros. Quando, portanto, esse contingente é multiplicado além do necessário, em determinado ano ele pode consumir uma parcela tão grande da produção anual, a ponto de não deixar o suficiente para manter os trabalhadores produtivos, que reproduziriam, no ano vindouro, o que foi gasto neste. Em conseqüência, a produção do ano seguinte será menor do que a do precedente e se a mesma situação confusa continuar, a produção do terceiro ano será ainda inferior à do segundo. Os cidadãos improdutivos, que deveriam ser mantidos apenas por uma parcela da renda economizada pelo povo, podem chegar a consumir parte tão relevante da renda total, e com isso obrigar tão grande número de pessoas a interferir em seu capital, nos fundos destinados à manutenção de mão-de-obra produtiva, que toda a frugalidade e a boa administração dos indivíduos podem ser incapazes de compensar o desperdício e o aviltamento da produção, gerados por essa intromissão violenta e forçada. Na maioria dos casos, porém, como ensina a experiência, a frugalidade e a boa administração são suficientes para compensar não somente o esbanjamento e a má administração individuais, como também as exorbitâncias públicas do Governo. O esforço uniforme, constante e ininterrupto de toda pessoa, no sentido de melhorar sua condição, princípio do qual derivam originalmente tanto a riqueza nacional e pública como a individual, é suficientemente poderoso para manter o curso natural das coisas em direção à melhoria, a despeito das extravagâncias do Governo e dos maiores erros de administração. Como o princípio desconhecido da vida animal, esse princípio muitas vezes restitui a saúde e o vigor à constituição, apesar, não somente da doença, mas também das absurdas receitas do médico. 343
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A produção anual da terra e do trabalho de um país só pode aumentar de valor, com o acréscimo do contingente de mão-de-obra produtiva, ou das forças produtivas dos trabalhadores já empregados. E evidente que o número de trabalhadores produtivos de um país nunca pode ser muito aumentado, a não ser em conseqüência de um aumento do capital ou dos fundos destinados à sua manutenção. E as forças produtivas do mesmo número de trabalhadores só podem ser aumentadas em decorrência quer de algum acréscimo e aperfeiçoamento das máquinas e instrumentos que facilitam e abreviam o trabalho, quer de uma divisão e distribuição mais apropriada do emprego. Em ambos os casos, quase sempre se requer um capital adicional. Somente através de um capital adicional é que o empresário de uma fábrica tem condições de prover seus trabalhadores com máquinas melhores de operar entre eles uma distribuição de tarefas mais adequada. Quando o serviço a ser feito comporta operações diversificadas, manter cada empregado constantemente ocupado em uma função exige capital muito maior do que quando cada empregado é sucessivamente utilizado em cada uma das operações, conforme as necessidades. Quando, pois, compararmos o estágio de uma nação em dois períodos diferentes e constatarmos que a produção anual de sua terra e do seu trabalho é obviamente maior no segundo do que no primeiro, que suas terras estão melhor cultivadas, suas manufaturas são mais numerosas e mais florescentes, e seu comércio mais extensivo, podemos estar certos de que seu capital aumentou entre esses dois períodos e que a boa administração de alguns acrescentou a essa produção o que dela tinha sido tirado pela má administração privada de outros ou pelo esbanjamento público do governo. Constataremos, porém, que esse foi o caso de quase todas as nações em todas as épocas razoavelmente tranqüilas e pacíficas, mesmo daquelas que não tiveram governos mais sensatos e parcimoniosos. Com efeito, para formar um juízo correto a respeito, precisamos comparar a situação do país em períodos algo distantes um do outro. Muitas vezes o progresso é tão gradual que, em períodos muito próximos entre si, o progresso não somente não é sensível como também em virtude do declínio de certos setores de trabalho ou de certas regiões do país — coisas que às vezes acontecem, não obstante o país gozar de muita prosperidade — freqüentemente surge a suspeita de que estão em decadência a riqueza e o trabalho, em sua totalidade. A título de exemplo, a produção anual da terra e do trabalho da Inglaterra é hoje certamente muito superior ao que era há um século, na época da restauração de Carlos II. Embora atualmente poucas pessoas duvidem disso — assim acredito —, no decorrer desse período dificilmente passavam cinco anos em que não se publicasse algum livro ou panfleto, escritos com habilidade suficiente para conseguir certo crédito junto ao público, e que pretendiam demonstrar que a riqueza da nação estava declinando rapidamente, que o país estava despovoado, a agricultura negligenciada, as manufaturas decaindo, o comércio desfeito. Tampouco pode-se afirmar que essas publicações tenham sido 344
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todas panfletos partidários, subprodutos da falsidade e da venalidade. Muitas dessas obras foram escritas por pessoas muito sinceras e inteligentes, que não escreviam senão aquilo em que acreditavam, sem nenhum outro motivo senão porque de fato acreditavam. De igual forma, a produção anual da terra e do trabalho da Inglaterra era, certamente, muito maior na época da Restauração do que possamos supor ter sido cerca de cem anos antes, quando Isabel subiu ao trono. Temos todas as razões para crer que também nessa época o país estava muito mais evoluído em melhorias do que por volta de cem anos atrás, quando estavam se encerrando as dissensões entre as casas de York e Lancaster. E mesmo naquela época, provavelmente, o país estava em melhores condições do que ao tempo da conquista dos normandos; e na época dessa conquista provavelmente a situação era melhor do que durante o tumulto da Heptarquia Saxônica. Mesmo nessa última época, a Inglaterra certamente era um país mais evoluído do que quando da invasão de Júlio César, época em que a população estava mais ou menos no mesmo estágio dos selvagens da América do Norte. Em cada um desses períodos, entretanto, havia não somente muito esbanjamento por parte de particulares e da administração pública, muitas guerras dispendiosas e supérfluas, grandes desvios da produção anual destinada à manutenção de mão-de-obra produtiva e improdutiva; por vezes, também, em meio ao tumulto do conflito civil, havia tão grande desperdício e destruição de capital, que, como é de supor, não apenas retardou o acúmulo natural das riquezas, como deixou o país mais pobre ao término do período, do que no início. Assim, durante o mais feliz e afortunado dentre todos esses períodos, o período depois da Restauração, quantas desordens e infortúnios ocorreram, que se pudessem ter sido previstos poder-se-ia deles esperar não somente o empobrecimento do país, mas até a sua ruína total? Lembremos o incêndio e a praga de Londres, as duas guerras holandesas, as desordens da revolução, a guerra na Irlanda, as quatro dispendiosas guerras francesas de 1688, 1702, 1742 e 1756, juntamente com as duas rebeliões de 1715 e 1745. No decurso das quatro guerras francesas, a nação contraiu um débito superior a 145 milhões, além de outros gastos anuais extraordinários gerados por essas guerras, de modo que, no cômputo geral, o mínimo deve ter atingido 200 milhões. Tão exorbitante parcela da produção anual da terra e do trabalho do país foi empregada desde a revolução, em ocasiões diversas, para manter um contingente elevadíssimo de pessoas improdutivas. Mas, se essas guerras não tivessem obrigado a canalizar um capital tão elevado para esse uso, a maior parte dele teria naturalmente sido aplicado para manter mão-de-obra produtiva, cujo trabalho haveria reposto, com lucro, o valor integral de seu consumo. O valor da produção anual da terra e do trabalho do país teria sido consideravelmente aumentado por ele todo ano e o aumento de cada ano teria elevado ainda mais o do ano seguinte. Mais casas teriam sido construídas, mais terras melhoradas e as anteriormente aprimoradas teriam sido melhor cultivadas, mais manufaturas 345
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teriam sido estabelecidas e as já implantadas teriam sido mais ampliadas. Na realidade, talvez não seja muito fácil sequer imaginar quanto teriam aumentado então a riqueza e a renda reais do país. Contudo, embora os altos gastos do Governo, sem dúvida, devam ter retardado o curso natural da Inglaterra em direção à riqueza e ao desenvolvimento, não foi possível sustá-lo. A produção anual da terra e do trabalho na Inglaterra é, sem dúvida, muito maior hoje do que na época da Restauração ou da revolução. Em conseqüência, maior deve ter sido também o capital empregado anualmente no cultivo da terra e para manter essa mão-de-obra. Em meio a todas as exceções feitas pelo governo, esse capital foi sendo silenciosa e gradualmente acumulado pela frugalidade e pela boa administração de indivíduos particulares, por seu esforço geral, contínuo e ininterrupto no sentido de melhorar sua própria condição. Foi esse esforço, protegido pela lei e permitido pela liberdade de agir por si próprio da maneira mais vantajosa, que deu sustentação ao avanço da Inglaterra em direção à grande riqueza e ao desenvolvimento em quase todas as épocas anteriores, e que, como é de esperar, acontecerá em tempos futuros. Mas, pelo fato de nunca ter sido a Inglaterra agraciada com governos muito parcimoniosos, assim a parcimônia jamais constituiu virtude característica de seus habitantes. É altamente impertinente e presunçoso, por parte dos reis e ministros, pretenderem vigiar a economia das pessoas particulares e limitar seus gastos, seja por meio de leis suntuárias, seja proibindo a importação de artigos de luxo do exterior. São sempre eles, sem exceção alguma, os maiores perdulários da sociedade. Inspecionem eles bem seus próprios gastos, e confiem tranqüilamente que as pessoas particulares inspecionarão os seus. Se seu próprio esbanjamento não arruína o país, não será o de seus súditos que um dia o fará. Assim como a frugalidade aumenta e o esbanjamento diminui o capital público, assim a conduta daqueles cuja despesa eqüivale exatamente a sua renda, sem acumulação ou abusos, nem a aumenta nem a diminui. Todavia, certos tipos de gastos parecem contribuir mais para o crescimento da riqueza do país do que outros. A renda de um indivíduo pode ser gasta em coisas consumidas de imediato — caso em que a despesa de um dia não pode aliviar nem sustentar a de outro — ou em coisas de maior durabilidade, as quais, portanto, podem ser acumuladas — caso em que o gasto de cada dia pode, a seu critério, aliviar ou sustentar e aumentar o efeito do gasto do dia seguinte. Uma pessoa rica, por exemplo, tanto pode gastar sua renda em uma mesa farta e suntuosa, na manutenção de grande número de criados domésticos e uma multidão de cães e cavalos, quanto contentar-se com uma mesa frugal e alguns poucos criados, pode investir a maior parte da mesma em embelezar sua casa, sua vila campestre, em construções úteis ou decorativas, em móveis úteis ou ornamentais, em coleções de livros, estátuas, quadros ou então em coisas mais frívolas, como jóias, bugigangas, berloques de vários tipos; ou então — o que é mais fútil de todos os gastos — poderá comprazer-se em acumular 346
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uma grande quantidade de vestimentas finas, como fez o favorito e ministro de um grande príncipe que faleceu há poucos anos. Se duas pessoas de igual riqueza fossem gastar suas rendas, uma, sobretudo da primeira forma indicada, a outra, da segunda, veríamos que a magnificência da pessoa que gastou sobretudo em mercadorias duráveis aumentaria continuamente, já que a despesa de cada dia contribuiria em algo para sustentar e aumentar o efeito da despesa do dia seguinte; ao contrário, a magnificência da outra não seria maior no fim do período do que no início. Além disso, no final do período, a segunda seria a mais rica dos dois. Possuiria um estoque de mercadorias, deste ou daquele tipo, o qual, embora talvez não valesse tudo o que custou, sempre valeria alguma coisa. Ao contrário, no caso do último não sobraria qualquer vestígio dos gastos efetuados, e os efeitos de dez ou vinte anos de esbanjamento seriam tão nulos como se jamais tivessem existido. Assim como, em se tratando dos indivíduos, um tipo de gasto favorece mais a riqueza de um do que a de outro, o mesmo acontece no caso de uma nação. As casas, a mobília, as roupas dos ricos, dentro de pouco tempo tornam-se úteis para as classes inferiores e médias da população. Estas têm condições de comprá-las dos ricos, quando estes se cansam delas, e, assim, a condição geral de todo o povo melhora progressivamente, quando esse tipo de gastos se generaliza entre os ricos. Em países em que durante muito tempo reinou a riqueza, freqüentemente deparamos com pessoas de classe social inferior proprietárias de casas e mobílias em perfeito estado, mas que não poderiam ter mandado construir no primeiro caso, ou ter comprado para seu próprio uso, no segundo. O que antigamente era a residência da família dos Seymour, hoje não passa de uma estalagem na estrada de Bath. A cama de casal de Jaime I, da Grã-Bretanha, que sua rainha trouxe consigo da Dinamarca como presente de um soberano a outro, era, até alguns anos atrás, uma peça decorativa de uma cervejaria de Dunfermline. Em certas cidades antigas, que permaneceram estacionárias durante muito tempo ou sofreram certa decadência, raramente se encontra uma casa sequer que os atuais ocupantes pudessem ter mandado construir. E se entrarmos nessas casas, com freqüência veremos muitas peças excelentes, embora antiquadas, de mobílias ainda perfeitamente adequadas ao uso e que, tampouco, poderiam ter sido fabricadas para os usuários atuais. Nobres palácios, vilas magníficas, grandes coleções de livros, estátuas, quadros e outras curiosidades, muitas vezes, representam tanto um ornamento como uma honra, não somente para a vizinhança, mas para o país inteiro ao qual pertencem. Versalhes constitui um ornamento e uma honra para a França, Stowe e Wilton o mesmo para a Inglaterra. A Itália ainda hoje tem uma espécie de veneração pelo número de monumentos desse gênero que ela possui, embora tenha decaído a riqueza que os produziu, e embora o gênio que os planejou pareça extinto, talvez pelo fato de não ter o mesmo emprego. Além disso, os gastos feitos em mercadorias duráveis favorecem não somente o acúmulo de estoque, mas também a poupança. Se uma pessoa, 347
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em dado momento, se exceder nesse ponto, pode facilmente voltar atrás, sem expor-se à censura do público. Reduzir de muito o número de criados domésticos, fazer com que a mesa do rico passe de uma grande abundância para uma grande frugalidade, dispensar seu equipamento, depois de tê-lo instalado, são mudanças que não podem escapar à observação dos vizinhos, e que supostamente implicam certo reconhecimento de má administração anterior. Por isso, poucos entre aqueles que, em determinada época, tiveram a infelicidade de ir tão longe nesse tipo de despesa, muniram-se depois de coragem de voltar atrás, antes que a ruína e a falência os obrigassem a isso. Mas se uma pessoa, em algum momento, foi longe demais nos gastos com construção, mobília, livros ou quadros, sua mudança de conduta não pode ser considerada imprudência. Existem coisas em que o gasto ulterior muitas vezes se torna desnecessário devido ao gasto anterior, de maneira que, quando uma pessoa interrompe a execução; parece agir assim não porque se excedeu em sua riqueza, mas porque já satisfez seu capricho. Além disso, os gastos com mercadorias duráveis garantem comumente a manutenção de um número maior de pessoas do que os gastos efetuados com a mais pródiga das hospitalidades. De 200 ou 300 libras-peso de mantimentos, que às vezes podem ser servidas em uma grande festa, talvez a metade seja atirada ao lixo, além de grande quantidade que sempre é desperdiçada e mal utilizada. Mas, se a despesa desse festival tivesse sido feita para dar trabalho a pedreiros, carpinteiros, tapeceiros, mecânicos etc., uma quantidade de gêneros de valor igual teria sido distribuída entre um contingente ainda maior de pessoas, que os teriam comprado com pence e libras-peso, correspondentes a seu valor, sem ter perdido ou jogado fora uma onça sequer dos mesmos. No primeiro caso, além disso, essa despesa mantém mãode-obra produtiva, no outro, improdutiva. No primeiro caso, portanto, ela aumenta e, no outro, não aumenta o valor de troca da produção da terra e do trabalho do país. Não desejo, porém, dar a entender com tudo isso que um tipo de gasto sempre denota um espírito mais liberal ou generoso do que o outro. Quando um homem rico gasta sua renda sobretudo em hospitalidade, ele partilha a maior parte de sua renda com seus amigos e companheiros, ao passo que, ao empregá-la para comprar as citadas mercadorias duráveis, muitas vezes gasta tudo em si mesmo, não dando nada a ninguém, sem receber o equivalente. Portanto, este último tipo de gasto, principalmente quando dirigido para coisas frívolas, como pequenos ornamentos de vestuário e de mobília, jóias, berloques e outras bugigangas, muitas vezes revela não somente um caráter frívolo, como também uma personalidade inferior e egoísta. Tudo quanto pretendo dizer é que um tipo de gasto, pelo fato de sempre gerar algum acúmulo de mercadorias de valor, por favorecer mais a frugalidade particular e, conseqüentemente, o aumento do capital da sociedade e por manter mais pessoas produtivas do que improdutivas, é mais adequado que o outro para fazer crescer a riqueza pública. 348
CAPÍTULO IV O Dinheiro Emprestado a Juros
O dinheiro emprestado a juros é sempre considerado como um capital pelo emprestador. Este espera que, no devido tempo, ele lhe seja restituído e que nesse meio-tempo o tomador lhe pague uma certa renda anual pelo uso do mesmo. O tomador do empréstimo, por sua vez, pode utilizá-lo como capital ou como um dinheiro reservado para seu consumo imediato. Se o emprega como capital, utiliza-o para a manutenção de mão-de-obra produtiva, a qual reproduz o valor, com lucro. Neste caso, o tomador tem condições tanto para repor o capital como para pagar os juros, sem alienar qualquer outra fonte de sua renda nem interferir nela. Se utiliza o dinheiro emprestado para consumo imediato, age como um perdulário, dissipando na manutenção de pessoas ociosas aquilo que se destinava a manter pessoas operosas. Neste caso, ele não tem condições nem para repor o capital nem para pagar os juros, sem alienar alguma outra fonte de renda — como por exemplo a propriedade ou a renda da terra — ou sem interferir nela. O dinheiro emprestado a juros pode, sem dúvida, ser utilizado ocasionalmente das duas maneiras citadas, mas é muito mais freqüente empregá-lo da primeira. A pessoa que toma emprestado para gastar, logo se arruína, e quem lhe empresta geralmente terá que arrepender-se da insensatez cometida. Tomar emprestado ou emprestar para esse fim, portanto, em todos os casos em que não houver usura, é contrário aos interesses das duas partes; e embora às vezes aconteça certas pessoas fazerem isso, podemos estar certos de que, devido à consideração que cada um tem pelo seu próprio interesse, isso não ocorre com tanta freqüência como talvez poderíamos imaginar. Pergunte-se a qualquer pessoa rica dotada de razoável grau de prudência, a qual desses dois tipos de pessoas tem emprestado a maior parte de seu dinheiro — àqueles que, na opinião dela, o empregarão de forma rentável ou àqueles que o gastarão na ociosidade — e veremos que zombará da pergunta feita. Mesmo entre os tomadores de empréstimo — que não 349
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são particularmente conhecidos como os cidadãos mais frugais — o número dos frugais e operosos supera de muito o dos pródigos e ociosos. As únicas pessoas a quem se costuma emprestar dinheiro sem esperar que dele façam uso lucrativo são senhores de terras que tomam empréstimos sob hipoteca. Mesmo eles dificilmente tomam empréstimos só para gastar. Pode-se dizer que, em geral, já gastaram antecipadamente o que tomam emprestado. Eles geralmente consumiram tal quantidade de bens, que lhes foram adiantados a crédito por lojistas e comerciantes, que consideram necessário tomar emprestado a juros para pagar a dívida. O capital emprestado repõe os capitais desses lojistas e comerciantes, que os senhores de terra não poderiam haver reposto com a renda recebida de suas propriedades. O empréstimo é tomado, não propriamente para gastar, mas para repor um capital que já fora gasto anteriormente. Quase todos os empréstimos a juros são feitos em dinheiro, seja em papel-moeda ou em ouro e prata. Entretanto, o que o tomador quer na realidade, e o que o emprestador lhe fornece, não é o dinheiro em si mesmo, senão o valor que ele tem, vale dizer, os bens que com ele se podem comprar. Se o que ele precisa é dinheiro para consumo imediato, tratar-se-á exclusivamente dos bens que ele pode colocar em lugar do dinheiro. Se o que ele quiser for um capital para empregar em mão-de-obra, tratar-se-á somente daqueles bens que podem assegurar aos trabalhadores instrumentos de trabalho, materiais e subsistência necessária para a execução do trabalho. Pelo empréstimo, o emprestador como que cede ao tomador seu direito a uma certa parcela da produção anual da terra e do trabalho, para que o tomador a empregue como lhe aprouver. Por conseguinte, a quantidade de dinheiro, que pode ser emprestada a juros, em qualquer país, não é regulada pelo valor do dinheiro — seja em papel ou em moeda — que serve como instrumento para os diversos empréstimos feitos no país, mas pelo valor daquela parcela da produção anual que, tão logo sai da terra ou das mãos dos trabalhadores produtivos, destina-se não somente a repor um capital, mas um capital que um proprietário não deseja ter o incômodo de ele mesmo aplicar. Uma vez que tais capitais costumam ser emprestados e restituídos em dinheiro, constituem o que se chama de juros do dinheiro. Eles diferem não somente dos juros de terras, como também dos juros do comércio e da manufatura já que nesses são os próprios proprietários que empregam seu próprio capital. Todavia, mesmo no caso dos juros do dinheiro, o dinheiro seria, por assim dizer, como que o instrumento de cessão ou transferência, que passa de uma a outra mão aqueles capitais que os respectivos proprietários não se importam em empregar eles mesmos. Esses capitais podem ser maiores, em quase toda proporção, que o montante de dinheiro que serve como instrumento de sua transferência, já que as mesmas peças de dinheiro servem para muitos empréstimos sucessivos, bem como para muitas compras diferentes. Por exemplo, A empresta a W 1 000 libras esterlinas, com as 350
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quais W imediatamente compra de B mercadorias no valor de 1 000 libras. B, por não ter pessoalmente necessidade do dinheiro, empresta as mesmas moedas ou cédulas a X, com as quais X compra imediatamente de C outra quantidade de mercadorias no valor de 1 000 esterlinas. Da mesma forma, e pela mesma razão, C com elas empresta esse dinheiro a Y, o qual novamente compra mercadorias de D. Dessa maneira, as mesmas peças, em moeda ou papel, podem no decurso de alguns dias servir como instrumento de três empréstimos diferentes e para três compras diferentes, cada uma das quais é igual, em valor, ao montante total do dinheiro. O que as três pessoas A, B e C transferem aos tomadores W, X e Y é o poder de fazer as referidas compras. Nesse poder consiste tanto o valor como a utilidade dos empréstimos. O dinheiro emprestado pelas três pessoas abastadas é igual ao valor das mercadorias que com ele se podem comprar, sendo três vezes maior do que o valor do dinheiro com o qual se fazem as compras. No entanto, esses empréstimos podem ser todos absolutamente garantidos, e as mercadorias compradas pelos diversos devedores podem ser empregadas de tal forma que, no momento oportuno, repõem, com lucro, um valor igual de dinheiro, em moeda ou em papel. E como as mesmas peças de dinheiro podem, dessa forma, servir como instrumento de empréstimos diferentes a três, ou, pela mesma razão, a 30 vezes o seu valor; da mesma forma podem servir sucessivamente como instrumento de reembolso. Dessa maneira, um capital emprestado a juros pode ser considerado como uma transferência do emprestador para o tomador de certa parcela considerável da produção anual, sob a condição de que o tomador, em troca, e durante a vigência do empréstimo, pague anualmente ao emprestador uma parcela menor, denominada juros, e ao final da vigência do empréstimo reponha ao emprestador uma parcela da mesma grandeza que aquela que o emprestador lhe havia cedido — o que se chama reembolso. Embora o dinheiro, seja em moeda, seja em papel, sirva geralmente como instrumento de transferência, tanto para a parcela menor como para a parcela mais considerável, é em si mesmo totalmente diferente daquilo que é cedido através dele. Na proporção em que aquela parte da produção anual — que, tão logo saia do solo ou das mãos dos trabalhadores produtivos é destinada a repor um capital — aumenta em qualquer país o que se chamam juros do dinheiro, naturalmente aumenta com ela. O aumento desses capitais particulares, dos quais os proprietários desejam auferir uma renda sem o incômodo de empregá-los eles mesmos, acompanha naturalmente o aumento geral dos capitais; em outras palavras, à medida que o dinheiro aumenta, a quantidade de dinheiro a ser emprestada a juros cresce gradativamente em proporções cada vez maiores. À medida que a quantidade de dinheiro a ser emprestada a juros aumenta, os juros ou preço que deve ser pago pelo uso daquele dinheiro necessariamente diminui, não apenas em virtude daquelas causas gerais que comumente provocam a diminuição do preço das coisas, quando 351
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sua quantidade aumenta, mas em conseqüência de outras causas peculiares nesse caso especial. Quando os capitais aumentam em qualquer país, necessariamente diminui o lucro que se pode auferir do emprego dos mesmos. Torna-se cada vez mais difícil encontrar, dentro do país, um método proveitoso de aplicar qualquer novo capital. Em conseqüência, surge uma concorrência entre os diversos capitais, procurando o proprietário de um deles apossar-se daquele emprego já ocupado por outro. Mas, na maioria dos casos, ele só pode ter esperança de afastar o outro de seu emprego se negociar em termos razoáveis. O concorrente deve não somente vender um pouco mais barato aquilo com que negocia, mas também, para poder fazer isso, às vezes precisa comprá-lo mais caro. A demanda de mão-de-obra produtiva, aumentando os fundos destinados à sua manutenção, torna-se cada dia maior. Os trabalhadores encontram facilidade de emprego, mas os donos de capitais sentem dificuldade em conseguir trabalhadores para empregar. Sua concorrência faz subir os salários do trabalho e baixar os lucros gerados pelo capital. Mas, quando os lucros que se pode auferir com emprego do capital diminuem, digamos assim, nas duas extremidades, necessariamente diminui também juntamente com eles o preço que se pode pagar pelo uso do capital, ou seja, a taxa de juros. Os Srs. Locke, Law e Montesquieu, bem como muitos outros autores, parecem haver imaginado que o aumento da quantidade de ouro e prata, em conseqüência da descoberta das Índias Ocidentais espanholas, constituiu a causa real da baixa da taxa de juros na maior parte da Europa. Pelo fato de terem esses metais diminuído de valor alegam eles, necessariamente passou também a ter menos valor o uso de toda parcela específica dos mesmos e, conseqüentemente, o preço que por eles se podia pagar. Esse raciocínio, que parece plausível à primeira vista, foi tão bem exposto pelo Sr. Hume, que talvez seria supérfluo acrescentar algo mais sobre o assunto. Entretanto, a argumentação que se segue, muito breve e simples, poderá servir para se entender mais claramente a falácia que parece ter induzido a erro os referidos escritores. Antes da descoberta das Índias Ocidentais espanholas, a taxa normal de juros na maior parte da Europa parece ter sido de 10%. A partir de então, em diversos países ela baixou para 6, 5, 4 e 3%. Suponhamos que em determinado país o valor da prata tenha baixado exatamente na mesma proporção da taxa de juros; e que, por exemplo, nesses países em que os juros foram reduzidos de 10 para 5%, a mesma quantidade de prata possa agora comprar apenas a metade da quantidade de bens que poderia ter comprado antes. Em meu entender, essa hipótese pouco condiz com a verdade, mas é a mais favorável à opinião que vamos examinar; e, mesmo com base nessa hipótese, é simplesmente impossível que a baixa do valor da prata pudesse ter a mínima influência na baixa da taxa de juros. Se 100 libras não valem hoje, nesses países, mais do que 50 naquele tempo, 10 libras hoje não podem valer mais do que 5 na época. Quaisquer que tenham sido as 352
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causas que baixaram o valor do capital, as mesmas causas devem necessariamente ter feito baixar o valor dos juros, e exatamente na mesma proporção. A proporção entre o valor do capital e o dos juros deve ter permanecido a mesma, ainda que a taxa nunca tivesse mudado. Pelo contrário, alterando-se a taxa, altera-se necessariamente a proporção entre esses dois valores. Se hoje 100 libras esterlinas não valem mais do que 50 na época, 5 libras hoje não podem valer mais do que valiam 2 libras e 10 xelins na época. Portanto, reduzindo-se a taxa de juros de 10 para 5%, pagamos pelo emprego de um capital, que supomos ser igual à metade do seu valor anterior, juros equivalentes a apenas 1/4 do valor dos juros anteriores. Qualquer aumento da quantidade de prata, permanecendo idêntica a quantidade de mercadorias que fazia circular, não poderia ter outro efeito do que diminuir o valor desse metal. O valor nominal de todos os tipos de mercadorias seria maior, mas seu valor real seria exatamente o mesmo de antes. As mercadorias seriam trocadas por uma quantidade maior de moedas de prata, mas a quantidade de trabalho que poderiam comandar e o número de pessoas às quais poderiam dar emprego e manutenção seriam exatamente os mesmos. O capital do país seria o mesmo, embora poderia ser necessário um número maior de moedas para fazer passar uma quantidade igual de capital de uma para outra mão. Os instrumentos de transferência, como a escritura de transmissão de um advogado prolixo, seriam mais incômodos, mas a coisa cedida seria exatamente a mesma que antes, e só poderia produzir os mesmos efeitos. Sendo os mesmos os fundos destinados à manutenção de mão-de-obra produtiva, a mesma seria também a demanda de mão-de-obra produtiva. O preço dela, portanto, isto é, seus salários, seriam na realidade os mesmos embora nominalmente maiores. Seriam pagos com um número maior de moedas de prata, mas comprariam a mesma quantidade de mercadorias que antes. Os lucros do dinheiro seriam os mesmos, tanto nominalmente como na realidade. Os salários do trabalhador costumam ser computados pela quantidade de prata que lhe é paga. Quando essa aumenta, portanto, aparentemente os salários do trabalhador aumentam, embora às vezes possam, na realidade, não ser maiores do que antes, mas os lucros do dinheiro não são computados pelo número de moedas de prata com as quais são pagos, mas pela proporção que essas moedas mantêm com o capital total empregado. Assim, em determinado país, diz-se que o salário normal do trabalhador é de 5 xelins por semana, e que o lucro normal do dinheiro é de 10%. Entretanto, sendo o mesmo de antes o capital total do país, a concorrência entre os diversos capitais seria também a concorrência entre os diversos capitais dos indivíduos entre os quais está dividido o capital total. Todos negociariam com as mesmas vantagens e desvantagens. Portanto, seria igual a proporção normal entre o capital e os lucros, e conseqüentemente seriam também os mesmos os juros normais do dinheiro, pois o que se pode pagar pelo 353
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uso do dinheiro necessariamente depende do que se pode normalmente ganhar com a aplicação do mesmo. Ao contrário, qualquer aumento da quantidade de mercadorias anualmente em circulação no país, permanecendo igual a quantidade de dinheiro que a faz circular, produziria muitos outros efeitos, além de aumentar o valor do dinheiro. O capital do país, embora nominalmente permanecesse o mesmo, na realidade seria aumentado. Poderia ele continuar a ser expresso pela mesma quantidade de dinheiro, mas poderia comandar um contingente maior de mão-de-obra. Seria maior o contingente de mão-de-obra produtiva que poderia manter e empregar, e conseqüentemente aumentaria também a demanda dessa mãode-obra. Seus salários naturalmente aumentariam juntamente com essa demanda, e no entanto aparentemente poderiam diminuir. Poderiam ser pagos com uma quantidade menor de dinheiro, mas essa quantidade menor de dinheiro poderia comprar uma quantidade maior de mercadorias do que uma quantidade menor o podia antes. Os lucros do capital diminuiriam, tanto aparentemente como na realidade. Aumentando o capital total do país, naturalmente aumentaria com ele a concorrência entre os capitais individuais que compõem o total. Os donos desses capitais individuais seriam obrigados a contentar-se com uma porcentagem menor da produção da mão-de-obra específica empregada por esses capitais. Os juros do dinheiro, que sempre acompanham os lucros do capital, poderiam, assim, diminuir muito, embora aumentasse bastante o valor do dinheiro, ou seja, a quantidade de bens que se poderia comprar com determinada quantia. Em alguns países, a lei proibiu cobrar juros do dinheiro. Mas, já que sempre se pode ganhar algo com o emprego do dinheiro, da mesma forma sempre se pagará algo pelo uso do mesmo. Essa proibição, portanto, ao invés de impedir a usura, fez aumentar esse mal, como demonstra a experiência, pois obrigou o tomador a pagar não somente pelo uso do dinheiro, mas também pelo risco necessariamente assumido pelo credor ao aceitar uma compensação por esse uso. Ele é obrigado, se assim podemos dizer, a pagar ao credor um seguro contra as penalidades impostas a quem pratica a usura. Nos países em que os juros são permitidos, a lei, visando a impedir a extorsão mediante a usura, geralmente fixa a taxa máxima que se pode cobrar sem incorrer em penalidades. Essa taxa deve sempre estar algo acima do preço mínimo de mercado, ou seja, o preço normalmente pago pelo uso do dinheiro, por aqueles que têm condições de oferecer segurança absoluta. Se essa taxa legal de juros for fixada abaixo da taxa mínima de mercado, os efeitos necessariamente serão mais ou menos os mesmos que os decorrentes de uma proibição pura e simples dos juros. O credor não emprestará seu dinheiro por valor inferior ao uso do mesmo, e o devedor acabará tendo que pagar-lhe o risco que o credor assume ao aceitar o valor total desse uso do dinheiro. E se a taxa legal de juros coincidir exatamente com a taxa mínima de mercado, arruína, juntamente com as pessoas honestas, que respeitam as leis 354
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do país, o crédito de todos aqueles que não têm condições de oferecer a garantia máxima, e os obriga a recorrer a usurários gananciosos. Em um país em que, como na Grã-Bretanha, o dinheiro é emprestado ao governo a 3% e a pessoas particulares, com boa margem de segurança, a 4% e até a 4,5%, a taxa atualmente fixada por lei, de 5%, talvez seja a mais adequada de todas. Cumpre salientar que, se a taxa legal de juros deve estar algo acima da taxa mínima de mercado, não deve estar muito acima. Se na Grã-Bretanha, por exemplo, esta taxa de lei fosse fixada a 8 ou 10%, a maior parte do dinheiro a ser emprestado sê-lo-ia a perdulários e a empresários imprudentes, já que só eles estariam dispostos a pagar juros tão altos. Pessoas prudentes e sóbrias, dispostas a pagar pelo uso do dinheiro apenas uma parte daquilo que com ele ganharão, não se arriscariam a entrar na concorrência. Dessa forma, grande parte do capital do país seria desviada daqueles que teriam mais probabilidade de utilizar esse capital de maneira rentável e vantajosa, sendo carreada precisamente para aqueles que com maior probabilidade o desperdiçariam e destruiriam. Ao contrário, onde a taxa legal de juros está muito pouco acima da taxa mínima de mercado, em toda parte se dá preferência a tomadores sóbrios, e não a perdulários e empresários imprudentes. A pessoa que empresta o dinheiro recebe quase tantos juros dos primeiros quanto se arrisca cobrar dos segundos, e esse dinheiro está muito mais seguro nas mãos dos primeiros do que nas dos segundos. Dessa maneira, a maior parte do capital do país cairá naquelas mãos que com maior probabilidade o empregarão de maneira vantajosa. Não há lei que consiga reduzir a taxa normal de juros abaixo da taxa mínima de mercado vigente no momento em que a lei é promulgada. Não obstante o edito de 1766, com o qual o rei da França tentou reduzir a taxa de juros de 5 para 4%, continuou-se a emprestar dinheiro no país, a 5%, burlando a lei de várias maneiras. Importa notar que o preço normal de mercado da terra depende em todo lugar da taxa normal de juros de mercado. A pessoa que possui um capital do qual deseja auferir uma renda sem assumir o incômodo de aplicá-lo ela mesma reflete se lhe convém mais comprar terra ou emprestá-lo a juros. A maior segurança oferecida pela posse de terras, juntamente com algumas outras vantagens que costumam acompanhar esse tipo de propriedade, geralmente a levam a contentar-se com uma renda menor da terra, do que com a que poderia auferir emprestando seu dinheiro a juros. Essas vantagens são suficientes para compensar uma certa diferença de renda, mas não passam disso; com efeito, se fosse maior do que isso a diferença entre a renda da terra e a auferida do empréstimo do dinheiro a juros, ninguém compraria terras, e isso logo reduziria seu preço normal. Ao contrário, se as vantagens compensassem amplamente a diferença, todos comprariam terra, o que elevaria seu preço normal. Quando os juros eram 10%, a terra costumava ser vendida pelo valor de dez ou doze anos de renda. 355
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À medida que os juros baixavam para 6,5 ou 4%, o preço da terra subia para o valor de 20, 25 e até 30 anos de renda. A taxa de juros de mercado é mais elevada na França do que na Inglaterra, e o preço normal da terra é mais baixo. Na Inglaterra, a terra é vendida normalmente pelo valor de 30 anos de renda, ao passo que na França geralmente se vende pelo valor de 20.
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CAPÍTULO V Os Diversos Empregos de Capitais
Embora todos os capitais se destinem exclusivamente à manutenção de mão-de-obra produtiva, a quantidade de mão-de-obra que capitais iguais têm condições de acionar varia ao extremo, de acordo com a diversidade das aplicações desses capitais, variando também ao extremo o valor que esse emprego acrescenta à produção anual da terra e do trabalho do país. Um capital pode ser aplicado de quatro maneiras diversas: primeiro, para se obter a produção natural ou bruta da terra, exigida anualmente, para o uso e consumo da sociedade; segundo, para manufaturar e preparar essa produção bruta da terra para o uso e consumo imediato; terceiro, para transportar a produção bruta ou a produção manufaturada dos lugares onde há abundância para aqueles onde há escassez; finalmente, para dividir porções específicas desses produtos brutos ou manufaturados em pequenas parcelas, de acordo com a demanda ocasional dos que necessitam. No primeiro caso, empregam-se os capitais de todos aqueles que empreendem o aprimoramento ou o cultivo da terra, a exploração das minas e da pesca; no segundo, os capitais de todos os donos de manufaturas; no terceiro, os capitais de todos os comerciantes atacadistas; finalmente, os capitais de todos os comerciantes varejistas. É difícil imaginar algum tipo de aplicação de capital que não se enquadre em um ou outro desses quatro itens. Cada uma dessas maneiras de empregar capital é essencialmente necessária para a existência e a ampliação das três outras, ou para a conveniência geral da sociedade. Se não se empregasse um capital para obter produtos brutos em certo grau de abundância, não poderia existir nem comércio nem indústria de espécie alguma. Se não se empregasse capital na manufatura daquela parte da produção bruta, que exige muito preparo antes que possa ser usada e consumida, jamais seria produzida, porque não haveria nenhuma de357
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manda; ou, se fosse produzida espontaneamente, ela não teria nenhum valor de troca e nada poderia acrescentar à riqueza da sociedade. A menos que se empregasse capital para o transporte, quer da produção bruta ou manufaturada, dos locais onde ela é abundante para aqueles em que é escassa, nada mais poderia ser produzido além do necessário para o consumo da vizinhança. O capital do comerciante troca o produto supérfluo de um local por aquele de outro, incentivando a indústria e aumentando a satisfação de ambos. Se não se empregasse capital para dividir e repartir certas porções da produção bruta ou da produção manufaturada em parcelas pequenas, de acordo com a demanda dos consumidores, cada um seria obrigado a comprar uma quantidade de mercadorias superior àquela de que realmente necessita de imediato. Se, por exemplo, não houvesse açougueiro, cada um seria obrigado a comprar cada vez um boi ou uma ovelha inteira. Isso geralmente seria inconveniente para os ricos e muito mais para os pobres. Se um trabalhador pobre fosse obrigado a comprar de uma só vez as provisões para um ou para seis meses, grande parte do dinheiro que ele emprega como capital nos instrumentos de seu trabalho, ou para aparelhar sua oficina, os quais lhe proporcionam uma renda, ele teria que canalizá-la para aquela parte de seu dinheiro reservada ao seu consumo imediato que não lhe dá nenhuma renda. Nada convém mais a tal pessoa do que poder comprar diariamente o de que necessita para viver, ou até mesmo a cada hora, conforme o desejar. Com isso ela tem a possibilidade de aplicar em forma de capital quase todo o dinheiro que possui. Com isso tem condições de oferecer seu serviço profissional a preço maior e o lucro que ele assim consegue compensa amplamente o preço adicional que o lucro do varejista impõe às mercadorias que vende. Os preconceitos de alguns autores de Política contra os lojistas e comerciantes carecem totalmente de fundamento. Não há necessidade alguma de impor-lhes impostos nem de limitar seu número; nunca eles podem ser tão numerosos que prejudiquem o público, embora sua proliferação excessiva possa prejudicar a eles mesmos. Por exemplo, a quantidade de bens de mercearia que pode ser vendida em uma cidade é limitada pela demanda da cidade e suas redondezas. Por isso, o capital que pode ser aplicado em uma mercearia não pode ultrapassar o que é suficiente para comprar essa quantidade. Se esse capital for dividido entre dois merceeiros, a concorrência entre eles tenderá a fazer com que sejam obrigados a vender mais barato do que se houvesse um só merceeiro; e se houvesse vinte, a concorrência entre eles seria muito maior e a possibilidade de se unirem para aumentar o preço muito menor. A concorrência entre eles poderia levar alguns deles à ruína; entretanto, cabe a eles mesmos resolverem esse problema, podendo-se tranqüilamente confiar no bom senso dos próprios interessados. Essa proliferação ou concorrência nunca poderá prejudicar ao consumidor ou ao produtor; pelo contrário, tenderá a fazer os varejistas venderem mais barato e comprarem mais caro, do que se o negócio todo fosse monopolizado por um ou dois. É 358
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possível que, às vezes, alguns desses varejistas consigam induzir um cliente a comprar aquilo de que não tem necessidade. Todavia, esse mal é muito pequeno para merecer a atenção pública, e isso não seria necessariamente evitado limitando-se o número deles. Para dar o exemplo mais suspeito, não é o grande número de cervejarias que gera uma disposição à embriaguez entre a população simples, mas é essa tendência decorrente de outras causas, que necessariamente dá trabalho a um grande número de cervejarias. As pessoas que empregam seus capitais de qualquer uma das quatro formas assinaladas são elas mesmas trabalhadores produtivos. Seu trabalho, quando dirigido adequadamente, fixa-se e realiza-se no objetivo ou mercadoria vendável que lhe é designada, e geralmente acrescenta ao preço dela pelo menos o valor da manutenção e o consumo desses trabalhadores. Os lucros do agricultor, do manufatureiro, do atacadista e do varejista provêm totalmente do preço das mercadorias que os dois primeiros produzem e que os dois últimos compram e vendem. Todavia, capitais iguais, empregados em cada uma dessas quatro aplicações, acionarão contingentes muito diferentes de mão-de-obra produtiva, e farão também aumentar em proporções muito diferentes o valor da produção anual da terra e do trabalho da sociedade à qual pertencem. O capital do varejista repõe, somado aos lucros, o capital do atacadista do qual ele compra mercadorias, possibilitando assim ao comerciante atacadista levar avante o seu negócio. O próprio varejista é o único trabalhador produtivo ao qual esse capital dá imediatamente emprego. Seus lucros consistem em todo o valor que o emprego desse capital acrescenta à produção anual da terra e do trabalho da sociedade. O capital do comerciante atacadista repõe, juntamente com os lucros, os capitais dos agricultores e manufatores dos quais o atacadista compra a produção bruta e manufaturada com a qual negocia, possibilitando-lhes levarem avante seus respectivos negócios. É principalmente mediante essa prestação de serviços que o atacadista contribui indiretamente para sustentar a mão-de-obra produtiva da sociedade e aumentar o valor do que ela produz anualmente. O capital do atacadista dá emprego também aos marinheiros e aos transportadores que levam suas mercadorias de um lugar para outro, sendo que o preço das mercadorias que vende é acrescido não somente do valor de seus próprios lucros mas também do valor dos salários desses agentes de transporte. Essa é a única mão-de-obra produtiva que o capital do atacadista põe em ação, e o único valor que esse capital acrescenta imediatamente à produção anual. Sob esses dois aspectos, a operação do capital do comerciante atacadista é bastante superior à do capital do comerciante varejista. Parte do capital do proprietário da manufatura é empregada como capital fixo nos instrumentos de seu trabalho, e repõe, juntamente com o respectivo lucro, o capital de outro artesão, do qual o proprietário compra tais instrumentos de trabalho. Parte do capital circulante do 359
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proprietário é empregada na compra de materiais, repondo, juntamente com os respectivos lucros, os capitais dos exploradores da terra e das minas, de quem compra tais materiais. Mas grande parte do capital circulante do proprietário é sempre distribuída, anualmente ou com freqüência muito menor, entre os operários aos quais dá emprego. Ela acrescenta ao valor desses materiais o valor de seus salários, o dos lucros de seus patrões sobre o total dos salários, materiais e instrumentos de trabalho empregados no negócio. Coloca, pois, em movimento, um contingente muito maior de mão-de-obra produtiva, e adiciona à produção anual da terra e do trabalho da sociedade um valor muito maior do que um capital igual nas mãos de qualquer comerciante atacadista. Não há nenhum capital igual que movimente uma quantidade maior de mão-de-obra produtiva do que o capital do agricultor. Não somente seus empregados mas também o gado utilizado no serviço agrícola são trabalhadores produtivos. Além disso, na agricultura, a própria natureza trabalha juntamente com o homem; e embora seu trabalho seja totalmente gratuito, sua produção tem seu valor, tanto quanto o do trabalhador mais caro. As operações mais importantes da agricultura parecem visar não tanto a aumentar — embora também o façam — mas antes a dirigir a fertilidade da natureza para a produção das plantas mais aproveitáveis pelo homem. Um campo cheio de sarças e espinheiros pode muitas vezes produzir uma quantidade tão grande de legumes quanto o vinhedo ou o trigal mais bem cultivados. Freqüentemente, o plantio e o cultivo regularizam mais do que estimulam a fertilidade ativa da natureza, sendo que, depois de todo esse trabalho feito pelo homem e pelo gado, grande parte do mesmo ainda fica por ser feito pela natureza. Portanto, os empregados e o gado utilizado na agricultura, como os operários nas manufaturas, não somente reproduzem um valor igual ao seu próprio consumo ou ao capital que lhes dá emprego, juntamente com os lucros dos donos do capital, como ainda reproduzem um valor muito maior. Além do capital do arrendatário e de todos os seus lucros, normalmente reproduzem o valor correspondente à renda da terra paga ao dono da mesma. Essa renda pode ser considerada como o produto dessas forças da natureza, cuja utilização o dono da terra empresta ao arrendatário. Ele é maior ou menor, conforme a suposta extensão dessas forças ou, em outros termos, de acordo com a suposta fertilidade natural ou melhorada da terra. É o trabalho da natureza que permanece, depois de deduzir ou compensar tudo aquilo que pode ser considerado como obra do homem. Raramente é menos do que 1/4 e muitas vezes mais do que 1/3 da produção total. Nenhuma quantidade igual de mão-de-obra produtiva empregada nas manufaturas é capaz de gerar uma reprodução tão grande. Nelas a natureza nada faz; é o homem que faz tudo; e a reprodução deve sempre ser proporcional à força dos agentes que a geram. Portanto, o capital aplicado na agricultura não somente põe em movimento um contingente de mão-de-obra maior do que qualquer capital igual empregado em manufaturas, senão que também, em proporção à quantidade de mão360
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de-obra produtiva a que dá emprego, acrescenta um valor muito maior à produção anual da terra e do trabalho do país, à riqueza e à renda real de seus habitantes. De todos os modos de empregar um capital, o empregado na agricultura é de longe o mais vantajoso para a sociedade. Os capitais empregados na agricultura e no comércio varejista de uma sociedade sempre devem inserir-se nessa sociedade. Seu emprego está limitado praticamente a um local preciso, à propriedade rural e à loja do varejista. Além disso, geralmente esses capitais devem pertencer a membros residentes da sociedade, excetuados alguns casos. Ao contrário, o capital de um comerciante atacadista não parece ter uma residência fixa ou necessária em parte alguma, podendo deslocar-se de um lugar para outro, enquanto puder comprar barato ou vender caro. O capital do manufator deve sem dúvida se fixar no local onde a manufatura funciona, mas nem sempre está determinado onde isso deve ser. Muito freqüentemente poderá estar a grande distância, tanto do lugar em que são produzidos os materiais, como do local onde os produtos manufaturados são consumidos. Lyon está muito distante, tanto dos lugares que fornecem os materiais para suas manufaturas como dos lugares que consomem seus produtos. As pessoas de posição da Sicília vestem sedas fabricadas em outros países, porém, a partir de materiais produzidos na própria ilha. Parte da lã da Espanha é manufaturada na Grã-Bretanha, e parte desses tecidos novamente exportada para a Espanha. Muito pouca diferença faz se é nacional ou estrangeiro o comerciante cujo capital exporta a produção excedente de uma sociedade. Se for um estrangeiro, necessariamente o número de seus trabalhadores produtivos é menor se fosse um nacional, na razão de apenas um homem; e também o valor da produção anual desses trabalhadores também é menor, na razão dos lucros daquele único homem. Os marinheiros ou os transportadores aos quais esse capital dá emprego também podem pertencer ao próprio país, ao país deles ou a um terceiro país, da mesma forma como se o comerciante fosse do país. O capital de um estrangeiro acrescenta um valor à produção excedente, da mesma forma que o de um nacional, trocando-a por algo que é objeto de demanda no país. Com a mesma eficiência, repõe o capital da pessoa que produz esse excedente, e lhe possibilita continuar seu negócio; o serviço pelo qual o capital de um atacadista contribui sobretudo para sustentar a mão-de-obra produtiva e para aumentar o valor da produção anual da sociedade à qual pertence. Quanto ao capital do manufator, a conseqüência é maior se esse capital estiver dentro do país. Pois, se assim for, ele necessariamente movimenta uma quantidade maior de mão-de-obra produtiva, e acrescenta um valor maior à produção anual da terra e do trabalho da sociedade. Todavia, o capital do manufator também pode ser muito útil ao país, mesmo estando fora dele. Os capitais dos manufatores britânicos, que fabricam o linho e o cânhamo importados anualmente 361
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das costas do mar Báltico, certamente são muito úteis aos países que os produzem. Esses materiais fazem parte do excedente de produção desses países, excedente esse que, se não fosse anualmente trocado por algo que lá está em falta, não teria valor algum, deixando logo de ser produzido. Os comerciantes que exportam esse excedente repõem os capitais das pessoas que o produzem, estimulando-as assim a continuarem sua produção; e os manufatores britânicos repõem os capitais desses comerciantes. Determinado país, da mesma forma que determinado indivíduo muitas vezes pode não ter capital suficiente para aprimorar e cultivar toda a sua terra, para industrializar e preparar toda a sua produção bruta destinada ao uso e consumo imediato, para transportar o excedente da produção bruta ou da produção industrializada a mercados distantes onde possa ser trocado por algo que está em falta no país. Os habitantes de muitas regiões da Grã-Bretanha não dispõem de capital suficiente para melhorar e cultivar todas as suas terras. Grande parte da lã dos condados sulinos da Escócia, após um longo transporte através de péssimas estradas, é industrializada no Yorkshire, porque falta lá capital suficiente. Há na Grã-Bretanha muitas pequenas cidades industriais, cujos habitantes não têm capital suficiente para transportar a produção de seu próprio trabalho aos mercados distantes onde há para ela demanda e consumo. Se há algum comerciante entre eles, são praticamente apenas agentes de comerciantes mais ricos, que residem em algumas das cidades comerciais de maior importância. Quando o capital de um país não é suficiente para todos esses três objetivos, quanto maior for a parcela desse capital empregada na agricultura, tanto maior será a quantidade de mão-de-obra produtiva que ela movimentará dentro do país, e tanto maior será também o valor que o emprego desse capital acrescentará à produção anual da terra e do trabalho da sociedade. Depois da agricultura, o capital investido em manufaturas movimenta o maior contingente de mão-deobra produtiva e acrescenta o maior valor possível à produção anual. O capital empregado no comércio de exportação é o que tem menos efeito, dentre os três. Assim, o país que não tem capital suficiente para todos esses três objetivos, ainda não chegou àquele grau de riqueza ao qual parece naturalmente destinado. Entretanto, tentar prematuramente, e com um capital insuficiente, fazer as três coisas certamente não é o caminho mais curto para um país da mesma forma como não seria para um indivíduo adquirir um capital suficiente. A soma de todos os capitais individuais de uma nação tem os seus limites, tanto quanto o capital de determinado indivíduo isolado, podendo concretizar apenas alguns objetivos. O capital da soma de indivíduos de uma nação aumenta da mesma forma que o capital de um indivíduo particular: mediante o acúmulo contínuo, acrescentando ao capital já existente tudo aquilo que se consegue economizar da renda. Portanto, esse capital tem possibilidades de aumentar o mais rapidamente, quando empregado de 362
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maneira que proporcione a maior renda a todos os habitantes do país, pois terão então condições de fazer enorme poupança. Mas a renda de todos os habitantes do país é necessariamente proporcional ao valor da produção anual de sua terra e de seu trabalho. A causa primordial do rápido progresso de nossas colônias americanas rumo à riqueza e à grandeza reside no fato de terem até agora aplicado quase todos os seus capitais na agricultura. Não têm manufaturas, excetuadas as domésticas e menos refinadas, que acompanham necessariamente o progresso da agricultura, manufaturas essas devidas ao trabalho das mulheres e das crianças, em cada família. A maior parte do comércio da América, tanto do costeiro como do de exportação, é movimentada pelos capitais de comerciantes que residem na GrãBretanha. Mesmo muitos dos depósitos e armazéns que vendem aos varejistas, em algumas regiões, sobretudo na Virgínia e no Maryland, pertencem a comerciantes que residem na Grã-Bretanha, constituindo um dos poucos exemplos em que o comércio varejista de um país é movimentado pelos capitais daqueles que não são seus membros residentes. Se os americanos, por conluio ou por algum outro tipo de violência, deixassem de importar manufaturados europeus, e reservassem a patrícios seus o monopólio da fabricação desses bens, desviando assim parte considerável de seu capital para a manufatura, ao invés de acelerarem o ulterior crescimento do valor de sua produção anual, haveriam de retardá-lo e, ao invés de promoverem o progresso de seu país rumo à riqueza e à grandeza reais, haveriam de obstruí-lo. Isso ocorreria mais ainda se tentassem monopolizar para si todo o seu comércio de exportação. Com efeito, ao que parece, a evolução da prosperidade humana raramente apresentou uma continuidade tão longa, a ponto de possibilitar a um grande país a aquisição de capital suficiente para todos os três objetivos mencionados, a menos, talvez, que déssemos crédito aos relatos mirabolantes sobre a riqueza e o cultivo na China, sobre o Egito Antigo e ao antigo Estado do Industão. Mesmo esses três países, os mais ricos do mundo, porém, segundo o relato de todos, parecem ter se destacado por sua atividade manufatureira e agrícola. Não parecem ter sobressaído no comércio exterior. Os antigos egípcios nutriam uma antipatia supersticiosa contra o mar; uma superstição mais ou menos do mesmo tipo prevalece entre os hindus; e os chineses nunca se distinguiram no comércio exterior. Ao que parece, a maior parte do excedente de produção desses três países era sempre exportada por estrangeiros, que davam, em troca, alguma outra coisa de que eles tinham necessidade, muitas vezes ouro e prata. Assim, pois, o mesmo capital, em um país, movimentará um contingente maior ou menor de mão-de-obra produtiva e acrescentará um valor maior ou menor à produção anual de sua terra e de seu trabalho, conforme às diferentes proporções em que esse capital for aplicado à agricultura, às atividades manufatureiras e ao comércio atacadista. Além disso, 363
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a diferença é também muito grande conforme os diversos ramos de comércio atacadista em que se aplica alguma parte desse capital. Todas as variedades de comércio atacadista — ou seja, toda compra de mercadorias, visando a revendê-las no atacado — podem ser reduzidas a três: O comércio interno, O comércio exterior para consumo interno, e o comércio de transporte. O comércio interno consiste em comprar em uma região do próprio país o produto do trabalho do país, e revendê-lo em outra. Engloba tanto comércio terrestre como de cabotagem. No comércio exterior para consumo interno, compram-se mercadorias estrangeiras para o consumo interno do país. O comércio de transporte é utilizado na efetivação do comércio entre países estrangeiros, ou no transporte da produção excedente de um país para outro. O capital empregado para comprar o produto do trabalho do próprio país em uma região para revendê-lo em outra do mesmo país, geralmente repõe, em toda operação desse tipo, dois capitais diferentes, que anteriormente haviam sido investidos na agricultura ou nas manufaturas desse país, possibilitando aos agricultores e aos industriais continuarem essa aplicação. Quando esse capital expede da loja do comerciante certo valor de mercadorias, geralmente traz em troca pelo menos um valor igual de outras mercadorias. Quando as duas são produzidas por trabalho doméstico, esse capital necessariamente repõe, em cada uma dessas operações, dois capitais diferentes, sendo que ambos haviam previamente sido investidos em sustentar mão-de-obra produtiva, possibilitando-lhes assim continuarem esse investimento. O capital que expede manufaturados escoceses para Londres e traz de volta para Edimburgo trigo e manufaturados ingleses necessariamente repõe em cada uma dessas operações dois capitais britânicos, que anteriormente haviam sido aplicados na agricultura ou nas manufaturas da Grã-Bretanha. Também o capital empregado em comprar mercadorias estrangeiras para consumo interno, quando essa compra é feita com produtos do próprio país, repõe, em cada uma dessas operações, dois capitais diferentes, mas somente um dos dois é empregado para sustentar o trabalho doméstico. O capital que expede mercadorias britânicas a Portugal e traz de volta mercadorias portuguesas para a Grã-Bretanha, repõe, em cada uma dessas operações, somente um capital britânico, sendo que o outro é português. Ainda que, portanto, o retorno do comércio externo de bens de consumo possa ser tão rápido quanto o do comércio puramente interno, o capital investido nele só dará a metade do estímulo à industria ou mão-de-obra produtiva do país. Entretanto, o retorno do comércio externo de bens de consumo rarissimamente é tão rápido quanto o assegurado pelo comércio interno. O retorno do comércio interno ocorre em geral antes do fim do ano, e, em certos casos, três ou quatro vezes ao ano. O retorno do comércio externo de bens de consumo raramente ocorre antes do fim do ano, e, em certos casos, demora dois ou três anos. Portanto, um capital aplicado no comércio interno às vezes comporta doze operações, ou sairá e re364
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tornará doze vezes antes que um capital empregado no comércio externo de bens de consumo efetue uma única operação. Por conseguinte, se os capitais forem iguais, o primeiro proporcionará 24 vezes mais estímulo e sustentação à indústria do país do que o segundo. As mercadorias estrangeiras para consumo interno às vezes podem ser compradas, não com os produtos do próprio país, mas com alguns outros produtos estrangeiros. Todavia, estes últimos devem ter sido comprados diretamente com o produto da indústria nacional ou com alguma coisa adquirida com ele; com efeito, excetuados os casos de guerra ou de conquista, as mercadorias estrangeiras só podem ser adquiridas em troca de algo produzido anteriormente no país, diretamente ou após duas ou mais trocas diferentes. Conseqüentemente, os efeitos de um capital empregado em tal comércio externo indireto de bens de consumo são, sob todos os aspectos, iguais àqueles da operação comercial mais direta do mesmo gênero, exceto que o retorno final está sujeito a ser ainda mais demorado, já que dependerá do retorno de duas ou três operações diferentes de comércio externo. Se o linho e o cânhamo de Riga são comprados com o fumo importado da Virgínia — o qual, por sua vez, tinha sido comprado com manufaturados britânicos — o comerciante deve esperar o retorno de duas operações diferentes de comércio exterior, antes de poder aplicar o mesmo capital para recomprar uma quantidade igual de manufaturados britânicos. Ao contrário, se o fumo da Virgínia tivesse sido comprado não com manufaturados britânicos, mas com açúcar e rum da Jamaica, que tinham sido comprados com aqueles manufaturados, o comerciante teria que esperar o retorno de três operações de comércio exterior. Se essas duas ou três operações diferentes de comércio exterior tivessem sido efetuadas por dois ou três comerciantes diferentes, dos quais o segundo compra as mercadorias importadas pelo primeiro, e o terceiro compra as importadas pelo segundo para reexportá-las, cada comerciante receberia, nesse caso, o retorno de seu próprio capital com mais rapidez; contudo, o retorno final do capital total empregado nesse comércio seria exatamente tão demorado como antes. Se o capital total empregado em tal comércio exterior mais indireto pertence a um só comerciante ou a três, não faz diferença alguma em relação ao país, mas pode fazer uma diferença para os respectivos comerciantes. Em ambos os casos, dever-se-á empatar um capital três vezes maior para trocar um certo valor em mercadorias britânicas por uma certa quantidade de linho e cânhamo, em comparação com o capital que teria sido necessário empatar, no caso de o linho e o cânhamo terem sido trocados diretamente por manufaturados britânicos. Por conseguinte, o capital total empregado em tal espécie de comércio exterior de bens de consumo, de tipo cruzado, normalmente proporcionará menos estímulo e sustentação à mão-de-obra produtiva no país, em comparação com o estímulo e a sustentação que se teria no caso de um capital igual a ser empregado em uma operação mais direta de comércio externo. Qualquer que seja a mercadoria estrangeira com a qual se com365
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pram os bens estrangeiros para consumo interno, ela não pode acarretar nenhuma diferença essencial, nem quanto à natureza do negócio, nem quanto ao estímulo e sustentação que possa proporcionar à mão-de-obra produtiva do país a partir do qual é feita a operação. Tenham as mercadorias sido compradas com o ouro do Brasil ou com a prata do Peru, esse ouro e essa prata, como o fumo da Virgínia, devem, por sua vez, ter sido comprados, com um produto interno do país ou com alguma outra coisa anteriormente comprada com produtos do país. Por isso, no que concerne à mão-de-obra produtiva do país, o comércio externo de bens de consumo efetuado mediante ouro e prata tem todas as vantagens e também todas as desvantagens de qualquer outro comércio externo indireto para consumo interno, reproduzindo exatamente com a mesma rapidez ou com a mesma lentidão o capital diretamente empregado em sustentar essa mão-de-obra produtiva do país. Parece até apresentar uma vantagem em relação a qualquer outra operação indireta de comércio externo de bens de consumo. O transporte desses metais de um local para outro, em razão de seu volume pequeno e de seu alto valor, é menos dispendioso que o de quase todas as outras mercadorias estrangeiras de valor igual. Seu frete é muito menos caro, e o seguro a pagar não muito maior; além disso, não há mercadoria menos sujeita a danos em função do transporte. Por conseguinte, uma quantidade igual de mercadorias estrangeiras muitas vezes pode ser comprada com uma quantidade menor de produtos internos, se a mercadoria de troca for ouro e prata, ao invés de outras mercadorias estrangeiras. A demanda do país muitas vezes pode ser melhor atendida dessa maneira, suprida mais completamente e com despesa menor, do que de qualquer outra forma. Outra questão é se, em decorrência da exportação contínua desses metais preciosos, um comércio dessa linha tem probabilidade de empobrecer o país do qual provêm. Esse problema, abordá-lo-ei minuciosamente mais adiante. A parcela de capital de um país que é empregada no comércio de transporte exterior é totalmente retirada da sustentação da mãode-obra produtiva do próprio país para sustentar a mão-de-obra produtiva de alguns outros países estrangeiros. Embora essa parcela de capital possa, em cada operação, repor dois capitais diferentes, nenhum dos dois pertence ao respectivo país. O capital do comerciante holandês, que transporta o trigo da Polônia para Portugal, trazendo de volta à Polônia as frutas e os vinhos de Portugal, repõe em cada operação desse tipo dois capitais, nenhum dos quais havia sido empregado para sustentar mão-de-obra produtiva da Holanda, pois um deles havia sido empregado para sustentar a mão-de-obra produtiva da Polônia, e o outro para sustentar a mão-de-obra produtiva de Portugal. Somente os lucros retornam regularmente à Holanda, constituindo o único acréscimo que esse tipo de comércio necessariamente traz para a produção anual da terra e do trabalho daquele país. Sem dúvida, quando o comércio de transporte de determinado país é executado com navios e marinheiros desse país, a parte do capital empregado nele, que paga 366
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o frete, é distribuída entre um certo número de trabalhadores do país, mantendo essa mão-de-obra produtiva. Efetivamente, quase todas as nações que tiveram uma parte considerável no comércio de navegação, o efetuaram dessa forma. O comércio provavelmente deriva seu nome desse fato, já que são os habitantes desses países que transportam para outros países. Todavia, não parece que isso seja essencial para esse tipo de comércio. Um comerciante holandês pode, por exemplo, empregar seu capital no comércio da Polônia e de Portugal, transportando parte do excedente de produção de um país para outro, não com navios holandeses mas com navios britânicos. Pode-se até supor que faça isto, em determinadas ocasiões. É por esta razão que se supõe que o comércio de transporte de mercadorias é particularmente vantajoso para um país como a Grã-Bretanha, cuja defesa e segurança dependem do número de seus marujos e de seus navios. Mas o mesmo capital pode empregar tantos marujos e tantos navios, no comércio externo de bens de consumo ou mesmo no comércio interno, quando realizado com navios de cabotagem, quantos poderia empregar no comércio de transporte de mercadorias. O número de marujos e navios que um determinado capital pode empregar não depende da natureza do comércio, mas em parte do volume das mercadorias em comparação com seu valor, e em parte da distância entre os portos para os quais as mercadorias são transportadas, dependendo mais do primeiro fator. Por exemplo, o comércio de carvão entre Newcastle e Londres emprega mais navios do que todo o comércio exterior de transporte de mercadorias, embora os portos não distem muito um do outro. Eis porque forçar, mediante estímulos extraordinários, uma aplicação maior de capital de um país no comércio de transporte de mercadorias, do que a parcela que seria naturalmente canalizada para ele, não levará necessariamente a aumentar a frota mercante desse país. Conseqüentemente, o capital empregado no comércio interno de um país normalmente estimula e sustenta um contingente maior de mão-de-obra produtiva naquele país, e aumenta o valor de sua produção anual mais do que um capital igual empregado no comércio externo de bens de consumo; e o capital empregado nesse último tipo de comércio apresenta, sob esses dois aspectos, uma vantagem ainda maior em relação a um capital empregado no comércio de transporte de mercadorias. A riqueza e portanto o poder de um país — na medida em que esse depende da riqueza — devem ser sempre proporcionais ao valor de sua produção anual, de cujo fundo, em última análise, devem ser pagos todos os impostos. Mas o grande objetivo da economia política de um país consiste em aumentar sua riqueza e seu poder. Ele não deve, portanto, dar preferência ou maiores estímulos ao comércio externo de bens de consumo em relação ao comércio interno, nem ao comércio de transporte de mercadorias em relação aos dois outros tipos de comércio. Ele não deve também forçar nem aliciar para algum desses dois canais uma parcela do capital do país superior àquela que espontaneamente fluiria para cada um deles. 367
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Todavia, cada um desses diversos setores de comércio não somente acarreta vantagens, mas é necessário e inevitável, se forem introduzidos pelo curso normal dos acontecimentos, sem coação ou violência. Quando a produção de determinado setor ultrapassa a demanda do próprio país, o excedente deve ser exportado e trocado por algo que esteja em falta no país. Sem essa exportação, cessará necessariamente uma parte do trabalho produtivo do país, diminuindo o valor de sua produção anual. A terra e o trabalho na Grã-Bretanha costumam produzir mais trigo, mais lã e ferragens do que o exigido pela demanda interna. Portanto, o excedente desses produtos deve ser exportado e trocado por algo que esteja em falta no país. Somente mediante essa exportação, o excedente pode adquirir um valor para compensar o trabalho e as despesas necessárias para produzi-lo. A proximidade das costas marítimas e de todos os rios navegáveis constitui localização vantajosa para a indústria, somente porque facilita a exportação e a troca de tais produtos excedentes por alguma outra mercadoria que esteja mais em falta no respectivo país. Quando as mercadorias estrangeiras compradas com o excedente da produção interna superam a demanda do próprio país, o excedente dessas mercadorias importadas deve ser reexportado, sendo trocado por alguma outra mercadoria que esteja mais em falta no país. Com uma parte do excedente de manufaturados britânicos compram-se anualmente em torno de 96 mil tonéis de tabaco da Virgínia e do Maryland. Ora, a demanda da Grã-Bretanha talvez não exija mais do que 14 mil. Se os restantes 82 mil não pudessem ser exportados e trocados por alguma coisa mais em falta em nosso país, a importação desse excedente deveria cessar imediatamente, e com ela também o trabalho produtivo de todos aqueles habitantes da Grã-Bretanha que atualmente estão empregados em preparar as mercadorias mediante as quais são anualmente comprados esses 82 mil barris de fumo. Dever-se-ia deixar de produzir essas mercadorias que constituem parte da produção da terra e do trabalho da Grã-Bretanha, por não terem mercado no país e por tê-lo perdido também no exterior. Por conseguinte, em certas ocasiões, o comércio externo mais indireto, para o consumo interno, pode, em certos casos, ser tão necessário quanto o comércio mais direto, para sustentar o trabalho e a mão-de-obra produtiva do país. Quando o capital de um país cresceu a tal ponto que não pode ser totalmente aplicado no suprimento do consumo interno e para sustentar a mão-de-obra produtiva do respectivo país, a parte excedente dele é naturalmente canalizada para o comércio de transporte externo de mercadorias, sendo aplicada para cumprir as mesmas funções para outros países. O comércio de transporte de mercadorias representa o efeito e o sintoma natural de grande riqueza nacional, mas não parece ser a causa natural dela. Os estadistas que se têm empenhado em fomentá-lo com incentivos especiais parecem ter confundido o efeito e o sintoma com a causa. Eis porque a Holanda, que, em proporção com 368
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a extensão da terra e com o número de habitantes, é de longe o país mais rico da Europa, possui a parcela maior do comércio de transporte da Europa. A Inglaterra, talvez o segundo país mais rico da Europa, supostamente também possui uma parte considerável desse comércio, embora o que se costuma geralmente chamar de comércio de transporte da Inglaterra muitas vezes talvez não passe propriamente de um comércio externo indireto para consumo interno. Tal é, em grande parte, o transporte de mercadorias das Índias Orientais e Ocidentais, e da América, para diversos mercados europeus. Essas mercadorias geralmente são compradas com produtos da indústria britânica ou com outras mercadorias anteriormente compradas com tais produtos internos, sendo que os retornos finais dessas transações costumam ser usados ou consumidos na Grã-Bretanha. O comércio de transporte em navios britânicos entre os diversos portos do Mediterrâneo, e uma parte do mesmo tipo de comércio efetuado por comerciantes britânicos entre os diferentes portos da Índia, representam talvez os setores principais do que se pode propriamente denominar o comércio de transporte de mercadorias da Grã-Bretanha. O volume de comércio interno e de capital que pode ser nele empregado é necessariamente limitado pelo valor do excedente de produção de todas as regiões do país, que têm necessidade de trocar entre si seus respectivos produtos. Por sua vez, o volume do comércio externo de bens de consumo e do capital que pode ser empregado nele é limitado pelo valor do excedente de produção do país inteiro e daquilo que com esse excedente se pode comprar. E o volume do comércio de transporte de mercadorias é limitado pelo valor do excedente de produção de todos os países do mundo. O volume possível desse tipo de comércio, portanto, é de certo modo infinito em comparação com o volume dos outros dois tipos de comércio, sendo capaz de absorver o máximo de capital. A consideração de seu próprio lucro é o único motivo que faz com que o dono de um capital o aplique na agricultura, nas atividades manufatureiras ou em algum setor específico do comércio atacadista ou varejista. Ele nunca leva em consideração as diferentes quantidades de mão-de-obra produtiva que seu capital pode movimentar e os valores que ele pode acrescentar à produção anual da terra e do trabalho do país, conforme seu capital seja empregado em um ou em outro desses setores de comércio. Por isso, em países em que a agricultura representa o emprego de capital mais rentável e o cultivo e o aperfeiçoamento da terra representam os caminhos mais diretos para conseguir uma grande fortuna, os capitais dos indivíduos serão naturalmente empregados da maneira mais vantajosa para os países. Todavia, os lucros auferidos da agricultura não parecem ser superiores aos assegurados por outros empregos de capital, em nenhum país da Europa. Sem dúvida, em todos os recantos da Europa, no decorrer desses últimos anos, certos promotores de projetos agrícolas têm procurado convencer o público, por meio de seus relatos mirabolantes, dos grandes lucros que se podem auferir do cultivo e do aprimoramento da terra. Todavia, sem querer 369
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adentrar-me numa discussão detalhada de seus cálculos, basta uma observação muito simples para convencer-nos de que os resultados devem ser falsos. A cada dia observamos surgirem as maiores fortunas, adquiridas no decurso da vida de uma só pessoa, por meio da atividade comercial e manufatureira, muitas vezes a partir de um capital muito pequeno, e às vezes sem nenhum capital inicial. Ora, talvez não haja em toda a Europa, durante o decurso do corrente século, um único exemplo de uma grande fortuna adquirida por meio da atividade agrícola, durante a vida de um único indivíduo, e partindo de um capital pequeno ou nulo. Por outro lado, em todos os grandes países da Europa, ainda restam muitas áreas de terra boa a serem cultivadas, e grande parte da terra cultivada está longe de já ter recebido todas as melhorias que seria capaz de comportar. A agricultura, portanto, quase em toda parte é capaz de absorver um capital muito maior do que o até agora investido nela. Quais as circunstâncias da política européia que fizeram com que os negócios efetuados nas cidades sejam mais vantajosos do que os realizados no campo, a tal ponto que os investidores particulares têm muitas vezes considerado mais rentável para eles aplicar seus capitais no comércio de transporte mais longínquo com a Ásia e com a América, do que aplicá-los na melhoria e no cultivo das terras mais férteis existentes em suas próprias regiões: eis o que procurarei explicar detalhadamente nos dois próximos livros desta obra.
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LIVRO TERCEIRO
A Diversidade do Progresso da Riqueza nas Diferentes Nações
CAPÍTULO I O Progresso Natural da Riqueza
O grande comércio de todo país civilizado é o efetuado entre os habitantes da cidade e os habitantes do campo. Consiste na troca de produtos em estado bruto por produtos manufaturados, o que pode ser feito ou diretamente, por meio do dinheiro, ou por algum tipo de papel que represente o dinheiro. O campo fornece à cidade os meios de subsistência e os materiais a serem manufaturados. A cidade restitui isso, devolvendo aos habitantes do campo parte da produção manufaturada. Pode-se afirmar com muita propriedade que a cidade, na qual não há nem pode haver nenhuma reprodução de gêneros de subsistência, adquire toda a sua riqueza e subsistência do campo. Nem por isso devemos, porém, imaginar que ganhando a cidade o campo saia perdendo. Os ganhos dos dois são mútuos e recíprocos, sendo que a divisão de trabalho e de tarefas, nesse como em outros casos, traz vantagem para todas as ocupações em que se subdivide o trabalho. Os habitantes do campo compram da cidade uma quantidade maior de bens manufaturados, com o produto de uma quantidade muito menor de seu próprio trabalho, do que teriam que executar se tentassem eles mesmos transformar essa sua produção bruta. A cidade proporciona um mercado para o excedente de produção do campo, vale dizer, para aquilo que ultrapassa o necessário à manutenção dos agricultores, sendo na cidade que os habitantes do campo trocam esse excedente por coisas que lhes fazem falta. Quanto maior for o número e a renda dos habitantes da cidade, tanto maior será o mercado que ela propicia aos habitantes do campo; e quanto maior for esse mercado, tanto maior será sempre a vantagem para um grande número de pessoas. O trigo que cresce a uma milha de distância da cidade é vendido ali pelo mesmo preço que o trigo que vem da distância de vinte milhas. Ora, o preço deste último geralmente deve pagar não somente a despesa do cultivo do trigo e a despesa necessária para colocá-lo no mercado, mas ainda garantir o lucro normal que cabe ao arrendatário da terra. Por conseguinte, os 373
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donos e os cultivadores de uma propriedade rural localizada perto da cidade ganham, no preço do produto que vendem, não somente o lucro normal da agricultura, mas também o valor integral do transporte do produto similar, que é trazido de regiões mais distantes, além de economizarem, no preço do que compram, o valor integral desse transporte. Compare-se o cultivo de terras localizadas nas proximidades de uma grande cidade, com o cultivo das terras localizadas a alguma distância dela, e se compreenderá facilmente até que ponto o campo é beneficiado pelo comércio existente na cidade. Entre todas as teorias absurdas propagadas no tocante à balança comercial, jamais alguém chegou a pretender insinuar que o campo acaba perdendo no comércio com a cidade, ou que a cidade acaba perdendo no comércio com o campo. Assim como a subsistência, pela própria natureza das coisas, tem prioridade sobre o que são apenas comodidades e artigos de luxo, da mesma forma a atividade que garante a subsistência tem necessariamente prioridade sobre a que está a serviço das meras comodidades e do luxo. Conseqüentemente, o aprimoramento e o cultivo da terra, pelo fato de assegurar o necessário para a subsistência, deve forçosamente ter prioridade sobre o crescimento da cidade, que fornece apenas comodidades e artigos de luxo. É somente o excedente da produção do campo, isto é, o que vai além do necessário para a manutenção do pessoal do campo, que constitui a subsistência da cidade, a qual, pois, só pode crescer na medida em que aumentar o excedente de produção do campo. A cidade nem sempre consegue obter tudo o que é necessário para sua subsistência das propriedades rurais localizadas em sua redondeza; muitas vezes, nem sequer é suficiente a produção vinda do país ao qual pertence, havendo necessidade de recorrer a países muito distantes; ora, isso, embora não constitua nenhuma exceção à regra geral, tem gerado variações consideráveis no progresso da riqueza em épocas e em nações diferentes. Essa ordem de coisas que a necessidade impõe de modo geral, ainda que nem sempre em um país específico, é reforçada em cada país pelas inclinações naturais do homem. Se as instituições humanas nunca tivessem interferido nessas inclinações naturais, jamais as cidades poderiam em qualquer parte ter crescido além da medida compatível com o aprimoramento e o cultivo do território ou do país do qual fazem parte; pelo menos, até quando todo aquele território estivesse completamente cultivado e aprimorado. Em condições de paridade ou quase paridade de lucros, a maioria das pessoas optará por empregar seus capitais na melhoria e no cultivo da terra, ao invés de os canalizar para a manufatura ou para o comércio exterior. A pessoa que aplica seu capital na terra, tem-no sob suas vistas e sob seu controle direto, e sua fortuna está muito menos exposta a acidentes do que a do comerciante, que muitas vezes se vê obrigado a confiá-lo não somente aos ventos e às ondas, mas também aos fatores mais incertos da insensatez e da injustiça humana, dando crédito, em países distantes, a pessoas cujo caráter e situação raramente chega a conhecer bem. Ao 374
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contrário, o capital do proprietário de terras, que é aplicado na melhoria de sua terra, parece estar tão bem assegurado quanto a natureza dos negócios humanos possa comportar. Além disso, a beleza do campo, os prazeres de uma vida campestre, a tranqüilidade de espírito que ela proporciona, e, onde a injustiça das leis humanas não a perturbar, a autonomia que tal modalidade de vida assegura, possuem encantos que atraem praticamente a todos; e, assim como o cultivo do solo sempre foi o destino natural do homem, da mesma forma, em todos os estágios de sua existência, ele parece conservar uma predileção por essa ocupação primitiva. Todavia, sem a ajuda de certos artífices, não é possível cultivar a terra, a não ser com grandes inconvenientes e interrupções contínuas. Ferreiros, carpinteiros, fabricantes de rodas, fabricantes de arados, fabricantes de tijolos, pedreiros, curtidores, sapateiros, alfaiates, todos são pessoas de que o agricultor tem freqüente necessidade. Também esses artífices, por sua vez, têm ocasionalmente necessidade de ajuda uns dos outros; e, já que sua residência não está necessariamente fixada a um lugar específico como é o caso dos agricultores, naturalmente se estabelecem um perto do outro, formando assim uma pequena cidade ou aldeia. Logo se lhes juntam o açougueiro, o cervejeiro, o padeiro, juntamente com muitos outros artífices e varejistas necessários ou úteis para atender às suas necessidades ocasionais, e que contribuem para que a cidade cresça ainda mais. Os habitantes da cidade e os do campo ajudam-se mutuamente. A cidade é uma feira ou mercado contínuo, para onde confluem continuamente os habitantes do campo, a fim de trocar sua produção em estado bruto por produtos manufaturados. É esse comércio que fornece aos habitantes da cidade os materiais com que trabalham e os meios para sua subsistência. A quantidade de produto acabado que vendem aos habitantes do campo necessariamente determina a quantidade de materiais e provisões que deles compram. Portanto, nem seu emprego nem sua subsistência podem aumentar, senão na medida em que aumentar a demanda dos habitantes do campo em relação ao produto acabado da cidade; por sua vez, essa demanda dos habitantes do campo em relação aos produtos acabados da cidade só pode crescer na medida em que aumentar a extensão das terras aprimoradas e cultivadas. Eis porque, se as instituições humanas não tivessem interferido no curso natural das coisas, a riqueza progressiva e o crescimento das cidades seriam, em toda sociedade política, conseqüência da melhoria e do cultivo da região ou do país, sendo também proporcional a essa melhoria e a esse cultivo. Nas nossas colônias norte-americanas, onde ainda se podem comprar barato terras incultas, em nenhuma cidade surgiram manufaturas destinadas a produzir para vender em locais distantes. Quando um artífice adquire um capital pouco superior ao necessário para levar adiante sua ocupação de servir aos vizinhos do campo, ele não procura, na América do Norte, implantar uma manufatura para vender seus produtos em locais distantes, mas emprega seu capital para comprar, 375
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melhorar e cultivar a terra. Transforma-se de artífice em plantador, sendo que nem os bons salários nem a fácil subsistência que o país garante aos artífices conseguem aliciá-lo a trabalhar para os outros, quando pode trabalhar para si mesmo. Ele percebe que um artífice é escravo de seus clientes, dos quais aufere sua subsistência; e que um agricultor que cultiva sua própria terra, auferindo sua subsistência do trabalho de sua própria família, é realmente um patrão, independente de todos. Ao contrário, em países onde não há mais terra inculta, ou onde não existe terra que se possa comprar a preço baixo, todo artífice que conseguiu acumular capital superior ao que consegue aplicar no atendimento dos clientes da redondeza procura aplicá-lo em produzir para vender mais longe. O ferreiro dá início a certo tipo de fundição, o tecelão funda determinada manufatura de linho ou de lã. Essas diversas manufaturas, com o decorrer do tempo, subdividem-se gradualmente, aprimorando-se e refinando-se assim, de maneiras muito variadas, o que é fácil conceber e que portanto não carece de ulterior explicação. Ao se buscar uma forma de aplicar um capital, em paridade ou quase paridade de lucros, naturalmente se prefere as manufaturas ao comércio exterior, pela mesma razão que às manufaturas se prefere a agricultura. Assim como o capital do proprietário da terra ou do arrendatário está mais seguro do que o do manufator, da mesma forma o capital deste, por estar sempre sob as vistas e sob o controle mais direto do patrão, está mais seguro do que o capital empatado no comércio exterior. Com efeito, em todas as épocas, em qualquer sociedade, o excedente da produção bruta ou da produção manufaturada, isto é, aquela parte para a qual não há mais demanda no país, deve ser exportado para ser trocado por algum produto que esteja em falta no país. Muito pouco importa se o capital que transporta essa produção excedente ao exterior é estrangeiro ou nacional. Se a sociedade ainda não adquiriu capital suficiente para cultivar todas as suas terras e para manufaturar plenamente toda a produção bruta, há mesmo uma grande vantagem em se exportar a produção bruta com capital estrangeiro, para que todo o capital da sociedade seja empregado para fins mais úteis. A riqueza do antigo Egito, a da China e a do Industão demonstram suficientemente que uma nação pode atingir um altíssimo grau de riqueza, mesmo que a maior parte de seu comércio seja operada por estrangeiros. O progresso das nossas colônias da América do Norte e das Índias Ocidentais teria sido muito mais lento, se na exportação do excedente de produção dessas colônias não se tivesse empregado também capital estrangeiro, além do nacional. Pelo curso natural das coisas, portanto, a maior parte do capital de toda sociedade em crescimento é primeiramente canalizada para a agricultura, em segundo lugar para as manufaturas, e só em último lugar para o comércio exterior. Essa ordem de prioridade é tão natural que, segundo creio, sempre foi observada, até certo ponto, em todo país que disponha de algum território. Algumas de suas terras foram necessariamente cultivadas, antes de se poder criar alguma cidade 376
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grande, e algum tipo de atividade manufatureira mais primitiva deve ter havido nessas cidades antes de pensarem em dedicar-se ao comércio exterior. Todavia, ainda que essa ordem de coisas tenha sido observada, em certo grau, em toda e qualquer sociedade, em todos os modernos países da Europa essa ordem foi totalmente invertida, sob muitos aspectos. Nesses países, foi o comércio externo de algumas de suas cidades que introduziu todas as suas manufaturas mais refinadas, isto é, aquelas que eram indicadas para vender seus produtos em locais distantes; e foram as manufaturas e o comércio exterior juntos que fizeram surgir os principais melhoramentos da agricultura. Os hábitos e os costumes introduzidos pelo estilo de seus primeiros governos, hábitos e costumes esses que permaneceram mesmo depois de ter esses governos passado por profundas alterações, necessariamente lançaram esses países nessa ordem retrógrada e antinatural.
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CAPÍTULO II O Desestímulo à Agricultura no Antigo Estágio da Europa, após a Queda do Império Romano
Quando as nações germânicas e citas invadiram as províncias ocidentais do Império Romano, as confusões que se seguiram a essa grande revolução perduraram durante vários séculos. As rapinas e a violência cometidas pelos bárbaros contra os antigos habitantes interromperam o comércio existente entre as cidades e o campo. As cidades foram abandonadas e os campos deixados incultos, sendo que as províncias ocidentais da Europa, que durante o Império Romano haviam atingido considerável grau de riqueza, caíram no estado mais baixo de pobreza e barbárie. Enquanto perdurava esse estado de confusão, os chefes e os líderes mais importantes dessas nações adquiriram ou usurparam a maior parte das terras desses países. Grande parte delas permaneceu sem cultivo, mas nenhuma, cultivada ou não, permaneceu sem proprietário. Todas elas foram açambarcadas, a maioria delas passando a ser propriedade de alguns grandes proprietários. Essa apropriação original de terras incultas, embora de vulto, pode ter sido, no entanto, apenas um mal transitório. Essas grandes propriedades territoriais poderiam ter sido novamente repartidas ou subdivididas em áreas menores, por sucessão ou por alienação. Todavia, a lei da primogenitura impedia a divisão dessas terras por sucessão, e a introdução de morgadios evitava a divisão delas em áreas menores, por alienação. Quando a terra, como os bens móveis, só é considerada como meio de subsistência e de prazer, a lei natural da sucessão leva à divisão dela e dos bens móveis entre todos os filhos da família, podendo-se supor que é igualmente cara ao pai a subsistência e o prazer de todos eles, indiferentemente. Eis porque essa lei natural da sucessão tinha vigência entre os romanos, que não faziam mais distinção entre o filho mais velho e o mais jovem, entre homem e mulher, na herança de terras, como nós hoje não fazemos diferença no tocante aos bens 379
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móveis. Mas quando a terra passou a ser considerada não somente como meio de subsistência, mas também como instrumento de poder e de proteção, considerou-se melhor determinar que a terra fosse herdada, indivisa, por um filho só. Naquela época de desordem, todo grande senhor de terras era uma espécie de príncipe secundário. Seus rendeiros eram seus súditos. Ele era o juiz deles e, sob certos aspectos, seu legislador em tempos de paz e seu líder em tempos de guerra. Fazia guerra a seu talante, muitas vezes contra seus vizinhos, e às vezes até contra seu soberano. Portanto, a segurança de uma grande propriedade territorial, a proteção que seu proprietário tinha condições de oferecer aos que nela moravam, dependia da extensão da terra. Dividi-la significava arruiná-la, expor todas as suas partes a serem oprimidas e engolidas pelas incursões dos vizinhos. Por isso, a lei da primogenitura veio a implantar-se, não imediatamente, mas com o correr do tempo, na sucessão das propriedades rurais, pela mesma razão pela qual geralmente se implantou na sucessão das monarquias, embora nem sempre na sua instituição primitiva. Para que o poder e conseqüentemente a segurança da monarquia não seja enfraquecida por divisões, ela deve ser herdada por um único filho. A qual deles deve dar-se tão grande preferência? Isso deve ser determinado por uma norma geral, fundada não nas distinções equívocas de méritos pessoais, mas em uma diferença simples e óbvia, que não admita contestação. Ora, entre os filhos da mesma família, não pode haver nenhuma outra diferença inquestionável, a não ser a de sexo e a da idade. O sexo masculino é universalmente preferido ao feminino; e, em paridade com as outras condições, a preferência recai sempre sobre o filho mais velho, em todas as circunstâncias, em detrimento do mais jovem. Daí a origem do direito da primogenitura, e daquilo que se chama “sucessão linear”. Acontece que muitas vezes as leis conservam sua vigência ainda muito depois de cessarem de existir as circunstâncias que lhes deram origem, circunstâncias essas que constituíam a única justificativa razoável de tais leis. Na atual situação da Europa, o proprietário de um único acre de terra tem a mesma segurança de posse que o proprietário de 100 mil acres. Não obstante isso, continua-se a respeitar o direito da primogenitura, e por ser, dentre todas as instituições, a mais apta para fomentar o orgulho das distinções de famílias, provavelmente durará ainda muitos séculos. Sob todos os outros aspectos, nada pode contrariar mais o interesse real de uma família numerosa do que um direito que, visando enriquecer um dos filhos, transforma em mendicantes todos os demais. O morgadio é a conseqüência natural da lei da primogenitura. Foi introduzido para preservar uma certa sucessão linear, cuja primeira idéia foi dada pela lei da primogenitura, e para impedir que qualquer parcela da propriedade original saísse da linha proposta, seja por doação, seja por legado ou por alienação; ou então pela insensatez ou pelo infortúnio de qualquer um de seus proprietários sucessivos. O morgadio era totalmente desconhecido entre os romanos. Nem as “substituições” nem os fideicommissos dos romanos apresentam qualquer semelhança 380
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com o morgadio, embora alguns juristas franceses tenham considerado correto afirmar que o morgadio moderno não seja outra coisa senão novas denominações para as velhas instituições romanas. Quando as grandes propriedades territoriais constituíam uma espécie de principados, o morgadio não poderia ser desarrazoado. Analogamente ao que é chamado “leis fundamentais” de algumas monarquias, o morgadio muitas vezes tinha condição de impedir que a segurança de milhares de pessoas fosse comprometida pelo capricho ou extravagância de uma só pessoa. Entretanto, na atual situação da Europa, quando as leis dos respectivos países oferecem segurança tanto às propriedades pequenas como às grandes, nada pode existir de mais absurdo. O morgadio fundamenta-se na mais absurda das suposições, isto é, que toda geração sucessiva de cidadãos não tem um direito igual à terra e a tudo o que ela encerra; mas que a propriedade da geração atual deve ser limitada e regulada segundo o capricho daqueles que faleceram, talvez há 500 anos. A despeito disso, o morgadio é ainda hoje uma instituição respeitada, na maior parte da Europa, sobretudo nos países em que a nobreza de nascimento constitui um título necessário para o desfrute de honras civis ou militares. O morgadio é considerado necessário para manter esse privilégio exclusivo que a nobreza tem no acesso aos grandes postos e honras de seu país; e já que essa categoria de pessoas usurpou uma vantagem injusta dos demais concidadãos para que a sua pobreza não a tornasse ridícula, considera-se razoável garantir-lhes outra vantagem. Afirma-se que a lei comum da Inglaterra detesta direitos perpétuos, e conseqüentemente tais direitos são mais limitados nesse país do que em qualquer outra monarquia européia; mesmo assim, a Inglaterra não está totalmente isenta desses privilégios. Na Escócia, mais de 1/5, talvez mais de 1/3 do total das terras do país está ainda hoje rigorosamente sob o regime de morgadio, como se afirma. Em conseqüência do morgadio, não somente grandes áreas de terras incultas foram açambarcadas por determinadas famílias, como também excluiu-se até, para sempre, na medida do possível; a possibilidade de dividi-las. Ora, é raro o caso de um grande proprietário de terras empenhar-se em melhorá-las. Nos tempos de desordem que deram origem a essas instituições bárbaras, a preocupação de um grande proprietário consistia em defender seu próprio território, ou então em estender sua jurisdição e autoridade ao território dos vizinhos. Não dispunha de tempo para atender ao cultivo e ao aprimoramento da terra. E, quando a garantia das leis e da ordem lhe propiciava esse tempo, muitas vezes lhe faltava o gosto para isto, e quase sempre lhe faltavam as habilidades necessárias para tanto. Se a despesa de sua casa e de sua pessoa superava ou igualava sua renda — como acontecia com muita freqüência — não dispunha de capital para aplicar na agricultura. Se era pessoa econômica, geralmente considerava mais rentável empregar suas poupanças anuais na compra de novas terras do que no melhoramento de sua velha propriedade. O melhoramento da 381
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terra com lucro, como todos os demais projetos comerciais, exige cuidado e atenção minuciosos a pequenas poupanças e pequenos ganhos, coisa de que muito raramente é capaz um homem nascido com grande fortuna, mesmo que por natureza ele seja frugal. A situação de tal pessoa a dispõe naturalmente a voltar-se mais para objetos de adorno, que agradam à fantasia, do que para o lucro, do qual tem tão pouca necessidade. Desde sua infância, os objetos de suas maiores preocupações são a elegância no vestir, a beleza de seus pertences, de sua casa, da mobília doméstica. O tipo de mentalidade que esse hábito forma naturalmente o acompanha quando chega a pensar no aprimoramento da terra. Ele talvez embeleze 400 ou 500 acres nas proximidades de sua casa, gastando dez vezes mais do que a terra realmente vale, depois de todas as melhorias implantadas; considera que, se fosse aprimorar toda a sua propriedade dessa maneira — já que não tem sensibilidade e gosto para outra sorte de melhorias —, iria à falência antes de terminar a décima parte da obra. Ainda restam, na Inglaterra e na Escócia, algumas grandes propriedades que continuaram sem interrupção nas mãos da mesma família, desde os tempos de anarquia feudal. Compare-se a situação atual dessas propriedades com a das terras dos pequenos proprietários da região, e não haverá necessidade de outro argumento para convencer-se até que ponto essa grande extensão de terra é desfavorável à introdução de melhorias. Se se podia esperar poucas melhorias desses grandes proprietários, muito menos se podia esperar daqueles que ocupavam efetivamente a terra sob o comando deles. Nas antigas condições da Europa, os ocupantes de terras eram todos rendeiros a título precário. Todos ou quase todos eram escravos, embora sua escravatura fosse de um tipo mais mitigado que a conhecida entre os antigos gregos e romanos, ou mesmo em nossas colônias das Índias Ocidentais. Os escravos pertenciam mais diretamente à terra do que ao patrão. Podiam, portanto, ser vendidos juntamente com a terra, mas não independentemente dela. Podiam casar-se, desde que com o consentimento do patrão, o qual não podia, posteriormente, dissolver o casamento, vendendo marido e mulher a pessoas diferentes. Se mutilasse ou assassinasse algum deles, estava sujeito a alguma penalidade, embora geralmente pequena. Todavia, esses escravos rendeiros não tinham possibilidade de adquirir propriedade. O que quer que adquirissem pertencia ao patrão, o qual podia tirar-lhes à vontade o que haviam adquirido. Qualquer cultivo e melhoria que fossem feitos na terra com o trabalho de tais escravos contavam como feitos pelo patrão. A despesa era dele. As sementes, o gado e os instrumentos agrícolas também lhe pertenciam. Tudo era empregado em benefício do patrão. Tais escravos não tinham condições de adquirir nada, a não ser seu sustento diário. Portanto, era o próprio senhor da terra que, na realidade, ocupava sua terra e a cultivava, por meio de seus servos. Esse tipo de escravatura continua a existir na Rússia, na Polônia, na Hungria, na Boêmia, na Morávia e em outras 382
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regiões da Alemanha. Ela foi gradualmente abolida de forma total apenas nas regiões do oeste e do sudoeste da Europa. Ora, se raramente se pode esperar grandes melhorias da terra por parte dos grandes proprietários, muito menos se pode esperar quando eles empregam escravos como trabalhadores. Segundo acredito, a experiência de todas as épocas e nações demonstra que o trabalho executado por escravos, embora aparentemente custe apenas a própria manutenção dos escravos, ao final é o mais caro de todos. Uma pessoa incapaz de adquirir propriedade não pode ter outro interesse senão comer o máximo e trabalhar o mínimo possível. Se algo ela fizer, além do suficiente para pagar a própria manutenção, só o fará se isso a beneficiar pessoalmente, sendo impossível obrigá-la a fazer esse algo mais sob violência. Tanto Plínio como Columella observaram como, na antiga Itália, a triticultura degenerou, e como ela se tornou pouco rentável para o patrão, quando passou a ser feita por escravos. Na época de Aristóteles, a situação não foi melhor na antiga Grécia. Afirma ele, falando da República ideal, descrita nas leis de Platão, que para manter 5 mil homens ociosos (o contingente de guerreiros considerado necessário para a defesa da República), juntamente com suas mulheres e servos, seria necessário um território de extensão e fertilidade ilimitadas, como as planícies da Babilônia. O orgulho do homem faz com que ele goste de dominar os outros, e nada o mortifica tanto como ser obrigado a mostrar-se condescendente em persuadir seus subalternos. Sempre que a lei e a natureza do trabalho a executar o permitirem, o homem geralmente preferirá o serviço de escravos ao de homens livres. As plantações de cana-de-açúcar e de tabaco podem permitir-se o emprego da dispendiosa mão-de-obra escrava. Ao contrário, o cultivo do trigo atualmente não pode. Nas colônias inglesas, nas quais o produto principal são os cereais, a maior parte do trabalho é executada em sua maior parte por pessoas livres. A última resolução dos quacres na Pensilvânia, no sentido de libertar todos os seus escravos negros, pode convencer-nos de que seu número não pode ser muito elevado. Se os escravos representassem uma parcela considerável de seus empregados, nunca teriam concordado com essa resolução. Ao contrário, em nossas colônias açucareiras o trabalho todo é feito por escravos, e nas colônias produtoras de fumo uma parte muito grande é executada por escravos. Os lucros de um canavial em qualquer das nossas colônias das Índias Ocidentais são geralmente muito maiores do que os proporcionados por qualquer outra cultura conhecida na Europa ou na América; e os lucros de uma plantação de fumo, embora inferiores aos de um canavial, são superiores aos proporcionados pela cultura do trigo, como já se observou. Ambos podem permitir-se a despesa do cultivo por escravos, mas a cultura da canade-açúcar o pode bem mais do que a do fumo. Por isso, o número de negros, em confronto com o dos brancos, é muito maior em nossas colônias açucareiras do que em nossas colônias produtoras de tabaco. Aos agricultores escravos das épocas antigas sucedeu gradual383
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mente um tipo de agricultores conhecidos atualmente na França sob o nome de meeiros (métayers). Em latim, são denominados coloni partiarii. Já faz tanto tempo que não existem mais na Inglaterra, que não conheço nenhum termo inglês atual para designá-los. O proprietário da terra lhes fornecia as sementes, o gado, os instrumentos agrícolas, enfim, todo o capital necessário para o cultivo da propriedade. A produção era dividida por igual entre o dono da terra e o meeiro, depois de pôr de lado o que se considerava necessário para manter o capital, sendo que este era restituído ao patrão quando o meeiro abandonava a propriedade ou era demitido. A terra ocupada por essa casta de rendeiros é propriamente cultivada às expensas do proprietário, analogamente ao que acontece com a terra ocupada por escravos. Mas existe uma diferença essencial entre os dois. Tais rendeiros, pelo fato de serem livres, são capazes de adquirir propriedade, e por terem direito a uma parte da produção da terra têm um interesse evidente em que a produção total seja a máxima possível, para que grande seja também a parte que lhes cabe. Ao contrário, um escravo, que não pode adquirir nada, a não ser o necessário para sua subsistência, atende a seu comodismo e interesse, fazendo com que a terra produza o mínimo possível, o estritamente necessário para sua própria manutenção. Provavelmente, foi em parte devido a essa vantagem, e em parte devido às insubordinações, que o soberano — o qual sempre tinha inveja dos grandes senhores feudais — gradualmente encorajava seus camponeses a investirem contra a autoridade dos patrões feudais — problemas esses que chegaram a um ponto tal que tornaram totalmente inconveniente tal tipo de servidão, que essa instituição se desgastou progressivamente e desapareceu na maior parte da Europa. Entretanto, a época e a maneira, quando e como se operou essa grande revolução, constituem um dos pontos mais obscuros da história moderna. A Igreja de Roma teve grande mérito nessa obra; e é certo que já no século XII o Papa Alexandre III publicou uma bula sobre a emancipação geral dos escravos. Todavia, parece ter sido isso mais uma exortação piedosa do que uma lei drástica que exigisse obediência por parte dos fiéis. A escravatura continuou a existir quase em toda parte e durante vários séculos, até ser gradualmente abolida pela cooperação conjunta dos dois interesses acima mencionados, o dos proprietários de terras, por um lado, e o do soberano, por outro. Um camponês liberto da escravidão, e ao mesmo tempo tendo liberdade de continuar na posse da terra, pelo fato de não ter capital próprio, só tinha condições de cultivar a terra com os recursos que o senhor da terra lhe adiantava. Eis o que deve ter sido o que os franceses denominam métayer. Todavia, mesmo esse tipo de agricultor jamais teria interesse em investir no ulterior aprimoramento da terra, já que de qualquer parcela do pequeno capital que viesse eventualmente a economizar de sua cota de participação na produção, o patrão, mesmo não investindo nada, continuaria a ter direito sobre a metade de toda a produção colhida. O dízimo, apenas a décima parte da produção, representou um grande 384
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obstáculo para o aprimoramento das terras. Por isso, um imposto que atingia a metade deve ter sido uma eficaz barreira no caso. Poderia interessar a um meeiro extrair da terra o máximo possível, utilizando o capital fornecido pelo senhor da terra, mas nunca lhe poderia interessar colocar qualquer parcela de seu próprio capital. Na França, onde, segundo se conta, cinco partes entre seis de todo o reino ainda são ocupadas por esse tipo de agricultores, os proprietários queixam-se de que seus meeiros aproveitam todas as oportunidades para utilizar o gado dos patrões mais para o transporte do que para a agricultura; pois no primeiro caso ficam com o lucro todo e no segundo têm que reparti-lo com os patrões. Esse tipo de rendeiro ainda existe em algumas regiões da Escócia. Denomina-se steel-bow tenants.153 Provavelmente do mesmo tipo eram esses antigos rendeiros, que o principal Barão Gilbert e o Dr. Blackstone afirmam ter sido mais bailios do dono da terra do que agricultores propriamente ditos. Depois desse tipo de locatários vieram, embora muito gradualmente, os arrendatários propriamente ditos, que cultivavam a terra com seu próprio capital, pagando ao proprietário uma renda fixa. Quando esses arrendatários têm um contrato de arrendamento por alguns anos, às vezes podem ter interesse em investir algo de seu capital no aprimoramento ulterior da terra, pois às vezes podem ter a esperança de recuperá-lo, com grande lucro. Todavia, mesmo a posse de tais arrendatários permaneceu por muito tempo extremamente precária, e continua a sê-lo, em muitas regiões da Europa. Se uma outra pessoa comprasse a propriedade, o contrato em relação a esta podia legalmente ser rescindido, mesmo antes do vencimento dele; na Inglaterra, isso podia ser feito até por uma ação fictícia de uma recuperação comum. Se os arrendatários fossem excluídos ilegalmente da ocupação da terra pela violência de seus senhorios, era extremamente imperfeita a medida pela qual recebiam reparação. Ela nem sempre lhes restituía a posse da terra, mas lhes dava uma indenização que nunca eqüivalia à perda real. Mesmo na Inglaterra, país europeu onde talvez a classe dos pequenos proprietários rurais tem sido sempre a mais respeitada, foi somente por volta do 14º ano do reinado de Henrique VII que se inventou a ação de despejo, através da qual o arrendatário recupera não somente os prejuízos sofridos, mas também a posse, e na qual sua reivindicação não se conclui necessariamente com uma decisão vaga de uma única sessão de um tribunal. Essa ação tem sido considerada como um remédio tão eficiente que, na prática moderna, quando o senhor da terra precisa requerer a posse da mesma, raramente faz uso das ações que propriamente lhe competem como senhor da terra — a ordem do direito ou a ordem de posse — mas requer, em nome de seu arrendatário, mediante a ordem de despejo. Na Inglaterra, por153 A expressão se refere ao rendeiro ao qual o senhor da terra dá trigo, gado, feno e implementos agrícolas, com os quais o rendeiro pode trabalhar a terra, estando obrigado a devolver artigos iguais, em valor e qualidade, ao expirar o arrendamento. (N. do T.) 385
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tanto, a segurança do arrendatário é igual à do proprietário. Além disso, na Inglaterra, um arrendamento por toda vida, no valor de 40 xelins por ano, é uma propriedade livre e alodial, dando ao locatário o direito de votar em um membro do Parlamento; e já que uma grande parte dos pequenos proprietários de terra tem uma propriedade livre e alodial desse tipo, toda essa categoria merece respeito por parte dos grandes proprietários, devido à importância política que lhes dá. Acredito não haver em toda a Europa, exceto na Inglaterra, exemplo algum em que o ocupante constrói sobre a terra da qual não teve arrendamento confiando em que a honra do seu senhorio não lhe permitirá tirar vantagem de tão grande benfeitoria. Possivelmente, essas leis e costumes, tão favoráveis aos pequenos proprietários rurais, tenham contribuído mais talvez para a grandeza atual da Inglaterra do que o conjunto tão elogiado de todas as leis e regulamentações sobre o comércio. A lei que garante arrendamentos mais longos contra sucessores de qualquer espécie constitui, pelo que sei, uma peculiaridade da GrãBretanha. Foi introduzida na Escócia já em 1449, por um decreto de Jaime II. Todavia, sua influência benéfica tem sido bastante obstruída pelo morgadio, já que os herdeiros do morgado geralmente são impedidos de locar terras arrendadas por muitos anos, por vezes nem sequer por mais de um ano. Sob esse aspecto, uma lei recente do Parlamento abrandou um tanto esse rigor, embora ele ainda continue sendo excessivo. Além disso, pelo fato de que na Escócia nenhuma posse por arrendamento dê direito a votar em um membro do Parlamento, os pequenos proprietários rurais de lá são menos respeitados pelos grandes proprietários do que na Inglaterra. Em outros países da Europa, depois que se considerou conveniente garantir os rendeiros contra herdeiros e compradores, o prazo de sua segurança continuou a ser limitado a um período muito curto; na França, por exemplo, foi limitado a 9 anos, a partir do início do arrendamento. Recentemente, o prazo foi ampliado para 27 anos, período ainda muito curto para estimular o arrendatário a empreender maiores benfeitorias na terra. Antigamente, os proprietários de terras eram os legisladores em todos os países da Europa. Por isso, as leis sobre a terra eram todas planejadas em defesa daquilo que acreditavam responder aos seus interesses. Imaginavam que atendia a seus interesses prescrever que nenhum arrendamento feito por qualquer de seus predecessores os pudesse impedir de desfrutar, durante muitos anos, do valor integral de sua terra. A avareza e a injustiça sempre têm visão curta, e por isso foram incapazes de prever até que ponto essa lei impede que os arrendatários empreendam melhorias na terra, contrariando, assim, a longo prazo aos interesses do proprietário. Pelo que se supõe, os arrendatários, além de pagarem a renda, antigamente eram obrigados a executar muitos serviços para o proprietário, serviços esses raramente especificados no contrato de arrendamento ou regulamentados por qualquer outra lei precisa que não fosse o proveito e o costume do senhor ou do barão. Por serem quase totalmente arbitrários, 386
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esses serviços submetiam o arrendatário a muitos vexames. Na Escócia, a abolição de todos os serviços não estipulados com precisão no contrato de arrendamento alterou para muito melhor, no decurso de alguns poucos anos, a condição dos pequenos proprietários rurais no país. Os serviços públicos que os pequenos proprietários rurais eram obrigados a prestar não eram menos arbitrários do que os particulares. A construção e a manutenção das estradas públicas — obrigação servil que, segundo acredito, subsiste em toda parte, embora com diferentes graus de opressão, conforme os diversos países — não era o único. Quando as tropas do rei, sua família ou seus oficiais de qualquer escalão passavam por qualquer lugar, os pequenos proprietários rurais eram obrigados a fornecer-lhes cavalos, carruagens e gêneros alimentícios, a um preço regulamentado pelo provedor. Acredito que a Grã-Bretanha seja a única monarquia européia em que a opressão desse aprovisionamento foi inteiramente abolida. Ela ainda subsiste na França e na Alemanha. Tão irregulares e opressivos quanto os serviços eram os impostos cobrados dos arrendatários. Os antigos senhores de terras, embora eles mesmos fossem extremamente relutantes em dar qualquer ajuda pecuniária a seu soberano, com facilidade lhe permitiam impor a talha, como diziam, a seus rendeiros, desconhecendo o quanto isso necessariamente afetava, afinal, sua própria renda. A talha, como subsiste ainda hoje na França, pode servir como um exemplo desses antigos tributos. Trata-se de uma taxa sobre o suposto lucro do arrendatário, taxa essa calculada com base no capital que o inquilino tem na propriedade. Por isso, os arrendatários têm interesse em que esse capital pareça ser o menor possível, razão pela qual aplicam o mínimo possível no cultivo da terra, e nenhum capital no seu aprimoramento. Se um arrendatário na França chegasse a acumular algum capital, a talha equivaleria mais ou menos a uma proibição de jamais aplicá-lo na terra. Além disso, esse imposto representa supostamente um desprestígio para quem deve pagá-lo, degradando-o, não somente abaixo do nobre mas também do habitante de um burgo, sendo que a esse imposto está sujeito todo aquele que arrenda terra de outros. Nenhum nobre nem mesmo qualquer habitante de burgo que tenha capital está disposto a submeter-se a esse rebaixamento. Por conseguinte, esse imposto não somente impede de aplicar no aprimoramento da terra o capital acumulado pelo arrendatário, como também desvia dessa aplicação qualquer outro capital. Da mesma natureza que a talha parecem ter sido sob esse aspecto os antigos impostos de dízimos ou décimos-quintos, tão conhecidos na Inglaterra, em épocas anteriores. Com todas essas circunstâncias e fatores desestimulantes, pouco se podia esperar dos ocupantes da terra, em termos de melhorias. A situação dos arrendatários, a despeito de toda a liberdade e segurança que a lei lhes possa oferecer, deve sempre melhorar, mas sob o peso de grandes desvantagens. O arrendatário, comparado ao proprietário, é como um comerciante que negocia com dinheiro emprestado, comparado com um comerciante que negocia com o próprio dinheiro. Pode 387
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aumentar o capital de ambos, mas o do primeiro, ainda que sua administração seja tão boa como a do segundo, necessariamente aumentará mais lentamente que o do segundo, devido à grande parcela de lucros consumida pelos juros do empréstimo. Da mesma maneira, mesmo que as terras sejam cultivadas tão bem pelo arrendatário como pelo proprietário, aquelas melhorarão menos rapidamente do que estas, em razão da grande parcela de produção que é consumida pela renda da terra, parcela que, se o arrendatário fosse proprietário, seria investida em seguida na melhoria do solo. Além disso, a posição social do arrendatário é inferior à do proprietário, pela própria natureza das coisas. Na maior parte da Europa, os pequenos proprietários rurais são considerados como uma categoria inferior, mesmo em relação à categoria dos melhores negociantes e artífices e, em toda a Europa, à dos grandes comerciantes e donos de manufaturas. Conseqüentemente, será muito raro poder acontecer que qualquer pessoa detentora de capital considerável abandone sua posição superior para abraçar uma posição social inferior. Por isso, mesmo na atual situação da Europa, há pouca probabilidade de outros profissionais empregarem capital no aprimoramento e no cultivo da terra. Isso talvez aconteça mais na Grã-Bretanha do que em qualquer outro país, embora mesmo ali os grandes capitais que, em alguns lugares, são aplicados na agricultura, tenham sido geralmente adquiridos mediante essa atividade agrícola — atividade na qual, talvez, a aquisição de capital seja a mais lenta de todas. No entanto depois dos pequenos proprietários, são os ricos e grandes agricultores, em todos os países, os maiores responsáveis pelo aprimoramento do solo. Na Inglaterra talvez eles sejam mais numerosos do que em qualquer outra monarquia européia. Afirma-se que nos governos republicanos da Holanda e de Berna, na Suíça, os arrendatários ou agricultores não são inferiores aos da Inglaterra. Além de tudo isso, a antiga política seguida na Europa era desfavorável à melhoria e ao cultivo da terra, fosse ela levada a efeito pelo proprietário ou pelo arrendatário. Em primeiro lugar, devido à proibição geral de exportar trigo sem licença especial, o que parece ter sido uma regra muito generalizada; em segundo, em virtude das restrições impostas ao comércio interno, não somente do trigo mas também de quase todos os outros produtos agrícolas, por meio de leis absurdas contra os monopolizadores, varejistas, atravessadores, e pelos privilégios das feiras e mercados. Já se observou de que maneira a proibição de exportar trigo, aliada a certo estímulo dado à importação de trigo estrangeiro, impediu o cultivo na antiga Itália, por natureza a região mais fértil da Europa, e naquela época sede do maior império do mundo. Talvez não seja tão fácil imaginar até que ponto essas restrições impostas ao comércio interno de trigo, ao lado das proibições gerais de exportar, devem ter desestimulado o cultivo de países menos férteis do que a Itália e em condições menos favoráveis do que as reinantes nesse país. 388
CAPÍTULO III A Ascensão e o Progresso das Metrópoles e Cidades após a Queda do Império Romano
Depois da queda do Império Romano, os habitantes das cidades grandes e pequenas não foram mais favorecidos que os habitantes do campo. Com efeito, constituíam uma categoria de pessoas muito diferentes dos primeiros habitantes das antigas repúblicas da Grécia e da Itália. Esses últimos eram primordialmente proprietários de terras, entre os quais o território foi inicialmente dividido, e que consideraram oportuno construir suas casas uma perto da outra, cercando-as com um muro, como defesa normal. Ao contrário, após a queda do Império Romano, os proprietários de terras parecem ter vivido, geralmente, em castelos fortificados, localizados em suas próprias terras e em meio a seus próprios inquilinos e dependentes. As cidades eram habitadas, sobretudo, por negociantes e artífices que, naquela época, parecem ter sido de condição servil, ou quase servil. Os privilégios outorgados pelas antigas cartas aos habitantes de algumas das principais cidades da Europa revelam suficientemente o que eram antes da concessão desses privilégios. Pessoas a quem se outorga o privilégio de poderem dar suas filhas em casamento sem o consentimento do patrão; a quem se outorga o privilégio de ao morrerem passar seus bens a seus filhos, e não ao seu patrão; e a quem se outorga o privilégio de dispor, a seu critério, de seus próprios pertences — tais pessoas, antes da concessão de tais privilégios, devem ter estado na mesma ou quase na mesma situação de servidão dos moradores do campo. Ao que parece, constituíam uma categoria de pessoas muito pobres e de classe inferior, que costumavam deslocar-se, carregando consigo seus bens, de um lugar para outro, de uma feira para outra, à maneira dos mascates e vendedores ambulantes de hoje. Em todos os países da Europa de então da mesma forma como ainda hoje ocorre em vários países tártaros da Ásia, costumava-se cobrar impostos sobre as pessoas e os bens dos viajantes, quando passavam por certos do389
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mínios feudais, quando atravessavam certas pontes, quando levavam suas mercadorias de um lugar a outro na feira, quando nela levantavam uma barraca ou banca para vendê-las. Na Inglaterra, esses diversos tipos de impostos eram conhecidos sob os termos de passage, pontage, lastage e stallage.154 Por vezes o rei, e outras vezes um grande senhor que, ao que parece, tinha em certas ocasiões autorização para isso, concedia a determinados comerciantes, sobretudo àqueles que viviam nas propriedades deles, uma isenção geral de tais impostos. Por essa razão, tais comerciantes eram denominados comerciantes livres embora, sob outros aspectos, tivessem condição servil ou quase servil. Em troca, costumavam pagar a seu protetor uma espécie de imposto anual por cabeça. Naquela época, a proteção raramente era concedida sem uma valiosa compensação; talvez esse imposto anual por cabeça possa ser considerado como uma compensação por aquilo que seus protetores poderiam perder, concedendo aos protegidos isenção de outros impostos. A princípio, ambos esses impostos por cabeça e essas isenções parecem ter sido absolutamente pessoais e haver afetado somente particulares, quer durante sua vida, quer enquanto aprouver a seus protetores. Nos relatos muito imperfeitos extraídos do cadastro de várias cidades da Inglaterra, faz-se às vezes menção ao imposto que determinados habitantes de burgos pagavam ao rei ou a algum outro grande senhor, por esse tipo de proteção; às vezes, somente ao montante geral desses impostos.155 Entretanto, por mais servil que possa ter sido a condição original dos habitantes das cidades, não há dúvida de que obtiveram a liberdade e a independência muito antes do que os moradores do campo. A parte da renda do rei que provinha desses impostos por cabeça, em cada cidade, costumava ser deixada à administração, durante um certo número de anos por uma determinada renda, às vezes do xerife do condado e às vezes de outras pessoas. Os próprios habitantes de burgos muitas vezes conseguiam crédito suficiente para serem admitidos para administrar as rendas desse tipo, procedentes de sua própria cidade, tornando-se conjunta e individualmente responsáveis pela renda total.156 Segundo acredito, essa forma era bastante agradável para a economia usual dos soberanos dos diversos países europeus, que muitas vezes arrendavam domínios inteiros a todos os rendeiros dos mesmos, que se tornavam conjunta e individualmente responsáveis pela renda integral: em troca, permitia-se-lhes coletar a renda por sua própria conta e pagá-la ao erário do rei através de seu próprio intendente, ficando assim totalmente livres da insolência dos oficiais do rei, fator considerado da máxima importância naquela época. 154 Esses termos significam, respectivamente: licença de trânsito ou passagem; pedágio; tonelagem; imposto pago pelo direito de manter barraca ou banca na feira. (N. do T.) 155 Ver BRADY. Historical Treatise of Cities and Burroughs, 2ª ed., 1711, p. 3 et seq. 156 Ver MADOX. Firma Burgi. p. 18; e também History of the Exchequer, capítulo 10, sec. V, p. 223, 1ª ed. 390
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De início, a área de terra da cidade era provavelmente deixada aos cidadãos dos burgos, da mesma forma como o havia sido a outros arrendatários, somente por um certo número de anos. Entretanto, com o decorrer do tempo, parece ter-se tornado praxe generalizada dar-lhes a área de terra como feudo, isto é, para sempre, retendo uma determinada renda fixa, que jamais podia ser posteriormente aumentada. Tornando-se assim perpétuo o pagamento, tornavam-se naturalmente perpétuas também as isenções, em troca das quais o pagamento era feito. Por conseguinte, essas isenções deixavam de ser pessoais, não podendo posteriormente ser consideradas como pertencentes a indivíduos como tais, mas como habitantes de um determinado burgo, o qual, por essa razão, era chamado de burgo livre, pelo mesmo motivo pelo qual eles tinham sido chamados burgueses livres ou comerciantes livres. Além dessa concessão, geralmente se dava aos burgueses da cidade a quem ela era concedida também os importantes privilégios acima mencionados, isto é: o direito de darem suas filhas em casamento, o direito de que seus filhos os sucedessem e o direito de dispor à vontade de seus próprios pertences. Ignoro se esses privilégios tinham sido usualmente concedidos anteriormente, paralelamente com a liberdade de comércio, a determinados burgueses, como indivíduos. Isso não me parece improvável, embora eu não tenha condições de aduzir provas evidentes. Todavia, como quer que tenha sido, agora eles se tornaram realmente livres, no sentido atual da palavra liberdade, já que se haviam livrado das principais características da servidão e da escravidão. Isso não foi tudo. Costumava-se também, ao mesmo tempo, constituí-los membros de uma entidade ou corporação, com o privilégio de ter seus próprios magistrados e sua própria assembléia municipal, o privilégio de criar leis secundárias para seu próprio governo, de construir muros para sua defesa, e de submeterem todos os seus habitantes a uma espécie de disciplina militar, obrigando-os a montar guarda, ou seja — no sentido da época —, a guardar e a defender aqueles muros contra todos os ataques e surpresas, noite e dia. Na Inglaterra, costumavam ser dispensados de procurar os tribunais da centúria e do condado, sendo que todas as questões judiciais que surgissem entre eles, excetuadas as da Coroa, estavam entregues à decisão de seus próprios magistrados. Em outros países, freqüentemente se lhes concediam jurisdições muito maiores e mais amplas.157 Provavelmente, podia ser necessário conceder às cidades, às quais se permitia administrar suas próprias rendas, algum tipo de jurisdição compulsória para obrigar seus próprios cidadãos a efetuarem pagamento. Naquela época tumultuada deve ter sido extremamente inconveniente deixar que os cidadãos procurassem esse tipo de justiça em qualquer outro tribunal. Todavia, parece estranho que os soberanos 157 Ver MADOX. Firma Burgi; ver também PFEFFEL (Nouvel Abrégé Chronologique de l’Histoire et du Droit Public d’Allemagne, 1776.) quanto aos eventos notáveis sob Frederico II e seus sucessores da Casa de Suábia. 391
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de todos os países da Europa trocassem assim, por um aluguel definido e fixo, o qual jamais poderia ser aumentado, esse tipo de renda que, em comparação com todas as outras, tinha talvez a maior probabilidade de aumentar pelo curso normal das coisas, sem cuidados ou despesas por parte dos reis, criando assim, voluntariamente, um tipo de república independente no coração dos próprios domínios. Para compreender-se isso, cumpre lembrar que, naquela época, talvez em nenhum país o soberano europeu tivesse condições para proteger da opressão dos grandes senhores na totalidade de seus domínios a parte mais fraca de seus súditos. Aqueles que a lei não tinha condições de proteger, e que não eram suficientemente fortes para se defenderem a si mesmos, eram obrigados a recorrer à proteção de um senhor poderoso — e para isto tinham que tornar-se seus escravos ou seus vassalos — ou então a entrar em uma liga de defesa mútua destinada à proteção comum dos participantes. Os habitantes das cidades e burgos, considerados como indivíduos, não tinham poder para defender-se; todavia, entrando em uma liga de defesa mútua, juntamente com os seus vizinhos, tinham condições de opor considerável resistência. Os senhores feudais desprezavam os moradores dos burgos, que eram para eles não somente de uma categoria diferente, mas também uma parcela de escravos emancipados, quase como uma espécie diferente da deles. A riqueza dos habitantes dos burgos sempre provocava-lhes inveja e indignação, e todas as vezes que o pudessem os saqueavam sem mercê ou remorso. Naturalmente, os habitantes dos burgos odiavam e temiam os senhores feudais. Também o rei os odiava e temia; quanto aos habitantes dos burgos, embora o soberano talvez os desprezasse, tinha razões para não odiá-los nem temê-los. O interesse mútuo, portanto, levava os habitantes dos burgos a apoiarem o rei, levando também o rei a apoiá-los contra os senhores feudais. Os habitantes dos burgos eram os inimigos dos adversários do rei, sendo do interesse deste darlhes o máximo de segurança e independência possível face aos senhores feudais, inimigos do rei. Ao conceder-lhes o direito de terem seus magistrados, o privilégio de formularem leis secundárias para seu próprio governo, o de construir muros para sua defesa e o de submeter todos os habitantes do burgo a uma espécie de disciplina militar, o rei lhes dava todos os meios para conseguirem a máxima segurança e independência possível em relação aos barões — o que estava a seu alcance fazer. Sem um governo próprio desse gênero, sem alguma autoridade para obrigar seus habitantes a agirem dentro de um certo plano ou sistema, nenhuma liga voluntária de defesa mútua teria sido capaz de possibilitar-lhes uma segurança permanente ou lhes dar condições para apoiarem eficazmente o rei. Ao conceder-lhes a administração de sua própria cidade como feudo, o rei afastou daqueles a quem desejava ter como amigos — e, se assim se pode dizer, como seus aliados — qualquer motivo de ciúme ou suspeita de que jamais um dia pudesse vir a oprimi-los novamente, seja aumentando a renda proveniente da administração de sua cidade, seja transferindo-a a algum outro administrador. 392
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Como se vê, os soberanos que mantinham as piores relações com seus barões parecem ter sido os mais liberais na concessão desse gênero de privilégios a seus burgos. Assim, por exemplo, o rei João da Inglaterra parece haver sido um benfeitor extremamente generoso das suas cidades.158 Filipe I, da França, perdeu toda a autoridade sobre seus barões. Quando estava para terminar seu reinado, seu filho Luís, mais tarde conhecido pelo nome de Luís, o Gordo, consultou, segundo o padre Daniel, os bispos dos domínios reais sobre os meios mais adequados para impedir a violência dos grandes senhores feudais. Obteve deles como conselho duas propostas. A primeira consistia em instituir uma nova ordem de jurisdição, estabelecendo magistrados e uma assembléia municipal em todas as cidades de certo porte, dentro do reino. A outra consistia em formar nova milícia, fazendo com que os habitantes dessas cidades, sob o comando de seus próprios magistrados, marchassem em defesa do rei, quando necessário. Segundo os antigos historiadores franceses, é dessa época que data a instituição dos magistrados e das assembléias municipais na França. Foi, outrossim, durante os reinados infaustos dos príncipes da casa da Suábia que a maior parte das cidades livres da Alemanha receberam as primeiras outorgas de privilégios, e que a renomada Liga Hanseática começou a adquirir um poder considerável e temível.159 As milícias das metrópoles não parecem ter sido inferiores, naquela época, às do campo, e, pelo fato de se poderem reunir com maior facilidade em ocasiões de emergência, muitas vezes levavam vantagem nas disputas com os senhores feudais vizinhos. Em países como a Itália e a Suíça, em que o rei chegou a perder toda a sua autoridade, seja em razão da grande distância das cidades em relação à sede central do governo, seja devido ao poder natural do próprio país, ou por algum outro motivo, as metrópoles geralmente conseguiram transformar-se em repúblicas independentes, conquistando toda a nobreza ao seu redor, obrigando os nobres a abandonar seus castelos no campo e a viver, como qualquer pacato cidadão, na metrópole. Essa é, em resumo, a história da República de Berna, bem como de várias outras metrópoles da Suíça. Se excetuarmos o caso de Veneza — já que sua história é um pouco diferente —, essa é também a história de todas as grandes repúblicas italianas, das quais tantas nasceram e pereceram, entre o final do século XII e o início do século XVI. Em países como a França e a Inglaterra, onde a autoridade do soberano, embora em muitas ocasiões fosse bastante fraca, nunca foi totalmente destruída, as metrópoles não tiveram oportunidade de se tornar inteiramente independentes. Todavia, tornaram-se tão importantes que o rei não tinha condições de impor-lhes quaisquer taxas, sem seu consentimento, a não ser a renda decorrente da administração da cidade. Por isso, as cidades foram conclamadas pelo rei a enviar 158 Ver MADOX. Firma Burgi, pp. 35, 150. 159 Ver PFEFFEL, conforme nota 4, supra. 393
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deputados à assembléia geral dos Estados do reino, onde podiam, juntamente com o clero e os barões, prestar alguma ajuda extraordinária ao rei, em ocasiões de urgência. Aliás, pelo fato de as cidades geralmente serem mais favoráveis ao rei, parece que às vezes ele utilizava esses deputados, nessas assembléias, para contrabalançar a autoridade dos grandes senhores feudais. Aqui está a origem da representação de burgos nos Estados Gerais de todas as grandes monarquias da Europa. Dessa forma, em uma época em que os moradores do campo estavam expostos a todo tipo de violência, nas metrópoles se implantou a ordem e a boa administração e, juntamente com elas, a liberdade e a segurança dos indivíduos. É natural que os habitantes do campo, colocados nessa situação indefesa, se contentassem com a sua subsistência; porque conseguir mais apenas provocaria a injustiça de seus opressores. Ao contrário, quando os cidadãos têm segurança de gozar dos frutos do trabalho, empenham-se naturalmente em melhorar sua condição e em adquirir não somente o necessário, mas também os confortos e o luxo que a vida pode proporcionar. Portanto, esse tipo de iniciativa operosa, que almeja mais do que o simplesmente indispensável para subsistir, já existia, de um modo geral, muito antes entre os moradores das metrópoles do que entre os habitantes do campo. Se um agricultor, oprimido pela servidão feudal, chegasse eventualmente a acumular algum capital, muito naturalmente haveria de escondê-lo cuidadosamente de seu patrão — ao qual o capital teria que pertencer, se viesse a descobri-lo — e aproveitar a primeira oportunidade para abandonar o campo e correr para a cidade. Naquela época, a lei favorecia tanto aos habitantes das cidades, e se empenhava tanto em diminuir a autoridade dos senhores feudais sobre os moradores do campo, que se um fugitivo conseguisse esconder-se de seu patrão em uma cidade, durante um ano, tornava-se livre para sempre. Por isso, todo capital eventualmente acumulado nas mãos de agricultores diligentes refugiava-se nas grandes cidades, que constituíam o único santuário em que uma pessoa tinha condições de guardar o capital adquirido. Sem dúvida, os habitantes de uma metrópole, em última análise, sempre auferirão do campo sua subsistência, bem como todos os materiais e meios de trabalho. Todavia, os moradores das metrópoles localizadas na costa marítima ou às margens de um rio navegável não dependem necessariamente apenas da produção agrícola da região para sua subsistência. Têm um raio de ação muito mais vasto, podendo importar os recursos de que carecem dos mais longínquos confins do mundo, seja em troca dos produtos de suas próprias manufaturas, seja através do transporte marítimo ou fluvial entre países distantes, trocando assim a produção de uns pela de outros. Assim sendo, foi possível uma metrópole crescer e atingir alto grau de riqueza e de esplendor, enquanto que não somente o país próximo, bem como todos os países com os quais essa rica cidade comerciava, permaneceram na maior pobreza e miséria. Só um daqueles países, tomado isoladamente, talvez pudesse fornecer à referida cidade, mas apenas uma pequena parcela, 394
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do necessário para sua subsistência e grande atividade; entretanto, o conjunto dos países com os quais comerciava tinha condições de fornecer tudo aquilo de que carecia para uma boa subsistência e seu progresso. Todavia, no estreito círculo comercial daquela época existiam alguns países ricos e operosos. Assim era o Império Grego, enquanto subsistiu, bem como o Império dos sarracenos, durante os reinados dos Abássidas. O mesmo ocorreu com o Egito, até ser conquistado pelos turcos, com alguma parte da costa da Barbaria, e com todas as províncias da Espanha que estavam sob o domínio dos mouros. As metrópoles da Itália parecem ter sido as primeiras da Europa que, através do comércio, atingiram um grau considerável de riqueza. A Itália estava no centro do que era, na época, a região evoluída e civilizada do mundo. Também as Cruzadas que, devido ao grande desperdício de capital e da destruição entre os habitantes, necessariamente retardaram o progresso da maior parte da Europa, favoreceram extremamente o progresso de algumas metrópoles italianas. Os grandes exércitos que, de toda parte, marcharam para a conquista da Terra Santa estimularam ao extremo a navegação de Veneza, Gênova e Pisa, às vezes transportando os cruzados para lá, e sempre fornecendo-lhes provisões. Se assim podemos dizer, essas cidades foram os abastecedores desses exércitos; e o furor mais destrutivo que jamais assolou as nações européias constituiu uma fonte de riqueza para essas repúblicas. Os habitantes das metrópoles comerciais, ao importarem produtos manufaturados mais aperfeiçoados e os caros artigos de luxo de países mais ricos, alimentavam, de certo modo, a vaidade dos grandes proprietários de terras que, com grande avidez, os compravam por meio de grandes quantidades de produtos naturais de suas propriedades. Por isso, o comércio de grande parte da Europa, naquela época, consistia sobretudo no intercâmbio de sua própria produção bruta por manufaturados de nações mais civilizadas. Assim, a lã da Inglaterra era comumente permutada pelos vinhos da França e os tecidos finos do país de Flandres, da mesma forma que o trigo da Polônia é hoje em dia trocado pelos vinhos e conhaques da França e pela sedas e veludos da França e da Itália. Dessa maneira, o comércio introduziu um gosto pelos manufaturados mais finos e mais avançados, em países nos quais tais manufaturados não existiam. Mas, quando esse gosto se tornou tão generalizado que provocou uma demanda considerável, os comerciantes, para economizar as despesas de transporte, naturalmente procuravam implantar algumas manufaturas do mesmo tipo em seu próprio país. Disso originaram-se as primeiras manufaturas para venda em locais distantes, que parecem ter surgido nas províncias ocidentais da Europa, após a queda do Império Romano. Importa observar que nenhum grande país jamais subsistiu ou poderia subsistir sem que nele funcionasse algum tipo de manufatura; e quando se diz que em um país não existem manufaturas isso deve ser entendido sempre no sentido de que não há manufaturas do tipo 395
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mais refinado e aprimorado, ou seja, de produtos destinados à venda em locais distantes. Em todos os grandes países, tanto as roupas como a mobília da maioria das pessoas são o produto de seu próprio trabalho. Isso ocorre mais nos países pobres — dos quais se costuma dizer não terem manufaturas — do que nos países ricos, dos quais se diz que as possuem em abundância. Nesses últimos, geralmente se encontra, tanto nas roupas como nas mobílias da camada mais baixa da população, uma porcentagem muito maior de produtos estrangeiros do que nos países mais pobres. Dois parecem ter sido os modos pelos quais se introduziram em diversos países as manufaturas para venda em locais distantes. Às vezes, foram introduzidas da maneira supramencionada, através da operação violenta, se assim podemos dizer, dos capitais de determinados comerciantes e empresários, que as implantaram imitando algumas manufaturas estrangeiras do mesmo gênero. Essas manufaturas, portanto, são o resultado do comércio exterior e tais parecem ter sido as antigas fábricas de sedas, veludos e brocados que floresceram em Lucca, durante o século XIII. Foram expulsas de lá pela tirania de um dos heróis de Maquiavel, Castruccio Castracani. Em 1310, foram expulsas de Lucca 900 famílias, das quais 31 se retiraram para Veneza, oferecendo-se para lá introduzir a manufatura da seda.160 Sua oferta foi aceita; muitos privilégios lhes foram conferidos, e a manufatura foi estabelecida com 300 trabalhadores. Tais parecem ter sido também as manufaturas de tecidos finos que antigamente floresciam em Flandres e que foram introduzidas na Inglaterra no começo do reinado de Isabel; tais são também as atuais manufaturas da seda de Lyon e de Spitalfields. Manufaturas introduzidas dessa maneira geralmente empregam matérias-primas estrangeiras, sendo imitações de manufaturas estrangeiras. Quando a manufatura se estabeleceu em Veneza, todas as matérias-primas eram trazidas da Sicília e do Levante. Também a manufatura mais antiga de Lucca trabalhava com materiais importados do exterior. O cultivo de amoreiras e a criação do bicho-da-seda não parecem ter sido comuns nas regiões setentrionais da Itália antes do século XVI. Essas atividades não foram introduzidas na França antes do reinado de Carlos IX. As manufaturas de Flandres trabalhavam sobretudo com lã espanhola e inglesa. A lã espanhola foi a matériaprima, não da primeira manufatura de lã da Inglaterra, mas da primeira implantada para vender em locais distantes. Mais da metade das matérias-primas empregadas hoje nas manufaturas de Lyon consiste em seda estrangeira; e, quando essas manufaturas se implantaram, a totalidade ou quase totalidade de lã era importada. Quanto à manufatura de Spital-fields, provavelmente nenhuma matéria-prima por ela utilizada tenha sido produzida na Inglaterra. A sede de tais manufaturas, pelo fato de ser geralmente implantada segundo o es160 Ver SANDI. Istoria Civile de Vinezia, Parte Segunda, v. I, pp. 247 e 256. 396
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quema e projeto de alguns poucos indivíduos, às vezes é estabelecida em alguma grande cidade marítima e às vezes em uma cidade do interior, conforme o interesse, discernimento e capricho dos fundadores. Outras vezes, as manufaturas para venda dos produtos em locais distantes se desenvolvem natural e espontaneamente, pelo aperfeiçoamento gradual daquelas manufaturas domésticas e rústicas que devem sempre existir mesmo nos países mais pobres e primitivos. Tais manufaturas geralmente empregam as matérias-primas produzidas pelo país, e muitas vezes parecem ter sido aperfeiçoadas em regiões do interior que não distavam de forma excessiva, mas consideravelmente, da costa marítima, e até mesmo de qualquer artéria fluvial. Um país mediterrâneo, naturalmente fértil e fácil de ser cultivado, produz um grande excedente de gêneros, além do necessário para a manutenção dos agricultores e, devido à despesa do transporte terrestre e os inconvenientes da navegação fluvial, muitas vezes pode ser difícil enviar esse excedente para o exterior. A abundância, portanto, barateia as mercadorias, estimulando grande número de trabalhadores a se estabelecerem nas proximidades, considerando que seu trabalho, ali, pode render-lhe mais do que em outros lugares. Desenvolvem, pois, as matérias-primas produzidas pela terra, trocando seu produto acabado — isto é, seu preço — para obter mais materiais e provisões. Acrescentam novo valor à parte excedente de sua produção bruta, economizando a despesa do transporte até o local onde haja curso d’água navegável, ou até algum mercado distante; ao mesmo tempo, fornecem aos agricultores alguma coisa em troca daquilo que é agradável e útil para eles, em condições mais fáceis do que poderiam conseguir antes. Os agricultores obtêm um preço melhor pela sua produção excedente, podendo comprar por preço mais barato outros artigos de que necessitam para seu conforto. Dessa forma, têm a possibilidade — sendo para isso também estimulados — de aumentar o excedente de sua produção, através de um ulterior aprimoramento e melhor cultivo da terra. E, assim como a fertilidade da terra fez nascer a manufatura, da mesma forma o progresso dessa manufatura beneficia a terra e aumenta ainda mais a sua fertilidade. De início, essas manufaturas suprem a vizinhança; depois, à medida em que elas progridem e se aprimoram, suprem também mercados mais distantes. Com efeito, se nem a produção bruta nem a manufatura mais primitiva eram capazes de comportar — a não ser com extrema dificuldade — o custo de um transporte terrestre a considerável distância, os produtos mais aprimorados e refinados já conseguem suportar com facilidade essa despesa. Um pequeno volume muitas vezes contém grande quantidade de produto em estado bruto. Por exemplo, uma peça de tecido fino, que pesa apenas 80 libras, contém não somente o preço de 80 libras-peso de lã, mas às vezes também o preço de vários milhares de libras-peso de trigo, sustento dos diversos trabalhadores e dos seus empregadores imediatos. O trigo, que dificilmente poderia ter sido transportado para fora do país em seu estado natural, é dessa maneira virtualmente exportado 397
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na forma do manufaturado completo, podendo ser com facilidade transportado para os recantos mais longínquos do mundo. Foi dessa maneira que se desenvolveram, natural e espontaneamente, as manufaturas de Leeds, Halifax, Sheffield, Birmingham e Wolverhampton. Essas manufaturas são produtos da agricultura. Na história moderna da Europa, sua extensão e melhoria geralmente têm sido posteriores às das resultantes do comércio exterior. A Inglaterra era conhecida pela fabricação de tecidos finos de lã espanhola, mais de um século antes que alguma dessas manufaturas nascidas da agricultura fosse capaz de produzir para o mercado exterior. A ampliação e o aperfeiçoamento destas últimas só poderiam ocorrer em conseqüência da ampliação e aperfeiçoamento da agricultura, o último e maior efeito do comércio exterior e das manufaturas introduzidas diretamente por ele. É o que passarei a expor no capítulo seguinte.
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CAPÍTULO IV De que Maneira o Comércio das Cidades Contribuiu para o Progresso do Campo
Três foram as maneiras pelas quais o progresso e a riqueza das cidades comerciais e manufatureiras contribuíram para o progresso e o cultivo das regiões às quais pertenciam. Em primeiro lugar, oferecendo um mercado grande e preparado para a produção bruta do campo, estimularam o seu cultivo e posterior progresso. Esse benefício não se limitou às regiões campestres em cujo raio estavam localizadas as cidades, mas ainda se estendeu mais ou menos a todas as regiões com as quais as cidades negociavam. A todas essas regiões, as cidades ofereciam um mercado para certa parte de sua produção bruta ou para sua produção manufaturada e, conseqüentemente, estimularam, até certo ponto, o trabalho e o progresso de todas essas regiões. Todavia, as regiões circunvizinhas, pela sua proximidade, auferiram o máximo de benefício desse mercado que eram as cidades. Pelo fato de a produção bruta das regiões próximas às cidades exigir menos transporte, os comerciantes podiam pagar melhores preços aos agricultores, e também fornecer essa produção aos consumidores pelo mesmo preço que a produção vinda de regiões mais distantes. Em segundo lugar a riqueza adquirida pelo habitantes das cidades muitas vezes era empregada para comprar terras à venda, sendo que grande parte delas geralmente não era cultivada. Os comerciantes freqüentemente ambicionam ser aristocratas rurais e, quando o conseguem, são em regra os que mais se empenham na melhoria das áreas adquiridas. Um comerciante está habituado a aplicar seu dinheiro sobretudo em projetos rentáveis, ao passo que um aristocrata rural está acostumado sobretudo a gastar. O primeiro, muitas vezes, aplica o dinheiro, que a ele retorna com lucro, enquanto que o segundo gasta o dinheiro e muito raramente espera algum lucro. Esses hábitos diferentes naturalmente afetam o caráter e a disposição de espírito dos 399
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dois, em qualquer tipo de negócio. Um comerciante geralmente é um empresário audaz; um aristocrata rural freqüentemente é um empresário tímido. O primeiro não tem medo de aplicar imediatamente um grande capital no aprimoramento da terra, quando tem uma perspectiva razoável de auferir lucro proporcional ao gasto. O segundo, se chega a dispor de algum capital — o que nem sempre acontece —, raramente se aventura a aplicá-lo dessa maneira. Se consegue algum proveito, geralmente não é com o capital, mas apenas com o que pode economizar de sua renda anual. Todos os que tiveram a oportunidade de viver em uma cidade mercantil, localizada em uma região não cultivada, devem ter observado muitas vezes como são muito mais animadoras as iniciativas dos comerciantes, sob esse aspecto, em comparação com as dos aristocratas rurais. Além disso, os hábitos de ordem, economia e cuidado, para os quais a profissão do comércio naturalmente molda o comerciante, o tornam muito mais apto a executar, com lucro e sucesso, qualquer projeto de desenvolvimento. Em terceiro e último lugar, o comércio e as manufaturas introduziram gradualmente a ordem e a boa administração e, com elas, a liberdade e a segurança dos indivíduos, entre os habitantes do campo, que até então haviam vivido mais ou menos em um estado contínuo de guerra com os vizinhos, e de dependência servil em relação a seus superiores. Embora esse fator seja o último aqui apontado, é sem dúvida o mais importante de todos. Pelo que sei, o Sr. Hume foi o único que até agora se deu conta desse fato. Em um país que não tem comércio exterior nem manufaturas mais aperfeiçoados, um grande proprietário de terras, por não ter nada pelo que possa trocar a maior parte da produção de sua terra que vá além do necessário para a manutenção dos agricultores, consome tudo com seus hóspedes na casa de campo. Se essa produção excedente for suficiente para sustentar 100 ou 1 000 pessoas, só pode utilizá-la para isso e apenas para isso. Ele está, assim, continuamente rodeado de uma multidão de clientes (retainers) e dependentes, os quais, não possuindo nada de equivalente para dar em troca de seu sustento, e por serem alimentados totalmente pela sua bondade, têm que obedecer-lhe pela mesma razão que os soldados precisam obedecer ao príncipe que lhes paga para isso. Antes que o comércio e as manufaturas se difundissem na Europa, os gastos de hospedagem dos ricos e dos grandes, desde o soberano até o barão do mais baixo escalão, superavam tudo quanto hoje possamos ser capazes de imaginar. O Westminster Hall era a sala de jantar de William Rufus, e muitas vezes, talvez, fosse suficientemente amplo para acolher sua corte. Considerava-se como um gesto de munificência, em Thomas Becket, o fato de ele espalhar feno limpo ou juncos, na época da estação propícia, no chão de sua sala, para que os cavaleiros e nobres rurais, que não conseguiam assento, não estragassem suas finas vestes ao sentar-se no chão para participar dos banquetes do anfitrião. Conta-se que o grande Conde de Warwick diariamente dava banquetes em suas diversas mansões, 400
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a 30 mil pessoas; embora esse número possa ser exagerado, deve ter sido, de qualquer forma, muito grande, para que se chegasse a tal exagero. Não faz muitos anos, esse tipo de excesso ainda existia em muitas regiões da Alta Escócia. Isso parece ser coisa comum em todos os países em que o comércio e as manufaturas estão pouco desenvolvidos. Conta o Doutor Pocock ter visto um chefe árabe jantar nas ruas de uma cidade à qual havia vindo para vender seu gado e que convidava a participar de seu banquete todos os passantes, até mesmo os mendigos comuns. Sob todos os aspectos, os ocupantes da terra dependiam tanto do grande proprietário de terras quanto seus clientes. Mesmo aqueles que não estavam em estado de servidão eram rendeiros a título precário e pagavam uma renda inferior ao sustento que o cultivo da terra lhes proporcionava. Uma coroa, ou então 1/2 coroa, uma ovelha, um cordeiro, constituíam, até alguns anos atrás, a renda normal para terras inteiras, que sustentavam uma família, na Alta Escócia. Em alguns lugares, essa é a renda ainda hoje; nem se diga que o dinheiro hoje compre lá quantidade maior de mercadorias do que em qualquer outro lugar. Em um país onde o excedente de produção de uma grande propriedade precisa ser consumido ali mesmo, muitas vezes será mais conveniente, para o proprietário, que parte seja consumida a certa distância de sua própria casa, desde que os que a consomem sejam tão dependentes dele quanto seus clientes e criados domésticos. Com isso o proprietário se livra do incômodo de uma companhia muito numerosa ou de uma família excessivamente grande. Um rendeiro a título precário, que possui terra suficiente para manter sua família por pouco mais que sua renda, é tão dependente do proprietário quanto qualquer criado ou cliente, devendo-lhe obediência da mesma forma. Assim sendo, da mesma forma como o proprietário sustenta seus criados e clientes, em sua própria casa, sustenta igualmente os rendeiros que moram em suas casas. A subsistência deles todos depende da bondade do proprietário, e a sua permanência na propriedade depende de suas boas graças. Em tal situação, o poder dos antigos barões fundava-se na autoridade que os grandes senhores de terras possuíam necessariamente sobre seus rendeiros e clientes. Para todos aqueles que moravam em suas propriedades, os barões eram obrigatoriamente juízes, em tempos de paz, e líderes, em tempos de guerra. Tinham condições de manter a ordem e fazer cumprir a lei, dentro de seus domínios, porque cada um deles podia aplicar a força de seus habitantes contra a injustiça de qualquer um dos moradores. Nenhuma outra pessoa dispunha de autoridade suficiente para tanto. O rei, em particular, não a possuía. Com efeito, naquela época o rei não era, no fundo, muito mais do que o maior proprietário de terras existente em seu território; a ele, devido ao interesse comum de defesa contra inimigos comuns de fora, os outros grandes proprietários devotavam certo respeito. Se o rei pretendesse exigir o pagamento de uma pequena dívida dentro do território de algum desses grandes proprietários, onde todos os moradores estavam armados e habituados a apoiarem-se mutuamente, isso lhe teria custado 401
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— se tentasse fazê-lo com sua própria autoridade — mais ou menos o mesmo trabalho que acabar com uma guerra civil. Por isso, o rei era obrigado a deixar a administração da justiça, na maior parte do país, àqueles que tinham condições de fazê-lo; pela mesma razão, era obrigado a deixar o comando da milícia da Nação àqueles a quem obedecia essa milícia. É um erro pensar que essas jurisdições territoriais se originaram da lei feudal. Não somente as competências mais altas, tanto civil como militar, mas também o poder de recrutar tropas, de cunhar moedas, e até mesmo o poder de decretar leis secundárias para o governo de sua própria população, tudo isso eram direitos adquiridos alodialmente pela maior parte dos proprietários de terras, vários séculos antes que na Europa sequer se conhecesse o termo lei feudal. Ao que parece, a autoridade e a jurisdição dos senhores saxônicos na Inglaterra eram, antes da conquista, tão grandes quanto a autoridade e a jurisdição de qualquer um dos senhores normandos após a conquista. Ora, supõe-se que a lei feudal só se tornou lei comum na Inglaterra depois da conquista. Também quanto à França, não há dúvida nenhuma de que os grandes senhores possuíam alodialmente a maior autoridade e as maiores competências, muito antes que no país fosse introduzida a lei feudal. Essa autoridade e essas competências necessariamente provinham do fato de serem proprietários de terras, da maneira acima descrita. Sem remontar aos tempos mais antigos das monarquias francesa e inglesa, em épocas muito posteriores podemos encontrar inúmeras provas de que tais efeitos sempre decorrem dessas causas. Não faz nem trinta anos que o Sr. Cameron de Lochiel, um nobre de Lochabar, na Escócia, sem qualquer garantia legal e sem ser o que na época se chamava um senhor da realeza e nem mesmo um rendeiro-chefe, mas simplesmente um vassalo do duque de Argyle, e sem ocupar sequer um cargo do porte do de um juiz de paz — não obstante isso, costumava exercer a mais alta autoridade criminal sobre a sua própria população. Segundo se afirma, fê-lo aliás com grande eqüidade, embora sem qualquer formalidade peculiar à justiça; pode-se até admitir como provável que a situação daquela região do país, naquela época, exigia que ele assim agisse, para manter a harmonia pública. Esse senhor, cuja renda nunca ultrapassou 500 libras anuais, em 1745 arrastou consigo à rebelião oitocentas pessoas da população que lhe estava sujeita. A introdução da lei feudal, longe de ampliar a autoridade dos grandes senhores alodiais, pode ser considerada como uma tentativa para reduzi-la. Ela estabeleceu uma subordinação regular — acompanhada de longa série de serviços e impostos — desde o rei até o menor proprietário. Enquanto o proprietário era menor de idade, a renda, juntamente com a administração das terras, cata nas mãos de seu superior imediato; conseqüentemente, a renda e a administração das terras dos maiores proprietários estavam nas mãos do rei, encarregado da manutenção e da educação do tutelado, sendo que o rei, pela sua qualidade de tutor, supostamente tinha o direito de dispor sobre o 402
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casamento dele, desde que fosse de forma compatível com a categoria do tutelado. Entretanto, embora essa instituição tendesse necessariamente a reforçar a autoridade do rei e a enfraquecer a dos grandes proprietários rurais, não conseguiu fazê-lo em medida suficiente para estabelecer a ordem e a boa administração entre os habitantes do campo, pois não podia alterar suficientemente o estado de coisas e os costumes anteriores, que haviam dado origem a essas desordens. A autoridade de governo ainda continuou a ser, como antes, muito fraca na cabeça e muito forte nos membros inferiores, e a força excessiva dos membros inferiores constituía a causa da fraqueza da cabeça. Após a instituição da subordinação feudal, o rei continuou na mesma incapacidade de antes para cercear a violência dos grandes proprietários de terras. Esses continuaram a fazer guerra a seu arbítrio, quase incessantemente uns contra os outros, e muito freqüentemente contra o rei; e os campos continuaram a ser cenário de violência, rapinas e desordens. Entretanto, o que toda a violência das instituições feudais jamais poderia ter conseguido, o foi gradualmente pela operação silenciosa e insensível do comércio exterior e das manufaturas. Com o decorrer do tempo, o comércio exterior e a manufatura foram fornecendo aos grandes proprietários rurais alguma coisa graças à qual podiam trocar todo o excedente da produção de suas terras, produtos esses que podiam eles mesmos consumir, sem terem que partilhá-los com seus rendeiros ou clientes. Tudo para nós, e nada para os outros — essa parece ter sido, em todas as épocas do mundo, a máxima vil dos senhores da humanidade. Eis por que, tão logo os grandes proprietários conseguiram encontrar um modo de consumir eles mesmos o valor total das rendas de suas terras, não tiveram mais propensão a partilhá-las com outras pessoas. Por um par de fivelas de diamante, ou talvez por alguma outra coisa igualmente frívola e inútil, trocavam o sustento ou, o que é a mesma coisa, o preço do sustento anual de 1 000 homens e, com isso, todo o peso e autoridade que esse poderio era capaz de assegurar-lhes. Todavia, as fivelas deveriam pertencer-lhes com exclusividade, e nenhuma outra criatura teria parte nelas, ao passo que, no sistema mais antigo, os senhores feudais tinham que partilhar sua renda no mínimo com 1 000 pessoas. Essa diferença era decisiva para os avaliadores que deviam determinar a preferência e que, em troca da satisfação da mais infantil, da mais mesquinha e mais sórdida de todas as vaidades, negociavam gradualmente todo o poder e toda a autoridade que possuíam. Em um país onde não há comércio exterior nem manufaturas aperfeiçoadas, uma pessoa que aufere uma renda anual de 10 mil libras não tem condições de empregar sua renda a não ser para manter, talvez, 1 000 famílias, todas elas forçosamente sob seu comando. Ora, na situação atual da Europa, uma pessoa com renda anual de 10 mil libras pode gastar toda ela — e geralmente o faz — sem sequer sustentar diretamente vinte pessoas, ou sem ser capaz de manter mais 403
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de dez lacaios. Indiretamente, talvez, ela sustente um número igual ou até maior de pessoas do que antes, com o antigo sistema de gastos. Com efeito, embora seja muito pequena a quantidade de produtos preciosos pelos quais troca toda a sua renda, deve ter sido muito grande o número de pessoas cujo trabalho foi necessário para produzir essas mercadorias. O elevado preço dessas mercadorias geralmente provém dos salários da mão-de-obra empregada e do lucro auferido pelos empregadores diretos dessa mão-de-obra. Ao pagar esse preço, o grande proprietário indiretamente paga todos esses salários e esse lucro, contribuindo assim, indiretamente, para o sustento de todos esses trabalhadores e respectivos empregadores. Geralmente, porém, contribui com uma parte mínima para a manutenção de cada trabalhador ou empregador considerado individualmente: em relação a uns pouquíssimos contribui talvez com 1/10; para a manutenção de muitos deles, nem sequer com 1/100; e para a de alguns deles, nem sequer com a milésima e nem mesmo com a décima-milésima parte de sua manutenção anual total. Portanto, ainda que o proprietário contribua para a manutenção de todos eles, todos são mais ou menos independentes dele, já que, geralmente, todos podem manter-se sem ele. Quando os grandes proprietários de terras gastam toda a sua renda na manutenção de seus rendeiros e clientes, cada um deles sustenta inteiramente todos os seus próprios clientes e cada um deles mantém integralmente todos os seus próprios rendeiros e clientes. Ao contrário, quando gastam na manutenção de comerciantes e artífices, podem, talvez, se considerados em conjunto, sustentar o mesmo número tão grande de pessoas que antes, talvez até um número maior, devido aos gastos normalmente feitos com a hospitalidade rústica. Todavia, cada um deles, tomado individualmente, contribui em geral com uma parcela mínima para a manutenção de cada indivíduo. Com efeito, cada comerciante e cada artífice aufere sua subsistência do serviço que presta, não a um, mas a 100 ou 1 000 clientes diferentes. Embora, de certa forma, tenha obrigações para com todos esses clientes, não depende absolutamente de nenhum deles. Aumentando gradualmente esse tipo de gastos por parte dos grandes proprietários de terras, era inevitável que diminuísse progressivamente o número de seus clientes, até o dia em que todos fossem despedidos. A mesma razão os levou a despedir gradativamente o contingente desnecessário de seus rendeiros. As propriedades cultivadas foram ampliadas, e os ocupantes da terra, não obstante as queixas de despovoamento, foram reduzidos ao estritamente necessário para cultivar essas áreas, segundo o estágio imperfeito da agricultura e de desenvolvimento daquela época. Afastando as bocas desnecessárias, e exigindo do agricultor o valor pleno que podia ser auferido da terra, o proprietário conseguiu obter um excedente maior de produção — vale dizer, o preço de um excedente maior — e, para gastar a renda derivante desse novo acréscimo de produção, os comerciantes e manufatores passaram a fornecer novos produtos ao proprietário. Continuan404
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do esse processo, o proprietário passou a desejar auferir da sua terra uma produção ainda maior. Ora, os rendeiros da terra só fariam isso sob uma condição: que, com o tempo, eles tivessem a certeza da posse da terra, durante um período de tempo suficiente para permitir-lhes recuperar com lucro o que investissem no posterior aprimoramento da terra. A vaidade dispendiosa do proprietário fê-lo aceitar essa condição; e aqui está a origem dos arrendamentos a longo prazo. Mesmo um rendeiro a título precário, que paga o valor total da terra, não depende totalmente do proprietário. As vantagens pecuniárias que um recebe do outro são mútuas e iguais, e tal tipo de rendeiro não exporá nem sua vida nem sua fortuna a serviço do proprietário. Mas se ele tiver um contrato de locação, durante muitos anos será totalmente independente do proprietário; e este não deve esperar dele nenhum serviço, mesmo o mais insignificante, além do expressamente estipulado no contrato de locação, ou do que lhe seja imposto pela lei comum e conhecida no país. Dessa forma, tornando-se independentes os rendeiros e sendo demitidos os clientes, os grandes proprietários não tinham mais condições de interferir no andamento normal da justiça ou de perturbar a paz reinante. Tendo vendido seu direito de primogenitura — não, como Esaú, por um prato de lentilhas, em uma época de fome e necessidade, mas na de esbanjamento dos bens, por berloques e bugigangas, mais próprios para brinquedos de crianças do que objetos dignos de adultos — os grandes proprietários de terras tornaram-se tão insignificantes quanto qualquer burguês ou comerciante rico numa cidade. Estabeleceu-se no campo um governo regular tal como na grande cidade. E ninguém mais tinha poderes suficientes para perturbar a administração daquele governo, tanto no campo como na cidade. Não posso deixar de assinalar — embora isso talvez não esteja diretamente relacionado com o tema — que nos países comerciais é hoje muito rara a existência de famílias muito antigas que conservam alguma propriedade rural considerável, transmitida de pai a filho, durante muitas gerações sucessivas. Ao contrário, em países em que há pouco comércio, tais como o País de Gales ou a Alta Escócia, tais famílias continuam sendo muito numerosas. As histórias dos países árabes parecem estar todas elas cheias de genealogias, sendo que uma delas, escrita por um cã da Tartária e traduzida para vários idiomas europeus, praticamente não contém outra coisa senão isso — prova de que são muito comuns, nesses países, essas famílias antigas. Em países em que uma pessoa rica não tem outra maneira de gastar sua renda a não ser mantendo quantas pessoas puder sustentar, não está em condições de ultrapassar certos limites e sua benevolência raramente é tão grande a ponto de tentar ele manter mais pessoas do que pode. Ao contrário, em países onde o rico puder gastar a maior renda com a sua própria pessoa, muitas vezes ele não impõe limite algum a seus gastos, uma vez que não têm limites sua vaidade e seu amor-próprio. Por isso, em países de grande comércio, é muito raro a riqueza per405
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manecer na mesma família, a despeito de todo o rigor das leis que proíbem a dissipação dos bens. Ao contrário, nas nações mais pobres, a permanência da riqueza na mesma família muitas vezes ocorre naturalmente, sem necessidade de normas legais; aliás, em nações de pastores, como os tártaros e os árabes, a natureza consumível de suas posses necessariamente torna impossíveis quaisquer leis desse gênero. Dessa maneira, uma revolução da maior importância para o bemestar público foi levada a efeito por duas categorias de pessoas, que não tinham a menor intenção de servir ao público. A única motivação dos grandes proprietários era atender a mais infantil das vaidades. Por outra parte, os comerciantes e os artífices, embora muito menos ridículos, agiram puramente a serviço de seus próprios interesses, fiéis ao princípio do mascate, de com um pêni ganhar outro. Nem os proprietários nem os comerciantes e artífices conheceram ou previram a grande revolução que a insensatez dos primeiros e a operosidade dos segundos estavam gradualmente fermentando. Assim é que, na maior parte da Europa, o comércio e as manufaturas das cidades, ao invés de serem efeito do aprimoramento e do cultivo do campo, foram sua causa. Todavia, pelo fato dessa evolução contrariar o curso natural das coisas, ela é necessariamente lenta e incerta. Compare-se o progresso lento dos países europeus, cuja riqueza depende muito do comércio e das manufaturas, com o rápido avanço das nossas colônias norte-americanas, cuja riqueza está totalmente baseada na agricultura. Através da maior parte da Europa, supõe-se que para duplicar o número de habitantes requer-se nada menos de 500 anos. Em várias de nossas colônias norte-americanas, ao contrário, constata-se que ela duplica em 20 ou 25 anos. Na Europa, a lei da primogenitura e direitos perpétuos de todos os tipos impedem a divisão das grandes propriedades rurais, e com isso dificultam a multiplicação de pequenos proprietários. Ora, um pequeno proprietário, que conhece todos os recantos de sua propriedade, e que a vê com a predileção que toda propriedade inspira, sobretudo quando pequena e que, por esse motivo, tem prazer não somente em cultivá-la mas até em adorná-la, geralmente é o mais diligente, o mais inteligente e o mais bem-sucedido de todos os introdutores de melhoramentos. Além disso, as mesmas leis fazem com que tantas sejam as áreas de terra subtraídas à venda, que há sempre mais capitais para comprar terras do que áreas para vender, de maneira que estas sempre são vendidas a preço de monopólio. A renda nunca chega a pagar os juros do dinheiro com o qual se compraria a terra, além de ser onerada com reparações e outros encargos ocasionais, aos quais não estão sujeitos os juros do dinheiro. Na Europa, comprar terra é sempre uma aplicação de capital altamente desvantajosa para capitais pequenos. Sem dúvida, por amor à sua maior segurança, uma pessoa de posses modestas, quando se afasta do mundo dos negócios, às vezes optará por investir seu pequeno capital na compra de terra. Também um profissional, cuja renda provém de uma outra fonte, muitas 406
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vezes gosta de assegurar suas poupanças comprando terra. Uma pessoa jovem, que, ao invés de optar pelo comércio ou por alguma profissão, empregasse um capital de 2 mil ou 3 mil libras na compra e cultivo de uma pequena área de terra, poderia na realidade esperar viver muito feliz e muito independente, mas teria que abandonar definitivamente qualquer esperança de um dia juntar grande fortuna ou adquirir renome, coisas que, com uma aplicação diferente de capital, poderia ter as mesmas possibilidades de conseguir, da mesma forma que outras pessoas. Além disso, tal pessoa, embora não possa aspirar a ser um proprietário, muitas vezes sentirá desprezo em ser um agricultor. Por isso, a pequena área de terra que está à venda, e seu alto preço de venda impedem que grande número de capitais sejam investidos no cultivo e no aprimoramento da terra, capitais que, se fossem outras as circunstâncias, seriam canalizados para esse fim. Na América do Norte, ao contrário, muitas vezes bastam 50 ou 60 libras para começar a trabalhar na agricultura em terra própria. Naquelas regiões, a compra e o aprimoramento da terra não cultivada constituem a aplicação mais rentável, tanto para os capitais menores como para os maiores, sendo também o caminho mais direto para se conseguir toda a fortuna e renome a que se possa aspirar no país. Com efeito, naquelas regiões pode-se comprar terra quase gratuitamente ou a um preço muito inferior ao valor da produção natural — coisa impossível na Europa, ou em qualquer país em que as terras, durante muito tempo, foram de propriedade privada. Se as propriedades fossem igualmente divididas entre todos os filhos, por ocasião da morte de um proprietário que deixa uma família numerosa, a propriedade provavelmente seria posta à venda. Haveria à venda tanta terra, que ela não mais poderia ser vendida a preço de monopólio. A renda líquida da terra se aproximaria mais do valor suficiente para pagar os juros do dinheiro empregado na compra da terra, podendo-se então empregar na compra de terra um capital pequeno, com a mesma rentabilidade garantida a outros empregos de capital. A Inglaterra, em conseqüência da fertilidade natural do solo, da grande extensão da costa marítima em proporção com a extensão total do país, e também dos muitos rios navegáveis que a atravessam e asseguram a vantagem do transporte fluvial a algumas de suas regiões mais afastadas da costa, talvez seja por natureza tão conveniente como qualquer outro país da Europa para ser sede de comércio exterior, de manufaturas para venda a locais distantes e de todos os melhoramentos que disso podem advir. Além disso, desde o início do reinado de Isabel, os legisladores ingleses têm dispensado particular atenção aos interesses do comércio e das manufaturas, não havendo nenhum país na Europa, inclusive a própria Holanda, cujas leis, no global, favoreçam tanto esse tipo de atividade. Em conseqüência, durante todo esse período, o comércio e as manufaturas têm progredido continuamente. Sem dúvida, também a agricultura tem progredido gradativamente; entretanto, parece que seu progresso tem sido lento e menor do que 407
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o registrado no setor do comércio e das manufaturas. Antes do reinado de Isabel, é provável que a maior parte do país não tivesse sido cultivada; uma parcela muito grande dele continua ainda hoje por cultivar, e o cultivo de outra grande parte é muito inferior ao que poderia ser. Por outro lado, as leis inglesas favorecem a agricultura, não somente de maneira indireta, ao proteger o comércio, mas também através de estímulos diretos. Excetuados os períodos de escassez, a exportação de trigo não somente é livre, mas até incentivada por um subsídio. Em épocas de abundância moderada, a importação de trigo estrangeiro é onerada com taxas alfandegárias que equivalem a uma proibição. A importação de gado vivo, a não ser da Irlanda, é proibida em qualquer época, e só ultimamente é que se permitiu a importação da Irlanda. Por isso, os que cultivam a terra têm um monopólio, face a seus concidadãos, dos dois maiores e mais importantes artigos da produção da terra, o pão e a carne de açougue. Esses estímulos, ainda que, no fundo — como procurarei demonstrar mais adiante —, talvez sejam totalmente ilusórios, são suficientes, no mínimo, para demonstrar a boa intenção dos legisladores em favorecer a agricultura. Todavia, o que é mais importante que todos estímulos, os pequenos proprietários rurais da Inglaterra desfrutam da máxima segurança, independência e respeitabilidade que as leis lhes podem conceder. Por isso, nenhum país em que existe o direito da primogenitura, que pague dízimos, e onde ainda se admitem direitos perpétuos, embora contrariamente ao espírito da lei, tem condições de estimular mais a agricultura do que a Inglaterra. Não obstante tudo isso, tal é a situação da agricultura no país. Qual seria essa situação, se a lei não tivesse dado a tal atividade nenhum qualquer estímulo direto além do que lhe propicia indiretamente o progresso do comércio, e se tivesse deixado os pequenos proprietários rurais na mesma condição que na maioria dos outros países europeus? Já se passaram mais de duzentos anos, desde o início do reinado de Isabel, período tão longo quanto a duração da prosperidade humana costuma sustentar. A França parece ter tido uma participação considerável no comércio exterior, quase um século antes que a Inglaterra se distinguisse como país comercial. A marinha francesa era apreciável, de acordo com os conceitos da época, antes da expedição de Carlos VIII a Nápoles. No entanto, o cultivo e o aprimoramento da França, em geral, são inferiores aos da Inglaterra. É que as leis do país jamais deram o mesmo estímulo direto à agricultura. Muito considerável é também o comércio externo da Espanha e de Portugal com os demais países da Europa, embora feito sobretudo com navios estrangeiros. O comércio mantido com suas colônias é feito com navios do próprio país, sendo muito maior, em virtude da grande riqueza e da expressão dessas colônias. Todavia, esse comércio nunca fez surgir em nenhum daqueles dois países manufaturas de porte para venda em locais distantes e a maior parte da terra de ambos ainda hoje continua incultivada. No entanto, o comércio externo de Portugal 408
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é mais antigo do que o de qualquer outro grande país europeu, se excetuarmos a Itália. A Itália é o único grande país europeu que parece ter sido totalmente cultivado e melhorado integralmente pelo comércio exterior e pelas manufaturas criadas para fins de exportação. Antes da invasão de Carlos VIII, a Itália, segundo Guicciardin, era cultivada, tanto nas regiões mais planas e férteis quanto nas partes mais montanhosas e estéreis. A localização vantajosa do país e o grande número de Estados independentes que nele subsistiam na época provavelmente contribuíram muito para esse fato. Todavia, não obstante essa afirmação geral de um dos mais sensatos e meticulosos historiadores modernos, é possível que a Itália, naquela época, não estivesse mais bem cultivada do que o está a Inglaterra de hoje. Por outro lado, o capital que um país adquire por meio do comércio e das manufaturas constitui uma posse muito precária e incerta, enquanto parte dele não tiver sido assegurada e não for aplicada no cultivo e na melhoria de suas terras. Tem-se afirmado, com muita propriedade, que um comerciante não é necessariamente um cidadão de determinado país. Em geral lhe é indiferente onde ele estabelece o seu comércio; basta um pequeno desgosto para levá-lo a transferir seu capital de um país para outro e, com seu capital, todo o trabalho ao qual dá apoio. Pode-se dizer que nenhuma parcela do capital do comerciante pertence a um determinado país, enquanto esse capital não se espalhar pelo país, sob a forma de construções ou de duradoura melhoria da terra. Nenhum vestígio resta hoje da grande riqueza que, segundo se relata, possuía a maior parte das cidades da Liga Hanseática, a não ser nas obscuras histórias dos séculos XIII e XIV. Nem sequer se conhece hoje, com certeza, a localização exata de algumas dessas cidades, ou a que cidades européias pertencem os nomes latinos dados a algumas daquelas cidades. No entanto, embora os infortúnios da Itália no final do século XV e no início do século XVI tenham reduzido sensivelmente o comércio e as manufaturas das cidades da Lombardia e da Toscana, esses países continuam hoje a figurar entre os mais povoados e mais bem cultivados da Europa. As guerras civis de Flandres, e o Governo espanhol que lhes seguiu, suprimiram o grande comércio de Antuérpia, Gand e Bruges. Entretanto, Flandres continua sendo ainda hoje uma das províncias mais ricas, melhor cultivadas e mais povoadas da Europa. Os transtornos normais da guerra e as mudanças de governo facilmente fazem secar as fontes de riqueza resultantes exclusivamente do comércio. Todavia, a riqueza proveniente dos mais sólidos aperfeiçoamentos da agricultura é muito mais durável, não podendo ser destruída, a não ser por convulsões mais violentas, ocasionadas pelas depredações das nações hostis e bárbaras que se estenderam por um ou dois séculos seguidos, tais como as que ocorreram nas províncias ocidentais da Europa durante algum tempo antes e depois da queda do Império Romano. 409
LIVRO QUARTO
Sistemas de Economia Política
INTRODUÇÃO
A Economia Política, considerada como um setor da ciência própria de um estadista ou de um legislador, propõe-se a dois objetivos distintos: primeiro, prover uma renda ou manutenção farta para a população ou, mais adequadamente, dar-lhe a possibilidade de conseguir ela mesma tal renda ou manutenção; segundo, prover o Estado ou a comunidade de uma renda suficiente para os serviços públicos. Portanto, a Economia Política visa a enriquecer tanto o povo quanto o soberano. O progresso diferenciado da riqueza, em épocas e nações diferentes, deu origem a dois sistemas distintos de Economia Política, no tocante ao enriquecimento da população. O primeiro pode ser denominado sistema de comércio, o segundo, sistema de agricultura. Procurarei explicar o dois da maneira mais plena e clara possível, começando pelo sistema de comércio. É esse o sistema moderno, sendo melhor compreendido em nosso próprio país e em nossa própria época.
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CAPÍTULO I O Princípio do Sistema Comercial ou Mercantil
Que a riqueza consista no dinheiro, isto é, no ouro e na prata, é uma idéia popular que deriva naturalmente da dupla função do dinheiro, como instrumento de comércio e como medida de valor. Pelo fato de ser instrumento de comércio, quando temos dinheiro temos maior facilidade de conseguir mais prontamente, do que por meio de qualquer outra mercadoria, tudo aquilo de que possamos ter necessidade. Pensamos sempre que o grande problema e o grande negócio é ter dinheiro. Dispondo dele, não há dificuldade alguma em fazer qualquer outra compra. Pelo fato de ser o dinheiro a medida do valor de outras coisas, calculamos o valor de todas as demais mercadorias pela quantidade de dinheiro pela qual podem ser trocadas. Dizemos que um rico vale muito dinheiro, e que um pobre vale muito pouco dinheiro. Diz-se que um homem parcimonioso, ou seja, um homem que almeja ardentemente tornar-se rico, ama o dinheiro; e diz-se que um homem despreocupado, generoso, ou pródigo é indiferente ao dinheiro. Tornarse rico, nesse modo de pensar, é adquirir dinheiro; em suma, a riqueza e o dinheiro, no linguajar comum, são considerados como sinônimos, sob todos os aspectos. Analogamente, supõe-se que um país rico — da mesma forma que um indivíduo rico — é aquele que tem muito dinheiro; nessa suposição, acumular ouro e prata em um país constitui o caminho mais rápido para enriquecê-lo. Durante algum tempo após a descoberta da América, a primeira pergunta dos espanhóis, quando chegavam a alguma costa desconhecida, costumava ser esta: há ouro e prata nas imediações? Conforme a informação que recebiam, julgavam se valia a pena estabelecer uma colônia ali ou se valia a pena conquistar a região. Plano Carpino, monge enviado como embaixador pelo rei da França a um dos filhos do famoso Gêngis Khan, conta que os tártaros costumavam perguntar-lhe se havia muitas ovelhas e bois no reino da França. A pergunta deles tinha o mesmo objetivo que a dos espanhóis. 415
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Queriam saber se o país era suficientemente rico para valer a pena conquistá-lo. Entre os tártaros, como entre todos os outros povos de pastores, que geralmente ignoravam o uso do dinheiro, o gado constitui o instrumento do comércio e a medida de valor das demais mercadorias. Por isso, no conceito deles, a riqueza consistia em gado, assim como para os espanhóis consistia em ouro e prata. Das duas noções, talvez a dos tártaros estivesse mais perto da verdade. O Sr. Locke adverte para uma diferença entre o dinheiro e os outros bens móveis. Segundo ele, todos os outros bens móveis são de natureza tão consumível que não se pode confiar muito na riqueza consistente neles, e uma nação que num determinado ano tem abundância deles pode ter grande escassez deles no ano seguinte, mesmo sem exportá-los, simplesmente em decorrência de seu próprio uso e abuso. Ao contrário, o dinheiro é um amigo constante que, embora possa circular de mão em mão, desde que consigamos evitar que ele saia do país, está pouco sujeito ao desgaste e ao consumo. Segundo ele, portanto, o ouro e a prata constituem a parte mais sólida e substancial da riqueza móvel de uma nação; por esse motivo, no pensamento dele, o grande objetivo da Economia Política de tal nação deve consistir em multiplicar esses metais. Outros sustentam que, se uma nação pudesse ser separada do resto do mundo, pouco importaria se nela circulasse muito ou pouco dinheiro. Os bens de consumo que circulavam por esse dinheiro seriam apenas trocados por uma quantidade maior ou menor de moedas, mas a riqueza ou pobreza reais do país dependeriam totalmente da abundância ou escassez dessas mercadorias de consumo. Outro seria, segundo eles, o caso de países que têm relações com nações estrangeiras, e que são obrigados a fazer guerras com outros povos, e a manter esquadras e exércitos em países distantes. Isso, dizem eles, só é possível enviando dinheiro ao exterior para manter essas esquadras e exércitos; ora, uma nação não pode enviar muito dinheiro ao exterior, a não ser que tenha muito no próprio país. Por isso, toda nação colocada nessa situação deve procurar, em tempo de paz, acumular ouro e prata, para que, quando a necessidade o exigir; possa ter com que fazer guerra contra seus inimigos de fora. Em conseqüência desses conceitos populares, todas as nações da Europa têm se empenhado, embora com pouca serventia, em descobrir todos os meios possíveis de acumular ouro e prata em seus respectivos territórios. A Espanha e Portugal, proprietários das principais minas que fornecem esses metais à Europa, proibiram totalmente a exportação de ouro e prata, sob penas rigorosas, ou impuseram pesadas taxas aduaneiras à respectiva exportação. Proibição similar parece ter antigamente constituído parte da política da maioria dos outros países europeus. Ela existia até onde menos se poderia esperar: em algumas leis antigas do Parlamento escocês que proibiam, sob rigorosas penas, levar ouro ou prata para fora do reino. Antigamente, a mesma política vigorava na França e na Inglaterra. 416
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Quando esses países se transformaram em países comerciais, os comerciantes consideraram diversas vezes tais proibições extremamente inconvenientes. Eles, muitas vezes, tinham a possibilidade de comprar, mais vantajosamente com ouro e prata do que com qualquer outra mercadoria, as mercadorias estrangeiras que queriam, ou para importá-las a seu próprio país ou para transportá-las para alguma outra nação estrangeira. Por isso, os comerciantes protestavam contra tal proibição, como prejudicial ao comércio. Alegavam, de início, que a exportação de ouro e prata para comprar mercadorias estrangeiras nem sempre gerava uma diminuição da quantidade desses metais dentro do reino. Pelo contrário, diziam, tal exportação com freqüência poderia fazer aumentar essa quantidade, pois, se com isso não aumentasse o consumo de bens estrangeiros no país, esses bens poderiam ser exportados a outros países e, ao serem vendidos lá com grande lucro, trazer de volta ao país muito mais ouro e prata do que a quantidade que havia sido necessário exportar para comprá-los. O Sr. Mun compara essa operação de comércio exterior com as fases da semeadura e da colheita na agricultura. “Se considerarmos apenas [diz ele] os atos do agricultor no tempo da semeadura, quando ele lança ao solo grande quantidade de cereais de boa qualidade, considerá-lo-emos mais como um louco do que como um agricultor. Se, porém, considerarmos seu trabalho na colheita, que representa a meta final de seus esforços, então veremos quanto valor tiveram seus trabalhos”. Em segundo lugar, os comerciantes alegavam que essa proibição não conseguiria impedir a exportação de ouro e prata, os quais sairiam facilmente do país através do contrabando, em virtude de seu reduzido volume em comparação com seu alto valor. Tal exportação, diziam eles, só poderia ser evitada atendendo-se devidamente ao que chamavam de balança comercial. Sustentavam ainda que, quando a Inglaterra exportava um valor superior ao que importava, os países estrangeiros ficavam com balanço devedor em relação a ela, dívida esta que necessariamente teria de pagar com ouro e prata, aumentando com isso a quantidade de ouro e prata no reino. Analogamente, se o reino importasse em valor maior do que exportava, a balança comercial seria negativa para o reino em relação aos países estrangeiros, caso em que o reino seria obrigado a pagar com ouro e prata, diminuindo assim o estoque existente. Nesse caso, alegavam eles, proibir a exportação desses metais não lograria efeito; o remédio seria fazer com que tal exportação ficasse mais cara, tornando-a mais dispendiosa. Nesse caso, o câmbio seria menos favorável ao país com balança comercial devedora, já que o comerciante que comprasse um título no exterior seria obrigado a pagar ao banco que vendesse não somente o risco natural, o incômodo e a despesa do envio do dinheiro ao exterior, mas também o risco extraordinário derivado da proibição. Ora, quanto mais o câmbio for desfavorável a um país, tanto mais a balança comercial se lhe tornará 417
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desfavorável, já que o dinheiro desse país necessariamente perde tanto mais valor, em comparação com o dinheiro do país cuja balança comercial é credora. Assim, por exemplo — alegavam esses comerciantes —, se o câmbio entre a Inglaterra e a Holanda for 5% contra a Inglaterra, serão necessárias 105 onças de prata na Inglaterra para comprar um título de 100 onças de prata na Holanda; conseqüentemente, 105 onças de prata na Inglaterra valerão apenas 100 onças de prata na Holanda, podendo, portanto, comprar apenas uma quantidade proporcional de mercadorias holandesas; ao contrário, 100 onças de prata na Holanda valerão 105 onças na Inglaterra, comprando uma quantidade proporcional de mercadorias inglesas; por conseguinte, as mercadorias inglesas que forem vendidas à Holanda o serão por preço mais baixo tanto quanto a diferença de câmbio entre os dois países; e as mercadorias holandesas que forem vendidas à Inglaterra o serão por preço mais alto tanto quanto a diferença de câmbio entre os dois países; conseqüentemente, a primeira venda leva para a Inglaterra menos dinheiro holandês — tanto quanto a diferença de câmbio entre os dois países; e a segunda venda leva para a Holanda mais dinheiro inglês — tanto quanto a diferença de câmbio entre os dois países. Ao final, portanto, a balança comercial se tornará ainda mais desfavorável à Inglaterra, exigindo ainda maior envio de ouro e prata à Holanda, para equilibrá-la. Tais argumentos em parte eram sólidos e em parte não passavam de sofismas. Eram sólidos na medida em que afirmavam que a exportação de ouro e prata por meio do comércio muitas vezes é vantajosa para um país. Eram sólidos, também, ao afirmar que não há proibição que consiga impedir a exportação, quando os particulares vêem vantagem na exportação. Constituíam, porém, sofismas na medida em que supunham que, para conservar ou para aumentar a quantidade de ouro e prata, se exigia maior atenção e controle do governo do que para conservar ou aumentar a quantidade de quaisquer outras mercadorias úteis, que a liberdade de comércio nunca deixa de assegurar, sem que seja necessário qualquer cuidado especial por parte do governo. Possivelmente, os argumentos eram sofismas também na medida em que afirmavam que o alto preço do câmbio necessariamente aumenta o que denominavam a balança comercial desfavorável, ou ocasiona a exportação de quantidade maior de ouro e prata. Na realidade, esse alto preço era extremamente desvantajoso para os comerciantes que tinham dinheiro a pagar no exterior. Pagavam assim muito mais caro pelos títulos que os banqueiros lhes outorgavam no exterior. Todavia, embora o risco resultante de tal proibição pudesse gerar alguma despesa extraordinária para os banqueiros, não necessariamente levaria embora mais dinheiro do país. Essa despesa seria geralmente toda ela investida no país, sem contrabandear o dinheiro para fora dele, e raramente poderia acarretar a exportação sequer de seis pence além da quantia correspondente necessária. Além disso, o alto preço do câmbio levaria naturalmente os comerciantes a se empenharem em equilibrar mais 418
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ou menos suas exportações com suas importações, para que fosse a menor possível a quantia sobre a qual teriam que pagar esse alto câmbio. Outrossim, o alto preço do câmbio necessariamente deve ter funcionado como uma taxa, aumentando o preço das mercadorias estrangeiras e, com isso, diminuindo seu consumo. Por isso, não tenderia a aumentar, antes a diminuir, o que denominavam a balança comercial desfavorável e, portanto, a exportação de ouro e prata. Qualquer que fosse o valor dos argumentos, o fato é que convenceram as pessoas às quais eram dirigidos. Os argumentos eram dirigidos por comerciantes aos parlamentos, aos conselhos de príncipes, aos nobres e aos aristocratas rurais; àqueles que supostamente entendiam de comércio e àqueles que tinham consciência de nada entender do assunto. Que o comércio exterior enriquece o país, a experiência o demonstrou aos nobres e aos aristocratas rurais, bem como aos comerciantes; mas como, ou de que maneira, ninguém o sabia com certeza. Os comerciantes sabiam muito bem de que maneira o comércio exterior enriquecia a eles mesmos. Tinham a obrigação de sabê-lo, pela sua própria profissão. Mas saber de que maneira enriquecia o país, isso não fazia parte de seu ofício. Esse ponto nunca era alvo de consideração por parte deles, a não ser quando sentiam a necessidade de pedir ao país que alterasse as leis relativas ao comércio exterior. Nessa hora, viam a necessidade de dizer algo sobre os efeitos benéficos do comércio exterior, bem como sobre a maneira como as leis então vigentes impediam a consecução desses efeitos. Para os juízes que tinham que dar um julgamento sobre o assunto, parecia uma explicação satisfatória, quando ouviam dizer que o comércio exterior trazia dinheiro para o país, mas que as leis atuais impediam que ele trouxesse tanto quanto poderia trazer, se elas fossem alteradas. Por isso, os argumentos aduzidos pelos comerciantes produziram o efeito desejado. A proibição de exportar ouro e prata foi limitada, na França e na Inglaterra, às respectivas moedas. Foi liberada a exportação de moeda estrangeira e de ouro e prata em lingotes. Na Holanda, e em alguns outros países, liberou-se até a exportação da moeda própria do país. A atenção do Governo foi desviada do esforço de evitar a exportação de ouro e prata para o cuidado de zelar pela balança comercial como sendo a única causa que poderia gerar aumento ou diminuição desses metais preciosos. De uma preocupação inútil, a atenção do Governo deslocou-se para uma preocupação muito mais complexa, muito mais embaraçosa e igualmente inútil. O título do livro de Mun, England’s Treasure in Foreign Trade, transformou-se em um princípio fundamental da Economia Política, não somente da Inglaterra, mas também de todos os demais países comerciais. O comércio interno, o mais importante de todos, no qual um capital igual gera a renda máxima e cria o máximo de empregos para a mão-de-obra do país, passou a ser considerado apenas como subsidiário em relação ao comércio exterior. Argumentava-se que tal comércio não trazia nenhum dinheiro de fora, como também não gerava nenhuma exportação de ouro e prata. Nessas condições, o país nunca 419
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poderia tornar-se mais rico ou mais pobre através desse tipo de comércio, a não ser na medida em que o progresso ou a decadência desse comércio pudesse indiretamente influenciar a condição do comércio externo. Um país que não possui minas próprias sem dúvida é obrigado a trazer de fora seu ouro e sua prata, como acontece com quem não tem vinhedos próprios e tem que importar vinhos de fora. Todavia, não parece necessário que a atenção do Governo se voltasse mais para um objetivo do que para o outro. Um país que tem com que comprar vinho, sempre terá à disposição o vinho de que necessita; e um país que tem com que comprar ouro e prata, nunca terá falta deles. Terão que ser comprados por determinado preço, como qualquer outra mercadoria, e assim como o ouro e a prata representam o preço de todas as outras mercadorias, da mesma forma todas as outras mercadorias representam o preço a ser pago por esses metais. Com plena segurança achamos que a liberdade de comércio, sem que seja necessária nenhuma atenção especial por parte do Governo, sempre nos garantirá o vinho de que temos necessidade; com a mesma segurança podemos estar certos de que o livre comércio sempre nos assegurará o ouro e prata que tivermos condições de comprar ou empregar, seja para fazer circular as nossas mercadorias, seja para outras finalidades. A quantidade de uma mercadoria qualquer que o trabalho humano pode comprar ou produzir é naturalmente regulada, em cada país, pela demanda efetiva, ou de acordo com a demanda daqueles que estão prontos a pagar toda a renda da terra, a mão-de-obra e o lucro necessários para preparar e comercializar a respectiva mercadoria. Mas nenhuma mercadoria é regulada mais facilmente e com maior exatidão pela demanda efetiva do que o ouro e a prata; com efeito, devido ao seu volume reduzido e ao seu alto valor, não há nenhuma outra mercadoria que possa ser transportada mais facilmente de um lugar a outro, dos lugares em que é barata para os lugares em que é cara, dos lugares em que supera a demanda efetiva para aqueles em que está aquém desta. Se, por exemplo, houvesse na Inglaterra uma demanda efetiva de uma quantidade adicional de ouro, um navio poderia trazer de Lisboa, ou de qualquer outro lugar onde houvesse ouro à venda, 50 toneladas de ouro, das quais se poderia cunhar mais de 5 milhões de guinéus. No entanto, se houvesse uma demanda efetiva de cereais do mesmo valor, a importação desse volume exigiria, a 5 guinéus por tonelada, um embarque total de 1 milhão de toneladas, ou seja, 1 000 navios de 1 000 toneladas cada um. A esquadra inglesa seria insuficiente para isso. Quando a quantidade de ouro e prata importada em um país supera a demanda efetiva, não há vigilância ou controle do Governo que consiga impedir sua exportação. Nem mesmo todas as leis sanguinárias da Espanha e de Portugal são capazes de evitar a evasão do ouro e da prata excedentes desses países. As contínuas importações, feitas do Peru e do Brasil, ultrapassam a demanda efetiva da Espanha e Portugal, fazendo com que o preço desses metais naqueles países 420
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desça abaixo do vigente nos países vizinhos. Ao contrário, se em algum país a sua quantidade não fosse suficiente para atender à demanda efetiva, de forma a fazer subir o preço desses metais em comparação com os países vizinhos, o Governo não precisaria preocupar-se em importar. E se tentasse impedir tal importação, não conseguiria fazê-lo. Quando os espartanos tinham com que comprar ouro e prata, esses metais romperam todas as barreiras que as leis de Licurgo opunham à sua entrada na Lacedemônia. Nem mesmo todas as sanguinárias leis aduaneiras são capazes de impedir a importação do chá da Companhia das Índias Orientais, da Holanda e de Gotemburgo, pois ele é algo mais barato que o oferecido pela Companhia Britânica. No entanto, uma libra-peso de chá representa aproximadamente 100 vezes o volume de um dos preços mais altos que se costuma pagar em prata por uma librapeso de chá, isto é, 16 xelins e mais do que 2 mil vezes o volume do mesmo preço em ouro, sendo portanto exatamente tantas vezes mais difícil de contrabandear do que a prata e o ouro. É em parte devido à facilidade de transportar ouro e prata dos lugares onde há abundância para aqueles em que há falta, que o preço desses metais não flutua continuamente como o da maior parte das outras mercadorias, cujo grande volume impede seu transporte fácil, quando elas abundam ou estão em falta no mercado. Certamente, o preço do ouro e da prata não está totalmente isento de tais variações, mas as alterações a que está sujeito são geralmente lentas, graduais e uniformes. Na Europa, por exemplo, supõe-se sem muito fundamento que, no decurso do século atual e do anterior, o ouro e a prata baixaram constantemente de valor, mas gradualmente, devido às contínuas importações das Índias Ocidentais espanholas. Todavia, para que ocorra alguma variação repentina no preço do ouro e da prata, de maneira que o preço em dinheiro de todas as outras mercadorias aumente ou baixe de repente, de forma sensível e notável, seria necessária uma revolução comercial tão grande quanto a descoberta da América. Se, não obstante tudo isso, o ouro e prata em algum momento estivessem aquém da demanda efetiva, em um país que tivesse com que comprar esses metais, seria muito mais fácil substituí-los do que importar, em geral, qualquer outra mercadoria. Se houver falta de matérias-primas para a indústria, esta tem que parar. Se faltarem os gêneros alimentícios, a população passa fome. Mas se faltar dinheiro, o escambo supre a sua falta, embora com muitos inconvenientes. Para remediar esses inconvenientes, poder-se-á comprar e vender a crédito, ou então, os diversos comerciantes poderão compensar seus créditos entre si, uma vez por mês ou uma vez por ano. Por outro lado, um sistema de papel-moeda bem organizado pode suprir a falta de dinheiro em moeda, não somente sem inconveniente algum, mas até, em certos casos, com algumas vantagens. Em qualquer eventualidade, portanto, nunca a preocupação do Governo seria tão supérflua como quando está voltada para vigiar a conservação ou o aumento da quantidade de dinheiro em um país. 421
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No entanto, não há queixa mais comum do que a de escassez de dinheiro. O dinheiro, da mesma forma que o vinho, sempre e necessariamente será escasso para aqueles que não têm com que comprá-lo nem têm crédito para tomá-lo emprestado. Os que têm com que comprá-lo e têm crédito para tomá-lo emprestado raramente sentirão falta de dinheiro ou do vinho de que necessitam. Entretanto, essa queixa de falta de dinheiro nem sempre se limita aos perdulários imprevidentes. Ela por vezes é geral em toda uma cidade comercial e na região circunvizinha. A causa disso geralmente é o excesso de comércio. As pessoas sóbrias, cujos projetos se tornaram desproporcionais em relação aos capitais que possuem, estão tão sujeitas a não ter com que comprar dinheiro e a não dispor de crédito para tomá-lo emprestado, quanto os perdulários, cujos gastos não foram proporcionais à sua renda. Antes que os projetos possam render, seu capital se acabou e, juntamente com ele, seu crédito. Andam por todos os lados em busca de dinheiro emprestado, e todos lhes dizem que não têm. Mesmo essas queixas generalizadas de escassez de dinheiro nem sempre provam que a quantidade de moedas de ouro e prata em circulação seja inferior ao costumeiro; provam apenas que muitos dos que têm falta dessas moedas são precisamente aqueles que não têm com que comprá-las. Quando os lucros do comércio chegam a ultrapassar o normal, o comércio excessivo se toma um erro generalizado, tanto entre os grandes comerciantes como entre os pequenos. Nem sempre exportam mais dinheiro do que normalmente, mas compram a crédito, tanto no país como fora, uma quantidade de mercadorias fora do normal, mercadorias que enviam para algum mercado distante, esperando que o dinheiro retorne antes do prazo de vencimento dos pagamentos. Acontece que a demanda dos pagamentos vem antes do retorno do dinheiro, e eles nada têm em mãos com que possam comprar dinheiro ou oferecer alguma garantia sólida para empréstimos. Portanto, não é a escassez de ouro e prata, mas a dificuldade que tais pessoas têm em tomar dinheiro emprestado, e que seus credores têm em receber os pagamentos, que gera as queixas generalizadas de falta de dinheiro. Seria excessivamente ridículo empenhar-se seriamente em provar que a riqueza não consiste no dinheiro, nem em ouro e prata, mas que ela consiste naquilo que o dinheiro compra e no valor de compra que ele tem. Sem dúvida, o dinheiro sempre constitui uma parte do capital nacional; mas já se mostrou que ele costuma representar apenas uma parcela pequena, e sempre a parte menos rentável do capital. Se o comerciante costuma achar mais fácil comprar mercadorias com dinheiro do que com outros bens, não é porque a riqueza consistiria mais no dinheiro do que nas mercadorias, mas porque o dinheiro é o instrumento de comércio reconhecido e estabelecido como tal, pelo qual prontamente se pode trocar qualquer outra coisa, sem que, porém, se possa, com presteza igual, conseguir dinheiro em troca de qualquer outra mercadoria. Além disso, a maioria dos bens são mais perecíveis do que o dinheiro e, conseqüentemente, muitas vezes o comerciante 422
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pode sair perdendo muito mais guardando mercadorias do que guardando dinheiro. Além do mais, quando o comerciante tem as mercadorias em mãos, ele está mais sujeito a dispor de pouco dinheiro para fazer pagamentos, do que quando tem em caixa o dinheiro das mercadorias já vendidas. Além de tudo isso, o lucro do comerciante vem mais diretamente daquilo que ele vende do que daquilo que compra, e por todos esses motivos ele costuma preocupar-se muito mais em trocar suas mercadorias por dinheiro, do que em trocar seu dinheiro por mercadorias. Contudo, embora um comerciante individual, que tem estoque abundante de mercadorias, às vezes possa ir à ruína por não conseguir vendê-las em tempo, uma nação ou país não está sujeito ao mesmo perigo. Todo o capital de um comerciante muitas vezes consiste apenas em bens perecíveis destinados a comprar dinheiro. Entretanto, em se tratando da produção anual de terra e do trabalho de um país, é apenas uma parcela mínima dela que se destina a comprar ouro e prata de seus vizinhos. De longe, a maior parte dessa produção anual circula e é consumida no seio da população; e mesmo quanto ao excedente que é exportado, a maior parte dele costuma ser empregada para comprar outras mercadorias estrangeiras, que não dinheiro. Por isso, mesmo que o país não conseguisse comprar ouro e prata com as mercadorias destinadas a essa finalidade, a nação, como tal, não iria à ruína. Poderia, sim, sofrer alguma perda ou transtorno e ser até forçada a recorrer a algum desses meios que são necessários para suprir o lugar do dinheiro. Todavia, mesmo então, a produção anual de sua terra e de seu trabalho continuaria a mesma ou mais ou menos a mesma de sempre, já que se estaria empregando o mesmo ou mais ou menos o mesmo capital consumível, para sustentar essa produção anual. E embora as mercadorias nem sempre comprem dinheiro com a mesma rapidez com que o dinheiro compra mercadorias, a longo prazo elas compram mais necessariamente dinheiro do que o dinheiro compra mercadorias. As mercadorias podem servir a muitos outros objetivos, além de comprar dinheiro, ao passo que o dinheiro não serve para nenhum outro objetivo, senão comprar mercadorias. Por conseguinte, o dinheiro necessariamente corre atrás das mercadorias, ao passo que estas nem sempre ou necessariamente correm atrás do dinheiro. Quem compra nem sempre pretende revender; muitas vezes sua intenção é usar ou consumir o que comprou, ao passo que quem vende sempre pretende comprar novamente. O que compra muitas vezes já completou com isso seu negócio, ao passo que o que vende, com essa operação, nunca chega a fazer mais do que a metade do negócio que pretendia fazer. Se as pessoas procuram dinheiro, não é por causa do dinheiro em si mesmo, mas por causa daquilo que com ele se pode comprar. Alega-se que as mercadorias de consumo logo perecem, ao passo que o ouro e a prata são de natureza mais durável e, não fora a exportação contínua, poderiam ser acumulados durante gerações inteiras, aumentando assim incrivelmente a riqueza real do país. Por conseguinte, afirma-se, nada poderia ser mais prejudicial a um país do que 423
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o comércio que consista na troca desses bens tão duráveis por mercadorias tão perecíveis. Entretanto, não consideramos como desvantajoso o comércio que consista na troca de ferragens inglesas pelos vinhos franceses; no entanto, esses produtos metalúrgicos constituem uma mercadoria de durabilidade muito grande, e não fora sua exportação contínua, também eles poderiam ser acumulados durante gerações seguidas, aumentando assim incrivelmente o número de panelas e caçarolas no país. A isso se objeta prontamente que a quantidade de tais utensílios metalúrgicos é em cada país necessariamente limitada pela utilidade que eles podem ter no país, e que seria absurdo ter mais panelas e caçarolas do que seriam necessárias para cozinhar os alimentos que lá se costuma consumir; e que, se a quantidade de alimentos aumentasse, juntamente com ela também aumentaria, com a mesma rapidez, a quantidade de panelas e caçarolas, empregando-se então parte da quantidade adicional de alimentos para comprar essas panelas e caçarolas, para sustentar um contingente adicional de operários empregados em sua fabricação. A isso deve-se retrucar, com a mesma prontidão, que também a quantidade de ouro e prata é em cada país limitada pela utilização que esses metais podem ter no país; que a sua utilidade consiste em fazer circular mercadorias, em forma de moedas, e em servir como uma espécie de adorno doméstico, na forma de prataria; que a quantidade de moedas em cada país é regulada pelo valor das mercadorias que elas estão destinadas a fazer circular; que, aumentando-se esse valor, imediatamente uma parte delas será exportada para o exterior, para comprar, onde for possível, a quantidade de moedas necessária para fazê-las circular; que a quantidade de prataria é determinada pelo número e pela riqueza das famílias particulares que optam por esse artigo de luxo; aumentando a riqueza e o número dessas famílias, uma parte dessa riqueza adicional será muito provavelmente empregada em comprar, onde for possível, uma quantidade adicional de prataria; que tentar aumentar a riqueza de um país, introduzindo ou mantendo nele uma quantidade desnecessária de ouro e prata, é tão absurdo quanto seria tentar aumentar a quantidade de alimentos de famílias particulares, obrigando-as a manter um número supérfluo de utensílios de cozinha. Assim como os gastos para comprar esses utensílios desnecessários acabariam diminuindo, ao invés de aumentar, a quantidade ou a qualidade das provisões da família, da mesma forma o gasto feito para comprar uma quantidade desnecessária de ouro e prata necessariamente fará diminuir, em qualquer país, a riqueza que alimenta, veste e dá moradia, que sustenta e dá emprego à população. Cumpre lembrar que o ouro e a prata, quer em forma de moeda, quer em forma de prataria, são utensílios, tanto quanto os artigos e equipamentos, de cozinha. Aumentando-se sua utilização, aumentando-se a quantidade de mercadorias de consumo que precisam circular, ser administradas e preparadas através do ouro e da prata, infalivelmente aumentar-se-á a quantidade desses metais; entretanto, se tentarmos aumentar essa quantidade por meios artifi424
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ciais, com a mesma certeza infalível diminuiremos sua utilização e até mesmo a quantidade, que nesses metais nunca pode ser maior do que o uso exige. Se algum dia esses metais fossem acumulados acima dessa quantidade, seu transporte é tão fácil e a perda decorrente no caso de permanecerem ociosos ou sem utilização é tão grande que nenhuma lei conseguiria impedir a sua exportação imediata. Nem sempre é necessário acumular ouro e prata para que um país possa fazer guerra contra estrangeiros e manter esquadras e exércitos em terras distantes. As esquadras e exércitos não se mantêm com ouro e prata, mas com bens de consumo. A nação que, da produção anual de sua indústria nacional, da renda anual proveniente de suas terras, de sua mão-de-obra e do seu capital consumível, tiver com que comprar esses bens de consumo em países distantes tem condições de manter guerras nesses países. Uma nação pode pagar um exército em um país distante e comprar-lhe os mantimentos necessários, de três maneiras: enviando ao exterior, em primeiro lugar, alguma parte de seu ouro e prata acumulados, em segundo, parte da produção anual de suas manufaturas ou, em terceiro, parte de sua produção agrícola bruta anual. O ouro e prata que se pode considerar devidamente acumulados ou estocados em um país podem ser de três tipos: primeiro, o dinheiro circulante; segundo, a prataria de famílias particulares; terceiro, o dinheiro que se pode acumular em muitos anos de parcimônia, aplicando-o no Tesouro do príncipe. Raramente deverá acontecer que se possa retirar muito dinheiro circulante do país, pois nele raramente pode haver grande abundância. O valor das mercadorias anualmente compradas e vendidas em um país exige certa quantidade de dinheiro para fazê-las circular e distribuí-las a seus consumidores adequados, não sendo possível empregar mais do que isso. O canal da circulação necessariamente atrai uma quantia suficiente para enchê-lo, nunca comportando mais do que isso. Todavia, no caso de guerras externas, sempre se costuma retirar algo desse canal. Devido ao grande número de cidadãos que precisam ser mantidos fora do país, menor será o número dos que serão mantidos dentro. Diminui a quantidade de mercadorias que circulam no país, sendo necessário menos dinheiro para essa circulação. Em tais ocasiões, emite-se na Inglaterra uma quantidade muito grande de papel-moeda ou de algum outro tipo de dinheiro, tais como notas do Tesouro, cédulas da Marinha Mercante e títulos bancários. Fazendo-se com que esse tipo de dinheiro substitua o ouro e a prata em circulação, é possível enviar para o exterior uma quantidade maior de dinheiro em moeda. Tudo isso, porém, constituiria um recurso muito insignificante para manter uma guerra fora do país, que implica em grandes gastos e pode durar vários anos. Um recurso ainda mais insignificante tem consistido sempre em fundir a prataria de famílias particulares. No início da última guerra, 425
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a França não auferiu desse expediente vantagem suficiente para compensar a perda das peças originais. Em tempos antigos, os tesouros acumulados do príncipe proporcionavam um recurso muito maior e muito mais durável. Atualmente, se excetuarmos o rei da Prússia, parece que os príncipes europeus não adotam a política de acumular tesouros. Os fundos que serviram para sustentar as guerras externas do século atual, talvez as mais dispendiosas registradas pela história, parecem ter dependido pouco da exportação do dinheiro circulante, da prataria de famílias particulares ou do Tesouro do príncipe. A última guerra contra a França custou à Grã-Bretanha acima de 90 milhões, incluindo não somente os 75 milhões de novas dívidas contraídas, mas também o acréscimo de 10% ao imposto territorial, e o que foi anualmente tomado emprestado do fundo em baixa. Mais de 2/3 desses gastos foram feitos em países distantes: na Alemanha, Portugal, América, nos portos do Mediterrâneo, nas Índias Orientais e Ocidentais. Os reis da Inglaterra não tinham tesouros acumulados. Tampouco jamais ouvimos falar da fusão de extraordinárias quantidades de prataria. Supõe-se que o ouro e prata circulante no país não ultrapassavam os 18 milhões. Todavia, desde a última recunhagem de ouro, acredita-se que foram bastante subestimados. Suponhamos, pois, segundo o cômputo mais exagerado de que me lembro jamais haver visto ou ouvido, o ouro e prata juntos atingissem 30 milhões. Se a guerra tivesse sido feita com o nosso dinheiro, mesmo segundo tal cálculo, todo esse dinheiro em circulação deveria ter sido enviado para fora e voltado, novamente, no mínimo duas vezes, em um lapso entre seis e sete anos. Raciocinando nestes termos, teríamos o argumento mais decisivo para demonstrar quão desnecessário é o Governo preocupar-se em reter o dinheiro no país, já que, nessa hipótese; todo o dinheiro do país deveria ter saído e retornado a ele novamente duas vezes, em um período tão breve, sem que ninguém tivesse nenhuma noção disso. O canal da circulação, no entanto, jamais esteve tão vazio do que como durante qualquer parte desse período. Poucos eram os que não conseguiam dinheiro, desde que tivessem com que comprá-lo. Na realidade, os lucros do comércio exterior foram maiores do que de costume durante todo o período da guerra, mas sobretudo próximo a seu final. Isso gerou o que sempre gera: um comércio excessivo com todos os portos da GrãBretanha; o que, por sua vez, gerou a costumeira queixa da falta de dinheiro, que sempre acompanha um comércio em excesso. Muitos tinham falta de dinheiro, mas eram pessoas que não tinham com que comprá-lo nem crédito para tomá-lo emprestado; e já que os devedores encontravam dificuldade em receber empréstimos, os credores tinham dificuldades em conseguir os pagamentos. No entanto, o ouro e a prata geralmente podiam ser comprados pelo respectivo valor por aqueles que tivessem com que pagar o respectivo preço. Por isso, a enorme despesa da última guerra deve ter sido paga, principalmente, não pela exportação de ouro e prata, mas pela expor426
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tação de mercadorias britânicas de várias espécies. Quando o Governo ou aqueles que agiam em nome dele contratavam com um comerciante uma remessa a algum país estrangeiro, naturalmente se empenhavam em pagar seu correspondente estrangeiro, ao qual tinham entregue um título, enviando ao exterior mercadorias, preferencialmente a ouro e prata. Se as mercadorias britânicas não estavam em demanda naquele país, procurava-se exportá-las a algum outro, do qual a Grã-Bretanha pudesse comprar um título. O transporte de mercadorias, quando atende às necessidades do mercado, sempre gera um lucro considerável, ao passo que o transporte de ouro e prata raramente acarreta lucro. Quando esses metais são enviados ao exterior para comprar mercadorias estrangeiras, o lucro do comerciante resulta não da compra, mas da venda das mercadorias trazidas de volta. Mas quando o ouro e a prata são enviados para fora simplesmente para pagar uma dívida, o comerciante não recebe mercadorias de retorno, e, conseqüentemente, não aufere lucro algum. Por isso, ele naturalmente aciona sua criatividade para encontrar um meio de pagar suas dívidas fora, mais com a exportação de mercadorias do que com a exportação de ouro e prata. Eis por que a grande quantidade de mercadorias britânicas exportadas durante a última guerra, sem trazer de volta retorno algum, foi assinalada pelo autor de The Present State of the Nation. Em todos os países que comerciam, existe, além dos três tipos de ouro e prata acima mencionados, bastante ouro e prata em lingotes, alternadamente importados e exportados para fins de comércio exterior. Esses metais em lingotes, por circularem entre os diversos países comerciais da mesma forma que a moeda nacional circula em cada país, especificamente, podem ser considerados como o dinheiro da grande “república” comercial internacional. A moeda nacional é movimentada e guiada pelas mercadorias que circulam dentro dos limites de cada país, ao passo que o dinheiro da república comercial é movimentado pelas mercadorias que circulam entre os diversos países. Os dois tipos de “moeda” são empregados para facilitar os intercâmbios: uma é empregada para efetuar o intercâmbio de mercadorias entre indivíduos do mesmo país; a outra é empregada para efetuar as trocas de mercadorias entre nações diferentes. Uma parte desse dinheiro da grande república comercial pode ter sido empregada, e provavelmente o foi, para custear a ótima guerra. Em tempo de guerra generalizada, é natural supor que se movimente e se dê uma destinação a esses metais em lingotes, destinação essa diferente da que se lhes dá em tempos de paz; é natural que esse tipo de “moeda” circulasse mais nos países em que se dava a guerra e fosse mais empregada em comprar lá, e nos países vizinhos, o pagamento e as provisões dos diversos exércitos. Entretanto, qualquer que tenha sido a quantidade desse tipo de dinheiro da república comercial que a Inglaterra possa ter anualmente empregado dessa forma, essa quantidade deve ter sido anualmente comprada com mercadorias britânicas ou com alguma outra coisa que, por sua vez, havia sido comprada com elas — o que nos remete nova427
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mente para as mercadorias, a produção anual da terra e do trabalho do país, como sendo os últimos recursos que nos possibilitaram fazer a guerra. Com efeito, é natural supor que um gasto anual tão elevado tenha sido coberto com uma elevada produção anual. O gasto de 1761, por exemplo, ascendeu a mais de 19 milhões. Nenhuma acumulação poderia ter sustentado um esbanjamento anual tão grande. Nenhuma produção anual de ouro e prata lhe teria feito frente. Segundo os melhores cálculos, o total de ouro e prata anualmente importado pela Espanha e Portugal juntos não costuma superar 6 milhões de libras esterlinas, quantia que, em certos anos, mal teria sido suficiente para cobrir quatro meses de despesa da última guerra. As mercadorias mais adequadas para serem transportadas a países distantes, a fim de lá comprar o pagamento e as provisões de um exército ou uma parte do dinheiro da república comercial a ser empregado para comprar isso, parecem ser os manufaturados mais finos e mais aperfeiçoados; podem, além disso, compor-se de tal forma que contenham um valor elevado em volume reduzido, suscetíveis de ser exportados para longe, sem grandes despesas. Um país que produz um grande excedente anual de tais manufaturados, que costuma exportar para países estrangeiros, tem condições de conduzir uma guerra muito dispendiosa que dure muitos anos, sem exportar quantidades consideráveis de ouro e prata, e até sem possuí-las. Neste caso, sem dúvida, é necessário exportar uma parte considerável do excedente anual do respectivo país, e isso sem trazer de volta outras mercadorias para o país, embora traga retorno para o respectivo comerciante, já que o Governo compra do comerciante seus títulos de países estrangeiros, para destes comprar o pagamento e as provisões de um exército. Todavia, parte desse excedente pode ainda continuar a trazer para o país algum retorno. Durante a guerra, os manufatores têm uma dupla demanda a atender: primeiro, devem produzir mercadorias a serem exportadas para pagar os títulos sacados em países estrangeiros, para o pagamento e as provisões do Exército; segundo, devem produzir mercadorias necessárias para comprar as mercadorias normais de retorno, que são consumidas no país. Portanto, em meio à mais violenta guerra externa, a maior parte das manufaturas do país muitas vezes pode registrar um período de grande florescimento e, vice-versa, acusar um declínio quando voltar a paz. São capazes de florescer em meio à ruína de seu país e começar a decair quando o país voltar à sua era de prosperidade. Como prova do que se acaba de dizer, basta considerar a situação em que se encontravam muitas manufaturas britânicas durante a última guerra, e a situação em que vieram a encontrar-se algum tempo depois de sobrevir a paz. Nenhuma guerra muito dispendiosa ou de longa duração poderia ter sido custeada simplesmente com a exportação da produção agrícola em estado bruto. A despesa do envio de tal quantidade de produtos naturais da terra a um país estrangeiro, suscetível de comprar o pagamento e as provisões de um exército, seria muito alta. Além do mais, 428
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poucos são os países cuja produção agrícola bruta seja muito superior àquilo de que a própria nação necessita para seu consumo interno. Conseqüentemente, exportar uma quantidade considerável dessa produção significaria exportar parte da subsistência necessária à própria população. O mesmo não ocorre com a exportação de manufaturados. Retém-se no país a quantidade necessária para a manutenção dos trabalhadores empregados nessas manufaturas, exportando-se apenas o excedente de sua produção. O Sr. Hume assinala repetidamente a incapacidade dos antigos reis da Inglaterra em fazer uma guerra externa de longa duração, sem interrupções. Naquela época, os ingleses não tinham com que pagar e comprar as provisões para os exércitos no exterior, a não ser a produção direta da terra — da qual pouco se podia exportar, sob pena de comprometer a subsistência da população — ou então alguns produtos manufaturados de fabricação mais primitiva, cujo transporte era excessivamente dispendioso, da mesma forma como seria o transporte da produção da terra em estado bruto. Essa incapacidade não provinha da falta de dinheiro, mas da falta de produtos manufaturados mais refinados e aperfeiçoados. Na Inglaterra, as compras e vendas eram então feitas com dinheiro, da mesma forma que hoje em dia. A quantidade de dinheiro em circulação deve ter tido a mesma proporção com o número e o valor das compras e vendas que na época se faziam em relação ao que acontece hoje; diríamos até que, na época, deve ter sido maior a quantidade de dinheiro em circulação, pois então não havia papel-moeda, que hoje ocupa em larga escala o lugar do dinheiro em moeda. Em nações em que o comércio e as manufaturas são pouco conhecidos, o soberano, em ocasiões extraordinárias, raramente tem condições de obter grande ajuda de seus súditos, por motivos que explicarei mais adiante. É, pois, nesses países que o soberano geralmente procura acumular um tesouro, como o único recurso de que dispõe em tais emergências. Independentemente dessa necessidade, ele naturalmente está disposto, em tal circunstância, a exercer a parcimônia exigida para acumular dinheiro. Em tais condições de simplicidade, o gasto, mesmo de um soberano, não é ditado pela vaidade com que costuma deliciar-se nos adereços extravagantes de uma corte, e sim o dinheiro é gasto na liberalidade com seus rendeiros e com a hospitalidade para com seus clientes. Ora, a liberalidade e a hospitalidade muito raramente levam à exorbitância, ao passo que a vaidade quase sempre leva a esses excessos. É por isso que todos os príncipes tártaros possuem um tesouro. Afirma-se que eram muito grandes os tesouros de Mazepa, chefe dos cossacos na Ucrânia e famoso aliado de Carlos XII. Todos os reis franceses da estirpe dos merovíngios também possuíam tesouros. Quando dividiram seu reino entre os filhos, dividiram também seus tesouros. Igualmente, os príncipes saxônicos e os primeiros reis depois da Conquista parecem ter acumulado tesouros. O primeiro ato de todo novo reinado consistia geralmente na tomada de posse do tesouro do rei anterior, como sendo a medida mais fundamental para garantir a sucessão. Os soberanos dos países evo429
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luídos e comerciais não têm a mesma necessidade de acumular tesouros, pois geralmente têm condições de obter de seus súditos ajudas extraordinárias, em ocasiões extraordinárias. Outrossim, estão menos inclinados a acumular tesouros. Natural e talvez necessariamente, seguem a moda dos tempos, e seus gastos acabam sendo determinados pela mesma vaidade extravagante que pauta a conduta dos demais grandes proprietários que moram em seus domínios. A pompa de sua corte, de início insignificante, torna-se cada dia maior, e os gastos por ela acarretados não somente impedem qualquer acumulação de tesouros como ainda, muitas vezes, dilapidam os fundos destinados a despesas mais necessárias. Da corte de vários príncipes europeus pode-se dizer o mesmo que Dercílidas afirmou sobre a corte da Pérsia, isto é, que lá observou e viu muito esplendor, mas pouco poder, muitos criados mas poucos soldados. A importação de ouro e prata não é o benefício principal e muito menos o único que uma nação aufere de seu comércio exterior. Quaisquer que sejam os países ou regiões com os quais se comercializa, todos eles obtêm dois benefícios do comércio exterior. Este faz sair do país aquele excedente da produção da terra e do trabalho para o qual não existe demanda no país, trazendo de volta, em troca, alguma outra mercadoria da qual há necessidade. O comércio exterior valoriza as mercadorias supérfluas do país, trocando-as por alguma outra que pode atender a uma parte de suas necessidades e aumentar seus prazeres. Devido ao comércio exterior, a estreiteza do mercado interno não impede que a divisão do trabalho seja efetuada até à perfeição máxima em qualquer ramo do artesanato e da manufatura. Ao abrir um mercado mais vasto para qualquer parcela de produção de sua mão-de-obra que possa ultrapassar o consumo interno, o comércio exterior estimula essa mão-de-obra a melhorar suas forças produtivas e a aumentar sua produção ao máximo, aumentando assim a renda e a riqueza reais da sociedade. O comércio externo presta continuamente esses grandes e relevantes serviços a todos os países entre os quais ele é praticado. Todos eles auferem grandes benefícios dele, embora o maior proveito caiba, geralmente, ao país onde o comerciante reside, já que este costuma empenhar-se mais em atender às necessidades e aos supérfluos de seu próprio país do que aos dos outros. Sem dúvida, a importação do ouro e da prata que possam ser necessários para os países que não dispõem de minas próprias constitui uma função do comércio exterior; entretanto, trata-se de uma função muito pouco importante. Um país que praticasse o comércio externo só em função disso dificilmente chegaria a fretar um navio em um século. Se a descoberta da América enriqueceu a Europa, não foi por causa da importação de ouro e prata. Em virtude da riqueza das minas americanas, esses metais baixaram de preço. Pode-se hoje comprar uma baixela de prata por aproximadamente 1/3 do trigo ou 1/3 do trabalho que ela teria custado no século XV. Com o mesmo custo de mão-de-obra e de mercadorias por ano, a Europa pode comprar anual430
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mente mais ou menos três vezes a quantidade de prataria que poderia ter comprado naquele tempo. Mas, quando uma mercadoria é vendida por 1/3 do que havia sido seu preço habitual, não somente os que antes a compravam têm condições agora de comprar o triplo da quantidade que compravam antes, mas também o preço da prataria se torna acessível a um número muito maior de clientes, talvez a dez vezes mais que o número anterior. Assim sendo, pode agora haver na Europa não somente três vezes mais, senão mais de vinte vezes do que a quantidade de prataria que poderia existir nela, mesmo no atual estágio de evolução e aperfeiçoamento, se jamais tivessem sido descobertas as minas da América. Dessa forma, a Europa sem dúvida adquiriu um bem real, embora certamente se trate de uma mercadoria muito trivial. O baixo preço do ouro e da prata torna esses metais até menos adequados para fins de dinheiro do que o eram antes. Para efetuar as mesmas compras, precisamos carregar uma quantidade maior desses metais, tendo que levar no bolso 1 xelim, quando antes bastava um groat.161 É difícil dizer qual dos dois é mais insignificante: esse inconveniente ou a conveniência oposta. Nem um nem outro poderia ter feito surgir alguma diferença essencial da situação da Europa. Entretanto, a descoberta da América certamente trouxe uma diferença muito essencial. Pelo fato de ela abrir um novo e inexaurível mercado para todas as mercadorias européias, deu margem a novas divisões do trabalho e aperfeiçoamento profissional que, no estreito círculo do comércio antigo, jamais poderiam ter surgido por falta de um mercado para absorver a maior parte de sua produção. Melhoraram as forças produtivas da mão-de-obra e sua produção aumentou em todos os diversos países da Europa e, juntamente com ela, a renda e a riqueza reais dos habitantes. As mercadorias da Europa eram quase todas novas para a América e muitas mercadorias da América eram novas para a Europa. Em conseqüência, iniciou-se uma nova série de intercâmbios, que nunca haviam sido imaginados antes, intercâmbios esses que, naturalmente seriam igualmente vantajosos para o Novo como para o Velho Continente. Infelizmente, a injustiça selvagem dos europeus fez com que um evento que deveria ser benéfico para todos se tornasse prejudicial e destrutivo para várias dessas infelizes nações. A descoberta de uma passagem para as Índias Orientais, através do cabo da Boa Esperança, que ocorreu mais ou menos na mesma época, deu talvez uma amplitude ainda maior ao comércio exterior do que a própria descoberta da América, não obstante a distância maior. Havia apenas duas nações na América, sob todos os aspectos superiores às selvagens, que foram destruídas logo depois da descoberta do Continente. As outras nações não passavam de regiões selvagens. Ao contrário, os impérios da China, Industão, Japão, bem como vários outros nas Índias Orientais, sem possuírem minas mais ricas de ouro ou prata, 161 Antiga moeda inglesa equivalente a 4 pence. (N. do E.) 431
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eram muito mais ricos sob muitos outros aspectos, mais bem cultivados e mais adiantados em todos os ofícios e artes do que o México ou o Peru, mesmo se dermos crédito àquilo que simplesmente não merece crédito algum — os relatos exagerados de escritores espanhóis no tocante ao antigo estado daqueles impérios americanos. Ora, nações ricas e civilizadas sempre têm condições de intercambiar entre si produtos de valor muito superior do que se o intercâmbio for feito com nações selvagens e bárbaras. No entanto, a Europa até agora auferiu muito menos vantagem de seu comércio com as Índias Orientais do que do comércio com a América. Os portugueses monopolizaram para si o comércio com a Índia Oriental durante aproximadamente um século, sendo só indiretamente e através de Portugal, que as demais nações européias puderam vir a exportar mercadorias para aquele país ou dele importá-las. Quando os holandeses, no início do século passado, começaram a interferir no monopólio português, reservaram todo o comércio com a Índia Oriental a uma companhia exclusiva. Os ingleses, franceses, suecos e dinamarqueses seguiram o exemplo dos holandeses, de sorte que nenhuma grande nação européia se beneficiou até agora de um comércio com as Índias Orientais. Desnecessário apontar qualquer outra razão pela qual esse comércio nunca foi tão vantajoso como o comércio com a América, o qual é livre para todos os súditos de quase todas as nações européias e suas próprias colônias. Os privilégios exclusivos dessas Companhias das Índias Orientais, sua grande riqueza, o grande favor e proteção que conseguiram obter de seus respectivos governos, provocaram muita inveja contra essas Companhias. Essa inveja muitas vezes tem apresentado esse comércio como totalmente pernicioso, devido às grandes quantidades de prata que cada ano são exportadas às Índias Orientais a partir dos países em que essas Companhias operam. As respectivas partes retrucaram que seu comércio, por essa exportação contínua de prata, poderia tender efetivamente a empobrecer a Europa em geral, mas não o país específico a partir do qual ela era efetuada, já que, através da reexportação de uma parte dos produtos orientais para outros países europeus, anualmente entrava no país uma maior quantidade de prata do que a exportada. Tanto a objeção quanto a resposta fundam-se na idéia popular que acabei de examinar. Por isso, é supérfluo estender-me sobre uma e outra. Pela exportação anual de prata às Índias Orientais, a prataria provavelmente é um tanto mais cara na Europa do que poderia ser; e a prata em moeda provavelmente compra maior quantidade de mãode-obra e mercadorias. O primeiro desses dois efeitos representa uma perda muito pequena e, o segundo, uma vantagem muito pequena, sendo que ambos são excessivamente insignificantes para merecer maior atenção do público. O comércio com as Índias Orientais, por abrir um mercado para as mercadorias européias ou, o que equivale mais ou menos à mesma coisa, para o ouro e a prata que se compram com essas mercadorias, deve necessariamente tender a aumentar a produção anual das mercadorias européias e, conseqüentemente, a ri432
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queza e a renda reais da Europa. Se o aumento até aqui tem sido tão pequeno, isso se deve, provavelmente, às restrições às quais esse tipo de comércio está sujeito em toda parte. Considerei necessário, embora com o risco de cansar o leitor, examinar detalhadamente esse conceito popular de que a riqueza consiste em dinheiro, vale dizer, no ouro e na prata. Como já observei, o dinheiro, na linguagem popular, geralmente significa riqueza; e essa ambigüidade de expressão nos tornou essa idéia popular tão familiar que, mesmo aqueles que estão convencidos de se tratar de uma idéia absurda, facilmente se inclinam a esquecer seus próprios princípios, fazendo com que, no decurso de seu raciocínio, acabem por considerar essa tese como uma verdade certa e indiscutível. Alguns dos melhores autores ingleses que escrevem sobre comércio começam observando que a riqueza de um país não consiste apenas no ouro e na prata, mas em suas terras, casas e nos bens de consumo de todos os tipos. No entanto, no decurso de sua argumentação, parecem desaparecer de sua memória as terras, as casas e os bens de consumo, e ela muitas vezes leva a supor que a riqueza consiste totalmente em ouro e prata, e que o grande objetivo da manufatura e do comércio da nação consiste em multiplicar esses metais. Uma vez estabelecidos os dois princípios — que a riqueza consiste no ouro e prata e que, em se tratando de um país que não possui minas, esses metais só podem entrar pela balança comercial, isto é, exportando um montante maior que o montante do valor importado — necessariamente passou-se a considerar como o grande objetivo da Economia Política diminuir o máximo possível a importação de mercadorias estrangeiras para consumo interno, e aumentar ao máximo possível a exportação de produtos do próprio país. Conseqüentemente, os dois grandes motores para enriquecer um país consistiriam em restringir a importação e estimular a exportação. As restrições à importação têm sido de dois tipos. Primeiro, restrições à importação de produtos estrangeiros para consumo interno que pudessem ser produzidos no próprio país, qualquer que fosse a nação da qual se importasse. Segundo, restrições às importações de bens de quase todos os tipos, feitas a partir de países específicos, em relação aos quais se supunha ser desfavorável a balança comercial. Esses diversos tipos de restrições têm consistido, às vezes, em altas taxas alfandegárias e, outras; em proibições absolutas. A exportação foi estimulada às vezes pelos drawbacks, às vezes por subsídios, outras por tratados comerciais vantajosos com países estrangeiros e ainda pela implantação de colônias em países distantes. Os drawbacks foram concedidos em duas ocasiões: quando os produtos manufaturados do país estavam sujeitos a alguma taxa ou imposto, muitas vezes no ato de sua exportação se devolvia ao exportador toda a taxa cobrada ou uma parte dela; e quando se importava mercadorias estrangeiras sujeitas a algum direito alfandegário, para 433
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exportá-las novamente, às vezes restituía-se todo esse direito ou uma parte dele, por ocasião da reexportação. Os subsídios têm sido concedidos para estimular certas manufaturas em fase de implantação ou então outras indústrias consideradas como merecedoras de favores especiais. Através de tratados comerciais vantajosos, têm-se outorgado privilégios especiais às mercadorias e aos comerciantes de determinado país, além daqueles concedidos às mercadorias e comerciantes de outros países. Através da implantação de colônias em terras distantes, têm-se outorgado não somente privilégios especiais, mas muitas vezes um monopólio para as mercadorias e os comerciantes do país que conquistou essas terras. Os dois tipos de restrições às importações acima mencionados, juntamente com esses quatro estímulos à exportação, constituem os seis meios principais por meio dos quais o sistema comercial se propõe a aumentar a quantidade de ouro e prata em qualquer país, fazendo com que a balança comercial lhe seja favorável. Passarei a considerar cada um desses meios em um capítulo específico e, sem levar muito em conta sua suposta tendência em trazer dinheiro para o país, examinarei sobretudo quais são os efeitos prováveis de cada um deles para a produção anual do país. Com efeito, na medida em que cada um deles tende a aumentar ou a diminuir o valor da produção nacional anual, cada um deve, evidentemente, tender a aumentar ou a diminuir a riqueza e a renda reais do país.
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CAPÍTULO II Restrições à Importação de Mercadorias Estrangeiras que Podem Ser Produzidas no Próprio País
Ao se restringir, por altas taxas alfandegárias ou por proibições absolutas, a importação de bens estrangeiros que podem ser produzidos no próprio país, garante-se mais ou menos o monopólio do mercado interno para a indústria nacional que produz tais mercadorias. Assim, a proibição de importar gado vivo ou gêneros alimentícios salgados de países estrangeiros assegura aos criadores de gado da Grã-Bretanha o monopólio do mercado interno para a carne de açougue. As altas taxas alfandegárias impostas à importação de trigo, que em épocas de abundância moderada equivalem a uma proibição, garantem uma vantagem similar aos cultivadores desse produto. Da mesma forma, a proibição de importar lãs estrangeiras favorece os fabricantes de lã. A manufatura da seda, embora empregue exclusivamente matéria-prima estrangeira, conseguiu recentemente a mesma vantagem. A manufatura do linho ainda não a conseguiu, mas estão sendo dados grandes passos nesse sentido. Analogamente, muitas outras categorias de manufatureiros têm obtido na Grã-Bretanha um monopólio total ou quase total em oposição a seus concidadãos. A variedade de mercadorias cuja importação está proibida na Grã-Bretanha, de maneira absoluta ou em certas circunstâncias, supera de muito o que facilmente supõem os que não estão bem familiarizados com as leis alfandegárias. Não cabe dúvida de que esse monopólio do mercado interno muitas vezes dá grande estímulo àquele tipo específico de indústria que se beneficia dele, e muitas vezes canaliza para ela um contingente maior de mão-de-obra e de capital da sociedade do que o que de outra forma teria sido empregado nela. Entretanto, talvez não seja igualmente evidente que tal monopólio tende a aumentar a atividade geral da sociedade ou a dar-lhe a direção mais vantajosa. A atividade geral da sociedade nunca pode ultrapassar aquilo que o capital da sociedade tem condições de empregar. Assim como o 435
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número de operários que podem ser empregados por uma determinada pessoa deve manter certa proporção ao capital que ela possui, da mesma forma o número de pessoas que podem continuamente ser empregadas pela totalidade dos membros de uma grande sociedade deve manter uma certa proporção com o capital total dessa sociedade, não podendo jamais ultrapassar essa proporção. Não há regulamento comercial que possa aumentar a quantidade de mão-de-obra em qualquer sociedade além daquilo que o capital tem condições de manter. Poderá apenas desviar parte desse capital para uma direção para a qual, de outra forma, não teria sido canalizada; outrossim, de maneira alguma há certeza de que essa direção artificial possa trazer mais vantagens à sociedade do que aquela que tomaria caso as coisas caminhassem espontaneamente. Todo indivíduo empenha-se continuamente em descobrir a aplicação mais vantajosa de todo capital que possui. Com efeito, o que o indivíduo tem em vista é sua própria vantagem, e não a da sociedade. Todavia, a procura de sua própria vantagem individual natural ou, antes, quase necessariamente, leva-o a preferir aquela aplicação que acarreta as maiores vantagens para a sociedade. Em primeiro lugar, todo indivíduo procura empregar seu capital tão próximo de sua residência quanto possível e, conseqüentemente na medida do possível, no apoio e fomento à atividade nacional, desde que tal aplicação sempre lhe permita auferir o lucro normal do capital, ou ao menos um lucro que não esteja muito abaixo disso. Assim, pois, em paridade ou quase paridade de lucros, todo comerciante atacadista prefere naturalmente o comércio interno ao comércio externo de bens de consumo e este último ao comércio de transporte de mercadorias estrangeiras. No comércio interno, seu capital nunca está durante tanto tempo longe de seu controle, como acontece, muitas vezes, no caso do comércio externo de bens de consumo. Ele tem melhores condições de conhecer o caráter e a situação das pessoas em quem confia e, se ocorrer o caso de ser enganado, conhece melhor as leis nacionais das quais se pode valer para indenizar-se. Em se tratando do comércio de transporte de mercadorias estrangeiras, o capital do comerciante está como que dividido entre dois países estrangeiros, sendo que nenhuma das parcelas necessariamente é trazida para casa, nem fica sob sua vista e controle imediatos. O capital que um comerciante de Amsterdam emprega em transportar trigo de Königsberg para Lisboa e frutas e vinhos de Lisboa para Königsberg, em regra, está 50% em Königsberg e 50% em Lisboa. Nenhuma parcela desse capital entra necessariamente em Amsterdam. A residência natural de tal comerciante deve ser Königsberg ou Lisboa, e somente circunstâncias muito especiais podem induzi-lo a preferir residir em Amsterdam. Todavia, a intranqüilidade que esse comerciante sente em estar tão longe de seu capital geralmente o leva a trazer parte tanto das mercadorias de Königsberg, destinadas ao mercado de Lisboa, como parte das mercadorias de Lisboa destinadas ao mercado de Königsberg, a Amsterdam; e embora isso necessariamente o obrigue ao duplo ônus 436
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de carregar e descarregar, bem como ao pagamento de algumas taxas alfandegárias, não obstante isso, para poder ter sempre sob suas vistas e controle parte de seu capital, ele se submete de bom grado a esse duplo ônus extraordinário. Assim é que todo país que tenha alguma participação considerável no comércio de transporte externo de mercadorias sempre se torna o empório, vale dizer, o mercado geral para as mercadorias de todos os diversos países cujo comércio ele movimenta. O comerciante, a fim de economizar um segundo carregamento e descarregamento, sempre procura vender no mercado interno o máximo que pode das mercadorias desses outros países, para transformar seu comércio de transporte em comércio externo de bens de consumo; da mesma forma, um comerciante ocupado no comércio exterior de bens de consumo, quando recolhe mercadorias para mercados estrangeiros, sempre terá satisfação, com lucro igual ou quase igual, em vender o máximo possível dessas mercadorias em seu próprio país. Ele poupa a si mesmo o risco e o incômodo de exportar, sempre que, na medida do possível, transforma seu comércio externo de bens de consumo em comércio interno. Se assim posso dizer, o mercado interno é, pois, o centro em torno do qual circulam continuamente os capitais dos habitantes de cada país, e para o qual tendem constantemente todos, ainda que, em virtude de determinadas circunstâncias, esses capitais possam às vezes ser desviados desse centro e encontrar emprego em lugares ou países mais distantes. Ora, como já mostrei, um capital aplicado no mercado interno necessariamente movimenta um contingente maior de atividade interna e assegura renda e emprego a um contingente maior de habitantes do país, do que um capital igual aplicado no comércio externo de bens de consumo;. da mesma forma, um capital empregado no comércio externo de bens de consumo apresenta a mesma vantagem em relação a um capital igual aplicado no comércio de transporte de mercadorias estrangeiras. Eis por que, em paridade ou quase paridade de lucros, todo indivíduo naturalmente está inclinado a aplicar seu capital da maneira que ofereça as maiores possibilidades de sustentar a atividade interna e assegurar renda e emprego ao número máximo de pessoas de seu próprio país. Em segundo lugar, todo indivíduo que emprega seu capital no fomento da atividade interna necessariamente procura com isso dirigir essa atividade de tal forma que sua produção tenha o máximo valor possível. O produto da atividade é aquilo que esta acrescenta ao objeto ou às matérias-primas aos quais é aplicada. Na proporção em que o valor desse produto for grande ou pequeno, da mesma forma o serão os lucros do empregador. Mas, se alguém emprega um capital para fomentar a atividade, assim o faz exclusivamente em função do lucro; conseqüentemente, sempre se empenhará no sentido de aplicar esse capital no fomento daquela atividade cujo produto é suscetível de atingir o valor máximo, isto é, daquele produto que possa ser trocado pela quantidade máxima de dinheiro ou de outras mercadorias. Ora, a renda anual de cada sociedade é sempre exatamente igual 437
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ao valor de troca da produção total anual de sua atividade, ou, mais precisamente, equivale ao citado valor de troca. Portanto, já que cada indivíduo procura, na medida do possível, empregar seu capital em fomentar a atividade nacional e dirigir de tal maneira essa atividade que seu produto tenha o máximo valor possível, cada indivíduo necessariamente se esforça por aumentar ao máximo possível a renda anual da sociedade. Geralmente, na realidade, ele não tenciona promover o interesse público nem sabe até que ponto o está promovendo. Ao preferir fomentar a atividade do país e não de outros países ele tem em vista apenas sua própria segurança; e orientando sua atividade de tal maneira que sua produção possa ser de maior valor, visa apenas a seu próprio ganho e, neste, como em muitos outros casos, é levado como que por mão invisível a promover um objetivo que não fazia parte de suas intenções. Aliás, nem sempre é pior para a sociedade que esse objetivo não faça parte das intenções do indivíduo. Ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo. Nunca ouvi dizer que tenham realizado grandes coisas para o país aqueles que simulam exercer o comércio visando ao bem público. Efetivamente, é um artifício não muito comum entre os comerciantes, e não são necessárias muitas palavras para dissuadi-los disso. É evidente que cada indivíduo, na situação local em que se encontra, tem muito melhores condições do que qualquer estadista ou legislador de julgar por si mesmo qual o tipo de atividade nacional no qual pode empregar seu capital, e cujo produto tenha probabilidade de alcançar o valor máximo. O estadista que tentasse orientar pessoas particulares sobre como devem empregar seu capital não somente se sobrecarregaria com uma preocupação altamente desnecessária, mas também assumiria uma autoridade que seguramente não pode ser confiada nem a uma pessoa individual nem mesmo a alguma assembléia ou conselho, e que em lugar algum seria tão perigosa como nas mãos de uma pessoa com insensatez e presunção suficientes para imaginar-se capaz de exercer tal autoridade. Outorgar o monopólio do mercado interno ao produto da atividade nacional, em qualquer arte ou ofício, equivale, de certo modo, a orientar pessoas particulares sobre como devem empregar seus capitais — o que, em quase todos os casos, representa uma norma inútil, ou danosa. Se os produtos fabricados no país podem ser nele comprados tão barato quanto os importados, a medida é evidentemente inútil. Se, porém, o preço do produto nacional for mais elevado que o do importado, a norma é necessariamente prejudicial. Todo pai de família prudente tem como princípio jamais tentar fazer em casa aquilo que custa mais fabricar do que comprar. O alfaiate não tenta fazer seus próprios sapatos, mas compra-os do sapateiro. O sapateiro não tenta fazer suas próprias roupas, e sim utiliza os serviços de um alfaiate. O agricultor não tenta fazer ele mesmo seus sapatos ou sua roupa, porém recorre aos dois profissionais citados. Todos eles consideram de seu interesse 438
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empregar toda sua atividade de forma que aufiram alguma vantagem sobre seus vizinhos, comprando com uma parcela de sua produção — ou, o que é a mesma coisa, com o preço de uma parcela dela — tudo o mais de que tiverem necessidade. O que é prudente na conduta de qualquer família particular difícil para mente constituirá insensatez na conduta de um grande reino. Se um país estrangeiro estiver em condições de nos fornecer uma mercadoria a preço de mais baixo do que o da mercadoria fabricada por nós mesmos, é melhor comprá-la com uma parcela da produção de nossa própria atividade, empregada de forma que possamos auferir alguma vantagem. A atividade geral de um país, por ser sempre proporcional ao capital que lhe dá emprego, não diminuirá com isso, da mesma forma como não diminui a atividade dos profissionais acima mencionados; o que apenas resta é descobrir a maneira pela qual ela pode ser aplicada para trazer a maior vantagem possível. Ora, certamente essa atividade não é empregada com o máximo de vantagem se for dirigida para um produto que é mais barato quando se compra do que quando se fabrica. O valor da produção anual da atividade do país certamente diminui mais ou menos quando ele é artificialmente impedido de produzir mercadorias que evidentemente têm mais valor do que a mercadoria que está orientado a produzir. Segundo se supõe, a respectiva mercadoria poderia ser comprada fora a preço mais baixo do que custa produzi-la no país. Por isso, poderia ter sido comprada com uma parte apenas — isto é, com apenas uma parte do preço das mercadorias que a atividade empregada por um capital igual teria produzido no país, caso se deixasse a atividade nacional seguir seu caminho natural. Dessa forma, a atividade do país é desviada de um emprego mais vantajoso de capital e canalizada para um emprego menos vantajoso, conseqüentemente, o valor de troca da produção anual do país, ao invés de aumentar — como pretende o legislador — necessariamente diminui, por força de cada norma que imponha tais restrições à importação. Sem dúvida, tais restrições às vezes permitem que possamos adquirir determinada mercadoria com maior rapidez do que se ela tivesse que ser importada e, depois de certo tempo, ela poderá ser fabricada a preço tão baixo ou até mais baixo do que a mercadoria produzida fora do país. Embora, porém, a atividade da sociedade possa ser dessa forma dirigida com vantagem para um canal específico mais rapidamente do que de outra forma aconteceria, de maneira alguma resulta que tal regulamento restritivo possa jamais aumentar a soma total da atividade ou da renda do país. A atividade da sociedade só pode aumentar na proporção em que aumenta seu capital, e este só pode aumentar na proporção em que se puder aumentar o que se poupa gradualmente de sua renda. Mas o efeito imediato de todas essas restrições às importações é diminuir a renda do país, e o que diminui essa renda certamente não tem muita probabilidade de aumentar o capital da sociedade mais rapidamente do que teria au439
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mentado espontaneamente, caso se tivesse deixado o capital e a atividade encontrarem seus empregos naturais. Ainda que, não havendo tais restrições às importações, a sociedade nunca viesse a adquirir o produto manufaturado proposto, nem por isso ela ficaria mais pobre, em qualquer período de sua existência. Em cada período de sua existência, o total do capital e da atividade do país continuaria a poder ser empregado, embora aplicando-o a objetos diferentes, da maneira mais vantajosa no respectivo período. Em cada período a renda do país poderia ter sido a máxima que seu capital poderia permitir, e tanto o capital como a renda poderiam ter aumentado com a máxima rapidez possível. As vantagens naturais que um país tem sobre outros na produção de determinadas mercadorias por vezes são tão relevantes que todo mundo reconhece ser inútil pretender concorrer com esses outros países. Utilizando vidros, viveiros e estufas pode-se cultivar excelentes uvas na Escócia, podendo-se com elas fabricar vinhos muito bons, com uma despesa aproximadamente trinta vezes superior àquela com a qual se pode importar de outros países vinhos pelo menos da mesma qualidade. Seria porventura uma lei racional proibir a importação de todos os vinhos estrangeiros, simplesmente para incentivar a fabricação de vinho clarete e borgonha? Ora, se é verdade que seria absurdo evidente canalizar para algum emprego trinta vezes mais capital e atividade nacionais do que o necessário para comprar de fora quantidade igual das mercadorias desejadas, logicamente é também absurdo, ainda que não tão gritante, mas certamente do mesmo gênero, canalizar para tal emprego a trigésima ou até mesmo a trigentésima parte mais de capital e de atividade. Sob este aspecto, não interessa se as vantagens que um país leva sobre outro são naturais ou adquiridas. Enquanto um dos países tiver estas vantagens, e outro desejar partilhar delas, sempre será mais vantajoso para este último comprar do que fabricar ele mesmo. A vantagem que um artesão tem sobre seu vizinho, que exerce outra profissão, é apenas uma vantagem adquirida; no entanto, os dois consideram mais vantajoso comprar de um outro artesão, do que cada um fazer aquilo que não é do seu ofício específico. Os comerciantes e os manufatores são aqueles que auferem a maior vantagem desse monopólio do mercado interno. A proibição de importar gado estrangeiro e mantimentos salgados, bem como as altas taxas alfandegárias sobre cereais importados, que em épocas de fartura moderada equivalem praticamente a uma proibição de importar, não trazem tantas vantagens para os criadores de gado e os agricultores da Grã-Bretanha quanto outras restrições do mesmo tipo proporcionam aos que comercializam e aos que manufaturam as respectivas mercadorias. Os produtos manufaturados, especialmente os de tipo mais refinado, são transportados de um país a outro com maior facilidade do que os cereais ou o gado. Eis por que o comércio exterior se ocupa mais com a procura e transporte de produtos manufaturados. Em se tratando destes, basta uma vantagem muito pequena para possibilitar 440
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aos estrangeiros venderem abaixo do preço aos nossos próprios trabalhadores, mesmo no mercado interno. Ao contrário, requer-se uma vantagem muito grande para possibilitar-lhes fazer o mesmo no caso dos produtos naturais do solo. Caso se permitisse a livre importação de manufaturados estrangeiros, vários manufaturados nacionais provavelmente sofreriam prejuízo, alguns deles talvez até ficassem totalmente arruinados e uma parcela considerável do capital e da atividade empregada neles seria forçada a encontrar outra aplicação. Entretanto, a importação mais livre da produção natural do solo não poderia ter esse efeito sobre a agricultura do país. Se um dia, por exemplo, se desse liberdade tão grande de importar gado estrangeiro, a quantidade que se importaria seria tão pequena que a criação de gado no país pouco seria afetada com isso. O gado vivo, talvez, seja a única mercadoria cujo transporte é mais caro por mar do que por terra. Se o transporte for terrestre, é o próprio gado que se transporta ao mercado. No caso do transporte marítimo, é preciso transportar, com grandes despesas e inconvenientes, não somente o gado, mas também a ração e água de que ele necessita durante a viagem. Sem dúvida, o fato de ser pequena a distância marítima entre a Irlanda e a Grã-Bretanha torna mais fácil a importação de gado irlandês. Entretanto, embora a livre importação — ultimamente permitida somente por um período limitado — tenha sido autorizada para prazo indeterminado, não teria maiores efeitos para os interesses dos criadores de gado da Grã-Bretanha. As regiões da Grã-Bretanha que confinam com o mar da Irlanda são todas criadoras de gado. Nunca houve condições de importar gado irlandês para o consumo nessas regiões, devendo ele então ter sido transportado através dessas regiões muito extensas, com grandes despesas e inconvenientes, antes de chegar ao seu mercado apropriado. Não havia possibilidade de transportar gado gordo a tão grande distância. Portanto, só era possível importar gado magro; essa importação podia prejudicar aos interesses das regiões criadoras de gado e não aos interesses das regiões de alimentação e engorda de gado, já que para estas a importação antes traria certas vantagens, com a redução do preço do gado magro. O reduzido número de cabeças de gado irlandês importadas desde a permissão de importação, bem como o bom preço pelo qual se continua a vender o gado magro, parecem demonstrar que mesmo as regiões criadoras da GrãBretanha nunca terão probabilidade de ser muito afetadas pela livre importação de gado irlandês. Sem dúvida, pelo que se conta, o povo da Irlanda às vezes opôs forte resistência à exportação de seu gado. Entretanto, se os exportadores tivessem vislumbrado alguma grande vantagem em continuar a exportar, com facilidade teriam podido, quando a lei os favorecia, esperar essa oposição tumultuosa. Além disso, as regiões de alimentação e engorda de gado sempre precisam ser altamente aprimoradas, ao passo que as regiões de criação geralmente são incultas. O alto preço do gado magro, pelo fato de aumentar o valor da terra inculta, é como que um subsídio contra o 441
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aprimoramento da terra. Para qualquer região que estivesse bem cultivada, seria mais vantajoso importar seu gado magro do que criá-lo. E eis por que, segundo se diz, a província da Holanda passou atualmente a adotar essa máxima. As montanhas da Escócia, de Gales e de Northumberland, certamente, não comportam grande aprimoramento das terras e parecem por natureza destinadas a ser regiões de criação de gado da Grã-Bretanha. A plena liberdade de importação de gado estrangeiro não poderia ter outro efeito senão impedir essas regiões criadoras de tirar vantagem do aumento de população e do aprimoramento do resto do reino, de elevar seu preço a um nível exorbitante, e de impor um imposto real às regiões mais aprimoradas e cultivadas do país. Da mesma forma, também a plena liberdade de importar mantimentos salgados poderia ter tão pouco efeito sobre os interesses dos criadores de gado da Grã-Bretanha quanto a de gado vivo. Os mantimentos salgados não somente constituem uma mercadoria muito volumosa, como também, comparados à carne fresca, constituem uma mercadoria de qualidade inferior e também mais cara, por exigirem mais mão-de-obra e gastos. Por esse motivo, nunca poderiam competir com a carne fresca, embora tivessem condições de competir com os mantimentos salgados do país. Poderiam ser utilizados para abastecer navios em viagens distantes e outras finalidades do mesmo gênero, mas jamais constituir parte considerável da alimentação do povo. A pequena quantidade de mantimentos salgados importados da Irlanda desde que a importação foi liberada constitui uma prova experimental de que nossos criadores de gado nada têm a temer dessa medida. Não há evidência de que o preço da carne de açougue jamais tenha sido seriamente afetado por ela. Mesmo a livre importação de cereais estrangeiros pouco poderia afetar os interesses dos agricultores da Grã-Bretanha. Os cereais representam uma mercadoria muito mais volumosa do que a carne de açougue. Uma libra de trigo ao preço de 1 pêni é tão cara como 1 libra de carne de açougue a 4 pence. A quantidade reduzida de cereais importados, mesmo em épocas da maior escassez, demonstra aos nossos agricultores que nada têm a temer dessa liberdade de importação. Segundo o muito bem informado autor de folhetos sobre o comércio de cereais, a quantidade média importada anualmente monta apenas a 23 728 quarters de todos os tipos de cereais, não ultrapassando 1/571 do consumo anual. Todavia, assim como o subsídio concedido ao trigo gera um aumento de exportação maior em anos de fartura, da mesma forma deve gerar um aumento de importação em anos de escassez maior do que ocorreria no estado real do cultivo. Desse modo, a abundância de um ano não compensa a escassez de outro, e assim como desse modo a quantidade média exportada é forçosamente aumentada, da mesma forma deve aumentar a quantidade importada, no estado real do cultivo. Se não houvesse subsídio, pelo fato de se exportar menos trigo, é provável que também se importasse menos do que agora 442
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um ano pelo outro. Os comerciantes de trigo que fazem encomendas e se encarregam do transporte de trigo entre a Grã-Bretanha e outros países teriam muito menos ocupação e poderiam ser consideravelmente prejudicados; os aristocratas rurais e os arrendatários, porém, muito pouco seriam afetados. Eis por que foi entre os comerciantes de trigo, mais do que entre os aristocratas rurais e arrendatários, que pude observar as maiores preocupações pela renovação e continuidade do subsídio. Para grande honra dos aristocratas rurais e arrendatários, dentre todas as pessoas são eles os menos propensos ao mesquinho espírito de monopólio. O dono de uma grande manufatura às vezes se alarma com o estabelecimento de outro empreendimento do mesmo tipo num raio de 20 milhas de distância. O proprietário holandês da manufatura de lã em Abbeville estipulou que não se estabelecesse nenhum empreendimento do mesmo tipo no limite de 30 léguas daquela cidade. Ao contrário, os arrendatários e aristocratas rurais em geral mostramse mais dispostos a promover do que a obstruir o cultivo e a melhoria das propriedades de seus vizinhos. Não têm segredos, tais como os da maior parte dos manufatores, e geralmente gostam de comunicar a seus vizinhos e de divulgar ao máximo possível qualquer nova prática que tenham constatado ser vantajosa. Pius Questus — afirma Catão, o Velho — stabilissimusque, minimeque invidiosus minimeque male cogitantes sunt, qui in eo studio occupati sunt.162 Os aristocratas rurais e arrendatários, dispersos em regiões diferentes do país, não têm a mesma facilidade de se associar que os comerciantes e que os fabricantes, que, por viver concentrados nas cidades e por estar habituados a esse espírito de corporação que predomina entre eles, naturalmente se empenham em conseguir em oposição a seus concidadãos o mesmo privilégio exclusivo que geralmente possuem em oposição aos habitantes de suas respectivas cidades. Por isso, parecem ter sido eles os primeiros inventores dessas restrições à importação de mercadorias estrangeiras, que lhes asseguram o monopólio do mercado interno. Foi, provavelmente, à imitação deles e para colocarem-se em pé de igualdade com aqueles que, em seu entender, queriam oprimi-los, que os arrendatários e aristocratas rurais da Grã-Bretanha esqueceram a generosidade resultante de sua situação, passando a exigir o privilégio exclusivo de fornecer a seus concidadãos trigo e carne de açougue. Talvez não se tenham dado ao trabalho de considerar que a liberdade de comércio prejudica muito menos os seus interesses do que os dos comerciantes e manufatores cujos exemplos seguiram. Proibir, por uma lei perpétua, a importação de trigo e gado estrangeiros, na realidade equivale a determinar que a população e a atividade de um país nunca devem ultrapassar aquilo que a produção natural de seu solo tem condições de sustentar. 162 “Pio Questo, varão muito sólido e de forma alguma invejoso; os que se dedicaram a essa ocupação (agricultura) de maneira alguma têm más intenções.” De Re Rustica, ad init. (N. do T.) 443
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Contudo, parece haver dois casos nos quais geralmente será vantajoso impor alguma restrição à atividade estrangeira, para estimular a nacional. O primeiro ocorre quando se trata de um tipo específico de atividade necessária para a defesa do país. A defesa da Grã-Bretanha, por exemplo, depende muito do número de seus marujos e navios. Por isso, a lei sobre a navegação, com muita propriedade, procura assegurar aos marinheiros e à esquadra britânicos o monopólio do comércio de seu próprio país; em certos casos, através de proibições absolutas e, em outros, impondo pesadas restrições à navegação de outros países. Os principais dispositivos dessa lei são os seguintes: Primeiro, todos os navios cujos donos, capitães e 3/4 da tripulação não forem súditos britânicos, estão proibidos, sob pena de confisco do navio e da carga, de comercializar em colônias e estabelecimentos britânicos ou de participar do comércio de cabotagem da Grã-Bretanha. Segundo, grande variedade dos artigos de importação mais volumosos só pode ser introduzida na Grã-Bretanha por navios nas condições acima descritas ou por navios do país produtor dessas mercadorias, cujos proprietários, capitães e 3/4 da tripulação pertençam ao respectivo país; e quando tais mercadorias são importadas, mesmo por navios nessas condições, têm que pagar o dobro da taxa incidente sobre importação. Se importadas em navios de qualquer outro país, a penalidade é o confisco do navio e da carga. Ao se promulgar essa lei, os holandeses eram, como continuam sendo hoje, os grandes transportadores da Europa; em virtude dessa lei, foram totalmente excluídos da condição de transportadores para a Grã-Bretanha ou de importar para ela mercadorias de qualquer outro país europeu. Terceiro, a citada lei proíbe importar grande número das mercadorias de importação mais volumosas, mesmo em navios britânicos, a partir de qualquer país que não seja o país produtor, sob pena de confisco do navio e da carga. Também essa restrição provavelmente visava aos holandeses. Tanto hoje como na época, a Holanda era o grande empório para todas as mercadorias européias, sendo que com essa lei se proibiu que os navios britânicos carregassem em portos holandeses mercadorias de qualquer outro país europeu. Quarto, o peixe salgado de qualquer tipo, barbatanas, ossos, gordura e óleo de baleias não capturadas por navios britânicos ou não defumadas a bordo deles, no caso de serem importados pela Grã-Bretanha, estão sujeitos a pagar o dobro da taxa para importação. Os holandeses, que ainda hoje são os principais pescadores da Europa que se empenham em fornecer peixe a outras nações, eram na época os únicos. Essa lei impôs restrições muito pesadas aos fornecimentos da Holanda à Grã-Bretanha. Ao se promulgar a lei sobre a navegação, embora a Inglaterra e a Holanda não estivessem efetivamente em guerra, subsistia a animosidade mais violenta entre as duas nações. Ela havia começado durante o governo do Parlamento Longo que primeiro projetou essa lei, e ir444
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rompeu logo depois nas guerras holandesas, durante o governo do Protetor e de Carlos II. É possível, pois, que algumas das medidas decretadas por essa famosa lei tenham se originado dessa animosidade entre as duas nações. Todavia, essas medidas são tão sábias como se todas elas tivessem sido ditadas pela mais prudente sabedoria. A animosidade nacional daquela época em especial visava exatamente ao mesmo objetivo que teria sido recompensado pela mais prudente sabedoria, isto é, a redução do poder naval da Holanda, a única de poder naval capaz então de pôr em risco a segurança da Inglaterra. A lei da navegação não favorece o comércio externo nem o crescimento da riqueza que dele pode decorrer. O interesse de uma nação em suas relações comerciais com países estrangeiros, tanto quanto o de um comerciante em relação a todas as pessoas com as quais comercializa, é comprar mais barato e vender o mais caro possível. Mas há para a nação maior probabilidade de comprar barato quando, através da máxima liberdade de comércio, ela estimula todas as nações a exportarem para ela os bens que precisa comprar; pela mesma razão, terá a máxima probabilidade de vender caro, quando seus mercados são procurados pelo maior número possível de compradores. É verdade que a lei da navegação não impõe restrições a navios estrangeiros que exportam produtos da indústria britânica. Mesmo a antiga taxa estrangeira, que se costumava pagar sobre todas as mercadorias exportadas ou importadas, foi suprimida, através de várias leis subseqüentes, para a maior parte dos artigos de exportação. Entretanto, se impedirmos os estrangeiros, por proibições ou por altas taxas, de virem em nosso país, nem sempre eles poderão permitir-se vir comprar de nós, já que, se vierem sem carga, necessariamente perderão o frete de seu país para a Grã-Bretanha. Ao diminuirmos, portanto, o número de vendedores necessariamente reduziremos o número de compradores e, com isso, provavelmente não só teremos que comprar mercadorias estrangeiras mais caro, como também vender as nossas mais barato do que se houvesse uma liberdade maior de comércio. Visto que, porém, a defesa é muito mais importante do que a riqueza, a lei da navegação representa, possivelmente, a mais sábia de todas as leis comerciais da Inglaterra. O segundo caso, em que geralmente será vantajoso impor alguma restrição à indústria estrangeira para estimular a nacional, ocorre quando dentro do país se impõe alguma taxa aos produtos nacionais. Nesse caso, parece razoável impor uma taxa igual ao produto similar do país estrangeiro. Isso não asseguraria à indústria nacional o monopólio do mercado interno, nem canalizaria para um emprego específico uma parcela de capital e de mão-de-obra do país maior do que a que naturalmente para ele seria canalizada. Somente pelo imposto se impediria de ser desviada para uma direção menos natural alguma parcela daquilo que naturalmente seria canalizado para esse emprego, e se deixaria a concorrência entre a indústria estrangeira e a nacional, depois do imposto, o mais possível no mesmo nível que antes. Na GrãBretanha, quando se impõe essa taxa aos produtos da indústria na445
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cional, costuma-se, ao mesmo tempo, a fim de atender às queixas clamorosas de nossos comerciantes e manufatores — de que seus produtos terão que ser vendidos a preço mais baixo no país —, impor uma taxa alfandegária muito mais pesada à importação de todos os produtos estrangeiros do mesmo tipo. De acordo com alguns, essa segunda limitação à liberdade de comércio deveria, em certos casos, ser estendida muito além das mercadorias estrangeiras que poderiam competir com aquelas anteriormente taxadas no país. Alegam que, quando se taxam os artigos de maior necessidade em um país, é conveniente taxar, não somente os artigos de necessidade similares importados de outros países, mas também todos os tipos de mercadorias estrangeiras que possam vir a concorrer com qualquer produto nacional. Salientam que a subsistência se torna inelutavelmente mais cara em conseqüência de tais taxas, e que o preço da mão-de-obra também subirá sempre com o aumento do preço da manutenção dos trabalhadores. Por isso, toda mercadoria produzida dentro do país, ainda que não seja imediatamente taxada, torna-se mais cara em decorrência de tais taxas, já que encarece a mãode-obra que a produz. Argumentam, pois, que tais taxas são, na realidade, equivalentes a uma taxa imposta a cada mercadoria específica produzida no país. Portanto, acrescentam que, se quisermos colocar a indústria nacional em pé de igualdade com a estrangeira, é necessário impor alguma taxa a todas as mercadorias estrangeiras, taxa essa equivalente a esse aumento do preço das mercadorias nacionais com as quais elas podem vir a concorrer. Mais adiante, quando tratar dos impostos, direi se as taxas impostas aos artigos de maior necessidade, tais como na Grã-Bretanha, ao sabão, ao sal, ao couro, às velas etc., necessariamente aumentam o preço da mão-de-obra e, conseqüentemente, o de todas as outras mercadorias. Mesmo admitindo, porém, que as taxas tenham esse efeito — como o têm sem dúvida —, esse aumento geral do preço de todas as mercadorias, em decorrência do aumento do preço da mão-de-obra, constitui um caso que difere, sob dois aspectos que passarei a apontar, do aumento de preço de uma mercadoria específica, cujo preço aumentou em virtude de uma taxa específica que lhe foi imediatamente imposta. Em primeiro lugar, é sempre possível saber com grande exatidão quanto é o aumento de preço provocado pela taxa imposta a tal mercadoria; em contrapartida, nunca será possível verificar com exatidão aceitável até que ponto o aumento geral do preço da mão-de-obra pode afetar o aumento do preço de cada mercadoria específica em que se emprega essa mão-de-obra. Por conseguinte, seria impossível estabelecer uma proporção razoavelmente precisa entre a taxa imposta a cada mercadoria estrangeira e esse aumento do preço de cada mercadoria nacional. Em segundo lugar, as taxas impostas a artigos de maior necessidade têm mais ou menos o mesmo efeito sobre as condições da população que um solo pobre e um clima desfavorável. Tais taxas encarecem os gêneros da mesma forma como se fossem necessários um 446
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trabalho e uma despesa extraordinária para cultivá-los e colhê-los. Assim como, no caso da escassez natural decorrente da pobreza do solo e das más condições climáticas, seria absurdo orientar as pessoas sobre como devem empregar seus capitais e seu trabalho, o mesmo acontece em se tratando da escassez artificial dos gêneros, decorrente de tais taxas. Nos dois casos, é evidente que o mais vantajoso para as pessoas é deixar que elas se adaptem da melhor forma que puderem ao seu trabalho e sua situação, e que descubram aqueles empregos nos quais, apesar das circunstâncias desfavoráveis, possam auferir alguma vantagem no mercado interno ou no exterior. Impor-lhes uma nova taxa, pelo fato de já estarem sobrecarregados de taxas, e de que já pagam demais pelos gêneros de maior necessidade, fazendo-lhes pagar também demasiado caro parte das outras mercadorias, certamente constitui a maneira mais absurda de remediar o mal. Tais taxas, quando atingem certo montante, representam uma praga igual à esterilidade da terra e à inclemência do tempo; não obstante isso, tem sido nos países mais ricos e mais operosos que elas têm sido geralmente impostas. Países mais pobres não conseguiriam suportar tal desordem. Assim como somente os organismos mais fortes têm condições de sobreviver e gozar saúde em um regime não sadio, da mesma forma somente conseguirão subsistir e prosperar com tais taxas as nações que em qualquer tipo de trabalho têm as maiores vantagens naturais e adquiridas. A Holanda é o país europeu em que mais abundam essas taxas, e que, em razão de circunstâncias peculiares, continua a prosperar, não por causa dessas taxas — como se tem suposto absurdamente — mas a despeito delas. Assim como há dois casos em que geralmente será vantajoso impor alguma taxa a produtos estrangeiros para incentivar a produção nacional, da mesma forma existem dois outros em que, às vezes, pode ser matéria de deliberação: no primeiro, até que ponto é indicado continuar a permitir a livre importação de certas mercadorias estrangeiras; no segundo, até que ponto, ou de que maneira, pode ser aconselhável reintroduzir tal liberdade de importação, depois de ela ter sido sustada por algum tempo. O caso em que às vezes pode ser conveniente refletir até que ponto é aconselhável continuar a importar certas mercadorias estrangeiras ocorre quando alguma nação estrangeira restringe, através de altas taxas alfandegárias, ou através de proibições, a importação de algumas de nossas mercadorias pelo seu país. Nesse caso, a vingança naturalmente dita a retaliação, que nos leva a impor taxas aduaneiras iguais e as mesmas proibições à importação por nosso país de algumas ou de todas as mercadorias da respectiva nação. Eis por que é raro as nações deixarem de retaliar dessa maneira. Os franceses têm favorecido de maneira particular suas manufaturas, restringindo a importação de mercadorias estrangeiras que pudessem concorrer com elas. Nisso consistiu grande parte da política do Sr. Colbert, o qual, a despeito de sua grande habilidade, nesse caso parece ter sido vencido pelos 447
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sofismas de comerciantes e fabricantes, que sempre exigem monopólio face a seus concidadãos. Atualmente, as pessoas mais inteligentes da França estão convencidas de que tais medidas de Colbert não beneficiaram o país. Mediante a tarifa de 1667, aquele ministro impôs taxas aduaneiras extremamente altas a um grande número de manufaturados estrangeiros. Como ele se recusasse a mitigá-las em favor dos holandeses, estes, em 1671, proibiram a importação de vinhos, conhaques e manufaturados da França. A guerra de 1672 parece ter sido, em parte, provocada por essa disputa comercial. A paz de Nimega pôs fim a essa disputa, em 1678, suavizando algumas dessas taxas em favor dos holandeses que, por seu turno, suprimiram sua proibição de importações. Foi mais ou menos na mesma época que os franceses e ingleses começaram a prejudicar a indústria uns dos outros, recorrendo às mesmas taxas aduaneiras e proibições, sendo que coube aos franceses, parece, ter dado o primeiro passo. O espírito de hostilidade que passou a subsistir entre as duas nações desde então tem impedido até agora a mitigação dessas medidas, dos dois lados. Em 1697, os ingleses proibiram a importação de renda de bilros, um manufaturado de Flandres. O governo daquele país, na época sob o domínio da Espanha, proibiu em represália a importação de lãs inglesas. Em 1700 aboliu-se a proibição de importar renda de bilros na Inglaterra, sob a condição de que a importação de lãs inglesas pelo país de Flandres fosse colocada no mesmo nível que anteriormente. Retaliações desse gênero podem constituir boa política quando há probabilidade de com isso se conseguir a supressão das altas taxas alfandegárias ou das proibições que deram motivo às retaliações. A recuperação de um grande mercado estrangeiro, geralmente, mais do que compensa o inconveniente passageiro de pagar mais caro, durante um breve período, alguns tipos de mercadorias. Avaliar se tais retaliações têm probabilidade de produzir esse efeito talvez não seja tanto da alçada do legislador, cujas decisões devem orientar-se com base em princípios gerais, que são sempre os mesmos, mas antes compete à habilidade desse animal insidioso e astuto, vulgarmente denominado estadista ou político, cujos conselhos se orientam pelas flutuações momentâneas dos negócios. Quando não há nenhuma probabilidade de conseguir a supressão das medidas que oprimem o nosso comércio, parece ser mau método compensar o dano infligido a certas classes da nossa população, retrucando nós mesmos com retaliações prejudiciais que não afetarão somente essas classes, mas praticamente todas as categorias da população. Quando nossos vizinhos proíbem a importação de algum manufaturado nosso, costumamos proibir não somente a importação da mesma mercadoria — já que somente isto dificilmente os afetaria muito — mas também alguma outra mercadoria deles. Sem dúvida, isso pode estimular alguma categoria de trabalhadores do nosso país e, por excluir alguns de seus rivais, pode dar-lhes a possibilidade de aumentar o seu preço no mercado interno. Todavia, os trabalhadores que sofreram com a proibição imposta pelos nossos vizinhos não serão 448
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beneficiados pela nossa proibição. Pelo contrário, eles e quase todas as outras classes da nossa população serão com isso obrigados a pagar certas mercadorias mais caro do que antes. Por isso, toda lei desse gênero impõe uma taxa real ao país inteiro, não em favor daquela categoria específica de trabalhadores que foi lesada pela proibição dos nossos vizinhos, mas em favor de alguma outra categoria. O caso sobre o qual, às vezes, pode ser conveniente refletir até que ponto e de que maneira é indicado restabelecer a livre importação de mercadorias estrangeiras, depois de ela ter sido sustada por algum tempo, ocorre quando determinados produtos manufaturados, devido às altas taxas ou proibições impostas a todas as mercadorias estrangeiras que podem vir a concorrer com eles, foram ampliados de maneira a exigir o emprego de grande quantidade de mão-de-obra. Nesse caso, o espírito de humanidade pode exigir que a liberdade de comércio seja restaurada apenas lenta e gradativamente, com boa dose de reserva e ponderação. Se essas altas taxas e proibições fossem abolidas de uma só vez, haveria o perigo de mercadorias estrangeiras mais baratas do mesmo tipo invadirem tão rapidamente o mercado interno que imediatamente muitos milhares de nossos cidadãos ficassem privados de seu emprego normal e dos meios de subsistência. Poderia certamente ser de proporções consideráveis o problema criado por tal medida. Entretanto, é sumamente provável que seria uma desordem muito menor do que se costuma imaginar. Isso pelas duas razões que seguem. Primeira, a liberdade total de importação de mercadorias estrangeiras poderia afetar muito pouco todos aqueles produtos manufaturados dos quais uma parte costuma ser exportada a outros países europeus, sem subsídios. Tais manufaturados devem ser vendidos no exterior tão barato quanto qualquer outra mercadoria da mesma qualidade e espécie e, conseqüentemente, devem ser vendidos mais barato no mercado interno. Portanto, continuariam a manter a posse do mercado interno e, mesmo que uma pessoa de posição, por capricho, viesse eventualmente preferir mercadorias estrangeiras, simplesmente pelo fato de virem de fora, as mercadorias mais baratas e melhores do mesmo tipo fabricadas dentro do país, essa insensatez, pela própria natureza das coisas, seria tão pouco comum, que não poderia ter repercussões sensíveis no emprego geral da população. Mas grande parte dos diversos produtos de nossas manufaturas de lã, do nosso couro curtido e das nossas ferragens é anualmente exportada a outros países europeus, sem nenhum subsídio, e são precisamente essas as manufaturas que empregam o maior contingente de mão-de-obra. Possivelmente, a manufatura da seda seria a que mais sofreria com essa liberdade de comércio e, depois dela, a do linho, embora muito menos que a da seda. Segunda, mesmo que muitas pessoas perdessem repentinamente seu emprego costumeiro e a subsistência que lhes advém desse emprego específico, em decorrência do restabelecimento da liberdade de comércio, de forma alguma disso decorreria que seriam simplesmente pri449
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vadas de todo emprego e dos meios de subsistência. Em virtude da redução do exército e da esquadra, no final da última guerra, perderam repentinamente seu emprego normal mais de 100 mil soldados e marujos — número igual ao empregado pelas maiores manufaturas; ora, ainda que isso tenha representado um certo inconveniente para eles, nem por isso foram privados simplesmente de emprego e dos meios de subsistência. É provável que a maioria dos marinheiros, aos poucos, tenha recorrido ao serviço mercante, conforme fossem surgindo oportunidades e necessidades, sendo que, nesse meio tempo, tanto eles como os soldados foram sendo absorvidos na grande massa da população, empregando-se em uma grande variedade de ocupações. Mudança tão grande na situação de mais de 100 mil homens, todos habituados ao uso das armas, e muitos deles à rapina e ao saque, não somente não gerou nenhuma grande convulsão no país, como nenhuma desordem de monta. Dificilmente se pode dizer que o fato tenha provocado em algum lugar aumento sensível do número de andarilhos; nem mesmo os salários sofreram redução em qualquer ocupação que seja — ao menos quanto saiba — se excetuarmos o caso dos marujos do serviço mercante. Mas, se compararmos os hábitos de um soldado com os de qualquer trabalhador das manufaturas, veremos que os deste último não tendem a desqualificá-lo tanto para empregar-se em nova ocupação, quanto os do soldado o desqualificam para empregar-se em qualquer outro trabalho. O trabalhador manufatureiro sempre esteve habituado a procurar sua subsistência exclusivamente no seu trabalho, ao passo que o soldado a auferir sua subsistência do soldo que recebe. O primeiro caracteriza-se pela aplicação e pela operosidade, o segundo pela ociosidade e a dissipação. Ora, certamente é muito mais fácil para um operário mudar de uma ocupação para outra do que uma pessoa habituada à ociosidade e à dissipação abraçar qualquer ocupação. Além disso, como já se observou, para a maior parte das ocupações manufatureiras existem outras manufaturas afins de natureza tão semelhante que um trabalhador facilmente passa de uma ocupação para outra. Finalmente, a maior parte desses trabalhadores ocasionalmente se empregará também no trabalho do campo. O capital que lhes deu emprego anteriormente em determinada manufatura continuará no país, para dar emprego a um contingente igual de pessoas, de alguma outra forma. Permanecendo inalterado o capital do país, também a demanda de mão-de-obra será a mesma ou mais ou menos a mesma, embora ela possa ser utilizada em lugares diferentes e para ocupações diferentes. Com efeito, os soldados e os marujos, uma vez liberados do serviço ao rei, estão livres para exercer qualquer profissão, em qualquer cidade ou lugar da Grã-Bretanha ou da Irlanda. Restitua-se a todos os súditos de Sua Majestade a mesma liberdade natural de exercerem a ocupação que quiserem, da mesma forma que isso se permite aos soldados e aos marujos após o término de seu serviço ao rei; em outros termos, acabe-se com os privilégios exclusivos das corporações e com o estatuto de aprendizagem — porque ambos constituem interferências 450
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reais na liberdade natural dos cidadãos — e suprima-se também a lei das residências, de sorte que um trabalhador pobre, ao perder o emprego em alguma ocupação ou em algum lugar, possa procurar emprego em outra ocupação ou em outro lugar, sem receio de perseguição ou remoção, e se verá que nem o público nem os indivíduos sofrerão muito mais pela dispensa ocasional de certas categorias específicas de operários de fábrica do que com a de soldados. Os nossos operários, sem dúvida, têm grandes méritos face ao país, mas seus méritos não são superiores aos daqueles que defendem a pátria com o sangue, nem tampouco merecem melhor tratamento que os soldados. Na verdade, esperar que a liberdade de comércio seja um dia totalmente restabelecida na Grã-Bretanha é tão absurdo quanto esperar que um dia nela se implante uma Oceana ou Utopia. Opõem-se irresistivelmente a isso não somente os preconceitos do público, mas também — o que constitui um obstáculo muito mais intransponível — os interesses particulares de muitos indivíduos, irresistivelmente contrários a tal coisa. Se os oficiais do Exército se opusessem com o mesmo ardor e unanimidade a qualquer redução do contingente de tropas com o qual os donos de manufaturas tomam posição contra qualquer lei suscetível de aumentar o número de seus concorrentes no mercado interno; se os primeiros incitassem seus soldados da mesma forma que os segundos incitam seus operários a atacar com violência e afronta quem ousar propor tais leis — se tal ocorresse, tentar reduzir o Exército seria tão perigoso como se tornou perigoso atualmente tentar reduzir, sob qualquer aspecto, o monopólio que nossos manufatores conseguiram conquistar em oposição a nós. Esse monopólio fez aumentar tanto o número de alguns grupos específicos desses manufatores que, à maneira de um grande exército permanente, tornaram-se temíveis ao governo e, em muitas ocasiões, intimidam os legisladores. Todo membro do Parlamento que apoiar qualquer proposta no sentido de reforçar esse monopólio seguramente adquirirá não somente a reputação de entender do assunto, mas também grande popularidade e influência junto a uma categoria de homens que, devido ao seu número e à sua riqueza, adquirem grande importância. Ao contrário, se esse parlamentar se lhes opuser e, mais ainda, se tiver autoridade suficiente para contrariá-los, nem a probidade mais reconhecida, nem a graduação hierárquica mais elevada, nem os maiores serviços públicos prestados são capazes de defendê-lo do vitupério e da detração mais infames, dos insultos pessoais e, às vezes, nem mesmo do perigo real derivante do ultraje insolente de monopolistas enfurecidos e decepcionados. Sem dúvida, muito sofreria o empresário de uma grande manufatura, o qual, no caso de ser o mercado interno subitamente aberto à concorrência estrangeira, fosse obrigado a abandonar seu negócio. Talvez pudesse, sem grandes dificuldades, encontrar outra aplicação àquela parte de seu capital que ele costumava empregar para comprar materiais e pagar seus trabalhadores. Contudo, a parte do capital destinada às oficinas de trabalho e aos instrumentos de comércio dificil451
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mente poderia ser vendida sem grande prejuízo. Exige assim a justiça que, em atenção a tal interesse, mudanças desse gênero nunca sejam introduzidas súbita, mas lenta e gradualmente, e após demorada advertência. Precisamente por isso, os legisladores, se fosse possível que suas deliberações sempre se orientassem, não pela clamorosa importunidade de interesses facciosos mas por uma consideração global do bem geral, deveriam manter-se particularmente atentos para não criar novos monopólios deste gênero nem ampliar os já existentes. Toda medida desse tipo cria, até certo ponto, uma desordem real na estrutura do país, desordem que será depois difícil remediar, sem gerar outra desordem. Até que ponto pode ser aconselhável impor taxas à importação de mercadorias estrangeiras, não para evitar a importação delas, mas para elevar a receita do Governo? Considerarei isso ao tratar das taxas. As taxas impostas com o intuito de impedir ou mesmo de diminuir a importação constituem obviamente medidas que destroem tanto a renda proveniente da alfândega quanto a liberdade de comércio.
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CAPÍTULO III As Restrições Extraordinárias à Importação de Mercadorias de Quase Todos os Tipos, dos Países com os Quais a Balança Comercial É Supostamente Desfavorável PARTE PRIMEIRA A irracionalidade dessas restrições, mesmo com base nos princípios do sistema comercial
Impor restrições extraordinárias à importação de mercadorias de quase todos os tipos daqueles países com os quais a balança comercial é supostamente desfavorável constitui o segundo meio através do qual o sistema comercial propõe aumentar a quantidade de ouro e prata. Assim, na Grã-Bretanha, é permitido importar tecidos finos da Silésia para consumo interno, pagando-se certos direitos. Entretanto, proíbe-se importar cambraias e tecidos finos franceses, a não ser no porto de Londres, sendo ali estocados para exportação. Impõem-se direitos mais elevados aos vinhos franceses do que aos portugueses ou, na realidade, aos provenientes de qualquer outro país. Em virtude do assim chamado imposto 1692, um direito de 25% de tarifa ou valor foi imposto a todas as mercadorias francesas, ao passo que as de todas as outras nações — a maioria delas — estavam sujeitas a direitos muito mais baixos, que raramente ultrapassam 5%. Excetuavam-se o vinho, o conhaque, o sal e o vinagre da França, sujeitos a outros direitos elevados, seja por força de outras leis, seja por determinadas cláusulas da mesma lei. Em 1696, impôs-se um segundo direito de 25% — por se considerar que o primeiro não era suficiente para desestimular a importação — a todas as mercadorias francesas, excetuando o conhaque, juntamente com um novo direito de 25 libras por tonelada de vinho francês, e um outro de 15 libras esterlinas por tonelada de vinagre francês. As mer453
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cadorias francesas nunca foram omitidas em qualquer desses subsídios gerais, ou direitos de 5%, que foram impostos a todos, ou à maior parte das mercadorias enumeradas no livro de tarifas. Se considerarmos os subsídios de 1/3 e de 2/3 como perfazendo um subsídio completo, houve cinco desses subsídios gerais, de maneira que, antes do início da guerra atual pode-se estimar como sendo de 75% o direito mais reduzido ao qual estava sujeita a maior parte dos bens cultivados, produzidos ou manufaturados na França. Para a maioria desses bens, no entanto, esses direitos equivalem a uma proibição de importação. De sua parte, os franceses, como acredito, trataram nossas mercadorias e nossos manufaturados exatamente com a mesma dureza, embora eu não esteja bem familiarizado com o rigor específico das taxas por eles impostas a tais produtos. Essas restrições mútuas puseram fim a quase todo o comércio eqüitativo entre as duas nações, sendo atualmente contrabandistas os principais importadores de mercadorias britânicas na França ou de mercadorias francesas na Grã-Bretanha. Os princípios que examinei no capítulo anterior originaram-se do interesse privado e do espírito de monopólio; os que passarei a examinar no presente capítulo originaram-se do preconceito e da animosidade entre as nações. Por isso, como se poderia esperar, são ainda mais irracionais. E assim o são mesmo com base nos princípios do sistema comercial. Em primeiro lugar, ainda que fosse certo que no caso de um comércio livre entre a França e a Inglaterra, por exemplo, a balança comercial fosse favorável à França, de forma alguma se poderia concluir que tal comércio seria desvantajoso para a Inglaterra, ou que, com isso, a sua balança comercial, no conjunto seria mais desfavorável. Se os vinhos da França forem melhores e mais baratos que os de Portugal, ou os linhos franceses melhores e mais baratos que os da Alemanha, seria mais vantajoso para a Grã-Bretanha comprar da França o vinho e o linho estrangeiros de que necessitasse, do que comprar de Portugal e da Alemanha. Embora com isso se aumentasse muito o valor das importações anuais da França, diminuiria o valor total das importações anuais, na proporção em que as mercadorias francesas da mesma qualidade fossem mais baratas do que as dos dois outros países. Isso ocorreria mesmo na suposição de se consumir na Grã-Bretanha todas as mercadorias francesas importadas. Em segundo lugar, grande parte dessas mercadorias poderiam ser reexportadas a outros países, onde, sendo vendidas com lucro, poderiam trazer à Grã-Bretanha um retorno talvez igual ao valor do custo primário de todas as mercadorias francesas importadas. O que muitas vezes se tem dito do comércio com a Índia Oriental talvez pudesse ocorrer também em relação ao comércio com a França, isto é: embora a maior parte das mercadorias da Índia Oriental fosse comprada com ouro e prata, a reexportação de uma parte delas a outros países trouxe de volta mais ouro e prata ao país importador do que o custo primário do montante total. No momento atual, um dos setores mais importantes do comércio holandês consiste no transporte de mer454
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cadorias francesas a outros países europeus. Até uma parte do vinho francês consumido na Grã-Bretanha é clandestinamente importada da Holanda e da Zelândia. Se houvesse liberdade de comércio entre a França e a Inglaterra, ou se as mercadorias francesas pudessem ser importadas pagando-se somente os mesmos direitos exigidos das mercadorias procedentes de outras nações européias, e se fosse permitido aos exportadores recuperar essas taxas no ato da exportação, a Inglaterra poderia ter alguma participação nesse comércio, que se considera tão vantajoso para a Holanda. Em terceiro e último lugar, não existe nenhum critério seguro pelo qual possamos determinar para que lado pende o que se denomina balança comercial entre dois países, ou qual dos dois exporta o valor maior. Os princípios que geralmente ditam nosso julgamento em todas as questões referentes a isso são o preconceito e a animosidade nacionais, sempre movidos pelo interesse privado de determinados comerciantes. Existem, porém, dois critérios aos quais se tem recorrido com freqüência em tais ocasiões: os livros de registro da alfândega e o curso do câmbio. Quanto aos registros da alfândega, admite-se comumente hoje — assim acredito — que constituem um critério muito pouco seguro, devido à inexatidão com que a maior parte das mercadorias são neles avaliadas. Talvez se possa dizer mais ou menos o mesmo quanto ao critério do curso cambial. Quando o câmbio entre dois lugares, por exemplo, Londres e Paris, está ao par, afirma-se constituir isso um sinal de que os débitos de Londres em relação a Paris são compensados pelos débitos de Paris em relação a Londres. Ao contrário, quando em Londres se paga um prêmio por um título de Paris, afirma-se que isso é um sinal de que os débitos de Londres em relação a Paris não são compensados pelos débitos de Paris em relação a Londres, devendo-se então enviar de Londres uma compensação em dinheiro, sendo que o prêmio é exigido e pago pelo risco, pelo trabalho e pela despesa de exportar essa compensação em dinheiro. Afirma-se que o estado normal de débito e crédito entre essas duas cidades deve necessariamente ser regulado pelo curso normal das transações comerciais efetuadas entre elas. Quando nenhuma das duas importa da outra um montante superior ao que para ela exporta, os débitos e créditos de cada uma das duas podem compensar-se mutuamente. Todavia, quando uma delas importa da outra um valor superior ao que para ela exporta, necessariamente a primeira fica devendo à segunda um montante maior do que o devido pela segunda à primeira: nesse caso, os débitos e créditos de cada uma delas não se compensam mutuamente, devendo então a cidade, cujo débito supera o crédito, exportar dinheiro. Conseqüentemente se o curso normal do câmbio constituiu uma indicação do estado normal do débito e do crédito entre dois lugares, ele deve também ser indicativo do curso normal de suas exportações e importações, já que estas obrigatoriamente determinam esse estado. Contudo, mesmo admitindo-se que o curso normal do câmbio cons455
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titua uma indicação suficiente do estado normal de débito e crédito entre dois lugares, disso não decorreria que a balança comercial fosse favorável àquele lugar que tivesse a seu favor o estado normal do débito e do crédito. Nem sempre o estado normal de débito e crédito entre dois lugares é inteiramente determinado pelo curso normal de suas transações comerciais mútuas, senão que, muitas vezes, é influenciado pelo curso normal das transações comerciais de cada um dos dois lugares com muitos outros. Se, por exemplo, os comerciantes da Inglaterra costumassem pagar as mercadorias que compram de Hamburgo, Danzig, Riga etc. com títulos da Holanda, o estado normal de débito e crédito entre a Inglaterra e a Holanda não seria determinado inteiramente pelo curso normal das transações comerciais vigentes entre esses dois países, mas seria influenciado pelo curso normal das transações comerciais da Inglaterra com esses outros locais. A Inglaterra pode ser obrigada a enviar anualmente dinheiro à Holanda, embora suas exportações anuais para esse país possam ultrapassar de muito o valor anual de suas importações da Holanda, embora o que se denomina balança comercial seja altamente favorável à Inglaterra. Além disso, da maneira como se tem até agora computado a paridade de câmbio, o curso normal do câmbio não tem condições para servir como indicativo suficiente de que o estado normal de débito e crédito é favorável ao país que parece ter a seu favor — ou que se supõe ter a seu favor — o curso normal do câmbio; em outras palavras, o câmbio real pode ser — e na realidade é, muitas vezes — tão diferente do câmbio computado, que em muitos casos não se pode tirar nenhuma conclusão segura do curso deste último em relação ao curso do primeiro. Quando, por uma soma de dinheiro paga na Inglaterra — contendo, de acordo com o padrão da Casa da Moeda inglesa, um certo número de onças de prata pura — se recebe um título correspondente a uma soma em dinheiro a ser paga na França, contendo, segundo o padrão da Casa da Moeda francesa, um número igual de onças de prata pura, afirma-se que está ao par o câmbio entre a Inglaterra e a França. Quando se paga mais, supõe-se que se paga um prêmio, dizendo-se então que o câmbio é desfavorável à França. Quando se paga menos, supõe-se que se recebe um prêmio, dizendo-se então que o câmbio é desfavorável à França e favorável à Inglaterra. Todavia, primeiro cumpre observar o seguinte: nem sempre podemos determinar o valor da moeda corrente de países diferentes com base no padrão de suas respectivas moedas. Com efeito, em alguns países a moeda está mais usada e desgastada ou de qualquer forma mais desvalorizada, em relação ao seu padrão original, e em outros está menos. Ora, o valor da moeda corrente de cada país comparado ao da moeda de qualquer outro é proporcional não à quantidade de prata pura que deveria conter, mas à quantidade que efetivamente contém. Antes da reforma da moeda de prata na época do rei Guilherme, o câmbio entre a Inglaterra e a Holanda, computado da maneira usual 456
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de acordo com o padrão das duas respectivas Casas da Moeda, era 25% desfavorável à Inglaterra. Entretanto, como disse o Sr. Lowndes, o valor da moeda corrente inglesa, na época, estava na realidade mais do que 25% abaixo de seu valor padrão. Por conseguinte, o câmbio real, mesmo naquela época, pode ter sido favorável à Inglaterra, não obstante o câmbio computado ser-lhe tão desfavorável; um número menor de onças de prata pura, efetivamente pagas na Inglaterra, pode ter comprado um título por um número maior de onças de prata pura a ser pago na Holanda, sendo que uma pessoa que supostamente estava pagando o prêmio, na realidade poderia estar recebendo o prêmio. Antes da recente reforma da moeda-ouro inglesa, a moeda francesa estava muito menos desgastada do que a inglesa, estando talvez dois ou três por cento mais próxima de seu padrão. Se o câmbio computado com a França não fosse mais do que dois ou três por cento desfavorável à Inglaterra, o câmbio real poderia ter sido favorável à Inglaterra. Desde a reforma da moeda-ouro, o câmbio tem sido constantemente favorável à Inglaterra e desfavorável à França. Em segundo lugar, em alguns países, a despesa da cunhagem é paga pelo Governo, ao passo que em outros ela é paga pelas pessoas privadas que levam seu metal em lingotes à Casa da Moeda, e o Governo chega até a auferir alguma renda da cunhagem. Na Inglaterra, a cunhagem é paga pelo Governo e se alguém levar uma libra-peso de prata-padrão à Casa da Moeda recebe de volta 62 xelins, contendo uma libra-peso da mesma prata padrão. Na França, deduz-se uma taxa de 8% para a cunhagem, o que não somente cobre a despesa da mesma como ainda proporciona pequena renda ao Governo. Na Inglaterra, pelo fato de a cunhagem não custar nada, a moeda corrente nunca pode valer muito mais do que a quantidade de metal que ela contém efetivamente. Na França, onde se paga o trabalho da cunhagem, esse trabalho se acrescenta ao valor da moeda, da mesma forma como o trabalho executado para se obter a prataria aumenta o valor da prataria trabalhada. Por isso, uma soma em dinheiro francês, contendo certo peso de prata pura, vale mais do que uma quantia de moeda inglesa contendo peso igual de prata pura, exigindo-se mais prata em lingotes ou quantidade maior de outras mercadorias para comprá-la. Por conseguinte, ainda que a moeda corrente dos dois países estivesse igualmente próxima dos padrões das respectivas Casas da Moeda, determinada quantia de dinheiro inglês dificilmente poderia comprar uma quantidade de dinheiro francês contendo um número igual de onças de prata pura, e, conseqüentemente, um título francês no valor correspondente à mencionada quantia. Se, por tal título, não se pagasse nenhuma soma adicional, além do suficiente para compensar a despesa da cunhagem francesa, o câmbio real poderia estar ao par entre os dois países, seus débitos e créditos poderiam compensar-se mutuamente, enquanto o câmbio computado seria muito favorável à França. Se pelo citado título se pagasse menos, o câmbio real poderia ser favorável à Inglaterra, e o câmbio computado favorável à França. 457
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Em terceiro e último lugar, em algumas cidades, como Amsterdam, Hamburgo, Veneza etc., pagam-se letras de câmbio estrangeiras com o que se chama bilhete de banco, ao passo que em outras, como em Londres, Lisboa, Antuérpia; Livorno etc., elas são pagas em moeda corrente normal do país. O assim chamado bilhete de banco sempre vale mais do que a mesma quantia nominal de moeda comum. Por exemplo, 1 000 florins no Banco de Amsterdam valem mais do que 1 000 florins em moeda corrente de Amsterdam. A diferença entre os dois valores é denominada ágio bancário, o qual, em Amsterdam, geralmente é de cerca de 5%. Na suposição de a moeda corrente de dois países estar igualmente próxima ao padrão das respectivas Casas da Moeda, e de que uma pessoa pague títulos estrangeiros nessa moeda corrente, ao passo que outra os paga em bilhete de banco, é evidente que o câmbio computado pode ser favorável àquela que paga em bilhete de banco, embora o câmbio real seja favorável àquela que paga em moeda corrente, pela mesma razão que o câmbio computado pode ser favorável àquela que paga em dinheiro melhor, ou seja, em dinheiro que está mais próximo ao seu próprio padrão, embora o câmbio real seja favorável àquela que paga em dinheiro pior. Antes da recente reforma da moeda-ouro, o câmbio computado costumava ser desfavorável a Londres, em relação a Amsterdam, Hamburgo, Veneza e, segundo acredito, em relação a todos os outros lugares que pagam com o assim chamado bilhete de banco. Todavia, de forma alguma isso significa que o câmbio real seja desfavorável a Londres. Desde a reforma da moeda-ouro, tal câmbio tem sido favorável a Londres, mesmo em relação a essas cidades. O câmbio computado tem sido geralmente favorável a Londres, em relação a Lisboa, Antuérpia, Livorno e, se excetuarmos a França, acredito que também em relação à maior parte das cidades da Europa que pagam em moeda corrente; e não é improvável que também o câmbio real fosse favorável a Londres. DIGRESSÃO SOBRE OS BANCOS DE DEPÓSITO, ESPECIALMENTE SOBRE O DE AMSTERDAM A moeda corrente de um grande país, como a França ou a Inglaterra, geralmente consiste quase inteiramente em sua própria moeda. Por isso, se esta moeda em algum momento desgastar-se ou de qualquer forma desvalorizar-se abaixo de seu valor-padrão, mediante uma reforma de sua moeda, o país poderia eficazmente restabelecer o valor de sua moeda. Entretanto, moeda corrente de um país pequeno, tais como Gênova ou Hamburgo, raramente consiste exclusivamente em sua própria moeda, devendo compor-se, em grande parte, de moedas de todos os países vizinhos com os quais seus habitantes mantêm intercâmbio comercial contínuo. Por isso, tal país nem sempre tem condições de estabelecer o valor de sua moeda, reformando seu dinheiro. No caso de se pagarem letras de câmbio estrangeiras com essa moeda, o valor incerto de qualquer quantia, de algo que por sua própria na458
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tureza é tão incerto, fará com que o câmbio seja sempre muito desfavorável a esse país, já que sua moeda, em todos os países estrangeiros, é necessariamente avaliada até abaixo do que vale. A fim de remediar tal inconveniente, ao qual esse câmbio desfavorável deve ter sujeitado seus comerciantes, esses países pequenos, quando começaram a cuidar dos interesses comerciais, muitas vezes decretaram que as letras de câmbio estrangeiras de um certo valor fossem pagas, não em moeda corrente comum, mas por uma ordem contra determinado banco ou por uma transferência às contas de um determinado estabelecimento bancário, criado com o crédito e sob a proteção do Estado, sendo esse banco sempre obrigado a pagar, em dinheiro bom e verdadeiro, exatamente de acordo com o padrão do país. Ao que parece, os bancos de Veneza, Gênova, Amsterdam, Hamburgo e Nuremberg foram todos, originalmente, fundados com essa finalidade, embora alguns deles possam posteriormente ter sido utilizados para outros objetivos. Pelo fato de o dinheiro desses bancos ser melhor que a moeda corrente do país, necessariamente comportava um ágio, maior ou menor, conforme se supunha estar a moeda corrente mais ou menos abaixo do padrão do país. O ágio do banco de Hamburgo, por exemplo, que, segundo se afirma, costuma ser aproximadamente de 14%, constitui a suposta diferença entre o bom dinheiro padrão do país e a moeda usada, desgastada e desvalorizada de todos os Estados vizinhos, que flui no país. Antes de 1609, a grande quantidade de moeda estrangeira usada e desgastada, trazida a Amsterdam pelo amplo comércio do país com todas as regiões da Europa, reduziu o valor da moeda de Amsterdam aproximadamente 9% abaixo do valor da boa moeda recém-saída da Casa da Moeda. Tal dinheiro, logo que aparecia, era imediatamente fundido ou levado embora, como sempre acontece em tais circunstâncias. Os comerciantes com muito dinheiro nem sempre conseguiam encontrar uma quantidade suficiente de dinheiro bom para suas letras de câmbio; e o valor dessas letras tornou-se em grande parte incerto, a despeito de várias medidas adotadas para evitá-lo. A fim de remediar tais inconvenientes, fundou-se em 1609 um banco sob garantia da cidade de Amsterdam. Esse banco recebia tanto moeda estrangeira como moeda desgastada, com peso abaixo de seu padrão e em seu valor real intrínseco, no bom dinheiro-padrão do país, deduzindo apenas o necessário para cobrir a despesa da cunhagem e as demais despesas de administração. Após efetuar essa pequena dedução, o banco concedia um crédito em suas contas pelo valor remanescente. Esse crédito era denominado bilhete de banco, o qual, por representar dinheiro exatamente segundo o padrão da Casa da Moeda, sempre tinha o mesmo valor real, e intrinsecamente valia mais do que a moeda corrente. Ao mesmo tempo, determinou-se que todas as letras emitidas ou negociadas em Amsterdam, em valor igual ou superior a 600 florins, fossem pagas com bilhete de banco, o que imediatamente eliminou toda e qualquer insegurança quanto ao valor desses títulos. Em conseqüência dessa medida 459
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legal, todo comerciante era obrigado a manter uma conta com o banco, a fim de pagar suas letras de câmbio estrangeiras, o que forçosamente gerou uma certa procura de bilhete de banco. O bilhete de banco, além de sua superioridade em relação à moeda corrente e do valor adicional que por força lhe advém da citada demanda, apresenta algumas outras vantagens. Ele é assegurado contra fogo, roubo e outros acidentes; a cidade de Amsterdam garante esse bilhete; com ele podem-se efetuar pagamentos através de uma simples transferência, sem o incômodo de contá-lo, e sem o risco de transportá-lo de um lugar a outro. Em conseqüência dessas diversas vantagens, parece que desde o início ela comportou um ágio e geralmente acredita-se que todo o dinheiro originalmente depositado no banco podia nele permanecer, sem que ninguém se preocupasse em requerer pagamento de um débito que tinha condições de vender no mercado por um prêmio. Ao requerer pagamento do banco, o possuidor de um crédito bancário perdia esse prêmio. Assim como um xelim recém-saído da Casa da Moeda não comprará no mercado mais mercadorias do que um dos nossos xelins comuns desgastados, da mesma forma o dinheiro bom e autêntico que poderia passar dos cofres do banco aos de uma pessoa privada, por mesclar-se e confundir-se com a moeda corrente do país, não teria mais valor do que essa moeda corrente, da qual não poderia mais ser prontamente distinguido. Enquanto esse dinheiro permanecia nos cofres do banco, sua superioridade era conhecida e garantida. Ao passar para os cofres de uma pessoa privada, sua superioridade não poderia ser bem certificada, senão com um maior esforço que talvez não valesse a diferença. Além disso, ao ser retirado dos cofres do banco, esse dinheiro perdia todas as outras vantagens características do bilhete de banco: sua segurança, sua transferibilidade fácil e segura, sua utilidade ao pagamento de letras de câmbio estrangeiras. Além de tudo, esse bilhete não podia ser retirado dos cofres do banco, como se verá mais adiante, sem antes ser efetuado o pagamento por tê-lo guardado. Esses depósitos em moeda, ou esses depósitos que o banco era obrigado a restituir em moeda, constituíam o capital original do banco ou o valor total do que era representado pelo que se denomina bilhete de banco. Atualmente, supõe-se que esse bilhete constitui apenas uma parte muito reduzida do capital. A fim de facilitar o comércio de metal em lingotes, o banco, durante esses vários anos, tem adotado a prática de conceber crédito, em sua escrituração, sobre depósitos de ouro e prata em lingotes. Esse crédito costuma ser em torno de 5% abaixo do preço do metal em lingotes na Casa da Moeda. Ao mesmo tempo o banco dá o que se chama um certificado, habilitando a pessoa que faz o depósito ou o portador a retirar novamente o metal em lingotes, a qualquer momento dentro de seis meses, mediante retransferência ao banco de uma quantidade de bilhete de banco igual àquela pela qual foi concedido o crédito em sua escrituração, ao ser feito o depósito, e mediante pagamento de 0,25% por tê-lo guardado, se o depósito foi em prata e de 0,5%, se foi em ouro; ao mesmo tempo o banco declara 460
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que, não ocorrendo tal pagamento e ao expirar esse prazo, o depósito pertencerá ao banco ao preço ao qual foi recebido ou pelo qual se deu o crédito nas contas de transferência. O que é assim pago pela guarda do depósito pode ser considerado como uma espécie de aluguel de armazenamento. Têm-se ventilado várias razões para justificar por que motivo esse aluguel de armazenagem deve ser tanto mais caro para o ouro do que para a prata. Assinalou-se que a pureza do ouro é mais difícil de ser certificada do que a da prata. As fraudes são praticadas com mais facilidade e ocasionam perda maior no metal mais precioso. Além disso, sendo a prata o metal-padrão, salientou-se que o Estado deseja estimular mais os depósitos de prata do que os de ouro. Os depósitos de ouro e prata em lingotes são feitos na maioria dos casos quando o preço é algo mais baixo do que de ordinário, e novamente retirados quando o preço sobe. Na Holanda, o preço de mercado da barra está geralmente acima do preço da Casa da Moeda, pela mesma razão que assim aconteceu na Inglaterra antes da última reforma da moeda-ouro. Afirma-se que a diferença costuma oscilar entre aproximadamente seis e dezesseis stivers163 por marco, ou oito onças de prata de onze partes de prata pura e uma de liga metálica. O preço do banco ou o crédito que ele dá por depósitos de tal prata (quando feitos em moeda estrangeira, cuja pureza é bem conhecida e certificada, como dólares mexicanos) é de 22 florins por marco; o preço da Casa da Moeda é aproximadamente de 23 florins, e o preço de mercado é de 23 florins e 6 stivers até 23 florins e 16 stivers, ou de 2% a 3% acima do preço da Casa da Moeda.164 As proporções entre o preço do 163 Antiga moeda holandesa de pequeno valor. (N. do E. 164 São os seguintes os preços pelos quais o Banco de Amsterdam recebe, atualmente (setembro de 1775), ouro e prata em barras, e moeda de diversos tipos: PRATA dólares mexicanos coroas francesas B – 22 por marco moeda inglesa em prata dólares mexicanos em nova cunhagem ............................... 21 10 ducatões .................................................................................... 3 dólares rix* .............................................................................. 2 8 A barra de prata contendo 11/12 de prata pura, 21 por marco e, nesta proporção, até 1/4, pela qual são dados 5 florins. Barras puras, 23 por marco. OURO moeda portuguesa guinéus B – 310 por marco luíses de ouro novos Idem, velhos ............................................................................. 300 ducados novos .......................................................................... 4 19 8 por ducado. Recebe-se ouro em barra ou lingote em proporção à sua pureza, comparada com a moeda de ouro estrangeira acima mencionada. Para barras finas o banco paga 340 marcos. Em geral, porém, paga-se por moeda de pureza conhecida um pouco mais do que por ouro e prata em barras, cuja pureza só pode ser certificada mediante um processo de fusão e análise. * Denominaç˚o de algumas moedas de prata valendo cerca de 1 dólar, que circulavam na Europa entre os séculos XVI e XIX. 461
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banco, o preço da Casa da Moeda e o preço de mercado do ouro em barras são mais ou menos as mesmas. Uma pessoa geralmente pode vender seu certificado pela diferença entre o preço do lingote na Casa da Moeda e o preço de mercado. Um certificado para lingotes quase sempre vale alguma coisa, e por isso é muito raro acontecer que alguém deixe expirar seu certificado, isto é, deixe seus lingotes passarem a propriedade do banco ao preço pelo qual foram recebidos ou não os retirando antes do término dos seis meses, ou deixando de pagar o 0,25 ou 0,5% a fim de obter um novo certificado para outros seis meses. Entretanto, embora isso aconteça raramente, afirma-se que por vezes acontece, e com maior freqüência em relação ao ouro do que à prata, devido ao aluguel de armazenamento mais alto que se paga pela guarda do metal mais precioso. A pessoa que, efetuando um depósito em lingotes de ouro ou prata, obtém tanto um crédito bancário quanto um certificado, paga suas letras de câmbio com seu crédito bancário, à medida em que elas vão vencendo; quanto ao certificado, vende-o ou conserva-o, conforme julgar que o preço do lingote tem probabilidade de subir ou baixar. O certificado e o crédito bancários raramente permanecem juntos por muito tempo, não havendo necessidade de que isso ocorra. A pessoa que tem um certificado e que deseja retirar ouro ou prata em barras sempre encontra bastante crédito bancário ou moeda bancária à venda, ao preço normal; e a pessoa que possui moeda bancária e deseja retirar as barras também encontra sempre certificados em igual abundância. Aqueles que têm créditos bancários e os portadores de certificados constituem dois tipos diferentes de credor em relação ao banco. O portador de um certificado não pode retirar as barras em troca das quais o recibo é dado, sem pagar novamente ao banco uma soma de moeda bancária igual ao preço pelo qual recebeu em barras. Se ele não tiver moeda de banco próprio, tem que comprá-la de quem a tem. O possuidor de moeda bancária não pode retirar as barras sem apresentar ao banco certificados pela quantidade que deseja. Se ele não os possuir dele mesmo, deve comprá-los de quem o tiver. O portador de um certificado, quando compra moeda bancária, compra o poder de retirar uma quantidade de barras, cujo preço na Casa da Moeda está 5% acima do preço do banco. Por isso, o ágio de 5% que ele costuma pagar é pago não por um valor imaginário mas por um valor real. O possuidor de moeda bancária, ao comprar um certificado, compra o poder de retirar uma quantidade de ouro ou prata em barras, cujo preço de mercado geralmente está entre 2 e 3% acima do preço da Casa da Moeda. O preço que ele paga pelo certificado, portanto, também é pago por um valor real. O preço de um certificado e o preço da moeda bancária perfazem, conjuntamente, o valor total ou o preço total das barras. Por depósito em moeda corrente ao país, o banco dá certificado bem como créditos bancários; entretanto, esses certificados muitas vezes não têm nenhum valor, não encontrando preço no mercado. Por ducatões, por exemplo, que na moeda corrente circulam por três florins e 462
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três stivers cada, o banco dá um crédito de apenas três florins, ou 5% abaixo do valor corrente. O banco dá também um certificado que habilita o portador a retirar o número de ducatões depositados a qualquer momento, dentro de seis meses, pagando 0,25% por tê-lo guardado. Esse recibo muitas vezes não encontrará preço no mercado. Três florins de moeda bancária geralmente se vendem no mercado por três florins e três stivers, valor pleno dos ducatões, se fossem retirados do banco; e, antes de se poder retirá-los, deve-se pagar 0,25% pela guarda, que representaria pura perda para no portador do certificado. Todavia, se o ágio do banco cair em algum momento a 3%, tais certificados conseguiriam obter algum preço o mercado, podendo ser vendidos por 1,75%. Entretanto, sendo o ágio do banco atualmente de aproximadamente 5%, com freqüência se deixa que esses certificados expirem, ou seja, como se diz, caiam nos cofres do banco. Com freqüência ainda maior, isso acontece com os certificados dados por depósitos de ducados de ouro, já que, antes de poder retirá-los novamente, é preciso pagar um aluguel mais elevado de armazenamento, isto é, 0,5%, pela guarda respectiva. Os 5% que o banco obtém quando se deixam depósitos de moeda ou de barras passarem para a propriedade do banco podem ser considerados como o aluguel que se paga pelo armazenamento perpétuo de tais depósitos. Deve ser bem considerável a quantia de bilhete de banco correspondente a certificados que expiraram. Abrange todo o capital original do banco, o qual, como geralmente se supõe, permitiu-se permanecer no banco desde o momento de seu primeiro depósito, sem que ninguém se preocupasse em renovar seu certificado ou retirar seu depósito, uma vez que, pelas razões já indicadas, qualquer uma dessas duas operações representaria uma perda. Entretanto, qualquer que seja o montante dessa soma, acredita-se ser muito pequena a porcentagem representada por essa quantia em relação ao total dos bilhetes de banco. O banco de Amsterdam tem sido, durante esses vários últimos anos, o grande depósito da Europa para ouro e prata em barras, cujos certificados muito raramente se deixa expirarem, ou, como se costuma dizer, caem na posse do banco. Supõe-se que a maior parte dos bilhetes de banco ou dos créditos nas contas do banco originou-se durante esses muitos anos decorridos desses depósitos que os comerciantes de ouro e prata em barra estão continuamente efetuando e retirando. Só se pode requisitar pagamento ao banco contra apresentação de um certificado. O volume menor de bilhete de banco correspondente a certificados expirados mescla-se e confunde-se com o volume muito maior correspondente aos certificados ainda em vigor; isso de tal forma que, embora possa ser considerável a quantia de bilhetes de banco para a qual não há certificados, não existe nenhuma quantia ou porção específica de bilhete de banco cujo pagamento não possa ser exigido a qualquer momento por um certificado. O banco não pode dever a mesma coisa a duas pessoas e aquela que possui bilhete de banco e que não tem certificado não está em condições de exigir pagamento 463
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do banco antes de comprar algum. Em épocas normais e tranqüilas, a pessoa não encontra nenhuma dificuldade em comprar certificado a preço de mercado, o qual, geralmente, coincide com o preço pelo qual pode vender a moeda ou o metal em barras que o certificado lhe possibilita retirar do banco. A situação poderia ser diferente em tempos de calamidade pública, por exemplo, no caso de uma invasão; tal como a dos franceses, em 1672. Pelo fato de todos os proprietários de bilhetes bancários quererem ansiosamente retirá-lo do banco para tê-lo em suas próprias mãos, a procura de certificados poderia ter feito aumentar seu preço a um nível exorbitante. Nessas condições, os portadores de certificado podem ter alimentado expectativas fora do comum e, ao invés de exigir 2 ou 3%, ter exigido a metade dos bilhetes de banco para o qual se havia dado crédito com base nos depósitos pelos quais o banco havia dado os respectivos certificados. O inimigo, sabedor da constituição do banco, poderia até comprar todos esses certificados, a fim de evitar a drenagem do tesouro. Supõe-se que, em tais emergências, o banco passaria por cima da norma comum de só efetuar pagamento aos portadores que apresentassem certificado. Nesse caso, os portadores de certificados, que não possuíam bilhete de banco, devem ter recebido entre 2 ou 3% do valor do depósito pelo qual o banco havia emitido os respectivos certificados. Nesse caso, afirma-se que o banco não teria nenhum escrúpulo em pagar com dinheiro ou com metal em barras o valor pleno da soma creditada em seus livros contábeis aos possuidores de bilhete de banco que não conseguiam certificados; e pagaria, ao mesmo tempo, 2 ou 3% aos portadores de certificado que não possuíssem aquele bilhete, já que este seria o valor total que, justificadamente, lhes seria devido em tal situação. Mesmo em tempos normais e tranqüilos, os portadores de certificados têm interesse em fazer baixar o ágio, seja para comprar muito mais barato bilhete de banco (conseqüentemente, o metal em barras, que seus certificados os habilitariam então a retirar do banco), seja para vendê-lo mais caro àqueles que possuem bilhete de banco e que desejam retirar metal em barras tão mais caro; isto porque o preço de um certificado costuma ser igual à diferença entre o preço de mercado do bilhete de banco e o do da moeda ou das barras pelo qual se concedeu certificado. Ao contrário, os proprietários de bilhete de banco têm interesse em fazer subir o ágio, seja para vender seu bilhete tanto mais caro, seja para comprar um certificado tanto mais barato. Para evitar os truques de especulação na bolsa que esses interesses opostos poderiam às vezes gerar, o banco adotou, nos últimos anos, a decisão de vender sempre bilhete de banco por moeda corrente, a 5% de ágio, e recomprá-lo novamente a 4% de ágio. Em decorrência dessa resolução, o ágio nunca pode subir além de 5% nem descer abaixo de 4% e que a proporção entre o preço de mercado do bilhete de banco e da moeda corrente sempre é mantida muito próxima da proporção entre seus valores intrínsecos. Antes que se tomasse esta resolução, o preço de 464
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mercado do bilhete de banco às vezes chegava a subir até 9% de ágio, e às vezes a descer tão baixo quanto ao par, conforme a influência eventualmente exercida sobre o mercado pelos interesses opostos. O banco de Amsterdam declara não emprestar nenhuma parte do que é nele depositado, mas, para cada florim a que concede crédito em sua escrituração contábil, conservar o valor de um florim em dinheiro ou em barra. Dificilmente se pode duvidar que o banco conserve em seus cofres todo o dinheiro ou barras para os quais há certificados em vigor, dinheiro e barras esses que podem ser exigidos pelos portadores de certificados a qualquer momento, e que, na realidade, são continuamente depositados e retirados dos cofres do banco. Entretanto, talvez não seja tão certo que o banco faça o mesmo em relação à parte de seu capital cujos certificados já expiraram há muito tempo, dinheiro esse que, em tempos normais e tranqüilos, não pode ser exigido e que, na realidade, muito provavelmente permanecerá no banco para sempre enquanto subsistirem os Estados das Províncias Unidas. Em Amsterdam, no entanto, não existe artigo de fé mais firme do que este: por cada florim que circula como bilhete de banco existe no tesouro do banco um florim correspondente em ouro ou prata. A cidade é uma garantia de que assim deve ser. O banco está sob a direção dos quatro burgomestres reinantes, substituídos a cada ano. Cada novo quadrunvirato de burgomestres visita o tesouro, compara-o com a escrituração contábil, recebe-o sob juramento e o entrega, com a mesma espantosa solenidade, aos quatro burgomestres que lhe sucedem; e, nesse país sóbrio e religioso, os juramentos até agora não têm sido desrespeitados. Uma rotatividade desse tipo constitui, por si só, uma garantia suficiente contra quaisquer práticas inconfessáveis. Em meio a todas as revoluções geradas no governo de Amsterdam pelas dissensões partidárias, a parte vencedora nunca acusou seus predecessores de deslealdade na administração do banco. Nenhuma acusação poderia ter afetado mais profundamente a reputação e o destino da parte perdedora, e se tal acusação pudesse ter sido comprovada, podemos estar certos de que ela teria sido apresentada. Em 1672, quando o rei francês estava em Utrecht, o barco de Amsterdam pagou com tanta prontidão que não restou dúvida sobre a lealdade com que havia observado seus compromissos. Algumas das moedas que foram retiradas dos cofres do banco naquela época parecem ter sido chamuscadas pelo incêndio ocorrido no prédio, logo depois da criação do banco. Conclui-se, pois, que essas moedas devem ter permanecido nos cofres do banco desde aquela época. Durante muito tempo os curiosos vêm especulando no sentido de saber qual é o montante do tesouro encerrado nos cofres do banco. Quanto a isso não há nada além de conjeturas. Calcula-se que há aproximadamente 2 mil pessoas que mantêm contas com o banco; supondo-se que cada uma possui o valor de 1 500 libras esterlinas em suas respectivas contas (uma suposição muito generosa), o total dos bilhetes de banco e, conseqüentemente, do tesouro do banco, deverá aproximar-se de 3 milhões de libras esterlinas, ou seja, ao câmbio de 465
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onze florins por libra esterlina, 33 milhões de florins; montante elevado, suficiente para operar uma circulação bem ampla, porém muito inferior às somas descomunais imaginadas por alguns. A cidade de Amsterdam aufere uma renda considerável do banco. Além do que se pode denominar o aluguel de armazenagem supramencionado, cada pessoa, ao abrir a primeira conta do banco, paga uma taxa de dez florins e, por outra nova conta, três florins e três stivers; por nova transferência, dois stivers; e se a soma transferida for inferior a 300 florins, pagam-se seis stivers, a fim de desestimular a multiplicação de pequenas transações. A pessoa que deixa de fazer balanço de sua conta duas vezes ao ano paga uma multa de 25 florins. A pessoa que solicita uma transferência de uma soma superior à que possui em sua conta é obrigada a pagar 3% sobre a soma sacada a descoberto, e seu pedido é desprezado na transação. Além disso, supõe-se que o banco aufere lucros consideráveis vendendo moeda ou barras estrangeiras que passam a pertencer ao banco por vencimento dos certificados, dinheiro que sempre é conservado, até poder ser vendido com lucro. Aufere lucro também vendendo bilhete de banco a 5% de ágio e comprando-o a 4%. Estes diversos emolumentos representam um montante bem superior ao necessário para pagar os salários dos funcionários e para cobrir as despesas de administração. Acredita-se que o que se paga pela guarda do ouro e prata em barras sob certificado, por si só representa uma renda líquida anual entre 150 mil e 200 mil florins. Não obstante isso, essa instituição bancária teve como objetivo original a utilidade pública e não a renda. Seu objetivo era livrar os comerciantes do incômodo de um câmbio desvantajoso. Não se previa a renda que o banco geraria, podendo-se considerá-la como acidental. Já é tempo, todavia, de encerrar esta longa digressão, à qual fui imperceptivelmente levado no empenho de explicar as razões pelas quais o câmbio entre os países que pagam com o chamado bilhete de banco e os que pagam em moeda corrente geralmente parece ser favorável aos primeiros e desfavorável aos segundos. Os primeiros pagam com um tipo de dinheiro cujo valor intrínseco é sempre o mesmo e que equivale exatamente ao padrão de suas respectivas Casas da Moeda; os segundos pagam com um tipo de dinheiro cujo valor intrínseco varia continuamente, estando quase sempre mais ou menos abaixo desse padrão. PARTE SEGUNDA A irracionalidade dessas restrições extraordinárias, com base em outros princípios Na primeira parte do presente capítulo procurei mostrar, mesmo com base nos princípios do sistema comercial, o quanto é desnecessário impor restrições extraordinárias à importação de mercadorias dos países com os quais a balança comercial, segundo se supõe, é desfavorável. No entanto, não há nada mais absurdo que toda essa teoria da 466
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balança comercial, na qual se baseiam não somente as referidas restrições, mas também quase todas as demais normas sobre o comércio. Quando dois lugares ou cidades comercializam entre si, essa teoria supõe que, se a balança comercial entre os dois estiver em equilíbrio, nenhum dos dois ganha ou perde, ao passo que, se a balança pender, em qualquer grau, para um dos lados, uma delas perde e a outra ganha, na proporção em que a balança se desviar de seu ponto exato de equilíbrio. Ambas as suposições são falsas. Como procurarei mostrar mais adiante, um comércio que é forçado por subsídios e monopólios pode e costuma ser desvantajoso para o país que acredita estar-se beneficiando com essas medidas. Ao contrário, o comércio que, sem violência ou coação, é efetuado com naturalidade e regularidade entre dois lugares, sempre traz vantagem para os dois lados, ainda que essa vantagem não seja sempre igual para ambos. Por vantagem ou ganho entendo não o aumento da quantidade de ouro e prata, mas o aumento do valor de troca da produção anual da terra e da mão-de-obra do país, ou seja, o aumento da renda anual de seus habitantes. Se a balança comercial estiver em equilíbrio, e se o comércio entre os dois lugares consistir exclusivamente no intercâmbio de suas mercadorias nacionais, na maioria dos casos não somente os dois auferirão vantagem, senão que o ganho será igual ou quase igual: nesse caso, cada um oferecerá um mercado para uma parte do excedente de produção do outro; cada um reporá um capital que fora empregado em cultivar e preparar para a comercialização essa parte do excedente de produção do outro, e que havia sido distribuída entre eles proporcionando renda e sustento a um certo número de seus habitantes. Por isso, parte dos habitantes de cada um auferirá indiretamente sua renda e seu sustento do outro. Assim como supostamente também as mercadorias trocadas são de valor igual, da mesma forma serão na maioria dos casos também iguais ou quase iguais os capitais empregados pelas duas partes no comércio; e pelo fato de serem os dois capitais empregados para produzir as mercadorias nacionais dos dois países, iguais ou quase iguais serão a renda e o sustento que a distribuição dessas mercadorias proporcionará aos habitantes dos dois países. Essa renda e esse sustento, proporcionados mutuamente dessa forma, serão maiores ou menores, conforme a extensão das transações entre os dois países. Se, por exemplo, elas representarem um montante anual de 100 mil libras, ou então 1 milhão de cada lado, cada um dos dois países proporcionará aos habitantes do outro uma renda anual, no primeiro caso, de 100 mil libras esterlinas, e no segundo de 1 milhão. Se o comércio entre os dois países for tal que um deles só exporta ao outro mercadorias nacionais, ao passo que o segundo só exporta ao primeiro mercadorias estrangeiras, ainda nesse caso seria de supor que a balança comercial entre os dois estaria em equilíbrio, já que as mercadorias são pagas com mercadorias. Os dois estariam ganhando, nesse caso; mas o ganho não seria igual; os habitantes do país que só 467
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exportasse mercadorias nacionais estaria auferindo a renda máxima do comércio. Por exemplo, se a Inglaterra só importasse da França mercadorias produzidas por aquele país, e, não possuindo ela mesma as mercadorias inglesas em falta na França, pagasse anualmente suas importações francesas enviando à França grande quantidade de mercadorias estrangeiras, suponhamos fumo e mercadorias das Índias Orientais, esse tipo de comércio, embora proporcionasse alguma renda aos habitantes dos dois países, produziria para os habitantes da França uma renda superior à que produziria para os habitantes da Inglaterra. Todo o capital francês empregado anualmente nesse comércio seria anualmente distribuído entre a população da França. Ao contrário, só seria anualmente distribuída entre a população da Inglaterra a parte do capital inglês empregada em produzir as mercadorias inglesas com as quais foram compradas as referidas mercadorias estrangeiras exportadas à França. A maior parte desse capital inglês reporia os capitais empregados na Virgínia, no Industão e na China — capitais que proporcionariam renda e sustento aos habitantes desses longínquos países. Por isso, se os capitais fossem iguais, ou quase iguais, esse emprego do capital francês aumentaria muito mais a renda da população francesa do que o emprego do capital inglês aumentaria a renda da população da Inglaterra. Nesse caso, a França estaria efetuando com a Inglaterra um comércio exterior direto para o consumo próprio, ao passo que a Inglaterra estaria efetuando um comércio do mesmo tipo com a França, mas indireto. Ora, já explicamos exaustivamente a diferença de efeitos produzidos por um capital empregado no comércio exterior direto de bens de consumo, e os produzidos por um capital empregado no comércio exterior indireto de bens de consumo. Na realidade, provavelmente não existe, entre dois países quaisquer, um comércio que consista exclusivamente na troca de mercadorias nacionais dos dois lados, ou exclusivamente na troca de mercadorias nacionais, de um lado, e de mercadorias estrangeiras, do outro. Quase todos os países trocam, entre si, em parte mercadorias nacionais e, em parte, mercadorias estrangeiras. Ganhará mais sempre o país que exportar o máximo de mercadorias nacionais e o mínimo de mercadorias estrangeiras. Se a Inglaterra pagasse as mercadorias anualmente importadas da França, não com fumo e mercadorias importadas das Índias Orientais, mas com ouro e prata, supõe-se que, nesse caso, sua balança comercial ficaria desequilibrada, já que as mercadorias importadas da França não seriam pagas com mercadorias, mas com ouro e prata. E no entanto, nesse caso como no precedente, tal tipo de comércio geraria alguma renda para os habitantes dos dois países: mais para os da França e menos para os da Inglaterra. Geraria, sim, alguma renda para a população da Inglaterra. O capital anteriormente empregado para produzir as mercadorias inglesas com as quais se comprou essa quantidade de ouro e prata, o capital que fora distribuído a certos habitantes da Inglaterra e lhes proporcionara renda seria reposto com este comércio, possibilitando-lhe continuar esse emprego. O capital total 468
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da Inglaterra não sofreria com essa exportação de ouro e prata uma diminuição maior do que a que sofreria com a exportação de um valor igual de quaisquer outras mercadorias. Ao contrário, na maioria dos casos, esse capital total aumentaria. Não se exportam ao exterior senão mercadorias cuja demanda supostamente é maior no exterior do que no próprio país, e cujos retornos, conseqüentemente — assim se acredita —, terão mais valor no país do que as mercadorias exportadas. Se o fumo que na Inglaterra vale apenas 100 mil esterlinos, ao ser exportado à França, comprar vinho que na Inglaterra, vale 110 mil libras esterlinas, a troca fará com que o capital da Inglaterra aumente de 10 mil libras. Se, da mesma forma, 100 mil libras de ouro inglês compra vinho francês que na Inglaterra vale 110 mil, essa hora irá aumentar igualmente o capital da Inglaterra em 10 mil libras. Assim como um comerciante que tem 110 mil esterlinos de vinho em sua adega é mais rico do que o que possui somente 100 mil esterlinos em fumo em seu armazém, da mesma forma ele é mais rico do que aquele que só possui 1 000 esterlinos em ouro e prata em seus cofres. Ele tem condições de movimentar um volume maior de trabalho, e proporcionará renda, sustento e emprego a um contingente maior de pessoas do que os dois outros. Ora, o capital do país é igual à soma dos capitais de todos os seus habitantes, e a quantidade de trabalho que o país tem condição de sustentar anualmente é igual ao volume total de trabalho que pode ser mantido pela soma de todos esses capitais individuais. Assim, necessariamente, esse tipo de comércio fará geralmente aumentar tanto o capital do país como o volume de trabalho que o país tem condições de sustentar anualmente. Sem dúvida, seria mais vantajoso para a Inglaterra se ela pudesse comprar os vinhos da França com suas próprias ferragens e tecidos grosseiros do que com o fumo da Virgínia ou com o ouro e prata do Brasil e do Peru. Um comércio exterior direto de bens de consumo sempre traz vantagem maior do que um comércio indireto. Entretanto, um comércio exterior indireto de bens de consumo, efetuado com ouro e prata, não parece ser menos vantajoso do que qualquer outro comércio exterior indireto de bens de consumo. Analogamente, um país sem minas próprias não tem maior probabilidade de ter exauridas suas reservas de ouro e prata, exportando anualmente esses metais do que um país que não cultiva fumo tem probabilidade de esgotar suas reservas de fumo, exportando anualmente esse produto. Assim como um país que tem com que comprar fumo jamais permanecerá muito tempo em falta dele, da mesma forma não permanecerá por muito tempo em falta de ouro e prata um país que tiver com que comprá-los. Afirma-se constituir uma perda o negócio que um trabalhador efetua numa cervejaria, diz-se, outrossim, que o comércio que uma nação manufatora efetuasse naturalmente com um país produtor de vinho pode ser considerado uma perda. Respondo que o negócio com a cervejaria não acarreta necessariamente uma perda para quem o efetua. Em si mesmo, tal negócio é tão vantajoso quanto qualquer outro embora, talvez, esteja um tanto mais sujeito a abusos. A ocupação 469
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de um fabricante de cerveja, e mesmo a de um varejista de bebidas fermentadas são divisões de trabalho tão necessárias como quaisquer outras. Geralmente, será mais vantajoso para um operário comprar do fabricante de cerveja a quantidade de que precisa do que fabricá-la ele mesmo e, se for um operário pobre, geralmente lhe será mais vantajoso comprar a cerveja do varejista, pouco a pouco, do que adquirir uma grande quantidade diretamente do fabricante de cerveja. Sem dúvida, ele pode comprar demais de ambos, como pode comprar demais de qualquer outro comerciante da sua vizinhança, por exemplo, do açougueiro, se for glutão, ou do negociante de fazenda, se desejar aparecer como um galã entre seus companheiros. Entretanto, é vantajoso para o grande conjunto de trabalhadores que todos esses tipos de comércio ou ocupações sejam livres, embora todos possam abusar dessa liberdade, conquanto, talvez, o abuso seja maior em uns do que em outros. Embora, às vezes, determinados indivíduos possam arruinar sua sorte consumindo bebidas fermentadas em excesso, não parece haver perigo de que tal aconteça com uma nação. Ainda que em todo país existam muitas pessoas que gastam mais do que podem com bebidas alcoólicas, sempre existem muitas mais que gastam menos. Merece destacar-se também que, se recorrermos à experiência, o baixo preço do vinho não parece ser a causa da embriaguez, mas antes da sobriedade. Os habitantes dos países produtores de vinho costumam ser as pessoas mais sóbrias da Europa, como o testemunham os espanhóis, italianos e os habitantes das províncias do sul da França. Raramente as pessoas consomem em excesso produtos por elas produzidos em sua faina diária. Ninguém se mostra liberal e bom companheiro tendo bebidas alcoólicas em abundância tão baratas quanto uma cervejinha. Ao contrário, nos países em que, devido ao calor ou ao frio excessivo, não há viticultura, e onde, por conseguinte, o vinho é caro e constitui raridade, a embriaguez é um vício generalizado, como nas nações setentrionais e entre aqueles que vivem nos trópicos, os negros, por exemplo, da costa da Guiné. Ouvi muitas vezes dizer que, quando um regimento francês vem de algumas províncias setentrionais da França, onde o vinho é um pouco mais caro, e fica aquartelado nas províncias do sul, onde ele é muito barato, os soldados de início se entregam a exageros pelo baixo preço e pela novidade do bom vinho; entretanto, após alguns meses de residência, a maior parte deles se torna tão sóbria quanto os demais habitantes. Suprimir de uma vez as taxas aduaneiras que gravam os vinhos estrangeiros, e os impostos de consumo sobre o malte, a cerveja comum e a cerveja inglesa, poderia igualmente tornar a embriaguez bastante generalizada e temporária na Grã-Bretanha entre as classes média e inferior da população, a qual, porém, provavelmente, logo seria seguida de uma sobriedade permanente e mais ou menos total. Atualmente, a embriaguez de forma alguma constitui o vício de pessoas de posição ou daqueles que facilmente podem comprar as mais caras bebidas alcoólicas. Dificilmente se tem visto entre nós uma pessoa de posição embriagar-se com cerveja 470
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inglesa. Além disso, as restrições ao comércio de vinhos na Grã-Bretanha não parecem devidamente bem elaboradas para impedir as pessoas de freqüentarem a cervejaria, se assim posso me expressar, as antes para evitar que freqüentem os lugares em que podem comprar a melhor bebida e a mais barata. Favorecem o comércio de vinhos com Portugal e desestimulam o comércio de vinhos com a França. Efetivamente, afirma-se que os portugueses são melhores clientes para os nossos manufaturados do que os franceses, devendo portanto ser estimulados, de preferência aos franceses. Afirma-se que, da mesma maneira que os portugueses nos tratam, assim devemos tratá-los. Dessa forma, os artifícios astuciosos de comerciantes subalternos são transformados em máximas políticas para a conduta de um grande império; com efeito, são somente os comerciantes mais subalternos que transformam em regra utilizar os serviços principalmente de seus próprios clientes. Um grande comerciante sempre compra suas mercadorias onde elas são mais baratas e melhores, sem atender a pequenos interesses desse gênero. Foi por meio de tais máximas, contudo, que se ensinou às nações que seu interesse consiste em mendigar junto a todos os seus vizinhos. Fez-se com que cada nação olhe com inveja para a prosperidade de todas as nações com as quais comercializa, e considere o ganho dessas nações como uma perda para ela mesma. O comércio, que deveria naturalmente ser, entre as nações como entre os indivíduos, um traço de união e de amizade, transformou-se na mais fecunda fonte de discórdia e de animosidade. A ambição extravagante de reis e ministros, durante o século atual e o passado, não tem sido mais fatal para a tranqüilidade da Europa do que a inveja impertinente dos comerciantes e dos manufatores. A violência e a injustiça dos governantes da humanidade constitui um mal antigo para o qual receio que a natureza dos negócios humanos dificilmente encontre um remédio. Entretanto, embora talvez não se possa corrigir a vil capacidade e o espírito monopolizador dos comerciantes e dos manufatores que não são nem deveriam ser os governantes da humanidade, pode-se com muita facilidade impedi-los de perturbar a tranqüilidade de pessoas que não sejam eles mesmos. Não cabe dúvida de que foi o espírito de monopólio que originalmente inventou e propagou essa teoria; e os primeiros que a ensinaram de forma alguma eram tão insensatos como os que nela acreditaram. Em cada país, sempre é e deve ser de interesse do grande conjunto da população comprar tudo o que quiser, daqueles que vendem a preço mais baixo. A proposição é de tal evidência, que parece ridículo empenhar-se em demonstrá-la; e ela jamais poderia ter sido questionada, se os sofismas interesseiros dos comerciantes e dos manufatores não tivessem confundido o senso comum da humanidade. Sob este aspecto, o interesse deles é diretamente oposto ao do grande conjunto da população. Assim como é interesse dos homens livres de uma corporação impedir os demais habitantes de empregar outros trabalhadores afora eles mesmos, da mesma forma é do interesse dos comerciantes e dos 471
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manufatores de cada país assegurar para si mesmos o monopólio do mercado interno. Daí, na Grã-Bretanha e na maioria dos demais países europeus, os direitos descomunais exigidos de quase todas as mercadorias importadas por comerciantes estrangeiros. Daí os elevados direitos e proibições impostas a todas as manufaturas estrangeiras que podem vir a concorrer com as nossas próprias mercadorias. Daí também as pesadas restrições impostas à importação de quase todos os tipos de mercadorias dos países em relação aos quais se supõe ser desfavorável a balança comercial, ou seja, dos países contra os quais a animosidade nacional é mais inflamada. No entanto, a riqueza de uma nação vizinha, embora seja perigosa na guerra e na política, certamente é vantajosa para o comércio. Em estado de hostilidade, essa riqueza dos vizinhos pode possibilitar aos nossos inimigos manterem esquadras e exércitos superiores aos nossos; mas em estado de paz e de comércio essa riqueza também pode possibilitar-lhes trocar conosco um valor maior de mercadorias, e proporcionar-nos um mercado melhor, seja para a produção direta do nosso próprio país, seja para tudo aquilo que se compra com essa produção. Assim como uma pessoa rica provavelmente será um cliente melhor para as pessoas operosas de sua vizinhança do que uma pessoa pobre, o mesmo acontece com uma nação rica. Com efeito, um indivíduo rico, se for um manufator, constitui um vizinho muito perigoso para todos os que comerciam da mesma maneira. Todavia, todos os demais vizinhos — que constituem a grande maioria — tiram proveito do bom mercado que os gastos do rico lhes proporcionaram. Eles tiram proveito até mesmo vendendo a preço mais baixo que os trabalhadores mais pobres que negociam do mesmo modo que ele. Da mesma forma, os manufatores de uma nação rica podem sem dúvida ser rivais muito perigosos para os de seus vizinhos. Entretanto, essa própria concorrência é vantajosa para a maioria da população que, além disso, tira grande proveito do bom mercado que os grandes gastos de tal nação rica lhe proporciona de qualquer outra forma. As pessoas particulares que desejam fazer fortuna nunca pensam em dirigir-se às províncias longínquas e pobres do país, antes vão para a capital ou para alguma das grandes cidades comerciais. Sabem que onde circula pouca riqueza pouco podem conseguir, mas que, onde se movimenta uma grande riqueza, têm condições de partilhar de parte dela. Assim, as mesmas regras que devem dirigir o senso comum de um, de dez ou de vinte indivíduos, devem orientar o julgamento de um, de dez ou de vinte milhões, e fazer com que uma nação inteira veja as riquezas de seus vizinhos como uma provável causa e oportunidade para ela mesma adquirir riquezas. Uma nação que se enriquecesse com o comércio externo certamente teria maior probabilidade de se enriquecer quando seus vizinhos são todos nações ricas, operosas e comerciantes. Uma grande nação, cercada de todos os lados por selvagens nômades e pobres bárbaros, certamente poderia adquirir riquezas com o cultivo de suas próprias terras e com seu próprio comércio interno, mas não com o comércio externo. Parece ter 472
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sido dessa forma que os antigos egípcios e os modernos chineses adquiriram sua grande riqueza. Segundo se diz, os antigos egípcios negligenciavam o comércio exterior, e os chineses modernos, como se sabe, o desprezam ao máximo, e dificilmente se dignam a dar-lhe a proteção conveniente das leis. As modernas regras do comércio exterior, ao visarem ao empobrecimento de todos os nossos vizinhos, longe de conseguirem o efeito desejado, tendem a tornar esse comércio exterior insignificante e desprezível. Foi em conseqüência dessas regras que o comércio entre a França e a Inglaterra, nos dois países, tem estado sujeito a tantos desestímulos e tantas restrições. Entretanto, se esses dois países considerassem seu interesse real, sem rivalidade nem animosidade nacional, o comércio da França poderia ser mais vantajoso para a Grã-Bretanha do que o de qualquer outra nação e, pela mesma razão, o mesmo aconteceria com o comércio britânico, em relação à França. A França é o vizinho mais próximo da Grã-Bretanha. No comércio entre a costa meridional da Inglaterra e as costas setentrional e noroeste da França, poder-seiam conseguir retornos, da mesma forma que no comércio interno, quatro, cinco ou seis vezes por ano. Por conseguinte, o capital empregado nesse comércio poderia, em cada uma das duas nações, movimentar quatro, cinco ou seis vezes o volume de trabalho, proporcionando emprego e subsistência quatro, cinco ou seis vezes o contingente de pessoas, em relação ao que poderia movimentar um capital igual, empregado na maior parte dos outros setores de comércio exterior. Entre as regiões francesas e britânicas mais afastadas entre si, poder-se-iam esperar retornos no mínimo uma vez por ano, e mesmo esse comércio, sob tal aspecto, daria no mínimo a mesma vantagem que a maior parte dos demais setores do nosso comércio externo europeu. Esse comércio seria, no mínimo, três vezes mais rentável do que o tão decantado comércio com as nossas colônias norte-americanas, onde o retorno raramente demora menos de três anos e muitas vezes requer no mínimo quatro ou cinco anos. Além disso, a França tem, ao que se supõe, uma população de 24 milhões de habitantes. Nossas colônias norte-americanas nunca tiveram, ao que se calcula, mais do que três milhões. E a França é um país muito mais rico do que a América do Norte embora, devido à maior desigualdade no tocante à distribuição das riquezas, exista muito mais pobreza e mendicância na França do que na América do Norte. Por isso, a França poderia oferecer um mercado no mínimo oito vezes mais amplo e, em razão da freqüência maior dos retornos, um mercado 24 vezes mais vantajoso do que o mercado que as nossas colônias norte-americanas jamais nos conseguiram oferecer. Igualmente vantajoso para a França seria o comércio com a Grã-Bretanha e, em proporção com a riqueza, a população e a proximidade dos dois países, o comércio da França com a Grã-Bretanha teria exatamente a mesma superioridade sobre o comércio que a França mantém com suas próprias colônias. Tal é a enorme diferença existente entre esse comércio — que o bom senso das duas nações considerou conveniente deses473
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timular — e o comércio atualmente existente, que as duas nações o têm favorecido ao máximo. Ora, exatamente as mesmas circunstâncias que teriam tornado tão vantajoso para as duas nações um comércio aberto e livre entre elas têm constituído os obstáculos principais para esse comércio. Sendo vizinhas, a Grã-Bretanha e a França são necessariamente inimigas entre si e, por esse motivo, a riqueza e o poder de cada uma delas se tornam tanto mais temíveis à outra; e aquilo que poderia aumentar a vantagem da amizade nacional serve apenas para inflamar a violência da animosidade nacional. Trata-se de duas nações ricas e operosas; e os comerciantes e os manufatores de cada uma delas têm medo da concorrência, da habilidade e da atividade dos comerciantes e dos manufatores da outra. Excita-se com isto a rivalidade mercantil, inflamando pela violência a animosidade nacional e sendo por ela inflamada. E os comerciantes dos dois países anunciaram, com toda a apaixonada confiança da falsidade interesseira, a certeza da ruína de cada uma delas, em conseqüência dessa balança comercial desfavorável que, segundo alegam, constituiria o efeito infalível de um comércio sem restrições entre as duas. Não existe nenhum país comercial europeu cuja ruína iminente não tenha sido muitas vezes predita pelos pretensos doutores desse sistema mercantil, como decorrência de uma balança comercial desfavorável. No entanto, depois de todas as preocupações e temores que levantaram em torno desse assunto, depois de todas as tentativas vãs, por parte de quase todas as nações comerciais, no sentido de fazer com que essa balança comercial lhes fosse favorável e desfavorável a seus vizinhos, não há sinais de que alguma nação européia, sob qualquer aspecto, tenha empobrecido por esse motivo. Ao contrário, cada cidade e cada país, na medida em que abriram seus portos a todas as nações, ao invés de serem arruinados por esse comércio livre — como nos induziriam a crer os princípios do sistema comercial —, enriqueceram com isso. De fato, ainda que haja na Europa algumas cidades que, sob alguns aspectos, mereçam o nome de portos livres, não há nenhum país em que exista tal liberdade de comércio. A Holanda é, talvez, o país que mais próximo está dessa prática, embora ainda bem longe dela; ora, reconhece-se que a Holanda aufere do comércio exterior não somente toda a sua riqueza, como também grande parte de sua subsistência. Na verdade há uma outra balança, que já foi explicada, e que é muito diferente da balança comercial — esta sim, conforme for favorável ou desfavorável, necessariamente gera a prosperidade ou o declínio de uma nação. É a balança de produção e consumo anuais. Já observei que, se o valor de troca da produção anual superar o valor de troca do consumo anual, o capital da sociedade deve aumentar proporcionalmente a esse excedente. Nesse caso, a sociedade vive nos limites de sua renda, e o que anualmente se economiza dessa renda é naturalmente acrescentado a seu capital e empregado para aumentar ainda 474
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mais a produção anual. Ao contrário, se o valor de troca da produção anual for inferior ao consumo anual, o capital da sociedade deve diminuir anualmente em proporção a essa diferença ou insuficiência. Neste caso, a despesa da sociedade supera sua renda, interferindo forçosamente em seu capital. Por isso, seu capital necessariamente diminui e, juntamente com ele, o valor de troca da produção anual de sua atividade. Essa balança de produção e consumo é totalmente diferente da assim chamada balança comercial. Ela poderia ocorrer em uma nação que não tivesse nenhum comércio exterior, mas estivesse totalmente separada do resto do mundo. Ela pode ocorrer no mundo inteiro, cuja riqueza, população e desenvolvimento podem estar gradualmente aumentando ou gradualmente declinando. A balança de produção e consumo pode ser constantemente favorável a uma nação, ainda que a chamada balança comercial lhe seja geralmente contrária. É possível a uma nação importar um valor superior ao que exporta, e isso talvez durante meio século contínuo; é possível que o ouro e a prata que entram nesse país durante todo esse tempo sejam imediatamente enviados para fora; sua moeda circulante pode diminuir gradualmente, sendo substituída por diversos tipos de papel-moeda; podem até aumentar gradualmente dívidas que o país contrai junto às principais nações com as quais comercializa não obstante isso, a riqueza real desse país, o valor de troca da produção anual de suas terras e de seu trabalho podem, durante esse mesmo período, ter aumentado em uma proporção muito maior. A situação das nossas colônias norte-americanas e do comércio que efetuavam com a Grã-Bretanha, antes do início dos atuais distúrbios, pode servir como prova de que isso de forma alguma representa uma suposição impossível.
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ÍNDICE
Apresentação de Winston Fritsch . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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A RIQUEZA DAS NAÇÕES Introdução de Edwin Cannan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Introdução e Plano da Obra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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LIVRO PRIMEIRO — As Causas do Aprimoramento das Forças Produtivas do Trabalho e a Ordem Segundo a qual sua Produção é Naturalmente Distribuída Entre as Diversas Categorias do Povo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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CAP. I — A Divisão do Trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. II — O Princípio que Dá Origem à Divisão do Trabalho . . CAP. III — A Divisão do Trabalho Limitada pela Extensão do Mercado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. IV — A Origem e o Uso do Dinheiro . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. V — O Preço Real e o Preço Nominal das Mercadorias ou seu Preço em Trabalho e seu Preço em Dinheiro . . . . . . CAP. VI — Fatores que Compõem o Preço das Mercadorias . . . . CAP. VII — O Preço Natural e o Preço de Mercado das Mercadorias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. VIII — Os Salários do Trabalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. IX — Os Lucros do Capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. X — Os Salários e o Lucro nos Diversos Empregos de Mãode-Obra e de Capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Parte Primeira — Desigualdades decorrentes da natureza dos próprios empregos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Parte Segunda — Desigualdades oriundas da política na Europa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. XI — A Renda da Terra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 477
65 73 77 81 87 101 109 117 137 147 147 164 185
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Parte Primeira — Os produtos da terra que sempre proporcionam renda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187 Parte Segunda — O produto da terra que às vezes proporporciona renda e às vezes não . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 200 Parte Terceira — As variações na proporção entre os respectivos valores daqueles tipos de produto que sempre proporcionam renda e daqueles tipos de produto que às vezes geram renda e às vezes não . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212 Digressão sobre as variações de valor da prata no decurso dos quatro últimos séculos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Primeiro Período . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Segundo Período . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Terceiro Período . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
213 213 225 226
Variações na proporção entre os valores respectivos do ouro e da prata . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240 Fundamentos para suspeitar que o valor da prata continua a decrescer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 244 Efeitos diferentes do avanço do desenvolvimento sobre três diferentes tipos de produtos naturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Primeiro tipo de produto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Segundo tipo de produto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Terceiro tipo de produto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
244 245 246 254
Conclusão da digressão sobre as variações do valor da prata . . . . 262 Efeitos do avanço do desenvolvimento sobre o preço real dos manufaturados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267 Conclusão do capítulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 270 LIVRO SEGUNDO — A Natureza, o Acúmulo e o Emprego do Capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285 CAP. I — A Divisão do Capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. II — O Dinheiro Considerado como um Setor Específico do Capital Geral da Sociedade, ou seja, a Despesa da Manutenção do Capital Nacional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. III — A Acumulação de Capital, ou o Trabalho Produtivo e o Improdutivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. IV — O Dinheiro Emprestado a Juros . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. V — Os Diversos Empregos de Capitais . . . . . . . . . . . . . . 478
287 295 333 349 357
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LIVRO TERCEIRO — A Diversidade do Progresso da Riqueza nas Diferentes Nações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 371 CAP. I — O Progresso Natural da Riqueza . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. II — O Desestímulo à Agricultura no Antigo Estágio da Europa, após a Queda do Império Romano . . . . . . . . . . . CAP. III — A Ascensão e o Progresso das Metrópoles e Cidades após a Queda do Império Romano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. IV — De que Maneira o Comércio das Cidades Contribuiu para o Progresso do Campo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
373 379 389 399
LIVRO QUARTO — Sistemas de Economia Política . . . . . . . . . 411 Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 413 CAP. I — O Princípio do Sistema Comercial ou Mercantil . . . . CAP. II — Restrições à Importação de Mercadorias Estrangeiras que Podem Ser Produzidas no Próprio País . . . . . . . . . . . CAP. III — As Restrições Extraordinárias à Importação de Mercadorias de Quase Todos os Tipos, dos Países com os Quais a Balança Comercial É Supostamente Desfavorável . . . . Parte Primeira — A irracionalidade dessas restrições, mesmo com base nos princípios do sistema comercial . . .
415 435 453 453
Digressão sobre os bancos de depósito, especialmente sobre o de Amsterdam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 458 Parte Segunda — A irracionalidade dessas restrições extraordinárias, com base em outros princípios . . . . . . . . . . 466
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OS ECONOMISTAS
ADAM SMITH A RIQUEZA DAS NAÇÕES
Investigação Sobre sua Natureza e suas Causas
Com a Introdução de Edwin Cannan
VOLUME II Tradução de Luiz João Baraúna
Fundador VICTOR CIVITA (1907 - 1990)
Editora Nova Cultural Ltda. Copyright © desta edição 1996, Círculo do Livro Ltda. Rua Paes Leme, 524 - 10º andar CEP 05424-010 - São Paulo - SP Título original: An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations Direitos exclusivos sobre a Apresentação de autoria de Winston Fritsch, Editora Nova Cultural Ltda. Direitos exclusivos sobre a tradução deste volume: Círculo do Livro Ltda. Impressão e acabamento: DONNELLEY COCHRANE GRÁFICA E EDITORA BRASIL LTDA. DIVISÃO CÍRCULO - FONE (55 11) 4191-4633
ISBN 85-351-0833-5
LIVRO QUARTO Sistemas de Economia Política (Continuação)
CAPÍTULO IV Os Drawbacks
Os comerciantes e os manufatores não se contentam com o monopólio do mercado interno, senão que desejam vender também o máximo possível de suas mercadorias no exterior. Pelo fato de seu país não ter nenhuma jurisdição sobre nações estrangeiras, raramente ele lhes pode garantir um monopólio no exterior. Por isso, geralmente os comerciantes são obrigados a contentar-se em solicitar determinados estímulos para a exportação. Dentre esses estímulos, os mais razoáveis parecem ser os chamados drawbacks. Permitir ao comerciante recuperar, na exportação, o total do imposto de consumo ou taxa imposta aos produtos do país, ou uma parte dos mesmos, nunca pode gerar a exportação de uma quantidade maior de mercadorias do que a quantidade que se teria exportado, no caso de não se ter imposto nenhuma taxa. Tais estímulos não tendem a desviar para determinada aplicação uma porção maior do capital de um país, do que a quantidade que teria sido canalizada espontaneamente para esse emprego, mas apenas tendem a impedir a taxa de desviar qualquer parte dessa porção para outros empregos. Esses estímulos não tendem a alterar o equilíbrio que naturalmente se estabelece entre todos os diversos empregos da sociedade, mas a impedir que esse equilíbrio seja alterado pela taxa. Não tendem a destruir, mas a preservar o que na maioria dos casos é vantajoso preservar, isto é, a divisão e distribuição naturais do trabalho na sociedade. O mesmo pode ser dito dos drawbacks para a reexportação de mercadorias estrangeiras importadas, que, na Grã-Bretanha, geralmente representam de longe a máxima parte das taxas sobre importações. Em virtude da segunda regra anexa à Lei do Parlamento, que impôs o que hoje se chama antigo subsídio, permitia-se a todo comerciante, inglês ou estrangeiro, recuperar a metade dessa taxa de exportação: o comerciante inglês, desde que a exportação se efetuasse no prazo de 12 meses; o estrangeiro, desde que ela se efetuasse no prazo de 9 7
OS ECONOMISTAS
meses. Os vinhos, as passas de Corinto e as sedas trabalhadas eram os únicos artigos que não se enquadravam nessa regra, por desfrutarem de outras compensações, mais vantajosas. Naquela época, as taxas impostas por essa lei do Parlamento constituíam as únicas incidentes sobre a importação de mercadorias estrangeiras. Mais tarde (pelo Decreto 7 de Jorge I, capítulo 21, seção 10), o prazo hábil para reclamar esse e todos os outros drawbacks foi estendido para três anos. A maior parte das taxas que se tem imposto desde o antigo subsídio é totalmente recuperada no ato da exportação. Todavia, essa regra geral é passível de grande número de exceções, e a teoria dos drawbacks se tornou matéria muito mais simples do que quando foi pela primeira vez instituída. Na exportação de alguns artigos estrangeiros, cuja importação se esperava que superaria de muito o necessário para o consumo interno, recuperam-se todas as taxas, sem reter sequer a metade do antigo subsídio. Antes da revolta das nossas colônias norte-americanas, tínhamos o monopólio do fumo de Maryland e Virgínia. Importávamos aproximadamente 96 mil barricas de 63 a 140 galões e o consumo interno, acreditava-se, não superava 14 mil. Para facilitar a grande exportação que se fazia necessária para livrar-nos do restante, permitia-se a recuperação total das taxas pagas na importação, desde que a exportação ocorresse dentro de 3 anos. Ainda possuímos, senão total, quase totalmente, o monopólio do açúcar das nossas ilhas das Índias Ocidentais. Portanto, se o açúcar for exportado no prazo de um ano, recuperam-se todas as taxas cobradas na importação e, se for exportado no prazo de três anos, recuperam-se todas as taxas, menos a metade do antigo subsídio, que se continua a reter na exportação da maior parte das mercadorias. Embora a importação de açúcar supere bastante o necessário para o consumo interno, o excedente é irrelevante, em confronto com o que costuma ser o excedente de fumo. Proíbe-se a importação, para consumo interno, de algumas mercadorias que constituem objeto especial do ciúme dos nossos próprios manufatores. Todavia, pagando-se certas taxas, elas podem ser importadas e estocadas para exportação. Ao serem exportadas, porém, o exportador não recupera nada das taxas cobradas na importação. Ao que parece, nossos manufatores não querem nem sequer que se estimule essa importação restrita, temendo que parte dessas mercadorias seja roubada do depósito e, dessa forma, venha a competir com suas próprias mercadorias. Somente sob tais cláusulas podemos importar sedas trabalhadas, cambraias e tecidos finos de lã e algodão da França, calicôs pintados, estampados, coloridos ou tingidos etc. Não gostamos sequer de transportar mercadorias francesas, preferindo antes a antecipação de um lucro para nós do que suportar que aqueles, que consideramos nossos inimigos, aufiram lucro por nosso intermédio. Na exportação de qualquer mercadoria francesa não se retém somente a metade do antigo subsídio, mas também os segundos 25%. 8
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Em virtude da quarta regra anexa ao antigo subsídio, o drawback permitido na exportação de todos os vinhos representava bem mais do que a metade das taxas que, na época, se impunham à sua importação; e parece que, na época, os legisladores tencionavam oferecer algo mais do que um estímulo comum ao comércio de transporte de vinhos. Permitiu-se também recuperar totalmente, na exportação, várias outras taxas que foram impostas, ou na mesma época, ou posteriormente, ao antigo subsídio o que se denomina subsídio adicional, novo subsídio, subsídio de 1/3 e de 2/3, imposto 1692, tributação sobre vinho. Entretanto, pelo fato de todas essas taxas, excetuada a taxa adicional e imposto 1692, serem pagas em dinheiro vivo, na importação, os juros de uma soma tão grande geravam uma despesa que tornou irracional esperar auferir lucro do comércio de transporte deste artigo. Por isso, permitiu-se recuperar, na exportação, somente uma parte da taxa denominada imposto sobre o vinho, não se permitindo recuperar, na exportação, nenhuma parte das 25 libras por tonelada de vinhos franceses, ou das taxas impostas em 1745, em 1763 e em 1778. Já que os dois impostos de 5% decretados em 1779 e 1781, sobre todas as taxas alfandegárias anteriores, podiam ser recuperados totalmente na exportação de todas as outras mercadorias, permitiu-se recuperá-los também na exportação do vinho. A última taxa especificamente imposta à importação de vinho, a de 1780, podia ser recuperada inteiramente, concessão que, numa época em que se retêm tantas taxas rigorosas de importação, muito provavelmente jamais poderia levar a exportar uma única tonelada de vinho. Essas regras têm validade em relação a todos os lugares para os quais é legítimo exportar, excetuadas as colônias britânicas na América. O Decreto 15 de Carlos II, capítulo 7, denominado lei de estímulo ao comércio, havia dado à Grã-Bretanha o monopólio de fornecer às colônias todas as mercadorias cultivadas ou manufaturadas na Europa e, conseqüentemente, também os vinhos. Em um país com uma costa tão longa como as nossas colônias da América do Norte e das Índias Ocidentais, onde nossa autoridade sempre foi tão reduzida, e onde era permitido aos habitantes transportar em seus próprios navios suas mercadorias não enumeradas, primeiro para todas as regiões da Europa e, posteriormente, para todas as regiões da Europa localizadas ao sul do Cabo Finisterra, não é muito provável que esse monopólio jamais pudesse ser muito respeitado; e, provavelmente, essas colônias, em todas as épocas, encontraram meios de trazer de volta alguma carga dos países para os quais se lhes permitia carga. Entretanto, parecem ter encontrado alguma dificuldade em importar vinhos europeus dos lugares em que eram produzidos, e não os podiam facilmente importar da Grã-Bretanha, onde os vinhos eram onerados com muitas taxas pesadas, das quais grande parte não podia ser recuperada no ato da exportação. O vinho da ilha da Madeira, por não ser uma mercadoria européia, podia ser importado diretamente na América e nas Índias Ocidentais, países que, quanto a todas as suas mercadorias não enu9
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meradas, desfrutavam de comércio livre com a ilha da Madeira. Essas circunstâncias provavelmente haviam introduzido esse gosto generalizado pelo vinho da Madeira, que nossos oficiais constataram existir em todas as nossas colônias no início da guerra que começou em 1755, gosto esse que trouxeram de volta à pátria-mãe, onde esse vinho não estava muito em voga, até então. Ao término dessa guerra, em 1763 (pelo Decreto 4 de Jorge III, capítulo 15, seção 12), permitiu-se recuperar na exportação, às colônias, de todos os vinhos, exceto os franceses — para cuja comercialização e consumo o preconceito nacional não oferecia qualquer tipo de estímulo —, todas as taxas, exceto 3 libras e 10 xelins. O período decorrido entre essa concessão e a revolta da nossas colônias norte-americanas provavelmente foi muito breve para admitir qualquer mudança considerável nos costumes desses países. A mesma lei que, dessa forma, no drawback para todos os vinhos, excetuados os franceses, favoreceu as colônias tanto mais do que os outros países, favoreceu-as muito menos no tocante à maior parte das outras mercadorias. Na exportação da maioria das mercadorias a outros países, recuperava-se a metade do antigo subsídio. Todavia, essa lei estipulava que não se podia recuperar nenhuma parte dessas taxas na exportação às colônias de quaisquer mercadorias cultivadas ou manufaturadas na Europa ou nas Índias Orientais, excetuados vinhos, musselinas e calicôs brancos. Os drawbacks talvez tenham sido originalmente concedidos para estimular o comércio de transporte de mercadorias, o qual, visto que o frete dos navios é freqüentemente pago pelos estrangeiros em dinheiro, supunha-se ser particularmente indicado para trazer ouro e prata ao país. Entretanto, embora o comércio de transporte de mercadorias certamente não mereça nenhum estímulo especial, malgrado o motivo da instituição fosse, talvez, muito insensato, a instituição como tal parece suficientemente razoável. Tais drawbacks não têm condições de obrigar a canalizar para esse comércio uma parcela maior do capital do país do que a que espontaneamente nela teria sido empregada, se não houvesse quaisquer taxas de importação. Esses drawbacks apenas impedem que este tipo de comércio seja totalmente excluído por essas taxas. Embora o comércio de transporte de mercadorias não mereça nenhuma preferência, não se deve fechar-lhe as portas, mas deixar-lhe a liberdade que se dá a todos os outros tipos de comércio. É um recurso natural para os capitais que não podem encontrar aplicação nem na agricultura nem nas manufaturas do país, quer no seu comércio interno, quer no seu comércio exterior para consumo interno. A receita alfandegária, em vez de sofrer, lucra com tais drawbacks com a parte das taxas retida. No caso de se reterem todas as taxas, raramente se teria podido exportar as mercadorias estrangeiras sobre cuja importação se pagam tais taxas e, conseqüentemente, também não poderiam ter sido importadas, por falta de mercado. Portanto, jamais teriam sido pagas as taxas alfandegárias, das quais uma parte é retida. 10
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Essas razões parecem ser suficientes para justificar os drawbacks, e os justificariam, mesmo que as taxas aduaneiras de importação — seja para os produtos nacionais, seja para mercadorias estrangeiras — sempre fossem recuperadas na exportação. Sem dúvida, nesse caso a renda proveniente dos impostos de consumo sofreria um pouco, e a renda da alfândega sofreria bem mais; entretanto, o equilíbrio natural das atividades, a divisão e a distribuição natural do trabalho, que sempre é mais ou menos afetada por tais taxas, seriam mais facilmente estabelecidos por tal medida. Contudo, essas razões só justificarão os drawbacks apenas na exportação de mercadorias a países totalmente estrangeiros e independentes, não àqueles nos quais os nossos comerciantes e manufatores gozam de monopólio. Por exemplo, um drawback sobre a exportação de mercadorias européias para as nossas colônias americanas nem sempre acarretará uma exportação maior do que a que teria ocorrido sem o drawback. Pelo monopólio que nossos comerciantes e manufatores possuem em nossas colônias, muitas vezes a mesma quantidade talvez pudesse ser exportada para lá, mesmo retendo-se todas as taxas alfandegárias. Por isso, freqüentemente, o drawback pode constituir-se em pura perda para a renda proveniente dos impostos de consumo e da alfândega, sem alterar a situação do comércio ou ampliá-lo sob qualquer aspecto. Mais adiante, quando tratar das colônias, se verá até onde tais drawbacks podem ser justificados, como um estímulo adequado para a atividade das nossas colônias, ou até onde é vantajoso para a pátria-mãe que as colônias sejam isentas das taxas por todos os demais súditos britânicos. Entretanto, é preciso compreender sempre que os drawbacks são úteis somente nos casos em que as mercadorias, para cuja exportação são concedidos, são realmente exportadas a algum país estrangeiro, e não clandestinamente reimportadas em nosso próprio país. É um fato bem conhecido que muitas vezes se tem abusado dessa forma de alguns drawbacks, particularmente dos concedidos ao fumo, e que esses abusos deram origem a muitas fraudes, prejudicando de igual maneira tanto a receita quanto o comerciante leal.
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CAPÍTULO V Os Subsídios
Em se tratando dos produtos de determinados setores de atividade interna, freqüentemente se solicitam, na Grã-Bretanha, subsídios para a exportação, os quais, às vezes, são concedidos. Alega-se que, através de tais subsídios, possibilita-se aos nossos comerciantes e manufatores vender suas mercadorias, no mercado estrangeiro, ao mesmo preço ou até a preço mais baixo que seus rivais no exterior. Afirma-se que, com isto, se exportará uma quantidade maior, e a balança comercial apresentará, conseqüentemente, maior superávit a nosso favor. Não temos condições de dar aos nossos trabalhadores um monopólio no mercado externo, como fizemos no mercado interno. Não podemos forçar os estrangeiros a comprarem suas mercadorias, como forçamos nossos patrícios no país. Não sendo isso possível, acreditou-se que o melhor expediente seria pagar aos estrangeiros para que comprassem as nossas mercadorias. É dessa forma que o sistema mercantil se propõe a enriquecer o país inteiro, e trazer dinheiro a todos os nossos bolsos, através da balança comercial. Admite-se que os subsídios só devem ser concedidos aos setores comerciais que não conseguiriam operar sem eles. Entretanto, é possível efetuar sem subsídio qualquer tipo de atividade na qual o comerciante possa vender suas mercadorias por um preço que lhe reponha, além dos lucros normais do estoque, todo o capital aplicado na preparação e na colocação das mercadorias no mercado. Todo esse setor está evidentemente no mesmo pé que todos os outros setores do comércio efetuados sem subsídios, não podendo, portanto, exigir mais subsídio que os outros. Só exigem subsídios os setores nos quais o comerciante é obrigado a vender suas mercadorias por um preço que não lhe repõe seu capital, juntamente com os lucros normais, ou em que ele é obrigado a vendê-las por um preço inferior ao custo de comercialização das mesmas. O subsídio é feito para compensar essa perda e estimular o comerciante a continuar — ou talvez a começar — um comércio cujas 13
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despesas se prevêem superiores aos retornos, no qual cada operação consome parte do capital nele empregado, e que é de tal natureza que, se acontecesse algo semelhante com todos os outros setores, em breve não sobraria mais nenhum capital no país. Cumpre observar que os tipos de comércio efetuados com o auxílio de subsídios são os únicos que podem ser realizados entre duas nações durante um período mais longo, de tal maneira que uma delas sempre e regularmente perderá ou venderá suas mercadorias por um preço inferior ao que lhe custa realmente enviá-las ao mercado. Ora, se o subsídio não ressarcisse o comerciante que, de outra forma, perderia no preço de suas mercadorias, seu próprio interesse logo o obrigaria a empregar seu estoque ou capital de outra forma, ou a encontrar uma atividade em que o preço das mercadorias lhe repusesse, juntamente com o lucro normal, o capital empregado na comercialização de suas mercadorias. O efeito dos subsídios como, aliás, de todos os demais expedientes do sistema mercantil, só pode ser o de dirigir forçosamente atividade ou comércio de um país para um canal muito menos vantajoso do que seria aquele para o qual ele se orientaria natural e espontaneamente. O inteligente e bem informado autor dos opúsculos sobre o comércio do trigo mostrou com muita clareza que, desde a primeira implantação do subsídio para exportação de trigo, o preço do trigo exportado, avaliado com bastante moderação, superou o do trigo importado, avaliado muito alto, sendo a diferença entre os dois preços muito superior ao montante de todos os subsídios pagos durante o respectivo período. Isso — imagina o referido autor, baseado nos verdadeiros princípios do sistema mercantil — constitui clara demonstração de que este comércio forçado de trigo é benéfico à nação, já que o valor da exportação supera o da importação, em um montante muito superior ao total da despesa extraordinária que o público teve para que se efetivasse a exportação. Ele não considera que esta despesa extraordinária, ou o subsídio, representa apenas a mínima parte da despesa que a exportação do trigo realmente custa à sociedade. Importa levar em conta, também, o capital que o arrendatário rural empregou no cultivo do trigo. Se o preço do trigo, quando vendido nos mercados estrangeiros, não repuser, além do subsídio, também esse capital, juntamente com os lucros normais do estoque, a sociedade sai perdendo, pela diferença, ou o estoque nacional igualmente diminui. Mas a verdadeira razão pela qual se considerou necessário conceder um subsídio é a suposta insuficiência do preço para que isso ocorra. Tem-se alegado que o preço médio do trigo caiu consideravelmente, desde a criação do subsídio. Já procurei mostrar que o preço médio dos cereais começou a cair um tanto no final do século passado, o que continuou a ocorrer no decurso dos primeiros 64 anos do presente século. Entretanto, esse evento, supondo que seja tão real quanto acredito sê-lo, deve ter ocorrido a despeito do subsídio, não sendo possível que tenha acontecido em decorrência dele. Ele ocorreu na França, tanto quanto na Inglaterra e, no entanto, na França, não somente não houve 14
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subsídio, como também, até 1764, a exportação de cereais estava sujeita a uma proibição geral. É provável, pois, que esta queda gradual do preço médio dos grãos, em última análise, não se deva atribuir nem ao subsídio nem à proibição de exportar, mas àquele aumento gradual e insensível do valor real da prata, que, como procurei demonstrar no Livro Primeiro desta obra, ocorreu no mercado geral da Europa, durante o decurso do século atual. Parece inteiramente impossível que o subsídio jamais tenha contribuído para fazer baixar o preço dos cereais. Já observei que, nos anos de abundância, o subsídio, pelo fato de gerar uma grande exportação, necessariamente mantém o preço dos cereais no mercado interno acima do qual normalmente se fixaria. A finalidade confessa da instituição foi essa. Em anos de escassez, ainda que o subsídio seja muitas vezes suspenso, a grande exportação que ele provoca nos anos de fartura deve freqüentemente impedir, mais ou menos, em medida maior ou menor, a fartura de um ano, de aliviar a escassez de outro. Tanto em anos de fartura como em anos de escassez, portanto, o subsídio necessariamente tende a fazer subir o preço dos cereais em dinheiro, no mercado interno, algo mais do que aconteceria sem o subsídio. Segundo entendo, nenhuma pessoa sensata contestará que, no estado real da agricultura, o subsídio necessariamente tem essa tendência. Segundo muitos, porém, o subsídio tende a estimular a agricultura, de duas maneiras distintas: em primeiro lugar, abrindo um mercado estrangeiro mais amplo para os cereais do arrendatário, o subsídio tende — assim se imagina — a aumentar a demanda dessa mercadoria, e, portanto, a sua produção; em segundo lugar, por garantir um preço melhor do que o arrendatário poderia esperar no estado efetivo da agricultura, o subsídio tende — como se pensa — a estimular a agricultura. Acredita-se que esse duplo estímulo, em um longo período de anos, deve produzir tal aumento da produção de cerais suscetível de baixar o seu preço no mercado interno, muito mais do que o subsídio possa aumentá-lo, no estado efetivo em que a agricultura possa estar, ao término do referido período. Respondo que, qualquer que seja a ampliação do mercado externo que possa advir do subsídio, em cada ano específico ela só pode ocorrer totalmente às expensas do mercado interno, já que todo bushel de trigo exportado com o subsídio, e que não seria exportado sem o subsídio, teria permanecido no mercado interno para aumentar o consumo e para fazer baixar o preço dessa mercadoria. Cumpre observar que o subsídio ao trigo, como qualquer outro subsídio à exportação, impõe duas taxas diferentes à população: primeiro, a taxa com que o povo é obrigado a contribuir para pagar o subsídio; segundo, a taxa que provém do preço aumentado da mercadoria no mercado interno, taxa essa que, pelo fato de os cereais serem comprados por todos os habitantes do país, tem que ser paga por todos os integrantes da sociedade, em se 15
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tratando dessa mercadoria específica. No caso dessa mercadoria específica, portanto, essa segunda taxa é de longe a mais pesada das duas. Suponhamos que, tomando um ano pelo outro, o subsídio de 5 xelins sobre a exportação do quarter de trigo faça subir o preço dessa mercadoria, no mercado interno, apenas 6 pence por bushel, ou 4 xelins por quarter; acima do preço que o trigo teria, de outra forma, nas condições efetivas da colheita. Mesmo nessa hipótese, muito propícia, o grande conjunto da população, além de recolher a taxa que paga o subsídio de 5 xelins em cada quarter de trigo exportado, deve pagar outra taxa, de 4 xelins, sobre cada quarter que ela mesma consome. Mas, segundo o muito bem informado autor dos panfletos sobre o comércio dos cereais, a porcentagem média dos cereais exportados, em relação aos consumidos no país, não passa de 1 para 31. Conseqüentemente, para cada 5 xelins com que a população contribui para pagar a primeira taxa, tem que contribuir com £ 6 4 s para o pagamento da segunda. Uma taxa tão alta incidente sobre o primeiro dos artigos de necessidade para a vida, de duas uma: ou reduz obrigatoriamente o sustento do trabalhador pobre, ou produz algum aumento de seus salários, aumento este proporcional ao do preço de sua subsistência. Se tiver o primeiro efeito, o subsídio deverá diminuir a capacidade do trabalhador pobre em educar e manter seus filhos e, sob esse aspecto, deverá tender a limitar a população do país. Na medida em que produzir o segundo efeito, deverá reduzir a capacidade de os empregadores dos pobres darem emprego a um contingente tão grande como o que poderiam manter de outra forma, e, sob esse aspecto, deverá tender a limitar o volume de trabalho do país. Por isso, a extraordinária exportação de cereais provocada pelo subsídio não somente faz diminuir, em cada ano específico, o mercado e o consumo interno, tanto quanto aumenta o mercado e o consumo externos, mas, limitando a população e o volume de trabalho do país, sua tendência final é tolher e restringir a ampliação gradual do mercado interno; conseqüentemente, a longo prazo, tenderá a diminuir o mercado e o consumo geral de cereais, e não a aumentá-los. Tem-se pensado, porém, que esse aumento do preço do trigo em dinheiro, por tornar essa mercadoria mais rentável para o arrendatário, forçosamente estimulará sua produção. Respondo que isso poderia acontecer se o efeito do subsídio fosse subir o preço real do trigo, ou possibilitar ao produtor, com uma quantidade igual de trigo, manter um número maior de trabalhadores da mesma forma — com liberalidade, moderação ou compressão de despesas — com que se mantêm, de um modo geral, outros trabalhadores na redondeza. Entretanto, nem o subsídio — como é evidente — nem qualquer outra instituição humana pode ter tal efeito. O que o subsídio pode afetar, de maneira mais ou menos sensível, não é o preço real do trigo, mas seu preço nominal. E ainda que a taxa que o subsídio impõe a todos os in16
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tegrantes da população possa ser bem pesada para aqueles que a pagam, ela traz muito pouca vantagem para os que a recebem. O efeito real do subsídio não consiste tanto em aumentar o valor real do trigo quanto em diminuir o valor real da prata, ou fazer com que uma quantidade igual de prata seja trocada por uma quantidade menor, não somente de trigo, mas também de todas as demais mercadorias produzidas no país, já que o preço do trigo em dinheiro regula o preço de todas as outras mercadorias produzidas no país. O preço do trigo regula o preço em dinheiro da mão-de-obra, preço esse que sempre deve ser tal que possibilite ao trabalhador comprar uma quantidade de cereais suficiente para mantê-lo, juntamente com sua família, da forma liberal, moderada ou escassa com a qual a condição evoluída, estacionária ou declinante da sociedade obrigar seus empregadores a mantê-lo. O preço do trigo regula o preço em dinheiro de todos os outros produtos naturais da terra, preço esse que, qualquer que seja o grau de aprimoramento desta, deve manter certa proporção em relação ao preço do trigo, embora essa proporção seja diferente, conforme o grau de aprimoramento da gleba. Assim, o preço do trigo regula, por exemplo, o preço em dinheiro do capim e do feno, da carne de açougue, dos cavalos e da manutenção dos cavalos e, portanto, do transporte terrestre, isto é, da maior parte do comércio interno do país. Ao regular o preço em dinheiro de todos os outros produtos naturais da terra, o preço do trigo regula o das matérias-primas de quase todas as manufaturas. Ao regular o preço em dinheiro da mão-de-obra, regula o preço das manufaturas artesanais e industriais. E ao regular os dois, regula o preço do manufaturado acabado. O preço da mão-deobra em dinheiro e de tudo o que seja produto da terra ou do trabalho deve necessariamente aumentar ou diminuir na proporção em que aumentar ou diminuir o preço do trigo em dinheiro. Por conseguinte, ainda que, em conseqüência do subsídio, o agricultor tivesse a possibilidade de vender seu trigo por 4 xelins o bushel, e não por 3 s 6 d, e de pagar ao proprietário da terra uma renda em dinheiro proporcional a esse aumento do preço de seu produto em dinheiro; ainda que se, em conseqüência desse aumento do preço do trigo 4 xelins não puderem comprar mais mercadorias de produção nacional de qualquer outro gênero do que se teria podido comprar anteriormente com 3 s 6 d, essa alteração não melhorará muito a situação do arrendatário nem a do dono da terra. O arrendatário não terá condições de cultivar muito melhor as terras e o dono da terra não terá condições de manter um padrão de vida muito melhor. Esse aumento do preço do trigo pode acarretar-lhes alguma pequena vantagem na compra de mercadorias estrangeiras. Na compra de mercadorias de produção nacional, porém, ele não lhes dá vantagem alguma. E quase todos os gastos do arrendatário, e até mesmo a grande maioria dos gastos do senhor de terras, são feitos com mercadorias de produção nacional. A baixa do valor da prata decorrente da riqueza das minas, e que gera efeitos iguais, ou quase iguais, na maior parte do mundo 17
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comercial, representa conseqüências insignificantes para cada país em particular. O conseqüente aumento de todos os preços em dinheiro, embora não torne realmente ricos aqueles a quem se pagam tais preços, também, não os torna efetivamente mais pobres. Um conjunto de prataria torna-se assim, de fato, mais barato, mas qualquer outro artigo conserva exatamente o mesmo valor real que tinha anteriormente. Ao contrário, essa baixa de valor da prata que, por ser o efeito da situação peculiar de determinado país, ou das suas instituições políticas, só ocorre no referido país, constitui algo de conseqüências muito grandes; algo que, longe de tender a enriquecer quem quer seja, tende a empobrecer realmente a todos. O aumento do preço em dinheiro de todas as mercadorias, que nesse caso é específico do respectivo país, tende a desestimular, em grau maior ou menor, todo tipo de atividade de trabalho desenvolvida no país, e a possibilitar a nações estrangeiras, pelo fato de fornecerem quase todos os tipos de mercadorias por quantidade menor de prata do que o podem fazer os trabalhadores do próprio país, venderem-nas abaixo do preço, não somente no mercado externo, mas até mesmo no interno. Pelo fato de serem a Espanha e Portugal os proprietários das minas, sua situação especial faz com que sejam eles os distribuidores de ouro e prata a todos os demais países da Europa. Por isso, esses metais devem ser naturalmente algo mais baratos na Espanha e em Portugal do que em qualquer outra região da Europa. Entretanto, a diferença não deve ultrapassar o montante representado pelo frete e pelo seguro; e, em conseqüência do alto valor e do reduzido volume desses metais, o preço de seu frete não é de grande importância e o de seu seguro é o mesmo que o de quaisquer outras mercadorias de igual valor. Nessas condições, a Espanha e Portugal muito pouco sofreriam com sua situação peculiar, se não se agravassem suas desvantagens advindas de suas instituições políticas. A Espanha, por taxar a exportação de ouro e prata, e Portugal, por proibi-la, oneram essa exportação com a despesa de contrabando, provocando o aumento do valor desses metais em outros países tanto mais acima do valor que têm em seu país, no montante total representado por essa despesa. Quando se represa uma corrente de água, tão logo a represa fique cheia, o líquido, por força, transbordará da represa, como se não houvesse represa alguma. A proibição de exportar não pode manter na Espanha e em Portugal uma quantidade de ouro e prata superior àquela que em forma de moeda, prataria, douração e outros ornamentos de ouro e prata. Ao atingirem essa quantidade, a represa está cheia e toda a corrente que flui necessariamente transbordará. Por isso, a exportação anual de ouro e prata da Espanha e Portugal, tudo somado, é praticamente quase igual ao total da importação anual, a despeito de todas essas restrições. Todavia, assim como a água sempre é mais funda atrás do topo da represa do que diante, da mesma forma a quantidade de ouro e prata que essas restrições retêm na Espanha e Portugal deve, em proporção à produção anual 18
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de sua terra e de seu trabalho, ser maior do que a que se pode observar em outros países. Quanto mais alto e mais resistente for o topo da represa, tanto maior deverá ser a diferença de profundidade da água atrás dele e diante dele. Quanto maior for a taxa, tanto maiores são as penalidades que asseguram o cumprimento da proibição, tanto mais vigilante e severo será o policiamento que zela pelo cumprimento das leis, tanto maior deverá ser a diferença na proporção de ouro e prata em relação à produção anual da terra e do trabalho da Espanha e Portugal, e em relação à proporção que se observa em outros países. Por isso, afirma-se que essa diferença é muito grande, e que nesses dois países, com freqüência, existe profusão de prataria nas casas, enquanto nada há que, em outros países, poder-se-ia considerar adequado ou condizente com esse tipo de magnificência. O baixo preço do ouro e da prata ou, o que é a mesma coisa, o alto preço de todas as mercadorias, que constitui o efeito necessário da abundância dos metais preciosos, desestimula tanto a agricultura quanto as manufaturas da Espanha e de Portugal, possibilitando às nações estrangeiras fornecer-lhes muitos tipos de produtos naturais e quase todos os gêneros de manufaturados, por uma quantidade de ouro e prata inferior àquela que eles mesmos têm condições de cultivar ou manufaturar em seu próprio país. A taxa e a proibição operam de duas maneiras diferentes. Elas não somente fazem baixar muito o valor dos metais preciosos na Espanha e Portugal, como também, por reterem nesses países determinada quantidade desses metais, que de outra forma iria para outros países, mantêm o valor do ouro e da prata, nesses outros países, algo acima do valor, que de outra maneira teriam e, com isto, proporcionam a esses países dupla vantagem, em seu comércio com a Espanha e Portugal. Abram-se as comportas da represa, e logo haverá menos água acima e mais água abaixo do topo da represa, e em breve o nível das águas será o mesmo, nos dois locais. Eliminem-se a taxa e a proibição, e se constatará que, assim como diminuirá consideravelmente a quantidade de ouro e prata em Portugal, da mesma forma ela aumentará um tanto em outros países, e logo o valor desses metais, sua proporção em relação à produção anual da terra e do trabalho, se nivelará perfeitamente, ou quase perfeitamente, em todos eles. A perda que a Espanha e Portugal poderiam ter com esta exportação de ouro e prata seria meramente nominal e imaginária. Baixaria o valor nominal de suas mercadorias e da produção anual de sua terra e de seu trabalho, valor que seria expresso ou representado por uma quantidade de prata inferior à anterior; entretanto, o valor real seria o mesmo que antes e suficiente para manter, encomendar e empregar a mesma quantidade de mão-de-obra. Já que baixaria o valor nominal de suas mercadorias, aumentaria o valor real do ouro e da prata que permanecessem nos dois países, e uma quantidade menor desses metais atenderia, contudo, os propósitos objetivos de comércio e de circulação que antes empregavam uma quantidade maior. O ouro e a prata exportados para o exterior não o seriam em troca de nada, mas trariam de volta um 19
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valor igual de mercadorias, de um ou de outro gênero. Essas mercadorias não seriam todas simples objetos de luxo e dispendiosos, a serem consumidos por pessoas ociosas que nada produzem em troca de seu consumo. Assim como essa exportação extraordinária de ouro e prata não aumentaria a riqueza e a renda reais das pessoas ociosas, da mesma forma não faria aumentar muito seu consumo. Provavelmente, essas mercadorias importadas, ao menos a maior parte delas — e com certeza, uma parte delas — consistiriam em materiais, instrumentos de trabalho e provisões para dar emprego e sustento a pessoas trabalhadoras, as quais reproduziriam, com lucro, o valor total de seu consumo. Com isso, parte do estoque inativo da sociedade seria convertida em estoque ativo, pondo em movimento um contingente maior de trabalho do que o antes empregado. A produção anual da terra e do trabalho aumentaria um pouco, de imediato; e dentro de alguns anos, provavelmente, aumentaria muito. Com isso, a atividade do país seria aliviada de um dos pesos mais opressivos que no momento está suspenso sobre ele. O subsídio à exportação de trigo necessariamente opera exatamente da mesma forma que a política absurda da Espanha e de Portugal. Qualquer que seja o estado efetivo da agricultura, ele torna o nosso trigo um pouco mais caro no mercado interno do que aliás o seria nesse estado, e às vezes mais barato no mercado exterior, e dado que o preço médio em dinheiro do trigo regula, em grau maior ou menor, o preço de todas as outras mercadorias, o subsídio faz baixar consideravelmente o valor da prata no mercado interno, tendendo a fazê-lo subir um pouco no externo. Possibilita aos estrangeiros, particularmente aos holandeses, não somente consumir nosso trigo a preço mais baixo do que de outra forma o poderiam fazer, como também, às vezes, a consumi-lo a preço mais baixo do que a nossa própria população nas mesmas ocasiões, como nos assegura exímia autoridade, a do Sr. Matthew Decker. O subsídio impede nossos próprios trabalhadores de fornecerem suas mercadorias por uma quantidade tão pequena de prata quanto aquela pela qual poderiam fazê-lo de outra forma, e possibilita aos holandeses fornecerem as suas por uma quantidade inferior de prata. Ele tende a tornar nossos manufaturados um tanto mais caros em qualquer mercado, e os deles algo mais baratos do que o seriam de outra forma e, conseqüentemente, a dar à atividade deles dupla vantagem sobre a nossa. O subsídio, por aumentar, no mercado interno, não tanto o preço real, mas o preço nominal do nosso trigo, já que aumentando, não a quantidade de mão-de-obra que determinada quantidade de trigo consegue sustentar e empregar, mas somente a quantidade de prata pela qual essa quantidade de trigo pode ser trocada, desestimula os nossos manufatores e, ao mesmo tempo, não presta nenhum serviço considerável aos nossos produtores agrícolas ou aos aristocratas rurais. Sem dúvida, leva um pouco mais de dinheiro ao bolso dos dois, sendo talvez um pouco difícil persuadir a maioria deles de que isso não significa 20
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prestar-lhes um serviço muito relevante. Entretanto, se esse dinheiro baixar de valor, na quantidade de trabalho, gêneros e mercadorias nacionais de todos os tipos que ele consegue comprar, por mais que aumente a quantidade do dinheiro, o serviço não será muito mais do que simplesmente nominal e imaginário. Talvez só haja em toda a comunidade um grupo de pessoas para as quais o subsídio foi, ou poderia ser, basicamente útil. Trata-se dos comerciantes de trigo, exportadores e os importadores desse produto. Em anos de fartura, o subsídio forçosamente gerou uma exportação maior do que a que teria normalmente ocorrido; e por impedir que a abundância de um ano aliviasse a escassez de outro, em anos de escassez o subsídio gerou uma importação superior à que normalmente teria sido necessária. Os negócios dos comerciantes de trigo aumentaram tanto em anos de fartura como em anos de escassez; e, em anos de escassez, não somente lhes possibilitou importar uma quantidade maior, mas também vendê-la a preço mais alto e, conseqüentemente, com lucro superior ao que poderiam ter auferido normalmente, caso não se tivesse impedido, em grau maior ou menor, que a fartura de um ano aliviasse a escassez de outro. Eis por que tem sido entre esse grupo de pessoas que tenho observado o maior zelo no sentido da continuidade ou da renovação do subsídio. Nossos aristocratas rurais, ao imporem as altas taxas aduaneiras à importação de trigo estrangeiro — taxas que, em épocas de abundância moderada, equivalem a uma proibição — e ao estabelecer o subsídio, parecem ter limitado a conduta dos nossos manufatores. Por meio do primeiro expediente, asseguraram para si mesmos o monopólio do mercado interno e, por meio do segundo, procuraram impedir o acúmulo excessivo de seu produto nesse mercado. Mediante os dois expedientes, procuraram aumentar o valor real da mercadoria, da mesma forma que os nossos manufatores haviam feito aumentar, mediante as mesmas instituições, o valor real de muitos tipos diversos de bens manufaturados. Talvez não tenham atentado para a diferença grande e essencial que a natureza estabeleceu entre o trigo e quase todos os outros tipos de mercadorias. Quando, através do monopólio do mercado interno, ou mediante um subsídio à exportação, nossos manufatores de lã ou de linho têm a possibilidade de vender suas mercadorias por um preço algo superior ao que normalmente poderiam conseguir, aumenta-se não somente o preço nominal dessas mercadorias, mas também seu preço real. Faz-se com que essas mercadorias equivalham a uma quantidade maior de trabalho e de subsistência, aumenta-se não somente o lucro nominal mas também o lucro real, a riqueza e a renda reais desses manufatores, dando-se-lhes a possibilidade de manterem eles mesmos um padrão de vida melhor ou de empregar um contingente maior de mão-de-obra nessas manufaturas específicas. Dá-se um estímulo real a essas manufaturas, dirigindo para elas uma quantidade de trabalho do país superior à que provavelmente seria canalizada 21
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para elas espontaneamente. Entretanto, quando, através de tais instituições, aumenta-se o preço nominal do trigo, ou seu preço em dinheiro, não se aumenta o seu valor real. Não se aumenta a riqueza real, a renda real dos nossos agricultores ou dos nossos aristocratas rurais. Não se estimula o cultivo do trigo, porque não se oferecem àqueles possibilidades de manter e empregar mais trabalhadores no cultivo do trigo. A própria natureza das coisas imprimiu ao trigo um valor real que não pode ser mudado simplesmente alterando seu preço em dinheiro. Nenhum subsídio à exportação, nenhum monopólio do mercado interno é capaz de aumentar esse valor real. Nem a máxima liberdade de concorrência consegue baixar esse preço. Em todo o mundo, em geral, este valor real é igual ao contingente de mão-de-obra que ele é capaz de sustentar e, em cada lugar específico, esse preço é igual à quantidade de mão-de-obra que ele tem condições de manter, da maneira liberal, frugal ou deficiente — segundo a qual a mão-de-obra costuma ser mantida naquele local. Os tecidos de lã ou de linho não constituem as mercadorias reguladoras pelas quais se possa medir e determinar, em última análise, o valor real de todas as demais mercadorias; o trigo, sim. O valor real de qualquer outra mercadoria é, em suma, medido e determinado pela proporção que seu preço médio em dinheiro mantém em relação ao preço médio do trigo em dinheiro. O valor real do trigo não muda com essas variações em seu preço médio em dinheiro que, às vezes, ocorrem de um século para outro. É o valor real da prata que muda de acordo com essas variações. Os subsídios à exportação de qualquer mercadoria produzida no país estão sujeitos, em primeiro lugar, a essa objeção geral que se pode fazer a todos os expedientes propostos pelo sistema mercantil, isto é, a objeção de dirigir forçadamente parte da atividade do país para um canal menos vantajoso do que aquele para o qual ela se encaminharia espontaneamente; em segundo lugar, à objeção específica de forçarem determinada parte da atividade do país não somente para um canal menos vantajoso, mas efetivamente desvantajoso, já que o comércio que não pode ser efetuado através de um subsídio, necessariamente representará uma perda. O subsídio à exportação de trigo está sujeito a outra objeção: sob nenhum aspecto ele tem condições de fomentar o cultivo dessa mercadoria específica, cuja produção pretendia estimular, por sua natureza. Quando, pois, os nossos aristocratas rurais exigiram a criação do subsídio, embora tenham agido à imitação dos nossos comerciantes e manufatores, não mostraram aquela compreensão plena de seu próprio interesse, que geralmente inspira a conduta daquelas duas classes de pessoas. Oneraram a receita pública com uma despesa muito elevada; impuseram uma taxa pesadíssima a toda a população; todavia, não aumentaram, em grau sensível, o valor real de sua própria mercadoria; e ao fazer baixar um pouco o valor real da prata, desestimularam, até certo ponto, a atividade geral do país e, em vez de contribuir para adiantar o aprimoramento de suas terras, retardaram-no, em grau maior ou menor — uma vez que esse apri22
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moramento da terra depende da atividade geral do país. Poder-se-ia imaginar que, para estimular a produção de uma mercadoria, um subsídio à produção teria efeitos mais diretos do que um subsídio à exportação. Além disso, esse subsídio imporia apenas uma taxa à população, aquela que teria que recolher para pagar o subsídio. Em vez de fazer aumentar o preço da mercadoria no mercado interno, tenderia a fazê-lo baixar; e, com isso, em vez de impor uma segunda taxa à população, esse subsídio à produção poderia, ao menos em parte, restituir à população o que pagara pela primeira. Entretanto, têm sido muito raros os subsídios concedidos à produção. Os preconceitos criados pelo sistema comercial nos levaram a crer que a riqueza nacional provém mais imediatamente da exportação do que da produção. Por isso, a exportação tem sido mais favorecida como meio mais imediato para trazer dinheiro ao país. Tem-se alegado também que, com base na experiência, os subsídios à produção se prestam mais a fraudes do que os concedidos à exportação. Ignoro até que ponto tal afirmação seja correta. Que se tem abusado dos subsídios à exportação para muitos objetivos fraudulentos é um fato bem conhecido. Todavia, não é do interesse dos comerciantes e dos manufatores — os grandes inventores desses expedientes — que suas mercadorias saturem o mercado interno, fato esse que, às vezes, poderia ser gerado por um subsídio concedido à produção. Um subsídio à exportação, que lhes possibilita a exportação do excedente, bem como manter o preço do remanescente no mercado interno, evita eficazmente que ocorra essa saturação. Dentre todos os expedientes do sistema mercantil, portanto, o subsídio à exportação é o que mais agrada aos comerciantes e aos manufatores. Ouvi dizer que os diversos empresários de algumas manufaturas específicas concordaram particularmente entre si em dar de seu próprio bolso um subsídio à exportação de certa porcentagem das mercadorias com que transacionavam. Esse expediente teve tal sucesso que o preço de suas mercadorias no mercado interno aumentou mais que o dobro, a despeito de um aumento bastante considerável da produção. O efeito do subsídio ao trigo deve ter sido maravilhosamente diferente, se conseguiu fazer baixar o preço em dinheiro dessa mercadoria. Em algumas ocasiões especiais concedeu-se algo semelhante a um subsídio à produção. Talvez os subsídios de tonelagem concedidos à pesca do arenque branco e da baleia possam ser considerados como algo desse gênero. É lícito supor que eles tendem, diretamente, a tornar as mercadorias mais baratas no mercado interno do que normalmente. Sob outros aspectos — deve-se reconhecê-lo — seus efeitos são os mesmos que os dos subsídios à exportação. Eles permitem que parte do capital do país seja empregada em comercializar mercadorias cujo preço não cobre o custo, juntamente com o lucro normal do estoque. Entretanto, embora os subsídios de tonelagem concedidos a esses tipos de pesca não contribuam para a riqueza da nação, pode-se talvez pensar que contribuam para a defesa do país, por aumentar o número de seus marinheiros e da esquadra naval. Alegar-se-á que isso, às vezes, pode 23
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ser conseguido através de tais subsídios, com uma despesa muito menor do que mantendo em caráter permanente uma grande esquadra — se me for lícito usar uma expressão — da mesma forma que se mantém um exército efetivo. Não obstante essa alegação favorável, porém, as considerações que se seguem me levam a crer que, na concessão de pelo menos um desses subsídios, os legisladores foram vítimas de grosseiro engano. Em primeiro lugar, o subsídio ao pequeno barco para a pesca de arenques parece muito grande. Desde o início da pesca de inverno de 1771, até ao final dessa pesca, em 1781, o subsídio por tonelagem concedido à pesca de arenque com aquele barco tem sido de 300 xelins por tonelada. Durante esses onze anos, o número total de barris dessa maneira conseguidos na Escócia foi de 378 347. Os arenques apanhados e curados no mar são denominados coisas fisgadas no mar. Para transformá-los naquilo que se denomina arenques comerciáveis, é necessário reembalá-los com uma quantidade adicional de sal; nesse caso, calcula-se que 3 barris de arenque costumam ser reembalados em 2 barris de arenques comercializáveis. Com isso, o número de arenques comercializáveis, apanhados durante esses onze anos, não passará de 252 231 1\3, segundo esse cômputo. Durante esses onze anos, os subsídios por tonelagem pagos montaram a £ 155 463 11 s, ou seja, 8 s 2 1/4 d por barril de coisas fisgadas no mar, e a 12 s 3 3/4 d por barril de arenques comercializáveis. O sal com o qual se curam esses arenques às vezes é escocês e às vezes estrangeiro, sendo ambos fornecidos isentos de qualquer imposto de consumo para os curadores. O imposto de consumo para o sal escocês é atualmente de 1 s 6 d, e o imposto sobre o sal estrangeiro é de 10 xelins por bushel. Supõe-se que um barril de arenques requer, aproximadamente, 1 1/4 de um bushel de sal estrangeiro. Tratando-se de sal escocês, supõe-se que a média exigida é de 2 bushels. Se os arenques são destinados à exportação, não se salda nenhuma parte desse imposto; se forem destinados ao consumo interno, paga-se apenas 1 xelim por barril, tanto no caso de cura com sal estrangeiro como com sal escocês. Isso correspondia ao antigo imposto escocês para um bushel de sal — quantidade que, numa estimativa por baixo, se considerava necessária para curar um barril de arenques. Na Escócia, o sal estrangeiro é muito pouco usado para outras finalidades que não seja a cura de peixe. Entretanto, de 5 de abril de 1771 até 5 de abril de 1782, a quantidade de sal importado ascendeu a 936 974 bushels, ao preço de 84 libras por bushel, ao passo que a quantidade de sal escocês fornecida pelos produtores aos curadores de peixe não passou de 168 226 bushels, custando apenas 56 libras por bushel. Pareceria, portanto, que na pesca se usa sobretudo sal estrangeiro. Além disso, sobre cada barril de arenque exportado pesa um subsídio de 2 s 8 d, sendo que mais de 2/3 dos arenques apanhados pelos barcos já referidos são exportados. Tudo somado ver-se-á que, durante esses onze anos, cada barril dos arenques apanhados por aqueles barcos, curados com 24
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sal escocês, ao ser exportado, custou ao Governo 17 s 11 3/4 d; e, se destinado ao consumo interno, cada barril custou ao Governo 14 s 3 3/4 d. Constatar-se-á, outrossim, que cada barril de arenque curado com sal estrangeiro, ao ser exportado, custou ao Governo £ 1 7 s 5 3/4 d; e, se destinado ao consumo interno, £ 1 3 s 9 3/4 d. O preço de um barril de arenques comercializáveis de boa qualidade oscila entre 17 ou 18 e 24 ou 25 xelins: 1 guinéu, em média.1 Em segundo lugar, o subsídio à pesca de arenque branco é um subsídio por tonelagem, proporcional à carga do navio, não à sua diligência ou sucesso na pesca; ora, temo que tenha sido muito comum navios aparelharem-se para o único fim de apanhar não o peixe, mas o subsídio. No ano de 1759, quando o subsídio era de 50 xelins por tonelada, todo barco de pesca de arenques da Escócia conseguiu apanhar apenas 4 barris de coisas fisgadas no mar. Naquele ano, cada barril delas custou ao Governo, somente em subsídios, £ 113 15 s; e cada barril de arenques comercializáveis custou £ 159 7 s e 6 d. Em terceiro lugar, a modalidade de pesca para a qual se concedeu esse subsídio por tonelagem na pesca do arenque branco (por aqueles barcos ou navios providos de convés de 20 a 80 toneladas de carga) não parece tão indicada para a localização da Escócia quanto para a da Holanda — já que foi neste país que a prática parece ter-se inspirado. A Holanda está localizada a grande distância dos mares aos quais, como se sabe, acodem principalmente os arenques; por conseguinte, ela só consegue efetuar tal pesca em navios com convés, os quais têm condições de carregar água e provisão suficientes para viagens a mares distantes. Ora, as Hébridas ou ilhas ocidentais, as ilhas de Shetland e as costas do norte e do noroeste da Escócia — regiões em cuja proximidade mais se pratica a pesca de arenques — são em toda parte entrecortadas por braços de mar que se aprofundam bastante na terra e que, na língua do país, se denominam sea-lochs. É sobretudo para esses braços de mar que os arenques se dirigem durante as estações em que visitam esses mares — já que as visitas desse peixe, e, como estou certo, de muitos outros tipos de peixe, não são muito regulares e constantes. Por conseguinte, a modalidade de pesca mais indicada para a localização específica da Escócia parece ser a pesca em bote uma vez que os pescadores podem trazer os arenques à praia logo depois de apanhá-los, para serem curados ou então consumidos frescos. Assim sendo, o grande estímulo que um subsídio de 30 xelins por tonelada concede à pesca com os pequenos barcos mencionados necessariamente constitui um desestímulo para a pesca com bote o qual, por não ter subsídio algum, não está em condições de comercializar seu peixe defumado ao mesmo preço que a pesca com aqueles barcos. Por isso, a pesca com bote que antes da criação do subsídio para a pesca era muito considerável, com os barcos de 50 a 70 toneladas 1
Ver os cálculos no fim do volume. 25
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chegando a empregar um contingente de marinheiros não inferior ao atualmente utilizado pela pesca com aqueles barcos hoje caiu quase totalmente em desuso. Devo reconhecer, porém, que não tenho dados para falar com muita precisão sobre a extensão anterior desse tipo de pesca, atualmente em péssimas condições e abandonada. Por não se pagar nenhum subsídio sobre os equipamentos da pesca com bote, os oficiais encarregados da cobrança das taxas alfandegárias ou dos impostos do sal não anotaram os dados relativos. Em quarto lugar, em muitas regiões da Escócia, durante certas estações do ano, os arenques constituem parte relevante da alimentação do povo. Um subsídio tendente a baixar o preço dos arenques no mercado interno poderia contribuir bastante para aliviar grande parte de nossos concidadãos, cuja situação financeira de maneira alguma é satisfatória. Entretanto, o subsídio concedido à pesca do arenque com pequenos barcos não contribui para essa boa finalidade. Ele arruinou a pesca com bote, que é, de longe, a mais propícia para suprir o mercado interno, sendo que o subsídio adicional de 2 s 8 d por barril, para a exportação, faz com que a maior parte, mais de 2/3 da produção da pesca pelos pequenos barcos, seja enviada ao exterior. Foi-me assegurado que, há 30 ou 40 anos, antes da concessão do subsídio à pesca com aqueles pequenos barcos, o preço normal do arenque branco era de 16 xelins por barril. Há 10 ou 15 anos, antes que a pesca com bote fosse totalmente à ruína, afirma-se que o preço disparou de 17 para 20 xelins por barril. Durante os cinco últimos anos, em média, o barril de arenque branco tem custado 25 xelins. Todavia, esse alto preço pode ser devido à escassez real de arenques na costa escocesa. Além disso, devo observar que o barril ou pipa, que costuma ser vendido juntamente com os arenques, e cujo preço está incluído em todos os preços acima mencionados aumentou, desde o início da guerra americana, o dobro em relação ao preço anterior, ou de cerca de 3 xelins para aproximadamente 6. Devo também observar que os dados que recebi sobre os preços de anos anteriores de forma alguma têm sido perfeitamente uniformes e concordantes; um cidadão idoso, de grande perspicácia e experiência, assegurou-me que, há mais de 50 anos, o preço normal de um barril de arenques comercializáveis de boa qualidade era de 1 guinéu; calculo que esse deva ser ainda considerado o preço médio. Entretanto, acredito que todos os cálculos concordam em admitir que o preço não baixou no mercado interno, em conseqüência do subsídio concedido à pesca do arenque pelos pequenos barcos a isso especialmente destinados. Se os empresários da pesca, depois de obterem subsídios tão generosos, continuam a vender sua mercadoria ao mesmo preço, ou até a preços mais caros do que anteriormente costumavam fazer, deverse-ia esperar que seus lucros fossem muito elevados; e não é improvável que o tenham sido para alguns. No geral, porém, tenho todas as razões para crer que a realidade foi bem diferente. O efeito habitual de tais subsídios é estimular empresários precipitados a aventurar-se em um 26
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negócio de que não entendem, e o que perdem pela própria negligência e ignorância compensa demasiadamente tudo o que podem ganhar pela extrema liberalidade do Governo. Em 1750, a mesma lei que pela primeira vez concedeu o subsídio de 30 xelins por tonelada para o estímulo da pesca do arenque branco (Decreto 23 de Jorge II, capítulo 24) instituiu uma sociedade anônima com um capital de 500 mil libras. Os que subescreveram capital (além de todos os outros estímulos, o subsídio por tonelagem, acima mencionado, o subsídio de exportação de 2 s 8 d por barril, o fornecimento de sal britânico e sal estrangeiro com isenção de impostos) tinham direito durante o período de 14 anos — por 100 libras esterlinas que subscreviam e integralizavam ao capital da sociedade — a 3 libras esterlinas por ano, a serem pagas pelo oficial encarregado das rendas públicas alfandegárias em parcelas semestrais iguais. Além disso, essa grande sociedade, cujos governador e diretores residiam em Londres, foi legalmente autorizada a erigir diferentes câmaras de pesca em todos os portos a alguma distância da sede comercial do reino, desde que se subscrevesse uma soma não inferior a 10 mil libras ao capital de cada uma delas, a ser administradas com risco próprio, e correndo por sua conta seus próprios lucros e perdas. A essas câmaras inferiores outorgaram-se a mesma unidade e os mesmos estímulos de todos os tipos que à citada grande sociedade. A subscrição do capital da grande empresa logo foi coberta, erigindo-se várias câmaras de pesca nos diversos portos acima mencionados. A despeito de todos esses estímulos, quase todas essas empresas, tanto as grandes como as pequenas, acabaram perdendo a totalidade de seu capital ou a maior parte dele; hoje, dificilmente se encontra qualquer vestígio de alguma delas e, atualmente, a pesca do arenque branco é inteira ou quase inteiramente feita por aventureiros privados. Sem dúvida, se algum manufaturado especial se tornasse necessário para a defesa da sociedade, nem sempre, possivelmente, seria prudente permitir que o suprimento dependesse de nossos vizinhos; e, se não houvesse outro meio para fomentar essa atividade no país, possivelmente não seria irracional impor uma taxa a todos os outros setores de atividade nacional, a fim de mantê-la. Com base nesse princípio, talvez se possa justificar os subsídios à exportação de pano para velas produzido na Grã-Bretanha e de pólvora produzida neste país. Entretanto, embora seja muito raro o caso em que se possa razoavelmente taxar a atividade da grande massa da população, a fim de apoiar a atividade de alguma determinada categoria de manufatores — não obstante na situação de desregramento da grande prosperidade, quando o público desfruta de uma renda tão alta, que não sabe bem o que fazer com ela —, a concessão de tais subsídios a manufaturas preferenciais pode, talvez, representar um expediente tão natural quanto incorrer em qualquer outro gasto ocioso. No setor dos gastos públicos, assim como no dos gastos privados, muitas vezes, talvez, a grande riqueza pode ser admitida como uma escusa por uma grande insensatez. 27
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Todavia, no caso de sobrevirem tempos de dificuldade e miséria, seria mais do que um absurdo continuar a gastar em profusão. O que se denomina subsídio, às vezes não passa de um drawback e, conseqüentemente, não está sujeito às mesmas objeções contra um subsídio propriamente dito. Por exemplo, o subsídio ao açúcar refinado exportado pode ser considerado uma recuperação das taxas alfandegárias cobradas na importação dos açúcares mascavo ou não refinado, dos quais se produz o açúcar refinado. O subsídio concedido à seda trabalhada exportada pode ser considerado como uma recuperação das taxas alfandegárias pagas na importação da seda bruta torcida. O subsídio para a pólvora exportada, uma recuperação das taxas pagas na importação do enxofre e do salitre. Na linguagem alfandegária, só se denominam drawbacks os concedidos às mercadorias exportadas, da mesma forma em que foram importadas. Quando essa forma foi alterada, por qualquer tipo de manufatura, a ponto de receber outra denominação, fala-se de subsídios. Os prêmios conferidos pelo público a artistas e a manufatores que sobressaem em sua profissão especializada não estão sujeitos às mesmas objeções que os subsídios. Por estimularem destreza, habilidade e talento extraordinários, esses prêmios servem para manter a emulação dos trabalhadores efetivamente empregados em suas respectivas ocupações, não sendo consideradas suficientemente importantes para reservar a alguma delas a parte do capital do país superior àquela que nelas fluiria espontaneamente. Tais prêmios não tendem a alterar o equilíbrio natural das ocupações, mas antes a fazer com que o trabalho realizado em cada uma delas seja o mais perfeito e completo possível. Além disso, os gastos com prêmios são muito pequenos, ao passo que os gerados pelos subsídios bastante elevados. Somente o subsídio ao trigo, às vezes, chegou a custar ao público, em um ano, mais de 300 mil libras. Assim como os drawbacks por vezes são chamados subsídios, os subsídios às vezes são chamados prêmios. Mas devemos, em todos os casos, atentar para a natureza da coisa, sem levar absolutamente em consideração a palavra. DIGRESSÃO SOBRE O COMÉRCIO DE CEREAIS E A LEGISLAÇÃO SOBRE OS CEREAIS Não posso concluir este capítulo relativo aos subsídios sem observar que são totalmente imerecidos os elogios que se têm dispensado à lei que cria o subsídio para a exportação de trigo, bem como ao sistema de medidas relacionadas com essa lei. Um estudo específico sobre a natureza do comércio de trigo e das principais leis britânicas referentes ao assunto demonstrará suficientemente a veracidade dessa afirmação. A grande importância desse assunto deve justificar a prolixidade da digressão. A atividade do comerciante de trigo engloba quatro setores dis28
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tintos de atividade, as quais embora às vezes possam ser executadas todas pela mesma pessoa, constituem, por sua própria natureza, quatro ocupações separadas e distintas. São elas: primeiro, a atividade do agente de comercialização interna; segundo, a do comerciante que importa para o consumo interno; terceiro, a do comerciante que exporta produtos nacionais para o consumo externo; e quarto, a do comerciante que executa o transporte, ou seja, daquele que importa trigo para reexportá-lo. I. Por mais que pareçam, à primeira vista, opor-se o interesse do agente interno de comercialização, e o da população em geral, eles são exatamente os mesmos até em anos da maior escassez. O primeiro tem interesse em aumentar o preço tanto quanto o exigir a escassez real da estação, e ele jamais pode ter interesse em tornar um preço mais alto do que isso. Ao aumentar o preço, ele desestimula o consumo, obrigando a todos, em grau maior ou menor, e de modo especial as classes inferiores da população a zelar pela parcimônia e pela boa administração. Se, aumentando demais o preço, desestimular o consumo a tal ponto que o estoque da estação provavelmente ultrapasse o consumo da estação, e se prolongar ainda durante algum tempo depois de começar a nova safra, ele corre o risco não somente de perder parte considerável de seu trigo por causas naturais, mas também de ser obrigado a vender o restante por muito menos do que poderia ter recebido vários meses antes. Se, por não aumentar suficientemente o preço, desestimular tão pouco o consumo que o estoque da estação, provavelmente, fique abaixo do consumo da estação, não somente perderá parte do lucro que, de outra forma, poderia ter auferido, como também exporá a população a sofrer antes do término da estação, em vez das durezas de uma carestia, os temíveis horrores da fome. Por outra parte, a população tem interesse em que seu consumo diário, semanal e mensal seja o mais exatamente possível proporcional ao estoque fornecido pela estação. O interesse do agente de comercialização interna é o mesmo. Ao suprir a população nessa proporção, com a maior precisão que tem condições de calcular, ele tem probabilidades de vender todo o seu estoque de trigo pelo preço mais alto e com o máximo de lucro; e o conhecimento que ele tem das condições de safra, bem como das suas vendas diárias, semanais e mensais, o capacita a discernir, com maior ou menor exatidão, até que ponto o suprimento da população ocorre nessa proporção correta. Sem visar aos interesses da população, a consideração de seus próprios interesses leva-o a tratá-la, mesmo em anos de escassez, mais ou menos da mesma forma como o prudente capitão de um navio, às vezes, é obrigado a tratar sua tripulação. Quando prevê que os mantimentos podem escassear, estabelece um racionamento para a tripulação. Embora, por excesso de cautela, ele às vezes possa fazer isso sem necessidade real, todos os inconvenientes que sua tripulação pode sofrer tornam-se, assim, irrelevantes, em comparação com o perigo, a miséria e a ruína a que, 29
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por vezes, poderia ficar exposta no caso de ele agir com menos espírito de previdência. Da mesma forma, embora por excesso de avareza, o agente de comercialização interna de trigo possa, às vezes, aumentar o preço de seu trigo algo acima do exigido pela escassez da estação, ainda assim todos os inconvenientes que a população pode sofrer em decorrência dessa conduta, que lhe dá a segurança efetiva de não ser vitimada pela fome no final da estação, são de menor importância em comparação com aquilo a que a população poderia ter sido exposta, se o comerciante tivesse agido com maior liberalidade no início da estação. Se o comerciante de cereais se exceder na avareza, provavelmente será ele o mais prejudicado: não somente pela indignação que isso costuma causar contra ele, mas, mesmo que ele escapasse aos efeitos dessa indignação, devido à quantidade de trigo que permanecerá em seu estoque no final da estação — estoque esse que, se a estação seguinte for propícia, ele será sempre obrigado a vender por um preço muito abaixo àquele que, de outra forma, poderia ter alcançado. Sem dúvida, se fosse possível a uma grande companhia de comerciantes possuir ela própria toda a safra de um país extenso, talvez ela pudesse ter interesse em fazer com esta o que, como se diz, fazem os holandeses com as especiarias das Molucas, isto é, destruir ou jogar fora parte considerável dela, a fim de manter alto o preço do estoque remanescente. Entretanto, é muito pouco possível, mesmo valendo-se da violência da lei, criar um monopólio tão grande no tocante aos cereais; onde quer que a lei permita o livre comércio, os cereais constituem, dentre todas as mercadorias, as menos sujeitas a ser açambarcadas ou monopolizadas pela força de alguns poucos grandes capitais que possam comprar a maior parte da safra. Não somente seu valor supera de muito o que o capital de alguns poucos particulares é capaz de comprar, senão que, mesmo na hipótese de serem eles capazes de adquiri-la, a maneira como os cereais são produzidos torna totalmente impraticável essa compra. Assim como em todo país civilizado o trigo constitui a mercadoria de maior consumo anual, da mesma forma emprega-se um volume maior de trabalho por ano em produzir cereais do que qualquer outra mercadoria. Além disso, no momento em que os cereais são colhidos, necessariamente são divididos entre um número maior de proprietários do que como acontece com qualquer outra mercadoria; ora, nunca é possível reunir esses proprietários em um único lugar, como um determinado número de manufatores independentes, pois forçosamente estão espalhados por todos os recantos do país. Esses primeiros proprietários suprem diretamente os consumidores localizados em sua própria redondeza ou suprem outros comerciantes internos, que abastecem esses consumidores. Conseqüentemente, os comerciantes internos de trigo, incluindo o agricultor e o padeiro, são necessariamente mais numerosos do que os comerciantes de qualquer outra mercadoria, e o fato de estarem dispersos pelo país faz com que lhes seja totalmente impossível ingressar em qualquer associação geral. Por isso se, em um ano de escassez, algum deles considerasse ter em mãos 30
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muito mais trigo do que a quantidade que poderia vender ao preço corrente antes do fim da estação, ele jamais pensaria em manter esse preço, em seu próprio prejuízo, beneficiando exclusivamente seus rivais e concorrentes, mas imediatamente baixaria o preço, para livrar-se de seu estoque antes que começasse a nova safra. Assim, os mesmos motivos, os mesmos interesses que pautariam a conduta de qualquer outro comerciante, regulariam a conduta de qualquer outro, obrigando a todos em geral a venderem seus cereais ao preço que, segundo seu discernimento mais esclarecido, melhor se coadunasse com a escassez ou a abundância da estação. Quem quer que examine atentamente a história das fases de miséria e penúria de víveres que têm afligido qualquer região da Europa, no decurso do presente século ou dos dois séculos anteriores — sendo que de várias delas possuímos relatos bastante precisos — constatará, como creio, que jamais uma carestia se originou de uma associação ou conluio entre os comerciantes internos de trigo, nem de qualquer outra causa que não fosse uma escassez real, resultante, por vezes, ocasionalmente, em determinados lugares, da devastação da guerra, porém, na grande maioria dos casos, das estações pouco favoráveis; constatará igualmente que uma fome geral nunca se originou de outra causa senão da violência do Governo, que, na tentativa de remediar os inconvenientes de uma carestia, recorreu a meios inadequados. Em um país produtor de trigo e de grande extensão, se entre todas as suas regiões existir liberdade de comércio e de comunicação, a escassez gerada pelas estações mais desfavoráveis nunca pode ser tão grande a ponto de provocar uma fome, por outro lado, a colheita mais precária, se administrada com parcimônia e economia, será capaz de sustentar, através do ano, o mesmo número de pessoas que se alimentam com maior abundância com uma colheita mais farta. As estações mais desfavoráveis para a colheita são as de seca excessiva ou de chuvas excessivas. Entretanto, já que o trigo se desenvolve de maneira igual tanto em terras altas como em terras baixas, em solos de natureza mais úmida e em solos de natureza mais seca, a seca ou o excesso de chuva, que são prejudiciais para uma parte do país, são favoráveis para outra; e, embora tanto na estação de secas como na estação chuvosa, a colheita seja bastante menos abundante do que em uma estação mais favorável, acontece que nessas duas estações desfavoráveis, o que se perde em uma região do país, de certo modo é compensado pelo que se ganha em outra. Nos países produtores de arroz, onde a colheita não somente requer um solo muito úmido, e onde também, durante um determinado período do cultivo, o arroz deve crescer debaixo d’água, os efeitos de uma seca são muito mais funestos. Não obstante isso, mesmo em tais países, a seca talvez dificilmente seja alguma vez tão generalizada a ponto de provocar necessariamente uma fome, se o Governo permitir o livre comércio. A seca de Bengala, há alguns anos, poderia provavelmente ter provocado uma carestia muito grande. Possivelmente, algumas medidas inadequadas, 31
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algumas restrições pouco sensatas impostas pelos empregados da Companhia das Índias Orientais ao comércio do arroz tenham contribuído para transformar essa carestia em uma fome generalizada. Quando o Governo, para remediar os inconvenientes de uma carestia, ordena a todos os comerciantes que vendam seu trigo a um preço que ele presume razoável, de duas uma: ou os impede de comercializá-lo — o que, às vezes, pode produzir fome, mesmo no início da estação — ou, se os comerciantes levam o trigo ao mercado, o Governo dá condições à população — e com isso a estimula a fazê-lo — de consumir o estoque tão rapidamente, que inevitavelmente haverá fome antes do fim da estação. A liberdade ilimitada e irrestrita de comercializar cereais não só constitui a única medida eficazmente preventiva das agruras da fome, como também representa o melhor paliativo para os inconvenientes de uma carestia; com efeito, os inconvenientes de uma real escassez não podem ser remediados; para eles só existem medidas paliativas. Não há nenhuma atividade que mereça mais a plena proteção da lei, nenhuma que exija tanto; e isso porque nenhuma outra atividade está tão exposta à reprovação popular. Em anos de escassez, as classes inferiores do povo atribuem sua penúria à avareza do comerciante de trigo, que se torna objeto de seu ódio e de sua indignação. Por isso, em vez de beneficiar-se em tais ocasiões, ele muitas vezes corre o perigo de se arruinar totalmente e de ter seus depósitos saqueados e destruídos pela violência do povo. Ora, é em anos de escassez, quando os preços aumentam, que o comerciante de trigo espera obter mais lucro. Ele geralmente mantém contrato com alguns produtores, que se comprometeram a fornecer-lhe, durante certo número de anos, determinada quantidade de cereais, a determinado preço. Esse preço de contrato é estabelecido de acordo com o que se supõe ser o preço moderado e razoável, isto é, o preço normal ou médio — preço esse que, antes dos recentes anos de escassez, girava em torno de 28 xelins por quarter de trigo, sendo proporcional a ele o preço de outros cereais. Em anos de escassez, portanto, o comerciante de cereais compra grande parte de seu estoque pelo preço normal, vendendo-o por um preço muito mais alto. Entretanto, parece bastante óbvio que esse lucro extraordinário não é mais do que suficiente para colocar a atividade do comerciante de cereais em decente pé de igualdade com a de outros profissionais e, para compensar as muitas perdas que ele sofre em muitas ocasiões, tanto em virtude da natureza perecível da própria mercadoria, como em decorrência das freqüentes e imprevisíveis flutuações do seu preço. Para demonstrar isso, basta atentar para um único fato: é tão raro acumular grandes fortunas, com esse tipo de comércio quanto com qualquer outro. Entretanto, o ódio popular, gerado por esse tipo de comércio em anos de escassez — os únicos em que esse negócio pode proporcionar grandes lucros — faz com que pessoas de caráter e de posses nutram aversão em engajar-se nesse tipo de comércio. Ele fica entregue a uma classe inferior de comerciantes; conseqüentemente, 32
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os moleiros, padeiros, negociantes de farinha, juntamente com alguns abomináveis mascates, constituem mais ou menos as únicas pessoas em condição média que, no mercado interno, agem como intermediárias entre o produtor e o consumidor. A antiga política da Europa, em vez de desencorajar esse ódio popular contra uma profissão tão benéfica para o público, parece haver feito o contrário, autorizando-o e estimulando-o nesse sentido. Os Decretos 5 e 6 de Eduardo VI, capítulo 14, determinaram que toda pessoa que comprasse trigo ou quaisquer cereais com a intenção de revendê-los fosse considerada um açambarcador ilegal, devendo, na primeira falta, passar dois anos na prisão e pagar com multa o valor dos cereais; na segunda falta, a pena imposta era de seis meses de prisão e o pagamento em dobro do valor dos cereais; na terceira falta, era colocado no pelourinho, acrescendo a prisão por um período ao arbítrio do rei, pagando com multa todos os seus haveres. E a antiga política da maior parte dos outros países europeus não era melhor que a da Inglaterra. Nossos antepassados parecem ter imaginado que a população compraria seu trigo mais barato do agricultor do que do comerciante intermediário; receavam que o intermediário exigisse, além do preço por ele pago ao agricultor, um lucro exorbitante para si mesmo. Por isso, procuravam aniquilar totalmente esse tipo de comércio. Empenhavam-se até mesmo em impedir, o mais possível, que qualquer pessoa de condição média agisse como intermediário entre o produtor e o consumidor, era esse o sentido das muitas restrições que se impunham à profissão daqueles que denominavam kidders ou transportadores de cereais, profissão que a ninguém era lícito exercer sem uma licença que atestasse sua qualificação como pessoa de probidade e de conduta honesta. Pelo Estatuto de Eduardo VI, exigia-se a autoridade de três juízes de paz para outorgar essa licença. Entretanto, mesmo essa restrição foi, posteriormente, considerada insuficiente, e, por Estatuto de Isabel, o privilégio de conceder essa licença foi limitado a uma corte local que se reunia trimestralmente com jurisdição criminal restrita, além de autoridade em processos ordinários civis. A antiga política européia procurava assim regular a agricultura — a grande profissão do campo — com normas totalmente diversas das estabelecidas para as manufaturas, a grande ocupação das cidades. Ao não permitir ao produtor agrícola ter outros clientes, a não ser os próprios consumidores ou seus agentes imediatos, os kidders e transportadores de cereais, essa política visava a forçar o produtor a exercer não somente a profissão de produtor, mas também a de comerciante ou varejista de cereais. Ao contrário, em se tratando do manufator, ela em muitos casos o proibia de exercer a profissão de lojista ou de vender suas próprias mercadorias no varejo. Através de uma lei, tencionava-se promover o interesse geral do campo, ou seja, baratear o trigo, talvez sem compreender bem como isso tinha que ser feito. Através da outra lei, tencionava-se promover o interesse de uma categoria 33
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específica de pessoas, os lojistas, em comparação com os quais os manufatores poderiam vender tão barato — assim se supunha — que os lojistas iriam à ruína caso se permitisse aos manufatores venderem no varejo. O manufator, porém, mesmo que se lhe permitisse manter uma loja e vender suas próprias mercadorias no varejo, não poderia ter vendido por preço inferior ao lojista comum. Qualquer que fosse a parcela de capital que ele pudesse investir em sua loja, tinha que tirá-la de sua manufatura. A fim de poder efetuar seu comércio em pé de igualdade com o de outras pessoas, assim, como tinha que auferir o lucro próprio de um manufator, da mesma forma tinha que auferir o lucro necessário para um varejista. Suponhamos, por exemplo, que na cidade em que ele vivia, o lucro normal do capital, tanto do aplicado na manufatura como do aplicado no negócio varejista, fosse de 10%; nesse caso, ele teria que onerar cada peça de suas próprias mercadorias vendida em sua loja, com um lucro de 20%. Ao trazer essas mercadorias da sua oficina de trabalho para sua loja, ele teria que avaliá-las ao preço pelo qual poderia tê-las vendido a comerciante ou lojista, que lhes teria comprado no atacado. Se as avaliasse abaixo disso, estaria perdendo parte do lucro de seu capital de manufatura. Quando, novamente, vendesse as mercadorias em sua loja, se não conseguisse o mesmo preço pelo qual as teria vendido um lojista, estaria perdendo parte do lucro do seu capital de lojista. Embora, portanto, na aparência estivesse auferindo um lucro duplo da mesma peça de mercadoria comercializada, ainda assim, já que essas mercadorias constituíam sucessivamente parte de dois capitais distintos, ele estaria auferindo apenas um único lucro sobre o capital total investido nelas, e se o lucro auferido fosse inferior a isto, estaria perdendo ou não estaria empregando todo o seu capital com a mesma rentabilidade da maior parte de seus vizinhos. Assim, proibia-se ao manufator fazer aquilo que o produtor agrícola era, de certo modo, obrigado a fazer, isto é, dividir seu capital entre dois empregos diferentes, ou seja, conservar uma parte de seu capital em seus celeiros e depósitos de feno e cereais, a fim de atender às demandas ocasionais do mercado e empregar a outra parte no cultivo de sua terra. Entretanto, assim como não podia permitir-se empregar esta segunda parte do capital com lucro inferior ao lucro normal de um capital investido na agricultura, tampouco podia permitir-se empregar a primeira parcela com lucro inferior àquele que é normal para um capital aplicado no comércio. Quer na hipótese de o capital movimentador dos negócios do comerciante de cereais pertencer à pessoa denominada produtor agrícola, quer na hipótese de ele pertencer à pessoa chamada comerciante de trigo, exigia-se nos dois casos um lucro igual, a fim de indenizar ou compensar o proprietário do capital por aplicá-lo dessa forma; a fim de colocar seus negócios em pé de igualdade com outras profissões ou negócios e a fim de impedi-lo de ter interesse em trocar essa ocupação por outra qualquer o mais cedo possível. Por 34
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conseguinte, o produtor agrícola, assim forçado a exercer a profissão de comerciante de cereais, não podia permitir-se vender seu cereais ao preço mais baixo do que qualquer outro comerciante de cereais teria sido obrigado a fazê-lo, em caso de uma livre concorrência. O comerciante que pode empregar todo o seu estoque ou capital em um único ramo de negócios, possui uma vantagem do mesmo tipo que o operário que pode aplicar todo o seu trabalho em uma única operação. Assim como este último adquire uma destreza que o capacita a realizar, com as mesmas duas mãos, quantidade muito maior de trabalho, da mesma forma o primeiro adquire tão fácil e rapidamente um método de efetuar seu negócio — comprar e revender suas mercadorias — que com o mesmo capital ele pode realizar uma quantidade muito maior de negócios. Assim como o primeiro geralmente tem condições de vender seu trabalho bastante mais barato, da mesma forma o segundo pode vender suas mercadorias um pouco mais barato do que se seu capital e sua atenção fossem aplicados a uma variedade maior de objetos. A maior parte dos manufatores não poderia vender suas mercadorias no varejo a preço tão baixo como um comerciante varejista vigilante e ativo, ocupado unicamente em comprá-las no atacado e revendê-las no varejo. Muito menos ainda, a maior parte dos produtores agrícolas poderia vender no varejo seu próprio trigo, suprir os habitantes de uma cidade, talvez a 4 ou 5 milhas de distância da maior parte deles, a preço tão baixo como um comerciante de trigo vigilante e ativo, unicamente preocupado em comprar trigo no atacado, armazená-lo em um grande depósito e revendê-lo no varejo. A lei que proibiu ao manufator exercer a profissão de lojista procurou obrigar essa divisão no emprego do capital a efetuar-se mais rapidamente do que isso poderia ter ocorrido sem ela. A lei que obrigou o produtor agrícola a exercer a profissão de comerciante de trigo procurou impedir que essa divisão no emprego do capital se operasse com muita rapidez. Ambas as leis constituíam violações manifestas da liberdade natural e, portanto, eram injustas; e ambas eram, também, tão impolíticas quanto injustas. É do interesse de cada sociedade que coisas desse gênero nunca sejam forçadas ou obstruídas. A pessoa que emprega seu trabalho ou seu capital em uma multiplicidade de maneiras superior àquela exigida por sua situação jamais tem condições de prejudicar a seu vizinho por vender mais barato que ele. Pode, sim, prejudicar-se a si mesma, como geralmente acontece. Como diz o provérbio, o “faz-de-tudo” jamais chegará a enriquecer. Mas a lei sempre deveria deixar que as pessoas cuidassem elas mesmas de seus próprios interesses, uma vez que, na situação pessoal em que se encontram, geralmente têm condições de melhor julgar sobre o caso do que o poderia fazer o legislador. Entretanto, a lei que obrigou o produtor agrícola a exercer a profissão de comerciante varejista de trigo foi de longe a mais perniciosa das duas. Essa lei obstruiu não somente aquela divisão no emprego do capital, tão vantajosa para qualquer sociedade, como também o aprimo35
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ramento e o cultivo da terra. Ao obrigar o produtor agrícola a executar duas ocupações em vez de uma só, ela o forçou a dividir seu capital em duas partes, das quais uma só poderia ser empregada no cultivo agrícola. Se o produtor tivesse tido liberdade de vender toda a sua colheita a um comerciante de trigo tão rapidamente quanto debulhá-lo por completo, todo o seu capital poderia retornar imediatamente à terra e ser empregado na compra de maior número de cabeças de gado, na contratação de mais trabalhadores, para aprimorá-la e cultivá-la melhor. Ao contrário, por ser obrigado a vender sua produção no varejo, ele foi obrigado a manter grande parte de seu capital em seus celeiros e depósitos de feno e cereais durante todo o ano, não podendo, portanto, cultivar a terra tão bem quanto o poderia ter feito com o mesmo capital, não fora a referida lei. Essa lei, portanto, obstruiu inevitavelmente o aprimoramento da terra, e, em vez de fazer baixar o preço do trigo, obrigatoriamente tendeu a torná-lo mais escasso e, por conseguinte, mais caro do que teria ocorrido se não existisse a lei. Depois da profissão do produtor agrícola, a do comerciante de trigo é, na realidade, a que, se adequadamente protegida e estimulada, mais contribuiria para o cultivo do trigo. Ela daria sustentação à atividade do produtor, da mesma forma como a atividade do comerciante atacadista dá sustentação à do manufator. O comerciante atacadista, por oferecer um mercado rápido ao manufator, por retirar as mercadorias deste tão logo estejam manufaturadas, pelo fato de, às vezes, até mesmo adiantar-lhe o preço delas antes de terminar a manufatura, possibilita ao manufator manter todo o seu capital e, às vezes, até mais do que todo o seu capital, constantemente aplicado em manufatura e, conseqüentemente, em manufaturar uma quantidade muito maior de produtos do que se o próprio manufator fosse obrigado a vendê-los diretamente aos consumidores, ou mesmo aos varejistas. Além disso, uma vez que o capital do comerciante atacadista geralmente é suficiente para repor o de muitos manufatores, esse intercâmbio entre o comerciante atacadista e os manufatores faz com que interesse ao dono de um grande capital apoiar os proprietários de um grande número de capitais pequenos e ajudá-los nessas perdas e infortúnios que, de outra forma, poderiam levá-los à ruína. Um intercâmbio do mesmo gênero, estabelecido universalmente entre os produtores agrícolas e os comerciantes de trigo, teria efeitos igualmente benéficos para os produtores. Isso lhes possibilitaria manter todos os seus capitais, e até mesmo mais do que seus próprios capitais, constantemente empregados no cultivo da terra. Na eventualidade de ocorrer algum desses acidentes, aos quais nenhuma profissão está mais sujeita do que a deles, encontrariam em seu cliente normal — o rico comerciante de cereais — uma pessoa que não somente teria interesse em apoiá-los, mas também capacidade para fazê-lo, e não dependeriam totalmente — como acontece atualmente — da indulgência de proprietários das suas terras ou dos favores do seu administrador. Se fosse possível — e talvez não o seja — estabelecer esse intercâmbio em toda 36
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parte, de uma vez e sem demora; se fosse possível fazer imediatamente com que todo o capital agrícola do reino fosse aplicado no seu objetivo adequado, o cultivo da terra, retirando-o de todas as outras aplicações nas quais atualmente pode estar empregado; e se fosse possível, para apoiar e ajudar, no caso de necessidade, as operações desse grande capital, providenciar de uma vez outro capital de montante quase igual, talvez não fosse muito fácil imaginar quão grande, extensa e repentina seria a melhoria que essa mudança de situação, por si só, poderia provocar em todo o território do país. Portanto, o Estatuto de Eduardo VI, ao proibir o máximo possível a qualquer pessoa de condição média de ser intermediária entre o produtor agrícola e o consumidor, procurou aniquilar uma profissão cujo livre exercício não somente é o melhor paliativo para os inconvenientes de uma carestia, mas também o melhor preventivo para essa calamidade; com efeito, depois da profissão do produtor agrícola, nenhuma contribui tanto para o cultivo de trigo quanto a do comerciante desse cereal. O rigor da referida lei foi posteriormente mitigado por vários estatutos subseqüentes, que sucessivamente permitiram a compra de trigo a granel, quando o preço do trigo não ultrapassasse 20, 24, 32 e 40 xelins o quarter. Finalmente, o Estatuto 15 de Carlos II, capítulo 7, legalizou a compra de cereais a granel, ou seja, a compra de cereais para revendê-los, enquanto o preço do trigo não ultrapassasse 48 xelins o quarter — e o de outros cereais proporcional a este — para todas as pessoas que não fossem atravessadores, isto é, que não revendessem o produto no mesmo mercado, no prazo de três meses. Foi este estatuto que concedeu toda a liberdade de que a profissão do comerciante interno de trigo jamais desfrutou até hoje. O Estatuto 12 do rei atual, que revoga quase todas as outras antigas leis contra os açambarcadores e atravessadores, não anula as restrições contidas nesse estatuto específico que, portanto, ainda continuam em vigor. Todavia, esse estatuto, de certo modo, dá cobertura a dois preconceitos populares extremamente absurdos. Em primeiro lugar, ele supõe que, quando o preço do trigo subir de tal forma, isto é, a 48 xelins o quarter, e o de outros cereais subir proporcionalmente a este, há a probabilidade de compras a granel suscetíveis de prejudicar a população. Mas, com base no que já expus, parece evidente que a nenhum preço os cereais podem ser açambarcados a tal ponto pelos comerciantes internos que acabe prejudicando a população; além disso, 48 xelins o quarter, embora possa ser considerado um preço muito elevado, em anos de escassez representa um preço que, muitas vezes, é o que vigora imediatamente depois da safra, quando dificilmente se pode liquidar alguma parte da nova colheita, e quando é impossível, mesmo por ignorância, supor que se possa monopolizar alguma parte dela, de molde a prejudicar a população. Em segundo lugar, o estatuto supõe existir determinado preço que dá margem a uma ação dos atravessadores no sentido de comprar 37
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os cereais em sua totalidade para revendê-los logo depois no mesmo mercado, de maneira a prejudicar a população. Entretanto, se um comerciante absorve todo o estoque de cereais, seja indo a um determinado mercado seja fazendo-o no próprio mercado, a fim de vendê-lo novamente logo depois, no mesmo mercado, deve ser porque julga que não há condições de suprir o mercado com a mesma abundância durante toda a estação, como nessa ocasião específica e, portanto, em sua previsão, o preço deverá subir em breve. Se a previsão dele for errônea e se o preço não subir, ele não somente perde todo o lucro do capital que emprega nesse negócio, mas até mesmo parte do próprio estoque, devido à despesa e à perda necessariamente inerentes ao armazenamento e à conservação dos cereais. Por conseguinte, prejudica-se a si próprio muito mais do que possa prejudicar até mesmo determinadas pessoas que ele pode impedir de comprar pessoalmente naquele dia de mercado, já que essas pessoas terão posteriormente possibilidade de comprar, a preço igualmente baixo, em qualquer outro dia de mercado. Se, porém, a previsão do comerciante for correta, em vez de prejudicar a população, ele lhe presta um serviço de altíssima importância. Por levar essa população a sentir os inconvenientes de uma carestia, um pouco antes do que normalmente ela o perceberia de outra forma, o comerciante impede que a população se ressinta tanto, posteriormente, desses inconvenientes da carestia, quanto certamente se ressentiria se o preço baixo a estimulasse a consumir o produto com maior rapidez do que conviria, dada a escassez real da estação. Quando a escassez é real, a melhor coisa que se pode fazer para o povo é dividir os incômodos dela decorrentes, da maneira mais uniforme possível, através de todos os meses, semanas e dias do ano. O próprio interesse do comerciante de trigo o leva a procurar fazer isso com a maior exatidão a seu alcance; e, já que nenhuma outra pessoa pode ter o mesmo interesse, o mesmo conhecimento ou as mesmas capacidades para fazê-lo com igual precisão que ele, essa importante operação comercial deve ser inteiramente a ele confiada; em outras palavras, deve-se deixar que o comércio de cereais opere com plena liberdade, na medida pelo menos em que interessa ao suprimento do mercado interno. O medo popular do açambarcamento e do atravessamento pode ser comparado às fobias e suspeitas em relação à bruxaria. As infelizes acusadas de cometer esse crime eram tão inocentes em relação às desgraças a elas imputadas quanto aqueles que têm sido acusados de açambarcadores e atravessadores. A lei que pôs fim a todas as perseguições contra as bruxas, que tirou a todos o poder de satisfazer a sua própria malícia, acusando seu vizinho de cometer esse crime imaginário, parece ter efetivamente posto termo a esses temores e suspeitas, eliminando a grande causa que os estimulava e lhes dava sustentação. Uma lei que restabelecesse a completa liberdade do comércio interno de cereais provavelmente teria a mesma eficácia em pôr fim aos temores populares contra os açambarcadores e atravessadores. 38
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Não obstante isso, o Decreto 15 de Carlos II, capítulo 7, com todas as suas imperfeições, talvez tenha contribuído mais para o suprimento abundante do mercado interno e para o aumento do cultivo do que qualquer outra lei contida no código civil. Foi dessa lei que o comércio interno de cereais derivou toda a liberdade e proteção de que até hoje tem podido desfrutar; e tanto o suprimento do mercado interno quanto o interesse de cultivo são promovidos muito mais eficazmente pelo comércio interno do que pelo comércio de importação ou de exportação. Segundo os cálculos feitos pelo autor dos opúsculos sobre o comércio de cereais, a porcentagem da quantidade média de todos os tipos de cereais importados pela Grã-Bretanha, em relação a todos os tipos de cereais consumidos, não supera a proporção de 1 para 570. Por conseguinte, no suprimento do mercado interno, a importância do comércio interno, em relação à do comércio de importação, deve ser de 570 para 1. A quantidade média de todos os tipos de cereais exportados da Grã-Bretanha, segundo o mesmo autor, não supera 1/31 da produção anual. Para o estímulo agricultura, portanto, pelo fato de o comércio interno proporcionar um mercado para produção interna, a importância dele em relação à do comércio de exportação deve ser de 30 para 1. Não tenho muita fé na aritmética política e, nessas condições, não tenciono garantir a exatidão desses dois cálculos. Menciono-os apenas para mostrar até que ponto, no entender das pessoas mais esclarecidas e experientes, o comércio exterior de cereais é menos importante que o comércio interno. O grande barateamento dos cereais nos anos que precederam imediatamente a criação do subsídio pode, talvez, com razão, ser atribuído, até certo ponto, à operação desse código de Carlos II, que entrara em vigor aproximadamente 25 anos antes e que, portanto, tivera tempo pleno para produzir seu efeito. Muito poucas palavras serão suficientes para explicar tudo o que tenho a dizer sobre os outros três setores do comércio de cereais. II. A profissão do comerciante importador de cereais do estrangeiro para o consumo interno evidentemente contribui para o suprimento imediato do mercado interno, devendo, nessa medida, ser diretamente benéfica à população. Sem dúvida, esse comércio tende a fazer baixar um pouco o preço médio dos cereais em dinheiro, mas não a diminuir seu valor real ou a quantidade de mão-de-obra que eles têm condições de sustentar. Se a importação sempre fosse livre, nossos produtores agrícolas e aristocratas rurais provavelmente, um ano pelo outro, receberiam menos dinheiro pelo seu trigo do que atualmente, quando a importação, na maioria dos casos, efetivamente é proibida; entretanto, o dinheiro que receberiam teria valor maior, compraria mais mercadorias de todos os outros gêneros e empregaria mais mãode-obra. Por isso, sua riqueza real, sua renda real seriam as mesmas que atualmente, embora elas pudessem ser expressas por uma quantidade menor de prata; e isso não lhes tiraria nem a possibilidade nem 39
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o estímulo para cultivar cereais tanto quanto cultivam atualmente. Ao contrário, já que o aumento do valor real da prata, em conseqüência de baixa do preço dos cereais em dinheiro, faz baixar um pouco o preço em dinheiro de todas as outras mercadorias, ele dá à atividade do país onde ela se realiza alguma vantagem em todos os mercados estrangeiros tendendo, conseqüentemente, a estimular e aumentar essa atividade. Mas a extensão do mercado interno para os cereais deve ser proporcional à atividade geral do país em que eles são cultivados ou ao número daqueles que produzem alguma outra mercadoria, e portanto têm alguma outra mercadoria — ou, o que vem a dar no mesmo, o preço de alguma outra mercadoria — para dar em troca dos cereais. Ora, em cada país o mercado interno, assim como é o mais próximo e o mais conveniente, da mesma forma é também o maior e mais importante mercado para os cereais. Por isso, esse aumento do valor real da prata, que é efeito da baixa do preço médio dos cereais em dinheiro, tende a ampliar o maior e mais importante mercado para os cereais e, por conseguinte, a estimular, e não a desestimular, o cultivo dos mesmos. O Decreto 22 de Carlos II, capítulo 13, estabeleceu que a importação de trigo, toda vez que o preço no mercado interno não ultrapassasse 53 s 4 d o quarter, ficasse sujeita ao pagamento de uma taxa de 16 xelins o quarter; e a uma taxa de 8 xelins, sempre que o preço não excedesse a 4 libras. O primeiro dos dois preços citados, desde há mais de um século, só vigorou em épocas de escassez muito grande, e o segundo preço citado, ao que eu saiba, nunca vigorou. Entretanto, até o trigo ultrapassar este último preço, o referido código o sujeitava a uma taxa de importação altíssima; e até ele subir além do primeiro preço citado, sujeitava-o a uma taxa alfandegária que equivalia a uma proibição. A importação de outros tipos de cereais era restringida a índices e por taxas quase igualmente altas2 em proporção ao valor do cereal. Leis subseqüentes aumentaram ainda mais essas taxas. Muito grande teria sido, provavelmente, a miséria que, em anos de escassez, o cumprimento rigoroso dessas leis poderia ter acarretado 2
Antes do Estatuto 13 do rei atual, eram as seguintes as taxas de importação a serem pagas para os diversos tipos de cereais. Cereais Taxa Taxa Feijão a 28 s/quarter 19 s 10 d depois até 40 s - 16 s 8 d Cevada a 28 s 19 s 10 d - 16 s Malte, proibido pela Lei sobre a Tarifa da taxa anual do malte. Aveia a 16 s 5 s 10 d depois Ervilhas a 40 s 16 s 0 d depois Centeio a 36 s 19 s 10 d até 40 s - 16 s 8 d Trigo a 44 s 21 s 9 d até 53 s 4 d - 17 s até 4 libras e depois disso aproximadamente 1 s 4 d Trigo-sarraceno a 32 s/quarter a pagar 16 s
Taxa então 12 d 12 d 9 1/2 d 9 3/4 d então 12 d então 8 s
Essas diversas taxas foram impostas, em parte, pelo Estatuto 22 de Carlos II, em lugar do Antigo Subsídio, em parte pelo Novo Subsídio, pelo Subsídio de 1/3 e de 2/3, e pelo Subsídio 1747. 40
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ao povo. Entretanto, em tais ocasiões, o cumprimento das mesmas geralmente era suspenso por estatutos temporários, que permitiam, por tempo limitado, a importação de cereais do exterior. A necessidade desses estatutos temporários constitui uma prova suficiente da impropriedade desse estatuto geral. Essas restrições à importação, embora anteriores à criação do subsídio, eram ditadas pelo mesmo espírito e pelos mesmos princípios que, posteriormente, levaram a instituir o subsídio. Por mais prejudiciais que sejam em si mesmas, essas ou algumas outras restrições à importação se tornaram necessárias em conseqüência da instituição do subsídio. Se, quando o trigo custava menos de 48 xelins por quarter ou quando seu preço não passava muito disso, se tivesse permitido importar cereais estrangeiros sem taxas alfandegárias ou pagando apenas taxas reduzidas, ele poderia ter sido exportado novamente, com o benefício do subsídio, para grande perda da renda pública, e adulterando totalmente a natureza do subsídio, cujo objetivo era ampliar o mercado para a produção nacional, e não o mercado para a produção de países estrangeiros. III. A profissão do comerciante exportador de cereais para consumo externo certamente não contribui diretamente para o suprimento abundante do mercado interno. Contribui, porém, indiretamente. Qualquer que seja a fonte usual desse suprimento — seja a produção nacional, seja a importação —, o suprimento do mercado interno nunca poderá ser muito abundante se no próprio país não se cultivarem normalmente mais cereais ou não se importarem normalmente mais cereais do que a quantidade normalmente consumida no país. Ora, se o excedente não puder, em todos os casos normais, ser exportado, os produtores sempre terão a preocupação de não produzir mais — e os importadores a de nunca importar mais — do que o estritamente exigido para o abastecimento do mercado interno. Muito raramente esse mercado estará superabastecido; acontecerá, sim, que, geralmente, seja infra-abastecido, já que as pessoas cujo ofício é supri-lo o mais das vezes temem ter que ficar com suas mercadorias estocadas. A proibição de exportar limita o aprimoramento e o cultivo do país àquilo que é exigido pelo suprimento de seus próprios habitantes. Ao contrário, a liberdade de exportação possibilita aumentar o cultivo, para o fornecimento a outras nações. O Estatuto 12 de Carlos II, capítulo 4, permitiu a exportação de cereais sempre que o preço do trigo não excedesse 40 xelins o quarter, e o preço dos outros cereais não ultrapassasse proporcionalmente este preço. Com o Decreto 15 do mesmo rei, essa liberdade foi ampliada, até que o preço do trigo superasse 48 xelins o quarter; e pelo Decreto 22, a liberdade de exportar foi ampliada ainda mais, para quaisquer outros preços. Sem dúvida, por toda exportação tinha-se que pagar uma comissão por libra-peso ao rei. Entretanto, o preço de todos os cereais era avaliado tão baixo no livro das tarifas, que essa comissão por libra-peso para o trigo não passava de 1 xelim, para a aveia, de 41
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4 pence, e para todos os demais cereais, de 6 pence o quarter. Pelo Decreto 1 de Guilherme e Maria — a lei que instituiu o subsídio — essa pequena taxa foi virtualmente eliminada toda vez que o preço do trigo não ultrapassasse 48 xelins o quarter; e os Decretos 11 e 12 de Guilherme III, capítulo 12, aboliram expressamente a citada taxa, para todos os preços acima dos mencionados. Dessa forma, a profissão do comerciante exportador não somente foi estimulada por um subsídio, como ainda se lhe deu muito maior liberdade que à do comerciante interno. O último desses estatutos estabeleceu ser lícito comprar cereais a granel, a qualquer preço, para exportação; entretanto, não se podia comprar a granel para o comércio interno, a não ser quando o preço não ultrapassasse 48 xelins o quarter. Ora, como já mostrei, o interesse do comerciante interno nunca pode ser contrário ao interesse da população. O do comerciante exportador pode e de fato o é, por vezes. Se havendo carestia no país do comerciante exportador, um país vizinho fosse afligido pela fome, o comerciante exportador poderia ter interesse em exportar para este último quantidades tais de cereais suscetíveis de agravar seriamente a calamidade da carestia no seu próprio país. O objetivo direto desses estatutos não era garantir o suprimento abundante do mercado interno, mas sim, sob o pretexto de estimular a agricultura, aumentar ao máximo possível o preço em dinheiro dos cereais e, com isto, provocar, tanto quanto possível, uma carestia constante no mercado interno. Desestimulando a importação, o suprimento desse mercado interno, mesmo em épocas de grande escassez, foi confinado à produção interna; e estimulando a exportação, quando o preço atingia o patamar dos 48 xelins o quarter, não se permitia a esse mercado interno, mesmo em épocas de escassez considerável, consumir o total dessa produção interna. As leis temporárias que proibiram, por tempo limitado, a exportação de cereais, e que eliminavam, por tempo limitado, as taxas de importação — expedientes aos quais a Grã-Bretanha tem sido obrigada a recorrer com tanta freqüência — constituem uma demonstração suficiente de que seu sistema geral era inadequado. Se esse sistema tivesse sido bom, o país não teria sido, com tanta freqüência, obrigado a rejeitá-lo. Se todas as nações seguissem o sistema liberal da liberdade de exportação e de importação, os diversos Estados em que estava dividido um grande continente se assemelhariam, sob esse aspecto, às diversas províncias de um grande império. Assim como entre as diferentes províncias de um grande império a liberdade do comércio interno se evidencia tanto pela razão como pela experiência, não somente como o melhor paliativo para uma carestia, mas também como o preventivo mais eficaz contra a fome, a mesma coisa ocorreria se houvesse liberdade de exportação e importação entre os diversos Estados em que se dividia um grande continente. Quanto maior for o continente, tanto mais fácil a comunicação entre todas as regiões que o compõem, tanto por terra como por água e tanto menos cada região específica do con42
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tinente estaria exposta a qualquer dessas duas calamidades, havendo mais probabilidade de escassez de qualquer um dos países poder ser aliviada pela abundância de algum outro. Entretanto, bem poucos países adotaram inteiramente esse sistema liberal. A liberdade de comercialização de cereais é limitada quase em toda parte, em grau maior ou menor, e, em muitos países, ela é restringida por regulamentos tão absurdos que muitas vezes agravam a infelicidade inevitável de uma carestia, transformando-a na terrível calamidade da fome. A demanda de cereais por parte desses países pode, freqüentemente, crescer tanto e tornar-se tão urgente que um pequeno Estado vizinho, eventualmente vítima do mesmo grau de carestia, não poderia aventurar-se a suprir tal país sem expor-se também ele à mesma terrível calamidade. Assim, a péssima política de um país pode fazer com que, de certo modo, torne-se perigoso e imprudente estabelecer aquilo que, de outra forma, representaria a melhor política em outro país. Entretanto, a liberdade ilimitada de exportação seria muito menos perigosa em grandes Estados nos quais, sendo a produção nacional muito maior, o abastecimento raramente poderia ser muito afetado por qualquer quantidade de cereais que se pudesse exportar. Em um cantão da Suíça ou em alguns dos pequenos Estados da Itália, talvez às vezes seja necessário restringir a exportação de cereais. Em se tratando de grandes Estados como a França ou a Inglaterra dificilmente isso pode ser necessário. Além disso, impedir o produtor agrícola de enviar suas mercadorias em qualquer época ao melhor mercado equivale evidentemente a sacrificar as leis normais da justiça a um conceito de utilidade pública, a uma espécie de razão de Estado — ato de autoridade legislativa que só deve ser exercido e só pode ser executado em casos da mais urgente necessidade. O preço ao qual a exportação de cereais é proibida — se é que jamais ela deve ser proibida — sempre deveria ser um preço muito alto. Em toda parte as leis relativas aos cereais podem ser comparadas às concernentes à religião. O povo se sente tão interessado naquilo que se relaciona com a sua subsistência na vida presente ou no que tange à felicidade em uma vida futura, que o Governo deve atender a seus preconceitos ou preocupações, e, com o intuito de preservar a tranqüilidade pública, estabelecer o sistema que o povo aprova. Talvez seja por isso que é tão raro encontrarmos um sistema razoável no tocante a esses dois pontos de capital importância. IV. A profissão do comerciante transportador de mercadorias, ou do importador de cereais estrangeiros para fins de nova exportação, contribui para o suprimento abundante do mercado interno. Sem dúvida, esse tipo de comerciante não tem como objetivo direto vender seus cereais no mercado interno. Entretanto, geralmente estará disposto a assim fazer, até mesmo por bem menos dinheiro do que poderia esperar um mercado estrangeiro, pois, dessa forma, economiza o gasto de carga e descarga, de frete e de seguro. É muito raro passarem 43
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necessidade os próprios habitantes do país que pelo comércio de transporte de mercadorias se transforma em depósito e armazém para o suprimento de outros países. Por isso, ainda que esse tipo de comércio pudesse contribuir para diminuir o preço médio em dinheiro dos cereais, no mercado interno, nem por isso diminuiria seu valor real, mas apenas faria aumentar um pouco o valor real da prata. Na realidade, esse tipo de comércio foi proibido na Grã-Bretanha em todas as ocasiões normais, pelas altas taxas incidentes sobre a importação de cereais estrangeiros, taxas essas que, na maioria dos casos, não eram reembolsadas no ato da exportação; e em ocasiões extraordinárias, quando uma escassez tornava necessário suspender essas taxas de importação por meio de estatutos temporários, a exportação sempre era proibida. Em virtude desse sistema de leis, portanto, o comércio de transporte internacional de mercadorias foi efetivamente proibido na Grã-Bretanha em todas as ocasiões. Esse sistema de leis, portanto, que está ligado à criação do subsídio, não parece merecer nenhum dos elogios que lhe têm sido dispensados. O progresso e a prosperidade da Grã-Bretanha, que tantas vezes têm sido atribuídos a essas leis, podem muito bem ser imputados a outras causas. A segurança que as leis da Grã-Bretanha dão a toda pessoa, de desfrutar dos benefícios de seu próprio trabalho, basta por si só para fazer qualquer país florescer, a despeito dessas e de vinte outros regulamentos comerciais absurdos; ora, essa segurança foi aperfeiçoada pela revolução, mais ou menos na mesma época em que se criou o subsídio. O esforço natural de cada indivíduo para melhorar sua própria condição, quando se permite que ele atue com liberdade e segurança, constitui um princípio tão poderoso que, por si só, e sem qualquer outra ajuda, não somente é capaz de levar a sociedade à riqueza e à prosperidade, como também de superar uma centena de obstáculos impertinentes com os quais a insensatez das leis humanas com excessiva freqüência obstrui seu exercício, embora não se possa negar que o efeito desses obstáculos seja sempre interferir, em grau maior ou menor, na sua liberdade ou diminuir sua segurança. Na GrãBretanha, o trabalho é perfeitamente seguro; e embora esteja longe de ser totalmente livre, é tão livre ou mais livre do que em qualquer outro país da Europa. Embora o período da prosperidade e do desenvolvimento máximo da Grã-Bretanha tenha sido posterior a esse sistema de leis relacionado com o subsídio, nem por isso devemos atribuí-lo às mencionadas leis. Ele foi posterior também à dívida nacional. No entanto, é absolutamente certo que a dívida nacional não foi a causa desse progresso e desenvolvimento. Malgrado o sistema de leis ligado ao subsídio tenha exatamente a mesma tendência que a política da Espanha e de Portugal, ou seja, fazer baixar um pouco o valor dos metais preciosos no país em que essa política vigora, não obstante isso a Grã-Bretanha certamente é um dos países mais ricos da Europa, ao passo que a Espanha e Portugal talvez estejam entre os mais pobres. 44
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Essa diferença de situação, porém, pode facilmente ser explicada por duas causas diferentes. Primeiro, a taxa de exportação na Espanha, a proibição em Portugal de exportar ouro e prata e o policiamento vigilante que controla o cumprimento dessas leis devem, em dois países muito pobres que importam em conjunto anualmente mais de 6 milhões de libras esterlinas, contribuir, não somente de maneira mais direta, mas com muito mais força, para reduzir o valor desses metais nos dois países do que o possam fazer as leis britânicas referentes aos cereais. Segundo, essa má política não é contrabalançada, nesses dois países, pela liberdade e segurança gerais da população. Nesses países, o trabalho não é livre nem seguro, e os governos civil e eclesiástico, tanto na Espanha como em Portugal, são tais que por si sós seriam suficientes para perpetuar sua condição atual de pobreza, mesmo que suas leis comerciais fossem tão sábias quanto é absurda e insensata a maior parte delas. O Decreto 13 do rei atual, capítulo 43, parece haver estabelecido um novo sistema com respeito às leis relativas aos cereais, sistema sob muitos aspectos melhor do que o antigo, porém, sob um ou dois aspectos, talvez não seja tão bom como o anterior. Em virtude desse estatuto, suprimem-se as altas taxas de importação para consumo interno, tão logo o preço do trigo médio atinja 48 xelins o quarter, o do centeio, da ervilha ou do feijão médios, 32 xelins, o da cevada, 24 xelins, e o da aveia, 16 xelins; e em lugar dessas taxas elevadas impõe-se apenas uma pequena taxa de 6 pence por quarter de trigo, e taxa proporcional à importação de outros cereais. Com respeito a todos esses tipos de cereais, portanto, e sobretudo em relação ao trigo, o mercado interno está aberto a suprimentos estrangeiros a preços consideravelmente mais baixos do que antes. Pelo mesmo estatuto, cessa o velho subsídio de 5 xelins na exportação de trigo, tão logo o preço atinge 44 xelins por quarter, em vez de 48, preço ao qual deixava de conceder-se o subsídio, anteriormente; o subsídio de 2 s 6 d na exportação da cevada cessa no momento em que o preço atinge 22 xelins, em vez de 24, preço ao qual o subsídio deixava de existir anteriormente; o de 2 s 6 d na exportação da farinha de aveia cessa quando o preço atinge 14 xelins, em vez de 15, preço ao qual o subsídio deixava de existir, anteriormente. O subsídio para a exportação de centeio é reduzido de 3 s 6 d a 3 xelins, cessando no momento em que o preço atinge 28 xelins, em vez de 32, preço ao qual cessava anteriormente. Se os subsídios são tão pouco apropriados como procurei demonstrar acima, quanto antes eles cessarem e quanto menores forem, tanto melhor. O mesmo estatuto permite, aos preços mais baixos, a importação de trigo, para fins de reexportação sem taxas, desde que, nesse meio tempo, sejam armazenados em um depósito, cujas chaves permaneciam sob a guarda conjunta do rei e do importador. Sem dúvida, essa liberdade só abrange 25 dos portos da Grã-Bretanha. 45
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Eles são, porém, os principais do país, não havendo, talvez, na maior parte dos demais, depósitos adequados para esse fim. Sob tal aspecto, essa lei parece evidentemente representar um progresso em relação ao sistema antigo. Entretanto, a mesma lei concede um subsídio de 2 xelins o quarter para a exportação de aveia, sempre que o preço não ultrapassar 14 xelins. Até então, não se havia concedido nenhum subsídio para a exportação desse tipo de cereais, como tampouco havia subsídios para a exportação de ervilhas ou feijão. A mesma lei proíbe, outrossim, a exportação de trigo no momento em que o preço atinge 44 xelins o quarter, a do centeio, 28 xelins; a da cevada, 22 xelins; e a da aveia, 14 xelins. Esses diversos preços parecem todos muito baixos, assim como também é inadequado proibir totalmente a exportação, precisamente quando os preços atingem o ponto em que se retira o subsídio concedido para forçar a exportação. Certamente, se deveria retirar o subsídio a um preço muito mais baixo, ou a exportação deveria ter sido permitida a um preço muito mais alto. Sob esse aspecto, portanto, essa lei parece ser inferior ao antigo sistema. Entretanto, com todas as suas imperfeições, talvez possamos dizer dela o que se disse das leis de Sólon, isto é: embora não sejam as melhores em si mesmas, são melhores que os interesses, os preconceitos e as características que os tempos poderiam comportar. Em seu devido tempo, talvez, ela possa abrir caminho para uma lei melhor.
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CAPÍTULO VI Os Tratados Comerciais
Quando uma nação se obriga, por tratado, a permitir a entrada de certas mercadorias de um país estrangeiro, entrada que proíbe mercadorias provenientes de qualquer outro país, ou a isentar as mercadorias de um país de taxas às quais sujeita as de todos os outros países, necessariamente deve auferir grande vantagem desse tratado o país cujo comércio é assim favorecido — ou, pelo menos, os comerciantes e manufatores desse país. Com isso, os referidos comerciantes e manufatores desfrutam de uma espécie de monopólio no país que é tão indulgente para com eles. Esse país torna-se um mercado mais amplo e mais vantajoso para as mercadorias dos referidos comerciantes e manufatores: mais amplo porque, excluindo a entrada dos produtos de outras nações ou sujeitando-os a taxas de importação mais pesadas, o país compra maior quantidade de mercadorias desses comerciantes e manufatores; mais vantajoso porque os comerciantes do país favorecido, por desfrutarem de uma espécie de monopólio no referido país, muitas vezes venderão seus produtos por preço melhor do que se o mercado estivesse aberto à concorrência de todas as outras nações. Embora, porém, tais tratados possam ser vantajosos para os comerciantes e manufatores do país favorecido, são necessariamente desvantajosos para os do país que favorece. O tratado assegura um monopólio a uma nação estrangeira, contra os comerciantes e manufatores do próprio país; com freqüência esses terão, assim, que comprar as mercadorias estrangeiras de que carecem mais caro do que se fosse admitida a livre concorrência das outras nações. Em conseqüência, terá que ser vendida mais barato a parcela de sua própria produção com a qual tal país compra mercadorias estrangeiras, já que, quando duas coisas são trocadas uma pela outra, o baixo preço de uma é a inevitável conseqüência do alto preço da outra — ou melhor, é a mesma coisa que o alto preço da outra. Por conseguinte, todo tratado desse gênero faz com que, provavelmente, diminua o valor de troca da pro47
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dução anual do país que favorece. Entretanto, essa diminuição dificilmente pode representar alguma perda positiva, constituindo apenas uma redução do ganho que, de outra forma, o país poderia auferir. Embora venda seus produtos mais barato do que poderia fazê-lo se não houvesse tal tratado, provavelmente não os venderá por preço inferior ao custo nem, como acontece no caso dos subsídios, por um preço que não repõe o capital empregado na comercialização dos mesmos, juntamente com os lucros normais do capital. Se isso acontecesse, o comércio não teria condições de durar muito tempo. Por conseguinte, mesmo o país que, no caso, favorece pode ainda ganhar com esse comércio, embora menos do que se houvesse uma concorrência livre. Entretanto, alguns tratados comerciais têm sido supostamente considerados vantajosos, com base em princípios bem diversos desses e, às vezes, um país comercial outorga um monopólio desse tipo contra si mesmo, a determinadas mercadorias de um país estrangeiro, na esperança de que, no comércio global entre os dois países, anualmente venderia mais do que compraria, fazendo retornar a ele, anualmente, uma compensação em ouro e prata. É de acordo com esse princípio que tanto se tem elogiado o tratado comercial entre a Inglaterra e Portugal, celebrado em 1703 pelo Sr. Methuen. Segue uma reprodução literal do tratado, que consiste em apenas três artigos. Artigo I Sua Majestade sagrada, o rei de Portugal, promete, tanto em seu nome como no de seus sucessores, admitir em Portugal, para sempre no futuro, os tecidos de lã e os demais manufaturados de lã da Grã-Bretanha, como era costume, até esses produtos serem proibidos por lei; isso, porém, sob a seguinte condição: Artigo II Isto é, que Sua Majestade sagrada, a rainha da Grã-Bretanha, seja obrigada em seu próprio nome e no de seus sucessores, para sempre no futuro, a admitir na Grã-Bretanha os vinhos de produção portuguesa; de tal modo que nunca, quer haja paz, quer haja guerra, entre os reinos da Grã-Bretanha e da França, se cobre, por esses vinhos, a título de aduana ou imposto, ou a qualquer outro título, direta ou indiretamente, quer sejam eles importados na Grã-Bretanha em pipas ou quartelas, ou outros cascos, algo acima de quanto se cobrar pela mesma quantidade ou medida de vinho francês, deduzindo ou descontando 1/3 da alfândega ou imposto. Mas, se em algum momento essa dedução ou desconto alfandegário, conforme acima mencionado, for de qualquer maneira tentada ou prejudicada, será justo e legal que Sua Majestade sagrada, o rei de Portugal, poderá proibir novamente os tecidos de lã e os demais manufaturados de lã da GrãBretanha. 48
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Artigo III Os Excelentíssimos Senhores plenipotenciários prometem e assumem como dever que seus senhores acima mencionados ratifiquem o presente tratado e que a ratificação será intercambiada no prazo de dois meses. Por força desse tratado, a Coroa de Portugal se obriga a admitir a importação das lãs inglesas na mesma base que antes da proibição, isto é, não aumentar as taxas que tinham sido pagas antes desse período. Entretanto, não é obrigado a admitir tais produtos em termos mais favoráveis do que os de qualquer outra nação, por exemplo, da França ou da Holanda. Ao contrário, a Coroa da Grã-Bretanha se obriga a admitir os vinhos de Portugal, recolhendo apenas 2/3 das taxas alfandegárias que recolhe pelos vinhos da França, que com maior probabilidade concorrerão com os portugueses. Sob esse aspecto, portanto, esse tratado é evidentemente vantajoso para Portugal e desvantajoso para a Grã-Bretanha. Não obstante isso, o referido tratado tem sido enaltecido como uma obra-prima da política comercial da Inglaterra. Portugal recebe anualmente do Brasil quantidade de ouro superior àquela que pode utilizar em seu comércio interno, seja em forma de moeda ou de baixelas de ouro ou prata. O excedente é excessivamente valioso para permanecer ocioso e encerrado em cofres, e, por não conseguir mercado vantajoso no país, deve, não obstante qualquer proibição, ser enviado ao exterior e trocado por alguma coisa que encontre um mercado mais vantajoso no país. Grande parcela do mesmo é anualmente enviada à Inglaterra, em troca de mercadorias inglesas ou das mercadorias de outras nações européias que recebem seus retornos através da Inglaterra. O Sr. Baretti foi informado de que o paquete traz à Inglaterra, uma semana por outra, mais de 50 mil libras de ouro. Essa soma provavelmente foi exagerada. Ela corresponderia provavelmente a mais de 2,6 milhões de libras por ano, o que supera o que o Brasil supostamente fornece. Há alguns anos, nossos comerciantes estavam descontentes com a Coroa de Portugal. Haviam-se infringido ou revogado alguns privilégios que lhes haviam sido outorgados, não por tratado, mas por livre benevolência da Coroa portuguesa, na verdade sob solicitação da Coroa da GrãBretanha e, provavelmente, em troca de favores muito maiores, defesa e proteção concedidas a Portugal por essa Coroa. Por isso, as pessoas normalmente mais interessadas em enaltecer o comércio com Portugal estavam mais inclinadas a apresentá-lo como menos vantajoso do que se costumava imaginar. Alegavam que, de longe, a maior parte dessa importação anual de ouro, quase a totalidade, não era por causa da Grã-Bretanha, mas de outras nações européias e que as frutas e vinhos de Portugal, anualmente importados pela Grã-Bretanha, quase compensavam o valor das mercadorias britânicas exportadas para Portugal. Suponhamos, porém, que a totalidade do ouro importado fosse por causa da Grã-Bretanha, e que seu montante fosse ainda maior do que a soma imaginada pelo Sr. Baretti: nem por isso esse comércio 49
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seria mais vantajoso do que qualquer outro, no qual, pelo mesmo valor exportado, recebêssemos em troca um valor igual em bens de consumo. É lícito supor que somente uma parcela muito pequena dessa importação é empregada como acréscimo anual aos objetos de ouro e prata ou à moeda do reino britânico. Todo o resto tem que ser enviado ao exterior e trocado por bens de consumo de um tipo ou de outro. Mas, se esses bens de consumo fossem comprados diretamente com a produção do trabalho inglês, seria mais vantajoso para a Inglaterra do que primeiro comprar, com esses produtos, o ouro de Portugal e depois, com esse ouro, comprar esses bens de consumo. Um comércio externo direto para consumo interno sempre é mais vantajoso do que um comércio externo por vias indiretas e, para trazer ao mercado interno o mesmo valor de bens estrangeiros, requer-se um capital muito menor em se tratando de comércio externo direto do que de comércio externo indireto. Se se tivesse portanto empregado na produção de mercadorias adequadas para o mercado português uma parcela menor de seu trabalho e uma parcela maior do mesmo na produção dos bens adequados para os outros mercados em que se podem comprar os bens de consumo procurados na Grã-Bretanha, seria mais vantajoso para a Grã-Bretanha. Dessa maneira, para comprar o ouro de que a Grã-Bretanha necessita para seu próprio uso, bem como os bens de consumo, seria necessário empregar um capital muito menor do que atualmente. Haveria, portanto, uma sobra de capital, a ser empregado para outros fins, a fim de suscitar um volume adicional de trabalho e aumentar a produção anual. Ainda que a Grã-Bretanha fosse totalmente excluída do comércio com Portugal, muito pouca dificuldade poderia encontrar em comprar todos os fornecimentos de ouro de que carece, seja para fazer objetos de ouro e prata, seja para fins de moeda ou de comércio exterior. Os que têm o valor necessário para pagar, sempre têm condições de comprar ouro, como qualquer outra mercadoria, em algum lugar ou em outro, desde que paguem o valor solicitado. Além disso, mesmo nessa hipótese, o excedente anual de ouro em Portugal continuaria a ser exportado, e mesmo que não fosse levado pela Grã-Bretanha, o seria por alguma outra nação, que teria prazer em revendê-lo pelo seu preço, da mesma forma como a Grã-Bretanha faz atualmente. Sem dúvida, ao comprarmos ouro de Portugal, compramo-lo de primeira mão, ao passo que, se o comprássemos de alguma outra nação que não fosse a Espanha, compra-lo-íamos de segunda mão, e deveríamos pagar algo mais caro. Entretanto, essa diferença certamente seria muito insignificante para merecer a atenção pública. Afirma-se que quase todo o nosso ouro vem de Portugal. Em relação a outras nações, a balança comercial nos é desfavorável ou não nos favorece tanto. Todavia, cumpre lembrar que, quanto mais ouro importamos de um país, tanto menos teremos necessariamente que importar de todos os outros. A demanda efetiva de ouro, como a de qualquer outra mercadoria, em todo país é limitada a uma determinada quantidade. Se de um país importamos 9/10 dessa quantidade, só resta 50
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1/10 a ser importado de todos os outros. Além disso, quanto maior for a quantidade anual de ouro importada anualmente de alguns países, para além do que é necessário para os objetos de ouro e prata e para a moeda do país, tanto maior terá que ser a quantidade que deverá ser exportada para alguns outros; e quanto mais favorável nos for a balança comercial — esse irrelevantíssimo item da moderna política — com alguns países específicos, tanto mais ela nos será necessariamente desfavorável em relação a muitos outros. Ora, foi com base nessa idéia tola — que a Inglaterra não teria condições de subsistir sem o comércio com Portugal — que, ao término da última guerra, a França e a Espanha, sem pretenderem ofender ou provocar, exigiram que o rei de Portugal excluísse todos os navios britânicos de seus portos e, para garantir essa exclusão, acolhesse em seus portos guarnições francesas ou espanholas. Se o rei de Portugal se tivesse submetido a essas condições ignominiosas que lhe foram propostas por seu cunhado, o rei da Espanha, a Grã-Bretanha se teria livrado de um inconveniente muito maior do que a perda do comércio com Portugal, isto é, o peso de apoiar um aliado extremamente fraco, tão destituído de todo o necessário para sua autodefesa, que todo o poder da Inglaterra, se empregado para esse fim específico, dificilmente talvez pudesse tê-lo defendido em outra campanha. Sem dúvida, a perda do comércio com Portugal teria gerado um embaraço considerável para os comerciantes que na época nele estavam empenhados, os quais possivelmente não teriam encontrado, durante um ou dois anos, outro modo igualmente vantajoso de aplicar seus capitais; nisso teria consistido, provavelmente, todo o inconveniente que a Inglaterra poderia ter sofrido com esse notável feito de política comercial. A grande importação anual de ouro e prata não se destina a fazer objetos de ouro e prata nem moeda, mas visa ao comércio exterior. Um comércio para consumo interno, de natureza indireta, pode ser efetuado mais vantajosamente por meio de ouro e prata do que de quase todas as outras mercadorias. Por constituírem o instrumento universal de comércio, o ouro e a prata são mais prontamente recebidos do que qualquer outra mercadoria em troca de todas as outras; além disso, devido ao seu volume reduzido e ao seu valor elevado, transportá-los de um lugar para outro custa menos do que transportar quase todas as outras mercadorias, perdendo eles menos valor nas operações de transporte. Por conseguinte, dentre todas as mercadorias compradas em um país estrangeiro, com a única finalidade de serem novamente vendidas e trocadas por alguma outra mercadoria em outro país, nenhuma é tão indicada como o ouro e a prata. A principal vantagem para a Grã-Bretanha do comércio com Portugal consiste em facilitar todas as operações de comércio para consumo interno de tipo indireto efetuadas nesse país; e, embora não seja uma vantagem capital, sem dúvida representa uma vantagem considerável. Parece suficientemente óbvio que qualquer acréscimo anual que, como se pode razoavelmente supor, se fizer aos objetos de ouro e prata 51
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ou à moeda do reino só poderia requerer uma importação anual muito limitada de ouro e prata; e, ainda que não tivéssemos nenhum comércio direto com Portugal, seria muito fácil conseguir, aqui ou acolá, essa pequena quantidade. Embora o comércio dos ourives seja bem considerável na Grã-Bretanha, sem dúvida a maior parte dos novos objetos de ouro e prata que eles vendem anualmente é feita de outros objetos de ouro e prata velhos fundidos; assim sendo, não pode ser muito grande o acréscimo anual que se faz ao estoque de objetos de ouro e prata existentes no reino, e a importação anual, eventualmente necessária, só poderia ser muito limitada. O mesmo ocorre com a moeda. Segundo acredito, ninguém imagina que mesmo a maior parte da cunhagem anual — a qual, durante o total de 10 anos, antes da recente reforma da moeda-ouro, ascendeu a mais de 800 mil libras por ano em ouro — representasse um acréscimo anual ao dinheiro anteriormente corrente no reino. Em um país em que a despesa da cunhagem é coberta pelo Governo, o valor da moeda, mesmo quando ela contém seu pleno peso-padrão de ouro e prata, jamais pode ser muito superior ao valor de uma quantidade igual desses metais não cunhados, uma vez que o único trabalho necessário para se conseguir para qualquer quantidade de ouro e prata não cunhados uma quantidade igual desses metais cunhados consiste em ir à Casa da Moeda, além da demora de, talvez, algumas poucas semanas. Ora, em cada país, a maior parte da moeda corrente quase sempre está mais ou menos desgastada ou desvalorizada em relação a seu padrão. Na Grã-Bretanha, antes da última reforma, esse desgaste era bastante grande, sendo que o ouro estava a mais de 2%, e a prata mais de 8% abaixo de seu peso-padrão. Ora, se 44 1/2 guinéus, contendo seu pesopadrão integral — 1 libra-peso de ouro —, tinham condições de comprar bem pouco mais que 1 libra-peso de ouro não cunhado, 44 1/2 guinéus desgastados e, portanto, com peso-ouro inferior ao padrão, não tinham condições de comprar 1 libra-peso, devendo-se acrescentar algo para suprir esta deficiência ou falta de peso. Por isso, o preço corrente do ouro em barras no mercado, em vez de ser o mesmo que o da Casa da Moeda, isto é; £ 46 14 s 6 d, era então cerca de £ 47 14 s e, por vezes, em torno de 48 libras. Quando, porém, a maior parte da moeda estava nessa condição desvalorizada, 44 1/2 guinéus recém-saídos da Casa da Moeda não comprariam mais mercadorias no mercado do que quaisquer outros guinéus normais, uma vez que, ao entrarem nos cofres do comerciante, por se confundirem com outras moedas, não tinham posteriormente condições de ser distinguidos sem um trabalho maior do que valeria a diferença. Como os outros guinéus, não valiam mais que £ 46 14 s 6 d. Todavia, ao serem fundidos, produziam, sem perda sensível, 1 libra-peso de ouro padrão, que podia ser vendida a qualquer momento por entre £ 47 14 s e 48 libras, em ouro ou em prata, tão indicadas para todos os fins de cunhagem quanto a libra-peso que fora fundida. Havia, portanto, um lucro evidente em fundir dinheiro recém-cunhado, e isso era feito tão instantaneamente, que nenhuma me52
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dida do Governo poderia impedi-lo. Por esse motivo, as operações da Casa da Moeda assemelhavam-se um pouco às malhas de Penélope: o trabalho feito durante o dia era desfeito durante a noite. A Casa da Moeda servia não tanto para fazer novos acréscimos diários à moeda, mas antes para substituir exatamente a melhor parte da moeda diariamente fundida. Se as pessoas particulares que levam seu ouro e sua prata à Casa da Moeda tivessem que pagar elas mesmas as despesas da cunhagem, isso acrescentaria algo ao valor desses metais, da mesma forma que o trabalho o faz no caso dos objetos de ouro e prata. O ouro e a prata cunhados valeriam mais que o ouro e a prata não cunhados. A taxa real sobre a cunhagem, se não fosse exorbitante, acrescentaria ao ouro em barras o pleno valor do imposto ou taxa, uma vez que, pelo fato de possuir o Governo em toda parte o privilégio exclusivo da cunhagem, nenhuma moeda pode chegar ao mercado a preço inferior àquele que o Governo considera indicado. Sem dúvida, se o imposto fosse exorbitante, isto é, se fosse muito superior ao valor real do trabalho e da despesa exigidos para a cunhagem, os cunhadores de moeda falsa, tanto no país como no exterior, poderiam sentir-se encorajados, devido à grande diferença entre o valor do metal em barras e do metal em moeda, a derramar no país uma quantidade tão grande de moeda falsa que poderia reduzir o valor do dinheiro oficial. Na França, porém, embora a taxa real de cunhagem seja de 8%, não se tem constatado que ela tenha gerado algum inconveniente sensível desse gênero. Os perigos aos quais está sempre exposto um cunhador de moeda falsa, se viver no país cuja moeda ele está adulterando, e aos quais estão expostos seus agentes ou correspondentes, se ele viver fora do país, são excessivamente grandes para que alguém se atreva a correr tais riscos por um lucro de 6% ou 7%. A taxa real de cunhagem na França faz aumentar o valor da moeda mais do que em proporção à quantidade de ouro puro que ela contém. Assim, pelo edito de janeiro de 1726, o3 preço do ouro fino de 24 quilates, na Casa da Moeda, foi fixado em 640 libras francesas, 9 soldos e 1 1/11 dinheiro, o marco de 8 onças de Paris. A moeda francesa em ouro, levando em consideração o remédio da Casa da Moeda, contém 21 quilates e 3/4 de ouro fino e 2 quilates e 1/4 de liga. Por isso, o marco de ouro padrão não vale, assim, mais do que aproximadamente 671 libras e 10 dinheiros. Mas na França esse marco de ouro padrão é cunhado em 30 luíses de ouro de 24 libras cada, ou seja, em 720 libras. A cunhagem, portanto, aumenta o valor de um marco de ouro padrão em barras pela diferença entre 671 libras e 10 dinheiros e 720 libras, ou 48 libras, 19 soldos e 2 dinheiros. Em muitos casos, a taxa real de cunhagem elimina totalmente o lucro que se poderia auferir na fusão da moeda nova e, em todos os casos, diminui esse lucro. Esse lucro sempre provém da diferença entre a quantidade de metal em barras que a moeda corrente deveria conter, e a que efetivamente ela 3
Ver Dictionnaire des Monnaies. t. II, artigo “Seigneurage”, p. 489, por Mons. l’Abbé de Bazinghen, Conselheiro-Comissário no Palácio da Moeda em Paris. 53
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contém. Se essa diferença for inferior à taxa real de cunhagem, haverá perda, em vez de lucro. Se a diferença for igual à taxa real de cunhagem, não haverá nem lucro nem perda. Se ela for maior que a taxa real de cunhagem, haverá certamente algum lucro, mas menos do que se a taxa não existisse. Se, por exemplo, antes da última reforma da moeda-ouro tivesse existido uma taxa real de cunhagem de 5%, teria havido uma perda de 3% na fusão da moeda em ouro. Se a taxa de cunhagem tivesse sido de 2%, não teria havido nem lucro nem perda. Se a taxa tivesse sido de 1%, teria havido um lucro, mas apenas de 1%, e não de 2%. Portanto, onde quer que se receba dinheiro por soma, e não por peso, uma taxa real de cunhagem constitui o meio mais eficaz de evitar a fusão da moeda e, pela mesma razão, para evitar sua exportação. São as moedas melhores e mais pesadas que costumam ser fundidas ou exportadas, pois é sobre elas que se auferem os maiores lucros. A lei de estímulo à cunhagem, por isentá-la de taxa ou imposto, foi pela primeira vez estabelecida durante o reinado de Carlos II, por um período limitado; posteriormente, foi prolongada, mediante diversas prorrogações, até 1769, quando se tornou perpétua. O Banco da Inglaterra, para encher seus cofres de dinheiro, muitas vezes é obrigado a levar metal em barras à Casa da Moeda; provavelmente ele imaginou que atendia melhor a seus interesses se as despesas de cunhagem corressem por conta do Governo do que se corressem por conta dele. Foi provavelmente para satisfazer a este grande banco que o Governo concordou em tornar perpétua essa lei. Se, porém, caísse em desuso o costume de pesar ouro, como é muito provável que ocorra, devido aos inconvenientes dessa praxe; se a moeda-ouro da Inglaterra passasse a ser recebida por soma, como acontecia antes da recente recunhagem, esse grande banco talvez pudesse constatar que, como em algumas outras ocasiões, também nessa se enganou bastante na defesa de seus próprios interesses. Antes da última recunhagem, quando o dinheiro-ouro da Inglaterra estava 2% abaixo de seu peso-padrão, como não havia taxa real sobre a cunhagem, ele estava 2% abaixo do valor da quantidade de ouro-padrão em barras que deveria ter contido. Quando, pois, esse grande banco comprava ouro em barras para cunhagem, era obrigado a pagar por ele 2% a mais do que valia depois da cunhagem. Entretanto, se tivesse havido uma taxa real de 2% na cunhagem, o dinheiro corrente normal em ouro, embora 2% abaixo de seu peso-padrão, não obstante isto teria sido igual em valor à quantidade de ouro-padrão que deveria ter contido, já que, nesse caso, o valor da feitura compensaria a diminuição do peso. Sem dúvida, o banco teria tido que pagar a taxa real da cunhagem, que sendo de 2%, a perda do banco na transação total teria sido exatamente a mesma de 2%, mas não maior do que efetivamente era. Se a taxa real de cunhagem tivesse sido de 5% abaixo e a moeda corrente em ouro estivesse apenas 2% abaixo de seu peso-padrão, nesse caso o banco teria ganhado 3% sobre o preço do ouro em barras; entretanto, por ter que pagar uma taxa de 5% na cunhagem, sua perda na transação total teria sido, da mesma forma, exatamente de 2%. Se 54
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a taxa real de cunhagem tivesse sido apenas de 1% abaixo, e a moeda corrente em ouro tivesse estado 2% abaixo de seu peso-padrão, nesse caso o banco teria perdido apenas 1% sobre o preço do ouro em barras; todavia, por ter também que pagar uma taxa real de 1% na cunhagem, sua perda na transação total teria sido exatamente de 2%, da mesma forma que em todos os outros casos. Se houvesse uma taxa real razoável de cunhagem, e ao mesmo tempo a moeda contivesse seu peso-padrão pleno, como tem ocorrido, com muita aproximação desde a recente recunhagem, tudo o que o banco pudesse perder na taxa real de cunhagem, ganhá-lo-ia no preço do ouro em barras; e tudo o que ele pudesse ganhar no preço do ouro em barras, perdê-lo-ia pela taxa real de cunhagem. Eis por que, na transação total, não perderia nem ganharia, e nesse caso, como em todos os anteriores, o banco estaria exatamente na mesma situação em que se encontraria no caso de não haver taxa real de cunhagem. Quando a taxa incidente sobre uma mercadoria é tão moderada a ponto de não estimular o contrabando, o comerciante que lida com essa mercadoria, embora adiante o seu pagamento, não a paga propriamente, já que a recupera no preço da mercadoria. Em última análise, a taxa é paga pelo último comprador ou consumidor. Ora, o dinheiro é uma mercadoria em relação à qual toda pessoa é um comerciante. Ninguém o compra senão para revendê-lo, não havendo, portanto, em casos normais, em relação ao dinheiro, um último comprador ou consumidor. Quando, por conseguinte, a taxa real de cunhagem é tão moderada a ponto de não encorajar a cunhagem de dinheiro falso, embora todos adiantem o pagamento da taxa, em última análise ninguém a paga, já que todos a recuperam no valor adiantado da moeda. Por conseguinte, uma taxa real de cunhagem, desde que moderada, em caso algum aumentaria a despesa do banco, ou de qualquer outra pessoa particular que levasse seu ouro em barras à Casa da Moeda para cunhagem, e a ausência de uma taxa moderada em caso algum diminui essa despesa. Haja ou não haja uma taxa real de cunhagem, se a moeda corrente contiver seu pleno peso-padrão, a cunhagem não custa nada a ninguém e, se ela estiver abaixo desse peso, a cunhagem sempre deverá custar a diferença entre a quantidade de metal em barra que ela deveria conter e a que realmente contém. Em conseqüência, o Governo, ao cobrir a despesa da cunhagem, não somente incorre em pequena despesa, como também perde uma pequena renda, que poderia auferir através de uma taxa adequada; por outro lado, nem o banco nem qualquer outra pessoa particular auferem o mínimo benefício desse inútil ato de generosidade pública. No entanto, os diretores do banco provavelmente não estariam dispostos a concordar com a imposição de uma taxa real de cunhagem, baseados em uma especulação que, embora não lhes prometa nenhum ganho, apenas poderá assegurá-los contra qualquer perda. No atual estado da moeda-ouro, e enquanto ela continuar a ser recebida por peso, eles certamente não ganhariam nada com essa mudança. Se, 55
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porém, algum dia caísse em desuso o costume de pesar a moeda-ouro, como com muita probabilidade acontecerá, e se a moeda-ouro um dia caísse no mesmo estado de desvalorização no qual se encontrava antes da última recunhagem, provavelmente seria bem considerável o ganho ou, falando com mais propriedade, a economia do banco, em decorrência da imposição da taxa real de cunhagem. O Banco da Inglaterra é a única companhia que envia à Casa da Moeda quantidades consideráveis de ouro em barras, com o que o peso da cunhagem anual recai totalmente ou quase totalmente sobre ele. Se essa cunhagem anual para outra coisa não servisse, a não ser reparar as perdas inevitáveis e o desgaste necessário da moeda, raramente poderia superar 50 mil ou, no máximo, 100 mil libras. Entretanto, quando a moeda está desvalorizada abaixo de seu peso-padrão, a cunhagem anual deve, além disso, preencher os grandes vazios gerados continuamente na moeda corrente, pela exportação e pelo cadinho. Foi por isso que, durante 10 ou 12 anos que precederam imediatamente a última reforma da moeda-ouro, a cunhagem anual ascendeu, em média, a mais de 850 mil libras. Entretanto, se tivesse havido uma taxa real de 4 ou 5% na cunhagem da moeda-ouro, ela provavelmente teria posto um fim efetivo tanto ao negócio da exportação quanto ao do cadinho, mesmo na situação em que as coisas então se encontravam. O banco, em vez de perder, cada ano, aproximadamente 2,5% sobre o ouro em barras que tinha que ser cunhado em mais de 850 mil libras, ou de incorrer em uma perda anual de mais de 21 250 libras, provavelmente não teria sofrido sequer a décima parte dessa perda. A renda concedida pelo Parlamento para cobrir a despesa da cunhagem é de apenas 14 mil libras por ano, e a despesa real que ela custa ao Governo, ou os honorários dos oficiais da Casa da Moeda não superam, em ocasiões normais, a metade dessa quantia, segundo me asseguram. Poder-se-ia pensar que a economia de uma soma tão irrelevante, ou mesmo o ganho de uma outra soma, que dificilmente poderia ser muito maior, sejam coisas muito insignificantes para merecer a atenção séria do Governo. Contudo, a economia de 18 mil ou 20 mil libras por ano, no caso de um evento não improvável, pois ocorreu anteriormente com freqüência, sendo muito provável que volte a ocorrer, certamente é algo que merece atenção séria por parte de uma companhia tão grande como o Banco da Inglaterra. Algumas das ponderações e observações precedentes talvez tivessem encontrado lugar mais apropriado nos capítulos do Livro Primeiro, que tratam da origem e do uso do dinheiro, bem como da diferença entre o preço real e o preço nominal das mercadorias, todavia, uma vez que a lei de estímulo à cunhagem tem sua origem nos preconceitos vulgares introduzidos pelo sistema mercantil, julguei mais apropriado reservá-las ao presente capítulo. Nada poderia ser mais agradável ao espírito do sistema mercantil do que uma espécie de subsídio à produção do dinheiro, exatamente aquilo que, de acordo com o citado sistema, constitui a riqueza de cada nação. O dinheiro é um dos muitos expedientes admiráveis desse sistema para enriquecer o país. 56
CAPÍTULO VII As Colônias PARTE PRIMEIRA OS MOTIVOS
DA
FUNDAÇÃO
DE
NOVAS COLÔNIAS
O interesse que provocou a fundação das diversas colônias européias na América e nas Índias Ocidentais não foi tão manifesto e distinto como o interesse que conduziu a fundação das colônias da Grécia e da Roma Antigas. Cada um dos diversos Estados da Grécia Antiga possuía apenas um território muito pequeno e quando a população de qualquer um deles se multiplicava além do contingente que o território tinha condições de sustentar com facilidade, uma parte era enviada a buscar um novo habitat em alguma região longínqua e distante do mundo, já que os belicosos vizinhos que a rodeavam de todos os lados tornavam difícil, para todos, ampliar muito mais seu próprio território. As colônias dos dórios se dirigiram sobretudo à Itália e à Sicília, as quais, nos tempos anteriores à fundação de Roma, eram habitadas por nações bárbaras e incivilizadas; as dos jônicos e dos eólios, as duas outras grandes tribos gregas, encaminharam-se para a Ásia Menor e para as ilhas do mar Egeu, cujos habitantes, naquela época, parecem ter estado quase na mesma condição que os da Sicília e da Itália. A cidade-mãe, embora considerando a colônia como uma criança, sempre merecedora de grandes favores e ajuda e, em troca, devedora de muita gratidão e respeito, a tinha na conta de uma filha emancipada, sobre a qual não pretendia absolutamente exercer nenhuma autoridade ou jurisdição diretas. A colônia criava sua própria forma de governo, estabelecia suas próprias leis, elegia seus próprios magistrados, e mantinha paz ou fazia guerra com seus vizinhos, como um Estado independente, que não precisava esperar pela aprovação ou consentimento da cidade-mãe. 57
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Nada pode ser mais claro e distinto que o interesse que norteou cada um desses estabelecimentos. Roma, como a maioria das demais repúblicas antigas, foi originalmente fundada sobre uma lei agrária, a qual dividia o território público, segundo certa proporção, entre os diversos cidadãos que compunham o Estado. A evolução das atividades humanas, através do casamento, da sucessão e da alienação, necessariamente perturbou essa divisão original, fazendo freqüentemente com que caíssem na posse de uma só pessoa as terras que haviam sido distribuídas para a manutenção de muitas famílias diferentes. Para remediar essa desordem — pois assim foi considerada — estabeleceu-se uma lei, registrando a 500 jugera, aproximadamente 350 acres ingleses, a extensão de terra que qualquer cidadão podia possuir. Embora, porém, se leia que essa lei foi executada em uma ou duas ocasiões, ela era negligenciada ou burlada, continuando a crescer continuamente a desigualdade de posses. A maior parte dos cidadãos não possuía terra e, devido às maneiras e costumes da época, sem ela era difícil uma pessoa livre manter sua independência. Na época atual, ainda que uma pessoa pobre não possua terra própria, se tiver um pequeno estoque ou capital, pode cultivar as terras de outrem ou exercer alguma pequena atividade comercial varejista; e, se não tiver capital algum, pode encontrar emprego como trabalhador rural ou como artífice. Entre os antigos romanos, porém, todas as terras dos ricos eram cultivadas por escravos, que trabalhavam sob um supervisor, também ele escravo; assim sendo, uma pessoa livre, mas pobre, tinha pouca oportunidade de empregar-se como trabalhador ou lavrador. Também todos os tipos de comércio e manufaturas, mesmo o comércio varejista, eram executados pelos escravos dos ricos em benefício dos patrões, cuja riqueza, autoridade e proteção dificultavam a um homem livre, mas pobre, sustentar a concorrência contra eles. Por isso, os cidadãos que não possuíam terra dificilmente dispunham de outro meio de subsistência senão as gratificações dos candidatos às eleições anuais. Os tribunos, quando tencionavam incitar a população contra os ricos e os grandes, recordavam-lhe a antiga divisão das terras, apresentando essa lei que restringia tal tipo de propriedade privada como a lei fundamental da República. O povo começou a pressionar para adquirir terra, e os ricos e os grandes — assim é de crer — estavam firmemente decididos a não lhes dar a mínima parte das terras. Por isso, para satisfazê-los de alguma forma, com freqüência propunham enviá-los a uma nova colônia. Entretanto, a conquistadora Roma, mesmo em tais ocasiões, não tinha nenhuma necessidade de enviar seus cidadãos à procura de sua fortuna, se assim pudermos dizer, pelo vasto mundo, sem saberem onde se estabeleceriam. Destinava-lhes terras geralmente nas províncias conquistadas da Itália onde, estando dentro dos domínios da República, jamais tinham condições de formar um Estado independente; constituíam, na melhor das hipóteses, uma espécie de corporação, a qual, embora tendo o poder de estabelecer leis privadas para seu próprio governo, sempre estava su58
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jeita à correção, jurisdição e autoridade legislativa da cidade-mãe. O envio de uma colônia desse gênero não somente dava alguma satisfação ao povo, como ainda muitas vezes também estabelecia uma espécie de guarnição em uma província recentemente conquistada, cuja obediência, de outra forma, poderia ser duvidosa. Eis por que uma colônia romana, quer consideremos a natureza da própria instituição, quer consideremos os motivos que levaram a estabelecê-la, era totalmente diferente de uma colônia grega. Por essa razão também as palavras, que nas línguas originais designam essas instituições diferentes, têm significados muito diversos. A palavra latina Colonia significa simplesmente uma colonização. A palavra grega apoikía, ao contrário, significa uma separação de moradia, uma partida de casa, uma saída da casa. Todavia, embora as colônias romanas diferissem sob muitos aspectos das gregas, o interesse que levou à sua fundação era igualmente manifesto e distinto. As duas instituições se originaram de uma necessidade irresistível ou de uma utilidade clara e evidente. O estabelecimento das colônias européias na América e nas Índias Ocidentais não se deveu a nenhuma necessidade; e embora a utilidade que delas resultou tenha sido muito grande, não é tão clara e evidente. Essa utilidade não foi entendida na primeira fundação das colônias, e não constituiu o motivo dessa fundação nem das descobertas que a ela levaram; e mesmo hoje talvez não se compreendam bem a natureza, a extensão e os limites dessa utilidade. Os venezianos, durante os séculos XIV e XV, mantinham um comércio muito rentável em especiarias e outros produtos das Índias Orientais, que redistribuíam às demais nações da Europa. Eles os compravam sobretudo no Egito, na época sob o domínio dos mamelucos, inimigos dos turcos, dos quais os venezianos eram inimigos; essa união de interesses, secundada pelo dinheiro de Veneza, formou tal conexão, que deu aos venezianos quase um monopólio desse comércio. Os grandes lucros dos venezianos constituíam uma tentação para a avidez dos portugueses. Estes se haviam empenhado, no decurso do século XV, em encontrar um caminho marítimo para os países dos quais os mouros lhes traziam marfim e ouro em pó através do deserto. Descobriram as ilhas da Madeira, as Canárias, os Açores, as ilhas de Cabo Verde, a costa da Guiné, a de Loango, Congo, Angola, Benguela e, finalmente, o cabo da Boa esperança. Durante muito tempo os portugueses haviam desejado partilhar dos lucros do rentável comércio dos venezianos, e essa última descoberta lhes abriu a perspectiva de atingir essa meta. Em 1497, Vasco da Gama zarpou do porto de Lisboa com uma esquadra de quatro navios e, depois de uma navegação de onze meses, chegou à costa do Hindustão, completando assim uma série de descobertas que haviam sido perseguidas com grande constância e muito pouca interrupção durante quase um século, continuamente. Alguns anos antes disso, enquanto as expectativas da Europa estavam em suspenso no tocante aos projetos dos portugueses — cujo êxito ainda parecia duvidoso —, um piloto genovês concebeu o ainda 59
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mais ousado projeto de navegar para as Índias Orientais pelo ocidente. Eram ainda muito imperfeitos os conhecimentos que, nessa época, tinha-se na Europa sobre a localização desses países. Os poucos viajantes europeus que haviam estado lá tinham exagerado a distância: talvez por ingenuidade e ignorância, uma distância realmente muito grande parecia quase infinita àqueles que não possuíam meios para medi-la; ou, então, esses viajantes eram levados a exagerar a distância para aumentar um pouco mais o caráter maravilhoso de suas próprias aventuras, ao visitarem regiões tão distantes da Europa. Colombo concluiu muito corretamente que, quanto mais longo fosse o caminho pelo Oriente, tanto mais curto ele seria pelo Ocidente. Propôs-se, pois, a procurar o caminho pelo Ocidente, como sendo o mais curto e o mais seguro, e teve a sorte de convencer Isabel de Castela da probabilidade de êxito de seu projeto. Zarpou do porto de Palos em agosto de 1492, quase cinco anos antes da expedição de Vasco da Gama partir de Portugal, e, após uma viagem de dois a três meses, descobriu pela primeira vez algumas das pequenas ilhas Bahamas ou Lucayan e, depois, a grande ilha de São Domingos. Entretanto, as regiões descobertas por Colombo, tanto nessa como em qualquer de suas viagens subseqüentes, não apresentavam nenhuma semelhança com aquelas que procurava. Em vez da riqueza, de terra cultivada e da densa população da China e do Hindustão, nada encontrou, em São Domingos e em todas as outras regiões do novo mundo que visitou, a não ser uma região totalmente coberta de florestas, incultivada e habitada somente por algumas tribos de selvagens nus e em estado de miséria. Contudo, não estava muito inclinado a crer que essas terras não se identificassem com algumas das regiões descritas por Marco Polo, o primeiro europeu que havia visitado a China ou as Índias Orientais ou ao menos tinha deixado alguma descrição delas; e até mesmo uma semelhança muito leve, tal como a que encontrou entre o nome de Cibao, montanha de São Domingos, e o de Cipango, mencionado por Marco Polo, muitas vezes foi suficiente para fazê-lo insistir nesse preconceito favorito, ainda que contrário à mais clara evidência. Em suas cartas a Fernando e Isabel, Colombo deu o nome de Índias às regiões que havia descoberto. Não tinha nenhuma dúvida de que essas regiões representavam a extremidade daquelas que haviam sido descritas por Marco Polo, e que não distavam muito do rio Ganges, ou das regiões que haviam sido conquistadas por Alexandre. Mesmo quando, finalmente, ele se convenceu de que se tratava de regiões diferentes, Colombo continuou a lisonjear-se de que aquelas regiões ricas não eram muito distantes, e por isso, em uma viagem subseqüente, foi à procura delas ao longo da costa da Terra Firma e em direção ao istmo de Darién. Em conseqüência desse engano de Colombo, desde então essas infelizes terras passaram a denominar-se Índias; e quando, finalmente, se descobriu claramente que as novas “Índias” eram totalmente diferentes das velhas Índias, as primeiras passaram a denominar-se Índias 60
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Ocidentais, em contraposição às últimas, que passaram a chamar-se Índias Orientais. Contudo, era importante para Colombo que as regiões por ele descobertas, quaisquer que fossem elas, fossem apresentadas à Corte espanhola como de grande relevância; ora, por aquilo que constituía a riqueza real de cada uma dessas terras — os produtos animais e vegetais do solo — não havia, naquela época, nada que pudesse justificar tal imagem. O Cori, animal intermediário entre um rato e um coelho — e que o Sr. Buffon supôs identificar-se ao Aperea do Brasil — era o maior quadrúpede vivíparo existente em São Domingos. Essa espécie nunca parece ter sido muito numerosa, afirmando-se que os cães e gatos dos espanhóis há muito tempo a extinguiram quase totalmente, junto com algumas outras espécies de tamanho ainda menor. Ora, esses animais, além de um lagarto bastante grande, denominado ivana ou iguana, constituíam o principal alimento animal oferecido ali pela terra. O alimento vegetal dos habitantes, embora não muito abundante, devido à falta de maior labor, não era assim tão escasso. Consistia em certa espécie de milho, cará ou inhame, batatas, bananas etc., plantas que na época eram inteiramente desconhecidas na Europa e que, desde então, nunca foram muito apreciadas aqui, acreditando-se não proporcionar um sustento igual ao proporcionado pelos tipos comuns de cereais e legumes cultivados na Europa desde tempos imemoriais. Sem dúvida, o algodoeiro fornecia a matéria-prima de uma manufatura muito importante, constituindo para os europeus, naquela época, o mais valioso de todos os produtos vegetais daquelas ilhas. Todavia, embora, no final do século XV, as musselinas e outros artigos de algodão das Índias Orientais fossem muito estimados em toda Europa, a manufatura do próprio algodão não era aperfeiçoada em nenhuma parte dela. Por isso, mesmo esse produto, na época, não podia afigurar-se muito importante aos olhos dos europeus. Não encontrando nos animais nem nos vegetais dos países recém-descobertos nada que pudesse justificar uma descrição muito favorável deles, Colombo voltou sua atenção para os minerais; e na riqueza dos produtos do reino mineral lisonjeava-se em ter encontrado plena compensação pela insignificância dos produtos do reino animal e vegetal. Os pequenos objetos de ouro com os quais os habitantes locais ornamentavam sua roupa, e que — como havia sido informado — com freqüência eles encontravam nos córregos e nas torrentes que caíam das montanhas, foram suficientes para convencê-lo de que essas montanhas tinham em abundância as mais ricas minas de ouro. Por isso, São Domingos foi apresentada como uma região abundante em ouro e, em razão disso (de acordo com os preconceitos, não somente da época atual, mas também de então), como a fonte inexaurível de riqueza real para a Coroa e o reino da Espanha. Quando Colombo, ao retornar de sua primeira expedição, foi apresentado com uma espécie de honras triunfais aos soberanos de Castela e Aragão, diante dele 61
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foram carregados em procissão solene os produtos principais das regiões que ele havia descoberto. A única parte valiosa desses produtos consistia em alguns pequenos filetes, braceletes e outros ornamentos de ouro e alguns fardos de algodão. Os demais não passavam de objetos de admiração e curiosidade vulgar: alguns caniços ou juncos de tamanho fora do comum, alguns pássaros com plumagem extraordinariamente linda e alguns exemplares empalhados de aligátor gigante e do manatim; tudo isso foi precedido por seis ou sete míseros representantes nativos, cujas cor e aparência singulares muito contribuíram para a novidade do espetáculo. Em conseqüência da imagem transmitida por Colombo, o Conselho de Castela determinou tomar posse de regiões cujos habitantes eram simplesmente incapazes de se defender. O pio objetivo de convertê-los ao cristianismo santificou a injustiça do projeto. Entretanto, o único motivo que levou a essa tomada de posse foi a esperança de lá encontrar tesouros de ouro; e para dar maior peso a essa motivação, Colombo propôs que passasse a pertencer à Coroa a metade de todo o ouro e prata que se viesse a encontrar lá. A proposta foi aprovada pelo Conselho. Enquanto o total ou a maior parte do ouro importado na Europa pelos primeiros aventureiros era obtida por um método tão fácil como o saque aos nativos indefesos, talvez não fosse muito difícil pagar essa taxa, ainda que pesada. Contudo, uma vez que os nativos haviam sido literalmente despojados de tudo o que possuíam — o que foi totalmente feito em seis ou oito anos, em São Domingos e em todas as outras regiões descobertas por Colombo — e quando, para se encontrar mais ouro e prata, se tornara necessário extrair o metal das minas, já não havia nenhuma possibilidade de pagar à Coroa imposto tão elevado. Afirma-se, pois, que a cobrança rigorosa desse imposto provocou o abandono total das minas de São Domingos, que desde então não foram mais exploradas. Em conseqüência, o imposto foi logo reduzido a 1/3 da produção bruta das minas de ouro, e posteriormente a 1/5, a 1/10 e, finalmente, a 1/20. O imposto sobre a prata continuou por muito tempo a ser de 1/5 da produção bruta. Só foi reduzido a 1/10 no decurso do século atual. Entretanto, os primeiros aventureiros não parecem ter se interessado muito pela prata. Nada que fosse menos precioso que o ouro lhes parecia digno de atenção. Todos os outros empreendimentos dos espanhóis no Novo Mundo, depois dos de Colombo, parecem ter sido conduzidos pelo mesmo motivo. Foi a sede sagrada de ouro que levou Oieda, Nicuesa e Vasco Nuñez de Balboa ao istmo de Darién. Cortez, ao México, e Almagro e Pizarro, ao Chile e ao Peru. Quando esses aventureiros aportavam a alguma costa desconhecida, sua primeira pergunta era sempre se lá se podia encontrar ouro; e, conforme resposta que recebiam a essa pergunta, decidiam abandonar o local ou fixar-se nele. Entretanto, dentre todos os projetos dispendiosos e incertos que levam à bancarrota a maior parte das pessoas que a eles se dedicam, 62
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talvez não tenha havido nenhum mais prejudicial do que a procura de novas minas de prata e ouro. Talvez seja essa a loteria menos desvantajosa do mundo, isto é, aquela em que o ganho daqueles que levam os prêmios é o menos proporcional à perda por parte daqueles que não acertam no alvo; com efeito, embora os prêmios sejam poucos e os alvos sejam muitos, o preço normal de um bilhete é a fortuna inteira de uma pessoa riquíssima. Os projetos de mineração, em vez de repor o capital neles empregado, juntamente com os lucros normais do capital, comumente absorvem tanto o capital como o lucro. Eis por que são esses os projetos aos quais, em comparação com todos os outros, um legislador prudente, que desejar aumentar o capital de sua nação, menos deveria escolher para conceder qualquer estímulo extraordinário ou para canalizar para eles uma parcela de capital superior àquela que espontaneamente neles se aplicaria. Tal é, na realidade, a confiança absurda que quase todas as pessoas têm em sua própria boa sorte que, onde quer que haja a mínima probabilidade de êxito, uma parcela excessivamente grande de capital tende a ser aplicada espontaneamente em tais projetos. Entretanto, embora o julgamento da razão sóbria e da experiência no tocante a esses projetos sempre tenha sido extremamente desfavorável, bem outro tem sido geralmente o julgamento ditado pela avidez humana. A mesma paixão que sugeriu a tantas pessoas a idéia absurda da pedra filosofal, sugeriu a outras a idéia igualmente absurda de minas imensamente ricas de ouro e prata. Não levaram em conta que o valor desses metais, em todas as épocas e nações, proveio sobretudo de sua escassez, e que sua escassez se deveu ao fato de serem sempre muito reduzidas as quantidades de ouro e prata depositadas pela natureza em um lugar, ao fato de a natureza ter feito com que essas quantidades reduzidas de ouro e prata quase sempre estejam mescladas a substâncias duras e intratáveis e, portanto, ao fato de se requerer sempre muito trabalho e muitos gastos para se chegar a esses metais preciosos. Essas pessoas iludiam-se com a idéia de que em muitos lugares se pode encontrar veios desses metais, tão grandes e abundantes quanto os que se costuma encontrar de chumbo, cobre, estanho ou ferro. O sonho de Sir Walter Raleigh com relação à cidade e ao país de ouro de Eldorado pode convencer-nos de que mesmo pessoas sábias nem sempre estão isentas de tais ilusões estranhas. Mais de cem anos após a morte desse grande homem, o jesuíta Gumilla ainda continuava convencido da realidade desse país maravilhoso, exprimindo com grande entusiasmo — e ouso dizer, com grande sinceridade — quão feliz ele seria em poder levar a luz do Evangelho a um povo que teria condições de recompensar tão bem os pios trabalhos de seu missionário. Nos países descobertos pela primeira vez pelos espanhóis, não se conhecem atualmente minas de ouro ou prata, cuja exploração, segundo se supunha, era digna de ser levada a efeito. Provavelmente, foram muito exageradas as quantidades desses metais que se diz terem sido lá encontradas pelos primeiros aventureiros, o mesmo se podendo 63
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dizer quanto à riqueza das minas exploradas imediatamente depois da primeira descoberta. Todavia, o que se diz terem esses aventureiros descoberto foi suficiente para atiçar a avidez de todos os seus compatriotas. Todo espanhol que navegava para a América esperava encontrar um Eldorado. Além disso, a sorte fez, nessa ocasião, o que fez em raras outras. Ela concretizou, até certo ponto, as esperanças extravagantes de seus devotos e na descoberta e conquista do México e do Peru (a primeira ocorrida aproximadamente trinta anos depois da primeira expedição de Colombo, e a segunda mais ou menos quarenta anos depois dessa expedição), os presenteou com algo não muito diferente daquela profusão de metais preciosos que procuravam. Como se vê, foi um projeto de comércio com as Índias Orientais que levou à primeira descoberta do Ocidente. Um projeto de conquista deu origem a todas as fundações dos espanhóis naqueles países recém-descobertos. O motivo que os incitou a essa conquista foi um projeto de exploração de minas de ouro e prata; e uma série de eventos, que nenhuma sabedoria humana poderia prever, fez com que esse projeto tivesse muito mais sucesso do que aquele que os empregadores tinham quaisquer motivos razoáveis para esperar. Os primeiros aventureiros de todas as outras nações européias que tentaram fundar colônias na América estavam animados pelas mesmas visões quiméricas, porém não tiveram o mesmo sucesso. Foi somente mais de cem anos depois do estabelecimento da primeira colônia no Brasil que lá se descobriram minas de prata, ouro ou diamantes. Nas colônias inglesas, francesas, holandesas e dinamarquesas até agora não se descobriu nenhuma mina ou, pelo menos, nenhuma cuja exploração se suponha atualmente valer a pena. Entretanto, os primeiros colonizadores ingleses na América do Norte ofereceram ao rei 1/5 de todo o ouro e prata que já viessem a encontrar, para conseguir a licença de exploração. Por isso, reservou-se à Coroa essa quinta parte, nas licenças concedidas a Sir Walter Raleigh, às companhias de Londres e de Plymouth, ao Conselho de Plymouth etc. À expectativa de encontrar minas de ouro e prata, esses primeiros colonizadores juntaram ainda a de descobrir uma passagem para as Índias Orientais pelo noroeste. Até agora, essas duas expectativas não se concretizaram. PARTE SEGUNDA CAUSAS
DA
PROSPERIDADE
DAS
NOVAS COLÔNIAS
Os colonizadores de uma nação civilizada que toma posse de um país, seja este desabitado ou tão pouco habitado que os nativos facilmente dão lugar aos novos colonizadores, progridem no caminho da riqueza e da grandeza com rapidez maior do que qualquer outra sociedade humana. Os colonizadores levam consigo um conhecimento da agricultura 64
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e de outros ofícios úteis, superior àquele que pode desenvolver-se espontaneamente entre nações selvagens e bárbaras, no decurso de muitos séculos. Além disso, levam consigo o hábito da subordinação, alguma noção sobre o governo regular existente em seu país de origem, sobre o sistema de leis que lhe dá sustentação e sobre uma administração regular da Justiça e, naturalmente, implantam algo do mesmo tipo na nova colônia. Ora, entre as nações selvagens e bárbaras, o progresso natural da legislação e do governo é ainda mais lento do que o progresso natural das artes e ofícios, depois de as leis e o governo se implantarem na medida necessária para a proteção dos mesmos. Todo colonizador adquire terra em quantidade superior àquela que tem possivelmente condições de cultivar. Não tem que pagar renda da terra, e dificilmente há impostos a pagar. Não precisa repartir a produção com nenhum proprietário de terras, e o que paga ao soberano costuma ser uma ninharia. Ele tem toda motivação para produzir o máximo possível, e essa produção, em tais circunstâncias, é quase inteiramente dele. Entretanto, sua terra geralmente é tão vasta que, com todo o seu próprio trabalho e com todo o trabalho de outras pessoas que pode vir a empregar, raramente tem condições de fazê-la produzir a décima parte do que ela é capaz. Por isso, ele anseia conseguir mãode-obra de toda parte e pagar-lhe os salários mais generosos. Todavia, esses salários generosos, associados à abundância e ao baixo preço das terras, logo levam esses trabalhadores a deixarem o serviço do patrão para se transformarem, também eles, em proprietários de terras e pagar salários igualmente generosos a outros trabalhadores, os quais, por sua vez, logo deixam também o serviço desses patrões, pela mesma razão que estes abandonaram o serviço do primeiro patrão. Os salários generosos pagos aos trabalhadores estimulam o casamento. As crianças, durante os tenros anos da infância, são bem alimentadas e adequadamente cuidadas, de sorte que, ao chegarem à idade adulta, o valor de seu trabalho supera de muito a despesa de sua manutenção. Quando chegam à maturidade, o alto preço da mão-de-obra e o baixo preço das terras lhes possibilitam estabelecerem-se, da mesma forma que o fizeram seus pais, antes deles. Em outros países, a renda da terra e o lucro devoram os salários, e as duas classes superiores da população oprimem a classe inferior. Ao contrário, nas novas colônias, o interesse das duas classes superiores as obriga a tratar a classe inferior com mais generosidade e humanidade, pelo menos onde a classe inferior não for composta de escravos. Pode-se comprar por uma ninharia terras desabitadas e da maior fertilidade natural. O aumento de renda que o proprietário — que é sempre o empresário — espera do aprimoramento das terras constitui seu lucro, o qual, nessas circunstâncias, é comumente muito elevado. Entretanto, esse grande lucro não pode ser auferido sem o emprego do trabalho de outras pessoas, em roçar e cultivar a terra; outrossim, a desproporção entre a grande extensão da terra e o baixo índice populacional, fenômeno comum nas novas colônias, torna difícil ao proprie65
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tário conseguir essa mão-de-obra. Por isso, ele não briga por salários, mas antes está disposto a empregar mão-de-obra a qualquer preço. Os altos salários estimulam o aumento da população. O baixo preço e a abundância das terras de boa qualidade estimula o seu aprimoramento, possibilitando aos proprietários o pagamento desses salários altos. Nesses salários consiste quase todo o preço da terra; e, embora sejam altos, se considerados como salários do trabalho, são baixos, se considerados como o preço do que tem tanto valor. O que estimula o aumento da população e do desenvolvimento estimula também o aumento da riqueza e da grandeza real. Eis por que, ao que parece, foi muito rápido o aumento da riqueza e da grandeza de muitas das antigas colônias gregas. No decurso de um ou dois séculos, várias delas perecem ter se ombreado com suas cidades-mães e tê-las até mesmo superado. Segundo todos os relatos, parece que Siracusa e Agrigento, na Sicília; Tarento e Locri, na Itália; Éfeso e Mileto, na Ásia Menor, no mínimo se igualaram a qualquer das cidades da Grécia Antiga. Embora posteriores em sua fundação, todas as artes requintadas, a Filosofia, a Poesia e a Eloqüência parecem ter sido cultivadas nessas cidades tão cedo quanto em qualquer outro lugar da mãe-pátria, tendo atingido o mesmo grau de desenvolvimento. É de se notar que as escolas dos dois filósofos gregos mais antigos, a de Tales e a de Pitágoras, foram estabelecidas — o que é extraordinário — não na Grécia Antiga, mas a primeira em uma colônia asiática e a segunda em uma colônia da Itália. Todas essas colônias tinham se estabelecido em países habitados por nações selvagens e bárbaras, que facilmente deram lugar aos novos colonizadores. Possuíam bastante terra de boa qualidade e por serem totalmente independentes da cidade-mãe tinham a liberdade de administrar seus próprios negócios da maneira que julgavam mais condizente com seus próprios interesses. A história das colônias romanas de forma alguma é tão brilhante. Algumas delas, sem dúvida, como Florença, chegaram a transformar-se em Estados consideráveis, no decurso de muitas gerações e após a queda da cidade-mãe. Entretanto, ao que parece, nenhuma delas jamais teve um progresso muito rápido. Todas essas colônias foram fundadas em províncias conquistadas que, na maioria dos casos, anteriormente já estavam plenamente habitadas. Raramente era muito grande a quantidade de terra atribuída a cada colonizador, e, como a colônia não era independente, nem sempre tinha liberdade para administrar seus negócios da maneira que considerasse mais condizente com seu próprio interesse. No tocante à abundância de terra de boa qualidade, as colônias européias implantadas na América e nas Índias Ocidentais se assemelham às colônias da Grécia Antiga, e até as superam de muito. Na dependência em relação ao Estado de origem, porém, essas colônias se assemelham às da Roma Antiga, embora a grande distância delas, em relação à Europa, tenha aliviado em grau maior ou menor os efeitos dessa dependência. Devido à sua localização, estavam menos sob as 66
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vistas e o controle do poder da mãe-pátria. Ao perseguirem seus interesses a seu próprio modo, em muitas ocasiões sua conduta foi perdida de vista por não ser conhecida ou por não ser compreendida na Europa, sendo que em outras ela foi gentilmente tolerada e aceita forçadamente, uma vez que a distância das colônias tornava difícil controlar tal conduta. Mesmo o governo violento e arbitrário da Espanha, em muitas ocasiões, foi obrigado a revogar ou a amenizar as ordens dadas para o governo de suas colônias, por temor a uma insurreição geral. Conseqüentemente, muito grande tem sido o progresso de todas as colônias européias em riqueza, população e desenvolvimento. A Coroa espanhola, por sua participação no ouro e na prata, auferiu alguma renda de suas colônias, desde o momento de sua primeira ocupação. Aliás, era uma renda de molde a excitar, na avidez humana, as expectativas mais extravagantes de riquezas ainda maiores. Por isso, as colônias espanholas, desde o momento de sua primeira implantação, atraíram muito a atenção de sua mãe-pátria, ao passo que as das demais nações européias foram, em grande parte, negligenciadas durante muito tempo. As primeiras talvez não tenham prosperado mais, em conseqüência da atenção recebida, e as segundas talvez tenham prosperado menos, precisamente em conseqüência da citada negligência. Em proporção com a extensão que, de certo modo, as colônias espanholas possuem, elas são consideradas menos povoadas e prósperas do que as de quase todas as outras nações européias. Entretanto, mesmo o progresso das colônias espanholas, em população e desenvolvimento, certamente foi muito rápido e muito grande. A cidade de Lima, fundada na época das conquistas, é descrita por Ulloa como contando 50 mil habitantes, há quase trinta anos. Quito, que não havia passado de mísero povoado de índios, é descrita pelo mesmo autor como tendo a mesma população em sua época. Gemelli Carreri, um pretenso viajante, como se diz, mas que sempre parece ter escrito com base em informações extremamente boas, descreve a cidade do México como tendo 100 mil habitantes — número que, a despeito de todos os exageros dos escritores espanhóis, provavelmente é mais de cinco vezes superior ao da população da cidade, no tempo de Montezuma. Essas cifras ultrapassam de muito a população de Boston, Nova York e Filadélfia, as três maiores cidades das colônias inglesas. Antes da conquista dos espanhóis não havia gado de tiro adequado nem no México nem no Peru. A lhama era seu único animal de carga, e sua força parece ter sido bem inferior à de um burro normal. O arado era desconhecido nesses países. Ignoravam o uso do ferro. Não possuíam dinheiro em moeda, nem elemento estabelecido de comércio, qualquer que fosse. Seu comércio era feito por escambo. Seu instrumento principal na agricultura era uma espécie de pá de madeira. Pedras afiadas serviam-lhes como facas e machadinhas para cortar, ossos de peixe e tendões duros de certos animais lhes serviam como agulhas para costurar. Esses parecem ter sido os seus principais instrumentos de trabalho. Em tal estado de coisas, parece impossível que algum desses 67
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dois impérios pudesse estar tão desenvolvido e cultivado como atualmente, quando se lhes fornece em abundância todos os tipos de gado europeu, e depois de introduzido entre eles o uso do ferro, do arado e de muitos conhecimentos de origem européia. Ora, o povoamento de cada país deve ser proporcional ao grau de seu desenvolvimento e cultivo. Apesar da destruição cruel dos nativos, que se seguiu à conquista, esses dois impérios provavelmente são mais povoados hoje do que jamais o foram anteriormente; e certamente o povo é muito diferente, pois devemos reconhecer — assim entendo — que os crioulos espanhóis, sob muitos aspectos, são superiores aos antigos índios. Depois das colônias dos espanhóis, a dos portugueses no Brasil é a mais velha colônia de qualquer nação européia na América. Entretanto, uma vez que durante longo período de tempo depois da primeira descoberta não se encontraram no Brasil minas de ouro nem de prata, e pelo fato de, em razão disso, ela proporcionar pouca ou nenhuma renda à Coroa, a colônia foi por muito tempo bastante negligenciada; e, durante esse tempo de incúria, ela se desenvolveu, tornando-se uma colônia grande e poderosa. Durante o período em que Portugal estava sob o domínio da Espanha, o Brasil foi atacado pelos holandeses, que tomaram posse de sete das catorze províncias em que estava dividido. Esperavam eles conquistar logo as outras sete províncias, quando Portugal recuperou sua independência pela elevação ao trono da família de Bragança. Então os holandeses, como inimigos dos espanhóis, tornaram-se amigos dos portugueses, que também eram inimigos dos espanhóis. Por isso, concordaram em deixar ao rei de Portugal aquela parte do Brasil que não haviam conquistado, concordando o rei em ceder-lhes a parte que haviam conquistado, como sendo um assunto sobre o qual não valia a pena discutir, com tão bons aliados. Entretanto, logo o governo holandês começou a oprimir os colonizadores portugueses, os quais, em vez de se comprazerem com queixas, pegaram em armas para lutar contra seus novos patrões e, com valentia e decisão, sem dúvida com a conivência de Portugal, mas sem qualquer ajuda declarada da mãe-pátria, os expulsaram do Brasil. Os holandeses, então, considerando impossível conservar para eles qualquer parte do país, contentaram-se com que ele fosse inteiramente restituído à Coroa portuguesa. Afirma-se haver nessa colônia mais de 600 mil habitantes, portugueses ou descendentes de portugueses, crioulos, mulatos e uma raça mista, resultante da mescla de portugueses e brasileiros. Supõe-se não haver nenhuma colônia na América que tenha número tão elevado de pessoas de descendência européia. No final do século XV e durante a maior parte do século XVI, a Espanha e Portugal eram as duas grandes potências navais no oceano; com efeito, embora o comércio de Veneza se estendesse a todas as partes da Europa, suas esquadras dificilmente navegavam além do Mediterrâneo. Os espanhóis, em virtude da primeira descoberta, reclamavam toda a América como propriedade sua; e, embora não tivessem condições de impedir uma potência naval tão grande como a de 68
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Portugal de estabelecer-se no Brasil, tal era o terror que na época inspiravam os espanhóis, que a maioria das demais nações européias temia fixar-se em qualquer outra região do grande continente americano. Os franceses que tentaram estabelecer-se na Flórida foram todos assassinados pelos espanhóis. Todavia, o declínio do poder naval da nação espanhola, em conseqüência da derrota ou malogro do que denominavam sua Invencível Armada, que ocorreu no fim do século XVI, privou-os do poder de continuar a obstruir a fundação de colônias por parte das demais nações européias. Por isso, no decurso do século XVII, os ingleses, franceses, holandeses, dinamarqueses e suecos, todas as grandes nações que tinham algum porto no oceano, tentaram fundar algumas colônias no Novo Mundo. Os suecos estabeleceram-se em Nova Jersey; e o número de famílias suecas que ainda lá se encontram atualmente demonstra suficientemente que essa colônia tinha muita probabilidade de prosperar, se tivesse recebido proteção da mãe-pátria. Todavia, por ser negligenciada pela Suécia, ela foi logo tragada pela colônia holandesa de Nova York, a qual, por sua vez, caiu sob o domínio dos ingleses em 1674. As pequenas ilhas de São Tomé e Santa Cruz são as únicas regiões do Novo Mundo já possuídas pelos dinamarqueses. Também essas pequenas colônias estiveram sob o governo de uma companhia exclusiva, que tinha o direito privativo de comprar o excedente de produção dos colonizadores e de fornecer-lhes os produtos estrangeiros que desejassem, e que, por conseguinte, tanto em suas compras quanto em suas vendas, tinha não somente o poder de oprimir essas colônias, como também a tentação máxima de fazê-lo. O governo de uma companhia exclusiva de comerciantes talvez seja o pior de todos para qualquer país. Contudo, ele não foi capaz de sustar de todo o progresso dessas colônias, embora o tenha tornado mais lento e fraco. O falecido rei da Dinamarca dissolveu essa companhia e, desde então, tem sido muito grande a prosperidade dessas colônias. As colônias holandesas, tanto as das Índias Ocidentais como as das Índias Orientais, foram originariamente colocadas sob o governo de uma companhia exclusiva. Por isso, o progresso de algumas delas, embora tenha sido considerável, em comparação com o registrado em quase todas as outras regiões povoadas e estabelecidas há muito tempo, tem sido fraco e lento, em comparação com o da maior parte das novas colônias. A colônia de Suriname, embora bem considerável, ainda é inferior à maioria das colônias açucareiras das demais nações européias. A colônia de Nova Belgia, atualmente dividida nas duas províncias de Nova York e Nova Jersey, provavelmente também se teria logo tornado grande, mesmo permanecendo sob o governo dos holandeses. A abundância e o baixo preço das terras de boa qualidade representam causas tão poderosas de prosperidade, que mesmo o pior governo dificilmente é capaz de deter totalmente a eficácia da operação desses fatores. Além disso, a grande distância da mãe-pátria possibilitaria aos colonizadores burlar, em grau maior ou menor, por meio do contrabando, o monopólio que a companhia desfrutava contra eles. Atualmente, a companhia 69
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permite a todos os navios holandeses fazerem comércio com o Suriname, pagando pela licença 2,5% sobre o valor de sua carga, reservando-se com exclusividade somente o comércio direto da África para a América, que consiste quase inteiramente no tráfico de escravos. Essa mitigação dos privilégios exclusivos da companhia constitui provavelmente a causa principal daquele grau de prosperidade de que essa colônia desfruta atualmente. Curaçao e Eustatia, as duas principais ilhas pertencentes aos holandeses, são portos livres, abertos aos navios de todas as nações; e essa liberdade, em meio a colônias melhores, cujos portos só estão abertos aos navios de uma nação, tem sido a grande causa da prosperidade dessas duas ilhas estéreis. A colônia francesa do Canadá esteve durante a maior parte do século passado e um período do século atual sob o governo de uma companhia exclusiva. Sob uma administração muito desfavorável, seu progresso necessariamente foi muito lento em confronto com de outras colônias novas; entretanto, ele se tornou muito mais rápido quando essa companhia foi dissolvida, depois da queda do assim chamado esquema Mississípi. Quando os ingleses tomaram posse desse país, encontraram nele quase o dobro de habitantes que o padre Charlevoix lhe havia atribuído vinte ou trinta anos antes. Esse jesuíta havia viajado pelo país inteiro e não mostrava nenhuma tendência a apresentar dele uma imagem inferior à realidade. A colônia francesa de São Domingos foi implantada por piratas e flibusteiros que, durante muito tempo, não solicitaram a proteção da França nem reconheciam sua autoridade; e quando essa raça de bandidos se transformou em cidadãos, ao ponto de reconhecer essa autoridade, durante largo lapso foi necessário exercer essa autoridade com extrema delicadeza. No decorrer desse período, a população e a prosperidade da colônia cresceram com muita rapidez. Mesmo a opressão da companhia exclusiva, à qual a colônia esteve sujeita por algum tempo, juntamente com todas as demais colônias da França, embora sem dúvida tenha retardado, não foi capaz de sustar totalmente seu progresso. A ascensão de sua prosperidade voltou tão logo a colônia foi libertada da opressão da citada companhia. Atualmente, é a mais importante das colônias açucareiras das Índias Ocidentais, e sua produção, pelo que se afirma, supera a de todas as colônias açucareiras inglesas reunidas. As demais colônias açucareiras da França geralmente são, todas elas, muito prósperas. Contudo, não existem colônias cujo progresso tenha sido mais rápido que o das colônias inglesas da América do Norte. A abundância de terra de boa qualidade e a liberdade de conduzir suas atividades a seu próprio modo parecem ser as duas grandes causas da prosperidade de todas as novas colônias. No que tange, porém, à abundância de terras de boa qualidade, as colônias inglesas da América do Norte, embora sem dúvida estejam abundantemente providas, são inferiores às colônias dos espanhóis e dos portugueses, e não superiores a algumas das colônias de proprie70
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dade dos franceses antes da última guerra. Entretanto, as instituições políticas das colônias inglesas têm sido mais favoráveis ao desenvolvimento e ao cultivo dessa terra do que as instituições políticas de qualquer uma das três outras nações citadas. Em primeiro lugar, o açambarcamento de terras incultas, embora de forma alguma tenha sido totalmente impedido, tem sido mais limitado nas colônias inglesas do que em qualquer outra. A lei colonial que impõe a cada proprietário a obrigação de desenvolver e cultivar, dentro de um tempo restrito, certa porcentagem de suas terras, e que, no caso de não ser feito isso, declara essas terras negligenciadas passíveis de ser atribuídas a qualquer outra pessoa, embora não tenha sido, talvez, cumprida com muito rigor, teria algum efeito. Em segundo lugar, na Pensilvânia não existe nenhum direito de primogenitura, e as terras, como os bens móveis, são divididas por igual entre todos os filhos da família. Em três das províncias da Nova Inglaterra, o filho mais velho tem apenas dupla parte, como na lei mosaica. Ainda que, nessas províncias, uma quantidade excessivamente grande de terra possa ser às vezes açambarcada por determinado indivíduo, há a probabilidade, no decurso de uma ou duas gerações, de que ela seja de novo suficientemente dividida. Nas demais colônias inglesas, realmente vigora o direito da primogenitura, como na lei da Inglaterra. Todavia, em todas as colônias inglesas, o direito de posse das terras, que são mantidas em troca de um pagamento fixo ou de certos serviços ao dono, facilita a alienação, e o adquirente de qualquer área extensa de terra costuma ter interesse em alienar, o mais rapidamente possível, a maior parte dela, reservando apenas uma pequena renda paga em lugar dos serviços feudais exigidos. Nas colônias espanholas e portuguesas existe o assim chamado direito do majorazzo incluído na sucessão de todas as grandes propriedades às quais está anexado qualquer título honorífico. Tais propriedades vão todas para uma pessoa e são efetivamente vinculadas e inalienáveis. Sem dúvida, as colônias francesas estão sujeitas ao costume de Paris, o qual, na herança da terra, é muito mais favorável aos filhos mais jovens do que a lei da Inglaterra. Todavia, nas colônias francesas, no caso de se alienar qualquer parte de uma propriedade mantida pelo nobre direito à dignidade de cavaleiro e de submissão do vassalo ao senhor, ela fica por um tempo limitado sujeita ao direito de liberação por parte do herdeiro do superior ou do herdeiro da família; e todas as maiores propriedades do país são mantidas por esses nobres direitos, o que necessariamente dificulta a alienação. Entretanto, em uma colônia nova, uma extensa propriedade não cultivada tem probabilidade de ser dividida muito mais rapidamente por alienação do que por sucessão. Já observei que a abundância e o baixo preço da terra constituem as causas primordiais da rápida prosperidade das colônias novas. Com efeito, o açambarcamento de terras acaba com essa abundância e com o baixo preço. Além disso, o açambarcamento de terras incultas representa o maior obstáculo para o aprimoramento delas. Ora, a mão-de71
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obra empregada na melhoria e no cultivo da terra assegura à sociedade a produção máxima e mais valiosa. A produção da mão-de-obra, nesse caso, paga não somente seus próprios salários e o lucro do capital que lhe dá emprego, mas também a renda da terra na qual é empregada a mão-de-obra. Portanto, a mão-de-obra dos colonizadores ingleses, por ser mais empregada na melhoria e no cultivo da terra, pode proporcionar uma produção maior e de maior valor do que a de qualquer das três outras nações mencionadas, já que, devido ao açambarcamento da terra, essa mão-de-obra é desviada em medida maior ou menor para outros empregos. Em terceiro lugar, a mão-de-obra dos colonizadores ingleses não somente tem probabilidade de proporcionar uma produção maior e de maior valor, senão que também, em conseqüência da moderação de seus impostos, os colonizadores ficam com uma porcentagem maior da produção, que podem, então, estocar e empregar, pondo em movimento um contingente ainda maior de mão-de-obra. Os colonizadores ingleses até agora em nada contribuíram para a defesa de sua mãe-pátria ou para sustentar o seu governo civil. Eles mesmos, pelo contrário, têm sido até agora quase exclusivamente defendidos às expensas da mãepátria. Ora, a despesa de esquadras e exércitos é em qualquer proporção maior do que a despesa necessária do governo civil. A despesa com seu próprio governo civil sempre tem sido muito moderada. Geralmente tem-se limitado ao necessário para pagar salários compatíveis ao governador, aos juízes e a alguns outros oficiais de polícia, bem como para a manutenção de algumas poucas obras públicas de maior utilidade. A despesa da administração civil da baía de Massachusetts, antes do início dos atuais distúrbios, costumava ser apenas de aproximadamente 18 000 libras anuais. A de Nova Hampshire e Rhode Island, de 3 500 libras por ano cada. A de Connecticut, de 4 000 libras. A de Nova York e da Pensilvânia, 4 500 cada. A de Nova Jersey, 1 200. A da Virgínia e da Carolina do Sul, 8 000 cada. Os governos civis da Nova Escócia e da Geórgia são em parte sustentados por uma verba anual do Parlamento. Entretanto, a Nova Escócia paga, além disso, em torno de 7 000 libras anuais, para cobrir as despesas públicas da colônia, e a Geórgia paga aproximadamente 2 500 libras por ano. Por conseguinte, resumindo, todos os governos civis na América do Norte, excluídos os de Maryland e da Carolina do Norte — dos quais não consegui nenhum relato preciso — não custaram aos habitantes, antes do começo dos atuais distúrbios, mais de 64 700 libras por ano; isso constitui um exemplo, digno de perpétua memória, de como é pequena a despesa necessária, não só para governar 3 milhões de pessoas, mas também para governá-las bem. A parcela mais relevante das despesas de governo, a destinada à defesa e à proteção do país, constantemente tem estado a cargo da mãe-pátria. Além disso, também o cerimonial do governo civil nas colônias, por ocasião da recepção de um novo governador, da abertura de uma nova Assembléia etc., embora seja suficientemente decente, não vem acompanhado de qualquer pompa 72
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ou desfile dispendioso. Também o governo eclesiástico se conduz dentro de uma linha de igual sobriedade. O dízimo lhe é desconhecido. Seu clero, que está longe de ser numeroso, é mantido por estipêndios moderados ou por contribuições voluntárias do povo. Ao contrário, o poder da Espanha e de Portugal obtém parte de sua sustentação por meio dos impostos recolhidos de suas colônias. Na realidade, a França jamais auferiu alguma renda considerável de suas colônias, e os impostos por ela recolhidos geralmente são gastos lá mesmo. Todavia, o governo colonial de todas essas três nações costuma gastar muito mais, e seu cerimonial é muito mais dispendioso. Assim por exemplo, a soma gasta na recepção de um novo vice-rei do Peru muitas vezes é enorme. Esses cerimoniais não somente representam impostos reais pagos pelos colonizadores ricos nessas ocasiões especiais, como também servem para introduzir entre eles os hábitos da vaidade e do desperdício, em todas as outras ocasiões. Eles não só constituem impostos ocasionais muito pesados, senão que também contribuem para estabelecer impostos perpétuos do mesmo tipo, ainda mais onerosos, os impostos ruinosos do luxo e da extravagância privados. Igualmente, nas colônias de todas as três nações citadas, o governo eclesiástico é extremamente opressivo. Em todas elas existe o dízimo, recolhido com o máximo rigor nas colônias da Espanha e de Portugal. Além do mais, todas elas são oprimidas por um grupo numeroso de frades mendicantes cuja atividade, não somente permitida como também consagrada pela religião, representa uma taxa altamente onerosa para as pessoas pobres, as quais se ensina com grande zelo que é dever dar-lhes esmolas, constituindo gravíssimo pecado negar-lhes a caridade. Além de tudo isso, os representantes do clero, em todas essas colônias, são os maiores açambarcadores de terras. Em quarto lugar, na venda de sua produção excedente, isto é, daquilo que vai além do necessário para seu próprio consumo, as colônias inglesas têm sido mais favorecidas com a garantia de um mercado mais amplo que o permitido às colônias de qualquer outra nação européia. Cada nação da Europa tem procurado, em grau maior ou menor, monopolizar para si o comércio de suas colônias e, por essa razão, proibido os navios de outras nações de manterem comércio com elas, não autorizando as colônias a importar mercadorias européias de nenhuma nação estrangeira. Todavia, tem sido muito diferente a maneira como as diversas nações têm exercido o referido monopólio. Algumas nações entregaram todo o comércio de suas colônias a uma companhia exclusiva, da qual elas eram obrigadas a comprar todas as mercadorias européias de que carecessem, e à qual deviam vender todo o excedente de sua produção. A companhia tinha, pois, interesse não somente em vender as mercadorias européias o mais caro possível e comprar os produtos coloniais o mais barato possível, mas também não comprar das colônias, mesmo a esse preço baixo, não mais do que o que tinha condições de vender na Europa a um preço altíssimo. Tinha interesse não somente em fazer baixar, em todos os 73
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casos, o valor do excedente da produção da colônia, como também, em muitos casos, em desestimular e manter baixo o aumento natural do volume da mesma. De todos os meios que se possam imaginar para sustar o crescimento natural de uma nova colônia, o mais eficaz é, sem dúvida, o de uma companhia exclusiva. Ora, essa tem sido a política da Holanda, embora sua companhia, no decurso do século atual, sob muitos aspectos, tenha abandonado a prática de seu privilégio exclusivo. Essa foi também a política da Dinamarca, até o reinado do falecido rei. Ocasionalmente, essa foi também a política da França, e ultimamente, desde 1755, depois de ter sido abandonada por todas as outras nações por seu caráter absurdo, essa política foi adotada por Portugal, ao menos em relação a duas das principais províncias do Brasil, Pernambuco e Maranhão. Outras nações, embora sem instituírem uma companhia exclusiva, limitaram todo o comércio de suas colônias a um determinado porto da mãe-pátria do qual não se permitia a saída de nenhum navio, a não ser como parte de uma frota e em uma determinada estação, ou então, se fosse um navio só, munido de uma licença especial, pela qual, na maioria dos casos, se pagava bem caro. Sem dúvida, essa política abriu o comércio das colônias a todos os nativos da mãe pátria, desde que comercializassem, a partir do porto apropriado, na estação apropriada e com o navio adequado. Entretanto, já que todos os comerciantes que juntavam seus estoques a fim de equipar esses navios providos de licença tinham interesse em agir de comum acordo, o comércio feito dessa maneira necessariamente era conduzido mais ou menos com base nos mesmos princípios que os de uma companhia exclusiva. O lucro desses comerciantes seria quase tão exorbitante e opressivo quanto o da companhia exclusiva. O abastecimento das colônias seria precário, obrigando-as a comprar a preços altíssimos e a vender a preços baixíssimos. Entretanto, essa tinha sido sempre, até há poucos anos, a política da Espanha, razão pela qual, segundo se afirma, o preço de todos os produtos europeus tem sido altíssimo nas Índias Ocidentais Espanholas. Segundo nos diz Ulloa, em Quito, 1 libra de ferro é vendida por cerca de 4 ou 6 pence, e 1 libra de aço por cerca de 6 ou 9 pence esterlinos. Ora, é sobretudo para comprar produtos europeus que as colônias vendem seus próprios produtos. Por isso, quanto mais pagam pelos produtos europeus, tanto menos conseguem realmente pelos seus próprios produtos, e o alto preço dos artigos europeus é a mesma coisa que o baixo preço dos artigos das colônias. Sob esse aspecto, a política de Portugal é a mesma que a antiga política da Espanha em relação a todas as suas colônias, excetuadas as províncias de Pernambuco e Maranhão, sendo que em relação a essas Portugal adotou recentemente uma política ainda pior. Outras nações deixam o comércio de suas colônias livre a todos os seus súditos, que podem exercê-lo a partir de qualquer porto da mãe-pátria, e que não necessitam de nenhuma outra licença senão dos despachos normais da alfândega. Nesse caso, o número e a localização 74
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dispersa dos vários comerciantes lhes tornam impossível constituírem qualquer associação e a concorrência vigente entre eles é suficiente para impedi-los de auferir lucros muito exorbitantes. Sob política tão liberal, as colônias têm a possibilidade de vender seus próprios produtos e de comprar os da Europa a um preço razoável. Mas, desde a dissolução da Companhia de Plymouth, quando nossas colônias estavam apenas na infância, essa tem sido sempre a política da Inglaterra. Tal tem sido geralmente também a da França, não tendo havido desvio dessa linha desde a dissolução do que na Inglaterra costuma-se chamar de sua Companhia Mississípi. Por isso, os lucros do comércio que a França e a Inglaterra mantêm com suas colônias, embora, sem dúvida, sejam um pouco maiores do que se a concorrência estivesse aberta a todas as outras nações, de forma alguma são exorbitantes; por isso também o preço das mercadorias européias não é excessivamente alto na maior parte das colônias da Inglaterra e da França. Também na exportação de seu próprio excedente de produção, é somente com respeito a certas mercadorias que as colônias da GrãBretanha estão limitadas ao mercado da mãe-pátria. Tendo essas sido mercadorias enumeradas na lei sobre a navegação e em algumas outras leis subseqüentes, elas têm sido chamadas de mercadorias enumeradas; as restantes se denominam não enumeradas, podendo ser exportadas diretamente a outros países, desde que seja em navios britânicos ou da colônia, cujos proprietários e 3/4 dos marinheiros sejam súditos britânicos. Entre as mercadorias não enumeradas constam alguns dos produtos mais importantes da América e das Índias Ocidentais: cereais de todos os tipos, madeira de construção, mantimentos salgados, peixe, açúcar e rum. Os cereais constituem naturalmente o primeiro e principal item de cultura de todas as colônias novas. Por permitir para eles um mercado muito amplo, a lei estimula as colônias a ampliarem essa cultura muito além do consumo de um país pouco povoado e, portanto, a proverem de antemão uma subsistência abundante para uma população em contínuo crescimento. Em um país rico em florestas, onde, conseqüentemente, a madeira tem pouco ou nenhum valor, o gasto com a limpeza das terras constitui o principal obstáculo para o aprimoramento das mesmas. Permitindo às colônias um mercado muito amplo para sua madeira, a lei procura facilitar a melhoria das terras, elevando o preço de uma mercadoria que, de outra forma, teria pouco valor, possibilitando assim às colônias auferirem algum lucro daquilo que, de outra maneira, não passaria de um gasto. Em um país que não tem sequer a metade da população que poderia ter, e no qual nem sequer a metade das terras é cultivada, o gado naturalmente se multiplica além do consumo necessário para os habitantes, razão pela qual, muitas vezes, ele tem pouco ou nenhum valor. Ora, já mostrei ser necessário que o preço do gado mantenha 75
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uma certa proporção com o dos cereais, antes que se possa aprimorar a maior parte das terras de um país. Permitindo para o gado americano, em qualquer modalidade que seja, morto ou vivo, um mercado muito amplo, a lei procura aumentar o valor de uma mercadoria cujo preço alto é tão essencial ao aprimoramento das terras. Entretanto, os bons efeitos dessa liberdade devem ser um tanto reduzidos pelo Decreto 4 de Jorge III, capítulo 15, que enquadra couros e peles entre as mercadorias enumeradas, tendendo assim a reduzir o valor do gado americano. Aumentar a navegação e o poderio naval da Grã-Bretanha, ampliando a pesca por parte das nossas colônias, é um objetivo que os legisladores parecem ter tido quase sempre em vista. Por esse motivo, a pesca tem tido todos os estímulos que a liberdade lhe pode dar e, conseqüentemente, tem florescido. De modo especial, a pesca na Nova Inglaterra constituía, talvez, antes dos recentes distúrbios, uma das mais importantes do mundo. A pesca da baleia, que, não obstante um subsídio descomunal, na Grã-Bretanha é feita com tão pouco lucro que, na opinião de muitos (opinião que, porém, não pretendo garantir), a produção total não supera de muito o valor dos subsídios anualmente pagos, é na Nova Inglaterra efetuada em proporções muito elevadas, sem qualquer subsídio. O peixe é um dos artigos principais com os quais os norte-americanos fazem comércio com a Espanha, Portugal e o Mediterrâneo. De início, o açúcar constituía uma mercadoria enumerada que só podia ser exportada para a Grã-Bretanha. Mas, em 1731, por solicitação dos plantadores de cana-de-açúcar, permitiu-se sua exportação para todas as partes do mundo. Entretanto, as restrições com as quais essa liberdade foi concedida, aliadas ao alto preço do açúcar na GrãBretanha, tornaram essa permissão, em grande parte, sem efeito. A Grã-Bretanha e suas colônias ainda continuam a ser quase o único mercado para todo o açúcar produzido nas colônias britânicas. Seu consumo aumenta com tanta rapidez que, embora, em conseqüência do desenvolvimento crescente da Jamaica e das ilhas Cedel, a importação de açúcar tenha aumentado muitíssimo nesses últimos vinte anos, afirma-se que a exportação a países estrangeiros não tem sido muito maior do que antes. O rum representa um artigo muito importante no comércio que os americanos mantêm com a costa africana, comércio esse que lhes permite trazerem da África escravos negros. Se todos os itens do excedente de produtos da América, em cereais de todos os tipos, em mantimentos salgados e em peixe, tivessem sido enquadrados como mercadorias enumeradas, forçando assim sua exportação para o mercado da Grã-Bretanha, isso teria perturbado excessivamente a produção do nosso próprio país. Se essas importantes mercadorias não somente foram excluídas da lista das mercadorias enumeradas, mas até se proibiu legalmente, em situações normais, a importação pela Grã-Bretanha de todos os cereais, excetuado o arroz, e dos mantimentos salgados, isso provavelmente se fez não propria76
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mente por causa dos interesses da América, e sim por causa do ressentimento dessa interferência. As mercadorias não enumeradas podiam de início ser exportadas a todas as partes do mundo. A madeira de construção e o arroz, que a princípio constavam na lista das mercadorias enumeradas, ao serem excluídas dela, sua exportação, no tocante ao mercado europeu, foi limitada aos países localizados ao sul do cabo Finisterra. Em virtude do Decreto 6, capítulo 52, de Jorge III, todas as mercadorias não enumeradas foram sujeitas às mesmas restrições. As regiões européias localizadas ao sul do cabo Finisterra não são países manufatores, razão pela qual o nosso país não fez tanta questão de proibir os navios da colônia de levarem desses países quaisquer manufaturados que pudessem se contrapor com os nossos próprios. Dois são os tipos de mercadorias enumeradas: primeiro, aquelas que representam produtos específicos da América ou não podem ser produzidas na mãe-pátria, ou pelo menos não são efetivamente produzidas nela. Fazem parte dessa categoria melaço, café, coco, fumo, pimenta-da-jamaica, gengibre, barbatanas de baleia, seda em estado bruto, algodão em rama, anil, pele de castor e outras peles da América, tatajuba e outras madeiras corantes; em segundo lugar artigos que não são específicos da América, mas que são e podem ser produzidos na mãe-pátria, embora não em quantidades suficientes para atender à maior parte de sua demanda, suprida sobretudo pela importação de países estrangeiros. Nessa categoria enquadram-se todos os materiais navais, mastros, vergas, gurupés, alcatrão, piche e terebintina, ferro em barra, lingotes de ferro fundido, minério de cobre, couros e peles, potassa e perlasso. Nem a maior importação de mercadorias do primeiro tipo tinha condições de desestimular a produção de qualquer item da produção britânica, nem interferir na venda de qualquer desses itens. Esperava-se que, limitando essas mercadorias ao mercado britânico, se possibilitaria aos nossos comerciantes não somente comprá-las mais barato nas colônias — e, conseqüentemente, vendê-las a um preço melhor em nosso país —, mas também estabelecer entre as colônias e países estrangeiros um comércio rentável de transporte de mercadorias, do qual a Grã-Bretanha necessariamente deveria ser o centro ou empório, já que seria o país europeu no qual essas mercadorias seriam primeiro introduzidas. Outrossim, supunha-se que a importação de mercadorias do segundo tipo poderia ser feita de tal maneira que interferisse não na venda das mercadorias do mesmo tipo produzidas na Grã-Bretanha, mas na venda das mercadorias importadas de países estrangeiros, já que, mediante taxas alfandegárias adequadas, elas sempre poderiam tornar-se algo mais caras do que as nacionais, porém bem mais baratas que as importadas de países estrangeiros. Por isso, limitando tais mercadorias ao mercado britânico, objetivava-se desestimular, não a produção da Grã-Bretanha, mas a de alguns países estrangeiros em relação aos quais se acreditava ser desfavorável para a Grã-Bretanha a balança comercial. 77
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A proibição de exportar dessas colônias, para qualquer outro país que não fosse a Grã-Bretanha, mastros, vergas, gurupés, alcatrão, piche e terebintina tendia naturalmente a baixar o preço da madeira nas colônias e, conseqüentemente, a aumentar os gastos com a roçagem das suas terras, principal obstáculo ao aprimoramento das mesmas. Entretanto, por volta do início deste século, em 1703, a companhia de piche e alcatrão da Suécia tentou aumentar o preço de suas mercadorias para a Grã-Bretanha, proibindo sua exportação, a não ser que fosse em seus próprios navios, ao preço da Suécia, e nas quantidades que considerasse adequadas. No intuito de neutralizar esse ato incomum de política mercantil, e para tornar-se o mais possível independente, não somente da Suécia, mas também de todas as outras potências setentrionais, a Grã-Bretanha concedeu um subsídio à importação de materiais navais da América; esse subsídio teve por efeito aumentar o preço da madeira na América, muito mais que a limitação da exportação ao mercado britânico pudesse baixá-lo; e, uma vez que as duas medidas legais foram tomadas simultaneamente, seu efeito conjunto foi antes estimular do que desestimular a roçagem das terras na América. Embora o ferro fundido e em barras estivesse enquadrado na categoria das mercadorias enumeradas, já que, no entanto, quando importado da América, é isento das pesadas taxas alfandegárias a que está sujeito quando importado de qualquer outro país, a primeira parte da medida contribui mais para estimular a instalação de fornos na América do que a outra parte contribui a desestimulá-la. Não existe manufatura que acarrete um consumo tão alto de madeira como um forno, ou que possa contribuir tanto para desbravar uma região onde a madeira é superabundante. A tendência de algumas dessas medidas no sentindo de aumentar o valor da madeira na América e, com isso, facilitar o desbravamento da terra, talvez não tenha sido tencionada nem entendida pelos legisladores. Embora, portanto, os efeitos benéficos dessas medidas tenham sido, sob esse aspecto, casuais, nem por isso foram menos reais. Tanto para as mercadorias enumeradas como para as não enumeradas, permite-se a mais completa liberdade de comércio entre as colônias britânicas da América e as Índias Ocidentais. Essas colônias se tornaram agora tão povoadas e prósperas que cada uma delas encontra em alguma das outras um grande e amplo mercado para cada item de sua produção. Tomadas todas em conjunto, elas constituem um grande mercado interno para o intercâmbio mútuo da produção de cada uma delas. Contudo, a liberalidade da Inglaterra em relação ao comércio de suas colônias foi limitada, sobretudo no que concerne ao mercado para seus produtos em seu estado bruto ou no que se pode chamar de primeiríssimo estágio de manufatura. Quanto aos manufaturados mais refinados, mesmo da produção colonial, os comerciantes e manufatores da Grã-Bretanha optaram por reservá-los a si mesmos, tendo conseguido convencer os legisladores de não permitirem a implantação dessas 78
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manufaturas nas colônias — às vezes mediante altas taxas, às vezes mediante proibições absolutas. Assim, por exemplo, enquanto os açúcares mascavos das colônias britânicas pagam na importação apenas 6 s 4 d, os açúcares brancos pagam £ 1 1 s 1 d e os refinados uma ou duas vezes, em forma de torrões, £ 4 2 s 4 8/20 d. Quando foram impostas essas elevadas taxas, a Grã-Bretanha era o único — e ainda continua a ser hoje o principal — mercado ao qual se podia exportar o açúcar das colônias britânicas. Por isso, elas equivaliam a uma proibição, primeiro de purificar e embranquecer ou refinar açúcar para qualquer mercado estrangeiro e atualmente absorve mais de 9/10 de toda a produção. Conseqüentemente, a manufatura implicada na purificação ou refino de açúcar, embora tenha florescido em todas as colônias açucareiras da França, foi pouco cultivada em qualquer das colônias inglesas, a não ser para o mercado das próprias colônias. Enquanto Grenada estava nas mãos dos franceses, havia uma refinaria de açúcar, ao menos para purificá-lo, em quase toda a colônia. Desde que caiu nas mãos dos ingleses, quase todas as manufaturas desse tipo foram abandonadas e atualmente, outubro de 1773, asseguraram-me, não restam mais do que duas ou três na ilha. Agora, porém, por concessão da alfândega, o açúcar purificado e embranquecido ou refinado, se reduzido de torrões a pó, costuma ser importado como açúcar mascavo. Ao mesmo tempo que a Grã-Bretanha estimula na América as manufaturas de ferro gusa e ferro em barras, isentando-os de taxas às quais estão sujeitas as mesmas mercadorias, quando importadas de qualquer outro país, ela impõe uma proibição absoluta de instalar fornos de fundição de aço e usinas para cortar barras ou chapas de ferro em qualquer uma de suas colônias americanas. Ela não quer que os habitantes de suas colônias trabalhem nessas manufaturas mais refinadas, mesmo que seja para seu consumo próprio, insistindo em que comprem dos comerciantes e manufatores britânicos todos os produtos desse gênero de que possam vir a necessitar. Ela proíbe a exportação de uma província para outra — por água, e até mesmo o transporte por terra, em dorso de cavalo ou em carroça — de chapéus, de lã e artigos de lã, de produção americana, medida que impede eficazmente a implantação de qualquer manufatura dessas mercadorias para a venda à distância e, dessa forma, limita o trabalho dos habitantes de suas colônias aos manufaturados menos refinados e caseiros que uma família particular costuma fazer para seu próprio uso ou para o de alguns de seus vizinhos da mesma província. Contudo, proibir um grande povo de fazer tudo o que ele tiver condições de fazer com qualquer item de sua produção própria, ou empregar seu capital e seu trabalho da maneira que ele considerar mais vantajosa para ele próprio, constitui uma violação manifesta dos direitos mais sagrados da humanidade. Entretanto, por mais injustas que possam ser tais proibições, até agora elas não foram muito prejudiciais às colônias. A terra continua ainda tão barata e, conseqüen79
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temente, a mão-de-obra tão cara nessas colônias, que esses povos podem importar da Grã-Bretanha quase todos os manufaturados mais refinados ou modernos, a preço mais barato do que aquele pelo qual seriam capazes de manufaturá-los eles mesmos. Por isso, mesmo que eles não tivessem sido impedidos de implantar tais manufaturas, no seu atual estágio de desenvolvimento, provavelmente teriam deixado espontaneamente de fazê-lo, em atenção a seus próprios interesses. Em seu atual estágio de desenvolvimento, tais proibições, talvez, sem restringir seu trabalho ou impedir de aplicá-lo a outro qualquer emprego para o qual se encaminharia espontaneamente, constituem apenas sinais descabidos de escravatura impostos a esses povos, sem qualquer motivo plausível, pelo ciúme infundado dos comerciantes e manufatores da Grã-Bretanha. Em um estágio mais avançado, poderiam ser realmente opressivas e insuportáveis. Além disso, a Grã-Bretanha, assim como limita a seu próprio mercado alguns dos produtos mais importantes das colônias, da mesma forma, em compensação, oferece a algumas delas uma vantagem nesse mercado: às vezes impondo taxas mais elevadas aos mesmos produtos, quando importados de outros países, e às vezes concedendo subsídios à sua importação das colônias. Na primeira modalidade, ela oferece uma vantagem no mercado interno ao açúcar, ao fumo e ao ferro de suas próprias colônias; na segunda modalidade, à sua seda bruta, a seu cânhamo e linho, a seu índigo, a seus materiais navais e à sua madeira de construção. Segundo me consta, essa segunda modalidade de estimular os produtos coloniais, através de subsídios à importação, é peculiar à Grã-Bretanha. O mesmo não ocorre com a primeira. Portugal não se contenta em impor taxas mais altas à importação de fumo de qualquer outro país, senão que a proíbe com as penas mais severas. Também no tocante à importação de mercadorias da Europa, a Inglaterra tem agido com maior liberalidade em relação às suas colônias do que qualquer outra nação. A Grã-Bretanha permite que parte das taxas de importação de mercadorias estrangeiras — quase sempre a metade, geralmente até mais e, às vezes, até o total — seja reembolsada na exportação das mesmas a qualquer país estrangeiro. Seria fácil prever que nenhum país estrangeiro independente receberia tais mercadorias, se elas viessem oneradas com as pesadas taxas impostas a quase todos os produtos estrangeiros importados pela Grã-Bretanha. Se, portanto, não se restituísse ao exportador alguma parte dessas taxas, seria o fim do comércio internacional de transporte de mercadorias, comércio tão favorecido pelo sistema mercantil. Entretanto, nossas colônias de forma alguma são países estrangeiros independentes; por conseguinte, a Grã-Bretanha, ao reservar-se o direito exclusivo de abastecê-las de todas as mercadorias de procedência européia, poderia tê-las forçado (da mesma forma como o fizeram outros países em relação a suas colônias) a receberem tais mercadorias, oneradas com as mesmas taxas pagas na mãe-pátria. Ao contrário 80
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disso, até 1763, pagavam-se, na exportação da maioria dos produtos estrangeiros a nossas colônias, os mesmos drawbacks que se pagavam na exportação a qualquer país independente. Sem dúvida, em 1763, em virtude do Decreto 4, capítulo 15, de Jorge III, essa concessão foi bastante reduzida prescrevendo-se “que não se restituísse nenhuma parte da taxa denominada antigo subsídio, em se tratando de quaisquer mercadorias cultivadas, produzidas ou manufaturadas na Europa ou nas Índias Orientais, quando exportadas deste reino para qualquer colônia ou fundação britânica na América, excetuados os vinhos, calicôs brancos e musselinas”. Anteriormente a essa lei, muitos tipos de mercadorias estrangeiras poderiam ter sido compradas a preço mais baixo nas fundações do que na mãe-pátria; isso ainda continua a ocorrer com algumas delas. Importa observar que os principais assessores da maior parte das medidas legais concernentes ao comércio colonial foram os comerciantes que mantinham tal comércio. Não é, pois, de estranhar que, na maior parte delas, se atendeu mais aos interesses deles do que aos das colônias ou aos da mãe-pátria. Concedendo aos comerciantes o privilégio exclusivo de fornecer às colônias todos os produtos europeus de que necessitassem, bem como de comprar todos os itens de seu excedente de produção que não pudessem se contrapor com qualquer outro comércio que eles mesmos exerciam na Grã-Bretanha, sacrificou-se o interesse das colônias ao dos referidos comerciantes. Ao se concederem às colônias, na reexportação da maioria dos produtos europeus e das Índias Orientais, os mesmos drawbacks concedidos à sua reexportação para qualquer país independente, sacrificou-se o interesse da mãe-pátria ao interesse dos comerciantes, mesmo de acordo com a concepção mercantilista desses interesses. Era do interesse dos comerciantes pagar o mínimo possível pelos produtos estrangeiros por eles exportados às colônias e, conseqüentemente, receber o reembolso máximo possível das taxas por eles adiantadas na importação dessas mercadorias pela Grã-Bretanha. Com isso, se lhes possibilitava vender nas colônias a mesma quantidade de mercadorias com um lucro maior ou uma quantidade maior com o mesmo lucro e, nessas condições, ganharem algo, tanto em uma modalidade como na outra. Era, outrossim, do interesse das colônias receberem todas essas mercadorias ao preço mais baixo possível e na maior abundância também possível. Entretanto, nem sempre isso atendia aos interesses da mãe-pátria. Esta muitas vezes podia sofrer com isso, tanto em sua renda, restituindo grande parte das taxas pagas na importação dessas mercadorias, quanto em seus manufaturados pelo fato de serem as mercadorias estrangeiras vendidas a preço mais baixo no mercado das colônias, em conseqüência das condições fáceis em que as mercadorias estrangeiras podiam ser levadas para lá, através desses drawbacks. Costuma-se afirmar que o progresso da manufatura de linho da Grã-Bretanha foi bastante retardado pelos drawbacks concedidos à reexportação de linho alemão às colônias americanas. 81
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Entretanto, embora a política da Grã-Bretanha, em relação ao comércio de suas colônias, tenha sido ditada pelo mesmo espírito mercantil que o de outras nações, no global ela tem sido mais liberal e menos opressiva do que a de qualquer delas. A liberdade concedida aos habitantes das colônias inglesas de conduzirem suas coisas a seu próprio modo é completa, excetuado seu comércio exterior. Tal liberdade é, sob todos os aspectos, igual à que têm seus compatriotas na Grã-Bretanha, sendo garantida da mesma forma por uma assembléia dos representantes do povo, que reivindica o direito exclusivo de impor taxas e impostos para sustento do governo colonial. A autoridade dessa assembléia intimida sobremaneira o poder executivo, e nem o mais mesquinho nem o mais odioso habitante das colônias enquanto obedecer à lei tem qualquer coisa a temer do ressentimento do governador ou de qualquer outro oficial civil ou militar na província. As assembléias das colônias, como a Câmara dos Comuns, na Inglaterra, embora nem sempre sejam uma representação totalmente igual do povo, ainda assim aproximam-se muitíssimo disso e, já que o poder executivo não tem meios de corrompê-las ou, devido ao apoio que recebe da mãe-pátria, não tem necessidade de fazê-lo, talvez elas sejam em geral mais influenciadas pelas inclinações de seus integrantes. Os conselhos que nas legislaturas coloniais correspondem à Câmara dos Lordes na Grã-Bretanha não são compostos de uma nobreza hereditária. Em algumas das colônias, como em três dos governos da Nova Inglaterra, esses Conselhos não são nomeados pelo rei, mas escolhidos pelos representantes do povo. Em nenhuma das colônias inglesas existe uma nobreza hereditária. Em todas elas, realmente, como em todos os outros países livres, o descendente de uma antiga família da colônia é mais respeitado do que um novo rico de igual mérito e fortuna; entretanto, ele é apenas mais respeitado, não possuindo privilégios com os quais possa molestar seus vizinhos. Antes do início dos distúrbios atuais, as assembléias das colônias tinham não somente o poder legislativo, mas também parte do poder executivo. Em Connecticut e em Rhode Island, elegiam o governador. Nas outras colônias, nomeavam os oficiais da receita, que recolhiam as taxas impostas por essas respectivas assembléias, perante as quais esses oficiais eram imediatamente responsáveis. Existe, portanto, maior igualdade entre os habitantes das colônias do que entre os habitantes da mãepátria. Suas maneiras são mais republicanas e seus governos, particularmente os das províncias da Nova Inglaterra, também têm sido até agora mais republicanos. Ao contrário, os governos absolutistas da Espanha, de Portugal e da França participam também nas respectivas colônias desses países, e os poderes discricionários que tais governos costumam delegar a todos os seus oficiais inferiores são, devido à grande distância, naturalmente exercidos lá com violência mais do que comum. Sob todos os governos absolutistas, há mais liberdade na capital do que em qualquer outra parte do país. O próprio soberano jamais pode ter interesse ou inclinação 82
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a subverter a ordem justa ou a oprimir o povo. Na capital, sua presença intimida sobremaneira, em grau maior ou menor, todos os seus oficiais inferiores, os quais, nas províncias mais afastadas, de onde as queixas do povo têm menos probabilidade de chegar a ele, podem exercer sua tirania com muito maior segurança. Ora, as colônias européias na América estão mais distantes do que as mais remotas províncias dos maiores impérios jamais antes conhecidos. O governo das colônias inglesas é talvez o único que, desde o início do mundo, teve condições de oferecer perfeita segurança aos habitantes de uma província tão distante. Todavia, a administração das colônias francesas sempre tem sido conduzida com maior delicadeza e moderação do que a das colônias espanholas e portuguesas. Essa superioridade de conduta condiz tanto com o caráter da nação francesa como com aquilo que constitui o caráter de cada nação, a natureza de seu governo, o qual, embora arbitrário e violento em comparação com o da Grã-Bretanha, é legal e liberal em comparação com os governos da Espanha e de Portugal. No entanto, é sobretudo no progresso das colônias norte-americanas que se evidencia a superioridade da política inglesa. O progresso das colônias açucareiras da França tem sido no mínimo igual, talvez até superior, ao da maior parte das colônias da Inglaterra; no entanto, as colônias açucareiras da Inglaterra desfrutam de um governo liberal quase do mesmo tipo que aquele que se encontra em suas colônias da América do Norte. Entretanto, as colônias açucareiras da França não são desestimuladas, como as da Inglaterra, a refinarem seu próprio açúcar; e, o que é ainda mais importante, o tipo de seu governo naturalmente introduz melhor tratamento a seus escravos negros. Em todas as colônias européias, a cultura da cana-de-açúcar é feita pelos escravos negros. Acredita-se que a constituição dos que nasceram no clima temperado da Europa não teria condições de suportar o trabalho de cavar o solo sob o sol causticante das Índias Ocidentais; e a cultura da cana-de-açúcar, como é feita hoje, consta toda de trabalho manual, embora, na opinião de muitos, se pudesse introduzir nela com grande vantagem o arado usado para semear em sulcos. Ora, assim como o lucro e o sucesso da cultura executada com gado dependem muitíssimo de bem conduzir esse gado, da mesma forma o lucro e o sucesso da cultura executada por escravos deve depender igualmente da boa administração desses escravos; e na boa administração de seus escravos, segundo é geralmente admitido, os plantadores franceses são superiores aos ingleses. A lei, na medida em que dá alguma frágil proteção ao escravo contra a violência de seu patrão, tem probabilidade de ser mais bem cumprida em uma colônia em que o governo é muito arbitrário, do que em uma em que é totalmente liberal. Em todo país em que está implantada a malfadada lei da escravatura, o magistrado, quando protege o escravo, interfere de certo modo na administração da propriedade privada do patrão e, em um país livre, onde o patrão, talvez, seja membro da assembléia da colônia ou um eleitor desse membro, ele não se atreve a fazer isto, a não ser com máximo cuidado e 83
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circunspeção. O respeito que é obrigado a dispensar ao patrão torna-lhe mais difícil proteger o escravo. Ao contrário, em um país em que o governo é muito arbitrário, onde é costume o magistrado interferir até mesmo na administração da propriedade privada dos indivíduos, e talvez enviar-lhes uma ordem de prisão arbitrária no caso de não a administrarem de acordo com seu gosto, é muito mais fácil para ele dispensar alguma proteção ao escravo, e o senso humanitário comum naturalmente o dispõe a fazê-lo. A proteção do magistrado torna o escravo menos desprezível aos olhos de seu patrão, o qual é, assim, induzido a dispensar-lhe maior atenção e a tratá-lo com mais delicadeza. O trato gentil torna o escravo não somente mais fiel, mas também mais inteligente e, portanto, por dupla razão, mais útil. Ele se aproxima mais da condição de um empregado livre e pode possuir certo grau de integridade e apego aos interesses de seu patrão, virtudes que muitas vezes caracterizam empregados livres, mas nunca um escravo, o qual é tratado como costumam ser tratados os escravos em países em que o patrão goza de inteira liberdade e segurança. Que a condição de um escravo é melhor sob um governo arbitrário do que sob um governo liberal, eis um fato que, segundo acredito, é justificado pela história de todos os tempos e nações. Na história romana, a primeira vez que lemos sobre um magistrado que intervém para proteger um escravo da violência de seu patrão, é na época dos imperadores. Quando Védio Pólio, na presença de Augusto, ordenou que um de seus escravos que havia cometido leve falta fosse cortado em pedaços e jogado em seu tanque de peixes para servir-lhes de alimento, o imperador lhe ordenou com indignação que emancipasse imediatamente não somente esse escravo, mas também todos os outros que lhe pertenciam. Durante o regime republicano, nenhum magistrado poderia ter autoridade suficiente para proteger o escravo, muito menos para punir o patrão. Importa observar que o capital que gerou o desenvolvimento das colônias açucareiras da França sobretudo da grande colônia de São Domingos, tem provindo quase inteiramente do aprimoramento e cultivo gradual dessas colônias. Ele tem sido quase inteiramente o produto do solo e do trabalho dos habitantes das colônias, ou, o que é a mesma coisa, o preço dessa produção gradualmente acumulada pela boa administração, e empregada em conseguir uma produção ainda maior. Entretanto, o capital que desenvolveu e cultivou as colônias açucareiras da Inglaterra, ao menos grande parte dele, saiu da Inglaterra e de forma alguma consistiu exclusivamente na produção do solo e do trabalho dos habitantes das colônias. Em grande parte, a prosperidade das colônias açucareiras inglesas se deveu às grandes riquezas da Inglaterra, das quais parte transbordou para essas colônias, se assim se pode dizer. Ao contrário, a prosperidade das colônias açucareiras da França tem sido devida inteiramente à boa conduta e administração dos habitantes das colônias, a qual, portanto, deve ter tido alguma 84
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superioridade em relação à dos ingleses e essa superioridade em nada se revelou tanto como na boa administração de seus escravos. Tal foi, em traços gerais, a política das diversas nações européias no tocante a suas colônias. Conseqüentemente, a política européia tem pouco de que se gloriar da subseqüente prosperidade das colônias da América, quer em sua fundação original, quer no que diz respeito ao seu governo interno. A insensatez e a injustiça parecem ter sido os princípios que inspiraram e dirigiram o projeto inicial de implantar as citadas colônias: a insensatez de ir à caça de minas de ouro e prata e a injustiça de cobiçar a posse de um país cujos inofensivos habitantes nativos, longe de haver jamais prejudicado o povo europeu, receberam os primeiros aventureiros com todas as características da gentileza e da hospitalidade. Realmente, os aventureiros responsáveis pela fundação de algumas das colônias mais recentes juntaram ao projeto quimérico de descobrir minas de ouro e prata outros motivos mais razoáveis e mais dignos de elogios; entretanto, mesmo esses motivos pouco honram a política da Europa. Os puritanos ingleses, com a liberdade restrita de seu país, fugiram para a América em busca da liberdade, implantando lá os quatro governos da Nova Inglaterra. Os católicos ingleses, tratados com injustiça muito maior, estabeleceram o governo de Maryland; os quacres, o da Pensilvânia. Os judeus portugueses, perseguidos pela Inquisição, privados de suas fortunas e banidos para o Brasil, introduziram, pelo seu exemplo, algum tipo de ordem e trabalho entre os delinqüentes e prostitutas deportados, que originalmente povoavam aquela colônia, ensinando-lhes a cultura da cana-de-açúcar. Em todas essas diversas ocasiões, não foram a sabedoria e a política dos governos europeus que povoaram e cultivaram a América, mas sua desordem e injustiça. Na concretização de algumas das mais importantes dessas fundações, os diversos governos da Europa tiveram tão pouco mérito quanto em projetá-las. A conquista do México não foi projeto do Conselho da Espanha, mas de um governador de Cuba, e foi concretizada pelo espírito do ousado aventureiro ao qual o projeto foi confiado, a despeito de tudo o que esse governador, que logo se arrependeu de ter confiado em tal pessoa, conseguiu fazer para frustrar o projeto. Os conquistadores do Chile e do Peru, bem como de quase todas as outras colônias espanholas no continente americano, não levavam consigo nenhum outro estímulo oficial senão uma permissão geral para criar fundações e fazer conquistas em nome do rei da Espanha. Tais aventuras correram todas sob o risco e as despesas privadas dos respectivos aventureiros. O governo espanhol contribuiu muito pouco para ajudar qualquer uma delas. Por sua vez, não foi maior a contribuição do governo da Inglaterra para o estabelecimento de algumas de suas mais importantes colônias na América do Norte. Uma vez fundadas essas colônias, e depois de se terem tornado tão consideráveis a ponto de atrair a atenção da mãe-pátria, as pri85
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meiras medidas legais que esta adotou em relação a elas tinham sempre em vista assegurar para ela própria o monopólio do comércio colonial; seu objetivo consistia em limitar o mercado das colônias e ampliar o dela, às expensas das colônias e, portanto, mais em refrear e desestimular a prosperidade delas, do que em apressá-la e promovê-la. Nas diferentes maneiras de exercer esse monopólio é que reside uma das diferenças mais essenciais na política das diversas nações européias em relação a suas colônias. A melhor de todas elas, a da Inglaterra, é apenas um pouco mais liberal e menos opressiva que a de qualquer uma das demais nações. De que maneira, portanto, a política européia contribuiu, seja para a primeira fundação, seja para a grandeza atual das colônias da América? De uma maneira, de uma única maneira ela contribuiu muito para isso. Magna virum Mater! Ela gerou e formou os homens que foram capazes de realizar feitos tão notáveis e de lançar os alicerces de um império tão grande; e não existe nenhum outro lugar do mundo cuja política fosse capaz de formar tais homens ou os tenha jamais formado efetiva e verdadeiramente. As colônias devem à política da Europa a educação, o grande descortino de seus fundadores ativos e empreendedores; e algumas das maiores e mais importantes dessas colônias, no que respeita a seu governo interno, quase nada devem a essa política européia além disso. PARTE TERCEIRA AS VANTAGENS QUE A EUROPA AUFERIU DA DESCOBERTA DA AMÉRICA E DA DESCOBERTA DE UMA PASSAGEM PARA AS ÍNDIAS ORIENTAIS ATRAVÉS DO CABO DA BOA ESPERANÇA Essas são as vantagens que as colônias da América auferiram da política européia. Quais são as vantagens que a Europa auferiu da descoberta e da colonização da América? Essas vantagens podem ser divididas, em primeiro lugar, nas vantagens de ordem geral que a Europa, considerada um único e grande país, auferiu, desses grandes eventos; e, em segundo, nas vantagens específicas que cada país colonizador obteve das colônias específicas a ele pertencentes, em conseqüência da autoridade ou domínio que sobre elas exerceu. As vantagens gerais que a Europa, considerada um único e grande país, auferiu da descoberta e da colonização da América consistem, primeiro, no aumento de suas posses ou satisfações e, segundo, no incremento de seu trabalho ou atividade. O excedente de produção da América, importado pela Europa, fornece aos habitantes desse grande continente uma variedade de mercadorias que, de outra forma, não poderiam ter possuído: algumas para 86
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seu conforto e utilidade, algumas para o seu prazer, e outras para ornamento, contribuindo assim para aumentar suas satisfações. A descoberta e colonização da América — como se há de reconhecer prontamente — contribuíram para incrementar a atividade: primeiro, de todos os países que mantêm comércio direto com ela, tais como a Espanha, Portugal, França e Inglaterra; segundo, de todos os países que, embora não mantenham comércio direto com ela, enviam à América, por intermédio de outros países, mercadorias de sua produção própria, tais como o Flandres austríaco; e algumas províncias da Alemanha, as quais, através dos países acima mencionados, exportam para a América uma quantidade considerável de linho e outras mercadorias. É evidente que todos esses países ganharam um mercado mais amplo para sua produção excedente, e conseqüentemente devem ter sido estimulados a aumentar a quantidade dessa produção. Entretanto, talvez não seja igualmente manifesto que esses grandes eventos contribuíram também para estimular a atividade de países que, como a Hungria e a Polônia, talvez nunca exportaram um único item de sua própria produção para a América. No entanto, é indubitável que esses eventos tiveram esse efeito. Parte da produção da América é consumida na Hungria e na Polônia, onde existe alguma demanda de açúcar, chocolate e fumo dessa nova região do mundo. Ora essas mercadorias têm que ser compradas com alguma coisa que é o produto do trabalho da Hungria e da Polônia ou com alguma coisa anteriormente comprada com parte dessa produção. Essas mercadorias da América constituem novos valores, novos equivalentes, introduzidos na Hungria e na Polônia para aí serem trocados pelo excedente de produção desses países. Ao serem levadas para lá, elas criam um mercado novo e mais amplo para aquele excedente de produção. Aumentam o valor dessa produção e com isso contribuem para estimular o aumento da mesma. Ainda que nenhum item dessa produção jamais possa ser transportado para a América, pode ser transportado para outros países, os quais o compram com uma parte de sua participação no excedente de produção da América, podendo assim encontrar um mercado através da circulação daquele comércio que foi originariamente acionado pelo excedente de produção da América. Esses grandes eventos podem até haver contribuído para aumentar as satisfações e a atividade de países que não somente jamais exportaram mercadoria alguma para a América, mas nem sequer jamais dela receberam mercadoria alguma. Mesmo tais países podem ter recebido em maior abundância outras mercadorias de países cujo excedente de produção tinha aumentado em virtude do comércio com a América. Assim como essa maior abundância deve necessariamente ter aumentado suas satisfações, da mesma forma ela deve ter aumentado seu trabalho e atividade. Um número maior de novos equivalentes de um ou outro tipo deve ter-lhes sido apresentado, para ser trocado pelo excedente de produção daquele trabalho. Deve ter sido criado um mercado mais amplo para esse excedente de produção, de molde a 87
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aumentar seu valor e, dessa forma, estimular o incremento da mesma. A massa de mercadorias anualmente lançadas no grande círculo do comércio europeu, e por seus vários ciclos distribuídas anualmente, entre todas as diversas nações nele compreendidas, deve ter sido aumentada pelo excedente total de produção da América. Conseqüentemente, é provável que uma parcela maior dessa massa maior tenha revertido para cada uma dessas nações, aumentando suas satisfações e incrementando sua atividade. A exclusividade de comércio dos países colonizadores tende a diminuir, ou, pelo menos, a manter abaixo do que de outra forma atingiriam tanto as satisfações como a atividade de todas essas nações, de um modo geral, e das colônias americanas, em particular. É um peso morto sobre a ação de uma das grandes molas que põem em movimento grande parte dos negócios da humanidade. Tornando os produtos coloniais mais caros em todos os outros países, essa exclusividade de comércio diminui o consumo e portanto dificulta a atividade das colônias, bem como as satisfações e a atividade de todos os outros países, já que ambos desfrutam menos quando pagam mais pelo que desfrutam, e produzem menos quando recebem menos por aquilo que produzem. Encarecendo mais os produtos de todos os países nas colônias, a exclusividade de comércio restringe, da mesma forma, a atividade de todos os outros países, bem como as satisfações e atividade das colônias. É um empecilho que, visando a beneficiar supostamente alguns países em particular, representa um obstáculo aos prazeres e dificulta a atividade de todos os outros países; aliás, mais das colônias do que de qualquer outro. Esse comércio exclusivo não somente exclui, tanto quando possível, todos os países de um determinado mercado, senão que também restringe ao máximo as colônias a um determinado mercado; e é muito grande a diferença entre ser excluído de um determinado mercado, quando permanecem abertos todos os outros, bem como ficar limitado a um mercado em especial, quando todos os demais estão fechados. O excedente de produção das colônias representa, no entanto, a fonte original de todo esse aumento de satisfações e de atividade que a Europa desfruta pela descoberta e pela colonização da América; por outro lado, a exclusividade de comércio por parte dos países colonizadores tende a tornar essa fonte muito menos abundante do que seria de outra forma. As vantagens especiais que cada país colonizador aufere das colônias que particularmente lhe pertencem são de dois gêneros distintos: primeiro, aquelas vantagens comuns que cada império obtém das províncias sujeitas a seu domínio; segundo, aquelas vantagens peculiares que se supõe resultarem de províncias de natureza tão especial quanto as colônias européias na América. As vantagens comuns que cada império consegue das províncias sujeitas a seu domínio consistem: primeiro, na força militar que as colônias fornecem para a sua defesa; segundo na renda que elas proporcionam para a manutenção do seu governo civil. As colônias romanas 88
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ocasionalmente proporcionavam as duas vantagens. As colônias gregas, por vezes, contribuíam com uma força militar, mas raramente com alguma renda. Raramente se reconheciam sujeitas ao domínio da cidade-mãe. Geralmente eram suas aliadas na guerra, mas muito raramente suas súditas em tempos de paz. As colônias européias na América até agora nunca forneceram nenhuma força militar para a defesa da mãe-pátria. Sua força militar até hoje nunca foi suficiente sequer para sua própria defesa; e nas diversas guerras nas quais os países colonizadores têm estado envolvidos, a defesa de suas colônias tem absorvido geralmente parte considerável da força militar desses países. Sob esse aspecto, portanto, todas as colônias européias, sem exceção, têm sido antes uma causa de fraqueza do que de força para suas respectivas mães-pátrias. Somente as colônias da Espanha e de Portugal têm contribuído com alguma renda para a defesa da mãe-pátria ou para o sustento do seu governo civil. Os impostos recolhidos nas colônias de outras nações européias, em especial na da Inglaterra, raramente tem se igualado às despesas com que foram sobrecarregadas em tempo de paz, e nunca foram suficientes para cobrir as despesas a que ficavam sujeitas em tempo de guerra. Por isso, tais colônias têm constituído uma fonte de despesas e não de renda, para suas respectivas mães-pátrias. As vantagens de tais colônias para suas respectivas mães-pátrias consistem exclusivamente nas vantagens peculiares que se supõe resultarem de províncias de natureza tão peculiar quanto as colônias européias da América; ora, reconhecidamente a exclusividade de comércio é a única fonte de todas essas vantagens peculiares. Em conseqüência dessa exclusividade de comércio, toda a parte do excedente de produção das colônias inglesas, por exemplo, que consiste nas chamadas mercadorias enumeradas, não pode ser exportada para país algum fora a Inglaterra. Os outros países têm que comprá-las dela, posteriormente. Por isso, esse excedente de produção das colônias deve ser mais barato na Inglaterra do que em qualquer outro país, devendo contribuir mais para aumentar as satisfações da Inglaterra do que as de qualquer outro país. Deve igualmente contribuir mais para estimular a atividade da Inglaterra. Por todos os itens de seu próprio excedente de produção que a Inglaterra troca por essas mercadorias coloniais enumeradas, necessariamente ela obtém um preço melhor do que quaisquer outros países conseguem obter pelos mesmos itens de seus excedentes de produção respectivos, quando os trocam pelas mesmas mercadorias. Os manufaturados da Inglaterra, por exemplo, comprarão uma quantidade maior de açúcar e de fumo de suas próprias colônias do que as quantidades desse açúcar e desse fumo que as mesmas mercadorias de outros países conseguem comprar. Na medida em que tanto os manufaturados da Inglaterra como os de outros países forem trocados pelo açúcar e pelo fumo das colônias inglesas, essa superioridade de preço dá um estímulo aos manufaturados ingleses, estímulo que vai além daquele de que possam desfrutar, em tais 89
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circunstâncias, os manufaturados de outros países. Por conseguinte, a exclusividade de comércio das colônias, assim como diminui ou, pelo menos, mantém, abaixo do nível que de outra forma atingiriam, tanto os prazeres como a atividade dos países que não possuem essa exclusividade, da mesma forma proporciona uma vantagem evidente aos países que a possuem, em relação àqueles outros países. Entretanto, talvez essa vantagem deva ser considerada antes uma vantagem que se pode chamar relativa, do que uma vantagem absoluta, dando uma superioridade ao país que dela desfruta, antes diminuindo a atividade e a produção de outros países do que aumentando a atividade e a produção do país que a possui, acima do que aumentariam naturalmente, no caso de um comércio livre. Assim, por exemplo, o fumo de Maryland e da Virgínia, em razão do monopólio que a Inglaterra sobre ele desfruta, certamente entra mais barato na Inglaterra do que na França, à qual a Inglaterra costuma vender uma parcela considerável dele. Todavia, caso se tivesse permitido sempre à França e a todos os demais países europeus o livre comércio com Maryland e com a Virgínia, a esta hora o fumo dessas colônias poderia ter chegado mais barato do que atualmente, não somente a todos esses outros países, mas também à própria Inglaterra. A produção de fumo, em decorrência de um mercado tão mais amplo do que qualquer mercado que essa mercadoria teria podido conseguir até hoje, a esta hora poderia ter aumentado tanto — e provavelmente o teria — que os lucros de uma plantação de fumo poderiam reduzir-se ao mesmo nível natural que uma plantação de trigo, lucros esses que, como se supõe, ainda são algo superiores. O preço do fumo poderia hoje ser um pouco mais baixo do que é — e provavelmente assim seria. Uma quantidade igual de mercadorias, tanto da Inglaterra como desses outros países, poderia ter comprado em Maryland e na Virgínia quantidade de fumo maior do que a que consegue comprar atualmente, e, portanto, poderia ter sido vendida lá por um preço muito melhor. Na medida, pois, em que o fumo pode, pelo seu baixo preço e pela sua abundância, aumentar as satisfações ou a atividade da Inglaterra ou de qualquer outro país, ele provavelmente teria produzido, no caso de um comércio livre, esses dois efeitos em grau um tanto superior ao que pode produzi-los atualmente. Sem dúvida, nesse caso, a Inglaterra não teria nenhuma vantagem sobre outros países. Ela poderia ter comprado o fumo de suas colônias um tanto mais barato e, conseqüentemente, teria vendido algumas de suas próprias mercadorias um pouco mais caro do que realmente faz. Entretanto, nessa hipótese, não poderia ter comprado o fumo mais barato, nem vendido suas mercadorias mais caro do que qualquer outro país. Talvez pudesse ter ganho uma vantagem absoluta, mas certamente teria perdido uma vantagem relativa. Todavia, para conseguir essa vantagem relativa no comércio colonial, para cumprir o projeto odioso e maligno de excluir, o quanto possível, outras nações de qualquer participação nesse comércio, a Inglaterra — há razões muito prováveis para crer nisso — não somente 90
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sacrificou parte da vantagem absoluta que ela, como qualquer outra nação, poderia ter auferido desse comércio, mas também se sujeitou tanto a uma desvantagem absoluta como a uma relativa, em quase todos os outros ramos de comércio. Quando, pela lei de navegação, a Inglaterra apropriou-se do monopólio do comércio colonial, os capitais estrangeiros anteriormente aplicados nisso foram necessariamente retirados. O capital inglês, que anteriormente havia movimentado só uma parcela do comércio colonial, a partir de então teve que movimentar a totalidade desse comércio. O capital que antes havia fornecido às colônias somente uma parte das mercadorias que elas requeriam da Europa, a partir de agora passou a representar todo o capital empregado no fornecimento da totalidade das mercadorias européias requeridas pelas colônias. Ora, esse capital não tinha condições de fornecer às colônias a totalidade dessas mercadorias, e as mercadorias que ele efetivamente lhes forneceu necessariamente foram vendidas a preço muito elevado. O capital que anteriormente havia comprado apenas uma parte do excedente de produção das colônias constituiu a partir de então a totalidade do capital empregado para comprar o total do referido excedente. Mas ele não tinha condições de comprar esse total a um preço mais ou menos igual ao antigo e, portanto, tudo o que comprou efetivamente, comprou-o a preço muito baixo. Contudo, em um emprego de capital em que o comerciante vendeu muito caro e comprou muito barato, o lucro deve ter sido muito alto, bem acima do nível normal de lucro em outros setores do comércio. Essa superioridade de lucro no comércio colonial não podia deixar de desviar de outros setores comerciais uma parcela do capital anteriormente neles aplicado. Ora, esta reviravolta de capitais, assim como deve ter feito aumentar gradualmente a concorrência de capitais no comércio colonial, da mesma forma deve ter feito diminuir gradualmente a concorrência de capitais em todos esses outros ramos do comércio; e assim como deve ter feito baixar gradativamente os lucros do comércio colonial, da mesma forma deve ter ocasionado o gradual aumento dos lucros dos demais setores comerciais, até os lucros de todos eles atingirem um novo nível, diferente do vigente anteriormente e um pouco superior. Esse duplo efeito de retirar capital de todos os outros setores de comércio e de fazer subir a taxa de lucro um tanto acima da que, de outra forma, teria ocorrido em todos os setores, não somente foi provocado por esse monopólio, no ato de ser criado, como continuou a ser provocado por ele, deste então. Em primeiro lugar, o referido monopólio tem continuamente atraído capital de todos os demais setores comerciais para ser aplicado no comércio colonial. Embora a riqueza da Grã-Bretanha tenha aumentado muito desde a criação da lei de navegação, ela certamente não cresceu na mesma proporção que a riqueza das colônias. Ora, o comércio exterior de cada país aumenta naturalmente em proporção à sua riqueza, e seu exce91
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dente de produção, em proporção ao total de sua produção; ora, tendo a Grã-Bretanha se apoderado de quase a totalidade do que se pode chamar o comércio exterior das colônias, e não tendo seu capital aumentado na mesma proporção que a ampliação desse comércio, ela não tinha condições para efetuá-lo sem retirar continuamente de outros setores comerciais parte do capital que anteriormente havia sido aplicado neles, e sem impedir que nesses setores se aplicasse bem mais capital que, de outra forma, teria sido investido neles. Por isso, desde a criação da lei de navegação, tem aumentado continuamente o comércio colonial, ao passo que muitos outros setores de comércio exterior têm registrado um declínio contínuo, especialmente do comércio com outras partes da Europa. Os nossos manufaturados para venda no exterior, em vez de serem adaptados — como ocorria antes da lei de navegação — ao mercado vizinho da Europa, ou ao mercado mais distante dos países localizados em torno do Mediterrâneo, foram adaptados — a maior parte deles — ao mercado ainda mais distante das colônias, ao mercado em que detêm monopólio, mais do que ao mercado em que enfrentam muitos concorrentes. As causas do declínio observado em outros setores do comércio exterior — causas essas que Sir Matthew Decker e outros escritores atribuíram ao excesso e à maneira inadequada de taxar, ao alto preço da mão-de-obra, ao aumento do luxo etc. — podem ser encontradas, todas elas, no crescimento excessivo do comércio colonial. Pelo fato de não ser infinito o capital mercantil da Grã-Bretanha, embora seja muito grande e embora esse capital, tendo aumentado muito desde a lei de navegação, não tenha aumentado na mesma proporção que o comércio colonial, não havia condições de efetuar esse comércio sem retirar alguma parcela desse capital de outros setores de comércio e, conseqüentemente, sem acarretar certo declínio nesses outros setores. Cumpre observar que a Inglaterra era um grande país comerciante, que seu capital mercantil era muito grande e tinha probabilidade de aumentar cada dia ainda mais, não somente antes de ter a lei de navegação criado o monopólio do comércio colonial, mas também antes de ter esse comércio crescido muito. Durante a guerra holandesa, sob o governo de Cromwell, a esquadra inglesa era superior à da Holanda; e na guerra que estourou no início do reinado de Carlos II, ela era no mínimo igual, talvez até superior, às esquadras da França e Holanda juntas. Talvez hoje, essa superioridade dificilmente possa ser considerada maior, pelo menos se a esquadra holandesa mantivesse a mesma proporção com o comércio holandês que mantinha na época. Ora, esse grande poder naval não poderia ser atribuído, em nenhuma das duas guerras citadas, à lei de navegação. Durante a primeira delas, o projeto dessa lei estava apenas concebido; e, embora antes de irromper a segunda, a lei de navegação já tivesse sido, em princípio, plenamente colocada em vigor pela autoridade legal, nenhum item dela poderia ter tido tempo suficiente para produzir algum efeito considerável, e muito menos o item que criava a exclusividade de comércio com as 92
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colônias. Tanto as colônias como o comércio colonial eram então insignificantes, em confronto com o que representam hoje. A ilha de Jamaica era um deserto insalubre, pouco habitado e ainda menos cultivado. As províncias de Nova York e Nova Jersey estavam em posse dos holandeses, e a metade de St. Christopher nas mãos dos franceses. A ilha de Antigua, as duas Carolinas, a Pensilvânia, a Geórgia e Nova Escócia não estavam ainda estabelecidas como colônias. A Virgínia, Maryland e a Nova Inglaterra já existiam como colônias, porém, embora já fossem muito prósperas, talvez não houvesse, na época, nem na Europa nem na América, uma única pessoa que previsse ou mesmo suspeitasse do rápido impulso que desde então essas províncias tiveram no tocante à riqueza, à população e à prosperidade. Em suma, a ilha de Barbados constituía a única colônia britânica de certa importância, cuja situação na época apresentava alguma semelhança com o que é atualmente. O comércio colonial, do qual a Inglaterra, mesmo algum tempo após a lei de navegação, desfrutava apenas parcialmente (uma vez que a lei de navegação não foi cumprida com muito rigor senão vários anos depois de ser promulgada), não podia, naquela época, ser a causa do grande comércio da Inglaterra nem do grande poderio naval que dava sustentação a esse comércio. O comércio que naquela época sustentava esse grande poderio naval era o comércio com a Europa e com os países situados em volta do Mediterrâneo. Mas, a parcela que a Grã-Bretanha detém atualmente nesse comércio não teria condições de dar sustentação a um poderio naval tão grande. Caso se tivesse liberado o crescente comércio colonial para todas as nações, qualquer que fosse a parcela que tivesse cabido à Grã-Bretanha — e certamente ela teria sido muito grande — necessariamente teria constituído um acréscimo ao grande comércio que ela já possuía. Em conseqüência do monopólio, o aumento do comércio colonial acarretou não tanto um acréscimo ao comércio que a Grã-Bretanha já possuía anteriormente, quanto uma mudança total na sua direção. Em segundo lugar, esse monopólio forçosamente contribuiu para que a taxa de lucro em todos os diversos setores do comércio britânico se mantivesse mais alta do que naturalmente teria sido, caso se tivesse permitido a todas as nações o livre comércio com as colônias britânicas. Assim como o monopólio do comércio colonial necessariamente atraiu para si uma porcentagem de capital britânico superior àquela que para ele teria sido canalizada espontaneamente, da mesma forma, pela exclusão de todos os capitais estrangeiros, ele reduziu inevitavelmente a quantidade total de capital empregado nesse comércio colonial abaixo daquela que nele teria sido naturalmente aplicada, no caso de um comércio livre. Todavia, ao diminuir a concorrência dos capitais naquele ramo comercial, o monopólio forçosamente fez aumentar a taxa do lucro daquele ramo. Além disso, diminuindo a concorrência dos capitais britânicos em todos os outros setores comerciais, necessariamente ele gerou um aumento da taxa de lucro britânico em todos esses outros setores. Qualquer que possa ter sido, em qualquer período especial, 93
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desde a criação da lei de navegação, o estado ou o montante do capital mercantil da Grã-Bretanha, o monopólio do comércio colonial, durante a permanência daquele estado, deve ter aumentado a taxa normal do lucro britânico acima do que, de outra forma, ela teria aumentado, tanto no comércio colonial como em todos os outros setores do comércio britânico. Se, desde a criação da lei de navegação, a taxa normal de lucro britânico caiu consideravelmente, como de fato ocorreu, ela teria caído ainda mais se o monopólio criado por aquela lei não tivesse contribuído para mantê-la. Entretanto, tudo o que em um país faz aumentar a taxa normal de lucro acima do que ela, de outra forma, seria, necessariamente acarreta para o país em questão tanto uma desvantagem absoluta como uma desvantagem relativa, em todo setor comercial do qual ele não detiver monopólio. Cria-lhe uma desvantagem absoluta, pois em tais setores de comércio seus comerciantes não têm condições de conseguir esse lucro maior sem vender mais caro do que, de outra forma, venderiam, tanto as mercadorias de países estrangeiros que eles importam para seu próprio país, como os produtos de seu próprio país que exportam a países estrangeiros. Seu próprio país tem que comprar mais caro e vender mais caro, tem que comprar menos e vender menos; tem que desfrutar menos e produzir menos, do que outra forma o faria. Acarreta-lhe uma desvantagem relativa, pois, em tais setores de comércio, isso coloca outros países, não sujeitos à mesma desvantagem absoluta, mais acima ou menos abaixo dele do que, de outra forma, estariam. Possibilita-lhes tanto desfrutar mais quanto produzir mais, em relação ao que ele mesmo desfruta e produz. Torna a superioridade deles maior ou a inferioridade menor do que normalmente seriam. Aumentando o preço de seus produtos acima do normal, possibilita aos comerciantes de outros países venderem mais barato do que ele em mercados estrangeiros e, com isso, eliminá-lo de quase todos os setores comerciais dos quais ele não possui monopólio. Nossos comerciantes muitas vezes queixam-se dos altos salários da mão-de-obra britânica como sendo a causa em razão da qual seus manufaturados chegam aos mercados estrangeiros com preço excessivo, mas silenciam sobre os altos lucros do capital. Queixam-se do ganho descomunal de outras pessoas, mas nada dizem sobre os deles próprios. No entanto, os altos lucros do capital britânico podem contribuir para aumentar o preço dos manufaturados britânicos, em muitos casos, tanto quanto os altos salários da mão-de-obra britânica, e talvez até mais do que esses altos salários, em alguns casos. Pode-se, pois, afirmar com justiça que é dessa maneira que o capital da Grã-Bretanha em parte foi retirado e em parte foi expelido da maioria dos diversos setores comerciais dos quais o país não detém monopólio, em particular, do comércio europeu e do dos países localizados em volta do mar Mediterrâneo. Em parte, ele foi retirado dos mencionados setores de comércio, pelo atrativo de um lucro maior no comércio colonial, em conseqüência 94
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do aumento contínuo deste e da constante insuficiência do capital que o movimentou em um ano, para movimentá-lo no ano seguinte. Em parte, foi expulso deles, pela vantagem que a alta taxa de lucro, vigente na Grã-Bretanha, dá a outros países, em todos os diversos setores comerciais dos quais aquele país não possui o monopólio. Assim como o monopólio do comércio colonial retirou desses outros setores parte do capital britânico que, de outra forma, teria sido aplicada neles, da mesma forma forçou a canalização, para esses setores, de muitos capitais estrangeiros que jamais teriam sido aplicados neles, caso não tivessem sido expulsos do comércio colonial. Nesses outros setores do comércio, o monopólio fez diminuir a concorrência de capitais britânicos, e com isso elevou a taxa de lucro britânico acima do que, de outra forma, ela teria elevado. Ao contrário, o monopólio aumentou a concorrência de capitais estrangeiros e, assim, fez descer a taxa de lucro estrangeiro abaixo do que, de outra forma, teria ocorrido. De uma e de outra forma, é evidente que o monopólio do comércio colonial necessariamente sujeitou a Grã-Bretanha a uma desvantagem relativa em todos os outros setores de comércio. Poder-se-ia talvez alegar, porém, que o comércio colonial traz mais vantagem para a Grã-Bretanha do que qualquer outro; e que o monopólio, forçando a canalização para esse comércio de porcentagem maior de capital da Grã-Bretanha do que a que, de outra forma, nele seria aplicada, orientou esse capital no sentido de uma aplicação mais rentável para o país do que qualquer outra que ele teria podido encontrar. A aplicação mais rentável de qualquer capital, para o país ao qual ele pertence, é aquela que nesse país sustenta o maior contingente de mão-de-obra e mais aumenta a produção anual da terra e da mãode-obra do país. Ora, a quantidade de trabalho produtivo que qualquer capital empregado no comércio externo para consumo pode sustentar é exatamente proporcional à freqüência de seus retornos, conforme demonstrei no Livro Segundo. Um capital de mil libras, por exemplo, empregado em um comércio externo para consumo, cujos retornos se verificam regularmente uma vez por ano, tem condições de manter constantemente empregado, no país ao qual ele pertence, um contingente de mão-de-obra produtiva igual ao que pode ser ali mantido por mil libras durante um ano. Se os retornos ocorrem duas ou três vezes por ano, esse mesmo capital pode manter constantemente empregado um contingente de mão-de-obra produtiva igual ao que pode ser ali mantido, durante um ano, por 2 ou 3 mil libras. Por esse motivo, e pela mesma razão, um comércio externo para consumo, de tipo direto, é geralmente mais vantajoso do que um comércio de tipo indireto — como igualmente foi mostrado no Livro Segundo. Mas o monopólio do comércio colonial, na medida em que teve efeitos para a aplicação do capital da Grã-Bretanha, em todos os casos forçou parte desse capital a passar de um comércio exterior para consumo, efetuado com um país vizinho, para outro efetuado com um país 95
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mais distante; e, em muitos casos, de um comércio externo direto para consumo, para um comércio externo indireto. Em primeiro lugar, o monopólio do comércio colonial, em todos os casos, forçou parte do capital da Grã-Bretanha a passar de um comércio exterior de consumo, efetuado com um país vizinho, para outro levado a efeito com um país mais distante. Em todos os casos, o monopólio forçou parte desse capital a passar do comércio com a Europa e com os países localizados em torno do mar Mediterrâneo, para o comércio com as regiões mais distantes da América e das Índias Ocidentais, cujos retornos são forçosamente menos freqüentes, não somente devido à maior distância, mas também em decorrência das circunstâncias peculiares desses países. Como já observei, as colônias novas sempre têm escassez de estoque. Seu capital sempre é muito inferior àquilo que poderiam aplicar, com grande lucro e vantagem no aprimoramento e no cultivo de suas terras. Por isso, estão em constante demanda de capital superior ao próprio capital que possuem; e, no intuito de suprir a escassez de seu capital, procuram tomar emprestado tanto quanto puderem, da mãe-pátria, à qual, por conseguinte, estão sempre devendo. O modo mais usual de os habitantes das colônias contraírem essa dívida não consiste em tomar empréstimos, sob garantia, das pessoas ricas da mãe-pátria, embora, por vezes, também façam isso —, mas atrasar os pagamentos a seus correspondentes, que lhes fornecem mercadorias européias, tanto quanto esses correspondentes lhes permitirem. Seus retornos anuais muitas vezes não passam de 1/3 do que devem e, às vezes, nem sequer atingem essa porcentagem. Por isso, o capital total que seus correspondentes lhes adiantam raramente leva menos de três anos para retornar à Grã-Bretanha, às vezes não menos de quatro ou cinco anos. Ora, um capital britânico de mil libras ou cinco anos só pode manter constantemente empregada a quinta parte do trabalho britânico que esse mesmo capital poderia manter, se o total voltasse ao país uma vez por ano e, conseqüentemente, em vez do volume de trabalho que poderia ser mantido durante um ano por mil libras, poderá manter constantemente empregado apenas o volume de trabalho que pode ser mantido durante um ano por 200 libras. Sem dúvida, o plantador, pelo alto preço que paga pelas mercadorias da Europa, pelos juros que paga por títulos com vencimento a longo prazo, e pela comissão que paga na renovação dos títulos com vencimento a prazo mais curto, compensa — e, provavelmente, compensa muito — toda perda que seu correspondente possa ter com essa demora de pagamento. Entretanto, se pode compensar a perda de seu correspondente, não pode compensar a perda da Grã-Bretanha. Em um comércio cujos retornos são muito demorados, o lucro do comerciante pode ser tão grande (ou até maior) quanto em um comércio cujos retornos são muito freqüentes e próximos; todavia, sempre serão muito menores a vantagem do país no qual reside o comerciante, o contingente de mão-de-obra produtiva nele mantido constantemente, a produção anual da terra e do trabalho do país. 96
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Segundo acredito, todos os que têm alguma experiência nesses setores comerciais admitirão prontamente que os retornos do comércio com a América, ainda mais, os retornos do comércio com as Índias Ocidentais, são, em geral, não somente mais demorados, como também mais irregulares e mais incertos do que os do comércio com qualquer região da Europa ou mesmo com os países localizados em torno do Mediterrâneo. Em segundo lugar, em muitos casos, o monopólio do comércio colonial forçou a transferência de parte do capital da Grã-Bretanha de um comércio externo de consumo de tipo indireto para um de tipo indireto. Entre as mercadorias enumeradas que só podem ser exportadas ao mercado britânico figuram várias cuja quantidade supera muitíssimo o consumo da Grã-Bretanha, e das quais parte, portanto, tem que ser exportada para outros países. Mas isso não pode ser feito sem forçar a passagem de parte do capital da Grã-Bretanha para um comércio exterior para consumo, de tipo indireto. Maryland e Virgínia, por exemplo, exportam anualmente para a Grã-Bretanha mais de 96 mil barris de fumo mas, conforme se afirma, o consumo da Grã-Bretanha não ultrapassa 14 mil. Mais de 82 mil barris, portanto, devem ser exportados a outros países, à França, à Holanda e aos países localizados nos mares Báltico e Mediterrâneo. Ora, essa parte do capital britânico que traz esses 82 mil barris de fumo à Grã-Bretanha, que os reexporta daqui para esses outros países, e que traz de volta, desses outros países para a Grã-Bretanha, ou mercadorias ou dinheiro, é empregada em um comércio exterior para consumo de tipo indireto, sendo necessariamente forçada a empregar-se nessa aplicação, a fim de vender esse grande excedente. Se quisermos calcular quantos anos o total desse capital levaria para retornar à Grã-Bretanha, temos que acrescentar, à distância e à demora dos retornos da América, a dos retornos desses países. Se, no comércio exterior para consumo, de tipo direto, com a América, o total do capital empregado freqüentemente demora para retornar não menos de três ou quatro anos, o total do capital empregado no citado comércio indireto provavelmente não demora menos de quatro ou cinco anos para voltar. Se o capital aplicado no comércio direto só consegue manter constantemente empregado apenas 1/3 ou 1/4 do trabalho britânico que poderia ser mantido por um capital de retorno uma vez por ano, o capital empregado no comércio indireto só tem condições de manter constantemente empregado 1/4 ou 1/5 desse trabalho. Em alguns dos portos de exportação costuma-se dar um crédito aos correspondentes estrangeiros aos quais exportam seu fumo. No porto de Londres, de fato, o fumo é geralmente vendido por dinheiro vivo. A regra é: Pese e Pague. No porto de Londres, portanto, a defasagem de tempo entre os retornos finais de todo o comércio indireto e os retornos da América consiste apenas no período em que as mercadorias podem permanecer estocadas no depósito, antes de serem vendidas — período esse que, aliás, pode ser bastante longo. Ora, se as colônias não tivessem sido obrigadas a vender seu fumo exclusivamente 97
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à Grã-Bretanha, pouquíssimo desse produto, possivelmente, teria entrado na Grã-Bretanha, além do necessário para o consumo interno. Os produtos que a Grã-Bretanha compra atualmente para seu consumo interno, com o grande excedente do fumo que exporta para outros países, ela provavelmente os teria comprado, nesse caso, com a produção direta de seu próprio trabalho ou com parte de seus próprios manufaturados. Essa produção, esses manufaturados, em vez de serem quase inteiramente adequados a um grande mercado, como atualmente, provavelmente teriam sido adaptados a um número maior de mercados menores. Em vez de um grande comércio externo para consumo, de tipo indireto, a Grã-Bretanha, provavelmente, teria efetuado um grande número de pequenos comércios externos do mesmo tipo, mas diretos. Em virtude da freqüência dos retornos, parte ou provavelmente apenas uma pequena parte — talvez não mais do que 1/3 ou 1/4 — do capital que atualmente efetua esse grande comércio indireto poderia ter sido suficiente para levar a efeito todos esses pequenos comércios diretos, poderia ter mantido constantemente empregado um volume igual de trabalho britânico e igualmente sustentado a produção anual da terra e do trabalho da Grã-Bretanha. Visto que todos os objetivos desse comércio são, assim, atendidos por um capital muito menor, teria sobrado amplo capital para ser aplicado com outros fins: para aprimorar a terra, aumentar as manufaturas, ampliar o comércio da Grã-Bretanha, competir, no mínimo, com os outros capitais britânicos empregados de todas essas diversas maneiras, reduzir a taxa de lucro em todas elas e, dessa forma, dar à Grã-Bretanha, em todos eles, uma superioridade, em relação a outros países ainda maior do que aquela de que atualmente desfruta. O monopólio do comércio colonial forçou também parte do capital da Grã-Bretanha a passar de todo o comércio externo de consumo para um comércio de transporte de mercadorias e, conseqüentemente, de uma aplicação destinada a sustentar, em grau maior ou menor, o trabalho da Grã-Bretanha, para uma destinada exclusivamente a sustentar, de um lado, o trabalho das colônias e, de outro, o de alguns outros países. Assim, por exemplo, as mercadorias anualmente compradas com o grande excedente de 82 mil barris de fumo reexportados por ano da Grã-Bretanha não são totalmente consumidas na Grã-Bretanha. Parte delas, por exemplo, o linho da Alemanha e da Holanda, é reexportada às colônias para o consumo específico delas. Ora, essa parte de capital britânico que compra o fumo, com o qual posteriormente se compra esse linho, é necessariamente retirada do suporte ao trabalho da GrãBretanha para ser aplicada exclusivamente em sustentar, em parte, o trabalho das colônias e, em parte, o dos países, em particular dos que pagam esse fumo com a produção de seu próprio trabalho. Além disso, o monopólio do comércio colonial, canalizando forçosamente para ele uma porcentagem de capital britânico muito superior àquela que naturalmente seria para ele canalizada, parece ter rompido 98
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totalmente esse equilíbrio natural que, de outra forma, teria ocorrido entre todos os diversos setores da atividade britânica. A atividade da Grã-Bretanha, em vez de adequar-se a um grande número de pequenos mercados, adaptou-se sobretudo a um único grande mercado. Seu comércio, em vez de fluir em um grande número de pequenos canais, foi orientado no sentido de fluir sobretudo em um único grande canal. Ora, com isso todo o sistema de trabalho e de comércio da Grã-Bretanha se tornou menos seguro; e o estado global de seu organismo político tornou-se menos saudável do que ocorreria sem monopólio. Em seu estado atual, a Grã-Bretanha se assemelha a um desses organismos pouco sadios, no qual algumas de suas partes vitais cresceram demais e que, por esse motivo, estão sujeitos a muitas perturbações perigosas, que dificilmente ocorrem nos organismos nos quais todas as partes se apresentam mais adequadamente proporcionais. Uma pequena parada nessa grande artéria que se fez cresceu e inchou artificialmente além de suas dimensões naturais, e através da qual se obrigou a circular uma porcentagem incomum da atividade e do comércio do país, pode perfeitamente acarretar os mais perigosos distúrbios em todo o organismo político. Eis por que a expectativa de uma ruptura com as colônias tem trazido ao povo da Grã-Bretanha mais pânico do que aquele que jamais sentiu frente a uma armada espanhola ou a uma invasão francesa. Fundado ou infundado, foi esse terror que transformou em uma medida popular a revogação da Lei do Selo, ao menos entre os comerciantes. Na exclusão total do mercado colonial, mesmo que ela durasse apenas uns poucos anos, a maior parte dos nossos comerciantes costumava imaginar que estava prevista uma paralisação total de seu comércio; a maior parte dos nossos donos de manufaturas, a ruína completa de sua atividade, e a maior parte dos nossos operários o fim dos próprios empregos. Ao contrário, uma ruptura com qualquer dos nossos vizinhos do continente, embora também ela pudesse provocar até certo ponto uma parada ou interrupção dos empregos de algumas classes populares, é prevista, contudo, sem uma comoção generalizada. O sangue cuja circulação é paralisada em algum dos vasos menores, facilmente passa para os maiores, sem acarretar nenhum distúrbio perigoso; quando, porém, a circulação sanguínea é paralisada em algumas artérias maiores, as conseqüências imediatas e inevitáveis são convulsões, apoplexia ou a morte. Se apenas uma dessas manufaturas que cresceram exageradamente e que, mediante subsídio do monopólio do mercado interno ou colonial, atingiram artificialmente dimensões tão incomuns, sofre alguma pequena parada ou interrupção em seu emprego, com freqüência ocasiona um motim e desordem que alarma o Governo, causando embaraços até mesmo às deliberações dos legisladores. Que dimensão teria então a desordem e a confusão — imaginou-se — que necessariamente adviria em decorrência de uma parada repentina e total no emprego de uma porcentagem tão grande de nossos principais manufatores? Certo abrandamento moderado e gradual das leis que dão à Grã99
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Bretanha a exclusividade do comércio colonial, até que ele se torne bastante livre, parece ser o único expediente que poderá, em tempos futuros, livrá-la desse perigo, e possibilitá-la ou até forçá-la a retirar a parte de seu capital dessa aplicação exagerada e desviá-la, embora com lucro menor, para outras aplicações: expediente que, reduzindo gradualmente um setor de trabalho e aumentando gradualmente todos os outros, poderá gradativamente levar todos os diversos setores a recuperarem a proporção natural, saudável e adequada, determinada necessariamente pela perfeita liberdade e que só essa perfeita liberdade pode preservar. Abrir o comércio colonial de uma só vez a todas as nações poderia não só ocasionar algum inconveniente transitório, como também uma grande perda permanente para a maioria daqueles cujo trabalho ou capital estão no momento nele engajados. A simples perda repentina do emprego, mesmo dos navios que importam os 82 mil barris de fumo que ultrapassam o consumo da Grã-Bretanha, por si só poderia ser sensivelmente ressentida. Tais são os infaustos efeitos de todas as medidas legais provenientes do sistema mercantil! Elas não somente provocam desordens muito perigosas no estado do organismo político, mas também desordens muitas vezes difíceis de remediar, em gerar, ao menos por algum tempo, desordens ainda maiores. De que maneira, pois, se deve abrir gradualmente o comércio colonial? Quais as restrições que devem ser abolidas em primeiro lugar e quais em último? Em que medida se deve restabelecer gradualmente o sistema natural da liberdade e justiça completas? Tudo isto deve ser deixado à determinação da sabedoria de estadistas e de legisladores futuros. Cinco eventos distintos, imprevistos e inesperados, muito afortunadamente concorreram para impedir que a Grã-Bretanha se ressentisse, como de um modo geral se acreditava, da exclusão total que atualmente se tem verificado, durante mais de um ano (desde 1 de dezembro de 1774), de um setor muito importante do comércio colonial, o das doze províncias associadas da América do Norte. Em primeiro lugar, essas colônias, ao se prepararem para seu acordo de não-importação, sugaram a Grã-Bretanha completamente de todas as mercadorias adequadas para o mercado delas; em segundo lugar, a demanda extraordinária da Frota Espanhola sugou, nesse ano, a Alemanha e os países nórdicos de muitas mercadorias, especialmente o linho, que costumavam entrar em concorrência, mesmo no mercado britânico, com os manufaturados da Grã-Bretanha; em terceiro lugar, a paz entre a Rússia e a Turquia provocou uma demanda extraordinária por parte do mercado turco, demanda que, durante o estado aflitivo do país, e enquanto uma frota russa cruzava o arquipélago, tinha sido atendida muito precariamente; em quarto lugar, a demanda do norte da Europa pelos manufaturados britânicos tem crescido de ano para ano, de algum tempo para cá; e, em quinto lugar, a recente divisão e conseqüente pacificação da Polônia, com a abertura do mercado deste grande país, acrescentou nesse ano uma demanda extraordinária à crescente de100
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manda do norte. Todos esses eventos, excetuado o quarto, são por sua própria natureza transitórios e acidentais, e a exclusão de um setor comercial tão importante como o comércio colonial se, por infelicidade continuar por muito mais tempo, ainda pode gerar alguma aflição. Entretanto, esta, pelo fato de ocorrer gradualmente, será muito menos ressentida do que se tivesse ocorrido repentinamente; e, nesse meio tempo, a atividade e o capital do país podem encontrar novo emprego e orientação de maneira a evitar que tal desgraça um dia atinja proporções consideráveis. Por isso, o monopólio do comércio colonial na medida em que canalizou para ele uma porcentagem de capital britânico superior àquela que, de outra forma, teria sido nele aplicada, em todo o caso desviou esse capital de um comércio externo de consumo com um país vizinho para um país distante; em muitos casos, desviou-o de um comércio exterior de consumo de tipo direto para um comércio exterior de tipo indireto; e em alguns casos, desviou-o de todo o comércio externo de consumo para um comércio de transporte internacional de mercadorias. Por isso, em todos os casos, desviou o capital de uma direção na qual ele teria mantido um contingente maior de mão-de-obra produtiva para uma na qual ele só pode manter um contingente muito menor. Além disso, adaptando apenas a um determinado mercado parte tão grande da atividade e do comércio da Grã-Bretanha, o monopólio tornou o estado global dessa atividade e desse comércio mais precário e menos seguro do que se a produção tivesse sido adaptada a uma variedade maior de mercados. É preciso fazer estrita distinção entre os efeitos do comércio colonial e os do monopólio desse comércio. Os primeiros são sempre e necessariamente benéficos; os segundos, sempre e necessariamente danosos. Os primeiros são tão benéficos que o comércio colonial, apesar de sujeito a monopólio, e não obstante os efeitos prejudiciais desse monopólio, continua em seu conjunto benéfico, e até muito benéfico, embora bastante menos do que o seria se não houvesse monopólio. O efeito do comércio colonial, em seu estado natural e livre, consiste em abrir um grande mercado — ainda que distante — para os itens da produção britânica que podem superar a demanda dos mercados mais próximos à Grã-Bretanha, ou seja, os da Europa e dos países situados em torno do Mediterrâneo. Em seu estado natural e livre, o comércio colonial, sem desviar desses mercados nenhuma parte da produção sempre exportada para eles, estimula a Grã-Bretanha a aumentar continuamente esse excedente, apresentando incessantemente novos equivalentes a serem intercambiados. Em seu estado natural e livre, o comércio colonial tende a aumentar a quantidade de trabalho produtivo na Grã-Bretanha, mas sem alterar, sob qualquer aspecto, a direção da mão-de-obra empregada anteriormente no país. No estado natural e livre do comércio colonial, a concorrência de todas as outras nações impediria que a taxa de lucro subisse acima do nível normal, seja no novo mercado, seja no novo emprego. O novo mercado, sem 101
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desviar nada do antigo, criaria, se assim se pode dizer, uma nova produção para seu próprio suprimento; e essa nova produção constituiria um novo capital para efetuar a nova aplicação, a qual, por sua vez, tampouco nada desviaria da antiga. Ao contrário, o monopólio do comércio colonial, excluindo a concorrência das outras nações e, com isso, fazendo subir a taxa de lucro tanto no novo mercado quanto na nova aplicação, desvia a produção do antigo mercado e capital da antiga aplicação. A finalidade declarada do monopólio é aumentar nossa participação no comércio colonial além do que, de outra forma, ocorreria. Se a nossa participação nesse comércio não fosse maior com monopólio do que sem monopólio, não poderia ter havido razão alguma para criar o monopólio. Ora, tudo aquilo que força a canalizar para um setor comercial, cujos retornos são mais lentos e mais demorados do que os retornos da maioria dos outros setores, uma porcentagem de capital de um país, superior àquela que espontaneamente seria aplicada nesse setor, necessariamente faz com que sejam menores do que o seriam de outra forma o contingente total de mão-de-obra produtiva anualmente mantido no respectivo país, a produção anual total da terra e do trabalho do país. Isso mantém baixa a renda dos habitantes desse país, abaixo do nível ao qual ela subiria naturalmente e, com isso, diminui seu poder de acumulação. Isso não somente impede, em qualquer período, o capital do país de manter um contingente tão grande de mão-de-obra produtiva quanto o que de outra forma manteria, como também o impede de aumentar com a mesma rapidez com que normalmente aumentaria e, conseqüentemente, de manter um contingente ainda maior de trabalho produtivo. Entretanto, os bons efeitos naturais do comércio colonial são tais que mais do que contrabalançam os maus efeitos do monopólio, para a Grã-Bretanha; de tal sorte que, apesar do monopólio, e de tudo o mais, o comércio colonial, mesmo na forma como existe hoje, não somente é vantajoso, mas até altamente vantajoso. O novo mercado e a nova aplicação abertos pelo comércio colonial são muito mais extensos do que aquela parcela do velho mercado e da velha aplicação que assim se perde com o monopólio. Se assim se pode dizer, a nova produção e o novo capital de tal forma criados pelo comércio colonial mantêm na Grã-Bretanha um contingente de mão-de-obra produtiva superior àquele que possa ter perdido seu emprego devido à reviravolta de capital de outros setores comerciais cujos retornos são mais freqüentes. Se, porém, o comércio colonial, mesmo como praticado atualmente, é vantajoso para a Grã-Bretanha, isso não ocorre por causa do monopólio, mas a despeito dele. Se o comércio colonial abre um novo mercado, é mais para a produção manufaturada da Europa do que para a sua produção natural ou bruta. A agricultura é o negócio adequado para todas as novas colônias; um negócio que o baixo preço da terra torna mais rentável do que qualquer outro. Por isso, as colônias têm abundâncias de produtos diretos da terra e, em vez de importá-los de outros países, ge102
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ralmente têm um grande excedente para exportar. Nas colônias novas, a agricultura atrai mão-de-obra de todos os outros empregos ou a impede de procurar qualquer outro emprego. Há pouca mão-de-obra para as manufaturas necessárias e nenhuma para as manufaturas supérfluas. Quanto à maior parte dos manufatores, tanto dos necessários quanto dos que são mais de luxo, as colônias verificam ser mais barato comprá-los de outros países do que fabricá-los elas mesmas. É sobretudo estimulando os manufaturados da Europa que o comércio colonial encoraja indiretamente a agricultura. Os manufaturados europeus, aos quais o comércio colonial dá emprego, constituem um novo mercado para a produção da terra; dessa forma, através do comércio com a América, se amplia muito o mais vantajoso dos novos mercados, isto é, o mercado interno para os cereais e o gado, para o pão e a carne de açougue da Europa. Entretanto, os exemplos da Espanha e de Portugal demonstram suficientemente que o monopólio do comércio com colônias populosas e prósperas não é suficiente, por si só, para criar manufaturas em algum país e nem mesmo para mantê-las. A Espanha e Portugal eram países manufatores antes de possuir quaisquer colônias importantes. E no entanto, a partir do momento em que passaram a ter as colônias mais ricas e mais férteis do mundo, as duas nações deixaram de ser países manufatores. Na Espanha e em Portugal, os maus efeitos do monopólio, agravados por outras causas, talvez tenham chegado a pesar quase mais do que os bons efeitos do comércio colonial. As causas parecem ser as seguintes: outros monopólios de vários tipos, a perda do valor do ouro e da prata abaixo do valor que esses metais têm na maioria dos demais países, a exclusão dos mercados externos, com a imposição de taxas inadequadas à importação, e o estreitamento do mercado interno mediante taxas ainda mais inadequadas, incidentes sobre o transporte de mercadorias de uma parte do país para outra; e, acima de todas, a administração irregular e pouco imparcial da justiça, que muitas vezes protege o devedor rico e poderoso da cobrança por parte de seu credor lesado, e que torna a parcela operosa da nação temerosa de preparar mercadorias para o consumo dessas pessoas arrogantes e soberbas, as quais não ousam recusar vender a crédito, embora sem ter certeza alguma de que serão reembolsadas. Ao contrário, na Inglaterra, os efeitos naturais e bons do comércio colonial, secundados por outras causas, superaram em alto grau os maus efeitos do monopólio. Essas causas parecem ser as seguintes: a liberdade geral de comércio, a qual, apesar de algumas restrições, é no mínimo igual e talvez até superior à que se encontra em qualquer outro país; a liberdade de exportar, com isenção de direitos aduaneiros, quase todos os tipos de mercadorias produzidas pela atividade interna, a quase todos os países estrangeiros; e, o que talvez seja ainda mais importante, a liberdade total de transportar tais mercadorias de qualquer parte de nosso país para outra região interna qualquer, sem ter 103
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que prestar contas a nenhum órgão oficial, sem estar sujeito a entraves ou inspeção de espécie alguma; acima de tudo, porém, cumpre destacar como causa essa administração igual e imparcial da justiça, que faz com que os direitos do súdito britânico de categoria mais baixa sejam respeitáveis para o súdito da mais alta posição, e que, garantindo a cada um os frutos de seu próprio trabalho, dá o maior e mais eficaz estímulo a todos os tipos de atividades. Se, porém, as manufaturas da Grã-Bretanha progrediram — como certamente aconteceu — como decorrência do comércio colonial, isso não se deu em virtude do monopólio desse comércio, mas apesar dele. O efeito do monopólio não consistiu em aumentar a quantidade, mas em alterar a qualidade ou a forma de parte dos manufaturados da Grã-Bretanha, e adaptar, a um mercado cujos retornos são lentos e demorados, os manufaturados que, de outra forma, teriam sido adaptados a um mercado cujos retornos são freqüentes e próximos. Seu efeito, portanto, tem sido desviar uma parcela do capital britânico, de uma aplicação na qual ele teria mantido um volume maior de atividade manufatora, para uma na qual o capital mantém um volume muito menor e, por conseguinte, diminuir e não aumentar o volume total de atividade manufatora na Grã-Bretanha. Conseqüentemente, o monopólio do comércio colonial, como todos os demais expedientes medíocres e malignos do sistema mercantil, desalenta a atividade de todos os demais países, sobretudo a das colônias sem, em contrapartida, aumentar — pelo contrário, diminuindo — toda a atividade manufatora do país a favor do qual o monopólio é criado. O monopólio impede o capital do respectivo país — qualquer que seja, em determinado momento, o montante desse capital — de manter um contingente de mão-de-obra produtiva tão grande quanto, de outra forma, haveria de manter, e de proporcionar aos habitantes operosos renda tão grande quanto a que normalmente proporcionaria. Ora, já que o capital só pode ser aumentado através das economias feitas na renda, o monopólio, impedindo o capital de proporcionar uma renda tão alta quanto de outra forma proporcionaria, necessariamente o impede de aumentar com a mesma rapidez com a qual de outra maneira aumentaria e, conseqüentemente, de manter um contingente ainda maior de mão-de-obra produtiva e proporcionar aos habitantes operosos do país renda ainda maior. Por conseguinte, em todos os tempos, o monopólio necessariamente deve ter tornado menos abundante do que seria normalmente, uma grande fonte original de renda, isto é, os salários do trabalho. Ao elevar a taxa de lucro mercantil, o monopólio desestimula o aprimoramento da terra. O lucro acarretado pelo aprimoramento depende da diferença entre aquilo que a terra realmente produz e aquilo que ela pode vir a produzir, com a aplicação de determinado capital. Se essa diferença propiciar um lucro superior àquele que se pode auferir de um capital igual em qualquer aplicação mercantil, o aprimoramento da terra atrairá capital de todas as aplicações comerciais. Se o lucro 104
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for inferior, serão as aplicações comerciais que atrairão capital do aprimoramento da terra. Portanto tudo quanto faz subir a taxa de lucro mercantil, diminui a superioridade do lucro do aprimoramento da terra ou aumenta a sua inferioridade: no primeiro caso, impede o fluxo de capital para o aprimoramento da terra; no segundo, desvia capital dessa aplicação. Ora, por desestimular o aprimoramento da terra, o monopólio necessariamente retarda o aumento natural de uma outra grande fonte original de renda, a saber, a renda da terra. Além disso, por aumentar a taxa de lucro, o monopólio necessariamente mantém a taxa de juros de mercado mais alta do que o seria diferentemente. Ora, o preço da terra em proporção ao rendimento que ela proporciona, o número de anos de renda que normalmente se paga por ela, necessariamente cai à medida que aumenta a taxa de juros, e aumenta à medida que a taxa de juros baixa. Por isso, o monopólio lesa os interesses do proprietário de terra de duas maneiras: primeiro, retardando o aumento natural da renda que recebe da terra, e segundo, retardando o aumento natural do preço que ele conseguiria pela sua terra, em proporção com a renda que ela proporciona. Sem dúvida, o monopólio aumenta a taxa de lucro comercial, e assim aumenta um tanto o ganho dos nossos comerciantes. Mas, como obstaculiza o aumento natural do capital, tende antes a diminuir do que a aumentar o total da renda que os habitantes do país auferem dos lucros do capital, uma vez que um lucro pequeno de um capital grande geralmente proporciona renda maior do que um lucro grande de um capital pequeno. O monopólio faz aumentar a taxa de lucro, mas impede que o lucro total seja tão grande quando seria sem monopólio. O monopólio torna muito menos abundantes, do que de outra maneira ocorreria, todas as fontes originais da renda: os salários do trabalho, a renda da terra, e os lucros do capital. Para promover o pouco interesse de uma pequena categoria da população de um país, o monopólio lesa o interesse de todas as demais categorias da população do país, e o de todas as pessoas em todos os demais países. É somente por aumentar a taxa normal de lucro que o monopólio se demonstrou, ou poderia demonstrar-se, vantajoso para qualquer categoria particular de pessoas. Mas, além de todos os maus efeitos para o país em geral, que já mencionei como necessariamente resultantes de uma alta taxa de lucro, existe um efeito talvez mais fatal do que esses outros somados, efeito que, com base na experiência, podemos constatar como inseparável do monopólio. A alta taxa de lucro parece em toda parte destruir aquela parcimônia que, em outras circunstâncias, é inerente ao caráter do comerciante. Quando os lucros são elevados, parece ser supérflua essa sóbria virtude, e o luxo dispendioso mais propício para a riqueza que caracteriza a boa posição do comerciante. Ora, os proprietários dos grandes capitais comerciais são efetivamente os líderes e condutores de toda a atividade de uma nação, e seus exemplos têm influência muito maior do que os de qualquer outra categoria de pessoas, sobre a conduta de toda a parcela operosa 105
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da população. Se o seu empregador é cuidadoso e parcimonioso, também o operário provavelmente assim será; entretanto, se o patrão é dissoluto e desordenado, o operário, que molda seu trabalho ao modelo que o patrão lhe prescreve, também a sua vida aperfeiçoará de acordo com o exemplo que o patrão lhe dá. Dessa maneira, impede-se que se acumulem economias nas mãos de todos aqueles que, por natureza, são os mais inclinados a acumular, assim, os fundos destinados à manutenção de mão-de-obra produtiva não recebem nenhum incremento da renda daqueles que, naturalmente, mais deveriam fazer aumentar esses fundos. O capital do país, em vez de aumentar, gradualmente míngua, diminuindo, cada dia, mais e mais, o contingente de mão-de-obra produtiva do país. Porventura os lucros exorbitantes dos comerciantes de Cádiz e Lisboa aumentaram o capital da Espanha e de Portugal? Porventura aliviaram a pobreza, porventura promoveram a atividade desses dois países mendicantes? O volume de gastos mercantis naquelas duas cidades de negócios tem sido tal que esses lucros exorbitantes, longe de aumentar o capital geral do país, parecem ter sido precariamente suficientes para manter os capitais que os geraram. Os capitais estrangeiros estão diariamente se intrometendo, se me permitem assim dizer, cada vez mais no comércio de Cádiz e Lisboa. É para expulsar esses capitais estrangeiros de um comércio que o seu próprio capital se torna cada dia mais insuficiente para manter que os espanhóis e portugueses procuram diariamente apertar mais e mais as algemas irritantes de seu absurdo monopólio. Compare-se a conduta mercantil de Cádiz e Lisboa com a de Amsterdam e se verá de quantas diferentes maneiras a conduta e o caráter dos comerciantes são afetados pelos lucros altos ou baixos do capital. De fato, os comerciantes de Londres ainda não se tornaram, de maneira geral, senhores tão magnificentes como os de Cádiz e Lisboa; entretanto, tampouco, porém, costumam ser cidadãos tão cuidadosos e parcimoniosos como os de Amsterdam. No entanto, supostamente são bem mais ricos — pelo menos muitos deles — do que a maior parte dos comerciantes de Cádiz e Lisboa, e não tão ricos quanto muitos dos de Amsterdam. Entretanto, a taxa de seu lucro comumente é muito mais baixa que a do lucro dos comerciantes de Cádiz e Lisboa, e bem mais alta que a dos comerciantes de Amsterdam. Perdido como foi ganho — diz o provérbio; e o padrão normal de gastos parece em toda parte regular-se, não tanto de acordo com a possibilidade real que se tem de gastar, mas antes de acordo com a suposta facilidade de conseguir ganhar dinheiro para gastar. Assim é, pois, que a única vantagem que o monopólio proporciona a uma única classe de pessoas é, sob diversas formas, prejudicial ao interesse geral do país. Fundar um grande império com a única finalidade de criar um povo de clientes pode, à primeira vista, parecer um projeto apropriado somente para uma nação de negociantes lojistas. Entretanto, trata-se de um projeto totalmente inadequado para uma nação de lojistas, mas extremamente adequado para uma nação cujo governo é influenciado 106
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por lojistas. Tais estadistas, e somente eles, são capazes de imaginar que encontrarão alguma vantagem em empregar o sangue e o dinheiro de seus compatriotas para fundar e manter tal império. Dize a um lojista: “Compra-me uma boa propriedade, e sempre comprarei minhas roupas em tua loja, mesmo se tiver que pagar algo mais do que o preço pelo qual posso comprá-las em outra”, e verás que ele não está muito inclinado a aceitar a proposta. Mas, se alguma outra pessoa comprasse para ti tal propriedade, o comerciante ficaria muito agradecido a teu benfeitor se ele te dispusesse a comprar todas as tuas roupas na loja dele. A Inglaterra comprou, para alguns de seus súditos, que não se sentiam bem em casa, uma grande propriedade em um país distante. Na verdade, o preço da propriedade era muito baixo, e em vez de trinta anos de renda — o preço normal da terra, atualmente — ele não ia muito além das despesas com os diversos equipamentos que levaram à primeira descoberta, que fizeram um reconhecimento da costa e que tomaram posse fictícia da região. A terra era boa e de grande extensão, e os cultivadores, tendo bastante solo para trabalhar, e com liberdade por algum tempo de vender seus produtos onde quisessem, tornaram-se no decurso de pouco mais de trinta ou quarenta anos (entre 1620 e 1660) um povo tão numeroso e próspero que os lojistas e outros comerciantes da Inglaterra desejaram garantir para si o monopólio de sua alfândega. Sem, pois, alimentar a pretensão de haver pago qualquer parcela do dinheiro de compra original nem dos gastos subseqüentes com o aprimoramento da terra, solicitaram ao Parlamento uma lei determinando que futuramente os cultivadores da América só pudessem operar em sua loja: primeiro, para comprar todos os bens que desejassem da Europa; segundo, para vender todos os itens de sua própria produção que esses comerciantes considerassem conveniente comprar deles. Sim, pois efetivamente não consideravam conveniente comprar todo e qualquer produto da América. Alguns artigos, se importados à Inglaterra, poderiam perturbar alguns tipos de comércio efetuados por eles mesmos no país. Quanto a esses artigos, portanto, desejavam que os habitantes das colônias os vendessem onde pudessem; e quanto mais longe, melhor; e, por isso, propuseram que o mercado para esses produtos, para eles indesejáveis, fosse limitado a países localizados ao sul do cabo Finisterra. Uma cláusula inserida na célebre lei sobre a navegação transformou em lei essa proposta característica de um lojista. A manutenção desse monopólio tem sido até agora o principal, ou, falando com mais propriedade, talvez o único objetivo e propósito do domínio que a Grã-Bretanha assume sobre suas colônias. Supõe-se que na exclusividade de comércio consiste a grande vantagem das províncias que, até agora, nunca proporcionaram renda ou força militar para sustentar o governo civil ou a defesa da mãe-pátria. O monopólio constitui o sinal principal da dependência delas e é o único fruto colhido até agora dessa dependência. Toda e qualquer despesa até agora investida pela Grã-Bretanha na manutenção da dependência dessas pro107
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víncias foi realmente investida para sustentar esse monopólio. Os gastos com a administração normal das colônias em tempo de paz equivaleram, antes do início dos atuais distúrbios, ao pagamento de vinte regimentos de infantaria, às despesas da artilharia, materiais e provisões extraordinárias com as quais foi necessário provê-las, e às despesas de considerável força naval, constantemente mantida, a fim de defender, face aos navios de contrabando de outras nações, a imensa costa da América do Norte e a das nossas ilhas das Índias Ocidentais. A despesa global dessa administração, em tempo de paz, constitui um ônus sobre a renda da Grã-Bretanha representando, ao mesmo tempo, parte mínima daquilo que à mãe-pátria custou o domínio das colônias. Se quiséssemos saber o montante total gasto, deveríamos acrescentar à despesa anual dessa administração em tempo de paz os juros das somas que, em conseqüência de a Grã-Bretanha considerar suas colônias como províncias sujeitas a seu domínio, ela em várias ocasiões investiu com a defesa das mesmas. Em particular, teríamos que acrescentar os gastos totais com a última guerra, e grande parte dos gastos contraídos na guerra anterior a esta. A última guerra consistiu inteiramente em uma disputa colonial, e o seu gasto total, qualquer que seja o lugar do mundo onde a despesa tenha sido contraída — quer na Alemanha, quer na nas Índias Orientais —, com justiça deveria correr por conta das colônias. Essa despesa ascendeu a mais de 90 milhões de libras, incluindo não somente a nova dívida contraída, mas também os 2 xelins no imposto territorial adicional de 1 libra, e as somas anualmente emprestadas do Fundo de Amortização. A guerra espanhola, que começou em 1739, foi sobretudo uma disputa colonial. Seu objetivo principal foi impedir a caça aos navios das colônias que efetuavam um comércio de contrabando com a parte meridional do mar das Antilhas. Toda essa despesa, na realidade, é um subsídio concedido no intuito de sustentar um monopólio. O pretenso propósito dessa despesa era estimular os manufatores e estimular o comércio da Grã-Bretanha. Seu efeito real, porém, foi aumentar a taxa de lucro mercantil e possibilitar aos nossos comerciantes desviar para um setor de comércio, cujos retornos são mais lentos e demorados do que os da maior parte dos outros setores comerciais, uma porcentagem de seu capital superior àquela que de outra forma teriam desviado; dois eventos que, se um subsídio pudesse ter evitado, talvez tivesse valido a pena concedê-lo. Eis por que, no atual sistema de administração, a Grã-Bretanha só tem a perder com o domínio que exerce sobre suas colônias. Propor que a Grã-Bretanha voluntariamente abandone toda a sua autoridade sobre as colônias e deixe que elas elejam seus próprios magistrados, decretem suas próprias leis e mantenham paz ou façam guerra conforme lhes pareça mais apropriado, significaria propor uma medida que nunca foi nem nunca será adotada por qualquer nação do mundo. Nação alguma jamais abandonou voluntariamente o domínio de alguma província, por mais incômodo que fosse governá-la, e por 108
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menos que fosse a renda proporcionada por ela, em proporção com a despesa que ocasionava. Tais sacrifícios, embora muitas vezes pudessem atender ao interesse de uma nação, constituem sempre um golpe mortal para o orgulho de qualquer nação e, o que talvez seja mais ainda importante, são sempre contrários aos interesses privados da parcela que efetivamente governa a nação, que com isso não mais poderia dispor de muitos postos de confiança e de lucro, de muitas oportunidades de adquirir riqueza e prestígio, vantagens que raramente deixa de proporcionar a posse de uma província, por mais turbulenta e por menos rentável que seja o conjunto da população. Até mesmo o entusiasta mais visionário dificilmente seria capaz de propor tal medida, com qualquer esperança mais séria de que ela jamais fosse adotada. Se, no entanto, isso acontecesse, a Grã-Bretanha não somente estaria imediatamente livre de toda a despesa anual necessária para manter a administração das colônias em tempo de paz, como ainda poderia celebrar com elas um tratado comercial suscetível de lhe garantir eficazmente um comércio livre, mais vantajoso para o grande conjunto da população — embora menos vantajoso para os comerciantes — do que o monopólio de que desfruta atualmente. Separando-se, assim, como bons amigos, reavivar-se-ia rapidamente o afeto natural das colônias para com a mãe-pátria, que, talvez, nossas recentes dissensões quase chegaram a extinguir. Esse gesto poderia não somente dispô-las a respeitar durante séculos o tratado de comércio que tivessem concluído conosco no ato da separação, mas também a favorecer-nos, tanto na guerra como no comércio e, em vez de se tornarem súditos turbulentos e facciosos, se transformassem em nossos aliados mais fiéis, afeiçoados e generosos, e entre a Grã-Bretanha e suas colônias poderia reviver o mesmo tipo de afeição paternal de um lado, e o mesmo respeito filial de outro, os quais costumavam subsistir entre as colônias da Grécia Antiga e a cidade-mãe da qual descendiam. Para que uma província qualquer traga vantagem para o império ao qual pertence, ela deve proporcionar em tempo de paz uma renda pública suficiente não só para cobrir a despesa total de sua própria administração em tempo de paz, mas também para contribuir com sua cota para o sustento do governo geral do império. Toda província necessariamente contribui, em medida maior ou menor, para aumentar a despesa do governo geral. Se, pois, alguma província não contribui com sua parte para pagar essa despesa, impõem-se um ônus desigual a alguma outra parte do império. Também a renda extraordinária que cada província proporciona ao público em tempo de guerra deveria, por motivos similares, manter a mesma proporção com a renda extraordinária de todo o império, que sua renda ordinária mantém em tempo de paz. Que nem a renda ordinária nem a extraordinária auferida pela Grã-Bretanha das colônias mantêm essa proporção com a renda total do império britânico, todos reconhecem prontamente. De fato, têm-se suposto que o monopólio, por aumentar a renda privada do povo da Grã-Bretanha, portanto, possibilitar-lhe pagar impostos mais 109
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altos, compensa a deficiência da renda pública das colônias. Entretanto, como procurei mostrar, embora ela represente uma taxa muito onerosa imposta às colônias, e embora possa aumentar a renda de determinada categoria de pessoas na Grã-Bretanha, diminui, em vez de aumentar, a renda do grande conjunto da população e, conseqüentemente diminui, em vez de aumentar, a capacidade desse conjunto pagar impostos. Além disso, as pessoas cuja renda é aumentada pelo monopólio, constituem uma categoria específica, à qual é absolutamente impossível impor taxas além da proporção vigente para as outras categorias, além de ser extremamente impolítico tentar sequer taxar além daquela proporção, como procurarei demonstrar no próximo livro. Por conseguinte, dessa categoria específica da população não se pode recolher nenhum recurso peculiar. As colônias podem ser taxadas pelas suas próprias assembléias ou pelo Parlamento da Grã-Bretanha. Não parece muito provável que as assembléias das colônias possam ser um dia administradas de modo a recolher dos seus componentes uma renda pública suficiente, não somente para manter em qualquer período seu próprio governo civil e militar, mas também para pagar sua cota adequada dos gastos do governo geral do Império Britânico. Levou muito tempo para se conseguir que o próprio Parlamento da Inglaterra, embora sob o controle direto do soberano, adotasse tal sistema de governo, ou para se conseguir torná-lo suficientemente liberal em suas verbas e concessões para sustentar o governo civil e militar, até mesmo de seu próprio país. Foi somente distribuindo individualmente, entre os membros do Parlamento, grande parte dos postos ou da concessão de postos ligados a essa administração civil e militar, que se conseguiu criar tal sistema de administração, mesmo em relação ao Parlamento da Inglaterra. Todavia, fatores como a distância das Assembléias coloniais em relação ao controle do soberano, seu número, sua localização dispersa e suas várias constituições tornariam muito difícil administrá-las da mesma forma, mesmo que o soberano dispusesse dos mesmos meios para fazê-lo — meios de que, aliás, não dispõe. Seria absolutamente impossível distribuir entre todos os principais membros das Assembléias de todas as colônias tal participação nos postos ou no controle dos postos ligados ao governo geral do Império Britânico, suscetíveis de dispô-los a abandonar sua popularidade na colônia, taxando seus componentes com a finalidade de sustentar o governo geral, cujos emolumentos em quase sua totalidade teriam que ser divididos entre pessoas estranhas a eles. Além disso, a inevitável ignorância administrativa no tocante à importância relativa dos diferentes membros dessas diversas Assembléias, as ofensas que seriam necessariamente infligidas com freqüência, os erros que necessariamente seriam cometidos constantemente na tentativa de administrá-las dessa maneira, tudo isso parece tornar tal sistema de administração totalmente impraticável para as colônias. Além do mais, não se pode supor que as Assembléias das colônias fossem capazes de julgar sobre o que é necessário para a defesa e o 110
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apoio do Império em sua totalidade. Não lhes compete cuidar dessa defesa e desse apoio. Não é sua função fazê-lo e nem dispõem de meios regulares de informação no tocante a isso. A Assembléia de uma província, assim como o Conselho de uma paróquia, pode julgar com muita propriedade em relação aos negócios de seu distrito específico, porém não pode dispor de meios adequados para julgar sobre os negócios do Império em sua totalidade. Ela nem sequer tem condições de julgar com justeza no que se refere à proporção que sua própria província tem no que diz respeito ao Império em sua totalidade, ou ao grau relativo de sua riqueza e importância, em confronto com as demais províncias; isso porque essas outras províncias não estão sob a inspeção e a superintendência da Assembléia de uma determinada província. Somente a Assembléia que inspeciona e superintende os negócios de todo o Império pode julgar sobre o que é necessário para a defesa e o apoio de todo o Império e em que proporção cada parte deve contribuir para isso. Por esse motivo, tem-se proposto que as colônias sejam atributadas por requisição, cabendo ao Parlamento da Grã-Bretanha determinar a soma que cada colônia deve pagar, e competindo à Assembléia da província calcular e recolher essa soma da maneira mais condizente com as circunstâncias da respectiva província. Dessa forma, no que diz respeito ao Império todo, a questão seria determinada pela Assembléia que exerce a inspeção e a superintendência sobre os negócios de todo o Império; e os negócios provinciais de cada colônia poderiam continuar a ser regulamentados pela sua própria Assembléia. Embora, nesse caso, as colônias não tivessem representantes no Parlamento britânico, ainda assim não há nenhuma probabilidade — se nos for lícito julgar com base na experiência — de que a requisição parlamentar seria irracional. O Parlamento da Inglaterra jamais demonstrou a mínima inclinação para sobrecarregar as partes do Império não representadas no Parlamento. Os impostos incidentes sobre as ilhas de Guernsey e Jersey, desprovidas de quaisquer meios de resistir à autoridade do Parlamento, são mais suaves do que os vigentes para qualquer região da Grã-Bretanha. O Parlamento, na tentativa de exercer seu suposto direito — bem ou mal fundado — de taxar as colônias, até hoje nunca exigiu delas algo que sequer se aproximasse de uma justa proporção com o que era pago pelos outros súditos seus residentes na própria Grã-Bretanha. Além disso, se a contribuição das colônias devesse subir ou descer em proporção ao aumento ou à diminuição do imposto territorial, o Parlamento não poderia taxá-las sem, ao mesmo tempo, taxar seus próprios componentes e as colônias poderiam, nesse caso, ser consideradas virtualmente representadas no Parlamento. Não faltam exemplos de impérios em que nem todas as diversas províncias são taxadas em uma massa única, se me for permitida a expressão: o soberano determina a soma a ser paga por província e, em algumas delas, ele calcula e recolhe os impostos como considera mais adequado, ao passo que, em outras, deixa que eles sejam calcu111
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lados e recolhidos conforme o exijam as condições de cada província. Em algumas províncias da França, o rei não somente impõe as taxas que considera apropriadas, como também as calcula e recolhe da forma que lhe pareça mais indicada. De outras ele exige determinada soma, porém, deixando às autoridades de cada província calcular e recolher tal soma da maneira que considerarem adequada. Segundo o esquema de taxar por requisição, o Parlamento da Grã-Bretanha estaria mais ou menos na mesma situação em relação às Assembléias das colônias, como o rei de França está em relação às autoridades das províncias que ainda desfrutam do privilégio de ter governos próprios, províncias francesas que supostamente são as mais bem governadas. Embora, porém, segundo esse esquema, as colônias nunca pudessem ter motivos justos para temer que sua participação nos ônus públicos jamais superasse a proporção adequada em relação a seus concidadãos da mãe-pátria, a Grã-Bretanha poderia ter motivo justo para temer que essa participação das colônias jamais atingiria a proporção adequada. De algum tempo para cá, o Parlamento da Grã-Bretanha não tem tido nas colônias a mesma autoridade estabelecida que o rei da França nas províncias francesas que ainda gozam do privilégio de ter governos próprios. As Assembléias das colônias, se não tivessem uma disposição muito favorável (e provavelmente não a terão a menos que sejam administradas com mais habilidade do que o têm sido até agora), poderiam ainda encontrar muitos pretextos para burlar ou rejeitar as requisições mais razoáveis do Parlamento. Suponhamos que irrompa uma guerra com a França; impõe-se recolher imediatamente 10 milhões para defender a sede do Império. Tal soma tem que ser emprestada com base no crédito de algum fundo parlamentar hipotecado para pagar os juros. Parte desse fundo, o Parlamento se propõe a recolher mediante um imposto a ser cobrado na Grã-Bretanha, e parte mediante uma requisição a todas as diversas Assembléias das colônias da América e das Índias Ocidentais. Porventura as pessoas adiantariam prontamente seu dinheiro com base no crédito de um fundo em parte dependente da boa vontade de todas essas Assembléias, muito distantes do local da guerra, e por vezes, talvez não se considerando muito comprometidas nessa guerra? Com base no citado fundo, provavelmente não se adiantaria mais dinheiro do que aquele pelo qual supostamente responderiam os impostos a ser recolhidos na Grã-Bretanha. Assim sendo, toda a carga de débito contraído em decorrência da guerra recairia, como sempre ocorreu até hoje, sobre a Grã-Bretanha, isto é, sobre uma parte do Império, não sobre todo o Império. Desde o início do mundo, a Grã-Bretanha talvez seja o único Estado que, à medida que ampliou seu Império, só ampliou sua despesa, sem jamais aumentar seus recursos. Outros Estados geralmente descarregaram sobre suas províncias súditas ou subordinadas a parcela mais considerável dos gastos de defesa do Império. A Grã-Bretanha, até agora, permitiu que suas províncias súditas e subordinadas descarregassem sobre ela quase toda essa despesa. Para colocar a Grã-Bretanha em 112
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pé de igualdade com suas próprias colônias, que a lei até agora supôs serem suas súditas e subordinadas, parece necessário, com base no esquema de taxá-las por requisição parlamentar, que o Parlamento possuísse algum meio de tornar imediatamente efetivas suas requisições no caso de as Assembléias das colônias tentassem burlá-las ou rejeitá-las; ora, não é muito fácil imaginar qual seria esse meio, não tendo ele ainda sido explicado. Se, ao mesmo tempo, o Parlamento da Grã-Bretanha adquirisse plenamente o direito de taxar as colônias, mesmo independentemente do consentimento de suas próprias Assembléias, a partir desse momento acabaria a importância dessas Assembléias e, com isso, também a importância de todas as pessoas líderes da América britânica. As pessoas desejam ter certa participação na administração dos negócios públicos, sobretudo pelo prestígio que tal administração lhes dá. A estabilidade e a duração de todo sistema de livre governo depende do poder que detém a maior parte dos líderes, da aristocracia natural de cada país, de preservar ou defender seu respectivo prestígio. É nos ataques mútuos que esses líderes fazem continuamente ao prestígio de seus pares e na defesa de seu próprio prestígio que consiste todo o jogo das facções e da ambição políticas internas. Os líderes da América, como os de todos os outros países, desejam preservar seu próprio prestígio. Pensam ou imaginam que, se suas Assembléias — que gostam de denominar Parlamentos e de considerá-las em pé de igualdade com o Parlamento da Grã-Bretanha —, no que tange à autoridade, fossem de tal forma degradadas a ponto de se transformar em humildes ministros e oficiais executivos do Parlamento britânico, acabaria a maior parte de seu próprio prestígio. Por isso, têm rejeitado a proposta de serem taxados por requisição parlamentar e, como outros homens ambiciosos e altivos, preferiram desembainhar a espada em defesa de seu próprio prestígio. Quando começou a declinar a República dos romanos, os aliados de Roma, que haviam arcado com o ônus principal de defender o Estado e ampliar o Império, exigiram o direito de participar de todos os privilégios dos cidadãos romanos. A recusa dessa exigência fez irromper a guerra social. No decurso daquela guerra, Roma outorgou os mencionados privilégios à maior parte deles, um após outro, à medida que eles se desligavam da Confederação Geral. O Parlamento da Grã-Bretanha insiste em taxar as colônias; elas, por sua vez, recusam-se a ser taxadas por um Parlamento no qual não estão representadas. Se a cada colônia que se desligasse da Confederação Geral, a Grã-Bretanha permitisse um número de representantes proporcional à contribuição dela à renda pública do Império, por estar sujeita aos mesmos impostos, e se lhes permitisse, em compensação, a mesma liberdade de comércio que se reconhece a todos os súditos residentes na Grã-Bretanha; se o número de seus representantes aumentasse em proporção a sua contribuição futura, dar-se-ia aos líderes de cada colônia uma nova maneira de adquirir prestígio, um novo e mais fascinante objeto de ambição. Em vez de disputarem os pequenos prêmios suscetíveis de obter no 113
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que se pode chamar o mísero sorteio das facções coloniais, poderiam ter a esperança de, fundados na presunção que as pessoas naturalmente têm em sua própria capacidade e boa sorte, ganhar alguns dos grandes prêmios às vezes concedidos pela roda da grande loteria estatal da política britânica. A menos que se adote esse método, ou algum outro — e não parece haver nenhum outro mais óbvio que esse, para preservar o prestígio e gratificar a ambição dos líderes da América — não é muito provável que eles jamais se sujeitem voluntariamente a nós. Por outro lado, devemos considerar que cada gota do sangue a ser derramado para forçá-los a essa submissão é daqueles que são concidadãos nossos, ou daqueles que desejamos ter como nossos concidadãos. São muito fracos os que se lisonjeiam com o pensamento de que, na situação à qual chegamos, as nossas colônias serão conquistadas com facilidade, somente pela força. As pessoas que atualmente determinam as resoluções do que denominam seu congresso continental sentem em si mesmas, neste momento, um grau de importância e prestígio que, talvez, os maiores súditos europeus dificilmente sentem. De lojistas, comerciantes e agentes, transformaram-se em estadistas e legisladores, estando empenhados em excogitar uma nova forma de governo para um grande império, o qual, gabam-se eles, se transformará — e parece ter muita probabilidade de transformar-se efetivamente — num dos maiores e mais temíveis que jamais existiram no mundo. Quinhentas pessoas que, talvez, de maneiras diversas, ajam imediatamente sob o congresso continental, e quinhentas mil que, talvez, ajam sob as mencionadas quinhentas, todas sentem, da mesma forma, um crescimento proporcional de sua própria importância. Quase todo o indivíduo do partido governante na América ocupa, no momento, em sua própria imaginação, uma posição superior não somente àquela que ele jamais ocupou, mas também àquela que ele jamais esperou ocupar; e, a menos que se apresente a ele ou a seus líderes algum novo objeto de ambição, sacrificará a vida em defesa dessa posição, se tiver a tenacidade normal de um homem. Segundo observou o presidente Henaut, hoje lemos com prazer o relato de muitas pequenas realizações da Liga, as quais, quando aconteceram, talvez não fossem consideradas como novidades muito importantes. Entretanto, diz ele, naquela época todo indivíduo imaginava ser alguém de certa importância; e as inúmeras memórias que vieram até nós daqueles tempos foram escritas, na maior parte, por pessoas que tinham prazer em registrar e exagerar eventos nos quais se lisonjeavam de ter participado como admiráveis atores. É bem conhecida a obstinação com a qual a cidade de Paris, naquela ocasião, se defendeu, e que terrível fome suportou, preferindo isso a submeter-se ao melhor e, posteriormente, mais amado entre os reis franceses. A maior parte dos cidadãos, ou melhor, dos que governam a maior parte deles, lutou em defesa de seu próprio prestígio, que, segundo sua previsão, acabaria no momento em que se restabelecesse o antigo governo. Quanto às nossas colônias, a menos que possam ser induzidas a con114
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sentirem em uma união, muito provavelmente se defenderão contra a melhor de todas as mães-pátrias, com a mesma obstinação que a cidade de Paris contra um de seus melhores reis. O conceito de representação era desconhecido nos tempos antigos. Quando às pessoas de um Estado se outorgava o direito de cidadania de um outro Estado, não tinham outro meio de exercer tal direito senão incorporando-se em um organismo para votar e deliberar com as pessoas desse outro Estado. A concessão à maior parte dos habitantes da Itália dos privilégios de cidadãos romanos acabou arruinando totalmente a República romana. Já não era possível distinguir entre aquele que era e aquele que não era cidadão romano. Nenhuma tribo tinha mais condições de conhecer seus próprios membros. Um ralé de qualquer tipo podia introduzir-se na Assembléia do povo, podia expulsar os cidadãos reais e decidir sobre os negócios da República, como se eles mesmos fossem cidadãos reais da República. Entretanto, ainda que a América enviasse cinqüenta ou sessenta novos representantes ao Parlamento, o próprio porteiro da Câmara dos Comuns não poderia encontrar grande dificuldade em distinguir entre quem fosse e quem não fosse membro do Parlamento. Ainda que, portanto, a constituição romana tenha sido inevitavelmente arruinada pela união de Roma com os Estados aliados da Itália, não há a mínima probabilidade de que a constituição britânica seja lesada pela união da Grã-Bretanha com suas colônias. Ao contrário, essa constituição seria completada por essa união, parecendo imperfeita sem ela. A Assembléia que delibera e decide sobre os negócios de todas as partes do Império, se quiser estar bem informada, deveria por certo ter representantes de cada parte do Império. Não pretendo afirmar, porém, que essa união pudesse ser efetuada com facilidade, ou que não pudessem ocorrer dificuldades, e até grandes dificuldades, na concretização desse projeto. Entretanto, ainda não ouvi falar de uma sequer que pareça insuperável. As principais, talvez, resultem não da natureza das coisas, mas dos preconceitos e opiniões das pessoas, tanto do lado de cá como do lado de lá do Atlântico. Nós, do lado de cá do Atlântico, tememos que a multidão dos representantes americanos transtorne o equilíbrio da Constituição e aumente excessivamente a influência da Coroa, por um lado, ou a força da democracia, por outro. Entretanto, se o número de representantes americanos fosse proporcional ao montante de impostos pagos pelos americanos, o número de pessoas a serem governadas aumentaria exatamente na mesma proporção que os meios de governá-las, e os meios de governar aumentariam na mesma proporção que o número de pessoas a serem governadas. As composições monárquica e democrática da Constituição, depois da união, conservariam exatamente o mesmo grau de força relativa entre si, como anteriormente. Do outro lado do Atlântico, teme-se que a sua distância da sede do governo possa expor os americanos a muitas opressões. Todavia, seus representantes no Parlamento, cujo número, desde o início, deveria ser considerável, facilmente estariam em condições de protegê-los de 115
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tal opressão. A distância não poderia enfraquecer muito a dependência do representante em relação ao componente e o representante continuaria a sentir que possuía sua cadeira no Parlamento — e tudo que disso advém em função do apoio do componente. Seria, pois, do interesse do primeiro granjear esse apoio, denunciando, com toda a autoridade de um membro do corpo legislativo, todo desmando que qualquer oficial civil ou militar pudesse vir a cometer nessas regiões remotas do Império. Além disso, a distância da América em relação à sede do Governo — e disso os nativos daquele país poderiam lisonjear-se, aliás com alguma razão — não seria de muito longa duração. Com efeito, tão rápido tem sido até agora o progresso desse país em riqueza, em população e em desenvolvimento que, no decurso de pouco mais de um século, talvez, a produção dos americanos pudesse superar o total dos impostos pagos pela Grã-Bretanha. Nesse caso, naturalmente, a sede do Império passaria para aquela parte do mesmo que mais tivesse contribuído para a defesa e o apoio do Império em sua totalidade. A descoberta da América e a de uma passagem para as Índias Orientais pelo cabo da Boa Esperança são os dois maiores e mais importantes eventos registrados na história da humanidade. Suas conseqüências já têm sido muito grandes; entretanto, no curto período de dois a três séculos, decorrido desde que feitas essas descobertas; é impossível que já tenhamos podido enxergar todo o alcance de suas conseqüências. Não há sabedoria humana capaz de prever que benefícios ou que infortúnios podem ainda futuramente advir à humanidade através desses grandes acontecimentos. Por unirem, até certo ponto, as regiões mais distantes do mundo, por possibilitar-lhes aliviar mutuamente as necessidades, aumentar suas satisfações e estimular sua atividade, sua tendência geral pareceria ser benéfica. Para os nativos, porém, tanto os das Índias Orientais como os das Índias Ocidentais, todos os benefícios comerciais que possam ter advindo desses eventos soçobraram e se perderam nos infortúnios horríveis que provocaram. Contudo, esses infortúnios parecem ter derivado mais de acidentes do que da própria natureza desses eventos. Na época específica em que se realizaram tais descobertas, aconteceu que a superioridade de forças estava a tal ponto do lado dos europeus, que estes puderam cometer impunemente toda sorte de injustiças naquelas regiões longínquas. Futuramente, porém, é possível que os nativos desses países se tornem mais fortes, ou os da Europa mais fracos, e os habitantes de todas as diversas regiões do mundo possam chegar àquela igualdade de coragem e força que, inspirando temor mútuo, constitui o único fator suscetível de intimidar a injustiça de nações independentes e transformá-la em certa espécie de respeito pelos direitos recíprocos. Contudo, nada parece ter mais probabilidade de criar tal igualdade de força do que o intercâmbio mútuo de conhecimentos e de todos os tipos de aprimoramentos que natural, ou melhor, necessariamente, traz consigo um amplo comércio entre todos os países. Entrementes, um dos principais efeitos das mencionadas desco116
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bertas tem sido elevar o sistema mercantil a um grau de esplendor e glória que de outra forma ele jamais poderia ter atingido. O objetivo desse sistema consiste em enriquecer uma grande nação mais através do comércio e das manufaturas do que do aprimoramento e do cultivo da terra, mais pela atividade das cidades do que pela do campo. Todavia, em conseqüência dessas descobertas, as cidades comerciais da Europa, em vez de manufaturarem e transportarem produtos apenas para uma parte mínima do mundo (a região da Europa banhada pelo Oceano Atlântico e os países localizados em torno dos mares Báltico e Mediterrâneo), passaram agora a manufaturar para os numerosos e prósperos agricultores da América, e a transportar produtos — além de os manufaturarem para elas, sob certos aspectos — para quase todas as diversas nações da Ásia, África e América. Abriram-se dois novos mundos à atividade dos europeus, os dois maiores e mais extensos que o Velho Mundo, e o mercado de um desses países do Novo Mundo cresce ainda mais, de dia para dia. Sem dúvida, os países que possuem as colônias da América, e que mantêm comércio direto com as Índias Orientais, desfrutam de todo o fausto e esplendor desse grande comércio. Entretanto, outros países, a despeito de todas as restrições causadas pela inveja com as quais se pretende excluí-los, muitas vezes participam de parte maior dos benefícios reais desse comércio. Assim, por exemplo, as colônias da Espanha e de Portugal dão mais verdadeiro estímulo à atividade de outros países do que à da Espanha e Portugal. Considerando-se apenas o linho, o consumo dessas colônias, como se afirma — embora eu não pretenda garantir a cifra — ascende a mais de 3 milhões de libras esterlinas por ano. Mas esse grande consumo é quase inteiramente suprido pela França, pelo País de Flandres, Holanda e Alemanha. A Espanha e Portugal lhes fornecem apenas parte reduzida desse produto. O capital que fornece às colônias essa grande quantidade de linho é anualmente distribuído entre os habitantes desses outros países, proporcionando-lhes renda. Somente os lucros desse capital são gastos na Espanha e em Portugal, onde ajudam a manter a suntuosa prodigalidade dos comerciantes de Cádiz e de Lisboa. As próprias medidas legais com as quais cada nação procura assegurar para si o comércio exclusivo de suas colônias, muitas vezes são mais prejudiciais para os países em favor dos quais elas são estabelecidas do que para aqueles contra os quais são adotadas. Se assim posso expressar-me, a injusta opressão da atividade de outros países recai sobre as cabeças dos opressores, esmagando sua atividade mais do que a dos países oprimidos. Assim, por exemplo, em virtude desses regulamentos restritivos, o comerciante de Hamburgo tem que enviar a Londres o linho que destina ao mercado americano, e deve trazer de volta, de Londres, o fumo que destina ao mercado alemão, pois não pode enviar o linho diretamente à América nem trazer de volta, diretamente de lá, o fumo. Essas medidas o obrigam, provavelmente, a vender o linho mais barato, a comprar o fumo mais caro do que seria 117
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se não existissem tais restrições; com isso, seus lucros provavelmente ficam um pouco reduzidos. Todavia, nesse comércio entre Hamburgo e Londres, o comerciante certamente recebe os retornos de seu capital com rapidez muito maior do que possivelmente aconteceria no comércio direto com a América, mesmo supondo que os pagamentos da América fossem tão pontuais quanto os de Londres — o que absolutamente não ocorre. Por isto, no tipo de comércio ao qual os referidos regulamentos restringem o comerciante de Hamburgo, seu capital pode ser constantemente empregado com um volume muito maior de trabalho alemão do que possivelmente o poderia ser no comércio do qual é excluído. Embora, portanto, o primeiro emprego de capital possa talvez ser menos rentável para o comerciante do que o outro, ele não pode ser menos vantajoso para seu país. Bem diverso é o caso da aplicação para a qual o monopólio naturalmente atrai, se assim posso dizer, o capital do comerciante de Londres. Talvez essa aplicação possa ser mais rentável para ele, o comerciante, do que a maioria de outras aplicações, não podendo, porém, ser mais vantajosa para seu país, devido à lentidão com a qual ocorrem os retornos. Conseqüentemente, depois de todas as tentativas injustas por parte de cada país europeu, no sentido de açambarcar para si toda a vantagem do comércio de suas próprias colônias, nenhum país até agora foi capaz de monopolizar para si outra coisa senão a despesa de manter, em tempo de paz, a autoridade opressiva que assume sobre suas colônias, e a de defendê-la em tempo de guerra. Quanto aos inconvenientes resultantes da posse de suas colônias, cada país colonizador os açambarcou totalmente para si. Quanto às vantagens advindas do comércio das colônias, foi obrigado a reparti-las com muitos outros países. À primeira vista, sem dúvida, o monopólio do grande comércio da América se apresenta naturalmente como uma aquisição do mais alto valor. Aos olhos de uma ambição insensata, destituídos de discernimento, o monopólio se apresenta naturalmente, em meio à confusa disputa da política e da guerra, como um objetivo muito sedutor a ser visado. Contudo, o esplendor e sedutor do objetivo, a imensa grandeza do comércio, é a própria característica que torna prejudicial o monopólio desse comércio, ou que faz com que uma aplicação, por sua própria natureza menos vantajosa para o país do que a maior parte de outras aplicações, absorva uma porcentagem muito maior de capital do país, do que aquela que, de outra forma, para ela teria sido canalizada. Como demonstrei no Livro Segundo, o capital mercantil de cada país procura naturalmente, se assim se pode dizer, a aplicação mais vantajosa para o respectivo país. Se for empregado no comércio de transporte de mercadorias, o país ao qual pertence o capital transforma-se no empório das mercadorias de todos os países cujo comércio é movimentado por esse capital. Entretanto, o possuidor desse capital deseja vender no próprio país a maior parte possível dessas mercadorias. Com isso, poupa a si mesmo o incômodo, o risco e os gastos da exportação e, assim, ficará 118
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satisfeito se puder vendê-las no próprio país, não somente por um preço muito mais baixo, mas também com um lucro inferior àquele que poderia auferir, exportando as mercadorias. Nessas condições, naturalmente procura, na medida do possível, transformar seu comércio de transporte de mercadorias em um comércio exterior para consumo interno. Por outro lado, se o seu capital for novamente aplicado em um comércio exterior para consumo, pela mesma razão ele terá satisfação em vender no mercado interno tanto quanto puder dos produtos internos, que ele recolhe a fim de exportar a algum mercado externo, e, destarte procurará, na medida do possível, transformar seu mercado externo para consumo em um mercado interno. Assim, o capital mercantil de cada país naturalmente corteja uma aplicação próxima e foge da distante; naturalmente corteja uma aplicação em que os retornos são freqüentes, e foge daquela em que os retornos são demorados e lentos; ele naturalmente corteja a aplicação em que tem condições de manter o contingente máximo de mão-de-obra produtiva no país ao qual pertence ou em que reside seu proprietário, e foge daquela em que o capital tem condições de manter no país o contingente mínimo. Ele naturalmente corteja a aplicação que, em casos normais, é mais vantajosa, e foge daquela que normalmente é menos vantajosa para esse país. Entretanto, se, em qualquer dessas aplicações distantes, que em condições normais são menos vantajosas para o país, o lucro, por acaso, subir acima do que é suficiente para equilibrar a preferência natural que se dá a aplicações mais próximas, essa superioridade de lucro atrairá capital dessas aplicações mais próximas, até que os lucros de todas voltem a seu nível adequado. Todavia, essa superioridade de lucro constitui uma prova de que, nas circunstâncias efetivas da sociedade, essas aplicações distantes estão um pouco descapitalizadas em proporção a outras aplicações, e de que o capital da sociedade não está distribuído da maneira mais adequada entre todas as diversas aplicações nelas existentes. Isso é uma prova de que alguma coisa está sendo comprada mais barato, ou então de que alguma coisa está sendo vendida mais caro do que deveria, e de que alguma categoria específica de cidadãos está sendo oprimida, em grau maior ou menor, por pagar mais ou por receber menos do que o que condiz com essa igualdade que deveria ocorrer e que, naturalmente, ocorre entre todas as diversas classes da sociedade. Embora o mesmo capital nunca tenha condições de manter em uma aplicação distante a mesma quantidade de mãode-obra produtiva que mantém em uma aplicação próxima, uma aplicação distante pode ser tão necessária para o bem-estar da sociedade quanto uma aplicação próxima, pois as mercadorias transacionadas em uma aplicação distante talvez sejam necessárias para efetuar muitas das aplicações mais próximas. Entretanto, se os lucros daqueles que lidam com tais mercadorias estivessem acima de seu nível apropriado, essas mercadorias seriam vendidas mais caro do que deveriam ser, ou seja, acima de seu preço natural, e que todos empenhados nas aplicações mais próximas estariam sendo oprimidos, em grau maior 119
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ou menor, por esse alto preço. Assim sendo seu interesse nesse caso exige que alguma parte desse capital seja retirada dessas aplicações mais próximas e desviada para essa aplicação distante, a fim de reduzir seus lucros a seu nível apropriado, e para reduzir a seu nível natural o preço das mercadorias com as quais negocia. Nesse caso extraordinário, o interesse público exige que se retire parte do capital das aplicações que, em casos comuns, são mais vantajosas, e que seja canalizada para uma aplicação que, em casos comuns, é menos vantajosa para o público; e, nesse caso extraordinário, os interesses e inclinações naturais das pessoas coincidem tão exatamente com o interesse público quanto em todos os outros casos comuns, conduzindo-as a retirar capital da aplicação próxima e a canalizá-lo para a aplicação distante. Assim é que os interesses e os sentimentos privados dos indivíduos naturalmente os induzem a converter seu capital para as aplicações que, em casos ordinários, são as mais vantajosas para a sociedade. Contudo, se movidas por essa preferência natural, as pessoas canalizarem uma parcela excessiva do capital para essas aplicações, a queda do lucro nelas verificada e o aumento do lucro em todas as outras aplicações as disporão a alterar essa distribuição errônea de capital. Eis por que, sem qualquer intervenção da lei, os interesses e sentimentos privados das pessoas naturalmente as levam a dividir e distribuir o capital de cada sociedade entre todas as diversas aplicações nela efetuadas, na medida do possível na proporção mais condizente com o interesse de toda a sociedade. Todas as diversas medidas legais do sistema mercantil necessariamente perturbam, em grau maior ou menor, essa distribuição natural e altamente vantajosa do capital. Todavia, as que dizem respeito ao comércio com a América e com as Índias Orientais talvez a perturbem mais do que qualquer outra, já que o comércio com esses dois grandes continentes absorve um volume de capital superior ao absorvido por dois outros setores comerciais quaisquer. Entretanto, os regulamentos que provocam essa perturbação nesses dois setores comerciais não são totalmente iguais. O monopólio é o grande instrumento de ambos, mas trata-se de um tipo diferente de monopólio. Sem dúvida, o monopólio, tanto do comércio com a América como do comércio com as Índias Orientais, parece ser o único instrumento do sistema mercantil. No comércio com a América, cada nação procura açambarcar, tanto quanto possível, todo o mercado de suas próprias colônias, excluindo totalmente todas as demais nações de qualquer comércio direto com elas. Durante a maior parte do século XVI, os portugueses procuraram conduzir o comércio com as Índias Orientais da mesma forma, reivindicando o direito exclusivo de navegar nos mares índicos, fundando-se no mérito de terem sido eles os primeiros a descobrir o caminho para essa região. Os holandeses ainda continuam a excluir todas as outras nações européias de qualquer comércio direto com suas ilhas produtoras de especiarias. Monopólios desse gênero são evidentemente criados contra todas as demais nações européias, que, dessa maneira, 120
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não somente ficam à margem de um comércio ao qual poderia ser para elas conveniente canalizar uma parte de seu capital, como, ainda, são obrigadas a comprar as mercadorias assim negociadas, a preço mais alto do que no caso de poderem importá-las elas mesmas diretamente dos países produtores. Entretanto, desde a queda do poderio de Portugal, nenhuma nação européia reivindicou o direito exclusivo de navegar pelos mares índicos, cujos portos principais estão agora abertos aos navios de todas as nações européias. Contudo, excetuando-se em Portugal, e, desde uns poucos anos para cá, também na França, o comércio para as Índias Orientais, em todos os países europeus, tem estado entregue a uma companhia exclusiva. Os monopólios desse gênero são adequadamente criados contra as próprias nações que os implantam. A maior parte dessa nação é, com isso, não somente excluída de qualquer comércio para o qual poderia convir-lhe canalizar parte de seu capital, como também obrigada a comprar as respectivas mercadorias negociadas, a preço mais alto do que se o comércio estivesse aberto e fosse livre para todos os seus patrícios. Assim, por exemplo, desde a criação da Companhia Inglesa das Índias Orientais, os demais habituais da Inglaterra, além de serem excluídos do comércio, devem ter pago, no preço das mercadorias das Índias Orientais que consumiram, não apenas todos os lucros extraordinários que a Companhia pode ter auferido com essas mercadorias, em conseqüência de seu monopólio mas também todo o incalculável desperdício que a fraude e o abuso, indissociáveis da administração dos negócios de uma companhia tão grande, necessariamente devem ter ocasionado. Por conseguinte, o absurdo desse segundo tipo de monopólio é muito mais manifesto do que o primeiro. Os dois tipos de monopólios perturbam, em grau maior ou menor, a natural distribuição do capital da sociedade; mas não o fazem sempre da mesma forma. Os monopólios do primeiro tipo sempre atraem para o comércio específico para o qual são criados uma porcentagem de capital da sociedade superior àquela que seria espontaneamente canalizada para esse ramo. Os monopólios do segundo tipo por vezes podem atrair capitais para o comércio específico para o qual são criados e, por vezes, afastá-los desse ramo, de acordo com a diversidade das circunstâncias. Em países pobres, os monopólios naturalmente atraem para o respectivo comércio um capital superior àquele que, de outra forma, para ele seria canalizado. Em países ricos, esses monopólios naturalmente afastam desse comércio boa parte do capital que caso contrário nele seria aplicado. Países pobres como a Suécia e a Dinamarca, por exemplo, provavelmente nunca teriam enviado um único navio às Índias Orientais, se esse comércio não estivesse entregue a uma companhia exclusiva. A criação de tal companhia evidentemente estimula os aventureiros. O monopólio lhe dá segurança contra todos os concorrentes no mercado interno, e eles têm a mesma probabilidade para mercados externos, 121
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em relação aos comerciantes de outras nações. O monopólio a eles concedido lhes dá a certeza de um grande lucro sobre considerável quantidade de mercadorias, e a probabilidade de lucro considerável sobre uma grande quantidade. Sem esses estímulos extraordinários, os comerciantes pobres de tais países também pobres provavelmente nunca teriam pensado em arriscar seu pequeno capital em uma aventura tão distantes e incerta como lhes deve ter naturalmente parecido o comércio com as Índias Orientais. Ao contrário, um país tão rico quanto a Holanda, provavelmente teria, no caso de comércio livre, enviado muito mais navios às Índias Orientais do que o faz efetivamente. Provavelmente, o capital limitado da Companhia Holandesa das Índias Orientais afasta desse comércio muitos grandes capitais mercantis que, caso contrário, seriam aplicados nele. O capital mercantil da Holanda é tão grande, que, por assim dizer, transborda continuamente, por vezes derramando-se nos fundos públicos de países estrangeiros, por vezes em forma de empréstimos a comerciantes e aventureiros privados de países estrangeiros, outras integrando-se nos comércios exteriores de consumo, do tipo mais indireto, e ainda no comércio de transporte internacional de mercadorias. Estando todas as aplicações próximas de capital completamente exauridas, já que todo o capital que pode ser colocado nelas com um lucro razoável já foi nelas aplicado, o capital da Holanda forçosamente flui para as aplicações mais distantes. Se o comércio com as Índias Orientais fosse totalmente livre, provavelmente absorveria a maior parte desse capital excessivo. As Índias Orientais oferecem um mercado tanto para os manufaturados da Europa quanto para o ouro e a prata, bem como para vários outros produtos da América, mercado esse maior e mais amplo do que a Europa e a América juntas. Toda perturbação da distribuição natural do capital é obviamente prejudicial para a sociedade na qual ela ocorre, seja por afastar de um comércio específico o capital que, caso contrário, nela seria aplicado, seja por atrair para uma atividade particular o capital que de outra maneira não seria nela aplicado. Se, não havendo uma companhia exclusiva, o comércio da Holanda com as Índias Orientais fosse maior do que efetivamente é, esse país sofreria uma perda considerável, pelo fato de parte de seu capital ser excluída da aplicação mais conveniente para ela. Da mesma forma, não havendo uma companhia exclusiva, se o comércio da Suécia e da Dinamarca com as Índias Orientais fosse inferior ao que é efetivamente ou, o que talvez seja mais provável, se esse comércio nem sequer existisse, esses dois países igualmente sofreriam uma perda considerável, em conseqüência de parte de seu capital ser atraída para uma aplicação que deve ser mais ou menos inadequada às suas circunstâncias atuais. Talvez fosse melhor para esses dois países, nas atuais circunstâncias, comprar de outras nações as mercadorias das Índias Orientais, mesmo pagando um pouco mais caro, do que desviar parcela tão significativa de seu pequeno capital para um comércio tão distante, no qual os retornos são tão lentos, no 122
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qual o capital só pode manter um contingente tão reduzido de mãode-obra produtiva interna onda há tanta necessidade de trabalho produtivo, onde se realiza tão pouco e onde tanto existe a realizar. Por conseguinte, ainda que, por não possuir uma companhia exclusiva, determinado país não tivesse condições de manter um comércio direto com as Índias Orientais, disso não decorre que tal companhia deva ser ali criada, mas apenas que tal país não deve, em tais circunstâncias, manter comércio direto com as Índias Orientais. Que essas companhias geralmente não são necessárias para efetuar comércio com as Índias Orientais, demonstra-o sobejamente a experiência dos portugueses, que desfrutaram da quase totalidade desse comércio durante mais de um século seguido, sem ter nenhuma companhia exclusiva. Tem se alegado que nenhum comerciante particular poderia ter capital suficiente para manter comissários e agentes nos diferentes portos das Índias Orientais encarregados de providenciar mercadorias para os navios que ocasionalmente o comerciante viesse a enviar para lá; ora — assim se argumenta — se o comerciante não tiver condições para isso, a dificuldade de encontrar carga poderia com freqüência fazer com que seus navios perdessem a oportunidade de retornar, caso em que os gastos inerentes a uma estadia tão longa não somente devorariam todo o lucro da aventura, mas muitas vezes gerariam uma perda muito considerável. Esse argumento, porém, se de fato provasse alguma coisa, demonstraria que não é possível manter nenhum setor grande de comércio, sem uma companhia exclusiva — o que contraria a experiência de todas as nações. Não existe nenhum setor comercial de importância no qual o capital de qualquer comerciante particular seja suficiente para mobilizar todos os setores subordinados que têm que ser movimentados para administrar o setor principal. Todavia, quando uma nação está madura para um determinado setor comercial de importância, alguns comerciantes naturalmente canalizam seus capitais para o comércio principal, e alguns os aplicam nos setores subordinados do mesmo; e, embora dessa maneira se movimentem todos os setores desse comércio, ainda assim muito raramente acontece que todos eles sejam movimentados pelo capital de um único comerciante particular. Se, pois, uma nação está madura para o comércio com as Índias Orientais, determinada parte de seu capital naturalmente será dividida entre todos os diversos setores desse comércio. Alguns de seus comerciantes considerarão interessante para eles residir nas Índias Orientais e lá aplicar seus capitais, provendo de mercadorias os navios a serem expedidos por outros comerciantes residentes na Europa. As fundações que várias nações européias conseguiram nas Índias Orientais, se fossem tomadas das companhias exclusivas às quais atualmente pertencem e colocadas sob a proteção direta do soberano, tornariam tal residência segura e cômoda, ao menos para os comerciantes das nações específicas às quais pertencem essas fundações. Se, em determinado momento, essa parte do capital de um país que espontaneamente tendesse e se inclinasse — se assim posso me exprimir — para 123
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o comércio com as Índias Orientais não fosse suficiente para o atendimento de todos os diversos setores desse comércio, isso constituiria uma prova de que, naquele momento específico, esse país não estaria maduro para esse comércio, e que lhe seria melhor comprar, durante algum tempo, de outras nações européias — mesmo a preço mais alto — as mercadorias das Índias Orientais de que tivesse necessidade, do que importá-las, ele mesmo, diretamente de lá. O que o país poderia vir a perder em virtude do alto preço dessas mercadorias raramente poderia equivaler à perda que sofreria desviando grande parcela de seu capital de outras aplicações mais necessárias, mais úteis ou mais convenientes às suas circunstâncias e situação do que um comércio direto com as Índias Orientais. Embora os europeus possuam muitas fundações consideráveis, tanto na costa da África com nas Índias Orientais, em nenhuma dessas duas regiões instalaram colônias tão numerosas e tão prósperas como as existentes nas ilhas e no continente da América. A África, porém, bem como vários países compreendidos sob o nome genérico de Índias Orientais, são habitados por nações bárbaras. Entretanto, essas nações de modo algum eram tão fracas e indefesas quanto os míseros e indefesos americanos; além disso, em proporção com a fertilidade natural dos países que habitavam, sua população era muito mais numerosa. As nações mais bárbaras, tanto da África como das Índias Orientais, eram constituídas de pastores; mesmo os hotentotes eram pastores. Contudo, os nativos de todas as regiões da América, excetuados os do México e do Peru, eram apenas caçadores; ora, é muito grande a diferença entre o número de pastores e o de caçadores que se consegue manter com a mesma extensão de território de fertilidade igual. Por isso, na África e nas Índias Orientais, era mais difícil desalojar os nativos e estender as colônias européias na maior parte das terras dos habitantes originais. Além disso, a característica das companhias exclusivas é desfavorável — como já observei — ao crescimento de novas colônias, o que constitui, provavelmente, a causa principal do reduzido progresso que fizeram nas Índias Orientais. Os portugueses efetuavam o comércio com a África e com as Índias Orientais sem quaisquer companhias exclusivas, e embora suas fundações no Congo, Angola e Benguela, na costa africana e em Goa, nas Índias Orientais, estivessem muito decadentes em virtude de superstição e de toda sorte de maus governos, apresentam alguma leve semelhança com as colônias da América, sendo em parte habitadas por portugueses que lá se estabeleceram desde várias gerações. As fundações holandesas no cabo da Boa Esperança e na Batávia constituem atualmente as colônias mais consideráveis que os europeus implantaram, tanto na África como nas Índias Orientais, e essas duas fundações são particularmente afortunadas no tocante à sua localização. O cabo da Boa Esperança era habitado por uma raça de povos quase tão bárbaros e tão completamente incapazes de se autodefenderem quanto os nativos da América. Além disso, ele fica a meio caminho, se assim se pode dizer, entre a Europa e as 124
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Índias Orientais, constituindo o ponto em que faz alguma parada quase todo navio europeu, tanto na ida como na volta. Por si só, o abastecimento desses navios com todo tipo de mantimentos frescos, com frutas e, às vezes, com vinho, garante um mercado muito grande para o excedente de produção dos habitantes da colônia. O papel que ocupa o cabo da Boa Esperança entre a Europa e cada região das Índias Orientais, cabe à Batávia em relação aos principais países da Índias Orientais. A Batávia está entre os principais países das Índias Orientais. Fica na rota mais freqüentada do Hindustão para a China e o Japão, quase a meio caminho nessa rota. Além disso, quase todos os navios que navegam entre a Europa e a China, tocam em Batávia; e, principalmente, é o centro e o principal mercado do que se denomina região de comércio das Índias Orientais: não somente pela parte em que os europeus exercem suas atividades, mas também daquela parte em que comerciam os indianos nativos, podendo-se ver com freqüência em seu porto embarcações conduzidas pelos habitantes da China e do Japão, de Tonquim, Malaca, Cochinchina e da ilha de Célebes. Essas localizações vantajosas possibilitaram a essas duas colônias superarem todos os obstáculos que a natureza opressiva de uma companhia exclusiva possa ter ocasionalmente oposto ao crescimento delas. Elas permitiram à Batávia superar a desvantagem adicional do clima, talvez o mais insalubre do mundo. As companhias inglesas e holandesas das Índias Orientais, embora não tenham implantado colônias consideráveis, excetuadas as duas acima mencionadas, efetuaram ambas conquistas consideráveis nas Índias Orientais. Entretanto, foi na maneira como cada uma delas governava seus novos súditos que mais claramente se revelou a característica natural de uma companhia exclusiva. Segundo se afirma, nas ilhas produtoras de especiarias os holandeses queimam o estoque delas que uma estação fértil produz além daquilo que esperam vender na Europa, com um lucro que consideram suficiente. Nas ilhas em que não têm fundações, dão um prêmio a quem colhe as flores tenras e as folhas verdes de cravo-da-índia e de árvores de noz-moscada que lá crescem espontaneamente, plantas essas que, segundo se afirma, uma política selvagem atualmente extirpou quase totalmente. Segundo se relata, mesmo nas ilhas em que possuem fundações, os holandeses reduziram muito o número dessas árvores. Suspeitam que, se a produção, mesmo das suas próprias ilhas, fosse muito maior do que o conveniente para seu mercado, os nativos pudessem encontrar meios para transportar parte da produção para outras nações; ora, segundo imaginam, o melhor meio para assegurar-lhes seu próprio monopólio, é zelar no sentido de que a produção não ultrapasse o que eles mesmos comercializam. Utilizando diversos meios opressivos, reduziram a população de várias das ilhas Molucas mais ou menos ao número suficiente para abastecer de mantimentos frescos e outros gêneros de primeira necessidade suas próprias e insignificantes guarnições e os seus navios que ocasionalmente lá aportam para um carregamento de es125
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peciarias. No entanto, mesmo sob o governo dos portugueses, afirma-se que essas ilhas eram razoavelmente bem povoadas. A Companhia Inglesa ainda não teve tempo de implantar em Bengala um sistema tão destrutivo como o da Companhia Holandesa. Todavia, o plano de sua administração tem tido exatamente a mesma tendência. Não tem sido incomum, foi-me assegurado, que o chefe, isto é, o primeiro funcionário de uma feitoria, ordene a um camponês arrancar com o arado uma rica plantação de papoulas e ali semeie arroz ou qualquer outro cereal. O pretexto alegado era evitar uma escassez de mantimentos; entretanto, o motivo real era dar ao chefe uma oportunidade de vender a preço melhor grande quantidade de ópio que ele casualmente tinha em mãos. Em outras ocasiões, a ordem era inversa: arrancar uma rica plantação de arroz ou outro cereal para dar lugar a uma plantação de papoulas, quando o chefe previa a probabilidade de auferir extraordinário lucro com o ópio. Os empregados da Companhia em várias ocasiões tentaram implantar, em seu próprio benefício, o monopólio de alguns dos setores mais importantes, não somente do comércio externo do país, senão também do interno. Se tivessem podido continuar nessa linha, é impossível que um dia não tivessem tentado restringir a produção de determinados artigos dos quais tivessem, assim, usurpado o monopólio, não somente à quantidade que eles mesmos pudessem comprar, mas também aquela que pudessem esperar vender com um lucro que considerassem suficiente. Dessa maneira, no decurso de um ou dois séculos, a política da Companhia Inglesa se tornaria provavelmente tão destrutiva quanto a da Companhia Holandesa. No entanto, nada pode ser mais diretamente contrário ao interesse real dessas companhias, consideradas como as soberanas dos países que vieram a conquistar, do que esse plano destrutivo. Em quase todos os países, a renda do soberano provém da renda do povo. Portanto, quanto maior for a renda do povo, quanto maior for a produção anual de sua terra e de seu trabalho, tanto mais renda poderão oferecer ao soberano. Conseqüentemente, o soberano tem interesse em aumentar o máximo possível essa produção anual. Mas, se é esse o interesse de todo soberano, isso ocorre particularmente com um soberano cuja renda, como a do soberano de Bengala, provém sobretudo das terras. Essa renda deve necessariamente ser proporcional à quantidade e ao valor da produção, sendo que tanto um como o outro dependem da extensão do mercado. A quantidade da produção sempre se ajustará, com maior ou menor exatidão, ao consumo daqueles que têm condições de pagar, e o preço que pagarão sempre será proporcional à avidez de sua concorrência. Por isso, é do interesse de tal soberano abrir o mais amplo mercado possível para a produção de seu país, permitir a mais perfeita liberdade de comércio, a fim de aumentar ao máximo o número e a concorrência dos compradores e, conseqüentemente, abolir não somente todos os monopólios, como também todas as restrições ao transporte da produção nacional de uma parte do país para outra, as restrições à exportação da produção a países estrangeiros e à importação de mer126
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cadorias de qualquer tipo, pelas quais se possa trocar a produção nacional. É dessa maneira que o soberano tem maior probabilidade de aumentar a quantidade e o valor da produção do país, e, por conseguinte, de sua participação na mesma, isto é, de sua própria renda. Contudo, ao que parece, uma companhia de comerciantes é incapaz de considerar-se como soberana, mesmo depois de assim se ter transformado. Tal companhia continua a considerar como sua ocupação principal o comércio, isto é, comprar para revender e, por estranho absurdo, considera a função característica de um soberano apenas como um apêndice à do comerciante, como algo que deve estar subordinado à função do comerciante, ou seja, algo através do qual ela possa comprar mais barato na Índia, e com isto vender com mais lucro na Europa. Para esse fim, a Companhia procura afastar, na medida do possível, todos os concorrentes do mercado dos países sujeitos à sua administração e, conseqüentemente, reduzir ao menos uma parte do excedente de produção desses países ao que é estritamente suficiente para atender sua própria demanda, isto é, àquilo que pode esperar vender na Europa com um lucro que possa considerar razoável. Dessa forma, seus hábitos mercantis a levam, quase necessária, embora talvez insensivelmente, a preferir, em todas as ocasiões comuns, o lucro pequeno e transitório do monopolista à renda grande e permanente do soberano, e gradualmente a levaria a tratar os países sujeitos a seu governo quase da mesma forma como a Companhia Holandesa trata as ilhas Molucas. É de interesse da Companhia das Índias Orientais, se considerada como soberana, que as mercadorias européias importadas pelos seus domínios nas Índias Orientais sejam lá vendidas ao preço mais baixo possível, e que as mercadorias das Índias Orientais de lá exportadas obtenham na Europa o melhor preço ou sejam lá vendidas o mais caro possível. Mas o interesse da Companhia, como comerciante, é o inverso disso. Na qualidade de soberana, o interesse da Companhia é exatamente o mesmo que o do país que ela governa. Na qualidade de comerciante, seu interesse é diretamente oposto ao interesse do país por ela governado. Entretanto, se a característica de tal governo, mesmo no que concerne à sua direção na Europa, é assim essencialmente — e talvez incuravelmente — censurável, mas ainda o é a característica de sua administração nas Índias Orientais. Essa administração se compõe necessariamente de um conselho de comerciantes — sem dúvida, profissão extremamente respeitável, mas que em país algum do mundo comporta aquele tipo de autoridade que, naturalmente, apavora o povo e, sem recorrer à força, consegue dele obediência espontânea. Tal conselho só consegue obediência pela força militar que o acompanha e, conseqüentemente, seu governo é obrigatoriamente militar e despótico. Entretanto, a verdadeira ocupação desse conselho é a de comerciante. Consiste em vender, por conta de seus patrões, as mercadorias européias a ele consignadas e, em troca, comprar mercadorias locais, para o mercado europeu. Sua atividade consiste em vender as mercadorias euro127
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péias o mais caro possível e comprar as mercadorias locais o mais barato possível, e, portanto, em excluir ao máximo todos os rivais do mercado específico em que mantém seu negócio. A característica da administração, por conseguinte, no que concerne ao comércio da Companhia, é a mesma que a da direção. Ela tende a subordinar a atividade do governo ao interesse do monopólio, e, assim, restringir o aumento natural de alguns itens, pelo menos, do excedente de produção do país, ao estritamente suficiente para atender à demanda da Companhia. Além disso, todos os membros da administração comercializam mais ou menos por conta própria, sendo inútil proibir-lhes fazer isso. Nada pode ser mais insensato do que esperar que os funcionários de um grande escritório comercial à distância de 10 mil milhas, e, portanto, quase completamente fora de controle, deixem de vez, a uma simples ordem de seus patrões, de praticar algum tipo de negócio por sua própria conta, abandonem para sempre todas as expectativas de conseguir fortuna — tendo em suas mãos os meios para isso — e se contentem com os modestos salários que seus patrões lhes pagam, os quais, modestos como são, raramente podem ser aumentados, já que comumente são tão altos quanto permitem os lucros reais do comércio da Companhia. Em tais circunstâncias, proibir os empregados da Companhia de comercializarem por sua própria conta, dificilmente pode ter outro resultado senão possibilitar aos funcionários de escalão superior, sob o pretexto de estarem executando ordem de seus patrões, oprimirem os empregados de escalões inferiores que tiverem a infelicidade de não cair em suas graças. Os empregados naturalmente procuram criar em favor de seu próprio comércio privado o mesmo monopólio da Companhia em seu comércio oficial. No caso de deixá-los agir como poderiam desejar, implantarão esse monopólio aberta e diretamente, simplesmente proibindo a todas as outras pessoas de comercializarem os artigos que eles optam por comercializar, sendo essa, talvez, a maneira melhor e menos opressiva de implantar o monopólio. Se, porém, alguma ordem proveniente da Europa lhes proibir de o fazer, não obstante isso procurarão implantar um monopólio do mesmo gênero, secreta e indiretamente, de forma muito mais destrutiva para o país. Recorrerão a toda a autoridade de governo e desvirtuarão a administração judicial, a fim de importunar e arruinar aqueles que os perturbam em qualquer setor de comércio que, por meio de agentes secretos, pelo menos não publicamente declarados, eventualmente optarem por exercer. Todavia, o comércio particular dos empregados naturalmente abrangerá uma variedade muito maior de artigos do que o comércio oficial da Companhia. O comércio oficial da Companhia não vai além do comércio com a Europa, englobando apenas uma parte do comércio exterior do país. Ao contrário, o comércio particular dos empregados pode estender-se a todos os diversos setores, tanto do comércio interno como do comércio externo do país. O monopólio da Companhia só pode tender a tolher o aumento natural da parte do excedente de produção que, no caso de um comércio livre, seria exportada para a 128
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Europa. O monopólio dos empregados da Companhia, porém, tende a tolher o aumento natural de cada item da produção que optaram por comercializar, tanto da parte destinada ao consumo interno quanto da destinada à exportação e, conseqüentemente a diminuir o cultivo do país inteiro e a reduzir o número de seus habitantes. Tende a reduzir a quantidade de todo tipo de produto, mesmo dos de primeira necessidade, toda vez que os empregados da Companhia quiserem comercializá-los, àquilo que esse empregados podem permitir-se comprar e esperar vender com o lucro que lhes aprouver. Também em virtude da natureza de sua situação, os empregados necessariamente estão mais inclinados a apoiar com rigorosa severidade seu próprio interesse contra o do país que governam, do que seus patrões em apoiar os interesses oficiais da Companhia. O país pertence a seus patrões, que não podem deixar de ter alguma consideração pelo interesse daquilo que lhes pertence. Entretanto, o país não pertence aos empregados da Companhia. O interesse real de seus patrões, se estes fossem capazes de entendê-lo, identifica-se com o do país,4 e se os patrões violam esse interesse, é sobretudo por ignorância, e devido à mediocridade do preconceito mercantil. Entretanto, o interesse real dos empregados da Companhia de forma alguma é o mesmo que o do país, e nem a mais autêntica informação poria fim, necessariamente, às opressões deles. Em conseqüência, as normas emanadas da Europa, embora muitas vezes tenham sido frágeis, de modo geral parecem bemintencionadas. Mais inteligência, e, talvez, intenções menos apreciáveis têm, por vezes, se revelado nas normas estabelecidas pelos empregados da Companhia das Índias Orientais. Não deixa de ser bastante singular um governo em que cada membro da administração deseja sair do país e conseqüentemente, não deseja ter mais nada a ver com o governo, tão logo que puder, sendo totalmente indiferente para com o interesse dele — no dia seguinte àquele em que deixou o país e levou consigo toda a sua fortuna — mesmo que todo o país seja arrasado por um terremoto. Com tudo o que acabo de dizer, porém, não tenciono fazer nenhuma insinuação odiosa ao caráter geral dos empregados da Companhia das Índias Orientais, e muito menos ao caráter de quaisquer pessoas em particular. O que tenciono censurar é o sistema de governo, a situação em que os empregados se encontram, e não o caráter daqueles que agiram no caso. Agiram conforme naturalmente os obrigou a situação e provavelmente os que mais reclamaram contra eles não teriam agido melhor. Na guerra e nas negociações, os conselhos de Madras e Calcutá em várias ocasiões se conduziram com coragem e sabedoria tão decididas, que teriam honrado o senado de Roma dos melhores dias da República. Todavia, os membros desses conselhos haviam sido 4
Todavia, o interesse de cada proprietário de capital na Companhia das Índias Orientais de maneira alguma é o mesmo que o do país em cujo governo seu voto lhe assegura alguma influência. Ver Livro Quinto, cap. I, Parte Terceira. 129
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instruídos para profissões muito diferentes da guerra e da política. Somente sua situação, sem educação, experiência ou mesmo exemplo, parece tê-los moldado de repente para as grandes qualidades que a profissão exigia, e haver-lhes inspirado capacidades e virtudes que eles mesmos não tinham plena consciência de possuir. Se, pois, em algumas ocasiões, a profissão os animou a atos de magnanimidade que dificilmente se poderia esperar deles, não devemos admirar-nos se em outras os levou a atitudes de natureza algo diferente. Essas companhias exclusivas, portanto, são danosas sob todos os aspectos; são sempre mais ou menos inconvenientes para os países em que são criadas e destrutivas para os países que têm a infelicidade de cair sob o seu governo.
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CAPÍTULO VIII Resultado do Sistema Mercantil
Conquanto o estímulo à exportação e o desestímulo à importação constituam os dois grandes instrumentos com os quais o sistema mercantil propõe enriquecer cada país, ainda assim, no tocante a algumas mercadorias específicas, ele parece seguir um plano oposto: desestimular a exportação e estimular a importação. Pretende ele, porém, que seu objetivo último seja sempre o mesmo, isto é, enriquecer o país mediante uma balança comercial favorável. Desestimula a exportação dos materiais para manufaturas, bem como dos instrumentos de trabalho, a fim de proporcionar aos nossos próprios operários uma vantagem e capacitá-los a vender tais manufaturas mais barato do que outras nações, em todos os mercados estrangeiros; e ao restringir, dessa forma, a exportação de algumas poucas mercadorias, de preço não elevado, o sistema mercantil propõe-se provocar uma exportação muito maior e de mais valor de outros artigos. O sistema estimula a importação dos materiais para manufaturas a fim de que nossos próprios trabalhadores tenham a possibilidade de processá-las a preço mais baixo, evitando assim uma importação maior e mais valiosa das mercadorias manufaturadas. Não encontro, ao menos em nosso Código Civil, estímulo algum dado à importação de instrumentos de trabalho. Quando as manufaturas atingiram certo nível de grandeza, a própria fabricação de instrumentos de trabalho se torna objeto de grande número de manufaturas muito importantes. Conceder algum estímulo peculiar à importação de tais instrumentos significaria interferir excessivamente no interesse dessas manufaturas. Tal importação, portanto, em vez de ser estimulada, com frequência foi proibida. Assim, o Estatuto 3 de Eduardo IV, proibiu a importação de cardas de lã, a não ser as da Irlanda ou quando importadas como mercadorias de navios naufragados ou tomadas à força; essa proibição foi renovada pelo Estatuto 39 de Isabel, e leis subseqüentes a prolongaram e a tornaram perpétua. 131
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A importação de materiais para manufaturas às vezes foi estimulada por uma isenção de taxas alfandegárias impostas a outras mercadorias, e, às vezes, por subsídios. A importação de lã de ovelha de vários países, de algodão em rama de todos os países, do linho não cardado, da maioria dos corantes, da maioria dos couros não curtidos da Irlanda ou das colônias britânicas de peles de foca da indústria de pesca da Groelândia Britânica, de ferro fundido e ferro em barras das colônias britânicas, bem como a de vários outros materiais para manufaturas, tem sido estimulada pela isenção de todas as taxas alfandegárias, desde que esses produtos dêem devidamente entrada na alfândega. É possível que o interesse privado dos nossos comerciantes e manufatores tenha extorquido dos legisladores essas isenções, bem como a maior parte das nossas outras medidas comerciais. No entanto, essas isenções são perfeitamente justas e razoáveis e se, em consonância com as necessidades do Estado, elas pudessem ser estendidas a todos os outros materiais de manufaturas, certamente o público sairia ganhando. Todavia, a avidez dos nossos grandes manufatores ampliou, em alguns casos, essas isenções bastante além daquilo que com justiça, se pode considerar como matérias brutas para seu trabalho. O Estatuto 24, capítulo 46, de Jorge II, impôs uma pequena taxa de apenas um pêni por libra-peso à importação de fio de linho castanho estrangeiro, em vez de taxas muito mais altas às quais esse artigo estava sujeito anteriormente, isto é, de seis pence por libra-peso, para fio e vela de um xelim para libra-peso para todos os tipos de fios da França e da Holanda, e de £ 2 13 s 4 d sobre 112 libras de todo coro ou fio da Moscóvia. Mas essa redução não satisfez por muito tempo aos nossos manufatores. Até mesmo essa pequena taxa alfandegária imposta à importação de fio de linho castanho foi eliminada pelo Estatuto 29, capítulo 15, do mesmo rei — a mesma lei que concedeu um subsídio à exportação de linho britânico e irlandês, cujo preço não ultrapassasse 18 pence a jarda. Entretanto, nas diferentes operações necessárias para a preparação do fio de linho, emprega-se bem mais trabalho do que na operação subseqüente de preparar o tecido de linho a partir do fio de linho. Para não falar do trabalho dos cultivadores e dos cardadores de linho, necessita-se no mínimo três ou quatro fiandeiros para conservar constantemente ocupado um único tecelão; por outro lado, na preparação do fio de linho emprega-se mais de 4/5 do volume total de trabalho necessário para a preparação do tecido de linho; ora, nossos fiandeiros são pessoas pobres, geralmente mulheres, espalhadas em todas as diversas regiões do país, desprovidas de amparo ou proteção. Não é da venda do trabalho delas que os nossos grandes patrões manufatores auferem seus lucros, mas da venda do produto acabado dos tecelões. Assim, como eles têm interesse em vender o manufaturado acabado ao preço mais alto possível, da mesma forma têm interesse em comprar os materiais o mais barato possível. Extraindo dos legisladores subsídios para a exportação de seus próprios linhos, altas taxas 132
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aduaneiras para a importação de todos os linhos estrangeiros e uma proibição total de consumo interno de alguns tipos de linho francês, os manufatores procuram vender suas próprias mercadorias o mais caro possível. Estimulando a importação de fio de linho estrangeiro e, com isso, fazendo-o concorrer com o fio feito pelos nossos próprios trabalhadores, procuram comprar o trabalho das pobres fiandeiras o mais barato possível. Seu intento é manter baixos tanto os salários de seus próprios tecelões como os ganhos das pobres fiandeiras; por outro lado, não é de forma alguma em benefício dos operários que procuram ou levantar o preço do produto acabado ou baixar o das matérias-primas. O que o nosso sistema mercantil estimula, antes de tudo, é o trabalho executado em benefício dos ricos e poderosos. O trabalho executado em benefício dos pobres e dos indigentes é, com excessiva frequência, negligenciado ou então sobrecarregado. Tanto no subsídio à exportação de linho como a isenção de taxas alfandegárias a importação de fio estrangeiro — que foram concedidos somente para quinze anos, porém revalidados através de duas prorrogações — expiram com o término da sessão do Parlamento que terá lugar imediatamente na data de 24 de junho de 1786. Estímulo concedido à importação dos materiais para manufaturas mediante subsídio foi limitado sobretudo aos importados das nossas colônias americanas. Os primeiros subsídios desse gênero foram os concedidos, por volta do início do século atual, à importação de materiais navais da América. Essa denominação englobava madeira adequada para mastros, vergas e gurupés, além de cânhamo, alcatrão, piche e terebintina. Todavia, o subsídio de 1 libra por tonelada, para a importação de madeira de mastreação e o de 6 libras por tonelada para a importação de cânhamo foram estendidos também a esses materiais, quando importados pela Inglaterra da Escócia. Esses subsídios continuaram, sem variação, com a mesma taxa, até expirarem por várias vezes: o subsídio relativo ao cânhamo, a 1º de janeiro de 1741, e o relativo à madeira de mastreação no término da sessão do Parlamento que se seguiu imediatamente à data de 24 de junho de 1781. Os subsídios à importação de alcatrão, piche e terebintina sofreram durante sua vigência várias alterações. Inicialmente, o subsídio para a importação de alcatrão era de 4 libras por tonelada, o relativo à importação de piche, idem, e o relativo à importação de terebintina era de 3 libras por tonelada. O subsídio de 4 libras por tonelada de alcatrão foi depois limitado ao alcatrão preparado de um modo peculiar, e o subsídio à importação de outros tipos de alcatrão de boa qualidade, limpo e comercializável, foi produzido para £ 2 4 s por tonelada. Também o subsídio à importação de piche foi reduzido para 1 libra, e o relativo à terebintina para £ 1 10 s por tonelada. O segundo subsídio concedido à importância de quaisquer materiais para manufaturas, na ordem cronológica, foi o outorgado pelo Estatuto 21, capítulo 30, de Jorge II, relativo à importação de índigo das colônias britânicas. Quando 133
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o índigo das colônias valia 3/4 do preço do índigo francês da melhor qualidade, esse Estatuto lhe concedeu um subsídio de 6 pence por libra-peso. Esse subsídio concedido, como a maioria dos demais, por um período limitado, foi prorrogado várias vezes, mas reduzido para 4 pence por libra-peso. Ele expirou com o término da sessão do Parlamento que se seguiu a 25 de maio de 1781. O terceiro subsídio desse gênero foi o concedido (bem próximo da época em que estávamos começando, por vezes, a cortejar nossas colônias e, por vezes, a brigar com elas) pelo Estatuto 4, capítulo 26, de Jorge III, à importação do cânhamo ou linho não cardado das colônias britânicas. Esse subsídio foi concedido para 21 anos, de 24 de junho de 1764 a 24 de junho de 1785. Para os primeiros sete anos, o subsídio devia ser de 8 libras por tonelada, para os sete anos seguintes, de 6 libras, e para os outros sete, de quatro libras. O subsídio não foi estendido ao cânhamo importado da Escócia, cujo clima (embora por vezes lá se cultive esse produto, em quantidades pequenas e de qualidade inferior) não é muito indicado para a produção. A concessão de tal subsídio à importação de linho escocês pela Inglaterra teria representado um desestímulo excessivo para a produção nativa da região sul do Reino Unido. O quarto subsídio desse gênero foi o concedido pelo Estatuto 5, capítulo 45, de Jorge III, à importação de madeira da América. Ele foi outorgado para nove anos, de 1º de janeiro de 1766 até 1º de janeiro de 1775. Durante os três primeiros anos, o subsídio deveria ser de 1 libra para cada 120 pranchas de boa qualidade, e para cada carga contendo 50 pés cúbicos de outras madeiras esquadriadas de 12 xelins. Para os três anos seguintes, o subsídio deveria ser, para pranchas, de 15 xelins e para outras madeiras esquadriadas deveria ser de 8 xelins; e para os últimos 3 anos deveria ser, para pranchas, de 10 xelins, e, para outras madeiras esquadriadas, de 5 xelins. O quinto subsídio desse tipo foi o concedido pelo Estatuto 9, capítulo 38, de Jorge III, à importação de seda bruta das colônias britânicas. Ele foi outorgado para 21 anos, de 1º de janeiro de 1770 até 1º de janeiro de 1791. Durante os primeiros sete anos, o subsídio deveria ser de 25 libras para cada 100 libras de valor do produto; para os sete anos seguintes, de 20 libras; e para outros sete anos, de 15 libras. A criação do bicho-da-seda e a preparação da seda exigem muita mãode-obra e trabalho e isso é tão caro na América que mesmo esse grande subsídio, conforme fui informado, não tinha probabilidade de produzir nenhum efeito considerável. O sexto subsídio desse gênero foi o concedido pelo Estatuto 11, capítulo 50, de Jorge III, à importação de pipas, quartolas, aduelas e materiais para tampos de barril das colônias britânicas. Foi concedido para nove anos, de 1º de janeiro de 1772 até 1º de janeiro de 1781. Para os três primeiros anos, o subsídio devia ser de 6 libras esterlinas por determinada quantidade de barris ou tampos; para os três anos seguintes, de 4 libras, e para os últimos 3 anos, de 2 libras. 134
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O sétimo e último subsídio desse tipo foi o concedido pelo Estatuto 19, capítulo 37, de Jorge III, para a importação do cânhamo da Irlanda. Igualmente, ao subsídio dado para importação de cânhamo e de linho não cardado da América, ele foi concedido para 21 anos, de 24 de junho de 1779 até 24 de junho de 1800. Também esse prazo está dividido em três períodos de sete anos cada, e em cada um desses períodos a taxa de subsídio para o produto irlandês é a mesma que a vigente para a do produto americano. Contudo, ele não se estende à importação de linho não cardado, como ocorre com o subsídio à importação da América. Isto teria constituído um desestímulo excessivo ao cultivo dessa planta na Grã-Bretanha. Quando se concedeu esse subsídio, os legisladores britânicos e irlandeses não mantinham entre si relações melhores do que as anteriormente existentes entre os britânicos e os americanos. Mas esse benefício à Irlanda, como era de se esperar — foi concedido sob auspícios muito mais afortunados do que todos os benefícios outorgados à América. As mesmas mercadorias para as quais concedemos subsídios, quando importadas da América, estavam sujeitas a taxas alfandegárias consideráveis, quando importadas de qualquer outro país. Considerouse que o interesse das nossas colônias americanas é o mesmo que o da mãe-pátria. Sua riqueza foi considerada como nossa. Segundo se afirmava, qualquer dinheiro que fosse enviado a essas colônias voltava totalmente à mãe-pátria pela balança comercial, e jamais empobreceríamos de um ceitil sequer por qualquer gasto que tivéssemos com elas. Estas nos pertenciam, sob todos os aspectos, sendo, pois, uma despesa investida no aprimoramento de nossa própria propriedade, e para o emprego rentável de nossa própria gente. Segundo entendo é supérfluo, no momento, acrescentar algo mais para expor a insensatez desse sistema, que a experiência fatal acaba de comprovar suficientemente. Se as nossas colônias americanas tivessem constituído realmente uma parte da Grã-Bretanha, esses subsídios poderiam ter sido considerados como subsídios à produção, e estariam ainda sujeitos a todas as objeções a que estão expostos, mas a nenhuma outra. A exportação de materiais para manufaturas é desestimulada, ora por proibições absolutas, ora por altas taxas alfandegárias. Os nossos manufatores de lã têm tido mais sucesso do qualquer outra categoria de trabalhadores em persuadir os legisladores de que a prosperidade da nação dependeria do êxito e da extensão de sua atividade específica. Não somente obtiveram um monopólio contra os consumidores, mediante total proibição de importar tecidos de lã de qualquer país estrangeiro, como também conseguiram outro monopólio, contra os criadores de carneiro e produtores de lã, por semelhante proibição da exportação de carneiros vivos e de lã. Há queixas muito justas contra a severidade de muitas das leis promulgadas para garantir a renda, por imporem rigorosas penas a atos que, antes dos estatutos que os declararam como crimes, tinham sempre sido considerados inocentes. Contudo, ouso afirmar que a mais cruel das leis da Receita 135
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são suaves e brandas, em comparação com algumas leis arrancadas dos legisladores pelo clamor dos nossos comerciantes e manufatores, em apoio de seus próprios monopólios absurdos e opressivos. Como as leis de Drácon, pode-se dizer que todas essas leis foram escritas com sangue. Em virtude do Estatuto 8, capítulo 3, de Isabel, o exportador de ovelhas, cordeiros ou carneiros, na ocorrência da primeira infração, tinha que entregar todos os seus bens para sempre, passar um ano na prisão, e depois disso sofrer a amputação da mão esquerda, em uma cidade em que houvesse mercado, e em um dia de mercado, sendo pregada a mão amputada em local público no mercado; na segunda infração, era julgado o réu de crime capital, sendo, portanto, punido com a morte. Evitar que a raça das nossas ovelhas se propagasse em países estrangeiros, tal parece haver sido o objetivo dessa lei. Os Estatutos 13 e 14, capítulo 18, de Carlos II, decretaram que também a exportação de lã fosse julgada como crime capital, estando o exportador de lã sujeito às mesmas penas e multas de confisco que o réu de crime capital. Em atenção ao senso de humanidade da nação, era de esperar que nenhum desses dois estatutos jamais fosse cumprido. No entanto, até onde sei, o primeiro deles nunca foi diretamente revogado, e o sargento Hawkins parece considerá-lo ainda em vigor. Todavia, talvez ele possa ser considerado como virtualmente revogado pelo Estatuto 12, capítulo 32, sec. 3, de Carlos II, o qual, sem suprimir expressamente as penalidades impostas por estatutos anteriores, estabelece uma nova penalidade, isto é, a de 20 xelins por ovelha exportada ou que se tenha tentado exportar, juntamente com o confisco das ovelhas e da parcela do proprietário do navio. O Estatuto 14 de Carlos II foi expressamente revogado pelos Estatutos 7 e 8, capítulo 28, sec. 4, de Guilherme III, o qual declara: “Considerando que os Estatutos 13 e 14 do Rei Carlos II, contra a exportação de lã, entre outras coisas mencionadas na lei supra, decreta que este ato deva ser considerado crime capital; considerando que, em razão da severidade da pena imposta, o processo dos transgressores não tem sido executado com a devida eficácia, fica estatuído pela autoridade supra que seja revogada e tornada nula a parte do estatuto supra que declara dever ser considerada como crime capital a mencionada infração”. Sem embargo, ainda são suficientemente severas as penalidades impostas por esse Estatuto mais benigno, ou então as que, conquanto impostas por estatutos anteriores, não são revogadas por esse, além do confisco das mercadorias, o exportador incorre na multa de 3 xelins por libra-peso de lã exportada ou que tiver tentado exportar, isto é, aproximadamente quatro ou cinco vezes o valor. Qualquer comerciante ou outra pessoa declarada culpada dessa infração perde a capacidade de exigir, de qualquer agente ou outra pessoa, o pagamento de dívida ou conta a ele pertencente. Seja qual for sua fortuna, se for ele capaz ou não de pagar essas pesadas multas, a lei tenciona arruiná-lo por 136
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completo. Todavia, como a moral do conjunto da população ainda não está tão corrompida como a dos planejadores desse estatuto, ainda não ouvi falar de nenhuma vantagem que se tenha auferido dessa cláusula. Se a pessoa declarada réu dessa infração não for capaz de pagar as multas dentro de três meses depois do julgamento, ela deve ser deportada durante sete anos e, se retornar antes da expiração desse prazo, está sujeita aos castigos impostos ao crime capital, sem benefício do clero. O proprietário do navio que tiver conhecimento dessa infração perde direito ao navio e a seus equipamentos. Ao capitão e aos marujos que tiverem conhecimento dessa infração são confiscados todos os haveres, sendo punidos com três meses de prisão. Um estatuto posterior impõe ao capitão seis meses de prisão. A fim de evitar a exportação, impõe-se a todo o comércio interno de lã restrições bem onerosas e opressivas. A lã não pode ser embalada em caixas, barris, pipas, malas, baús ou qualquer outro tipo de embalagem, mas somente pacotes de couro ou de pano de embalagem nos quais devem estar marcadas, na parte externa, as palavras lã ou fio, em letras grandes, de comprimento não inferior a 3 polegadas, sob pena de ser confiscada a carga e a embalagem com o pagamento de 3 xelins por libra-peso, a serem pagos pelo proprietário ou embalador. A lã só pode ser carregada em cavalo ou carroça, ou transportada por terra dentro de cinco milhas de costa, entre o nascer e o pôr-do-sol, sob pena do confisco da carga, dos cavalos e das carroças. O distrito mais próximo à costa marítima, a partir do qual ou através do qual a lã for transportada ou exportada, paga 20 libras, se o valor da lã for inferior a 10 libras; e, se o valor for acima disto, pagará o triplo desse valor, juntamente com o triplo dos custos a serem judicialmente exigidos dentro de um ano, devendo a execução ser contra dois quaisquer dos habitantes, aos quais as sessões devem reembolsar por uma tributação sobre os outros habitantes, como nos casos de roubo. E se qualquer pessoa fizer um ajuste com o distrito com uma pena inferior a essa, deve sofrer pena de prisão de cinco anos; e qualquer outra pessoa pode instaurar processo. Essas normas têm vigência em todo o reino. Nos condados específicos de Kent e Sussex, porém, as restrições são ainda mais incômodas. Todo proprietário de lã em um raio de dez milhas da costa marítima deve, três dias após a tosquia das ovelhas, enviar um relato escrito ao oficial mais próximo da alfândega, indicando o número de seus velos e o local onde são guardados. E, antes de retirar desse local qualquer quantidade desses velos, deve enviar, igualmente, relatório indicando o número e o peso dos velos, bem como o nome e o domicílio e da pessoa à qual são vendidos, e o lugar para o qual se tenciona transportá-los. No raio de quinze milhas, nenhuma pessoa nos citados condados pode comprar lã, antes de comprometer-se com o rei a não vender a nenhuma outra pessoa, no raio de quinze milhas do mar, qualquer porção de lã assim comprada. Se nos mencionados condados se constatar que a lã está sendo transportada para 137
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a costa marítima, a menos que a mercadoria tenha entrado na alfândega e tenha sido dada a supramencionada segurança, a carga é confiscada e além disso o infrator paga 3 xelins por libra-peso. Se alguém armazenar qualquer lã sem tê-la registrado conforme acima indicado, no raio de quinze milhas do mar, a lã deve ser apreendida e confiscada; e se, depois dessa apreensão, qualquer pessoa reclamar a lã, deverá garantir ao Tesouro que, se for vencido em juízo, pagará o triplo dos custos, além de todas as outras penalidades. Se ao comércio interno se impõe tais restrições, é de crer que o comércio costeiro não pode ter muita liberdade. Todo proprietário de lã que transportar ou fizer transportar qualquer porto ou lugar da costa marítima, para que a lã seja transportada dali, por mar, a qualquer outro lugar ou porto da costa, deve primeiro obter uma autorização nesse sentido no porto do qual tenciona transportar a lã, contendo o peso, as marcas e o número de pacotes, antes de colocá-la a cinco milhas desse porto, sob pena de lhe ser confiscada a carga, bem como os cavalos, carroças e outras carruagens; e, além disso, sofrer as penalidades e as multas estipuladas pelas demais leis em vigor contra a exportação de lã. Contudo, essa lei (Estatuto 1, capítulo 32, de Guilherme III) é tão indulgente, a ponto de declarar que: “isto não impedirá ninguém de transportar sua lã para casa, do lugar da tosquia, ainda que seja no raio de cinco milhas do mar, desde que, dentro de dez dias a contar da tosquia, e antes de remover a lã, de próprio punho, declare ao oficial mais próximo da alfândega o verdadeiro número de velos e o local onde a lã está guardada e não a remova sem antes certificar esse oficial, de próprio punho, sua intenção de removê-la, três dias antes”. É dever dar garantia de que a lã a ser transportada em direção à costa será descarregada no porto específico para o qual foi registrada para fora; e se alguma porção dessa lã for descarregada sem a presença de um oficial, não somente se confisca a lã, como acontece com outras mercadorias, como também se incorre na costumeira a multa adicional de 3 xelins por libra-peso. Os nossos manufatores de lã, no intuito de justificar sua exigência dessas restrições e leis extraordinárias, têm afirmado com segurança que a lã inglesa é de qualidade especial, superior à de qualquer outro país; além disso, asseguraram ser impossível transformar a lã de outros países, sem a ela se misturar lã inglesa, em qualquer artigo manufaturado de qualidade aceitável; que não é possível fazer tecidos de qualidade fina sem lã inglesa; e que, portanto, caso se conseguisse impedir totalmente a exportação de lã inglesa, a Inglaterra poderia monopolizar quase todo o comércio de lã do mundo e, assim, por não ter concorrentes, teria condições de vendê-la ao preço que quisesse, conseguindo em pouco tempo o mais incrível grau de riqueza, através da mais favorável balança comercial. Essa teoria, como a maioria das outras propaladas com segurança por um número considerável de pessoas, foi implicita138
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mente considerada como certa — e continua a ser assim considerada — por um número muito maior; por quase todos aqueles que não estão familiarizados com o comércio da lã ou que não se deram ao trabalho de pesquisar o assunto mais a fundo. Entretanto, é absolutamente falso afirmar que a lã inglesa seja, sob qualquer aspecto, necessária para fazer tecidos finos; pelo contrário, ela não se presta em absoluto para isso. Os tecidos finos são inteiramente feitos de lã espanhola. A lã inglesa nem sequer se presta para ser misturada à lã espanhola de modo a entrar na composição, sem estragar e desvirtuar, até certo ponto, a textura do pano. Na primeira parte desta obra mostrei que o efeito dessas medidas legais foi fazer diminuir o preço da lã inglesa, não somente abaixo do que seria naturalmente o preço atual, mas também muito abaixo do preço efetivo na época de Eduardo III. Segundo se afirma, o preço da lã escocesa foi aproximadamente reduzido à metade, quando ela foi sujeita às mesmas restrições legais, em decorrência da união. O Rev. Sr. John Smith, exatíssimo e inteligentíssimo autor dos Memoirs of Wool, observa que o preço da lã inglesa da melhor qualidade, na Inglaterra, está geralmente abaixo do preço ao qual se costuma vender, no mercado de Amsterdam, uma lã de qualidade muito inferior. O propósito declarado desses regulamentos foi fazer baixar o preço dessa mercadoria abaixo daquilo que se pode denominar seu preço natural e adequado; ora, parece não pairar dúvida alguma de que eles produziram o efeito que deles se esperava. Poder-se-ia talvez pensar que essa redução do preço, pelo fato de desestimular a cultura de lã, deve ter feito diminuir muito a produção anual dessa mercadoria, se não abaixo do nível anterior, pelo menos abaixo daquilo que provavelmente teria sido, nas atuais circunstâncias se, em conseqüência de um mercado aberto e livre, se tivesse deixado o produto atingir o preço natural e adequado. Entretanto, inclino-me a crer que esses regulamentos não podem ter afetado muito a quantidade da produção anual — ainda que a possam ter afetado um pouco. A produção da lã não constitui o objetivo principal que o criador de ovelhas tem em vista ao empregar nisso seu trabalho e seu capital. Ele espera auferir seu lucro, não tanto do preço dos velos de lã, mas antes do preço do carcaça do animal sendo que o preço médio ou normal deste deve até, em muitos casos, compensar-lhe qualquer prejuízo que lhe possa advir no caso de o preço médio ou normal da lã ser mais baixo. Na parte precedente desta obra observei o seguinte: Todas as medidas que tendem a fazer baixar o preço da lã ou dos couros abaixo do que seria o preço natural, devem, em um país desenvolvido e cultivado, tender de alguma forma a aumentar o preço da carne de açougue. O preço do gado, de grande e pequeno porte, que é criado em terras trabalhadas e cultivadas, deve ser suficiente para pagar ao proprietário da terra a renda e ao locatário o lucro que têm o direito de esperar de uma terra tratada e cultivada. Se assim não for, logo deixarão de criar gado. Ora, 139
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toda parcela desse preço que não for paga pela lã e pelo couro deve ser paga pela carcaça. Quanto menos se pagar pela lã e pelo couro, tanto mais se deverá pagar pela carne. Desde que o dono da terra e o arrendatário recebam o preço devido, não lhes interessa de que maneira os componentes do preço são subdivididos entre a lã, o couro e a carne. Por isso, em um país onde as terras são trabalhadas e cultivadas, tanto o interesse dos proprietários da terra como o dos arrendatários não pode ser muito afetado por esses detalhes, embora isso lhes interesse como consumidores, devido ao aumento do preço dos mantimentos. Na linha desse raciocínio, portanto, essa diminuição do preço da lã não é suscetível, em um país desenvolvido e cultivado, de provocar alguma diminuição da produção anual dessa mercadoria, a não ser na medida em que, aumentando o preço da carne de carneiro ela possa diminuir um pouco a demanda desse tipo especial de carne de açougue, e, conseqüentemente, também sua produção. Todavia, mesmo nessa eventualidade, provavelmente não é muito considerável o efeito dessa queda do preço da lã. Talvez se pense, porém, que, conquanto não possa ter sido muito considerável o efeito da queda do preço da lã sobre a quantidade da produção anual, seu efeito sobre a qualidade deve necessariamente ter sido muito grande. Talvez se suponha que a queda da qualidade da lã inglesa, se não abaixo da que era anteriormente, ao menos abaixo da que teria sido naturalmente, na condição atual de desenvolvimento e de cultivo das terras, deve ter sido quase proporcional à queda do preço. É muito natural imaginar que, uma vez que a qualidade depende da raça, das pastagens, do trato e da higiene das ovelhas, durante todo o processo da produção dos velos, a atenção a essas circunstâncias nunca possa ser maior do que em proporção à recompensa que o preço dos velos pode oferecer pelo trabalho e pelo gasto exigido por tal atenção. Ocorre, porém, que a boa qualidade dos velos depende, em grande parte, da saúde, do crescimento e do tamanho do animal; ora, a mesma atenção necessária para melhorar a carcaça do animal é, sob certos aspectos, suficiente para melhorar a qualidade dos velos de lã. Não obstante a diminuição do preço, afirma-se que a lã inglesa melhorou consideravelmente, mesmo no decurso do século atual. Possivelmente, a melhoria teria sido maior se o preço tivesse sido mais compensador; entretanto, ainda que o baixo preço possa ter dificultado a melhoria da qualidade, certamente não a impediu totalmente. Por conseguinte, a violência dessas normas não parece ter afetado a quantidade nem a qualidade da produção anual de lã, tanto quanto se poderia ter esperado (embora pessoalmente eu considere provável que possa ter afetado bem mais a segunda do que a primeira); por outra parte, embora essas medidas possam ter prejudicado até certo ponto o interesse dos produtores de lã, parece que, de um modo geral, esse prejuízo foi muito menos danoso do que se poderia imaginar. Essas considerações, porém, não justificam a proibição absoluta 140
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de exportar lã. Justificam, sim, plenamente a imposição de uma taxa alfandegária considerável a esse tipo de exportação. Lesar, em qualquer grau que seja, os interesses de qualquer categoria de cidadãos, simplesmente para promover os de alguma outra categoria, evidentemente é contrário àquela justiça e igualdade de tratamento que o soberano deve dispensar a todas as categorias de seus súditos. Mas a referida proibição, certamente lesa, em certo grau, os interesses dos produtores de lã, simplesmente para favorecer aos interesses dos manufatores. Todas as categorias de cidadãos estão obrigadas a contribuir para a manutenção do soberano ou do Estado. Uma taxa de 5 ou até de 10 xelins na exportação de cada tod5 de lã geraria uma renda bem considerável para o soberano. Ela lesaria os interesses dos produtores de lã um pouco menos do que a proibição, pois, provavelmente, não faria baixar tanto o preço da lã. Ela asseguraria uma vantagem suficiente para o manufator, pois, embora não podendo ele comprar sua lã tão barato como quando da proibição de exportar, mesmo assim teria condições de comprá-la, no mínimo, 5 ou 10 xelins mais barato do que qualquer manufator estrangeiro, além de economizar o frete e o seguro que os manufatores estrangeiros seriam obrigados a pagar. Dificilmente se pode imaginar outra taxa que pudesse gerar uma renda considerável para o soberano e que, ao mesmo tempo, acarretasse inconvenientes tão insignificantes para quem quer que seja. A proibição, a despeito de todas as penalidades que pretendem garantir seu cumprimento, não impede a exportação de lã. Como se sabe, ela é exportada em grandes quantidades. A grande diferença entre o preço no mercado interno e no mercado externo representa uma tentação tão grande para o contrabando que nem mesmo todo o rigor da lei consegue impedir a exportação. Essa exportação ilegal só traz vantagem para o contrabandista. Ao contrário, uma exportação legal sujeita a uma taxa alfandegária, que proporciona uma renda para o soberano e, com isso, poupa a imposição de algumas outras taxas ou impostos, talvez mais onerosos e inconvenientes, poderia ser vantajosa para todas as diversas categorias do Estado. À exportação de greda ou argila de pisoeiro, produto supostamente necessário para preparar e limpar as manufaturas de lã, foram impostas mais ou menos as mesmas penalidades que a exportação de lã. Mesmo a argila para cachimbo de fumantes, embora reconhecidamente se diferencie da greda de pisoeiro, apesar disso, em virtude da semelhança entre as duas, e porque a greda de pisoeiro pode, às vezes, ser exportada como argila para cachimbo de fumantes, foi sujeita às mesmas proibições e penalidades. Os Estatutos 13 e 14, capítulo 7, de Carlos II, proibiram a exportação não somente de couros crus, como também de couro curtido, a não ser na forma de botas, sapatos ou chinelos; e a lei deu um 5
Antiga medida inglesa de peso usada para a lã, equivalente a cerca de 28 libras. (N. do T.) 141
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monopólio aos nossos sapateiros, tanto de botas como de sapatos, não somente contra nossos criadores de gado, mas também contra nossos curtidores. Em virtude de estatutos posteriores, os próprios curtidores ficaram isentos desse monopólio, com o pagamento de um pequeno imposto de apenas 1 xelim sobre 112 libras de couro curtido. Obtiveram também drawback de 2/3 dos impostos de consumo prescritos para a sua mercadoria, mesmo exportando sem ulterior manufatura. Todas as manufaturas de couro podem ser exportadas sem pagar direitos alfandegários, e o exportador além disso tem o direito ao reembolso de todos os impostos de consumo. Nossos criadores de gado continuam ainda sujeitos ao antigo monopólio. Os criadores de gado, separados uns dos outros, e dispersos por todos os cantos do país, só com grandes dificuldades conseguem associar-se, quer para impor monopólios aos seus concidadãos, quer para livrar-se de monopólios que lhes foram impostos por outros. Ao contrário, os manufatores de todos os tipos, associados em numerosas entidades em todas as cidades grandes, têm essa facilidade. Até a exportação de chifres de gado é proibida, sendo que as duas profissões insignificantes de fabricante de objetos de chifre e de fabricante de pentes desfrutam, sob esse aspecto, de um monopólio contra os criadores de gado. As restrições, seja através de proibições, seja através de taxas aduaneiras, à exportação de mercadorias manufaturadas apenas parcialmente, não se limitam à manufatura de couro. Enquanto restar algo a ser feito para colocar alguma mercadoria em condições de uso e consumo imediatos, nossos manufatores pensam que cabe a eles fazêlo. A exportação de fio de lã e fio de lã penteado é proibida sob as mesmas penas que a da lã. Até os tecidos brancos estão sujeitos a uma taxa na exportação e, sob esse aspecto, nossos tintureiros conseguiram um monopólio contra nossos fabricantes de roupas. Estes últimos provavelmente teriam podido defender-se contra esse monopólio, mas acontece que a maioria dos nossos principais fabricantes de roupas são também tintureiros. Proibiu-se a exportação de caixas de relógios de parede e de bolso, estojos de relógios e mostradores de relógios de parede e de bolso. Ao que parece, nossos fabricantes de relógios de bolso e de parede não querem que o preço desses artefatos aumente em virtude da concorrência estrangeira. Por força de alguns antigos estatutos de Eduardo III, Henrique VIII e Eduardo VI, fora proibida a exportação de todos os metais. Excetuavam-se apenas o chumbo e o estanho, provavelmente em decorrência da grande abundância deles; aliás, era na exportação desses metais que consistia a maior parte do comércio do reino, naquela época. Para estimular a mineração, o Estatuto 5, capítulo 17, de Guilherme e Maria, isentou dessa proibição o ferro, o cobre e a pirita metálica feita de minério britânico. Posteriormente, os Estatutos 9 e 10, capítulo 26, de Guilherme III, permitiram a exportação de todos os tipos de barras de cobre, tanto estrangeiras como britânicas. Ainda continua proibida a exportação de latão, não manufaturado, do assim chamado 142
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bronze de canhão, sinos de amálgama de cobre e estanho e metal para detectar moeda falsa. Os manufaturados de latão de todos os tipos podem ser exportados isentos de taxas aduaneiras. A exportação de materiais para manufaturas, quando não é inteiramente proibida, fica em muitos casos sujeita a taxas alfandegárias consideráveis. O Estatuto 8, capítulo 15, de Jorge I, isentou totalmente de taxas a exportação de todas as mercadorias produzidas ou manufaturadas na Grã-Bretanha, às quais estatutos anteriores tinham imposto quaisquer taxas. Foram excetuadas, porém, as seguintes mercadorias: alume, chumbo, minério de chumbo, sulfato ferroso, carvão, cardas, couro curtido, tecidos brancos de lã, lapis calaminaris, peles de todos os tipos, cola, pele ou lã de coelho, lã de lebre, pêlos de todos os tipos, cavalos, e litargírio de chumbo. Se excetuarmos os cavalos, todos os itens citados constituem materiais para manufatura, ou manufaturas inacabadas (que podem ser consideradas como materiais para manufatura ulterior) ou então instrumentos de comércio. O mencionado estatuto os deixa sujeitos a todas as antigas taxas a eles já impostas, o antigo subsídio e 1% de imposto de exportação. O mesmo estatuto isenta a importação de um grande número de corantes estrangeiros de todas as taxas. Entretanto, a exportação de cada um deles é posteriormente sujeita a uma certa taxa, não muito alta, na verdade. Ao que parece, os nossos tintureiros, ao mesmo tempo que consideravam de seu interesse estimular a importação desses corantes, com isenção de todas as taxas, acreditavam ser também de seu interesse desestimular um pouco sua exportação. Entretanto, a avidez que sugeriu esse ato incomum de perspicácia mercantil muito provavelmente desapontou os interessados. Inevitavelmente, a medida ensinou os importadores a serem mais cuidadosos do que, caso contrário, poderiam ter sido, para que sua importação não superasse o necessário para suprir o mercado interno. A medida havia de ter como conseqüência provável um abastecimento mais escasso do mercado interno; além disso, sempre havia a probabilidade de que as mercadorias fossem um pouco mais caras do que o teriam sido se a liberdade de exportar fosse tão livre como a de importar. Em virtude do mencionado estatuto, a goma arábica, pelo fato de figurar entre os corantes enumerados, podia ser importada sem taxas alfandegárias. Na verdade estavam sujeitas a uma pequena taxa por libra esterlina de apenas 3 pence por 100 libras na reexportação. Naquela época, a França detinha o comércio exclusivo com a região que mais produzia esses artigos, a que fica nas proximidades do Senegal, sendo que o mercado britânico não podia abastecer-se facilmente com a importação direta deles do local de produção. Por isso, o Estatuto 25 de Jorge II permitiu importar goma arábica (contrariando as disposições gerais da lei sobre navegação) de qualquer parte da Europa. Todavia, uma vez que a lei não tencionava encorajar esse tipo de comércio, tão contrário aos princípios gerais da política mercantil da 143
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Inglaterra, impôs uma taxa de 10 xelins por 112 libras na sua importação, e na reexportação não concedia nenhum reembolso das taxas pagas na importação. O êxito obtido na guerra iniciada em 1755 deu à Grã-Bretanha o mesmo direito exclusivo de comércio com essas regiões de que a França desfrutava anteriormente. Tão logo sobreveio a paz, nossos manufatores procuraram valer-se dessa vantagem e criar um monopólio a seu favor, tanto contra os cultivadores como contra os importadores desta mercadoria. Por isso, o Estatuto 5, capítulo 37, de Jorge III, limitou à Grã-Bretanha a exportação de goma arábica dos domínios de Sua Majestade na África, sendo esse artigo sujeito a todas as mesmas restrições, regulamentos, confiscos e penalidades que a exportação das mercadorias enumeradas das colônias britânicas na América e nas Índias Ocidentais. Sua importação, de fato, foi sujeita a uma pequena taxa de 6 pence por 100 libras, mas sua reexportação à enorme taxa de £ 1, 10 s por 112 libras. A intenção dos nossos manufatores era que toda a produção desses países fosse importada pela Grã-Bretanha e, para que eles pudessem comprá-la a seu próprio preço, que nenhuma parte dela fosse reexportada, a não ser a um custo que desestimulasse tal exportação. Como em muitas outras ocasiões, porém, também essa avidez deles lhes resultou em desilusão. Essa exorbitante taxa imposta à exportação representava uma tentação tão grande para o contrabando que se exportaram clandestinamente grandes quantidades do produto, provavelmente a todos os países manufatores da Europa, mas particularmente à Holanda, não somente da Grã-Bretanha, mas também da África. Por esse motivo, o Estatuto 14, capítulo 10, de Jorge III, reduziu essa taxa de exportação a 5 xelins por 112 libras. No Livro de Tarifas, segundo o qual se recolhia o antigo subsídio, as peles de castor eram estimadas a 6 xelins e 8 pence por peça, e os diversos subsídios e tarifas que haviam sido impostos à sua importação antes de 1722 ascendiam à 1/5 da tarifa, ou seja, a 16 pence por peça, sendo que na exportação se reembolsava o total, excetuada a metade do antigo subsídio, representando apenas 2 pence. Essa taxa imposta à importação de materiais tão importante para as manufaturas havia sido considerada muito elevada e, no ano de 1722, a taxa foi reduzida a 2 xelins e 6 pence, o que reduzia a taxa de importação a 6 pence, sendo que disso somente a metade tinha que ser reembolsada na exportação.6 O êxito obtido na mesma guerra colocou o maior país produtor de castores sob o domínio da Grã-Bretanha e, figurando as peles de castor entre as mercadorias enumeradas, sua exportação da América foi conseqüentemente limitada ao mercado da Grã-Bretanha. Logo os nossos manufatores pensaram na vantagem que poderiam auferir dessa circunstância e, no ano de 1764, a taxa sobre a importação de peles de castor foi reduzida a 1 pêni, mas a taxa de reexportação foi aumentada para 6 pence por pele, sem nenhum reembolso da taxa cobrada 6
Estatuto 8. capítulo 15, de Jorge I. 144
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na importação. A mesma lei impôs uma taxa de 18 pence por libra-peso à exportação de lã de castor ou pentes, sem fazer nenhuma alteração na taxa de importação dessa mercadoria, a qual, quando importada por cidadãos britânicos e em navios britânicos, na época representava entre 4 e 5 pence por peça. O carvão pode ser considerado tanto como material de manufatura como instrumento de comércio. Em razão disto, impuseram-se taxas onerosas à sua exportação, que atualmente (1783) montam a mais de 5 xelins por tonelada, ou a mais de 15 xelins por chaldron;7 medida de Newcastle — o que, na maioria dos casos, representa mais do que o valor original da mercadoria na mina de carvão, ou mesmo no porto de embarque para exportação. Contudo, a exportação de instrumentos de trabalho propriamente ditos é comumente restringida, não por altas taxas, mas por proibições absolutas. Assim, os Estatutos 7 e 8, capítulo 20, sec. 8, de Guilherme III, proíbem a exportação de caixilhos ou engenhos para tecer luvas ou meias, sob pena não somente do confisco desses caixilhos ou engenhos que se tenha exportado ou tentado exportar, mas também de uma multa de 40 libras, destinando-se a metade desse valor ao rei e a outra a quem informar ou mover processo. Da mesma forma, o Estatuto 14, capítulo 71, de Jorge III, proíbe a exportação, a países estrangeiros, de quaisquer utensílios utilizados nas manufaturas de algodão, linho, lã e seda, sob pena, não somente de confisco desses utensílios, mas também do pagamento de 200 libras, a serem desembolsadas pela pessoa que cometer a infração e outras 200 a serem pagas pelo capitão do navio que, tendo conhecimento do fato, admitir que seu navio receba a bordo tal mercadoria. Se à exportação de instrumentos de trabalho inanimados se impuseram penalidades tão pesadas, não se poderia esperar que fosse livre a exportação do instrumento vivo, o artífice. Eis por que, segundo o Estatuto 5, capítulo 27, de Jorge I, quem for declarado culpado de induzir qualquer artífice britânico ou qualquer cidadão empregado em qualquer manufatura da Grã-Bretanha, a deslocar-se para qualquer país estrangeiro, a fim de praticar ou ensinar sua profissão, na primeira infração estará sujeito a pagar qualquer multa até 100 libras e a 3 meses de prisão até o pagamento da multa; na segunda infração, o réu poderá estar sujeito a qualquer multa, a critério do tribunal, e ser condenado à prisão durante 12 meses, até o pagamento da multa. O Estatuto 23, capítulo 13, de Jorge II, agrava a penalidade: na primeira infração, para 500 libras para cada artífice assim induzido e para 12 meses de prisão, até o pagamento da multa; e na segunda infração, para 1 000 libras e para 2 anos de prisão, até o pagamento da multa. De acordo com o primeiro dos citados estatutos, comprovando-se que qualquer pessoa induziu algum artífice ou que algum artífice pro7
Medida de capacidade para o carvão, equivalente a 36 bushels. (N. do T.) 145
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meteu ou assumiu o compromisso de ir ao exterior para o referido fim, tal artífice pode ser obrigado a apresentar garantia, a critério da Corte, de que não atravessará os mares, podendo ser punido com prisão até apresentar tal garantia. Se algum artífice atravessou os mares e estiver exercendo ou ensinando sua profissão em qualquer país estrangeiro, e qualquer dos agentes de Sua Majestade ou de seus cônsules no exterior, ou ainda um dos secretários de Estado de Sua Majestade no momento o tiver advertido, e ele não voltar ao reino dentro de 6 meses a partir da advertência, e se, a partir de então, não residir e permanecer constantemente domiciliado no reino, a partir desse momento será declarado incapaz de receber qualquer legado ou herança a ele adjudicado dentro do reino, ou de ser executor testamentário ou administrador de qualquer pessoa, ou de receber quaisquer terras, dentro do reino, em virtude de descendência, testamento ou compra. Além disso, ser-lhe-ão confiscadas, em benefício do rei, todas as terras, bens e haveres e ele será declarado alienígena sob todos os aspectos, sendo excluído da proteção do rei. Considero supérfluo observar que tais medidas contrariam fundamentalmente a tão decantada liberdade dos cidadãos, da qual aparentamos ser tão ciosos — liberdade essa que nesse caso, contudo, é totalmente sacrificada aos interesses fúteis dos nossos comerciantes e manufatores. O motivo elogiável de todas essas medidas legais é ampliar nossas próprias manufaturas, não por meio do seu próprio aperfeiçoamento, mas depreciando as manufaturas de todos os nossos vizinhos, e pondo fim, na medida do possível, à molesta concorrência de rivais odiosos e desagradáveis. Nossos mestres manufatores consideram razoável possuírem eles mesmos o monopólio da perspicácia de todos os seus concidadãos. Embora, por limitarem em algumas profissões o número de aprendizes que podem ser empregados de uma vez, e por imporem a necessidade de longo aprendizado em todas as profissões, todos eles procurem restringir o conhecimento de seus respectivos ofícios ao mínimo possível de pessoas; não obstante isto, não querem que qualquer parte desse pequeno contingente vá instruir estrangeiros no Exterior. O consumo é o único objetivo e propósito de toda a produção, ao passo que o interesse do produtor deve ser atendido somente na medida em que possa ser necessário para promover o interesse do consumidor. O princípio é tão óbvio que seria absurdo tentar demonstrá-lo. Ora, no sistema mercantil, o interesse do consumidor é quase constantemente sacrificado ao do produtor e, ao que parece, ele considera a produção, não o consumo, como fim e objetivo precípuos de toda atividade e comércio. Nas restrições à importação de todas as mercadorias estrangeiras que possam vir a competir com as de nossa própria produção ou manufatura, o interesse do consumidor interno é evidentemente sacrificado em favor do interesse do produtor. É totalmente em benefício deste último que o consumidor é obrigado a pagar o aumento de preço quase sempre provocado por esse monopólio. 146
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É completamente em benefício do produtor que se concedem subsídios à exportação de alguns de seus produtos. O consumidor interno é obrigado a pagar, primeiro, a taxa necessária para cobrir o subsídio e, segundo, o imposto ainda maior que necessariamente deriva do aumento do preço da mercadoria no mercado interno. Em virtude do célebre tratado de comércio com Portugal, impede-se o consumidor, mediante altas taxas, de comprar de um país vizinho uma mercadoria que o nosso próprio clima não tem condições de produzir, sendo obrigado a comprá-la de um país distante, embora se reconheça que a mercadoria do país distante é de qualidade inferior à do país próximo. O consumidor interno é obrigado a submeter-se a esse inconveniente, a fim de que o produtor possa introduzir em país distante alguns de seus produtos a preços mais vantajosos do que de outra forma poderia fazê-lo. Além disso, o consumidor é obrigado a pagar qualquer aumento do preço desses mesmos produtos que essa exportação forçada possa provocar no mercado interno. No sistema de leis estabelecido para a administração de nossas colônias americanas e das Índias Ocidentais, o interesse do consumidor interno tem sido sacrificado em benefício do interesse do produtor, muito mais do que em todos os demais regulamentos comerciais. Implantou-se um grande império para o único fim de criar uma nação de clientes obrigados a comprar nas lojas dos nossos diversos produtores todas as mercadorias que estes possam fornecer-lhes. Em atenção a esse pequeno aumento de preço que o referido monopólio poderia proporcionar aos nossos produtores, tem-se onerado os consumidores internos com toda a despesa para a manutenção e defesa daquele império. Para esse fim, e somente para ele, nas duas últimas guerras, gastaram-se mais de 200 milhões, contraindo-se uma nova dívida de mais de 170 milhões, além de tudo aquilo que se gastara em guerras anteriores, com a mesma finalidade. Os juros dessa dívida, por si sós, ultrapassam não somente todo o lucro extraordinário que jamais se teria imaginado auferir com o monopólio do comércio colonial, mas também o valor integral desse comércio ou o valor total das mercadorias em média exportadas anualmente às colônias. Não parece muito difícil determinar quem foram os planejadores de todo esse sistema mercantil: podemos crer que não foram os consumidores, cujos interesses vêm sendo totalmente negligenciados, mas os produtores, cujos interesses têm sido atendidos com tanto cuidado; e entre a categoria dos produtores, nossos comerciantes e manufatores têm sido, de longe, os principais arquitetos. Nos regulamentos mercantis comentados neste capítulo, atendeu-se mais particularmente ao interesse dos nossos manufatores; e o interesse, não tanto dos consumidores, mas de algumas outras categorias de produtores, a ele foi sacrificado.
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CAPÍTULO IX Os Sistemas Agrícolas ou os Sistemas de Economia Política que Representam a Produção da Terra como a Fonte Única ou a Fonte Principal da Renda e da Riqueza de cada País
Os sistemas agrícolas de Economia Política não exigirão uma explanação tão longa quanto considerei necessário dedicar ao sistema mercantil ou comercial. O sistema que representa a produção da terra como a única fonte da renda e da riqueza de cada país, tanto quanto sei, nunca foi adotado por nenhuma nação e atualmente só existe nas especulações de algumas poucas pessoas da França dotadas de grande erudição e talento. Certamente, não valeria a pena examinar à saciedade os erros de um sistema que nunca trouxe nem provavelmente nunca trará nenhum prejuízo em parte alguma do mundo. Não obstante isso, procurarei explicar, da maneira mais clara que puder, as linhas gerais desse sistema tão engenhoso. O Sr. Colbert, famoso ministro de Luís XIV, era homem probo, de grande atividade e de grande conhecimento de detalhes, bem como de grande experiência e acuidade no exame das coisas públicas, em resumo, de habilidades extremamente adequadas para metodizar e bem ordenar o recolhimento e o gasto da renda pública. Infelizmente, esse ministro havia aceito todos os preconceitos do sistema mercantil, por sua natureza e essência um sistema de restrições e normas que dificilmente poderia deixar de agradar a um homem de negócios laborioso e diligente acostumado a ordenar os diversos departamentos das repartições públicas e a determinar os necessários controles e verificação para confinar cada um deles a sua própria esfera. Quanto à atividade e ao comércio de um grande país, procurou regulá-los segundo o mesmo modelo dos departamentos de uma repartição pública; e, em vez de deixar a cada um atender a seu próprio interesse à sua maneira, na linha liberal de igualdade, liberdade e justiça, conferiu a determinados 149
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setores de atividade privilégios extraordinários, submetendo outros a restrições igualmente extraordinárias. Ele não somente estava disposto, como outros ministros europeus, a estimular mais a atividade das cidades do que a do campo, senão que, com o fim de apoiar a atividade das cidades, chegava até mesmo a aviltar e manter baixa a atividade agrícola. Para tornar barato o preço dos mantimentos para os habitantes das cidades e assim estimular as manufaturas e o comércio exterior, proibiu inteiramente a exportação de cereais, excluindo dessa forma os mercadores do campo de todo mercado externo, para a parte sem dúvida mais importante da produção do trabalho agrícola. Essa proibição, associada às restrições impostas pelas antigas leis provinciais da França ao transporte de cereais de uma província à outra, e aos tributos arbitrários e degradantes impostos aos cultivadores em quase todas as províncias, desestimulou a agricultura da França, mantendo-a muito mais abaixo do nível que naturalmente teria atingido, em se tratando de um solo tão fértil e com um clima tão propício para a agricultura. Esse desestímulo e esse desânimo foram ressentidos, em grau maior ou menor, em cada região do país, tendo sido efetuadas muitas pesquisas para averiguar as causas desse estado de coisas. Constatou-se que uma dessas causas era a preferência dada pelas instituições do Sr. Colbert à atividade das cidades, em relação à do campo. Segundo diz o provérbio, “se a vara estiver inclinada demais para um lado, se quisermos retificá-la é preciso dobrá-la para o lado oposto, em grau igual ao da inclinação anterior”. Os filósofos franceses, que propuseram o sistema que representa a agricultura como única fonte da renda e da riqueza de cada país, parecem ter adotado esse princípio do provérbio; e, assim como, no plano do Sr. Colbert, a atividade das cidades certamente foi supervalorizada em comparação com a do campo, da mesma forma, no sistema deles, a atividade das cidades parece ser seguramente subvalorizada. Esses filósofos dividem em três classes as diversas categorias de pessoas que supostamente jamais contribuíram sob qualquer aspecto para a produção anual da terra e do trabalho do país. A primeira categoria é dos proprietários de terra. A segunda é a dos cultivadores, dos arrendatários e dos trabalhadores do campo, que esses filósofos honram com a denominação especial de classe produtiva. A terceira é a classe dos artífices, manufatores e comerciantes, que eles procuram aviltar com a denominação humilhante de classe estéril ou improdutiva. A categoria dos proprietários de terra contribui para a produção anual através da despesa que ocasionalmente podem investir na melhoria da terra, nas construções, em obras de drenagem, cercas e outras benfeitorias, que podem efetuar ou manter na terra, e que possibilitam aos cultivadores, com o mesmo capital, obterem uma produção maior e, conseqüentemente, pagar uma renda maior. Essa renda pode ser considerada como os juros ou lucro devidos ao proprietário pelo gasto ou capital que ele assim aplica na melhoria de sua terra. Nesse sistema, tais despesas são denominadas despesas fundiárias (dépenses foncières). 150
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Os cultivadores ou lavradores contribuem para a produção anual com o que nesse sistema se denomina despesas originais e anuais (dépenses primitives et dépenses anuelles), que investem no cultivo da terra. As despesas originais consistem nos instrumentos agrícolas, no capital em gado, nas sementes e na manutenção da família do lavrador, dos empregados e do gado, no mínimo durante grande parte do primeiro ano de sua ocupação ou até poderem receber algum retorno da terra. As despesas anuais consistem nas sementes, no desgaste dos instrumentos agrícolas e na manutenção anual dos trabalhadores e do gado do arrendatário, bem como na de sua família, na medida em que alguma parte dela possa ser considerada como empregados responsáveis pelo cultivo da terra. A parcela de produção da terra que resta ao arrendatário após pagar ele a renda da terra deve ser suficiente, primeiro, para repor-lhe, dentro de um prazo razoável, no mínimo durante o prazo de sua ocupação, todas as suas despesas originais, juntamente com os lucros normais do capital; e, em segundo, para repor-lhe anualmente o total de suas despesas anuais, também estas juntamente com os lucros normais do capital. Esses dois tipos de despesas são dois capitais que o arrendatário aplica no cultivo; e, se não lhe forem regularmente repostos com um lucro razoável, o arrendatário não tem condições de desenvolver sua atividade em pé de igualdade com outras ocupações, senão que, atendendo a seu próprio interesse, terá que abandonar o mais cedo possível seu ofício e procurar outro. Por conseguinte, a parte da produção da terra assim necessária para possibilitar ao arrendatário continuar seu negócio, deve ser considerada como um fundo sagrado para o cultivo que, se o proprietário da terra violar, necessariamente reduz a produção de sua própria terra, e em poucos anos fará com que o arrendatário seja incapaz de pagar, não somente essa renda extorsiva, mas também a renda razoável que de outra forma poderia ter conseguido para sua terra. A renda que pertence exclusivamente ao dono da terra não é mais do que a produção líquida que resta depois do pagamento total de todas as despesas necessárias que devem previamente ser contraídas para se obter a produção bruta, ou seja, a produção total. É pelo fato de o trabalho dos cultivadores, além de pagar completamente todas essas despesas necessárias, proporcionar uma produção líquida desse gênero, que essa categoria de pessoas merece, nesse sistema, a distinção específica de ser denominada com a designação honrosa de classe produtiva. Pela mesma razão, nesse sistema, as suas despesas originais e anuais se denominam despesas produtivas pois, além de reporem seu próprio valor, geram a reprodução anual dessa produção líquida. Também as assim chamadas despesas fundiárias, ou seja, o que o proprietário investe na melhoria de sua terra, são também nesse sistema honradas com a designação de despesas produtivas. Até não se ter reposto inteiramente ao dono, através da renda adiantada que este recebe pelo uso de sua terra, o total dessas despesas, juntamente com o lucro normal do capital, essa renda adiantada deve ser consi151
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derada sagrada e inviolável, tanto pela Igreja como pelo rei; não deve estar sujeita nem a dízimo nem a impostos. Se assim não fosse, ao desestimular o aprimoramento da terra, a Igreja desestimularia o aumento ulterior de seus próprios dízimos e o rei desestimularia o futuro aumento de seus próprios impostos. Por conseguinte, uma vez que, em uma ordem de coisas bem organizada, essas despesas fundiárias, além de reproduzir da maneira mais completa seu próprio valor, também geram, depois de algum tempo, uma reprodução de uma produção, líquida, também elas são, nesse sistema, consideradas despesas produtivas. Entretanto, as despesas fundiárias do proprietário da terra, juntamente com as despesas primitivas e anuais do arrendatário, constituem os únicos três tipos de despesas que, nesse sistema, são consideradas produtivas. Todas as demais despesas e todas as demais classes de pessoas, mesmo as que no entendimento geral são tidas como as mais produtivas, nessa concepção, são apresentadas como totalmente estéreis e improdutivas. Em particular, os artífices e os manufatores, cuja atividade, no consenso geral, aumenta tanto o valor da produção bruta da terra, são nesse sistema representados como uma categoria de pessoas totalmente estéreis e improdutivas. Afirma-se que seu trabalho repõe apenas o capital que lhes dá emprego, juntamente com seu lucro normal. Esse capital consiste nos materiais, ferramentas e salários, que lhes são adiantados pelos seus empregadores, constituindo o fundo destinado a lhes dar emprego e sustento. Seus lucros constituem o fundo destinado para a manutenção de seu empregador. Assim como seu empregador lhes adianta o capital em materiais, ferramentas e salários necessários para dar-lhes emprego, da mesma forma que ele adianta a si mesmo o que é necessário para sua própria manutenção, manutenção essa que ele costuma proporcionar ao lucro que espera auferir do preço do serviço deles. Se o seu preço não repuser ao empregador a manutenção que ele adianta a si mesmo, bem como os materiais, ferramentas e salários que ele adianta a seus trabalhadores, evidentemente não lhe repõe o gasto integral que investe nesse preço. Por conseguinte, os lucros do capital de manufatura não constituem, como a renda da terra, um produto líquido que resta após o pagamento completo de toda a despesa que precisa ser investida para obtê-los. O capital do arrendatário lhe proporciona um lucro assim como o faz o capital do mestre manufator, e também proporciona uma renda a uma outra pessoa, o que não acontece com o capital do mestre manufator. Portanto, a despesa investida em dar emprego e manter os artífices e manufatores não faz mais do que manter, se assim se pode dizer, a continuidade de seu próprio valor, porém sem produzir qualquer novo valor. Por isso, é uma despesa totalmente estéril e improdutiva. Ao contrário, a despesa investida em empregar os arrendatários e os trabalhadores do campo, além de manter a continuidade de seu próprio valor, produz um valor novo, a renda do dono da terra, sendo portanto uma despesa produtiva. 152
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O capital mercantil é igualmente estéril e improdutivo, como o capital de manufatura. Ele apenas mantém a continuidade de seu próprio valor, sem produzir nenhum valor novo. Seu lucro constitui apenas o reembolso sustento que seu empregador adianta a si mesmo durante o tempo em que aplica, ou até receber os retornos dele. Constitui apenas a reposição de parte da despesa que precisa ser investida para aplicar o capital. O trabalho dos artífices e manufatores nunca acrescenta nada ao valor do montante anual total da produção bruta da terra. Acrescenta, sem dúvida, muito ao valor de alguns itens específicos dessa produção. Todavia, o consumo que nesse meio tempo ele gera de outros itens é exatamente igual ao valor que acrescenta a esses itens, de sorte que, em momento algum, o trabalho faz aumentar, por mínimo que seja, o valor do montante total. Por exemplo, a pessoa que faz o laço de um par de rufos finos pode às vezes aumentar o valor de uma peça de linho de um pêni para 30 libras esterlinas. Conquanto, porém, à primeira vista ela pareça aumentar com isto o valor de um item da produção bruta, aproximadamente 7 200 vezes, na realidade nada acrescenta ao valor do montante anual total da produção bruta. A execução desse laço talvez lhe custe dois anos de trabalho. As 30 libras que ela recebe pelo produto acabado não passam do reembolso do sustento que ela adianta a si mesma durante os dois anos em que trabalhou. O valor que ela acrescenta ao linho com o trabalho de cada dia, de cada mês ou de cada ano, nada mais faz do que repor o valor de seu próprio consumo, durante aquele dia, mês ou ano. Por isso, em momento algum ela acrescenta o que quer que seja ao valor do montante anual total da produção bruta da terra, já que a porção dessa produção que ela consome continuamente é sempre igual ao valor que ela está continuamente produzindo. A extrema pobreza da maior parte das pessoas empenhadas nessa manufatura cara mas insignificante é suficiente para convencer-nos de que o preço de seu trabalho, em casos normais, não supera o valor da subsistência dessas pessoas. Outro é o caso com o trabalho dos arrendatários e trabalhadores do campo. A renda do dono da terra é valor que, em casos normais, está produzindo continuamente, além de repor, da maneira mais completa, todo o consumo, a despesa total investida no emprego e no sustento, tanto dos trabalhadores como do seu empregador. Os artífices, manufatores e comerciantes podem aumentar a renda e a riqueza de seu país somente pela parcimônia, ou seja, na linguagem desse sistema, pela privação, ou, como está expresso nesse sistema, privando-se de parte dos fundos destinados à sua própria subsistência. Anualmente eles não reproduzem outra coisa senão esses fundos, a menos que anualmente se privem de desfrutar de alguma porção deles, seu trabalho jamais poderá aumentar, mesmo em grau mínimo, a renda e a riqueza de seu país. Ao contrário, os arrendatários e os trabalhadores do campo podem desfrutar inteiramente do total dos fundos destinados à sua própria subsistência e também aumentar, 153
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ao mesmo tempo, a renda e a riqueza de seu país. Além do que se destina à sua própria subsistência, seu trabalho proporciona anualmente uma produção líquida cujo aumento necessariamente eleva a renda e a riqueza de seu país. Por isso, nações que, como a França ou a Inglaterra, constam em grande parte de proprietários de terras e de cultivadores, podem enriquecer trabalhando e desfrutando. Ao contrário, nações que, como a Holanda e Hamburgo, são constituídas sobretudo de comerciantes, artífices e manufatores, só podem enriquecer pela parcimônia e pela privação. Assim como é muito diferente o interesse de nações de características muito diversas, também é muito diferente o caráter comum dos povos. Entre os povos do primeiro tipo, a liberalidade, a franqueza e o bom companheirismo constituem naturalmente um traço do caráter normal. Nos do segundo tipo, encontramos a estreiteza de pontos de vista, a mesquinhez, e uma inclinação ao egoísmo, adversas a todo prazer e satisfação sociais. A classe improdutiva, a dos comerciantes, artífices e manufatores, é mantida e empregada exclusivamente às expensas das duas outras classes, a dos proprietários e a dos cultivadores de terra. São estes que lhes fornecem tanto os materiais com que trabalham, quanto os fundos para sua subsistência, os cereais e o gado que a classe improdutiva consome em seu trabalho. Em última análise, os proprietários e os cultivadores de terra pagam tanto os salários de todos os trabalhadores da classe improdutiva como os lucros de todos os que a eles dão emprego. Esses operários e seus empregadores são na verdade os servos dos proprietários e cultivadores de terra. São apenas criados que trabalham fora de casa, assim como os criados domésticos trabalham dentro de casa. No entanto, uns e outros são mantidos às custas dos mesmos patrões. É igualmente improdutivo o trabalho de ambos. Esse trabalho nada acrescenta ao valor total da produção natural da terra. Em vez de aumentar o valor desse total, é um encargo e uma despesa cujo pagamento tem que vir da terra. Entretanto, a classe improdutiva é não somente útil, mas altamente útil para as duas outras classes. Mediante a atividade dos comerciantes, artífices e manufatores, os proprietários e cultivadores de terra podem comprar tanto as mercadorias estrangeiras como a produção manufaturada de seu próprio país de que têm necessidade, e isto com a produção de uma quantidade de seu próprio trabalho muito menor do que a quantidade que seriam obrigados a despender, se tentassem, de forma ineficiente e inábil, importar as mercadorias estrangeiras ou manufaturar as mercadorias nacionais para seu próprio uso. Por meio da classe improdutiva, os cultivadores são liberados de muitas preocupações que de outra forma desviariam sua atenção do cultivo da terra. A superioridade da produção que, em conseqüência dessa atenção concentrada, eles têm condições de aumentar é plenamente suficiente para pagar toda a despesa que a manutenção e o emprego da classe improdutiva acarretam tanto para os proprietários como para os cultivadores de terra. A atividade dos comerciantes, artífices e ma154
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nufatores, embora por sua própria natureza seja totalmente improdutiva, ainda assim contribui indiretamente para aumentar a produção da terra. Ela aumenta as forças produtivas da mão-de-obra produtiva, deixando-a livre para limitar-se à sua ocupação apropriada, o cultivo da terra; assim sendo, a aração da terra geralmente se torna mais fácil e melhor, graças à colaboração daqueles cuja ocupação é bem outra que a de arar a terra. Os proprietários e cultivadores de terra jamais podem ter interesse em limitar ou desestimular, sob qualquer aspecto, a atividade dos comerciantes, artífices e manufatores. Quanto maior for a liberdade de que desfruta essa classe improdutiva, tanto maior será a concorrência em todos os diversos setores que a compõem, e tanto mais baratas serão as mercadorias tanto estrangeiras como de manufatura do próprio país com as quais as duas outras categorias poderão abastecer-se. Tampouco pode a classe improdutiva ter jamais interesse em oprimir as duas outras classes. Com efeito, o que sustenta a classe improdutiva e lhe dá emprego é o excedente da produção da terra, ou o que sobra após deduzida a manutenção, primeiro dos cultivadores e depois dos proprietários de terra. Quanto maior for esse excedente, tanto mais abundante deverá ser o sustento e o emprego da classe improdutiva. O estabelecimento da justiça, da liberdade, da igualdade perfeitas constitui o segredo simplicíssimo que com mais eficácia garante o mais alto grau de prosperidade às três classes. Também os comerciantes, artífices e manufatores dos países mercantis que, como na Holanda e em Hamburgo, constam sobretudo dessa classe improdutiva, são mantidos e empregados exclusivamente à custa dos proprietários e dos cultivadores de terra. A única diferença está em que esses proprietários e cultivadores, pelo menos a maioria deles, se acham a uma distância altamente inconveniente dos comerciantes, artífices e manufatores aos quais fornecem os materiais de seu trabalho e os fundos de sua subsistência: são os habitantes de outros países e os súditos de outros governos. Tais países mercantis, porém, não são somente úteis, mas até altamente úteis aos habitantes desses outros países. De certo modo, preenchem um vazio muito importante, substituindo os comerciantes, artífices e manufatores que os habitantes desses países deveriam encontrar no país, mas que, por alguma deficiência de sua política, ali não encontram. Jamais podem essas nações agrícolas, se assim as pudermos chamar, ter interesse em desestimular ou oprimir a atividade de tais países mercantis, impondo altas taxas alfandegárias a seu comércio ou à mercadoria que fornecem. Essas taxas, tornando mais caras tais mercadorias, só poderiam servir para fazer baixar o valor real do excedente de produção de sua própria terra, com o qual ou — o que vem a dar no mesmo — com o preço do qual se compram tais mercadorias. Tais taxas só poderiam servir para desestimular o aumento desse excedente de produção e, conseqüentemente, o aprimoramento e o cultivo de sua 155
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própria terra. Ao contrário, o meio mais eficaz para aumentar o valor desse excedente de produção, para estimular seu aumento e, conseqüentemente, o aprimoramento e o cultivo de sua própria terra, seria dar a mais completa liberdade ao comércio de todas essas nações mercantis. Essa liberdade completa de comércio seria até mesmo o meio mais eficaz para os países mercantis fornecerem aos agrícolas, no momento oportuno, todos os artífices, manufatores e comerciantes de que necessitam em seu país, e para preencher, da maneira mais apropriada e mais vantajosa, esse vazio tão sério de que esses países se ressentem. O aumento contínuo do excedente de produção da terra dos países agrícolas criaria, no momento devido, um capital superior àquele que se poderia aplicar, com a taxa normal de lucro, no aprimoramento e no cultivo da terra: e a parcela excedente desse capital serviria naturalmente para dar emprego a artífices e manufatores no país. Mas esses artífices e manufatores, encontrando no país tanto os materiais para seu trabalho, como o fundo necessário para sua subsistência, imediatamente, mesmo com menos perícia e habilidade, poderiam ser capazes de trabalhar a preço tão baixo quanto os mesmos artífices e manufatores dos países mercantis, mão-de-obra essa que teriam que trazer de grande distância. Mesmo que, por falta de habilidade e perícia por algum tempo, os artífices e manufatores nacionais não fossem capazes de produzir tão barato, ainda assim, por encontrar um mercado no próprio país, poderiam ter condições de vender seu produto ali tão barato como o dos artífices e manufatores dos países mercantis, que só poderiam ser trazidos a esse mercado de uma grande distância; e, à medida que aumentassem sua perícia e habilidade, logo teriam condições de vender seu produto mais barato. Por conseguinte, os artífices e manufatores desses países mercantis encontrariam imediatamente rivais no mercado dessas nações possuidoras de terra e logo depois suas mercadorias seriam ali mais caras que as produzidas no país agrícola, sendo então, pouco depois, excluídos do comércio. O baixo preço dos manufaturados dessas nações agrícolas, em decorrência do aprimoramento gradual da perícia e habilidade no devido tempo, ampliaria a venda das mercadorias nacionais para além do mercado interno e faria com que esses manufaturados fossem transportados a muitos mercados estrangeiros, dos quais, da mesma forma, gradativamente eliminariam muitos dos manufaturados de nações mercantis. Esse aumento contínuo, tanto da produção natural como da produção manufaturada dessas nações agrícolas, em seu devido tempo geraria um capital superior àquele que, com a taxa normal de lucro, se poderia aplicar tanto na agricultura como nas manufaturas. O excedente desse capital naturalmente se canalizaria para o comércio externo, sendo aplicado em exportar a países estrangeiros as parcelas da produção natural e da produção manufaturada de seus próprios países que ultrapassassem a demanda do mercado interno. Na exportação da produção de seu próprio país, os comerciantes de uma nação agrícola teriam em relação aos comerciantes das nações mercantis uma 156
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vantagem do mesmo tipo daquela que seus artífices e manufatores tinham sobre os artífices e manufatores dessas nações mercantis: a vantagem de encontrar em seu próprio país a carga, os estoques e provisões que os outros seriam obrigados a procurar à distância. Com perícia e habilidade inferiores em navegação, portanto, teriam a possibilidade de vender sua carga em mercados estrangeiros tão barato como os comerciantes dessas nações mercantis; e à medida que sua perícia e habilidade se tornassem iguais, teriam condições de vendê-la mais barato. Conseqüentemente, logo poderiam rivalizar-se com as nações mercantis nesse setor do comércio externo e, no devido tempo, as alijariam inteiramente desse comércio. Segundo esse sistema liberal e generoso, portanto, o método mais vantajoso pelo qual uma nação agrícola pode formar artífices, manufatores e comerciantes próprios consiste em assegurar a mais completa liberdade de comércio aos artífices, manufatores e comerciantes de todas as demais nações. Com isso, aumenta o valor do excedente de produção de sua própria terra, cuja expansão contínua gera gradualmente um fundo que, no devido tempo, necessariamente forma todos os artífices, manufatores e comerciantes de que o país agrícola tem necessidade. Ao contrário, quando uma nação agrícola, seja com altas taxas, seja com proibições, exerce pressão contra o comércio de nações estrangeiras, ela forçosamente age contra seu próprio interesse, de duas maneiras. Primeiro, aumentando o preço de todas as mercadorias estrangeiras de todos os tipos de manufaturados, necessariamente faz baixar o valor real do excedente de produção de sua própria terra, com o qual ou — o que dá no mesmo — com o preço do qual compra essas mercadorias e manufaturados estrangeiros. Em segundo lugar, concedendo uma espécie de monopólio do mercado interno a seus próprios comerciantes, artífices e manufatores, aumenta a taxa do lucro mercantil e de manufatura proporcionalmente à do lucro agrícola e, por conseguinte, desvia da agricultura uma parcela do capital que antes nela tinha aplicado ou impede de se canalizar para ela parte do capital que, caso contrário, lhe caberia. Essa política, portanto, desestimula a agricultura de duas formas: primeiro, fazendo baixar o valor real de sua produção e, com isso, diminuindo a taxa de seu lucro; e, segundo, aumentando a taxa de lucro em todas as demais aplicações. A agricultura se torna menos vantajosa e o comércio e as manufaturas mais vantajosos do que de outra forma aconteceria; ora, toda pessoa, atendendo a seu interesse pessoal, é tentada a desviar, o quanto puder, tanto seu capital como sua atividade das aplicações menos vantajosas para as mais vantajosas. Ainda que, praticando essa política opressiva, uma nação agrícola possa ser capaz de formar artífices, manufatores e comerciantes próprios, um pouco antes do que conseguiria fazê-lo adotando a política de livre comércio — o que, aliás, não deixa a mínima dúvida; todavia os formaria prematuramente, se assim podemos dizer, e antes que a 157
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nação estivesse perfeitamente madura para eles. Fomentando com excessiva precipitação um tipo de atividade, isso diminuiria outra de maior valor. Fomentando com excessiva precipitação um tipo de atividade que apenas repõe o capital que lhe dá emprego, juntamente com o lucro normal, diminuiria um tipo de atividade que, além de repor o capital com seu lucro, também proporciona uma produção líquida, uma renda livre ao proprietário da terra. Faria declinar a mão-de obra produtiva, estimulando muito rapidamente aquela totalmente estéril e improdutiva. De que maneira, segundo esse sistema, a soma total da produção anual da terra é distribuída entre as três classes acima mencionadas e de que maneira o trabalho da classe improdutiva não faz mais do que repor o valor de seu próprio consumo sem aumentar, sob qualquer aspecto, o valor dessa soma total? Eis o que o Sr. Quesnay, o muito talentoso e profundo autor desse sistema, explica, recorrendo a algumas fórmulas aritméticas. A primeira delas, a qual, devido sua importância, ele distingue particularmente com o nome de Quadro Econômico, discorre sobre a maneira por que, segundo supõe, essa distribuição se efetua sob a mais completa liberdade e, portanto, com o máximo êxito; em condições nas quais a produção anual é de molde a proporcionar a máxima produção líquida possível, e na qual cada classe desfruta de sua própria parcela do total da produção anual. Algumas fórmulas subseqüentes mostram a maneira como, ainda segundo ele supõe, essa distribuição é feita em condições diferentes de restrições e regulamentações; maneira essa em que a classe dos proprietários de terra, ou a classe estéril e improdutiva, é mais favorecida do que a classe dos cultivadores e na qual uma ou outra interfere, em grau maior ou menor, na parcela que precisamente deveria pertencer à classe produtiva. Toda interferência desse tipo, toda violação dessa distribuição natural, que seriam garantidas pela liberdade mais completa, devem, segundo este sistema, necessariamente diminuir, em grau maior ou menor, de um ano para o outro, o valor e a soma total da produção anual, provocando forçosamente um declínio gradual da riqueza e da renda real do país; declínio cujo avanço será mais rápido ou mais lento, de acordo com o grau dessa interferência, conforme se violar em grau maior ou menor essa distribuição natural, que seria assegurada pela liberdade mais completa. Essas fórmulas subseqüentes representam os diversos graus de declínio que, segundo tal sistema, correspondem aos diferentes graus em que se viola essa distribuição natural das coisas. Alguns médicos teóricos parecem haver imaginado que a saúde do organismo humano só poderia ser preservada por um certo regime preciso de dieta e ginástica e que qualquer violação ao mesmo, por mínima que fosse, inevitavelmente provocaria algum grau de doença ou desordem, proporcional a esse grau de violação. Contudo, a experiência parece demonstrar que o organismo humano, ao menos a julgar pelas aparências, geralmente conserva o mais perfeito estado de saúde, sob vasta variedade de diferentes regimes, mesmo sob alguns que, 158
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segundo crença comum, estão muito longe de ser perfeitamente saudáveis. Ao que parece, o organismo humano, quando saudável, contém em si mesmo um certo princípio desconhecido de preservação, capaz de evitar ou de corrigir, sob muitos aspectos, os maus efeitos, mesmo de um regime muito deficiente. O Sr. Quesnay, ele próprio médico, e médico muito teórico, parece ter tido uma idéia do mesmo tipo, no tocante ao organismo político, e parece ter imaginado que ele se fortaleceria e se desenvolveria somente sob um determinado regime preciso, o exato regime da liberdade e da justiça perfeitas. Parece não ter ele levado em conta que, no organismo político, o esforço natural que cada pessoa faz continuamente para melhorar sua própria condição representa um princípio de preservação suscetível de evitar e corrigir, sob muitos aspectos, os maus efeitos, até certo ponto, de uma Economia Política parcial e opressiva. Tal Economia Política, ainda que indubitavelmente retarde, em grau maior ou menor, o impulso natural de uma nação rumo à riqueza e à prosperidade, nem sempre é capaz de sustentá-lo inteiramente, e muito menos de fazê-lo retroceder. Se uma nação não pudesse prosperar a não ser desfrutando de liberdade e justiça completas, jamais haveria no mundo uma única nação que conseguisse ter prosperado. No entanto, no organismo político, a sabedoria da natureza felizmente tomou amplas providências para remediar a muitos dos maus efeitos da insensatez e da injustiça do homem, da mesma forma que fez no organismo humano para remediar os maus efeitos da sua preguiça e intemperança. Entretanto, o erro capital desse sistema parece residir no fato de ele apresentar a classe dos artífices, manufatores e comerciantes como totalmente estéril e improdutiva. As observações seguintes podem servir para mostrar a impropriedade desse conceito. Primeiramente, esta classe — como se reconhece — reproduz anualmente o valor de seu próprio consumo anual, e no mínimo prolonga a existência do estoque ou capital que a sustenta e lhe dá emprego. Todavia, levando em conta apenas este aspecto, pareceria muito impróprio aplicar o qualificativo de estéril ou improdutiva. Não consideraríamos um casamento como estéril ou improdutivo, mesmo que dele resultasse apenas um filho e uma filha, para substituir o pai e a mãe, e ainda que não aumentasse o número do gênero humano, limitando-se apenas a manter o contingente anterior. Sem dúvida, os arrendatários e os trabalhadores do campo, além do capital que os sustenta e lhes dá emprego, reproduzem anualmente uma produção líquida, uma renda livre para o proprietário da terra. Assim como um casamento que gera três filhos certamente é mais produtivo do que aquele que gera apenas dois, da mesma forma o trabalho dos arrendatários e dos trabalhadores do campo é por certo mais produtivo do que o dos comerciantes, artífices e manufatores. Entretanto, a superioridade produtiva de uma classe não faz com que a outra classe seja estéril ou improdutiva. Em segundo lugar, por essa razão, parece totalmente impróprio considerar os artífices, manufatores e comerciantes à mesma luz que 159
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os criados domésticos. O trabalho dos empregados domésticos não prolonga a existência do fundo que os sustenta e lhes dá emprego. O sustento e o emprego deles corre totalmente às expensas de seus patrões, e o trabalho que prestam não é de molde a indenizar esse gasto. Esse trabalho consiste em serviços que geralmente perecem no próprio instante em que são prestados, não se fixando nem realizando em qualquer mercadoria vendável que possa repor o valor de seus salários e de seu sustento. Ao contrário, o trabalho dos artífices, manufatores e comerciantes naturalmente se fixa e se realiza em alguma mercadoria vendável. Eis por que, no capítulo em que tratei da mão-de-obra produtiva e improdutiva, classifiquei os artífices, manufatores e comerciantes entre os trabalhadores produtivos, e os criados domésticos entre os estéreis ou improdutivos. Em terceiro lugar, em qualquer suposição, parece impróprio afirmar que o trabalho dos artífices, manufatores e comerciantes não aumenta a renda real da sociedade. Ainda que supuséssemos, por exemplo — como parece acontecer nesse sistema —, que o valor do consumo diário, mensal e anual dessa categoria fosse exatamente igual ao da produção diária, mensal e anual, mesmo assim não decorreria disso que seu trabalho não acrescentasse nada à renda real, ao valor real da produção anual da terra e do trabalho do país. Assim, por exemplo, um artífice que, nos seis primeiros meses depois da colheita, executa um serviço no valor de 10 libras, ainda que no mesmo período consuma um valor de 10 libras em cereais e outros artigos indispensáveis, não deixa por isso de acrescentar realmente o valor de 10 libras à produção anual da terra e do trabalho do país. Enquanto consumiu uma renda semestral de 10 libras em valor de cereais e outros artigos indispensáveis, produziu um valor igual de trabalho, suficiente para comprar, para si mesmo ou para alguma outra pessoa, uma renda igual de meio ano. Por isso, o valor do que foi consumido e produzido durante esses seis meses é igual não a 10, mas a 20 libras. Sem dúvida, é possível que nunca tenha existido mais do que 10 libras desse valor, em momento algum desse período de tempo. Contudo, se as 10 libras em valor de cereais e de outros gêneros indispensáveis, consumidas pelo artífice, tivessem sido consumidos por um soldado ou por um criado doméstico, o valor da parte da produção anual, que existia no final dos seis meses, teria sido 10 libras menos do que efetivamente é, em conseqüência do trabalho prestado pelo artífice. Por isso, ainda que não se suponha ser o valor daquilo que o artífice produz superior ao valor por ele consumido, mesmo assim, em cada momento do tempo, o valor de mercadorias efetivamente existentes no mercado é, em conseqüência daquilo que ele produz, superior ao que de outra forma seria. Quando os defensores desse sistema afirmam que o consumo dos artífices, manufatores e comerciantes é igual ao valor do que eles produzem, provavelmente não tencionam afirmar outra coisa senão que sua renda, ou o fundo destinado ao seu consumo, é igual a esse valor. Contudo, se eles se tivessem expressado com mais precisão e só afir160
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massem que a renda dessa classe é igual ao valor do que produzem, poderia imediatamente ocorrer ao leitor que aquilo que fosse naturalmente poupado dessa renda necessariamente deveria aumentar, em maior ou menor grau, a riqueza real do país. Por isso, para elaborar algo parecido com um argumento, sentiram a necessidade de expressar-se como o fizeram; ora, esse argumento — mesmo supondo que os fatos são, efetivamente, como se parece presumir que sejam — acaba sendo bem pouco concludente. Em quarto lugar, os arrendatários e os trabalhadores do campo não têm condições de aumentar mais, sem parcimônia, a renda real, a produção anual da terra e do trabalho de seu país, do que o podem os artífices, manufatores e comerciantes. A produção anual da terra e do trabalho de um país só pode ser aumentada de dois modos: em primeiro lugar, através de algum aprimoramento nas forças produtivas de trabalho útil efetivamente executado dentro dele ou, em segundo, por algum aumento da quantidade desse trabalho. O aperfeiçoamento das forças produtivas do trabalho útil depende, primeiro, do aprimoramento da habilidade do trabalhador e, segundo, do aperfeiçoamento das máquinas com as quais ele trabalha. Ora, assim como o trabalho dos artífices e dos manufatores pode ser mais subdividido e o trabalho de cada operário reduzido a uma operação mais simples do que no caso dos arrendatários e dos trabalhadores do campo, da mesma forma ele é passível desses dois tipos de aprimoramento, em grau muito maior.8 Sob este aspecto, pois, a classe dos cultivadores não pode oferecer nenhuma vantagem sobre a dos artífices e dos manufatores. O aumento do volume de trabalho útil efetivamente empregado em uma sociedade qualquer deve depender totalmente do aumento do capital que lhe dá emprego; ora, o aumento desse capital, por sua vez, deve ser exatamente igual ao montante do que se economiza da renda, quer de particulares que administram e dirigem o emprego desse capital, quer de algumas outras pessoas que lhes emprestam esse capital. Se, como parece supor esse sistema, os comerciantes, os artífices e manufatores são, por natureza, mais inclinados à parcimônia e à poupança do que os proprietários e cultivadores de terra, sob esse aspecto têm mais probabilidade de aumentar a quantidade de trabalho útil empregado em seu país e, conseqüentemente, tornar maior a renda real do referido país, a produção anual de sua terra e de seu trabalho. Em quinto e último lugar, mesmo na hipótese de que, como parece supor esse sistema, a renda dos habitantes de cada país consiste inteiramente da quantidade de gêneros para a subsistência que sua atividade poderia proporcionar-lhes, a renda de um país comercial ou manufator deve sempre, sendo iguais outros fatores, ser muito maior de que a de um país sem comércio ou manufaturas. Por meio do comércio e das manufaturas, pode-se importar anualmente em determinado país 8
Ver o Livro Primeiro, cap. I. 161
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uma quantidade maior de gêneros de subsistência do que aquilo que poderiam proporcionar suas próprias terras, na condição efetiva de seu cultivo. Os habitantes de uma cidade, embora muitas vezes não possuam terras próprias, atraem para si, por sua atividade, a quantidade de produção bruta das terras de outras pessoas que lhes fornecem não somente as matérias para seu trabalho, mas também o fundo de sua subsistência. O que uma cidade sempre é em relação à região agrícola que a circunda, um Estado ou país independente o pode ser, muitas vezes, em relação a outros Estados ou países independentes. Assim é que a Holanda tira de outros países grande parte de sua subsistência: gado vivo do Holstein e da Jutlândia, e cereais de quase todos os diversos países da Europa. Uma pequena quantidade de produto manufaturado compra uma quantidade grande de produção natural ou bruta. Por isso, um país comercial e manufator naturalmente compra, com pequena parte de sua produção manufaturada, grande parte da produção bruta de outros países; ao contrário, um país sem comércio e manufaturas geralmente é obrigado a comprar, às expensas de sua produção bruta, um volume muito pequeno da produção manufaturada de outros países. O primeiro exporta o que pode dar subsistência e provisões apenas a um número muito pequeno de pessoas, importando a subsistência e as provisões de um grande número de pessoas. O segundo exporta as provisões e a subsistência de um grande número, e importa a de muito poucos. Os habitantes do primeiro sempre deve desfrutar de uma quantidade muito maior de subsistência do que aquela que lhes poderiam proporcionar as próprias terras, nas condições efetivas de seu cultivo. Os habitantes do segundo sempre desfrutarão de uma quantidade muito menor. Contudo, esse sistema, não obstante todas as suas imperfeições, talvez seja o mais aproximado da verdade que jamais se publicou em matéria de Economia Política, e por isso merece a consideração de todos quantos desejem examinar com atenção os princípios dessa ciência altamente importante. Embora, ao apresentar o trabalho aplicado à terra como o único trabalho produtivo, as noções que inculca talvez sejam muito acanhadas e restritas, ainda assim, ao dizer que a riqueza das nações consiste não na riqueza não consumível do dinheiro, mas nas mercadorias consumíveis, anualmente reproduzidas pelo trabalho do país, e ao apresentar a liberdade perfeita como o único meio eficaz para incrementar, ao máximo possível, essa reprodução anual — sua doutrina parece ser, sob todos os aspectos, tão justa quanto generosa e liberal. Os seguidores dessa doutrina são muito numerosos; e como os homens gostam de paradoxos e de parecer entender aquilo que ultrapassa a compreensão do povo comum, o paradoxo que ela defende, em relação à natureza improdutiva do trabalho de manufatura, talvez tenha contribuído não pouco para aumentar o número de seus admiradores. Eles constituíram, por alguns anos, uma seita bastante considerável, que, na república francesa dos letrados, se distinguiu pelo nome de Os Economistas. Suas obras certamente prestaram algum 162
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serviço ao seu país; não somente para trazer à discussão geral muitos assuntos que nunca haviam sido bem examinados anteriormente, mas também influenciando, de certo modo, a administração pública, em favor da agricultura. Por isso, foi em conseqüência das concepções dessa doutrina que a agricultura da França se libertou de várias opressões que antes a faziam sofrer. O prazo durante o qual pode ser arrendada uma terra em condições de ser válido contra qualquer futuro comprador ou proprietário da terra foi prolongado de 9 para 27 anos. Suprimiram-se totalmente as antigas restrições ao transporte de cereais de uma província do reino para outra, estabelecendo-se também como lei comum do reino, em casos normais, a liberdade de exportação a todos os países estrangeiros. A referida seita segue, em suas obras muito numerosas, e que abordam não somente o que se denomina com propriedade Economia Política, ou a natureza e as causas da riqueza das nações, mas todos os outros setores do sistema do governo civil — todas elas seguem, implicitamente, e sem diferenças sensíveis, a doutrina do Sr. Quesnay. Por essa razão, pouca variação existe na maior parte de suas obras. A apresentação mais clara e mais coerente dessa doutrina encontra-se em um pequeno livro escrito pelo Sr. Mercier de la Rivière, durante algum tempo intendente da Martinica, intitulada A Ordem Natural e Essencial das Sociedades Políticas. !9 A admiração que toda a seita mantém pelo seu mestre, que pessoalmente era pessoa modestíssima e de grande simplicidade, não é inferior à de qualquer dos antigos filósofos pelos fundadores de seus respectivos sistemas. Desde o início do mundo — afirma um autor muito diligente e respeitável, o Marquês de Mirabeau — houve três grandes invenções que foram as principais responsáveis pela estabilidade das sociedades políticas, independentemente de muitas outras invenções que as enriqueceram e lhes deram decoro. A primeira é a escrita, a única que dá à natureza humana o poder de transmitir, sem alteração, suas leis, seus contratos, seus anais e suas descobertas. A segunda, a do dinheiro, que une entre si todas as relações entre as sociedades civilizadas. A terceira é a Tabela Econômica, conseqüência das outras duas e que as completa, por aperfeiçoar seu objetivo; essa é a grande descoberta de nossa época, mas cujo benefício será colhido pela posteridade. !10 Assim como a Economia Política das nações da Europa moderna tem favorecido as manufaturas e o comércio externo — atividade das cidades — mais do que a agricultura — atividade do campo —, da mesma forma a Economia Política de outras nações tem seguido um plano diferente, favorecendo mais a agricultura do que as manufaturas e o comércio externo. 9 10
L’ordre Naturel et Essentiel des Sociétés Politiques, 1767. Philosophie Rurale ou Economie Générale et Politique de L’Agriculture, pour Servir de Suite à L’Ami des Hommes. Amsterdam, 1766, v. I, pp. 52, 53. 163
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A política da China favorece a agricultura mais do que todas as outras ocupações. Afirma-se que na China a condição de um trabalhador do campo é tão superior à de um artífice quanto, na maior parte da Europa, a de um artífice é superior à do trabalhador do campo. Na China, a grande ambição de todo homem é entrar na posse de um pequeno pedaço de terra, seja como proprietário, seja por arrendamento; e, pelo que se diz, lá os arrendamentos são feitos em termos bem moderados, oferecendo suficientes garantias aos arrendatários. Os chineses têm pouca consideração pelo comércio externo. “Seu miserável comércio” — essa era a linguagem com que os mandarins de Pequim costumavam se dirigir ao Sr. de Lange, enviado russo, referindo-se à atividade comercial.11 Os próprios chineses mantêm pouco ou nenhum comércio exterior com navios próprios, excetuado o que mantêm com o Japão; e só admitem a entrada de navios de nações estrangeiras em um ou dois portos de seu reino. Por conseguinte, o comércio exterior da China está absolutamente restrito a um círculo mais estreito do que aquele que naturalmente abrangeria, caso se lhe permitisse maior liberdade, quer em seus próprios navios, quer nos de nações estrangeiras. Os manufaturados cujo reduzido volume contém, muitas vezes, alto valor, podendo, por isso, ser transportado de um país a outro com custo menor do que a maior parte dos produtos não manufaturados, em quase todos os países constituem a alavanca principal do comércio externo. Além disso, em países menos extensos e menos favorecidos para o comércio interno do que a China, as manufaturas geralmente exigem o apoio do comércio externo. Sem um mercado externo amplo, as manufaturas não teriam condições de florescer muito, seja em países tão pequenos que só podem oferecer um mercado interno reduzido, seja em países em que a comunicação entre uma província e outra fosse tão difícil, que seria impossível às mercadorias de determinado lugar desfrutarem de todo o mercado interno que o país poderia oferecer. Cumpre lembrar que a perfeição da atividade manufatureira depende totalmente da divisão de trabalho; ora, o grau em que a divisão de trabalho pode ser introduzida em qualquer manufatura é inevitavelmente determinado pela extensão do mercado, como já mostrei. Ora, a grande extensão do império chinês, a imensa multidão de seus habitantes, a variedade de clima e, conseqüentemente, de produtos em suas diversas províncias, além de fácil comunicação através do transporte aquático entre a maior parte das províncias, tudo isso torna o mercado interno desse país tão extenso que, sozinho, é suficiente para apoiar manufaturas muito grandes, bem como comportar subdivisões de tarefas bastante consideráveis. Talvez o mercado interno da China não seja, em extensão, muito inferior ao mercado de todos os diversos países da Europa juntos. Todavia, um comércio externo mais extenso, que a esse grande mercado interno acrescentasse o mercado externo 11
Ver o diário do Sr. de Lange. In: Bell’s Travels. v. II, pp. 258, 276 e 293. 164
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de todo o resto do mundo — sobretudo se parte considerável desse comércio fosse efetuada em navios chineses —, dificilmente deixaria de aumentar muitíssimo as manufaturas da China e aprimorar muito mais as forças produtivas de sua atividade manufatureira. Ampliando sua navegação, os chineses naturalmente aprenderiam a arte de usar e construir eles mesmos todas as diversas máquinas utilizadas em outros países, bem como os demais aperfeiçoamentos da arte e do trabalho praticados em todas as partes do mundo. De acordo com seu plano atual, têm pouca oportunidade de se aperfeiçoar com o exemplo de qualquer outra nação, excetuada a dos japoneses. Também a política do Egito e a do governo hindu do Hindustão parecem ter favorecido a agricultura mais do que qualquer outra ocupação. Tanto no Egito Antigo como no Hindustão, todo o povo estava dividido em diferentes castas ou tribos, cada uma das quais, por tradição de pai a filho, estava restrita a uma ocupação ou a uma categoria de ocupações. O filho de um sacerdote era necessariamente sacerdote; o de um soldado, soldado; o de um agricultor, agricultor; o de um tecelão, tecelão; o de um alfaiate, alfaiate etc. Nos dois países, a casta dos sacerdotes era a da mais alta categoria, vindo depois a dos soldados; e, nos dois países, a casta dos arrendatários e trabalhadores da terra era superior à dos comerciantes e dos manufatores. O governo dos dois países estava particularmente voltado para o interesse da agricultura. As obras construídas pelos antigos soberanos do Egito para a distribuição adequada das águas do Nilo eram famosas na Antiguidade, e as ruínas restantes de algumas delas constituem ainda objeto de admiração dos viajantes. As obras do mesmo gênero construídas pelos antigos soberanos do Hindustão para a distribuição mais apropriada das águas dos Ganges, assim como de muitos outros rios, embora menos comentadas, parecem ter sido igualmente importantes. Por isso, os dois países adquiriram fama por sua grande fertilidade conquanto, ocasionalmente, tenham sofrido penúria. Malgrado ambos fossem muito densamente povoados, mesmo assim, em anos de abundância moderada, os dois tinham condições de exportar grandes quantidades de cereais para seus vizinhos. Os antigos egípcios tinham uma aversão supersticiosa em relação ao mar; e uma vez que a religião hinduísta não permite a seus seguidores acenderem fogo nem, conseqüentemente, cozinhar alimentos em água, na realidade lhes proíbe empreender longas viagens marítimas. Tanto os egípcios como os habitantes da Índia devem ter dependido quase inteiramente da navegação de outras nações para a exportação do excedente de sua produção; e essa dependência, como deve ter restringido o mercado, também deve ter desestimulado o aumento do excedente de produção. Deve ter desestimulado igualmente o aumento da produção manufaturada mais do que a produção bruta. Os manufaturados exigem um mercado muito mais amplo do que os itens mais importantes da produção natural ou bruta da terra. Um único sapateiro fará mais de trezentos pares de sapatos por ano, e sua própria família 165
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talvez não chegue a gastar seis. Por isso, se ele não tiver no mínimo uma clientela de cinqüenta famílias semelhantes à dele, não terá condições de vender toda a produção de seu próprio trabalho. Em um país grande, à categoria mais numerosa dos artífices raramente pertencerá mais do que uma entre cinqüenta, ou uma em cem do número total das famílias. Mas em países tão extensos como a França e a Inglaterra, alguns autores calculam que o número de pessoas empregadas na agricultura representa a metade do total dos habitantes do país, ao passo que outros autores falam em 1/3, sendo que nenhum, pelo que sei, calcula essa porcentagem em menos de 1/5 do total da população do país. Entretanto, já que a produção agrícola, tanto da França como da Inglaterra — ao menos a maior parte dela —, é consumida no próprio país, toda pessoa ocupada na agricultura deve, segundo esses cálculos, exigir uma clientela pouco superior a uma, duas, ou, no máximo, quatro famílias iguais à sua, para poder vender toda a produção de seu próprio trabalho. Por conseguinte, a agricultura pode manter-se, com o desestímulo de um mercado restrito, muito melhor do que as manufaturas. Tanto no Egito como no Hindustão antigos, de fato, a estreiteza do mercado externo era, até certo ponto, compensada pela conveniência de muita navegação interna, a qual abria, da maneira mais vantajosa, todo o mercado interno e cada item da produção de cada distrito desses países. Também a grande extensão do Hindustão tornava muito grande o mercado interno desse país, e também suficiente para manter grande variedade de manufaturas. Em contrapartida, a reduzida extensão do Egito Antigo — que nunca se igualou à da Inglaterra — sempre deve ter tornado o mercado interno daquele país demasiadamente restrito para manter uma grande variedade de manufaturas. Por isto, Bengala, a província do Hindustão que costuma exportar maior volume de arroz, sempre se tem notabilizado mais pela exportação de grande variedade de manufaturados do que pela exportação de seus cereais. Ao contrário, o Egito Antigo, embora exportasse alguns manufaturados, sobretudo linho fino, bem como algumas outras mercadorias, sempre se distinguiu mais por sua grande exportação de cereais. Por muito tempo, o país foi o celeiro do Império Romano. Os soberanos da China, do Egito Antigo e dos diversos reinos em que se dividia o Hindustão, em épocas diversas, sempre auferiram toda sua renda, ou decididamente a parte mais considerável dela, de algum tipo de imposto ou renda territorial. Esse imposto ou renda territorial, analogamente ao dízimo da Europa, consistia em certa porcentagem — 1/5, segundo se afirma — da produção da terra, a qual era entregue em espécie ou paga em dinheiro, segundo uma determinada avaliação e que, por isso, variava de ano para ano, conforme todas as variações da produção. Era, pois, natural que os soberanos desses países estivessem particularmente atentos ao interesse da agricultura, de cuja prosperidade ou declínio dependia o aumento ou diminuição anual de sua própria renda. A política das antigas repúblicas da Grécia e de Roma, conquanto 166
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prestigiassem a agricultura mais do que as manufaturas ou o comércio exterior, ainda assim parece ter antes desestimulado estes dois últimos do que ter estimulado direta ou intencionalmente a agricultura. Em vários dos antigos Estados gregos, o comércio exterior era totalmente proibido; e em vários outros, as ocupações dos artífices e dos manufatores eram consideradas prejudiciais à força e à agilidade do corpo humano, como se o tornassem incapaz para os hábitos que seus exercícios militares e ginásticos procuravam formar no corpo humano, incapacitando-os com isso, em grau maior ou menor, de enfrentar as fadigas e os perigos da guerra. Considerava-se que tais ocupações eram próprias apenas para escravos e os cidadãos livres do país eram proibidos de exercê-las. Mesmo nos Estados em que não havia tais proibições, como em Roma e Atenas, grande conjunto da população era efetivamente excluído de todas as ocupações atualmente exercidas pela classe mais baixa dos habitantes das cidades. Tais ocupações, em Atenas e Roma, todas exercidas pelos escravos dos ricos em benefício de seus patrões, cuja riqueza, poder e proteção tornavam quase impossível a um homem livre de condição pobre encontrar mercado para seu trabalho, quando vinha concorrer com o do escravo dos ricos. Ora, é muito raro os escravos terem espírito inventivo; e todos os aperfeiçoamentos mais importantes, seja em termos de máquinas, seja do sistema e distribuição do serviço, que facilitam e abreviam o trabalho, têm sido descobertos por pessoas livres. Se um escravo propusesse um aperfeiçoamento desse gênero, seu patrão, muito provavelmente, estaria propenso a considerar a proposta como uma sugestão proveniente da preguiça e do desejo de poupar seu próprio esforço às custas do patrão. O pobre escravo, em lugar de recompensa, provavelmente receberia vitupérios, talvez até alguma punição. Por isso, nos manufaturados feitos por escravos geralmente deve ter sido aplicado mais trabalho para executar o mesmo volume de produção do que nas manufaturas em que trabalham pessoas livres. Por essa razão, o produto do trabalho de escravos geralmente deve ter sido mais caro do que o de pessoas livres. O Sr. Montesquieu observa que as minas da Hungria, conquanto não sejam mais ricas, sempre foram exploradas com menos gasto e, portanto, com mais lucro do que as minas turcas de suas proximidades. As minas da Turquia são exploradas por escravos, sendo os braços desses escravos as únicas máquinas que os turcos jamais pensaram em utilizar. As minas húngaras são exploradas por trabalhadores livres que utilizam muitas máquinas, as quais facilitam e abreviam seu próprio trabalho. Com base no muito pouco que conhecemos sobre o preço dos manufaturados nos tempos dos gregos e romanos, parece que os dos manufaturados mais finos eram excessivamente elevados. A seda era vendida pelo seu peso em ouro. Sem dúvida, naquela época, a seda não era um manufaturado europeu, mas totalmente trazida das Índias Orientais, e a distância do transporte pode, até certo ponto, ser responsável pelo preço elevado. Todavia, segundo se conta, o preço que uma senhora às vezes pagava por uma peça de linho muito fino também 167
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parece ter sido igualmente exorbitante; e, já que o linho sempre foi um manufaturado europeu ou, no máximo, um manufaturado egípcio, esse alto preço só pode ser conseqüência do grande gasto de mão-de-obra a ele inerente, e o alto preço da mão-de-obra só poderia ser atribuído ao caráter primário das máquinas utilizadas. Também o preço das lãs finas, ainda que não tão exorbitante, parece ter sido bem mais alto que atualmente. Segundo nos refere Plínio, certos tecidos, tingidos de forma especial, custavam 100 denários, ou seja, £ 3 6 s 8 d por librapeso.12 Outros, tingidos de outra forma, custavam 1 000 denários por libra-peso, isto é £ 33 6 s 8 d. A libra romana, cumpre lembrar, continha somente 12 das nossas onças avoirdupois. Sem dúvida, esse alto preço parece devido sobretudo ao tingimento. Entretanto, se os próprios tecidos não tivessem sido muito mais caros do que hoje, provavelmente não se teria feito um tingimento tão caro. Teria sido excessiva a desproporção entre o valor do acessório e o do principal. O preço mencionado pelo mesmo autor13 para certos triclinaria — espécie de travesseiros ou almofadas de lã utilizadas como apoio quando se sentava em divãs à mesa — ultrapassa tudo aquilo que se possa crer, pois, segundo se conta, alguns deles custavam mais de 30 mil libras, e outros mais de 300 mil. Também neste caso não se diz que o alto preço se devesse ao tingimento. Segundo observa o Dr. Arbuthnot, no trajar das pessoas de posição, dos dois sexos, parece ter havido muito menos variedade nos tempos antigos do que nos modernos e a ínfima variedade que deparamos nos trajes das estátuas antigas confirma esta observação. Daí o autor infere que seu trajes, de modo global, devem ter sido mais baratos que os de hoje, porém a dedução não parece ser concludente. Quando o custo de trajes de pessoas de posição é muito elevado, a variedade deve ser muito pequena. Ao contrário, quando, devido ao aperfeiçoamento das forças produtivas da arte e da atividade manufatureira, o custo de qualquer outro traje chega a ser muito moderado, naturalmente a variedade será muito grande. Não tendo os ricos possibilidade de se distinguir pelo alto preço de quaisquer trajes, naturalmente procurarão distinguir-se pela profusão e variedade deles. Já observei que o maior e mais importante setor de comércio de cada nação é o explorado entre os habitantes da cidade e os do campo. Os habitantes da cidade tiram do campo os produtos naturais que constituem tanto o material para seu trabalho como o fundo para sua subsistência; e pagam essa produção agrícola, mandando de volta ao campo certa quantidade desses produtos manufaturados e preparados para uso imediato. O comércio efetuado entre essas duas categorias diferentes de pessoas consiste, em última análise, no intercâmbio de determinada quantidade de produção bruta por certa quantidade de produção manufaturada. Portanto, quanto mais cara esta última, tanto mais barata a primeira; e tudo o que em um país tende a elevar o 12 13
PLÍNIO, H. N. Livro Nono, cap. XXXIX. PLÍNIO, H. N. Livro Oitavo, cap. XLVIII. 168
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preço do produto manufaturado, tende a baixar o preço da produção natural da terra e, com isso, desestimular a agricultura. Quanto menor for a quantidade do produto manufaturado que se puder comprar com determinado volume de produção bruta — ou, o que é a mesma coisa, que se puder comprar com o preço de determinada quantidade de produção bruta —, tanto menor será o valor de troca da referida quantidade de produção bruta, e tanto menor será o estímulo que terão o proprietário da terra e o arrendatário para aumentar o volume de produção: o primeiro, mediante o aprimoramento da terra, e o segundo, mediante o cultivo da mesma. Além disso, tudo o que tende a diminuir em um país o número de artífices e manufatores, tenderá também a diminuir o mercado interno — que é o mais importante de todos os mercados para a produção bruta da terra — e, com isso, a desestimular ainda mais a agricultura. Por isso, os sistemas que, preferindo a agricultura a todas as demais ocupações e, para promovê-la, impõem restrições às manufaturas e ao comércio externo, agem contra o objetivo preciso que se propõem e indiretamente acabam desestimulando exatamente aquele tipo de atividade que pretendem fomentar. Sob esse aspecto, são mais incoerentes talvez do que o próprio sistema mercantil. Esse sistema, estimulando as manufaturas e o comércio externo mais que a agricultura, faz com que certa parcela do capital da sociedade deixe de sustentar um tipo de atividade mais vantajoso, canalizando-a para sustentar um tipo de atividade menos vantajoso. Mesmo assim, porém, ele ao final acaba estimulando realmente esse tipo de atividade que tenciona fomentar. Ao contrário, os sistemas agrícolas mencionados realmente, e por fim, acabam desestimulando o próprio tipo de atividade a que dão preferência. É dessa forma que todo sistema que procura, por meio de estímulos extraordinários, atrair para um tipo específico de atividade uma parcela de capital da sociedade superior àquela que naturalmente para ela seria canalizada, ou então que, recorrendo a restrições extraordinárias, procura desviar forçadamente, de um determinado tipo de atividade, parte do capital que, caso contrário, naturalmente seria para ela canalizada, na realidade age contra o grande objetivo que tenciona alcançar. Em vez de acelerar, retarda o desenvolvimento da sociedade no sentido da riqueza e da grandeza reais e, em vez de aumentar, diminui o valor real da produção anual de sua terra e de seu trabalho. Conseqüentemente, uma vez eliminados inteiramente todos os sistemas, sejam eles preferenciais ou de restrições, impõe-se por si mesmo o sistema óbvio e simples da liberdade natural. Deixa-se a cada qual, enquanto não violar as leis da justiça, perfeita liberdade de ir em busca de seu próprio interesse, a seu próprio modo, e faça com que tanto seu trabalho como seu capital concorram com os de qualquer outra pessoa ou categoria de pessoas. O soberano fica totalmente desonerado de um dever que, se ele tentar cumprir, sempre o deverá expor a inúmeras decepções e para essa obrigação não haveria jamais 169
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sabedoria ou conhecimento humano que bastassem: a obrigação de superintender a atividade das pessoas particulares e de orientá-las para as ocupações mais condizentes com o interesse da sociedade. Segundo o sistema da liberdade natural, ao soberano cabem apenas três deveres; três deveres, por certo, de grande relevância, mas simples e inteligíveis ao entendimento comum: primeiro, o dever de proteger a sociedade contra a violência e a invasão de outros países independentes; segundo, o dever de proteger, na medida do possível, cada membro da sociedade contra a injustiça e a opressão de qualquer outro membro da mesma, ou seja, o dever de implantar uma administração judicial exata; e, terceiro, o dever de criar e manter certas obras e instituições públicas que jamais algum indivíduo ou um pequeno contingente de indivíduos poderão ter interesse em criar e manter, já que o lucro jamais poderia compensar o gasto de um indivíduo ou de um pequeno contingente de indivíduos, embora muitas vezes ele possa até compensar em maior grau o gasto de uma grande sociedade. O cumprimento adequado desses vários deveres do soberano necessariamente supõe determinada despesa, a qual, por sua vez, exige forçosamente certa renda para ser coberta. Por isso, no próximo livro procurarei explanar: primeiro, quais são as despesas ou gastos necessários do soberano ou do Estado, expondo quais desses gastos devem ser cobertos pela contribuição geral de toda a sociedade e quais devem ser cobertos apenas por determinados membros da sociedade; segundo, quais são os diversos métodos para fazer com que toda a sociedade contribua para cobrir os gastos que cabem a toda sociedade e quais são as principais vantagens e inconvenientes de cada um desses métodos, e terceiro, quais são as razões e causas que induziram quase todos os governos modernos a hipotecar parte dessa renda ou a contrair dívidas, e quais foram os efeitos dessas dívidas sobre a riqueza real, sobre a produção anual da terra e do trabalho da sociedade. O próximo livro, portanto, naturalmente será dividido em três capítulos.
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LIVRO QUINTO A Receita do Soberano ou do Estado
CAPÍTULO I Os Gastos do Soberano ou do Estado PARTE PRIMEIRA OS GASTOS
COM A
DEFESA
O primeiro dever do soberano, o de proteger a sociedade contra a violência e a invasão de outros países independentes, só pode ser cumprido recorrendo à força militar. Entretanto, são muito diferentes os gastos tanto para preparar essa força militar em tempo de paz como para utilizá-la em tempo de guerra, de acordo com os diversos estágios da sociedade, nos diferentes períodos de aperfeiçoamento. Entre nações constituídas de caçadores, o estágio mais baixo e mais primitivo da sociedade, tal como o encontramos entre as tribos nativas da América do Norte, todo homem é um guerreiro e, ao mesmo tempo, um caçador. Quando vai à guerra, seja para defender seu país seja para vingar as ofensas a ele infligidas por outros países, ele se sustenta com seu próprio trabalho, da mesma forma como quando vive em casa. Seu país — já que nessas circunstâncias não há propriamente nem soberano nem Estado — não tem despesa alguma, nem para prepará-lo para a guerra, nem para sustentá-lo enquanto estiver no campo de batalha. Também entre nações de pastores, estágio social mais evoluído, tal como o encontramos entre os tártaros e árabes, todo homem é, igualmente, um guerreiro. Essas nações geralmente não têm habitação fixa, vivendo em tendas ou em uma espécie de carroções cobertos, facilmente transportáveis de um lugar a outro. Toda tribo ou nação muda de localização de acordo com as diversas estações do ano, bem como de conformidade com outras circunstâncias. Quando seus rebanhos tiverem consumido a forragem de uma região do país, desloca-se para outro, e de lá para um terceiro. Na estação da estiagem, a tribo desce para as margens dos rios e, na estação das 173
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chuvas, retira-se para a parte alta da região. Quando tal nação vai à guerra, os guerreiros não entregam seus rebanhos e manadas à fraca defesa de seus anciãos, de suas mulheres e crianças; quanto a seus anciãos, suas mulheres e crianças, não os deixam atrás sem defesa e sem subsistência. Toda a nação, habituada a uma vida itinerante, mesmo em tempo de paz, espontaneamente participa das campanhas em tempo de guerra. Quer marche como um exército, quer peregrine como um grupo de pastores, o modo de vida é quase o mesmo, embora seja muito diferente o objetivo. Por isso, vão à guerra todos juntos, e cada um faz o que pode. Entre os tártaros, muitas vezes constatou-se que mesmo as mulheres se empenhavam nas batalhas. Se conquistassem algo, tudo o que pertencia à tribo inimiga constituía a recompensa de sua vitória. Se, porém, fossem vencidos, perdiam tudo: não somente seus rebanhos e manadas, como também suas mulheres e filhos tornavam-se presa do conquistador. Mesmo a maior parte dos que sobreviviam à guerra era obrigada a se submeter a ele, se quisesse ter sua subsistência imediata. Os demais costumavam ficar dispersos e perdidos no deserto. A vida normal de um tártaro ou de um árabe, seus exercícios comuns os preparam suficientemente para a guerra. Correr, lutar corpo a corpo, manejar cacetes, arremessar a azagaia, puxar o arco de flecha etc., constituem as ocupações normais dos que vivem ao ar livre, sendo todas essas ocupações as imagens da guerra. Quando um tártaro ou árabe vai definitivamente à guerra, é sustentado por seus próprios rebanhos e manadas, que o acompanham da mesma forma que em período de paz. Seu chefe ou soberano — pois todas essas nações os possuem — não tem despesa alguma para prepará-lo para o campo de batalha; e quando no campo, a possibilidade de saquear constitui o único pagamento que espera ou exige. Um exército de caçadores raramente tem mais de duzentos ou trezentos homens. A subsistência precária assegurada pela caça raras vezes poderia permitir manter congraçado um contingente maior durante um período considerável de tempo. Ao contrário, um exército de pastores às vezes pode ascender a 200 ou a 300 mil. Enquanto nada dificultar seu avanço, enquanto tiver possibilidade de sair de um distrito, cuja forragem já consumiram, para ir a outro onde ainda existe bastante forragem, dificilmente parece haver limite para o contingente que marcha reunido. Uma nação de caçadores nunca pode inspirar medo às nações civilizadas vizinhas. Uma nação de pastores, sim. Não há nada de mais desprezível do que uma guerra de índios na América do Norte. Em contrapartida, nada pode ser mais temível do que o que tem sido com freqüência uma invasão de tártaros na Ásia. A experiência de todas as épocas tem confirmado o julgamento de Tucídides, de que nem a Europa nem a Ásia teria condições de resistir aos citas unidos. Os habitantes das extensas mas indefesas planícies da Cítia ou da Tartária muitas vezes se reuniram sob o domínio do chefe de alguma horda ou clã conquistador e a destruição e a vastação da Ásia sempre 174
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constituíram marcas de sua união. Os habitantes dos inóspitos desertos da Arábia, a outra grande nação de pastores, só se uniram uma vez, sob Maomé e seus sucessores imediatos. Sua união, resultante mais do entusiasmo religioso do que de conquista, também foi marcada pelas mesmas características. Se as nações de caçadores da América um dia se transformassem em nações de pastores, sua proximidade seria muito mais perigosa para as colônias européias do que atualmente. Em um estágio social ainda mais evoluído, entre as nações de agricultores que mantêm pouco comércio exterior e não possuem quaisquer outros manufaturados, a não ser esses rústicos e caseiros que quase toda família particular faz para seu próprio uso, também neste tipo de sociedade todo homem é um guerreiro ou facilmente se torna um guerreiro. Os que vivem da agricultura geralmente passam o dia todo ao ar livre, expostos a todas as inclemências do tempo. A severidade de sua vida cotidiana os prepara para as fadigas da guerra, com algumas das quais suas ocupações necessárias guardam grande analogia. A ocupação necessária de um abridor de fosso habilita-o para trabalhar nas trincheiras e para fortificar um acampamento, tanto quanto para cercar um campo de batalha. As ocupações normais desses agricultores são as mesmas que as dos pastores, constituindo também elas símbolos de guerra. Todavia, como os agricultores dispõem de menos lazer do que os pastores, não praticam essas ocupações com a mesma freqüência em seus períodos livres. São soldados, mas soldados que não dominam tanto seu mister. Mesmo assim, porém, raramente o soberano ou o Estado precisam despender algo para prepará-los para a guerra. A agricultura, mesmo em seu estágio mais primitivo e mais baixo, supõe uma residência, uma espécie de habitação fixa que não pode ser abandonada sem grande prejuízo. Por isso, quando uma nação de meros agricultores vai à guerra, não é possível a todos dirigirem-se ao campo de batalha. No mínimo, os anciãos, as mulheres e as crianças têm de ficar em casa para cuidar da habitação. Entretanto, todos os homens em idade militar têm que ir à guerra, e, em se tratando de nações pequenas deste gênero, com freqüência o têm feito. Em toda nação, segundo se supõe, os homens em idade militar ascendem a aproximadamente 1/4 ou 1/5 da população total. Se a campanha começasse depois da semeadura e terminasse antes da colheita, pode-se, sem muito prejuízo, dispensar da atividade agrícola tanto o agricultor quanto seus trabalhadores principais. Ele crê que o trabalho que precisa ser feito nesse meio tempo possa ser suficientemente bem executado pelos velhos, mulheres e crianças. Não se recusa, portanto, a servir como soldado, sem pagamento, durante breve campanha, custando ao soberano ou ao Estado, muitas vezes, tão pouco sustentá-lo no campo de batalha quanto prepará-lo para a guerra. Os cidadãos de todos os Estados da Grécia Antiga parecem haver servido, desta maneira, até depois da Segunda Guerra Pérsica; e o povo do Peloponeso, até depois da guerra do Peloponeso. Tucídides observa que os habitantes do Peloponeso geralmente deixavam o campo de batalha no verão, retornando à casa 175
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para a colheita. Da mesma forma servia o povo romano durante o período da monarquia e no início da república. Foi somente a partir do cerco de Veios que os que ficaram em casa começaram a contribuir com algo para a manutenção dos que iam à guerra. Nas monarquias européias fundadas sobre as ruínas do Império Romano, tanto antes como durante algum tempo depois do que apropriadamente se denomina lei feudal, os grandes senhores, com todos os seus dependentes imediatos, costumavam servir à Coroa às próprias custas. Tanto no campo de batalha como em casa, mantinham-se com sua própria renda, e não com algum estipêndio ou pagamento recebido do rei durante o período de guerra. Em um estágio social mais avançado, duas causas contribuem para tornar totalmente impossível manterem-se à própria custa os que vão à guerra: o desenvolvimento das manufaturas e o aperfeiçoamento da arte bélica. Ainda que um agricultor participasse de uma expedição, desde que esta começasse após a época da semeadura e terminasse antes da colheita, a interrupção de sua atividade nem sempre provocaria redução considerável de sua renda. Sem a intervenção de seu trabalho, a própria natureza executa a maior parte do serviço que resta por fazer. No momento, porém, em que um artífice, um ferreiro, um carpinteiro ou um tecelão, por exemplo, abandona sua oficina de trabalho, seca totalmente sua única fonte de renda. A natureza nada faz para ele, a ele mesmo cabe tudo fazer. Por isso, quando vai à guerra em defesa do povo, como não tem renda alguma para se manter, deve necessariamente ser mantido pelo povo. Ora, em um país em que numerosíssimos habitantes são artífices e manufatores, grande parte dos homens que vão à guerra têm que ser recrutados dessas classes, devendo, pois, ser mantidos pela coletividade enquanto estiverem a serviço da guerra. Além disso, quando a arte bélica evoluiu gradualmente, tornando-se uma ciência extremamente intricada e complexa, quando a ocorrência de uma guerra deixa de ser determinada, como nos primeiros estágios da sociedade, por uma única escaramuça ou batalha irregular, e a luta costuma prolongar-se através de várias campanhas diferentes, cada uma das quais dura a maior parte do ano, torna-se universalmente necessário que a coletividade mantenha os que a servem na guerra, pelo menos durante o período em que estiverem em serviço militar. Se assim não ocorresse, qualquer que fosse, em tempo de paz, a ocupação normal dos que vão à guerra, um serviço tão cansativo e caro constituiria um ônus por demais pesado para esses cidadãos. Por isso, depois da Segunda Guerra Pérsica, os exércitos de Atenas parecem ter geralmente sido constituídos de tropas mercenárias que consistiam, na realidade, em parte de cidadãos, mas em parte também de estrangeiros, todos eles igualmente pagos e alugados pelo Estado. Desde o tempo do cerco de Veios os exércitos de Roma recebiam soldo por seu serviço durante o período em que permaneciam no campo de batalha. Sob os governos feudais, o serviço militar dos grandes senhores e de 176
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seus dependentes imediatos, depois de certo período, foi em toda parte substituído por um pagamento em dinheiro que era empregado para manter aqueles que serviam em lugar deles. O número dos que têm condições de ir à guerra, em proporção com a população total, é forçosamente muito menor em um país civilizado do que em uma sociedade em estágio primitivo. Em um país civilizado, no qual os soldados são mantidos totalmente pelo trabalho dos não-soldados, o número daqueles nunca pode ultrapassar o que estes podem sustentar, além de manter, de forma condizente com suas respectivas posições, tanto a si mesmos como aos outros oficiais do governo e da justiça que são obrigados a manter. Nos pequenos Estados agrários da Grécia Antiga, 1/4 ou 1/5 de toda a população se considerava soldados e, por vezes, ia à guerra, conforme se afirma. Entre as nações civilizadas da Europa moderna, acredita-se geralmente que não se pode calcular em mais de um centésimo o contingente de habitantes de qualquer país que podem servir como soldados se não se quiser arruinar o país que paga os gastos de seu serviço. Os gastos com a preparação do exército para a guerra não parecem ter se tornado consideráveis em nenhuma nação, a não ser muito tempo depois que os gastos da manutenção do exército no campo de batalha recaíram inteiramente sobre o soberano ou sobre o Estado. Em todas as repúblicas da Grécia Antiga, aprender os exercícios militares constituía parte necessária da educação imposta pelo Estado a cada cidadão livre. Em toda cidade parece ter havido um campo oficial no qual, sob a proteção do magistrado público, os jovens aprendiam os diversos exercícios militares com mestres diferentes. Nessa instituição bastante simples, consistia todo o gasto que qualquer Estado grego parece jamais ter tido para capacitar seus cidadãos para a guerra. Na Roma Antiga, os exercícios do Campo de Marte atendiam ao mesmo propósito que os do Ginásio na Grécia Antiga. Sob os governos feudais, os muitos estatutos oficiais impondo aos cidadãos de cada distrito que praticassem a arte de atirar com arco, bem como vários outros exercícios militares, visavam ao mesmo objetivo, mas não parecem tê-lo atingido tão bem. Seja por falta de interesse dos oficiais a quem se confiava o cumprimento desses estatutos, seja por qualquer outra razão, eles parecem ter sido universalmente negligenciados; e, com o desenvolvimento de todos esses governos, parece que os exercícios militares foram caindo gradualmente em desuso entre a população em geral. Nas antigas repúblicas da Grécia e de Roma, durante todo o período de sua existência, e sob os governos feudais no decorrer de considerável período depois de sua primeira criação, a profissão de soldado não constituía uma ocupação separada e distinta, que representasse a única ou a ocupação principal de uma categoria específica de cidadãos. Cada súdito do Estado, qualquer que fosse a profissão ou ocupação normal com a qual ganhasse sustento, considerava-se ordinariamente apto para exercer também a profissão de soldado e obrigado, em muitas ocasiões extraordinárias, a exercê-la. 177
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Contudo, a arte bélica, assim como certamente representa a mais nobre de todas as artes, da mesma forma, com o avanço do aperfeiçoamento, necessariamente se torna uma das artes mais complexas. O estágio da mecânica, bem como o de algumas outras artes com as quais a arte bélica inevitavelmente se relaciona, determina o grau de perfeição que ela pode atingir em determinada época. Entretanto, para levar a arte bélica a esse grau de perfeição, é necessário que ela se torne a ocupação exclusiva ou principal de determinada classe de cidadãos; e a divisão do trabalho é tão necessária para o desenvolvimento dessa arte quanto o é para o de qualquer outra. Em outras artes, a divisão de tarefas é naturalmente condicionada pela prudência dos indivíduos, que consideram atender melhor a seus interesses particulares, limitando-se a uma profissão em especial do que exercendo grande número delas. Em se tratando, porém, da arte bélica, somente a sabedoria do Estado tem condições de fazer com que a profissão de soldado seja uma atividade específica, separada e distinta de todas as outras. Um cidadão privado que, em tempo de paz absoluta e sem um estímulo especial da coletividade, gastasse a maior parte do tempo em exercícios militares, sem dúvida conseguiria aprimorar-se muito neles e divertir-se bastante; porém, por certo, não estaria atendendo a seus próprios interesses. Somente a sabedoria do Estado é capaz de fazer com que ele considere interessante não se dedicar a maior parte do tempo a esta ocupação específica; todavia, nem sempre os Estados têm revelado essa sabedoria, mesmo quando as circunstâncias eram tais que a preservação de sua existência exigia que a tivessem. Um pastor dispõe de muito tempo de lazer; um agricultor, no estágio primitivo da agricultura, dispõe de algum; um artífice ou manufator não dispõe absolutamente de nenhum. O primeiro pode, sem prejuízo algum, empregar grande parte de seu tempo em exercícios militares; o segundo pode dedicar a isto algum tempo; o artífice ou manufator, porém, não pode empregar uma única hora em tais exercícios sem ser prejudicado, sendo que a preocupação pelo interesse próprio o leva naturalmente a negligenciar totalmente tais exercícios. Aliás, os aperfeiçoamentos na agricultura introduzidos inevitavelmente pelo desenvolvimento das artes e das manufaturas, acabam deixando ao agricultor tão pouco tempo quanto ao artífice. Os exercícios militares acabam sendo tão negligenciados pelos habitantes do campo quanto pelos da cidade, e toda a população se torna totalmente antibélica. Ao mesmo tempo, a riqueza que sempre acompanha os aprimoramentos da agricultura e das manufaturas e que, na realidade, não são outra coisa senão a produção acumulada desses aprimoramentos, provoca a invasão de todos os seus vizinhos. Uma nação laboriosa e, por este motivo, rica, é, dentre todas, a que maior probabilidade tem de ser atacada; e, a menos que o Estado adote certas providências novas para a defesa pública, os hábitos naturais da população a tornam inteiramente incapaz de se defender. Em tais circunstâncias, parece haver apenas dois métodos me178
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diante os quais o Estado pode razoavelmente prover, de certo modo, a defesa pública. Primeiramente, o Estado pode, adotando uma política extremamente rigorosa e passando por cima dos interesses, das características e das inclinações do povo, forçar a prática dos exercícios militares, obrigando todos os cidadãos que estiverem em idade militar, ou certo número deles, a associarem, até certo ponto, a profissão militar a qualquer ocupação ou profissão que eventualmente estiverem exercendo. Ou, em segundo lugar, sustentando e empregando certo número de cidadãos na prática constante dos exercícios militares, o Estado pode fazer com que a profissão de soldado se transforme em uma ocupação específica, separada e distinta de todas as demais. Se o Estado recorrer ao primeiro expediente, diz-se que sua força militar consiste em uma milícia; se recorrer ao segundo, diz-se que ela consiste em um exército efetivo. A prática dos exercícios militares representa a única ou principal ocupação dos soldados de um exército efetivo e a manutenção ou o soldo que o Estado lhes paga constitui o fundo principal e normal da sua subsistência. Em se tratando dos soldados de uma milícia, a prática dos exercícios militares representa apenas a ocupação ocasional dos soldados, os quais auferem os recursos principais e normais de sua subsistência de alguma outra ocupação. Em uma milícia, a característica do trabalhador do campo, do artífice ou do comerciante predomina sobre a do soldado, ao passo que em um exército efetivo a característica do soldado predomina sobre qualquer outra; é nessa distinção que parece residir a diferença essencial entre esses dois tipos de força militar. Vários têm sido os tipos de milícias. Em alguns países, os cidadãos destinados à defesa do Estado, ao que parece, só passavam pelos exercícios, sem ser arregimentados — se assim posso exprimir-me —, isto é, sem ser divididos em pelotões de tropas separados e distintos, cada um dos quais realizava seus exercícios sob o comando de seus oficiais adequados e permanentes. Nas antigas repúblicas da Grécia e de Roma cada cidadão, enquanto permanecesse no país, parece ter praticado seus exercícios militares em separado e independentemente, ou juntamente com os companheiros que preferisse, não sendo incorporado a um regimento específico de tropas a não ser quando efetivamente convocado para o campo de combate. Em outros países, a milícia não somente era treinada em exercícios militares, como também organizada em regimentos. Na Inglaterra, na Suíça e, segundo acredito, em todos os demais países da Europa moderna em que se criou alguma força militar imperfeita deste gênero, todo integrante de uma milícia, mesmo em tempo de paz, era incorporado a um regimento específico de tropas, que realizava seus exercícios sob o comando de seus oficiais adequados permanentes. Antes da invenção das armas de fogo, tinha superioridade o exército cujos soldados, tomados individualmente, tivessem maior habilidade e destreza no uso de suas armas. A força e a agilidade corporais 179
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eram de extrema importância, fator que geralmente determinava a sorte das batalhas. Mas essa habilidade e destreza no uso de suas armas só podiam ser conseguidas como acontece com a esgrima atualmente, isto é, com práticas não em grupos numerosos, mas separadamente, em uma escola especial, com um mestre especial, ou cada um com seus pares e companheiros específicos. Desde a invenção das armas de fogo, a força e a agilidade corporais, ou mesmo a destreza e a habilidade extraordinárias no uso das armas, revestem menos importância embora nem de longe careçam totalmente de relevância. A própria natureza da arma, embora de forma alguma iguale o operador destreinado ao adestrado, mais do que nunca faz com que a eficiência dos dois se aproxime. Supõe-se que toda a destreza e habilidade necessárias para manejar a arma podem ser suficientemente adquiridas por exercícios em grandes grupos. A regularidade, a ordem e a pronta obediência aos comandos constituem qualidades que, nos exércitos modernos, são mais decisivas para determinar a sorte das batalhas do que a destreza e a habilidade dos soldados no manuseio de suas armas. Mas o ruído das armas de fogo, a fumaça e a morte invisível a que cada um se sente exposto a cada momento, tão logo se encontre ao alcance dos tiros de canhão, e muitas vezes até bem antes que se possa dizer que a batalha esteja sendo travada, devem tornar muito difícil manter um grau considerável de regularidade, ordem e pronta obediência, mesmo no início de uma batalha em estilo moderno. Nas batalhas antigas, não havia outro ruído senão o da voz humana; não havia fumaça, não havia causa invisível de ferimento ou de morte. Cada combatente via claramente que não existia nenhuma arma mortal perto dele, a não ser quando essa arma efetivamente estivesse próxima dele. Nessas circunstâncias e entre tropas que tinham alguma confiança em suas próprias habilidades e destreza no manejo de armas, deve ter sido bem menos difícil preservar certo grau de regularidade e ordem, não somente no início, mas também durante toda a evolução de uma batalha de estilo antigo, até que um dos dois exércitos fosse devidamente derrotado. Entretanto, os hábitos da regularidade, ordem e pronta obediência aos comandos só podem ser adquiridos por tropas treinadas em grandes regimentos. Uma milícia, todavia, qualquer que seja a maneira utilizada para discipliná-la e exercitá-la, sempre será muito inferior a um exército efetivo bem disciplinado e exercitado. Os soldados exercitados apenas uma vez por semana ou uma vez por mês jamais podem ser tão peritos no uso de suas armas como os exercitados diariamente ou a cada dois dias; e conquanto essa circunstância talvez não seja tão importante nos tempos modernos como nos antigos, ainda assim a reconhecida superioridade das tropas prussianas — devida, segundo se afirma, em grande parte à sua maior perícia e treinamento — é suficiente para convencer-nos de que isto representa, mesmo atualmente, fator de enorme relevância. Os soldados habituados a obedecer a seu oficial somente uma 180
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vez por semana ou uma vez por mês e que, fora disto, estão totalmente livres para administrar seus próprios negócios como bem o desejem, sem ter que dar-lhe qualquer satisfação, nunca poderão ter o mesmo temor em sua presença, jamais poderão ter a mesma disposição à obediência pronta em relação àqueles cuja vida e conduta são de modo total diariamente comandadas pelo seu oficial, e que cada dia têm que seguir as suas ordens até quanto ao horário de levantar-se e deitar-se — ou ao menos de recolher-se a seus alojamentos. No que concerne ao que se denomina disciplina, ou seja, o hábito de obedecer com prontidão, uma milícia sempre estará em posição ainda mais inferior a um exército efetivo do que pode às vezes ocorrer com o que se chama exércitos manuais, isto é, o manejo e uso de armas. Contudo, na guerra moderna, o hábito da obediência pronta e urgente é muito mais importante do que uma superioridade considerável no manejo das armas. As milícias que, como as dos tártaros e dos árabes, vão à guerra comandadas pelos mesmos chefes aos quais estão acostumadas a obedecer em tempo de paz, são sem comparação as melhores. Quanto ao respeito que devotam a seus oficiais, e ao hábito da pronta obediência, aproximam-se mais dos exércitos efetivos. A milícia das montanhas, quando servia sob o comando de seus próprios chefes, tinha alguma vantagem do mesmo gênero. Todavia, assim como os habitantes das montanhas não eram pastores itinerantes, mas sedentários, pois todos tinham uma habitação fixa e, em tempos de paz, não estavam acostumados a seguir seu chefe de um lugar a outro, da mesma forma, em tempo de guerra, estavam menos dispostos a acompanhá-lo a uma distância maior ou a continuar por muito tempo no campo de batalha. Quando conseguiam algum butim, apressavam-se em voltar para casa e a autoridade de seu chefe raramente bastava para detê-los. Em termos de obediência, essas milícias sempre foram muito inferiores ao que se conta dos tártaros e árabes. Além disso, já que os habitantes das montanhas, devido à sua vida sedentária, passam menos tempo ao ar livre, sempre foram menos afeitos aos exercícios militares e menos hábeis no uso de suas armas do que se diz terem sido os tártaros e árabes. Cumpre, porém, observar que uma milícia de qualquer tipo, que tenha servido durante várias campanhas sucessivas no campo de batalha, se transforma sob todos os aspectos em um exército efetivo. Os soldados são diariamente exercitados no uso das armas e, constantemente sob o comando de seus oficiais, estão habituados à mesma pronta obediência dos exércitos efetivos. O que eram antes de iniciar a campanha é de pouca importância. Eles necessariamente se tornam, sob todos os pontos de vista, um exército efetivo, depois de terem feito algumas poucas campanhas nesse exército. Se a guerra na América se arrastasse através de outra campanha, a milícia americana poderia transformar-se, sob todos os aspectos, em um antagonista à altura daquele exército efetivo, cuja valentia, na última guerra, não foi absolutamente inferior à dos mais audaciosos veteranos da França e da Espanha. Uma vez bem entendida essa distinção, a História de todas 181
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as épocas, segundo se há de constatar, dá testemunho da superioridade irresistível de um exército efetivo bem organizado sobre uma milícia. Um dos primeiros exércitos efetivos de que temos notícia clara, baseada em documentos históricos autênticos, é o de Filipe da Macedônia. Suas freqüentes guerras com a Trácia, a Ilíria e a Tessália, bem como contra algumas cidades gregas próximas à Macedônia, formaram gradualmente suas tropas, que no início provavelmente não passavam de uma milícia, para a disciplina precisa de um exército efetivo. Em tempos de paz — que eram muito raros, e nunca durante muito tempo seguido — ele zelava no sentido de não licenciar este exército. Venceu e subjugou, realmente, depois de uma luta prolongada e violenta, as valorosas e bem treinadas milícias das repúblicas principais da Grécia Antiga; e, depois, com muito pouca luta, a milícia efeminada e mal adestrada do grande Império Persa. A queda das repúblicas gregas e do Império Persa foi efeito da superioridade irresistível que tem um exército efetivo sobre qualquer tipo de milícia. É a primeira grande revolução nas ocorrências da humanidade, da qual a história preservou um relato claro e pormenorizado. A queda de Cartago, com a conseqüente ascensão de Roma, é a segunda. Todas as vicissitudes no destino dessas duas renomadas repúblicas podem muito bem ser atribuídas à mesma causa. Desde o término da Primeira Guerra Cartaginesa, até o início da Segunda, os exércitos cartagineses estavam continuamente em campos de batalha, servindo sob três grandes generais que se sucederam no comando: Amílcar, seu cunhado Asdrúbal, e seu filho Aníbal; primeiramente punindo seus próprios escravos rebeldes, depois subjugando as nações revoltadas da África e, finalmente, conquistando o grande Reino da Espanha. O exército que Aníbal conduziu da Espanha para a Itália necessariamente, nessas diversas guerras, deve ter sido gradualmente treinado a essa disciplina precisa de um exército efetivo. Nesse meio tempo, os romanos, ainda que não desfrutassem de paz total, não haviam estado envolvidos, durante esse período, em nenhuma guerra de grande vulto, razão pela qual, como se costuma afirmar, sua disciplina militar decaíra bastante. Os exércitos romanos com que Aníbal se defrontou em Trébia, Trasímeno e Canas eram milícias opostas a um exército efetivo. É provável que esta circunstância tenha contribuído mais do que qualquer outra para determinar a sorte dessas batalhas. O exército efetivo que Aníbal deixou atrás de si na Espanha tinha a mesma superioridade sobre a milícia que os romanos enviaram para resistir-lhe, e que em poucos anos, sob o comando de seu irmão mais jovem, Asdrúbal, expulsou quase inteiramente da Espanha. Aníbal estava mal suprido por Cartago. A milícia romana, continuamente em campos de batalha, no decurso da guerra se transformou em um exército efetivo e bem disciplinado e adestrado, ao passo que a superioridade de Aníbal diminuía dia a dia. Asdrúbal considerou necessário conduzir todo o exército efetivo que comandara na Espanha, 182
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ou quase todo, para ajudar seu irmão na Itália. Nessa marcha, segundo se afirma, foi enganado por seus guias, e, em um país que não conhecia, surpreendido e atacado por outro exército efetivo, sob todos os pontos de vista igual ou superior ao dele, sendo inteiramente derrotado. Quando Asdrúbal deixou a Espanha, o grande Cipião não dispunha, para opor-lhe resistência, senão de uma milícia inferior à dele. Ele conquistou e subjugou essa milícia e, no decurso da guerra, sua própria milícia se transformou em um exército efetivo bem disciplinado e bem treinado. Este exército efetivo deslocou-se depois para a África, onde encontrou, para resistir-lhe, apenas uma milícia. Para defender Cartago, tornou-se necessário chamar de volta o exército efetivo de Aníbal. A milícia africana, desanimada e muitas vezes derrotada, juntou-se a esse exército efetivo e, na batalha de Zama, compôs a maior parte das tropas de Aníbal. O evento daquele dia determinou a sorte das duas repúblicas rivais. Desde o fim da Segunda Guerra Cartaginesa até à queda da república romana, os exércitos de Roma eram, sob todos os pontos de vista, efetivos. O exército efetivo da Macedônia opôs alguma resistência às suas armas. Mesmo estando os exércitos romanos no auge da grandeza, isso lhes custou duas grandes guerras e três grandes batalhas para subjugar esse pequeno reino, cuja conquista provavelmente teria sido ainda mais difícil, não fora a covardia do último rei macedônio. As milícias de todas as nações civilizadas do Mundo Antigo, da Grécia, da Síria e do Egito, pouco conseguiram resistir aos exércitos efetivos de Roma. As milícias de certas nações bárbaras defenderam-se muito melhor. A milícia cita ou tártara, que Mitrídates recrutou das regiões localizadas ao norte do Ponto Euxino e do mar Cáspio, foram os inimigos mais temíveis que os romanos tiveram que enfrentar depois da Segunda Guerra Cartaginesa. Também as milícias dos partos e dos germanos foram sempre respeitáveis e em diversas ocasiões obtiveram várias vitórias consideráveis sobre os exércitos romanos. De modo geral, porém, os exércitos romanos, bem comandados, demonstraram-se muito superiores; e se não chegaram à conquista final nem da Pártia nem da Germânia, foi provavelmente porque julgaram não valer a pena incorporar essas duas nações bárbaras a um império já muito extenso. Os antigos partos parecem ter sido uma nação de origem cita ou tártara, tendo sempre conservado muitas das maneiras de seus ancestrais. Os antigos germanos eram, como os citas ou tártaros, uma nação de pastores nômades que iam à guerra sob o comando dos mesmos chefes que estavam habituados a acompanhar em tempo de paz. Sua milícia era exatamente do mesmo tipo que a dos citas ou tártaros, dos quais também eles provavelmente descendiam. Muitas foram as causas que contribuíram para afrouxar a disciplina dos exércitos romanos. Sua severidade extrema foi talvez uma delas. Na época de seu esplendor, quando nenhum inimigo parecia capaz de opor-lhes resistência, sua armadura pesada foi posta de lado como um peso desnecessário, seus duros exercícios negligenciados como 183
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desnecessariamente trabalhosos. Além disso, sob os imperadores romanos, os exércitos efetivos de Roma, sobretudo aqueles que guardavam as fronteiras com a Germânia e a Panônia, se tornaram perigosos para seus senhores, contra os quais muitas vezes costumavam colocar seus próprios generais. Para tornar estes exércitos menos temíveis, Diocleciano — segundo outros autores, Constantino — afastou-os da fronteira, onde anteriormente sempre haviam estado acampados em grandes regimentos, geralmente de duas ou três legiões cada um, e o dispersou em pequenos corpos através das várias cidades provinciais, de onde dificilmente eram removidos, a não ser quando se tornava necessário repelir uma invasão. Os soldados agrupados em pequenas corporações aquarteladas em cidades comerciais e manufatureiras e raramente removidos dessas cidades, transformaram-se eles mesmos em comerciantes, artífices e manufatores. A característica civil acabou predominando sobre seu caráter militar; e os exércitos efetivos de Roma gradualmente se degeneraram em uma milícia corrupta, negligente e indisciplinada, incapaz de resistir ao ataque das milícias germânicas e citas que logo depois invadiram o império ocidental. Foi somente contratando a milícia de algumas dessas nações para resistir à de outras que os imperadores puderam defender-se por algum tempo. A queda do império ocidental constitui a terceira grande revolução nos acontecimentos da humanidade, da qual a história antiga preservou um relato claro e pormenorizado. Ela foi causada pela irresistível superioridade que a milícia de uma nação bárbara possui sobre a de uma nação civilizada; que a milícia de uma nação de pastores tem sobre uma de agricultores, artífices e manufatores. As vitórias conseguidas por milícias geralmente têm sido ganhas não contra exércitos efetivos, mas contra outras milícias inferiores a elas em adestramento e disciplina. Tais foram as vitórias conseguidas pela milícia grega contra a do Império Persa; e tais foram também as vitórias que em tempos mais recentes conseguiu a milícia suíça contra a dos austríacos e dos burgúndios. A força militar que as nações germânica e cita impuseram sobre as ruínas do império ocidental continuou por algum tempo a ser, em suas novas fundações, do mesmo tipo que havia sido em seu país original. Era uma milícia de pastores e agricultores que, em tempo de guerra, ia ao campo de batalha sob o comando dos mesmos chefes aos quais estava acostumada a obedecer em tempo de paz. Era, portanto, razoavelmente bem adestrada e disciplinada. Todavia, com o progresso das artes e ofícios, decaiu gradualmente a autoridade dos chefes, e o conjunto da população dispunha de menos tempo para dedicar-se ao treinamento militar. Por isso, tanto a disciplina como o adestramento da milícia feudal foram aos poucos se degenerando e os exércitos permanentes gradativamente eram convocados para substituir a milícia. Além disso, quando o recurso a um exército efetivo era uma vez adotado por uma nação civilizada, tornava-se necessário que todas as nações vizinhas seguissem seu exemplo. Elas logo constataram que sua segu184
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rança dependia de que fizessem o mesmo, e que sua própria milícia era totalmente incapaz de resistir ao ataque de tal exército. Tem-se observado que os soldados de um exército efetivo, ainda que nunca tivessem defrontado com um inimigo, muitas vezes demonstravam possuir toda a coragem das tropas de veteranos e, no momento exato de iniciar uma campanha, revelavam estar aptos para enfrentar os veteranos mais audaciosos e experientes. Em 1756, quando o exército da Rússia marchou sobre a Polônia, a valentia dos soldados russos não se mostrou inferior à dos prussianos, na época considerados os veteranos mais valorosos e experientes da Europa. No entanto, o Império Russo havia anteriormente desfrutado de uma grande paz durante quase vinte anos, e na época podia ter muito poucos soldados que nunca tinham defrontado com um inimigo. Quando irrompeu a Guerra Espanhola, em 1739, a Inglaterra havia desfrutado de uma grande paz durante aproximadamente 28 anos. Entretanto, a valentia de seus soldados, longe de sair corrompida desse longo período de paz, nunca se distinguira mais do que no ataque a Cartagena, a primeira façanha infortunada daquela guerra desastrosa. Durante longo período de paz, talvez os generais possam às vezes perder o adestramento; mas, onde se manteve um exército efetivo bem organizado, parece que os soldados nunca perdem sua valentia. Quando uma nação civilizada depende, para sua defesa, de uma milícia, a toda hora está exposta a ser conquistada por qualquer nação bárbara vizinha. As freqüentes conquistas de todos os países civilizados da Ásia, por parte dos tártaros, demonstram suficientemente a superioridade natural que a milícia de uma nação bárbara tem sobre a de uma civilizada. Um exército efetivo bem aparelhado é superior a qualquer milícia. Tal exército, assim como pode ser mais bem mantido por uma nação rica e civilizada, da mesma forma é o único capaz de defender tal nação contra a invasão de um vizinho pobre e bárbaro. Conseqüentemente, é só através de um exército efetivo que se pode perpetuar a civilização de qualquer país, ou mesmo preservá-la durante um período considerável. Assim como é somente por meio de um exército efetivo bem organizado que uma nação civilizada consegue defender-se, da mesma forma é somente com tal exército que um país bárbaro pode ser civilizado com rapidez e de modo razoável. Um exército efetivo implanta, com força irresistível, a lei do soberano pelas províncias mais longínquas do império e mantém, até certo ponto, um governo regular em regiões que, caso contrário, não admitiria lei alguma. Quem quer que examine atentamente as melhorias introduzidas no Império Russo por Pedro, o Grande, constatará que quase todas elas se resumem na implantação de um exército efetivo bem organizado. Este é o instrumento que efetiva e mantém todos os outros regulamentos por ele implantados. O nível de ordem e paz interna de que esse império sempre desfrutou desde então, é inteiramente devido à influência do citado exército. Pessoas que perfilham princípios republicanos têm manifestado 185
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receio de que um exército efetivo represente um perigo à liberdade. Certamente isso ocorre toda vez que o interesse do general e o dos principais oficiais não estão necessariamente comprometidos em apoiar a Constituição do Estado. O exército efetivo de César destruiu a república romana. O exército efetivo de Cromwel dissolveu o Parlamento Longo. Contudo, onde o próprio soberano é o general e a grande e a pequena nobreza do país são os principais oficiais do exército, onde a força militar é colocada sob o comando daqueles que têm o máximo interesse em apoiar a autoridade civil, por deter eles mesmos a maior parte dessa autoridade, um exército efetivo jamais pode representar um perigo para a liberdade. Pelo contrário, em alguns casos pode ser favorável à liberdade. A segurança que ele oferece ao soberano torna supérfluo esse receio incômodo que, em algumas repúblicas modernas, parece controlar as mínimas ações e estar sempre pronto a perturbar a paz de cada cidadão. Onde a segurança do magistrado, embora apoiada pelos principais representantes do país, esteja em perigo por qualquer insatisfação popular, onde um pequeno tumulto pode provocar em poucas horas uma grande revolução, é necessário empregar toda a autoridade do Governo para suprimir e punir qualquer murmúrio e queixa contra ele. Ao contrário, para um soberano que se sente apoiado, não somente pela aristocracia natural do país, como também por um exército efetivo bem-ordenado, pouca perturbação pode advir até mesmo dos protestos mais brutais, mais infundados e mais licenciosos. Ele pode com segurança relevar ou negligenciar tais protestos, e a consciência que tem de sua própria superioridade naturalmente o predispõe a isso. Aquele grau de liberdade que se aproxima da licenciosidade só pode ser tolerado em países em que o soberano tem o apoio de um exército efetivo bem organizado. Somente em tais países a segurança pública não exige que o soberano tenha em mãos todo o poder arbitrário para suprimir até mesmo o impertinente excesso dessa liberdade licenciosa. Por conseguinte, o primeiro dever do soberano, o de defender a sociedade contra a violência e a injustiça de outros países independentes, torna-se gradualmente cada vez mais dispendioso, à medida que o país vai se tornando mais civilizado. A força militar do país, que inicialmente não acarretava ao soberano nenhum gasto, nem no período de paz nem do de guerra, com o avanço da prosperidade deve ser mantida, primeiro pelo soberano, em tempo de guerra e, depois, mesmo em tempo de paz. A grande mudança introduzida na arte bélica pela invenção das armas de fogo aumentou ainda mais tanto os gastos necessários para treinar e disciplinar qualquer contingente especial de soldados em tempo de paz, quanto os necessários para utilizá-los em período de guerra. Tanto as armas como as munições tornaram-se mais caras. Um mosquete é um engenho mais caro do que uma azagaia ou um arco e flecha; um canhão ou um morteiro é mais dispendioso do que uma balista ou uma catapulta. A pólvora que se gasta em um moderno teste de tropas é irreparavelmente perdida, ocasionando uma despesa 186
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bastante considerável. As azagaias e as flechas que se atiravam ou lançavam em um antigo teste de tropas facilmente podiam ser recuperadas, além do que eram de valor muito reduzido. O canhão e o morteiro não somente são mais caros como também muito mais pesados do que a balista e a catapulta, exigindo muito mais despesa não somente para ser preparado para a guerra, como também para ser levado ao campo de batalha. Além disso, já que é muito grande a superioridade da artilharia moderna em relação à dos antigos, tornou-se muito mais difícil e, portanto, muito mais caro, fortificar uma cidade a ponto de poder ela resistir, mesmo durante poucas semanas, aos ataques de uma artilharia superior. Nos tempos modernos, muitas são as causas que contribuem para tornar a defesa do país mais dispendiosa. Sob este aspecto, os efeitos inevitáveis do avanço natural da prosperidade foram altamente incrementados por uma grande revolução ocorrida na arte bélica, provocada, ao que parece, por uma simples contingência, a invenção da pólvora. Na guerra moderna, o grande dispêndio com armas de fogo dá evidente vantagem à nação que pode gastar mais e, conseqüentemente, a um país rico e civilizado sobre uma nação pobre e primitiva. Nos tempos antigos, as nações ricas e civilizadas encontravam dificuldade em se defender contra as nações pobres e incivilizadas. Nos tempos modernos, as nações pobres e incivilizadas encontram dificuldade em se defender contra as ricas e civilizadas. A invenção de armas de fogo, que à primeira vista parece ser tão perniciosa, certamente favorece tanto a estabilidade como a expansão da civilização. PARTE SEGUNDA OS GASTOS
COM A
JUSTIÇA
O segundo dever do soberano, o de proteger, na medida do possível, cada membro da sociedade da injustiça ou opressão de todos os outros membros da mesma, ou o dever de estabelecer uma administração judicial rigorosa, comporta igualmente gastos cujo montante varia muito, conforme os diferentes períodos da sociedade. Entre nações de caçadores, uma vez que é difícil haver propriedade, ou ao menos propriedade que ultrapasse o valor correspondente a dois ou três dias de trabalho, raramente se depara com algum magistrado estabelecido ou alguma administração judicial regular. Pessoas destituídas de propriedade só podem lesar-se entre si no que tange às suas pessoas ou reputação. Quando um homem mata, fere, bate em outro ou o difama, ainda que o injustiçado sofra, o ofensor não aufere nenhum benefício. Diverso é o caso das lesões à propriedade. Aqui, o benefício da pessoa que comete a infração muitas vezes é igual à perda da que a sofre. A inveja, a malícia ou o ressentimento são as únicas paixões que podem levar uma pessoa a prejudicar outra pessoalmente ou sua reputação. Mas não é freqüente que a maioria dos homens 187
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esteja sob a influência dessas paixões, e mesmo os piores só o estão ocasionalmente. Além disso, já que a gratificação desses atos, por mais agradável que possa ser para certos tipos de caráter, não traz nenhuma vantagem real ou permanente, a maioria da pessoas costuma abster-se de cometer tais injustiças, por considerações de prudência. Os homens podem viver juntos em sociedade, com um grau aceitável de segurança, embora não haja nenhum magistrado civil que os proteja da injustiça decorrente dessas paixões. Entretanto, a avareza e a ambição dos ricos e, por outro lado, a aversão ao trabalho e o amor à tranqüilidade atual e ao prazer, da parte dos pobres, são as paixões que levam a invadir a propriedade — paixões muito mais constantes em sua atuação e muito mais gerais em sua influência. Onde quer que haja grande propriedade, há grande desigualdade. Para cada pessoa muito rica deve haver no mínimo quinhentos pobres, e a riqueza de poucos supõe a indigência de muitos. A fartura dos ricos excita a indignação dos pobres, que muitas vezes são movidos pela necessidade e induzidos pela inveja a invadir as posses daqueles. Somente sob a proteção do magistrado civil, o proprietário dessa propriedade valiosa — adquirida com o trabalho de muitos anos, talvez de muitas gerações sucessivas — pode dormir à noite com segurança. A todo momento ele está cercado de inimigos desconhecidos, os quais, embora nunca o tenham provocado, jamais consegue apaziguar, e de cuja injustiça somente o braço poderoso do magistrado civil o pode proteger, braço este continuamente levantado para castigar a injustiça. É, pois, a aquisição de propriedade valiosa e extensa que necessariamente exige o estabelecimento de um governo civil. Onde não há propriedade, ou, ao menos, propriedade cujo valor ultrapasse o de dois ou três dias de trabalho, o governo civil não é tão necessário. O governo civil supõe certa subordinação. Ora, assim como a necessidade de governo aumenta gradativamente com a aquisição de propriedade valiosa, da mesma forma as causas principais que criam naturalmente a subordinação aparecem com o crescimento dessa propriedade valiosa. Parecem ser quatro as causas ou circunstâncias que criam naturalmente a subordinação, ou que, natural e anteriormente a qualquer instituição civil, conferem a certas pessoas alguma superioridade sobre a maior parte de seus irmãos. A primeira delas é a superioridade das qualificações pessoais, da força, da beleza e da agilidade corporal da sabedoria, da virtude, da prudência, da justiça, da fortaleza e da prudência de espírito. As qualificações corporais, a menos que reforçadas pelas qualidades do espírito, pouca autoridade podem conferir, qualquer que seja o período da sociedade. Somente um homem muitíssimo forte consegue, pela simples força corporal, obrigar duas pessoas fracas a lhe obedecerem. Somente as qualificações do espírito são capazes de conferir autoridade muito grande. São, porém, qualidades invisíveis, sempre sujeitas a contestação, e efetivamente contestadas, em geral. Nenhuma sociedade 188
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bárbara ou civilizada jamais considerou conveniente estabelecer as regras da procedência hierárquicas ou e da subordinação com base nessas qualidades invisíveis, mas com base em alguma coisa mais evidente e palpável. A segunda das causas ou circunstâncias é a superioridade de idade. Um homem velho, desde que sua idade não seja tão avançada a ponto de que se levante a suspeita de caduquice, em toda parte é mais respeitado que um homem jovem, de posição, fortuna e habilidade iguais. Entre as nações de caçadores, tais como as tribos nativas da América do Norte, a idade representa o único fundamento para a posição e a precedência. Entre elas, a um superior cabe a designação de pai, a um igual, a de irmão, e a um inferior, a de filho. Nas nações mais ricas e civilizadas, a idade determina a posição hierárquica entre os que são iguais entre si no tocante a todos os outros aspectos, caso em que, portanto, não há outro critério para determinar a posição hierárquica. Entre irmãos e entre irmãs, têm preferência sempre os mais velhos; e na sucessão da herança paterna, tudo o que não admite divisão, mas deve pertencer totalmente a uma única pessoa — como, por exemplo, um título honorífico — na maioria dos casos é herdado pelo mais velho. A idade representa uma qualidade evidente e palpável que não admite contestação. A terceira das citadas causas ou circunstâncias é a superioridade de fortuna. Todavia, a autoridade dos ricos, conquanto grande em qualquer período da sociedade, talvez atinja o máximo no estágio mais primitivo da sociedade que comporte alguma desigualdade considerável de fortuna. Um chefe tártaro, cujo aumento de rebanhos e manadas é suficiente para manter mil pessoas, dificilmente pode empregar este aumento de outra forma senão para sustentar mil pessoas. O estágio primitivo da sociedade em que vive não lhe permite desfrutar de qualquer produto manufaturado, berloques ou quinquilharias de qualquer gênero, pelos quais possa trocar a parcela de sua produção bruta que ultrapasse seu próprio consumo. As mil pessoas que ele assim sustenta, por dependerem inteiramente dele em sua subsistência, têm que obedecer às suas ordens na guerra e submeter-se à sua jurisdição em tempo de paz. Ele é necessariamente o general e o juiz dessas pessoas e sua condição de chefe é o efeito inevitável da superioridade de sua fortuna. Em uma sociedade rica e civilizada, um homem pode possuir uma fortuna muito maior e, no entanto, não ter autoridade para comandar uma dúzia de pessoas. Embora a produção de sua propriedade possa ser suficiente para sustentar — e talvez de fato sustente — mais de mil pessoas, como essas pessoas pagam por tudo o que dele recebem — já que dificilmente ele dá algo a alguém a não ser em troca de um valor equivalente — dificilmente existirá alguém que se considere inteiramente dependente dele, e sua autoridade abrange apenas alguns poucos criados domésticos. Não obstante isto, a autoridade que advém da fortuna é muito grande, mesmo em uma sociedade rica e civilizada. Que ela é muito maior do que a decorrente da idade ou das qualidades 189
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pessoais, eis a queixa constante de cada período da sociedade que tenha admitido alguma desigualdade considerável de fortuna. O primeiro período da sociedade, o dos caçadores, não admitia tal desigualdade. A pobreza universal cria em tal sociedade a igualdade universal, e a superioridade, quer da idade, quer das qualidades pessoais, constitui o fundamento, fraco, mas absoluto, da autoridade e da subordinação. Por isso, nesse período da sociedade há pouca ou nenhuma autoridade ou subordinação. O segundo período da sociedade, o dos pastores, comporta desigualdades de fortuna muito grandes, não havendo nenhum outro período em que a superioridade de fortuna confira autoridade tão grande aos que a possuem. Não há, pois, nenhum outro período em que a autoridade e a subordinação estejam mais solidamente estabelecidas. A autoridade de um governante árabe é muito grande, e a de um cã tártaro totalmente despótica. A quarta das citadas causas ou circunstâncias é a superioridade de nascimento. A superioridade de nascimento pressupõe uma antiga superioridade de fortuna na família da pessoa que a reivindica. Todas as famílias têm antigüidade igual e os ancestrais do príncipe, conquanto possam ser mais conhecidos, dificilmente podem ser mais numerosos do que os do mendigo. A antigüidade de família em toda parte significa a antigüidade de riqueza ou daquela importância que se fundamenta na riqueza ou a acompanha. A importância do nouveau riche em toda parte é menos respeitada do que a importância que vem da antigüidade. O ódio em relação aos usurpadores, por um lado, e o amor consagrado à família de um antigo monarca, por outro, em grande parte fundem-se no menosprezo que as pessoas naturalmente têm pelos primeiros e na veneração que têm pelo segundo. Assim como um oficial militar se submete sem relutância à autoridade de um superior pelo qual sempre foi bem comandado, não tolerando que seu inferior seja colocado acima dele, da mesma forma as pessoas facilmente se submetem a uma família à qual elas e seus ancestrais sempre se submeteram, porém se enchem de indignação quando passam a ser dominadas por outra família, na qual nunca reconheceram qualquer superioridade desse gênero. A distinção de nascimento, por ser conseqüência da desigualdade de fortuna, não pode existir em nações de caçadores, entre os quais todos, com igual fortuna, da mesma forma devem ser quase iguais por nascimento. Sem dúvida, o filho de uma pessoa sábia e valente pode, entre essas nações, ser um pouco mais respeitado que uma pessoa de méritos iguais que tem a infelicidade de ser filho de um tolo ou de um covarde. Todavia, a diferença não será muito grande; e, segundo acredito, nunca houve, no mundo todo, uma ilustre família cujo prestígio proviesse inteiramente da herança da sabedoria e da virtude. A distinção de nascimento não somente pode existir, mas sempre efetivamente existe entre nações de pastores. Tais nações sempre são alheias a qualquer tipo de luxo, e dificilmente acontece que uma grande riqueza possa ser dissipada pela prodigalidade imprudente entre tais nações. Por isso, não existem nações que tenham maior número de 190
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famílias reverenciadas e honradas por descenderem de uma longa progênie de grandes e ilustres ancestrais, pois não há nenhuma nação na qual a riqueza provavelmente continue por mais tempo nas mãos das mesmas famílias. O nascimento e a fortuna constituem, evidentemente, as duas circunstâncias primordiais que conferem a uma pessoa autoridade sobre outra. São as duas grandes fontes de distinção entre as pessoas, e, por isto, representam as duas causas principais que estabelecem naturalmente a autoridade e a subordinação entre os homens. Entre as nações de pastores, as duas causas operam com sua força plena. O grande pastor ou dono de rebanhos, respeitado devido à sua grande riqueza e ao grande número dos que dele dependem para sua subsistência e reverenciado em razão da nobreza de seu nascimento, bem como da antigüidade imemorial de sua família ilustre, desfruta de uma autoridade natural sobre todos os pastores ou donos de rebanhos inferiores de sua horda ou clã. Ele pode comandar a força unida de um contingente de pessoas maior que qualquer um deles. Seu poder militar é maior do que o de qualquer um deles. Em tempo de guerra, todos estão naturalmente dispostos a cerrar fileiras sob sua bandeira, preferindo-a à de qualquer outra pessoa, e seu nascimento e sua fortuna lhe garantem, destarte, uma espécie de poder executivo. Ademais, pelo fato de liderar ele uma força única de um contingente de pessoas superior à de qualquer deles, é ele a pessoa mais credenciada para obrigar qualquer um de seus subordinados que tenha lesado outro a reparar o erro. Ele é, pois, a pessoa na qual espontaneamente procuram proteção todos os que são demasiadamente fracos para se defender. É a ele que naturalmente levam suas queixas contra as injustiças de que imaginam ter sido vítimas, e à sua intervenção, em tais casos, se submetem mais facilmente — inclusive a pessoa acusada — do que se submeteriam a qualquer outra pessoa. Portanto, seu nascimento e sua fortuna naturalmente lhe asseguram uma espécie de autoridade judicial. É na era dos pastores, segundo período da sociedade, que a desigualdade de fortuna começa a existir, introduzindo entre as pessoas um grau de autoridade e subordinação cuja existência era impossível anteriormente. Esta desigualdade de fortuna dá, portanto, certa relevância àquele governo civil indispensavelmente necessário para a preservação da própria sociedade. Esta desigualdade de fortuna dá, portanto, certa relevância àquele governo civil indispensavelmente necessário para a preservação da própria sociedade; e, ao que parece, ela o faz naturalmente, independentemente mesmo da consideração da referida necessidade. Sem dúvida, esta última consideração posteriormente contribuiu muitíssimo para manter e garantir as citadas autoridade e subordinação. Os ricos, em particular, necessariamente se interessam em manter essa ordem de coisas, já que só ela é capaz de assegurar-lhes a posse de suas próprias vantagens. As pessoas de riqueza menor se associam para defender as de maior riqueza na posse de sua propriedade, a fim de que as de riqueza maior possam se associar 191
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na defesa da posse das riquezas delas. Todos os pastores e donos de rebanhos de ordem inferior sentem que a segurança de seus próprios rebanhos e manadas dependem da segurança dos rebanhos do grande pastor ou dono de rebanhos; que a salvaguarda de sua autoridade inferior depende da salvaguarda da sua autoridade superior, e que, da subordinação deles em relação ao grande pastor depende o poder que este tem de manter a subordinação de seus subordinados. Estes constituem uma espécie de pequena nobreza, interessada em defender a propriedade e em apoiar a autoridade de seu próprio pequeno soberano, para que este seja capaz de defender a sua propriedade e apoiar a sua autoridade. O governo civil, na medida em que é instituído para garantir a propriedade, de fato o é para a defesa dos ricos contra os pobres, ou daqueles que têm alguma propriedade contra os que não possuem propriedade alguma. No entanto, a autoridade judicial de tal soberano, longe de ser uma fonte de despesas, durante muito tempo constituiu para o soberano uma fonte de renda. As pessoas que recorriam a ele para pleitear justiça estavam sempre dispostas a pagar esse serviço, e nunca um pedido deixava de vir acompanhado de um presente. Além disso, depois de se ter consolidado inteiramente a autoridade do soberano, também a pessoa considerada culpada era obrigada a pagar uma multa a ele, além de indenizar a parte lesada. A pessoa considerada culpada havia acarretado incômodo a seu senhor, o rei, tinha-o perturbado, tinha violado sua paz, considerando-se que deveria pagar uma multa por essas ofensas. Nos governos tártaros da Ásia, nos governos europeus fundados pelas nações germânica e cita que derrubaram o Império Romano, a administração judicial constituía uma fonte considerável de renda, tanto para o soberano como para os chefes ou senhores inferiores que, abaixo dele, exerciam qualquer jurisdição específica, quer sobre alguma tribo ou clã, quer sobre algum território ou distrito em especial. De início, tanto o soberano como os chefes inferiores costumavam exercer tal jurisdição pessoalmente. Posteriormente, em toda parte acharam todos conveniente delegá-la a algum substituto, bailio ou juiz. Este substituto, porém, era ainda obrigado a prestar contas a seu superior ou constituinte dos lucros da jurisdição. Quem ler as instruções14 dadas aos juízes da circunscrição no tempo de Henrique II verá claramente que tais juízes eram uma espécie de comissários nômades, enviados através do país para recolher certos itens da renda do rei. Naquela época, a administração judicial não somente proporcionava certa renda ao soberano, como também a obtenção desta renda parece haver sido uma das principais vantagens que ele se propunha a conseguir com a administração judicial. Esse método de colocar a administração judicial a serviço do recolhimento de renda dificilmente podia deixar de acarretar vários abu14
Essas instruções encontram-se em: TYRREL, James. General History of England, both Ecclesiastical and Civil, v. II, 1700, pp. 576-579. 192
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sos graves. A pessoa que recorresse à justiça com um grande presente em mãos tinha probabilidade de obter algo mais que a simples justiça, ao passo que aquela que recorresse com um presente pequeno nas mãos tinha probabilidade de obter algo menos que a justiça. Ademais, com freqüência o cumprimento da justiça podia ser retardado, para que o presente se repetisse. E mais: a multa devida pelo acusado muitas vezes podia sugerir uma razão muito forte para considerá-lo como tendo agido mal, mesmo quando na realidade ele era inocente. A história antiga de todos os países europeus atesta que tais abusos estavam longe de ser pouco comuns. Quando o soberano ou o chefe exercia sua autoridade judicial pessoalmente, por mais que dela abusasse, dificilmente deve ter sido possível conseguir alguma reparação, pois raramente deve ter havido alguém com poderes suficientes para exigir-lhe satisfação. Quando o rei exercia a autoridade judicial através de um bailio, sem dúvida às vezes podia ocorrer alguma reparação. Se o bailio tivesse cometido um ato injusto somente para beneficiar-se a si mesmo, nem sempre o próprio soberano estava com disposição para puni-lo ou obrigá-lo a reparar o erro. Se, porém, o bailio havia cometido um ato de injustiça para agradar a quem o designara, e este tivesse alguma preferência pelo designado, neste caso, na maioria das vezes, uma reparação seria tão impossível quanto teria sido se o próprio soberano tivesse cometido a injustiça. Por isso, em todos os governos bárbaros, particularmente em todos os antigos governos bárbaros fundados sobre as ruínas do Império Romano, a administração judicial parece ter sido por longo tempo extremamente corrupta, estando longe de ser equânime e imparcial, mesmo sob os melhores monarcas, sendo totalmente corrupta sob os piores. Entre nações de pastores, onde somente o soberano ou chefe é o único maior pastor ou dono de rebanhos da horda ou clã, este é sustentado da mesma forma que qualquer de seus vassalos ou súditos, isto é, pela multiplicação de seus próprios rebanhos ou manadas. Também entre as nações de agricultores que acabaram de sair do estágio pastoril, e que ainda não progrediram muito além dele — tais como parecem ter sido as tribos gregas ao tempo da guerra de Tróia, bem como os nossos ancestrais germânicos e citas quando se instalaram sobre as ruínas do império ocidental — o soberano ou chefe é, da mesma forma, o único maior proprietário de terras do país, sendo mantido, da mesma maneira que qualquer outro senhor de terras, por uma renda proveniente de sua própria propriedade privada ou daquilo que, na Europa moderna, se tem chamado de domínios da Coroa. Seus súditos, em ocasiões normais, não contribuem com nada para seu sustento, a não ser quando precisam de sua autoridade, para que os defenda da opressão de algum de seus concidadãos. Os presentes que em tais ocasiões os súditos dão ao rei constituem a única renda normal, os únicos emolumentos que, com exceção talvez de alguns casos de extrema emergência, o soberano aufere de sua jurisdição sobre os súditos. Quando Agamenon, em Homero, oferece a Aquiles, em troca de sua amizade, 193
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a soberania sobre sete cidades gregas, a única vantagem que menciona como resultado provável disso é que a população o honraria com presentes. Enquanto tais presentes, enquanto os emolumentos judiciais ou o que se pode denominar honorários do tribunal constituíam assim a única renda normal que o soberano auferia de sua soberania, dificilmente se poderia esperar — nem mesmo se poderia decentemente propô-lo — que ele os abandonasse de todo. Poder-se-ia propor, como freqüentemente se fazia, que ele regulamentasse e fixasse tais proventos, e de fato, muitas vezes, esta proposta foi feita. Entretanto, depois que estes proventos foram regulamentados e fixados, impedir que uma pessoa todo-poderosa os ampliasse além do regulamentado — eis uma coisa muito difícil, para não dizer impossível. Por conseguinte, durante a vigência desse estado de coisas, a corrupção na justiça, resultado inevitável da natureza arbitrária e incerta desses presentes, dificilmente admitia algum remédio eficaz. Quando, porém, em decorrência de diversas causas — sobretudo em virtude do aumento contínuo dos gastos para a defesa da nação contra a invasão de outras nações — a propriedade privada do soberano se havia tornado totalmente insuficiente para cobrir as despesas da soberania, e quando se tornou necessário que o povo, para sua própria segurança, contribuísse para cobrir essas despesas com impostos de vários tipos, parece ter-se tornado muito comum estipular que nem o soberano nem seus bailios ou substitutos, os juízes, recebessem mais qualquer tipo de presentes pela administração judicial, sob qualquer pretexto. Parece que se supôs ser mais fácil abolir totalmente tais presentes do que regulá-los e fixá-los com eficácia. Determinaram-se salários fixos para os juízes, que supostamente os compensavam pela perda de qualquer que tivesse sido sua parte nos antigos emolumentos judiciais, já que os impostos compensavam sobremaneira ao soberano a perda dos dele. Afirmou-se que, a partir de então, a justiça passou a ser administrada gratuitamente. Contudo, em país algum jamais a justiça foi na realidade administrada gratuitamente. Os advogados e os procuradores, no mínimo, sempre devem ser pagos pelas partes envolvidas, e se não o fossem, cumpririam seu ofício de modo ainda pior do que efetivamente o cumprem. Em todo tribunal, os honorários anualmente pagos a advogados e procuradores representam um montante, em todo o tribunal, muito superior aos salários pagos aos juízes. A circunstância de serem esses salários pagos pela Coroa em parte alguma pode fazer com que diminuam muito as despesas necessárias para um processo judicial. Todavia, se os juízes foram proibidos de receber algum presente ou honorário das partes litigantes, isto foi feito não tanto para se reduzirem os gastos, mas antes para impedir a corrupção da Justiça. O ofício de juiz representa, por si mesmo, uma honra tão grande que as pessoas o aceitam com prazer, ainda que seus emolumentos sejam muito minguados. O cargo de juiz de paz, de graduação inferior, embora passível de muitos incômodos, e na maioria dos casos não com194
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portando emolumento algum, é ambicionado pela maior parte dos nossos aristocratas rurais. Os salários altos ou baixos de todos os tipos de juízes, juntamente com todos os gastos de administração e de execução da Justiça, mesmo quando esta não é administrada muito bem economicamente, representam, em qualquer país civilizado, apenas uma parcela irrelevantíssima dos gastos totais do Governo. Além disso, todas as despesas de administração judicial poderiam facilmente ser pagas com os honorários do tribunal, e, sem expor a administração judicial a nenhum risco ou corrupção reais, a renda pública poderia assim ser totalmente liberada de certo ônus, mesmo que, embora, talvez pequeno. É difícil regulamentar eficazmente os honorários do tribunal quando uma pessoa tão poderosa como o soberano tem que deles partilhar e auferir parcela considerável de sua renda. Isso é muito fácil quando o juiz é a principal pessoa que pode auferir algum benefício deles. A lei pode, com muita facilidade, obrigar o juiz a respeitar o regulamento, embora nem sempre esteja em condições de fazer com que o soberano o respeite. Onde os honorários do tribunal são regulamentados e fixados com precisão, onde são pagos de uma vez, em um determinado momento de cada processo, diretamente a um caixa ou tesoureiro, para serem por este distribuídos, em determinadas proporções conhecidas, entre os diversos juízes, depois da decisão do processo, e não antes disto, parece não haver mais perigo de corrupção do que quando tais honorários são sumariamente proibidos. Esses honorários, sem gerar nenhum aumento considerável das despesas de um processo judicial, poderiam tornar-se plenamente suficientes para cobrir todas as despesas da administração judicial. Por não serem pagos aos juízes antes da decisão do processo, poderiam constituir um certo estímulo à diligência do tribunal no exame e na decisão do processo. Em tribunais compostos de grande número de juízes, caso se pagasse cada juiz proporcionalmente ao número de horas e dias que tivesse empregado no exame do processo no próprio tribunal ou em uma comissão designada pelo tribunal, esses honorários poderiam, até certo ponto, estimular cada juiz a trabalhar com diligência. Os serviços públicos nunca são executados com maior perfeição do que quando sua remuneração só vem conseqüentemente à sua execução, e é proporcional à diligência com que foram cumpridos. Nos diversos parlamentos da França, os honorários dos tribunais (denominados épices e vacations) representam em muito a maior parte dos emolumentos dos juízes. Depois de feitas todas as deduções, o salário líquido pago pela Coroa a um conselheiro ou juiz no Parlamento de Toulouse, o segundo do reino em posição hierárquica e em dignidade, corresponde a apenas 150 libras, aproximadamente 6 libras esterlinas e 11 xelins por ano. Há cerca de sete anos, no mesmo local essa soma representava o salário anual normal de um soldado de infantaria comum. Também a distribuição dessas épices é feita de acordo com a diligência dos juízes. Um juiz diligente ganha com seu trabalho uma renda comprovadora, embora moderada, ao passo que um juiz indolente ganha pouco mais 195
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do que seu salário. Sob muitos aspectos, talvez esses parlamentos não sejam tribunais de justiça muito convenientes; contudo, jamais foram alvo de acusação; ao que parece, jamais foram sequer alvo de suspeitas de corrupção. Ao que parece, os honorários dos tribunais constituíram, de início, o suporte principal dos diversos tribunais da Inglaterra. Cada tribunal empenhava-se em atrair o máximo de processos que pudesse e, por essa razão, dispunha-se a examinar muitos processos que, originalmente, não se destinavam à sua jurisdição. O Tribunal Superior de Justiça, instituído para julgar as causas criminais, tomou conhecimento dos processos civis; o querelante alegando que o querelado não lhe está fazendo justiça tinha sido culpado de alguma transgressão ou má conduta. O Tribunal do Tesouro Público, instituído para recolher a renda do rei e forçar o pagamento de dívidas quando devidas ao rei, passou a assumir todos os demais processos referentes a dívidas oriundas de contratos, já que o querelante alegara não poder pagar ao rei porque o querelado não lhe poderia pagar. Em conseqüência de tais alegações, em muitos casos acabava dependendo totalmente das partes litigantes escolherem o tribunal em que seria julgada sua causa; por sua vez, cada tribunal se empenhava, por despacho superior ou desinteresse, a atrair a si tantas causas quantas pudesse. Talvez a admirável; constituição atual dos tribunais de Justiça na Inglaterra resulte, em grande parte, originalmente dessa emulação, que antigamente existia entre seus respectivos juízes. Cada um deles, em seu próprio tribunal, esforçava-se por aplicar a mais eficiente e rápida solução para toda espécie de injustiça. De início, os tribunais de Justiça decretavam indenização somente por quebra de contratos. O Tribunal da Chancelaria, como um tribunal da consciência, foi o primeiro a exigir judicialmente o cumprimento específico de acordos. Quando a quebra de contrato consistia na falta de pagamento em dinheiro, o prejuízo sofrido só podia ser compensado ordenando o pagamento, o que equivalia a um cumprimento específico do acordo. Em tais casos, portanto, a solução dos tribunais de Justiça era suficiente. O mesmo não acontecia em outros. Quando o arrendatário processava seu patrão por tê-lo mandado embora injustamente de sua terra arrendada, a indenização que o arrendatário recebia de forma alguma equivalia à posse da terra. Por isso, tais causas, durante algum tempo, iam todas para o Tribunal da Chancelaria, acarretando perda não pequena para os tribunais de Justiça. Foi para avocar tais causas ao tribunais de Justiça que, como se afirma, inventou-se a artificial e fictícia ordem de desapropriação, a solução mais eficaz para o despejo e a expropriação de terra. Um imposto de selo sobre os processos de cada tribunal específico, a ser cobrado pelo respectivo tribunal e aplicado na manutenção dos juízes e de outros oficiais adidos a ele, poderia igualmente proporcionar uma renda suficiente para cobrir os gastos da administração da Justiça, sem acarretar nenhum ônus para a renda geral do país. Sem dúvida, neste caso, os juízes poderiam estar expostos à tentação de multiplicar 196
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desnecessariamente os trâmites de cada processo, a fim de aumentar ao máximo possível o montante do imposto do selo. Na Europa moderna costuma-se regulamentar, na maioria dos casos, o pagamento dos advogados e funcionários dos tribunais conforme o número de páginas que tinham que escrever, cabendo, porém, aos tribunais exigir que cada página contivesse determinado número de linhas, e cada linha, determinado número de palavras. Para aumentar seu pagamento, os advogados e funcionários resolveram multiplicar as palavras além de qualquer necessidade, o que contribuiu para a corrupção da linguagem judicial de todos os tribunais da Europa, segundo acredito. Tal tentação poderia talvez acarretar igual corrupção na forma dos processos legais. Entretanto, quer no caso de ser a administração judicial planejada de modo a cobrir seus próprios gastos, quer no caso de se manterem os juízes com salários fixos, pagos a eles de algum outro fundo, não parece necessário confiar à pessoa ou às pessoas encarregadas do poder executivo a administração do referido fundo ou o pagamento desses salários. Esse fundo poderia provir da renda de propriedades fundiárias, sendo a administração de cada propriedade confiada ao tribunal específico a ser por ela mantido. Esse fundo poderia até provir dos juros de uma soma de dinheiro, cujo empréstimo poderia igualmente ser confiado ao tribunal a ser por ele mantido. Com efeito, uma parte, embora pequena, do salário dos juízes do Tribunal de Sessões da Escócia provém dos juros de uma soma de dinheiro. Todavia, parece que, devido à inevitável instabilidade de tal fundo, ele não é adequado para manter uma instituição que deve durar para sempre. A separação do poder judicial do poder executivo parece haver originariamente derivado do volume cada vez maior dos negócios da sociedade, em decorrência de seu aperfeiçoamento crescente. A administração judicial tornou-se uma obrigação tão laboriosa e complexa que exigia a atenção total das pessoas a quem estava confiada. Dado que a pessoa encarregada do poder executivo não dispunha de tempo para dedicar-se pessoalmente à decisão de causas privadas, nomeou-se um delegado para decidir em seu lugar. Com o impulso do poderio romano, o cônsul estava excessivamente ocupado com os negócios políticos do Estado para que pudesse atender à administração da Justiça. Por isso, nomeou-se um pretor para administrar a Justiça em seu lugar. Com o progresso das monarquias européias fundadas sobre as ruínas do Império Romano, os soberanos e os grandes senhores passaram em toda parte a considerar a administração da Justiça como um ofício ao mesmo tempo excessivamente laborioso e humilde para que o exercessem pessoalmente. Por isso, em toda parte livraram-se deste ônus, nomeando um substituto, bailio ou juiz. Quando o poder judicial funciona unido ao poder executivo, dificilmente é possível evitar que a Justiça muitas vezes seja sacrificada ao que, vulgarmente, se chama de política. As pessoas a quem estão confiados os grandes interesses do Estado podem, por vezes, mesmo se isentas de espírito corrupto, considerar necessário sacrificar a esses 197
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interesses os direitos de uma pessoa particular. Mas, da administração imparcial da Justiça depende a liberdade de cada indivíduo, o senso que tem de sua própria segurança. Para fazer com que cada indivíduo se sinta perfeitamente seguro na posse de todos os direitos que lhe cabem, é necessário não somente que o poder judicial seja separado do poder executivo, mas também que seja o mais independente possível dele. O juiz não deveria poder ser removido de seu ofício ao arbítrio daquele poder. O pagamento regular do salário do juiz não deveria depender da boa vontade de poder executivo e nem mesmo da boa situação econômica deste. PARTE TERCEIRA OS GASTOS
COM AS
OBRAS
E AS
INSTITUIÇÕES PÚBLICAS
O terceiro e último dever do soberano ou do Estado é o de criar e manter essas instituições e obras públicas que, embora possam proporcionar a máxima vantagem para uma grande sociedade, são de tal natureza, que o lucro jamais conseguiria compensar algum indivíduo ou um pequeno número de indivíduos, não se podendo, pois esperar que algum indivíduo ou um pequeno número de indivíduo as crie e mantenha. Também o cumprimento deste dever exige despesas cujo montante varia muito conforme os diferentes períodos da sociedade. Depois das instituições e obras públicas necessárias para a defesa da sociedade e para a administração da Justiça — ambas já mencionadas —, as demais obras e instituições públicas consistem sobretudo nas que se destinam a facilitar o comércio da sociedade e nas que visam a promover a instrução do povo. As instituições destinadas à instrução dividem-se em dois tipos: as que visam à educação da juventude e as que visam à instrução dos cidadãos de todas as idades. Para examinarmos a maneira mais adequada de atender às despesas inerentes a esses diversos tipos de obras e instituições públicas, dividiremos esta terceira parte do presente capítulo em três artigos. ARTIGO I As obras e as instituições públicas destinadas a facilitar o comércio da sociedade. Em primeiro lugar, as que são necessárias para facilitar o comércio em geral. É um fato evidente, que não precisa de nenhuma demonstração, que a criação e manutenção das obras públicas para facilitar o comércio em qualquer país — tais como boas estradas, pontes, canais navegáveis, portos etc. — necessariamente requerem gastos cujo montante varia muito, de acordo com os diversos períodos da sociedade. As despesas para construir e manter as estradas públicas de qualquer país devem 198
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forçosamente aumentar ao mesmo tempo que a produção anual da terra e do trabalho de respectivo país, ou ao mesmo tempo que a quantidade e o peso das mercadorias que se torna necessário buscar e transportar nessas estradas. A resistência de uma ponte deve adequar-se ao número e ao peso dos veículos que provavelmente passarão por ela. A profundidade e o volume de água para um canal navegável devem ajustar-se ao número e tonelagem das barcaças que provavelmente transportarão mercadorias através dele, e as dimensões de um porto têm que se adequar ao número de embarcações que provavelmente nele ancorarão. Não parece necessário que os gastos feitos com obras públicas sejam pagos com aquela receita pública — como se denominá-las —, cujo recolhimento e aplicação, na maioria dos países, estão confiados ao poder executivo. A maior parte dessas obras públicas pode ser facilmente administradas de tal maneira que elas mesmas gerem uma receita específica suficiente para cobrir seus próprios custos, sem acarretar ônus algum à receita geral do país. Uma estrada, uma ponte, um canal navegável, por exemplo, na maioria dos casos podem ser construídos e mantidos mediante o pagamento de um pequeno pedágio pelos veículos que os atravessam; em se tratando de um porto, com a cobrança de uma moderada taxa portuária por tonelagem a cada embarcação que nele for carregada ou descarregada. A cunhagem de moeda, outra instituição para facilitar o comércio em muitos países, não somente cobre suas próprias despesas como também gera uma pequena receita ou senhoriagem paga ao soberano. Os serviços postais, outra instituição destinada ao mesmo fim, além de pagar suas próprias despesas, em quase todos os países propiciam renda bastante considerável para o soberano. Quando os veículos que trafegam por uma estrada ou por uma ponte e quando as barcaças que percorrem um canal navegável pagam pedágio em proporção ao seu peso ou tonelagem, cobrem a manutenção dessas obras públicas exatamente na proporção do resgate que nelas causam. Dificilmente parece possível inventar um meio mais eqüitativo de manter tais obras. Ademais, esta taxa ou pedágio, embora adiantada pelo transportador, acaba sendo paga pelo consumidor, do qual ela sempre será necessariamente cobrada no preço das mercadorias. Todavia, uma vez que as despesas de transporte são altamente reduzidas por tais obras públicas, as mercadorias, não obstante o pedágio, tornam-se para o consumidor mais baratas do que seriam de outra forma, pois o aumento do preço decorrente do pedágio é inferior à redução de preço decorrente do baixo preço do transporte. Por conseguinte, a pessoa que finalmente paga o pedágio ganha nesta aplicação mais do que perde pagando a taxa. Seu pagamento é exatamente proporcional a seu ganho. Na realidade, é apenas uma parte desse ganho que ela é obrigada a entregar, para obter o resto. Parece impossível imaginar método mais justo de cobrar uma taxa. Quando o pedágio imposto a veículo de luxo — coches, carruagens 199
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de posta etc. — é um pouco mais elevado, em proporção ao seu peso, do que o pedágio cobrado de veículos de uso necessário — tais como carroças, carretas etc. — faz-se com que a indolência e a vaidade dos ricos contribua de maneira muito fácil para aliviar os pobres, barateando o transporte de mercadorias pesadas a todas as partes do país. Quando, pois, as estradas de rodagem, pontes, canais etc. são construídos e mantidos pelo comércio que se efetuam através dessas obras, estas só podem ser executadas onde o comércio as exigir, e portanto, onde for indicado construí-las. Também os gastos com tais obras, sua imponência e magnificência devem ser adequados àquilo que o comércio é capaz de pagar. Portanto, elas devem ser construídas da maneira mais conveniente. Não se pode construir uma estrada majestosa em uma região deserta, onde há pouco ou nenhum comércio, ou simplesmente porque ela eventualmente conduz à vila de campo do intendente da província, ou à de algum grande senhor a quem o intendente considera conveniente agradar. Não se pode construir uma grande ponte sobre um rio em local por onde ninguém passa, ou simplesmente para embelezar a vista que se estende através das janelas de um palácio vizinho; coisas deste gênero acontecem, às vezes, em países em que tais obras são executadas com rendas outras e não com as que esses próprios países têm condições de produzir. Em diversas regiões da Europa, o pedágio a ser pago em um canal é propriedade de pessoas privadas, cujo interesse particular as obriga a manter o canal. Se ele não é mantido de maneira aceitável, a navegação cessa totalmente e com isto todo lucro que as referidas pessoas têm condições de auferir dos pedágios. Se estes fossem administrados por comissários que não tivessem pessoalmente nenhum interesse neles, poderiam ser menos cuidadosos com a manutenção das obras geradoras dessas taxas. O canal de Languedoc custou ao rei da França e à província mais de 13 milhões de libras francesas, que (a 28 libras francesas por marco de prata, valor da moeda francesa no final do século passado) equivalem a mais de 900 mil libras esterlinas. Ao término dessa obra, considerou-se que o método mais provável de mantê-la constantemente em bom estado era dar de presente as taxas de pedágio ao engenheiro Riquet, que havia planejado e dirigido a construção. Atualmente, esses pedágios constituem uma enorme propriedade dos diversos ramos da família de Riquet, os quais, portanto, têm grande interesse em manter a obra constantemente em boas condições. Se, porém, a administração desses pedágios tivesse sido confiada a comissários que não tinham tal interesse, eles talvez poderiam ter sido dissipados em despesas com fins ornamentais e supérfluos, levando à ruína as partes essenciais da obra. Não se pode, com qualquer grau de segurança, deixar as taxas de pedágio para a manutenção de uma estrada à disposição de particulares. Uma estrada de rodagem, mesmo que totalmente negligenciada, não se torna inteiramente intransitável, como acontece com um canal. Por isso, os responsáveis pelas taxas de pedágio de uma estrada 200
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poderiam negligenciar totalmente a manutenção da mesma, continuando, apesar disso, a cobrar quase os mesmos pedágios. O mais aconselhável portanto é colocar os pedágios para a manutenção de tais obras sob a administração de comissários ou encarregados. Na Grã-Bretanha, em muitos casos se têm levado queixas muito justas contra os abusos cometidos pelos encarregados na administração desses pedágios. Tem-se afirmado que em muitos postos de pedágios o dinheiro recolhido representa mais que o dobro do necessário para a execução mais perfeita do trabalho, o qual, no entanto, muitas vezes é executado de modo mais displicente possível e freqüentemente nem chega a ser executado. Cumpre observar que não é muito durável o sistema de reparar as rodovias com taxas de pedágio desse tipo. Não devemos nos surpreender, assim, se ele ainda não tenha atingido o grau de perfeição de que parece ser capaz. Se com freqüência se nomeiam como curadores pessoas medíocres e inaptas, e se ainda não se criaram tribunais adequados para inspecionar e controlar sua conduta e para reduzir as taxas de pedágio ao estritamente necessário às obras a serem por eles executadas, a data recente dessa instituição responde por essas deficiências e constitui uma escusa; a maior parte dessas faltas pode ser gradualmente sanada, em tempo oportuno, pela sabedoria do Parlamento. Supõe-se que o dinheiro recolhido nos diversos postos de pedágio da Grã-Bretanha supera tanto o necessário para consertar as estradas que as economias que disso se poderiam auferir com uma boa administração têm sido consideradas, mesmo por alguns ministros, como um recurso valiosíssimo que um dia poderia ser aplicado para atender às necessidades do Estado. Tem-se afirmado que o Governo, assumindo ele mesmo a administração dos postos de pedágio, e empregando soldados — que trabalhariam com um adicional mínimo acrescido a seu solo —, poderia manter as estradas em bom estado com um custo muito menor do que o podem fazer os curadores, que não dispõem de outros operários senão daqueles cuja subsistência depende integralmente de seus salários. Dessa forma, tem-se afirmado, poder-se-ia obter uma grande receita, talvez !15 meiomilhão,semimpornenhumnovoônus à população; e desta maneira se poderia fazer com que os postos de pedágio contribuíssem para cobrir os gastos gerais do Estado, da mesma forma como acontece atualmente com os serviços postais. Não tenho dúvida alguma de que deste modo se poderia obter uma receita considerável, ainda que não tanto têm suposto os autores desse plano. Ocorre, porém, que o plano, como tal, parece merecer várias objeções muito sérias. Primeiramente, se as taxas de pedágio cobradas nos postos fossem 15
Desde a publicação das duas primeiras edições desta obra, tenho boas razões para crer que o total das taxas de pedágio recolhidas na Grã-Bretanha não geram uma receita líquida que chegue a 0,5 milhão — quantia que, sob a administração do Governo, não seria suficiente para manter em boas condições cinco das principais estradas do reino. 201
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um dia consideradas como um dos recursos para atender às necessidades do Estado, certamente seriam aumentadas na medida em que se julgasse necessário para atender a tais urgências. Por isso, de acordo com a política da Grã-Bretanha, provavelmente seriam aumentadas muito rapidamente. A facilidade com que disso se pode auferir uma grande receita provavelmente estimularia a administração a lançar mão desse recurso com muita freqüência. Embora talvez se possa duvidar bastante de que se pudesse economizar meio milhão das atuais taxas de pedágio, com certa parcimônia, dificilmente se poderia duvidar de que seria possível poupar um milhão, se essas taxas fossem dobradas; e, talvez, dois milhões se fossem triplicadas16 Além disso, essa elevada receita poderia ser recolhida sem nomear um único oficial a mais para recebê-la. Todavia, com o aumento contínuo das taxas de pedágio, em vez de facilitarem o comércio interno do país, como ocorre atualmente, elas logo se transformariam em enorme obstáculo para ele. As despesas de transporte de todas as mercadorias pesadas de uma parte do país para outra logo subiriam tanto e, conseqüentemente, se reduziria a tal ponto o mercado para todas essas mercadorias, que se desestimularia notavelmente sua produção, aniquilando-se totalmente os mais importantes setores da atividade interna. Em segundo lugar, uma taxa de transportes proporcional ao peso dos veículos, embora seja uma taxa muito justa quando aplicada somente com o único fim de reparar as estradas, é muito injusta quando aplicada para qualquer outra finalidade ou para atender às exigências normais do Estado. Quando a taxa é aplicada exclusivamente no mencionado fim, supõe-se que cada veículo pague exatamente o desgaste por ele produzido nas estradas. Quando, porém, ela é empregada para servir a qualquer outro objetivo, cada veículo paga supostamente mais do que o desgaste causado, contribuindo para atender a alguma outra necessidade do Estado. Entretanto, uma vez que a taxa de pedágio aumenta o preço das mercadorias em proporção a seu peso, e não em proporção a seu valor, ela é paga sobretudo pelos consumidores de mercadorias brutas e volumosas, e não pelos consumidores de mercadorias preciosas e leves. Qualquer que seja portanto a necessidade do Estado que se tencione atender com a referida taxa, tal necessidade seria atendida sobretudo à custa dos pobres e não dos ricos; por conseguinte, à custa daqueles que são menos capazes de pagá-las, e não daqueles que têm mais condições de fazê-lo. Em terceiro lugar, se o Governo, algum dia, negligenciar a reparação das estradas públicas, seria ainda mais difícil do que atualmente exigir a aplicação adequada de qualquer parcela das taxas de pedágio. Poder-se-ia assim recolher da população uma grande receita, sem que parcela alguma da mesma fosse aplicada na única finalidade em que se deve empregar uma renda assim recolhida. Se a deficiência 16
Tenho atualmente boas razões para crer que todas estas somas conjecturais são por demais exageradas. 202
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e a pobreza dos encarregados dos postos de pedágio fazem com que atualmente seja difícil, às vezes, obrigá-los, a reparar seus erros, suas abastança e capacidade fariam com que isto fosse dez vezes mais difícil no caso aqui suposto. Na França, os fundos destinados à reparação das estradas principais estão sob o controle direto do poder executivo. Esses fundos consistem, em parte, em certo número de dias de trabalho que os camponeses, na maior parte da Europa, são obrigados a doar para a reparação das estradas principais e uma parcela da receita geral do Estado que o rei quiser poupar de suas outras despesas. Pela antiga legislação francesa, bem como pela da maioria dos outros países europeus, o trabalho dos camponeses estava sob o controle de uma magistratura local ou provincial, que não tinha nenhuma dependência direta em relação ao Conselho real. Pela prática atual, porém, tanto o trabalho dos camponeses como qualquer outro fundo que o rei quiser destinar à reparação das estradas em qualquer província específica ou em geral, estão totalmente sob o controle do intendente oficial, que é nomeado e demitido pelo Conselho real e que dele recebe ordens e com ele mantém correspondências constantes. Com o aumento do despotismo, a autoridade do poder executivo gradualmente absorve a de todos os outros poderes existentes no Estado, passando a assumir a administração de toda receita destinada a qualquer finalidade pública. Na França, porém, as grandes estradas de posta, estradas que possibilitam a comunicação entre as principais cidades do reino, são em geral mantidas em bom estado e em algumas províncias até bem melhor do que a maior parte das estradas com postos de pedágio da Inglaterra. No entanto, as assim chamadas estradas transversais, a grande maioria das estradas do país, são totalmente negligenciadas, sendo em alguns lugares absolutamente intransitáveis para qualquer veículo pesado. Em alguns lugares é até perigoso viajar a cavalo, e mulas são o único meio de transporte em que se pode confiar com segurança. O orgulhoso ministro de uma portentosa corte muitas vezes pode comprazer-se em executar uma obra esplêndida e magnífica, como uma grande estrada, que com freqüência é apreciada pela alta nobreza, cujos aplausos não somente lisonjeiam a vaidade dele, como também contribuem para reforçar sua influência na corte. Executar, porém, um grande número de obras pequenas, nas quais nada do que se possa fazer garante maior prestígio nem suscita o mínimo grau de admiração em nenhum viajante, e que, em suma, não têm nenhum título de recomendação a não ser sua extrema utilidade, eis um negócio sob todos os aspectos excessivamente mesquinho e indigno de merecer a atenção de um magistrado de tão alta posição. Com tal administração, tais obras tão pequenas são quase sempre totalmente negligenciadas. Na China, bem como em várias outras províncias da Ásia, o poder executivo se encarrega tanto da reparação das estradas principais como da manutenção dos canais navegáveis. Segundo se afirma, nas instruções dadas ao governador de cada província esses objetivos lhe são 203
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constantemente encarecidos, sendo que o julgamento que a corte faz da conduta dele depende muitíssimo do cuidado que ele tiver demonstrado no atendimento dessa parte das instruções. Pelo que se diz, esse setor da política pública é muito bem atendido em todas essas regiões, sobretudo na China, onde as estradas principais e, mais ainda, os canais navegáveis, ultrapassam de muito tudo o que se conhece de similar na Europa. Contudo, os relatos sobre essas obras, que têm chegado à Europa, geralmente são feitos por viajantes imprecisos e facilmente impressionáveis, muitas vezes por missionários estultos e mentirosos. Se as obras tivessem sido examinadas por observadores mais inteligentes, e se os relatos tivessem sido feitos por testemunhas mais dignas de fé, talvez não pareceriam tão maravilhosas. O relato de Bernier sobre algumas obras deste tipo no Hindustão fica muitíssimo aquém daquilo que tem sido dito sobre elas por outros viajantes mais propensos ao maravilhoso do que Bernier. Também nesses países talvez possa acontecer o que ocorre na França, onde as grandes estradas, as grandes vias de comunicação que têm probabilidade de constituir assunto de conversa na corte e na capital são bem cuidadas, e todo o resto negligenciado. Além disso, na China, no Hindustão e em várias outras regiões da Ásia, o rendimento do soberano provém quase inteiramente de um tributo ou renda de terras, que aumenta ou diminui conforme cresce ou declina a produção anual da terra. Em tais países, portanto, o grande interesse do soberano, seu rendimento, está necessária e diretamente associado ao cultivo da terra, ao volume e ao valor da produção da mesma. Ora, para aumentar ao máximo o volume e o valor dessa produção, é necessário proporcionar-lhe um mercado o mais amplo possível e, conseqüentemente, criar a comunicação mais livre, mais fácil e mais barata possível entre todas as diversas regiões do país; e isso só pode ser feito através de melhores estradas e de melhores canais navegáveis. Mas, a receita do soberano, em parte alguma da Europa provém principalmente de um tributo ou de uma renda da terra. Em todos os grandes reinos da Europa, talvez, a maior parte dessa receita depende, em última análise, da produção da terra, mas essa dependência não é nem tão imediata nem tão evidente. Na Europa, portanto, o soberano são se sente tão diretamente estimulado a promover o aumento da produção de terra, tanto em volume como em valor, nem a proporcionar o maior mercado possível para tal produção, mantendo boas estradas e canais. Por conseguinte, ainda que fosse verdade — quanto a isso, segundo entendo, não se cabe a mínima dúvida — que em algumas regiões da Ásia esse setor da política pública seja muito bem administrado pelo poder executivo, não há a mínima probabilidade de que, enquanto durar o atual estado de coisas, esse poder tenha condições de administrá-lo de maneira aceitável em qualquer parte da Europa. Mesmo as obras públicas que, por sua natureza, não têm condições de gerar renda para sua própria manutenção, mas cuja conveniência está mais ou menso restrita a algum lugar ou distrito em particular, 204
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sempre são mais bem mantidas com uma receita local ou provincial, sob a direção de uma administração local e provincial, do que com a receita geral do Estado, cuja administração sempre deve caber ao poder executivo. Se porventura as ruas de Londres tivessem que ser iluminadas e pavimentadas à custa do Tesouro, haveria alguma probabilidade de serem tão bem iluminadas e pavimentadas como atualmente, ou mesmo a um custo tão baixo? Além disso, a despesa necessária para isto, em vez de ser coberta por um tributo local sobre os habitantes de cada rua, paróquia ou distrito de Londres, neste caso seria custeada pela receita geral do Estado e, conseqüentemente, coberta por um tributo imposto a todos os habitantes do reino, cuja grande maioria não aufere nenhum benefício da iluminação e da pavimentação das ruas de Londres. Os abusos que às vezes se introduzem furtivamente na administração local e provincial de uma receita local e provincial, por maiores que possam parecer, na realidade são quase sempre muito insignificantes, em confronto com os que costumam existir na administração e no dispêndio da receita de um grande império. Ademais, esses abusos são corrigidos com muito mais facilidade. Sob a administração local ou provincial dos juízes de paz na Grã-Bretanha, os seis dias em que os camponeses são obrigados a trabalhar para a reparação das estradas talvez nem sempre sejam aplicados com muita sensatez, mas raramente são cobrados com algum resquício de crueldade ou pressão. Na França, sob a administração dos intendentes, a aplicação nem sempre é mais sensata, e a cobrança, muitas vezes, é extremamente cruel e opressiva. Essas corvéias, como são designadas, representam um dos principais instrumentos de tirania com os quais esses oficiais castigam toda paróquia ou comunidade que tenha tido a infelicidade de cair no seu desagrado. As obras e as instituições públicas necessárias para facilitar determinados setores do comércio. O objetivo das obras e das instituições públicas que acabei de mencionar é facilitar o comércio em geral. Entretanto, para agilizar certos setores específicos do mesmo, impõem-se instituições específicas, que também exigem um gasto especial extraordinário. Certos setores particulares do comércio, em que se transaciona com nações bárbaras e incivilizadas, exigem uma proteção extraordinária. Um depósito ou escritório de contabilidade comum pouca segurança poderia oferecer às mercadorias dos comerciantes que transacionam com a costa ocidental da África. Para defendê-los dos nativos bárbaros, é necessário fortificar, em certa medida, o local onde as mercadorias são depositadas. Supostamente, foram os distúrbios no governo do Hindustão que tornaram necessária uma precaução similar mesmo entre essa população dócil e pacata; e foi sob a alegação de dar segurança a essas pessoas e a suas propriedades contra a violência, que tanto a Companhia das Índias Orientais da Inglaterra como a da França 205
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obtiveram permissão para erigir as primeiras fortificações que possuíam naquele país. Em outras nações, cujo governo forte não admite que estrangeiros possuam qualquer local fortificado dentro de seu território, pode ser necessário manter um embaixador, ministro ou cônsul, que possa resolver, segundo seus próprios costumes, as divergências que surgirem entre seus próprios patrícios; e que, nas suas disputas com os nativos possam, recorrendo às prerrogativas de seu caráter público, interferir com mais autoridade, assegurando-lhes proteção mais forte do que a que poderiam esperar de uma pessoa privada. Os interesses do comércio muitas vezes têm criado a necessidade de manter ministros em países estrangeiros onde os objetivos da guerra ou da aliança não os exigiriam. O comércio da Companhia da Turquia foi o primeiro a levar à criação de um embaixador ordinário em Constantinopla. As primeiras embaixadas inglesas na Rússia foram exclusivamente conseqüência de interesses comerciais. A constante interferência nesses interesses inevitavelmente provocada entre os súditos por diversos Estados da Europa, provavelmente criou o hábito de manter, em todos os países vizinhos, embaixadores ou ministros com residência constante no país, mesmo em tempo de paz. Este costume desconhecido em tempos antigos parece não remontar além do fim do século XV ou do começo do século XVI, isto é, à época em que o comércio começou a estender-se à maior parte das nações européias, e quando estas começaram a atender aos interesse desse comércio. Parece razoável que a despesa extraordinária exigida pela proteção de algum setor específico de comércio fosse coberta por um tributo moderado incidente sobre o respectivo setor; por exemplo, mediante um tributo moderado a ser pago pelos comerciantes quando começam a praticar tal comércio ou, o que é mais justo, mediante um tributo específico, de tantos por cento, incidente sobre as mercadorias que importam dos países específicos com os quais se mantêm esse comércio, ou que para eles exportam. Segundo se afirma, foi a proteção do comércio em geral contra piratas e flibusteiros que levou à primeira instituição das taxas aduaneiras. Mas, se foi considerado razoável impor uma taxa geral para cobrir as despesas de exportação ao comércio em geral, seria, da mesma forma, igualmente razoável impor uma taxa específica a um determinado setor do comércio, a fim de cobrir a despesa extraordinária para proteger esse ramo. A proteção ao comércio em geral sempre foi considerada essencial para a defesa do Estado e, por esse motivo, um elemento necessário dos deveres do poder executivo. Por isso, o recolhimento e a aplicação das taxas aduaneiras gerais sempre couberam àquele poder. Ora, a proteção de qualquer setor específico do comércio faz parte da proteção geral devida ao comércio e, portanto, é um dever inerente ao poder executivo; e, se as nações sempre agissem coerentemente, as taxas específicas recolhidas para os fins dessa proteção também deveriam ser sempre colocadas à disposição desse poder. Todavia, sob esse aspecto, como aliás sob muitos outros, nem sempre as nações têm sido 206
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coerentes em sua ação; na maior parte dos países comerciais da Europa, determinadas companhias de comerciantes têm procurado persuadir os legisladores a confiarem a elas o cumprimento desse dever do soberano, juntamente com todos os poderes necessariamente a ele vinculados. Essas companhias, conquanto talvez possam ter sido úteis para o primeiro estabelecimento de alguns setores comerciais, fazendo às suas próprias custas uma experiência que o Estado poderia não considerar prudente tentar, a longo prazo provaram ser, em toda parte, opressivas ou inúteis, tendo administrado mal ou restringido o comércio. Quando essas companhias não operam com um capital acionário mas são obrigadas a admitir qualquer pessoa devidamente qualificada, desde que pague determinada taxa e concorde em submeter-se aos regulamentos da companhia, com cada membro operando às próprias custas a assumindo seus próprios riscos, denominam-se companhias regulamentadas. Quando operam com base em um capital acionário, com cada membro participando do lucro e das perdas comuns proporcionalmente à sua participação no capital acionário, são designadas companhias de capital acionário. Tanto as companhias regulamentadas como as companhias de capital acionário, às vezes gozam de privilégios exclusivos, outras vezes não. As companhias regulamentadas assemelham-se em tudo às corporações de ofícios. tão comuns nas metrópoles e cidades menores de todos os países europeus, constituindo uma espécie de monopólios ampliados do mesmo tipo. Assim como habitante de uma cidade pode exercer um ofício corporativo sem antes obter sua licença da corporação, da mesma forma, na maioria dos casos, nenhum súdito do Estado pode legalmente exercer qualquer ramo de comércio externo para o qual exista uma companhia regulamentada, sem antes tornar-se membro dessa companhia. O monopólio é mais ou menos rigoroso, conforme as condições de admissão forem mais ou menos rigorosas e na medida em que os diretores da companhia tiverem maior ou menor autoridade ou conforme o grau maior ou menor de poder com que puderem administrar de maneira a restringir a maior parte do comércio a si mesmos e a seus amigos particulares. Nas companhias regulamentadas mais antigas, os privilégios de aprendizagem eram os mesmos que em outras corporações, dando à pessoa que tivesse servido durante certo tempo o direito de tornar-se membro da companhia, seja sem pagar nada, seja pagando uma taxa de valor muito inferior à que se exigia de outras pessoas. O habitual espírito de corporação, sempre que a lei não o coibir, prevalece em todas as companhias regulamentadas. Uma vez que se lhes permitiu agir em conformidade com suas inclinações naturais, elas sempre tentaram impor ao comércio muitos regulamentos opressivos, visando a limitar a concorrência ao menor número possível de pessoas. Quando a lei as impediu de agir desta forma, tornaram-se totalmente inúteis e destituídas de significado. As companhias regulamentadas para o comércio exterior que atualmente subsistem na Grã-Bretanha são: a antiga companhia de 207
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comerciantes aventureiros — atualmente conhecida sob o nome de Companhia de Hamburgo —, a Companhia da Rússia, a Companhia do Oriente, a Companhia da Turquia e a Companhia Africana. Pelo que se diz, as condições de admissão na Companhia de Hamburgo são facílimas; quanto a seus diretores, eles não têm poderes para impor restrições ou regulamentos opressivos ao comércio, ou, pelo menos, ultimamente não os têm exercido. No passado nem sempre foi assim. Em meados do século passado, a taxa para admissão era de 50 libras esterlinas chegando a 100, e se afirmava que a conduta da Companhia era extremamente opressiva. Em 1643, 1645 e 1661, os fabricantes de roupas feitas e os comerciantes autônomos do oeste da Inglaterra apresentaram ao Parlamento queixas contra ela, alegando que se comportava como monopolista, restringindo o comércio e oprimindo os manufatores do país. Muito embora essas queixas não tivessem provocado nenhuma lei do Parlamento, provavelmente eles conseguiram intimidar a Companhia a ponto de obrigá-las a mudar de conduta. Desde essa época, pelos menos, não tem havido mais queixas contra ela. Pelos Estatutos 10 e 11, capítulo 6, de Guilherme III, as taxas para admissão na Companhia Russa foram limitadas a 5 libras; e o Estatuto 25, capítulo 7, de Carlos II, limitou as taxas para admissão na Companhia do Oriente a 40 xelins; ao mesmo tempo, foram excluídas do âmbito exclusivo deles a Suécia, a Dinamarca e a Noruega, todas as regiões da margem norte do mar Báltico. Foi provavelmente a conduta dessas companhias que deu origem a essas duas leis do Parlamento. Antes dessa época, Sir Josiah Child havia descrito essas companhias, juntamente com a companhia de Hamburgo, como extremamente opressivas, atribuindo à sua má administração o baixo nível do comércio que na época mantínhamos com os países enquadrados no âmbito exclusivo dessas companhias. Contudo, ainda que atualmente elas possam não ser muito opressivas, na verdade são totalmente inúteis. Aliás, chamá-las simplesmente de inúteis, de fato, é talvez o maior elogio que, com justiça, se possa fazer a uma companhia regulamentada; e, as três companhias que acabei de mencionar, ao que parece, merecem esse elogio, no estado em que se encontram hoje. As taxas para admissão na Companhia da Turquia eram anteriormente de 25 libras para todas as pessoas de menos de 26 anos de idade, e de 50 libras para todas as acima dessa idade. Só se permitia a entrada de comerciantes no sentido rigoroso da palavra, restrição que excluía todos os lojistas e varejistas. Em virtude de uma lei secundária, ou de regimento interno, não poderia ser exportado para a Turquia nenhum produto manufaturado, a não ser em navios da Companhia; e já que esses navios zarpavam sempre do porto de Londres, essa restrição limitava o comércio a esse dispendioso porto e, quanto aos comerciantes, apenas aos que viviam em Londres e proximidades. Por outro regimento interno, não se podia admitir como membro nenhuma pessoa que, embora morando num raio de 20 milhas de Londres, não fosse cidadão londrino — outra restrição que, associada à anterior, 208
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excluía todos os que não fossem cidadãos londrinos. Já que o tempo de carga e navegação desses navios dependia inteiramente dos diretores, eles podiam facilmente carregar suas próprias mercadorias e as de seus amigos particulares, excluindo outros, sob o pretexto de que haviam entregue suas propostas muito tarde. Em tais circunstâncias, portanto, essa companhia constituía, sob todos os aspectos, um monopólio rigoroso e opressivo. Tais abusos deram origem ao Estatuto 26, capítulo 18, de Jorge II, que reduziu as taxas para admissão a 20 libras para qualquer pessoa, sem distinção de idade e sem nenhuma limitação à categoria de comerciantes propriamente ditos ou a cidadãos londrinos; o Estatuto garantia também a todos os membros a liberdade de exportar, de qualquer porto da Grã-Bretanha para qualquer porto da Turquia, todas as mercadorias britânicas cuja exportação não fosse proibida, e de importar de lá qualquer mercadoria turca cuja importação não fosse proibida, pagando tanto as taxas alfandegárias gerais como as taxas particulares avaliadas para cobrir as despesas necessárias da companhia, e submetendo-se, além disso, à autoridade legal do embaixador e dos cônsules britânicos residentes na Turquia, bem como aos regimentos internos da companhia devidamente promulgados. Para evitar toda opressão em virtude desses regimentos internos o mesmo Estatuto prescreveu que, se qualquer grupo de sete membros da companhia se considerasse lesado por qualquer regimento interno promulgado depois da aprovação do Estatuto, tinha o direito de apelar à Câmara do Comércio e das Colônias (à qual sucedeu agora um comitê do Conselho privado), desde que tal apelação fosse feita dentro de doze meses depois da promulgação do respectivo regimento interno da companhia; decretava-se também que, se qualquer grupo de sete membros da companhia se considerasse lesado por qualquer regimento interno promulgado pela companhia antes da promulgação do Estatuto, poderia apelar da mesma forma, desde que fosse dentro de doze meses a partir do dia da entrada em vigor do Estatuto. Todavia, possivelmente a experiência de um ano nem sempre era suficiente para revelar a todos os membros de uma grande companhia a tendência perniciosa de um determinado regimento interno; se vários deles descobriram o fato posteriormente, nem a Câmara do Comércio nem o comitê do Conselho têm condições de garantir-lhes alguma indenização. Além disso, o objetivo da maior parte dos regimentos internos de todas as companhias regulamentadas, bem como de todas as demais corporações, consiste não tanto em oprimir os que já são membros delas, mas em desestimular outros a se incorporarem como membros; isso pode ser feito não somente impondo taxas de alto valor, mas também por muitos outros meios. O objetivo permanente de tais companhias é sempre aumentar ao máximo possível a taxa de seu próprio lucro e manter o mercado, tanto das mercadorias que exportam como das que importam, o mais subabastecido possível — o que só se consegue limitando a concorrência ou desestimulando novos aventureiros a entrarem no comércio. Além disso, as taxas, mesmo que não passem de 20 libras, conquanto talvez não 209
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sejam suficientes para desestimular ninguém a entrar no comércio com a Turquia, com a intenção de continuar nele, podem bastar para desencorajar um comerciante especulador de aventurar-se, ainda que só uma vez, nesse comércio. Em todos os tipos de atividade, os comerciantes regularmente estabelecidos, mesmo que não façam parte de uma corporação, espontaneamente se associam para aumentar seus lucros, os quais não são suscetíveis de ser mantidos durante todo o tempo abaixo de seu próprio nível, como acontece no caso de concorrência ocasional de aventureiros especuladores. O comércio com a Turquia, embora até certo ponto esteja aberto a todos em virtude dessa lei do Parlamento, no entender de muitos continua bem longe de constituir um comércio totalmente livre. A Companhia da Turquia contribui para manter um embaixador e dois ou três cônsules, os quais, como outros ministros públicos devem ser inteiramente mantidos pelo Estado, e o comércio conservado aberto a todos os súditos de Sua Majestade. As diversas taxas recolhidas pela Companhia para esse e outros objetivos de uma corporação poderiam gerar uma renda muito mais do que suficiente para permitir ao Estado manter tais servidores públicos. Conforme observou Sir Josiah Child, embora as companhias regulamentadas muitas vezes tenham mantido servidores públicos, jamais mantiveram alguma fortificação ou guarnição nos países com os quais mantinham comércio, ao passo que as companhias de capital acionário o têm feito com freqüência. Na realidade, as primeiras parecem ter muito menos condições do que estas últimas para prestar esse tipo de serviço. Primeiramente, os diretores de uma companhia regulamentada não têm nenhum interesse particular na prosperidade do comércio geral da companhia, em função do qual se mantêm tais fortificações e guarnições. Muitas vezes o declínio desse comércio geral pode até contribuir para a vantagem de seu próprio comércio privado já que, diminuindo o número de seus concorrentes, esse declínio pode possibilitar-lhes comprar mais barato e vender mais caro. Ao contrário, os diretores de uma companhia de capital acionário, com participação apenas nos lucros auferidos do capital comum entregue à sua administração, não têm nenhum comércio privado próprio, cujo interesse possa ser alheio ao interesse do comércio geral da companhia. Seu interesse particular está vinculado à prosperidade do comércio geral da companhia, bem como à manutenção das fortificações e guarnições necessárias para a defesa do mesmo. Por isso, com maior probabilidade terão o cuidado contínuo e atento que essa manutenção necessariamente requer. Em segundo lugar, os diretores de uma companhia de capital acionário sempre administram um grande capital, o capital acionário da companhia, do qual podem muitas vezes empregar adequadamente uma parcela para construir, reparar e manter tais fortificações e guarnições necessárias. Os diretores de uma companhia regulamentada, porém, que não administram nenhum capital comum, não dispõem, para aplicar em fortificações e guarnições, de nenhum outro fundo a não ser a eventual renda proveniente das taxas de admissão e dos 210
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direitos de corporação, impostos às operações comerciais da companhia. Portanto, mesmo que tivesse o mesmo interesse em atender à manutenção de tais fortificações e guarnições, raramente podem dispor dos mesmos meios para fazê-lo com eficácia. A manutenção de um servidor público, um vez que dificilmente exige atenção, mas apenas uma despesa moderada e limitada, é um negócio muito mais condizente com a característica e as capacidades de uma companhia regulamentada. No entanto, bem depois do tempo de Sir Josiah Child, em 1750, criou-se uma companhia regulamentada, a atual companhia de comerciantes que transacionam com a África, expressamente encarregada, primeiro da manutenção de todas as fortificações e guarnições britânicas localizadas entre o cabo Branco e o cabo da Boa Esperança e depois somente das localizadas entre o cabo Vermelho e o cabo da Boa Esperança. A lei que cria esta companhia (Estatuto 23, capítulo 31, de Jorge II) parece ter tido em vista dois objetivos diferentes: primeiro, coibir com eficácia o espírito opressor e monopolizador natural aos diretores de uma companhia regulamentada; segundo, forçá-los, na medida do possível, a dispensarem atenção — o que não lhes é natural — à manutenção de fortificações e guarnições. Em função do primeiro objetivo, as taxas de admissão estão limitadas a 40 xelins. A companhia está proibida de comercializar como corporação ou com um capital acionário, de tomar empréstimos em dinheiro sobre selo comum ou de impor quaisquer restrições ao comércio que pode ser efetuado livremente de todos os lugares e por todos os cidadãos britânicos que pagam as taxas. A administração é composta de um comitê de nove pessoas que se reúnem em Londres, mas que são anualmente escolhidas pelos membros da companhia que forem cidadãos de Londres, Bristol e Liverpool, três de cada cidade. Nenhum membro do comitê de diretores pode continuar em suas funções por mais de três anos consecutivos. Qualquer membro do comitê podia ser removido pela Câmara do Comércio e das Colônias; atualmente só por um comitê do Conselho, após ser ouvida sua defesa. Proíbe-se ao comitê de diretores de exportar negros da África ou importar quaisquer mercadorias africanas para a Grã-Bretanha. Todavia, como são encarregados da manutenção de fortificações e guarnições, podem, para esse fim, exportar da Grã-Bretanha para a África mercadorias e suprimentos de diversos gêneros. Com o dinheiro que receberem da companhia, podem despender uma soma que não vá além de 800 libras para os salários de seus empregados e agentes em Londres, Bristol e Liverpool, para o aluguel de seu escritório em Londres e para todas as demais despesas de administração, comissões e agenciamento na Inglaterra. O que restar dessa soma, deduzidas essas diversas despesas, pode ser dividido entre eles, da forma que considerarem adequada, como compensação pelo seu trabalho. Com essa constituição, poder-se-ia esperar coibir eficazmente o espírito de monopólio, cumprindo-se a contento o primeiro objetivo. Parece, porém, que isso não ocorreu. Embora, pelo Estatuto 4, capítulo 20, de Jorge III, a fortificação do Senegal, com 211
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todas as suas dependências, tenha sido confiada a essa companhia, já no ano seguinte (por força do Estatuto 5, capítulo 44, de Jorge III), excluíram-se de sua jurisdição não somente o Senegal e suas dependências, como também toda a costa desde o porto de Sallel, na Barbaria meridional até o cabo Vermelho foi confiada à Coroa, declarando-se o comércio com esses territórios aberto a todos os súditos de Sua Majestade. Surgira a suspeita de que a companhia havia restringido o comércio e criado determinado tipo de monopólio indevido. Não é muito fácil imaginar como ela possa ter feito isso, com os regulamentos do Estatuto 23 de Jorge II. Contudo, nos debates impressos da Câmara dos Comuns — que nem sempre representam os registros mais autênticos da verdade — observo que a Companhia foi acusada desses abusos. Sendo todos os comerciantes membros do Comitê dos Nove, e dependentes deles os governadores e supervisores de suas diversas fortificações e fundações, não é improvável que estes tenham dispensado atenção especial às consignações e comissões dos diretores, o que criaria um monopólio efetivo. Para a consecução do segundo dos mencionados objetivos a manutenção das fortificações e guarnições, o Parlamento concedeu à companhia uma soma anual, geralmente em torno de 13 mil libras. Pela aplicação adequada dessa soma o comitê de diretores está obrigado a uma prestação de contas anual ao Barão Diretor do Tesouro, prestação depois submetida ao Parlamento. Todavia, o Parlamento, que tão pouca atenção dispensa à aplicação de milhões, pouca probabilidade tem de dispensar muita atenção à aplicação de 13 mil libras anuais; por sua vez, o Barão Diretor do Tesouro, pela sua profissão e formação, pouca probabilidade tem de ser particularmente versado em matéria de gastos com fortificações e guarnições. Sem dúvida, os capitães de esquadra de Sua Majestade ou quaisquer outros oficiais de patente, nomeados pelo Ministério da Marinha. podem inspecionar as condições das fortificações e guarnições e levar suas observações àquele Ministério. Todavia, este não parece ter nenhuma jurisdição direta sobre o comitê, nem dispor de nenhuma autoridade para corrigir a conduta daqueles que estão sob observação; além disso, não é de supor que os capitães de esquadra de Sua Majestade sejam sempre muito versados na ciência das fortificações. A remoção do cargo — que só pode ser ocupado durante três anos, e cujos anos emolumentos legais, mesmo durante esse prazo, são reduzidíssimos — parece constituir a punição máxima de que é passível um membro do comitê de direção, qualquer que seja a infração cometida, excetuados os casos de malversação direta ou desfalques, quer de dinheiro público, quer da companhia; ora o temor dessa punição jamais pode constituir motivo suficiente para forçar uma dedicação contínua e cuidadosa a uma atividade à qual o responsável não tem nenhum outro interesse em dedicar-se. O comitê é acusado de ter enviado tijolos e pedras da Inglaterra para reparar o forte do cabo Coast, na costa da Guiné, obra para a qual o Parlamento várias vezes havia concedido uma soma extraordinária em dinheiro. Além disso, afirmou-se 212
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que também esses tijolos e pedras, embarcados para uma viagem extremamente longa, eram de qualidade tão precária que foi necessário reconstruir, desde os fundamentos, as paredes com eles reparadas. As fortificações e guarnições localizadas ao norte de cabo Vermelho não somente são mantidas pelo Estado, mas estão sob a administração direta do poder executivo; ora, não parece muito fácil imaginar sequer uma razão válida por que as localizadas ao sul do referido cabo devam estar sob outra administração, até mesmo porque também elas, ao menos em parte, são mantidas às expensas do Estado. A proteção do comércio no Mediterrâneo foi a finalidade original ou pretexto para as guarnições de Gibraltar e Minorca e a manutenção e administração dessas guarnições sempre foram, com muito acerto, entregues não à responsabilidade de Companhia da Turquia, mas ao poder executivo. É na extensão de seus domínios que consiste, em grande parte, o orgulho e a dignidade do poder executivo, não sendo muito provável que ele deixe de dispensar atenção às providências necessárias para defender tal domínio. Por isto, as guarnições de Gibraltar e Minorca jamais foram negligenciadas; muito embora Minorca já tenha sido ocupada duas vezes e hoje esteja provavelmente perdida para sempre, esse desastre nunca foi sequer atribuído a alguma negligência por parte do poder executivo. Não gostaria, porém, de ser entendido no sentido de estar insinuando que uma ou outra dessas dispendiosas guarnições jamais tenha sido minimamente necessária para o fim em razão do qual elas foram originalmente desmembradas da monarquia espanhola. Talvez esse desmembramento nunca tenha servido a outro propósito real, senão para afastar a Inglaterra de seu aliado natural, o rei da Espanha, e para unir os dois ramos principais da Casa dos Bourbons em uma aliança muito mais íntima e permanente do que jamais poderia ter ocorrido em decorrência da consangüinidade. As companhias de capital acionário criadas ou por carta régia ou por lei do Parlamento, diferem, sob vários aspectos, tanto das companhias regulamentadas como das associações privadas. Primeiramente, em uma associação privada, nenhum sócio pode, sem o consentimento da companhia, transferir sua parte a outra pessoa ou levar para ela algum novo sócio. Contudo, cada sócio pode, após prévio aviso à companhia, retirar-se dela e exigir-lhe o pagamento de sua parte no capital comum. Ao contrário, em uma companhia de capital acionário, nenhum membro pode exigir da companhia pagamento de sua parte; cada um pode, porém, sem o consentimento dela, transferir sua parte a outra pessoa, que, assim, se tornaria um novo sócio. O valor de uma ação no capital acionário é sempre o preço que ela alcança no mercado; e este poder pode ser maior ou menor, em qualquer proporção, do que a soma que seu proprietário possui no capital da companhia. Segundo, em uma associação privada, cada sócio responde pelos débitos contraídos pela associação, até o total de sua fortuna. Ao contrário, em uma companhia de capital acionário, cada sócio responde apenas na extensão da participação que tem no capital da companhia. 213
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Os negócios de uma companhia de capital acionário sempre são administrados por um grupo de diretores. Na verdade, este muitas vezes está subordinado, sob muitos aspectos ao controle de uma assembléia geral de acionistas. Entretanto, a maioria destes raramente tem a pretensão de entender o que quer que seja dos negócios da companhia; e, quando o espírito de facção não vem eventualmente a prevalecer, eles não se preocupam com os negócios da companhia, senão que recebem satisfeitos os dividendos semestrais ou anuais, da forma que os diretores considerarem conveniente. Esta isenção total de incômodo e risco, além de se tratar de uma soma limitada, incentiva muitas pessoas, que de forma alguma arriscariam suas fortunas, em alguma associação privada, a se aventurar em companhias por ações. Em razão disto, tais companhias costumam atrair capitais muito maiores do que qualquer outra associação privada. O capital comercial da Companhia dos Mares do Sul chegou, em determinado tempo, a ascender a mais de 33,8 milhões de libras esterlinas. O capital dividido do Banco da Inglaterra monta, atualmente, a 10,780 milhões de libras. Entretanto, sendo que os diretores de tais companhias administram mais do dinheiro de outros do que o próprio, não é de esperar que dele cuidem com a mesma irrequieta vigilância com a qual os sócios de uma associação privada freqüentemente cuidam do seu. Como os administradores de um homem rico, eles têm propensão a considerar que não seria honroso para o patrão atender a pequenos detalhes, e com muitas facilidade dispensam esses pequenos cuidados. Por conseguinte, prevalecem sempre e necessariamente a negligência e o esbanjamento, em grau maior ou menor, na administração dos negócios de uma companhia. É por isso que as companhias de capital acionário para o comércio exterior raramente têm sido capazes de sustentar a concorrência contra aventureiros privados. Conseqüentemente, poucos êxitos têm obtido sem qualquer privilégio de exclusividade e, muitas vezes, nem sequer com isto têm logrado sucesso. Sem um privilégio de exclusividade, geralmente têm administrado mal o comércio. Com tal privilégio, além de administrar mal, têm limitado o comércio. A Companhia Real Africana, predecessora da atual Companhia Africana, desfrutava por carta régia de um privilégio de exclusividade; entretanto, já que essa carta régia não foi confirmada por uma lei do Parlamento, o comércio, conseqüência da declaração dos direitos, foi aberto a todos os súditos de Sua Majestade, logo após a revolução. A Companhia da Baía de Hudson está na mesma situação que a Companhia Real Africana, quanto a seus direitos legais. A carta régia que lhe confere o privilégio não foi confirmada por uma lei do Parlamento. A Companhia dos Mares do Sul, enquanto continuou a operar como uma companhia de comércio, teve seu privilégio de exclusividade confirmado por lei do Parlamento, da mesma forma que a atual Companhia Unida dos Mercadores, que comercia com as Índias Orientais. A Companhia Real Africana logo constatou que não tinha condições de sustentar a concorrência contra aventureiros privados, aos 214
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quais, a despeito da declaração dos direitos, ela continuou durante algum tempo a chamá-los de contrabandistas e a persegui-los como tais. Em 1698, porém, os aventureiros privados foram sujeitos a uma taxa de 10% em quase todos os setores de seu comércio, taxa esta que seria aplicada pela companhia na manutenção de suas fortificações e guarnições. Contudo, não obstante essa pesada taxa, a companhia continuou incapaz de manter a concorrência. Seu capital e crédito declinaram gradualmente. Em 1712, suas dívidas se tornaram tão grandes que se considerou necessário uma lei especial do Parlamento, para garantir tanto a segurança da companhia como a de seus credores. Decretou-se que a decisão tomada por 2/3 desses credores, em número e valor, constituiria uma obrigação aos demais, tanto em relação ao período que se daria à companhia para liquidar seus débitos, quanto em relação a qualquer outro acordo que se considerasse conveniente fazer com ela no tocante a esses débitos. Em 1730, os negócios da companhia andavam tão mal, que ela se tornou totalmente incapaz de manter suas fortificações e guarnições, única finalidade e pretexto de sua instituição. Desde aquele ano, até sua dissolução final, o Parlamento julgou necessário liberar a soma atual de 10 mil libras para esse fim. Em 1732, após ter perdido dinheiro durante muitos anos no comércio de transporte de negros para as Índias Ocidentais, a companhia finalmente resolveu abandonar totalmente esse ramo, vender aos comerciantes particulares que negociavam com a América os negros que havia comprado na costa e utilizar seus empregados no comércio de ouro em pó, dentes de elefantes, corantes etc. com o interior da África. Mas seu sucesso neste comércio mais limitado não foi maior do que no comércio anterior, mais amplo. Seus negócios continuaram a declinar gradualmente até que, por fim, caindo completamente em falência, a companhia foi dissolvida por lei do Parlamento, e suas fortificações e guarnições confiadas à atual companhia regulamentada de comerciantes que transaciona com a África. Antes da criação da Companhia Real Africana, haviam sido fundadas sucessivamente três outras companhias por ações para o comércio com aquele continente. Todas elas malograram da mesma forma. Entretanto, todas tinham cartas régias de exclusividade que, embora não confirmados por lei do Parlamento, se supunha, na época, comportarem um privilégio régio de exclusividade. A Companhia da Baía de Hudson, antes de seus infortúnios na última guerra, tinha sido muito mais bem-sucedida do que a Companhia Real Africana. Seus gastos necessários são muito menores. O contingente total de empregados que ela mantém em seus diversos estabelecimentos e habitação, aos quais deu o honroso nome de fortificações, não ultrapassa 120 pessoas, segundo se afirma. Todavia, esse número é suficiente para preparar antecipadamente a carga de peles de animais e outras mercadorias necessárias para carregar seus navios, os quais, devido ao gelo, raramente podem permanecer mais de seis ou oito semanas naqueles mares. Essa vantagem de ter uma carga previamente 215
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preparada durante vários anos não podia ser conseguida por aventureiros durante várias semanas, e sem isso, não parece haver possibilidade de fazer comércio com a baía de Hudson. Além do mais, o modesto capital da companhia — o qual, segundo se afirma, não supera as 110 mil libras — pode ser suficiente para encampar todo ou quase todo o comércio e o excedente de produção da miserável, embora extensa, região compreendida no raio de ação da companhia. Por esta razão, nenhum aventureiro jamais tentou comercializar com essa região, concorrendo com a companhia. Conseqüentemente, essa companhia sempre desfrutou, na realidade, de um comércio exclusivo, ainda que, talvez, a lei não lhe tenha assegurado tal direito. Além de tudo isso, afirma-se que o modesto capital dessa companhia está dividido em um número muito reduzido de proprietários. Ora, uma companhia por ações, constituída de um pequeno número de proprietários, dotada de um capital reduzido, assemelha-se muitíssimo a uma associação privada, podendo gerir seus negócios com o mesmo grau de vigilância e atenção. Não há que estranhar, pois, se, em decorrência dessas diversas vantagens, a Companhia da Baía de Hudson tivesse conseguido, antes da última guerra, efetuar seu comércio com grande êxito. Entretanto, não parece provável que seus lucros jamais se tenham aproximado dos imaginados pelo falecido Sr. Dobbs. Um escritor muito mais sóbrio e criterioso, o Sr. Anderson, autor de The Historial and Chronological Deduction of Commerce, observa com muito acerto que, examinando os relatórios que o próprio Sr. Dobbs forneceu durante vários anos seguidos, sobre as exportações e importações da companhia, e deixando as devidas margens de risco e despesas extraordinárias da companhia, não parece que os lucros dela sejam invejáveis ou excedam de muito — se é que chegam a exceder — os lucros normais no comércio. A Companhia dos Mares do Sul nunca teve fortificações nem guarnições para manter, estando portanto inteiramente isenta de uma grande despesa à qual estão sujeitas outras companhias por ações para o comércio exterior. Ela possuía, porém, um imenso capital dividido entre um número igualmente imenso de proprietários. Era, pois, natural esperar que toda a administração de seus negócios fosse dominada pela insensatez, pela negligência e pelo esbanjamento nos gastos. A velhacaria e a extravagância de seus projetos de especulação na bolsa são suficientemente conhecidas, não cabendo neste contexto explicá-las. O primeiro tipo de comércio no qual a Companhia se empenhou foi fornecer negros às Índias Ocidentais espanholas, privilégio que lhe coube em exclusividade (em decorrência do assim chamado Contrato de Asiento,17 a ela garantido pelo Tratado de Utrecht). Entretanto, 17
Chamava-se Asiento ao contrato de fornecimento de escravos africanos às possessões espanholas no continente americano. Em troca do privilégio, a companhia contratante pagava previamente certa quantia à Coroa espanhola. Foram sucessivamente beneficiados pelo Asiento os portugueses, os holandeses e os franceses. Pelo Tratado de Ultrecht, em 1713, os ingleses ganharam o Contrato de Asiento por trinta anos. (N. do E.) 216
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uma vez que não era de esperar que esse tipo de comércio desse muito lucro à companhia — já que tanto as companhias portuguesas como as francesas, que antes dela haviam fruído desse privilégio, nas mesmas condições, se haviam arruinado com isso — permitiu-se-lhe, a título de compensação, enviar anualmente um navio com determinada carga para comercializar diretamente com as Índias Ocidentais espanholas. Em dez viagens que esse navio pôde fazer, segundo se afirma, a companhia conseguiu um lucro considerável apenas em uma, a do Royal Caroline em 1731, tendo sofrido perdas, maiores ou menores, em quase todas as demais viagens. Os administradores e agentes da companhia atribuíram o malogro à extorsão e à opressão por parte do Governo espanhol; mas, talvez, ele se dava sobretudo ao esbanjamento e às depredações desses próprios administradores e agentes dos quais, pelo que se afirma, adquiriram grandes fortunas no período de apenas um ano. Em 1734 a companhia solicitou ao rei autorização para desfazer-se do comércio e dos direitos de frete de seu navio anual, em razão do reduzido lucro que com ele havia conseguido, aceitando o equivalente que pudesse conseguir do rei da Espanha. Em 1724, a companhia se havia lançado à pesca da baleia. Na realidade, ela não tinha monopólio nesse setor; todavia, enquanto se dedicou a isto, parece que nenhum outo súdito britânico exerceu tal atividade. Das oito viagens que seus navios empreenderam à Groenlândia, só lucrou em uma, perdendo em todas as demais. Depois de sua oitava e última viagem, quando já tinha vendido seus navios, estoques e utensílios, constatou que sua perda total, nesse ramo de negócio — incluindo o capital e os juros — ascendia a mais de 237 mil libras. Em 1722, a companhia solicitara ao Parlamento permissão para dividir seu imenso capital, de mais de 33,8 milhões de libras, emprestado em sua totalidade pelo Governo, em duas partes iguais: a primeira — ou seja, mais de 16,9 milhões de libras — a ser considerada da mesma forma que outras anuidades governamentais, não estando sujeita às dívidas contraídas e às perdas sofridas pelos diretores da companhia na execução de seus projetos mercantis; a outra permaneceria como antes, como capital de negócios, ficando sujeita às referidas dívidas e perdas. A petição era bastante razoável para não ser atendida. Em 1733, a companhia entrou com nova petição ao Parlamento, no sentido de que 3/4 de seu capital de negócios fossem transformados em títulos perpétuos, sendo que apenas 1/4 permaneceria como capital de negócios, isto é, exposto aos riscos decorrentes da má administração dos diretores. A esta altura, tanto os títulos perpétuos como os capitais de negócios haviam diminuído mais de 2 milhões cada, em virtude de vários pagamentos por parte do Governo; assim sendo, esta quarta parte montava apenas a 3 662 784 £ 8 s 6 d. Em 1748, todos os pedidos da companhia ao rei da Espanha, em conseqüência do Contrato de Asiento, foram, em virtude do tratado de Aix-la-Chapelle, substituídas pelo que se supunha ser um equivalente. Assim a companhia deixou de comercializar com as Índias Ocidentais espanholas e o restante de 217
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seu capital de negócios foi transformado em títulos perpétuos; a companhia deixou de ser, sob todos os aspectos, uma companhia comercial. Cumpre observar que, no comércio que a Companhia dos Mares do Sul exerceu através de seu navio anual — o único do qual jamais se poderia esperar que conseguisse auferir algum lucro apreciável — não lhe faltaram concorrentes, seja no mercado externo, seja no interno. Em Cartagena, Porto Bello e La Vera Cruz, teve que enfrentar a concorrência dos comerciantes espanhóis, os quais traziam de Cádiz, para aqueles mercados, mercadorias européias do mesmo tipo que a carga que seu navio trazia do exterior; e na Inglaterra, a companhia teve que enfrentar a concorrência dos comerciantes ingleses, que importavam de Cádiz mercadorias das Índias Ocidentais espanholas, do mesmo gênero de sua carga interna. De fato, as mercadorias dos comerciantes espanhóis e ingleses talvez estivessem sujeitas a taxas alfandegárias mais altas. Todavia, a perda ocasionada pela negligência, pelo esbanjamento e pela malversação dos empregados da companhia provavelmente terá sido um tributo muito mais pesado do que todos os citados. Que uma companhia por ações pudesse ter sucesso em qualquer ramo de comércio externo em que há possibilidade de aventureiros particulares poderem fazer qualquer tipo de concorrência aberta e honesta com ela parece contrário a toda experiência. A antiga Companhia Inglesa das Índias Orientais foi criada em 1600 por decreto da Rainha Isabel. Nas doze principais viagens feitas à Índia, ela parece ter comercializado como companhia regulamentada, com capitais separados, embora apenas em seus navios gerais. Em 1612 a companhia formou um capital acionário. Sua carta régia era exclusiva e, embora não confirmada por uma lei do Parlamento, naquela época era considerado um privilégio de exclusividade real. Durante muitos anos, portanto, a companhia não sofreu muita interferência dos contrabandistas. Seu capital, que nunca superou as 744 mil libras, sendo que cada ação valia 50 libras, não era tão exorbitante, nem suas transações de tal porte que desse pretexto a total negligência e esbanjamento, ou margem a grande malversação. A despeito de algumas perdas extraordinárias, ocasionadas em parte pela malícia da Companhia Holandesa das Índias Orientais, e em parte por outros fatos, durante muitos anos a companhia teve sucesso em seu comércio. Com o passar do tempo, porém, sendo mais bem assimilados os princípios da liberdade, tornou-se cada vez mais duvidoso determinar até que ponto uma carta régia, não confirmada por uma lei do Parlamento, tinha condições de garantir um privilégio de exclusividade. Sobre essa questão não eram uniformes as decisões dos tribunais de justiça, mas variavam de acordo com a autoridade do Governo e as características da época. Os contrabandistas multiplicavam-se, fazendo concorrência à companhia e, por volta do fim do reinado de Carlos II, por todo o reinado de Jaime II e durante parte do de Guilherme III, a companhia chegou a uma situação calamitosa. Em 1698, apresentou-se ao Parlamento uma proposta no sentido de a companhia adiantar 2 milhões 218
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ao governo, a 8%, desde que os subscritores instituíssem uma nova Companhia das Índias Orientais, com privilégios de exclusividade. A antiga Companhia das Índias Orientais ofereceu 700 mil libras, quase o total de seu capital, a 4%, nas mesmas condições. Entretanto, a situação do crédito público era tal, naquela época, que convinha mais ao Governo tomar emprestados 2 milhões de libras a 8% do que 700 mil libras a 4%. A proposta dos novos subscritores foi aceita, criando-se assim, uma nova Companhia das Índias Orientais. Todavia, a antiga Companhia das Índias Orientais tinha o direito de continuar a comercializar até 1701. Ao mesmo tempo, em nome de seu tesoureiro, ela havia subscrito, muito habilidosamente, 315 mil libras do capital da nova Companhia. Em virtude de um descuido na forma de expressão da lei do Parlamento, que concedeu o direito do comércio com as Índias Orientais aos subscritores desse empréstimo de 2 milhões, não ficava evidente que todos eles foram obrigados a constituir-se em uma companhia por ações. Alguns comerciantes particulares, cujas subscrições montavam a apenas 7 200 libras, insistiam no privilégio de comercializar separadamente, com seus próprios capitais e risco próprio. A antiga Companhia das Índias Orientais tinha direito a comercializar em separado, com base em seu antigo capital, até 1701; tinha, outrossim, tanto antes como depois desse período, o direito — igual ao de outros comerciantes particulares — de manter um comércio separado com base nas 315 mil libras que havia subscrito do capital da nova Companhia. Conforme se afirma, a concorrência das duas companhias com os comerciantes particulares e entre si quase levou uma e outra à ruína. Posteriormente, em 1730, quando se apresentou ao Parlamento uma proposta no sentido de submeter o comércio à administração de uma companhia regulamentada e, com isto, abri-lo, de certo modo, à concorrência, a Companhia das Índias Orientais, em oposição a tal proposta, manifestou-se em termos extremamente violentos contra os efeitos danosos que, em seu modo de ver, tinham advindo dessa concorrência. Na Índia — afirmava ela — as mercadorias haviam subido tanto de preço que já não valia a pena comprá-las; e na Inglaterra, devido à superestocagem do mercado, o preço delas descera tanto que já não havia possibilidade de auferir lucro. Dificilmente se pode duvidar de que, em razão de estoques mais abundantes — aliás, para grande vantagem e conveniência da população —, a concorrência deve ter reduzido muito o preço das mercadorias das Índias no mercado inglês; não parece, porém, muito provável que a concorrência tenha feito aumentar muito o preço dessas mercadorias no mercado das Índias, já que toda a extraordinária demanda que essa concorrência poderia provocar não deve ter representado mais do que uma gota d’água no imenso oceano do comércio das Índias Orientais. Além disso, o aumento da demanda, conquanto de início possa fazer subir, às vezes, o preço das mercadorias, nunca deixa de fazê-lo baixar o longo prazo. Ele estimula a produção, aumentando com isto a concorrência dos produtores, e estes, para poder vender mais barato do que os outros concorrentes, 219
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empenham-se em novas divisões de tarefas e em aperfeiçoar seus processos de produção, recursos sobre os quais, de outra forma, nunca teriam pensado. Os efeitos danosos de que a companhia se queixava eram o baixo preço dos artigos consumidos e o estímulo dado à produção, exatamente os dois efeitos que a Economia Política tem o grande objetivo de promover. Entretanto, não se permitiu que continuasse por muito tempo a concorrência sobre a qual a companhia apresentara um relato tão sombrio. Em 1702, as duas companhias foram, até certo ponto, unidas por um acordo tripartite, no qual a rainha era a terceira parte; e em 1708, em virtude de lei do Parlamento, as duas companhias foram plenamente consolidadas em uma só, designada com o nome atual de Companhia Unida de Mercadores que Comerciam as Índias Orientais. Considerou-se oportuno inserir nessa lei uma cláusula, permitindo aos comerciantes separados continuarem seu comércio até o dia da festa de São Miguel, 29 de setembro de 1711, mas, ao mesmo tempo, autorizando os diretores, com aviso prévio de três anos, a resgatarem seu pequeno capital de 7200 libras e, com isto, transformar o capital total da companhia em um capital acionário. Em virtude da mesma lei, o capital da companhia, em conseqüência de novo empréstimo do Governo, foi aumentado de 2 milhões para 3,2 milhões de libras. Em 1743 a Companhia adiantou mais um milhão ao Governo. Contudo, tendo essa soma provindo não de uma solicitação aos proprietários, mas da venda das anuidades e contraindo dívidas asseguradas por títulos, ela não aumentou o capital sobre o qual os proprietários tinham direito de reclamar dividendos. O novo acréscimo aumentou, porém, o capital de negócios da companhia, estando igualmente sujeito, com os outros 3,2 milhões de libras, às perdas sofridas e às dívidas contraídas pela companhia no desenvolvimento de seus projetos mercantis. A partir de 1708, ou ao menos desde 1711, esta companhia, uma vez garantida contra qualquer outra concorrência e totalmente inserida no monopólio do comércio inglês com as Índias Orientais, foi bem-sucedida em seu comércio e com os lucros auferidos anualmente, proporcionou modestos dividendos aos seus proprietários. Durante a guerra com a França, que começou em 1741, a ambição do Sr. Dupleix, governador francês de Pondicherry, envolveu a companhia nas guerras do Carnatic e na política dos príncipes indianos. Depois de muitos sucessos notáveis e de perdas igualmente significativas, ela acabou perdendo Madrasta, que na época era seu principal estabelecimento na Índia. O Tratado de Aix-la-Chapelle lhe restituiu este estabelecimento; por volta dessa época, o espírito de guerra e de conquista parece haver-se apossado de seus empregados na Índia e nunca mais tê-los abandonado. Durante a guerra com a França, que começou em 1755, o exército da companhia teve a mesma boa sorte dos exércitos da GrãBretanha. Ele defendeu Madrasta, tomou posse de Pondicherry, recuperou Calcutá e adquiriu os rendimentos de rico e extenso território que, na época, montavam a mais de 3 milhões por ano, segundo se diz. A companhia permaneceu na posse pacífica desse rendimento por 220
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vários anos; mas em 1767, a administração estatal reivindicou a posse das conquistas territoriais da companhia, bem como do rendimento delas decorrente, como um direito pertencente à Coroa; e, para atender a esta reivindicação, a companhia concordou em pagar ao Governo 400 mil libras por ano. Antes disto, ela havia aumentado gradualmente seus dividendos de aproximadamente 6 para 10%, isto é, sobre seu capital de 3,2 milhões de libras havia conseguido aumentar os dividendos de 128 mil libras, ou seja, ela os tinha aumentado de 192 mil libras por ano para 320 mil. Tentava ela, por volta dessa época, aumentar ainda mais os dividendos para 12,5%, o que faria com que os dividendos anuais pagos aos proprietários equivalessem ao que a companhia tinha concordado em pagar anualmente ao Governo, isto é, 400 mil libras por ano. Todavia, durante os dois anos em que deveria vigorar seu acordo com o Governo, a companhia foi impedida de aumentar ainda mais os dividendos, por força de duas leis sucessivas do Parlamento, cujo objetivo era possibilitar-lhe pagar mais rapidamente sua dívidas, na época calculadas em mais de 6 ou 7 milhões de libras esterlinas. Em 1769, a companhia renovou para mais cinco anos seu acordo com o Governo, estipulando que, no decurso do referido período, lhe fosse permitido aumentar gradualmente seus dividendos para 12,5%, desde que o aumento nunca fosse superior a um por cento por ano. Conseqüentemente, este aumento de dividendos, quando tivesse atingido seu ponto máximo, só poderia aumentar os pagamentos da companhia — tanto dos seus proprietários como do Governo — de 608 mil libras acima do que havia sido antes de suas recentes conquistas territoriais. Já mencionei qual era supostamente a renda bruta dessas conquistas territoriais; e, segundo um cálculo feito pela Cruttenden East Indiaman em 1768, a renda líquida, livre de todas as deduções e encargos militares, foi fixada em 2 048 747 libras. Ao mesmo tempo, segundo se afirma, a companhia tinha uma outra renda, proveniente, em parte, de terras, mas sobretudo das alfândegas estabelecidas em seus diversos estabelecimentos, renda que montava a 439 mil libras. Além disso, os lucros de seu comércio, segundo os dados apresentados pelo seu presidente à Câmara dos Comuns, ascendiam, nessa época, no mínimo, a 400 mil libras por ano; de acordo com os dados do contador da companhia, no mínimo, a 500 mil libras; de conformidade com o cômputo mais baixo, no mínimo igual aos dividendos máximos a serem pagos aos proprietários. Uma renda tão alta certamente poderia ter permitido um aumento de 608 mil libras em seus pagamentos anuais e, ao mesmo tempo, poderia ter deixado um grande fundo de amortização, suficiente para a rápida redução das dívidas da companhia. Entretanto, em 1773, suas dívidas, em vez de diminuir, aumentaram, por um atraso no pagamento das 400 mil libras ao Tesouro, por outro pagamento à alfândega, referente às taxas que não tinham sido pagas, por um grande débito com o banco resultante de dinheiro emprestado e por títulos emitidos contra a companhia na Índia, e temerariamente aceitos, num montante superior a 1,2 milhão de libras. A desgraça 221
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que essas reclamações acumuladas trouxeram à companhia obrigou-a não somente a reduzir imediatamente seus dividendos a 6%, como também a entregar-se à mercê do Governo, suplicando-lhe, primeiro, uma remissão do pagamento ulterior das 400 mil libras por ano; e, segundo, um empréstimo de 1,4 milhão de libras, para salvá-la da falência imediata. Ao que parece, o grande aumento de sua fortuna servira apenas a empregados como pretexto para gastar mais e como cobertura para malversação ainda superior a esse próprio aumento de fortuna. A conduta dos empregados da companhia na Índia, bem como o estado geral dos negócios da mesma, na Índia e na Europa, tornaram-se objeto de um inquérito do Parlamento; em conseqüência disso foram efetuadas várias alterações importantes na constituição de sua administração, tanto na Grã-Bretanha como no exterior. Na Índia, seus estabelecimentos principais em Madrasta, Bombaim e Calcutá, que anteriormente haviam sido totalmente independentes entre si, foram submetidos a um governador-geral, secundado por um Conselho de assessores, reservando-se o Parlamento a primeira nomeação desse governador e dos membros do Conselho, que deviam residir em Calcutá, que se tornara agora o que Madrasta fora antes, isto é, o mais importante dos estabelecimentos ingleses na Índia. O tribunal do prefeito de Calcutá, originariamente instituído para julgar causas mercantis surgidas na cidade e na vizinhança, gradualmente ampliou sua jurisdição com a ampliação do império. O tribunal passou então a restringir-se ao propósito originário de sua instituição. Em lugar dele foi instituída uma corte suprema de judicaturas constando de um juiz presidente e de três juízes, nomeados pela Coroa. Na Europa, a exigência necessária para dar a um proprietário o direito de votar nas assembléias gerais da companhia foi aumentada de 500 libras, preço originário de uma ação no capital da companhia, para mil libras. Além disso, para poder votar com base nessa qualificação, declarou-se necessário que o acionista deveria possuí-la no mínimo há um ano — em vez de seis meses, prazo anteriormente exigido — se a tivesse adquirido por compra própria e não por herança. Anteriormente, a diretoria composta de vinte e quatro membros era eleita anualmente; agora decidiu-se que cada diretor fosse eleito para quatro anos, sendo que, porém, seis deles, por sistema de rodízio, deviam deixar a função a cada ano, não podendo reeleger-se na escolha dos seis novos diretores para o ano seguinte. Em decorrência dessas alterações, esperava-se que, tanto o conjunto dos proprietários como o dos diretores, agiriam provavelmente com mais dignidade e firmeza do que costumavam fazêlo antes. Entretanto, parece impossível que através de quaisquer alterações se possa tornar assembléias aptas, sob qualquer aspecto, a governar um grande império, ou até participar do governo do mesmo, pois a maior parte de seus membros necessariamente tem muito pouco interesse na prosperidade desse império para dispensar atenção àquilo que pode promovê-la. Com muita freqüência, uma pessoa de grande 222
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fortuna, mesmo, às vezes, uma pessoa de pequena fortuna, deseja comprar mil libras de ações do capital aplicado na Índia, simplesmente pela influência que espera adquirir com um voto na assembléia dos acionistas. Isto lhe dá uma participação, senão na pilhagem, ao menos na nomeação dos saqueadores da Índia, já que, embora seja a diretoria que faz tal nomeação, ela está inevitavelmente mais ou menos sob a influência dos acionistas, que não somente elegem esses diretores, como também, às vezes, indeferem as nomeações de seus empregados na Índia. Desde que o acionista possa desfrutar dessa influência durante alguns anos e, com isto, atender a um certo número de seus amigos, geralmente pouco se preocupa com os dividendos, ou mesmo com o valor do capital no qual se funda seu voto. Em se tratando da prosperidade do grande império em cujo governo esse voto lhe dá participação, ele raramente tem alguma preocupação. Jamais houve outros soberanos que fossem ou pudessem ser, pela própria natureza das coisas, tão indiferentes à felicidade ou à miséria de seus súditos, ao aprimoramento ou ao deterioramento de seus domínios, à glória ou à desgraça de sua administração, quanto o é, e necessariamente tem de ser, em virtude de causas morais irresistíveis, a maior parte dos acionistas de uma tal companhia mercantil. Ademais, essa indiferença provavelmente tendia a aumentar, em vez de diminuir, graças às novas medidas adotadas em conseqüência do inquérito parlamentar. Por exemplo, uma resolução da Câmara dos Comuns declarou que, quando fosse paga a soma de 1,4 milhão de libras emprestadas pelo Governo à companhia, e suas dívidas asseguradas por títulos se reduzissem a 1,5 milhão de libras, a companhia poderia então — e não antes disto — distribuir dividendos de 8% sobre seu capital; e que, tudo o que restasse de suas rendas e lucros líquidos no país fosse dividido em quatro partes; três delas a serem pagas ao Tesouro para o uso do público, e a quarta parte reservada como um fundo destinado à ulterior redução de suas dívidas asseguradas por títulos ou a atender a outras exigências contingentes que eventualmente pesassem sobre a companhia. Ora, se esta tinha maus administradores e maus diretores, quando toda a sua renda e seus lucros líquidos pertenciam a ela e estavam a seu dispor, certamente não teria probabilidade de ser mais bem administrada e governada quando três quartos deles pertenciam a outras pessoas e a outra quarta parte, embora podendo ser utilizada em benefício da companhia, só poderia sê-lo sob inspeção e com aprovação de terceiros. Seria mais satisfatório para a companhia que seus empregados e dependentes tivessem tanto o prazer de desperdiçar como o lucro de apropriar-se de todo excedente, após pagar os dividendos propostos de 8%, do que se ela caísse nas mãos de um grupo de pessoas com as quais as citadas resoluções dificilmente poderiam deixar de colocá-la de certo modo em discordância. O interesse dos empregados e dependentes da companhia poderia predominar na assembléia dos acionistas a ponto, em certas circunstâncias, de dispô-la a apoiar os responsáveis pelas depredações cometidas em frontal violação à sua própria auto223
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ridade. Para a maioria dos acionistas, o próprio apoio à autoridade de sua assembléia poderia, às vezes, constituir assunto de menor importância do que o apoio àqueles que haviam desafiado essa autoridade. Conseqüentemente, as medidas de 1773 não puseram fim às irregularidades na direção da companhia na Índia. Não obstante isto, durante um acesso momentâneo de boa conduta, ela chegou a juntar, no Tesouro de Calcutá, mais de 3 milhões de libras esterlinas; apesar disso, a companhia posteriormente estendeu seus domínios ou suas depredações a um vasto território de algumas das mais ricas e férteis regiões da Índia; tudo foi devastado e destruído. A companhia viu-se totalmente despreparada para resistir à incursão de Hyder Ali e, em conseqüência desses distúrbios, atualmente (1784) ela está em situação pior do que nunca, e para evitar falência imediata vê-se novamente obrigada a suplicar a ajuda do Governo. Diversos planos têm sido propostos pelas várias correntes do Parlamento, a fim de melhorar a administração de seus negócios. E todos esses planos parecem ser acordes naquilo que, na realidade, sempre foi extremamente evidente, isto é, que a companhia é totalmente incapaz de governar seus domínios territoriais. A própria companhia deve estar convencida de sua incapacidade, parecendo, por isso, propensa a entregá-los ao Governo. Ao direito de possuir fortificações e guarnições em países distantes e bárbaros está necessariamente vinculado o de manter a paz e fazer a guerra nessas regiões. As companhias por ações que têm tido o primeiro direito, têm sempre exercido também o segundo, tendo-se com freqüência conferido expressamente este direito a elas. É por demais conhecida, por experiência recente, a maneira injusta, arbitrária e cruel com que elas têm geralmente exercido tal direito. Quando uma companhia de comerciantes empreende, com seus próprios riscos e despesas, a criação de um novo comércio com alguma nação distante e bárbara, pode ser razoável transformá-la em companhia por ações e outorgar-lhe, em caso de êxito, um monopólio de comércio durante determinado número de anos. É o caminho mais seguro e natural para o Estado recompensá-la por aventurar-se em uma experiência perigosa e dispendiosa, da qual o público posteriormente colherá os benefícios. Um monopólio temporário deste gênero pode ser justificado com base nos mesmos princípios em virtude dos quais se concede monopólio similar de uma nova máquina a seu inventor e o de um novo livro a seu autor. Todavia, expirado esse prazo, o monopólio certamente deve cessar, e as fortificações e guarnições, se é que se considerou necessário estabelecer alguma, devem ser entregues ao Governo, seu valor pago à Companhia, e o comércio aberto a todos os súditos do país. A concessão de um monopólio perpétuo equivale a taxar, de modo extremamente absurdo, todos os demais súditos do país, de duas maneiras: primeiro, pelo alto preço das mercadorias, as quais, no caso de comércio livre, a população poderia comprar muito mais barato; segundo, pela exclusão total dos cidadãos de um setor comercial que poderia ser para muitos deles tanto conveniente como 224
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rentável explorar. Além disso, são totalmente condenáveis os motivos pelos quais se impõe tal tributo à população. Ele tem por objetivo simplesmente possibilitar à companhia endossar a negligência, o esbanjamento e a malversação de seus próprios empregados, cuja má conduta raramente permite que os dividendos a serem por ela distribuídos ultrapassem a taxa normal de lucro vigente nos setores em que há liberdade total, e com muita freqüência faz com que esta taxa seja até bastante inferior àquela taxa. Entretanto, sem um monopólio, ao que parece, com base na experiência, uma companhia por ações não seria capaz de explorar por muito tempo nenhum ramo de comércio exterior. Comprar em um mercado para vender com lucro em outro, quando há muitos concorrentes nos dois mercados; atender não somente às variações ocasionais da demanda, mas também às variações muito maiores e mais freqüentes na concorrência ou no atendimento que essa demanda provavelmente terá de outras pessoas, e adaptar habilmente e com critério, tanto a quantidade quanto a qualidade de cada tipo de mercadoria, e todas essas circunstâncias, constituem uma espécie de luta, cujas operações mudam continuamente e dificilmente jamais podem ser conduzidas com sucesso, sem se exercer uma vigilância e uma atenção incessantes, coisa que não se pode esperar por muito tempo dos diretores de uma companhia por ações. A Companhia das Índias Orientais, após resgatar seus fundos, e ao expirar seu privilégio de exclusividade tem, por lei do Parlamento, o direito de continuar como corporação, com um capital acionário, e de comercializar, em sua qualidade de corporação, com as Índias Orientais, juntamente com seus iguais. Todavia, nesta situação, a maior vigilância e atenção dos aventureiros particulares com toda a probabilidade logo fariam a companhia cansar-se desse comércio. Eminente autor francês, altamente versado em assuntos de Economia Política, o abade Morellet dá uma lista de 55 companhias por ações para comércio exterior, criadas em diversas partes da Europa desde o ano de 1600, as quais, segundo ele, falharam todas por má administração, a despeito de desfrutarem de privilégios de exclusividade. Ele está mal informado com respeito à história de duas ou três delas, que não eram companhias por ações nem fracassaram. Em compensação, porém, houve várias companhias por ações que fracassaram, e que ele omitiu. Os únicos tipos de comércio que parecem aptos a serem explorados com sucesso por uma companhia por ações, sem deter privilégios de exclusividade, são aqueles em que todas as operações podem ser reduzidas ao que se chama rotina, ou a tal uniformidade de método que comporte pouca ou nenhuma variação. Neste gênero enquadra-se, primeiramente, o comércio bancário; em segundo lugar, o comércio de seguros contra fogo, contra riscos marítimos e captura em tempo de guerra; em terceiro lugar, a construção e manutenção de uma passagem ou canal navegável; e, em quarto lugar, a atividade similar de fornecer água a uma grande cidade. 225
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Ainda que os princípios do comércio bancário possam parecer algo abstrusos, sua prática é passível de ser reduzida a regras estritas. Desviar-se, em certas ocasiões, dessas normas, iludindo-se com especulações de algum lucro extraordinário, é quase sempre extremamente perigoso e muitas vezes fatal para a sociedade bancária que tenta fazê-lo. Mas a estrutura de companhias por ações torna-as geralmente mais tenazes em fixar regras do que qualquer associação privada. Por isso, tais companhias parecem extremamente ajustáveis a esse tipo de atividade. Conseqüentemente, as principais sociedades bancárias da Europa são companhias por ações, muitas das quais administram seus negócios com muito sucesso, sem qualquer privilégio de exclusividade. O Banco da Inglaterra não tem nenhum outro privilégio de exclusividade a não ser o de que nenhuma outra sociedade bancária da Inglaterra, afora ele, pode constar de mais de seis pessoas. Os dois bancos de Edimburgo são companhias por ações sem qualquer privilégio de exclusividade. O valor do risco — seja contra fogo, contra perda marítima ou contra captura —, embora talvez não possa ser calculado com absoluta exatidão, admite, no entanto, uma estimativa aproximada que faz com que esse tipo de comércio possa, até certo ponto, ser reduzido a regras e métodos rigorosos. Assim, o comércio de seguros pode ser explorado com êxito por uma companhia por ações, sem qualquer privilégio de exclusividade. Nem a London Assurance Company nem a Royal Exchange Assurance Company possuem tal privilégio. Uma vez construída uma passagem navegável, sua administração se torna bem simples e fácil, podendo ser reduzida a regras e métodos rigorosos. Isto vale até para a construção da mesma, já que ela pode ser feita mediante contratos com empreiteiras a tanto por milha e tanto por eclusa. O mesmo pode se dizer de um canal, um aqueduto ou uma grande adutora para o abastecimento de água a uma grande cidade. Tais empreendimentos, portanto, podem ser e muitas vezes são efetivamente administrados com muito sucesso por companhias de capital acionário, sem qualquer privilégio de exclusividade. Entretanto, não seria razoável criar uma companhia por ações para algum empreendimento simplesmente porque tal companhia poderia ser capaz de geri-lo com sucesso; ou isentar determinado grupo de comerciantes de algumas leis gerais que são aplicadas a todos os seus vizinhos, simplesmente porque poderiam prosperar com tal isenção. Para tornar tal empreendimento perfeitamente razoável devem concorrer duas outras circunstâncias, além de poder a atividade ser reduzida a normas e métodos rigorosos. Primeiro, é necessário certificar-se com a máxima clareza de que o empreendimento é de utilidade maior e mais geral do que a maioria das atividades comuns; e, segundo, que ele exige um capital superior àquele que se pode obter em uma associação privada. Se um capital modesto fosse suficiente, a grande utilidade do empreendimento não seria razão suficiente para criar uma companhia por ações; de fato, neste caso, a demanda daquilo que ele deveria produzir seria pronta e facilmente 226
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atendida por aventureiros privados. Nas quatro atividades acima enumeradas concorrem as duas circunstâncias. A grande e generalizada utilidade do comércio bancário, quando administrado com prudência, foi plenamente explicada no Livro Segundo desta pesquisa. Ora, um banco oficial, destinado a sustentar o crédito público e, em casos de emergência, a adiantar ao Governo o montante total correspondente a um imposto a ser recolhido — montante que pode representar vários milhões, e do qual o Governo tem de dispor um ou dois anos antes do recolhimento do imposto — exige um capital superior àquele que se pode obter facilmente em alguma associação privada. O comércio de seguros dá grande segurança às fortunas de pessoas privadas e, dividindo entre um grande número de pessoas a perda que arruinaria um indivíduo, faz com que ela seja leve e suportável para toda a sociedade. Entretanto, para proporcionar esta segurança é necessário que o segurador tenha um capital muito grande. Segundo se afirma, antes da criação das duas companhias de capital acionário para seguros de Londres, foi apresentada ao procurador geral uma lista de cento e cinqüenta seguradores privados que haviam fracassado no decurso de poucos anos. É suficientemente óbvio que as passagens e canais navegáveis, bem como as obras às vezes necessárias para abastecer de água uma grande cidade, são de grande utilidade geral, sendo manifesto, ao mesmo tempo, que elas freqüentemente exigem uma despesa superior àquela compatível com as fortunas de pessoas privadas. Excetuados os quatro tipos de comércio acima mencionados, não consegui recordar de nenhum outro no qual concorrem as três circunstâncias necessárias para tornar razoável a criação de uma companhia por ações. A companhia inglesa de cobre de Londres, a companhia de fundição de chumbo, a companhia de polimento de vidro não têm sequer a justificativa de alguma utilidade de maior vulto ou excepcional no objetivo a que visam, nem a consecução desse objetivo parece exigir algum gasto incompatível com as fortunas de um cidadão em particular. Desconheço se o comércio que essas companhias exploram é passível de ser reduzido a regras e métodos estritos que o tornem condizente com a administração de uma companhia por ações, ou se tais companhias têm alguma razão para se orgulhar de seus lucros extraordinários. A companhia de aventureiros da mineração faliu há muito tempo. Uma ação de British Linen Company de Edimburgo é vendida atualmente muito abaixo de seu valor ao par, embora menos do que há alguns anos atrás. As companhias por ações criadas com a finalidade social de promover determinada manufatura, além de gerir mal seus próprios negócios, diminuindo o capital geral da sociedade, sob outros aspectos dificilmente deixam de gerar mais malefícios do que benefícios. A despeito das mais honestas intenções, a inevitável falta de imparcialidade de seus diretores em relação a setores específicos de manufatura, da qual os empresários abusam e se prevalecem, constitui ver227
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dadeiro desestímulo para os restantes e rompe necessariamente, em maior ou menor grau, essa proporção natural que de outra maneira se firmaria entre a atividade criteriosa e o lucro e que representa o maior e mais eficaz dos estímulos para todas as atividades do país. ARTIGO II Os gastos das instituições para a educação da juventude Também as instituições para a educação da juventude podem propiciar um rendimento suficiente para cobrir seus próprios gastos. Os honorários ou remuneração que o estudante paga ao mestre constituem um rendimento deste gênero. Mesmo quando a gratificação do professor não provém exclusivamente deste rendimento natural, não é necessário que ele seja tirado da receita geral da sociedade, cujo recolhimento e aplicação, na maioria dos países, cabe ao poder executivo. Conseqüentemente, na maior parte da Europa, a dotação de escolas e colégios não representa uma carga para a receita geral do país, ou um ônus, por menor que seja. A dotação provém, em toda parte, sobretudo de algum rendimento local ou provincial, do arrendamento de uma propriedade territorial, ou dos juros de alguma soma de dinheiro concedida e confiada à gestão de curadores para esse fim específico, ora pelo próprio soberano ora por algum doador particular. Terão essas dotações públicas contribuído, de modo geral, para atingir o objetivo de sua instituição? Terão elas contribuído para estimular a diligência e melhorar a capacidade dos professores? Terão conduzido o curso da educação para objetivos mais úteis, tanto para o indivíduo como para o público, do que os objetivos para os quais teriam sido aplicadas espontaneamente? Não parece muito difícil dar uma resposta, pelo menos provável, a cada uma dessas perguntas. Em toda profissão, o empenho da maior parte dos que a exercem é sempre proporcional à necessidade de que estes têm de demonstrar aquele empenho. Essa necessidade é maior em relação àqueles cujos emolumentos profissionais constituem a única fonte da qual esperam auferir fortuna ou a menos seus rendimentos e sua subsistência normais. Para adquirirem essa fortuna ou pelo menos para ganhar sua subsistência devem, no decurso de um ano, executar um certo volume de serviço de determinado valor; e, quando a concorrência é livre, a rivalidade entre os concorrentes, que, sem exceção, se empenham em eliminar-se mutuamente do emprego, obriga cada um a procurar executar seu trabalho com certo grau de precisão. Sem dúvida a magnitude dos objetivos a serem atingidos com êxito em determinadas profissões pode, às vezes, estimular o empenho de algumas poucas pessoas de espírito e ambição extraordinários. Entretanto, é evidente que os grandes objetivos não são necessários para dar origem aos mais altos empenhos. A rivalidade e a emulação tornam o mérito, mesmo nas profissões mais humildes, objeto de ambição, gerando muitas vezes os 228
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mais satisfatórios empenhos. Ao contrário, os grandes objetivos, por si sós, e se não forem apoiados na necessidade de aplicação, raramente têm sido suficientes para originar algum empenho considerável. Na Inglaterra, o sucesso na profissão advocatícia leva a alguns objetivos muito grandes de ambição; e, no entanto, quão poucos têm sido os homens que, nascidos para acumular fortunas com facilidade, jamais se destacaram em tal profissão nesse país! As dotações concedidas a escolas e colégios necessariamente diminuíram, em menor ou maior grau, a necessidade de os professores se aplicarem em sua profissão. Sua subsistência, na medida em que provém de seus salários, tem provindo evidentemente de um fundo que independe totalmente do sucesso e da reputação que conseguem em suas ocupações especializadas. Em algumas universidades, o salário representa apenas parte, e muitas vezes uma pequena parte, dos emolumentos do professor, cuja maior parte provém dos honorários ou remunerações pagos pelos seus alunos. A necessidade de aplicação, conquanto sempre mais ou menos reduzida, não é, neste caso, inteiramente eliminada. A reputação na profissão é ainda de alguma importância para o professor, que depende um tanto, outrossim, da afeição, da gratidão e do conceito favorável dos que ouviram suas preleções; e a melhor maneira de despertar esses sentimentos favoráveis é merecê-los, isto é, demonstrar capacidade e diligência no desempenho de cada um de seus deveres. Em outras universidades, o professor está proibido de receber quaisquer honorários ou remunerações de seus alunos, constituindo seu salário a fonte exclusiva do rendimento que ele aufere de seu ofício. Neste caso, o interesse dele é frontalmente oposto a seu dever, tanto quanto isto é possível. O interesse de todo homem é viver o mais tranqüilamente possível; e se os seus emolumentos forem exatamente os mesmos tanto executando como não executando algum dever muito laborioso, certamente o seu interesse — ao menos como o interesse é vulgarmente considerado — é negligenciar totalmente seu dever ou, se estiver sujeito a alguma autoridade que não lhe permite isto, desempenhá-lo de uma forma tão descuidada e desleixada quanto essa autoridade permitir. Se ele for naturalmente ativo e amante do trabalho, terá interesse em empregar essa atividade de forma que lhe possibilite alguma vantagem, de preferência a desenvolver esforço no cumprimento de seu ofício, do qual não pode obter vantagem alguma. Se a autoridade à qual o professor está sujeito reside na corporação, no colégio ou na universidade de que ele próprio é membro, e em que a maioria dos demais membros, pessoas como ele, que são ou deveriam ser professores, provavelmente farão causa comum: serão muito indulgentes entre si, cada um consentindo em que seu vizinho possa negligenciar seu dever, desde que a ele próprio também seja permitido negligenciar o seu. Na Universidade de Oxford, a maioria dos professores oficiais, durante os últimos anos, abandonou totalmente até mesmo a pretensão de lecionar. 229
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Se a autoridade à qual o professor está sujeito couber não tanto à corporação da qual ele é membro, mas antes a algumas outras pessoas estranhas, por exemplo, ao bispo da diocese, ao governador da província ou talvez a algum ministro de Estado, sem dúvida não é muito provável que, nesse caso, se permita ao professor descurar-se totalmente de seu dever. No entanto, o máximo que esses superiores podem fazer é forçá-lo a atender a seus alunos durante certo número de horas, isto é, ministrar-lhes algumas aulas por semana ou por ano. Como serão essas preleções? Isto continuará a depender da diligência do professor, a qual, por sua vez, provavelmente será proporcional à motivação que ele tem para ser diligente. Além do mais, uma jurisdição estranha deste gênero é passível de ser exercida de maneira ignorante e arbitrária. Ela é por sua própria natureza arbitrária e discricionária, e as pessoas que exercem tal autoridade raramente são capazes de fazê-lo criteriosamente, por não assistir às preleções do professor e talvez também porque não entendem as matérias que o professor deve ensinar. Além disso, em virtude do caráter insólito do ofício, muitas vezes não se preocupam com o modo de exercer essa autoridade, mostrando-se muito propensos a censurar o professor ou afastá-lo de seu cargo arbitrariamente e sem justa causa. Aquele que está sujeito a tal jurisdição é necessariamente humilhado por ela e, em vez de ser uma das pessoas mais respeitáveis na sociedade, se transforma em uma das mais baixas e desprezíveis. Somente com poderosa proteção pode o professor defender-se eficazmente contra os abusos aos quais está constantemente exposto; e a maneira mais provável de obter tal proteção não é mostrar capacidade ou diligência profissional, mas mostrando-se obsequioso à vontade de seus superiores e dispondo-se, a qualquer momento, a sacrificar a essa vontade os direitos, o interesse e a honra da corporação da qual é membro. Todo aquele que tiver tido bastante tempo para observar a administração de uma universidade francesa deve ter tido a oportunidade de observar os efeitos que naturalmente decorrem de uma jurisdição arbitrária e estranha desse gênero. Tudo aquilo que força determinado número de estudantes a freqüentarem algum colégio ou universidade, independentemente do mérito ou da reputação dos professores, tende, em menor ou maior grau, a tornar mais dispensável esse mérito ou reputação. Os privilégios dos diplomados em ofícios, em Direito, em Medicina e em Teologia, quando estes diplomas só podem ser obtidos residindo um certo número de anos em determinadas universidades, necessariamente forçam alguns estudantes a cursar tais universidades, independentemente do mérito ou reputação dos professores. Os privilégios dos diplomados constituem uma espécie de estatutos de aprendizagem, cuja contribuição para a melhoria da educação é exatamente a mesma que a dos demais estatutos de aprendizagem para o aprimoramento dos ofícios e manufaturas. As fundações de caridade para concessão de auxílio para ajudar o estudante a prosseguir em seus estudos, bolsas de estudos comuns, bolsas de estudos universitários etc., necessariamente encerram alguns 230
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estudantes em certos colégios, independentemente de todo o mérito dos colégios especializados. Se os alunos dessas fundações de caridade tivessem a liberdade de escolher o colégio que achassem melhor, tal liberdade talvez pudesse contribuir para suscitar certa emulação entre os diversos colégios. Ao contrário, um regulamento que proibisse até mesmo os membros independentes de qualquer colégio específico de o abandonar e ir para algum outro, sem antes solicitar e obter permissão para sair do colégio que pretendem abandonar, tenderia muito a acabar com a referida emulação. Se, em cada colégio, o tutor ou professor, que devia instruir cada estudante em todos os ofícios e ciências, não fosse voluntariamente escolhido pelo estudante, mas nomeado pelo diretor do colégio, e se, em caso de negligência, incapacidade ou maus-tratos da parte do professor, não se permitisse que o aluno tivesse outro professor, sem antes solicitar e obter a permissão do primeiro, tal regulamento não somente tenderia profundamente a extinguir toda emulação entre os diversos tutores do mesmo colégio, como também a diminuir em muito, em todos eles, a necessidade de cuidado e de atenção para com seus respectivos alunos. Tais professores, embora muito bem pagos por seus estudantes, poderiam negligenciar o interesse destes, tanto quanto aqueles que não recebiam nenhum pagamento dos alunos, ou que não recebiam outra remuneração além do seu salário. Se o professor for um homem sensato, deve ser desagradável para ele ter consciência de que, ao ministrar suas preleções, está dizendo ou lendo tolices, ou algo semelhante. Deve também ser-lhe muito desagradável observar que a maior parte de seus alunos abandona suas preleções ou, talvez, as freqüente com demonstrações bastante claras de negligência, menosprezo e zombaria. Se, portanto, for obrigado a dar certo número de aulas, esses motivos, por si sós, sem nenhum outro interesse, poderiam levá-lo a empenhar-se em ministrar preleções aceitáveis. Entretanto, pode-se encontrar vários outros meios que efetivamente abrandarão todos esses incitamentos à diligência. O professor, em vez de explicar, ele mesmo, a seus alunos, a ciência que se propõe ensinar-lhes, pode ler para eles um livro sobre o assunto e, se o livro estiver escrito em língua estrangeira e morta, interpretará seu conteúdo na língua dos próprios alunos; ou então — o que dará ao professor ainda menos trabalho — fará com que os alunos interpretem o texto para ele; e, fazendo de vez em quando uma observação ocasional sobre o texto, poderá jactar-se de estar ministrando uma preleção. Basta-lhe um grau mínimo de conhecimento e aplicação para poder recorrer a isto, sem expor-se ao desprezo e à zombaria, nada dizendo que seja realmente tolo, absurdo ou ridículo. Ao mesmo tempo, a disciplina do colégio pode dar-lhe a possibilidade de forçar todos os seus alunos a freqüentarem com a máxima regularidade essas preleções simuladas, e a manterem o comportamento mais decente e respeitoso durante todo o tempo das aulas. Geralmente, a disciplina dos colégios e universidades visa não 231
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ao benefício dos estudantes, mas ao interesse dos professores ou, falando com maior propriedade, à tranqüilidade dos mestres. Em todos os casos, o objetivo dela é manter a autoridade do professor e, quer o professor negligencie quer cumpra seus deveres, obrigar os estudantes, sem exceção, a se comportarem em relação a ele como se os cumprisse com a maior diligência e capacidade. A disciplina parece pressupor o máximo de sabedoria e virtude dos professores e o máximo de mediocridade e insensatez dos alunos. Entretanto, quando os professores cumprem realmente seu dever, não há, segundo acredito, exemplos de que a maior parte dos estudantes negligencie o deles. Não há necessidade de nenhuma disciplina para forçar a freqüência a preleções que merecem realmente ser freqüentadas, como se sabe muito bem, onde quer que se ministrem tais aulas. Sem dúvida, a força e a coação podem, até certo ponto, ser necessárias para obrigar crianças ou rapazes muito jovens a assistirem às aulas relativas a matérias consideradas essenciais durante esse primeiro período da vida; todavia, depois dos doze ou treze anos de idade, desde que o professor cumpra seu dever, dificilmente serão necessárias a força ou a coação para ministrar todas as matérias educacionais. A generosidade da maioria dos jovens é tal que, longe de estarem eles propensos a negligenciar ou desprezar as instruções de seu professor, desde que este demonstre séria intenção de ser-lhes útil, costumam mostrar-se bastante indulgentes em relação a seus deslizes e, por vezes, até a esconder de todos sua calamitosa negligência. Cabe observar, aliás, que geralmente as matérias educacionais mais bem ensinadas são aquelas para cujo ensinamento não existem instituições públicas. Quando um jovem vai para uma escola de esgrima ou de dança, nem sempre, na realidade, aprende a esgrimar ou a dançar muito bem; mas o fato é que raramente deixa de aprender a esgrima ou a dança. Não costumam ser tão evidentes os bons efeitos da escola de equitação. Os gastos de uma escola de equitação são tão elevados que, na maioria dos lugares, ela é uma instituição pública. Quanto aos três itens mais essenciais da formação literária — ler, escrever e calcular —, ainda continua a ser mais comum aprendê-los em escolas particulares do que em escolas públicas; e é muito raro acontecer que alguém deixe de aprendê-los no grau que se faz necessário. Na Inglaterra, as escolas públicas são muito menos corruptas do que as universidades. Nas escolas, ensina-se aos jovens — ou ao menos pode-se ensinar-lhes — grego e latim, isto é, tudo aquilo que os professores pretendem ensinar, ou que, como se acredita, deveriam ensinar. Nas universidades, não se ensinam à juventude as ciências que essas corporações têm por finalidade ensinar, e nem sempre ela consegue encontrar nas mesmas meios adequados para aprendê-las. A remuneração do professor de escola, na maioria dos casos, depende principalmente — em alguns casos, quase exclusivamente — dos honorários ou remunerações pagos por seus alunos. As escolas não têm privilégios exclusivos. Para se obter as honras de um diploma, não se exige que 232
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uma pessoa apresente certificado de haver estudado durante determinado número de anos em uma escola pública. Se ela demonstrar, no exame, que aprendeu aquilo que nessas escolas se ensina, não se pergunta em que lugar aprendeu. Poder-se-ia talvez alegar que, sem dúvida, não é muito bom o ensino das matérias que se costuma lecionar nas universidades. Todavia, não fossem essas instituições, tais matérias geralmente não teriam sido sequer ensinadas, e tanto o indivíduo como a sociedade sofreriam muito com a falta dessas matérias importantes para a educação. A maior parte das atuais universidades européias eram, em sua origem, corporações eclesiásticas, instituídas para a formação de eclesiásticos. Foram fundadas pela autoridade do papa, estando a tal ponto sob sua proteção direta que seus membros, fossem eles professores ou estudantes, desfrutavam todos, na época, do assim chamado benefício do clero, isto é, estavam isentos da jurisdição civil dos países em que estavam localizadas suas respectivas universidades, só podendo ser conduzidos a tribunais eclesiásticos. O que se ensinava na maior parte dessas universidades condizia com o objetivo de sua instituição, que era, no caso, ou a teologia ou algo que constituía simplesmente uma preparação para a teologia. Quando o cristianismo foi pela primeira vez estabelecido por lei, a língua comum de todas as regiões ocidentais da Europa passou a ser um latim corrompido. Conseqüentemente, o culto eclesiástico, bem como a tradução da Bíblia lida nas igrejas, utilizavam esse latim degenerado, isto é, o idioma comum da população. Após a irrupção das nações bárbaras que derrubaram o Império Romano, o latim deixou gradualmente de ser a língua de todas as regiões da Europa. Entretanto, a reverência popular naturalmente preserva as formas e as cerimônias estabelecidas da religião, ainda muito tempo depois de cessarem de existir as circunstâncias que as introduziram e as justificaram. Muito embora, portanto, o latim não fosse mais entendido em parte alguma pela população em geral, todo o culto eclesiástico continuou a ser celebrado nesse idioma. Dessa maneira, estabeleceram-se na Europa duas línguas diferentes, da mesma forma que no Egito Antigo: uma língua dos sacerdotes e uma língua do povo; uma língua sagrada e uma língua profana; uma língua erudita e uma língua inculta. Ora, era necessário que os sacerdotes entendessem algo da língua sagrada e erudita em que deviam celebrar o culto; por isso, o estudo do latim constituía desde o início parte essencial da educação ministrada nas universidades. Não aconteceu o mesmo com o ensino do grego ou do hebraico. Os decretos infalíveis da Igreja haviam proclamado que a tradução latina da Bíblia, comumente denominada Vulgata Latina, havia sido igualmente ditada pela inspiração divina e, portanto, tinha a mesma autoridade que os originais grego e hebraico. Uma vez que, portanto, o conhecimento desses dois idiomas não representava um requisito indispensável para um eclesiástico, o estudo dessas duas línguas não permaneceu por muito tempo como parte necessária do curso normal 233
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da formação universitária. Foi-me assegurado que existem algumas universidades na Espanha em que o estudo do grego nunca fez parte do currículo. Os primeiros Reformadores consideraram que o texto grego no Novo Testamento e até mesmo o texto hebraico do Antigo Testamento eram mais favoráveis a suas teses do que a tradução da Vulgata, a qual, como era natural supor, havia sido gradualmente adaptada para abonar as doutrinas da Igreja Católica. Esses Reformadores, assim, se puseram a denunciar os muitos erros da tradução da Vulgata, obrigando, nessas condições, o clero da Igreja Católica Romana a defendê-la e explicá-la. Ora, isso não poderia ser bem feito sem algum conhecimento das línguas originais, cujo estudo foi, portanto, gradualmente introduzido na maioria das universidades: tanto das que adotaram as doutrinas da Reforma como daquelas que as rejeitaram. A língua grega tornou-se obrigatória em cada parte daquela formação clássica que, embora de início fosse cultivada sobretudo pelos católicos e pelos italianos, acabou impondo-se mais ou menos ao mesmo tempo em que apareceram as doutrinas da Reforma. Na maior parte das universidades, portanto, o grego era ensinado antes do estudo da filosofia, e logo que o estudante tivesse feito algum progresso no latim. Quanto ao idioma hebraico, por não ter ligação alguma com a formação clássica, bem como por não ser a língua de nenhum livro de estimação, excetuadas as Sagradas Escrituras, o estudo dele geralmente só começava depois do estudo da filosofia, e quando o estudante já havia iniciado o estudo da teologia. No começo, o que se ensinava nas universidades eram os primeiros rudimentos do grego e do latim, sendo que em algumas delas continua a ser assim ainda hoje. Em outras, espera-se antes que o estudante tenha adquirido, no mínimo, conhecimentos rudimentares de uma ou de ambas essas línguas, cujo estudo continua então a constituir em todos os lugares parte bastante considerável da formação universitária. A antiga filosofia grega dividia-se em três grandes ramos: a Física, ou filosofia natural, a Ética, ou filosofia moral, e a Lógica. Esta divisão geral parece condizer perfeitamente com a natureza das coisas. Os grandes fenômenos da natureza, as revoluções dos corpos celestes, os eclipses, os cometas, o trovão, o relâmpago e outros meteoros extraordinários; a geração, a vida, o crescimento e a dissolução das plantas e animais — tudo isso são coisas que, da mesma forma que despertam naturalmente a admiração, assim também provocam a curiosidade da humanidade no sentido de buscar suas causas. De início, recorreu-se à superstição para satisfazer a essa curiosidade, atribuindo-se todos esses fenômenos maravilhosos à intervenção imediata dos deuses. Depois, a filosofia procurou explicar os fenômenos através de causas mais familiares, ou de causas com as quais a humanidade estivesse mais familiarizada, do que a intervenção dos deuses. Assim como esses grandes fenômenos constituem o primeiro alvo da curiosidade humana, da mesma forma a ciência que pretende explicá-los deve naturalmente ter sido o primeiro ramo da filosofia a ser cultivado. Por 234
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isso, os primeiros filósofos dos quais a história conservou o registro parecem ter sido filósofos da natureza. Em cada época e região do mundo, os homens devem ter prestado atenção no caráter, projetos e ações uns dos outros e muitas regras e máximas bem conceituadas para compor a conduta da vida humana devem ter sido elaboradas e aprovadas por consenso comum. Tão logo surgiu a escrita, homens sábios, ou que assim se consideravam, haveriam naturalmente de procurar aumentar o número dessas máximas estabelecidas e respeitadas e exprimir sua própria opinião sobre o que é uma conduta adequada ou inadequada: ora sob a forma mais artificial de apólogos — como é o caso das chamadas fábulas do Esopo —, ora sob a forma mais simples de apotegmas, ou ditos de sábios — como os Provérbios de Salomão, os versos de Teógnis e Focílides, bem como parte das obras de Hesíodo. Esses autores poderiam ter continuado assim durante muito tempo, simplesmente para multiplicar o número dessas máximas de prudência e moralidade, sem tentar sequer dispô-las em ordem clara ou metódica, e muito menos coordená-las de acordo com um ou mais princípios gerais, dos quais se pudesse deduzi-las todas, com efeitos decorrentes de suas causas naturais. A beleza de um arranjo sistemático de observações diversas, vinculadas entre si por alguns poucos princípios comuns, foi observada pela primeira vez nas rudes tentativas, naqueles tempos antigos, de elaborar um sistema de filosofia natural. Mais tarde tentou-se fazer algo de semelhante no terreno da moral. As máximas da vida comum foram dispostas em certa ordem metódica e correlacionadas entre si através de alguns princípios comuns, da mesma forma como se havia tentado dispor e correlacionar os fenômenos da natureza. A ciência que pretende investigar e explicar esses princípios de conexão é o que, com propriedade, denomina-se filosofia moral. Autores diversos elaboraram sistemas diversos, tanto na filosofia natural como na filosofia moral. Todavia, os argumentos com os quais os autores fundamentaram esses diferentes sistemas, longe de constituírem sempre demonstrações, muitas vezes, na melhor das hipóteses, representavam leves probabilidades, e por vezes até simples sofismas, que não tinham outro fundamento senão a imprecisão e a ambigüidade de linguagem comum. Em todas as épocas do mundo adotaram-se sistemas especulativos, por motivos demasiado frívolos para determinarem o julgamento de qualquer pessoa de senso comum, em um assunto de mínimo interesse pecuniário. Os sofismas grosseiros dificilmente exerceram alguma influência nas opiniões da humanidade, a não ser em assuntos de filosofia e de especulação; nestes muitas vezes eles exerceram a maior influência. Naturalmente, os defensores de cada sistema de filosofia natural e de filosofia moral procuravam pôr a descoberto a fraqueza dos argumentos aduzidos em abono dos sistemas opostos aos deles. Ao examinar tais argumentos, inevitavelmente eram levados a considerar a diferença entre um argumento provável e um argumento demonstrativo; entre um argumento falacioso e um conclu235
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dente; e das observações decorrentes desse tipo de exame surgiu necessariamente a Lógica, isto é, a ciência dos princípios gerais do raciocínio correto e o incorreto. Embora ela seja, em sua origem, posterior à Física e à Ética, costumava ser ensinada, senão em todas as antigas escolas de filosofia, ao menos na maior parte delas, antes da Física e da Ética. Ao que parece, opinava-se que o estudante deveria entender perfeitamente a diferença entre o raciocínio correto e incorreto, antes de poder raciocinar sobre assuntos de tão grande relevância. Essa antiga divisão da filosofia em três partes foi substituída, na maioria das universidades européias, por uma divisão em cinco partes. Na antiga filosofia, tudo o que se ensinava com respeito à natureza da inteligência humana ou da divindade fazia parte do sistema da Física. Esses seres, qualquer que se sucedesse ser a sua essência, constituíam partes do grande sistema do universo, e partes também causadoras dos efeitos mais importantes. O que quer que a razão humana pudesse concluir ou conjecturar no tocante a eles constituía como que dois capítulos, embora, sem dúvida, muito importantes, da ciência que pretendia explicar a origem e as revoluções do grande sistema do universo. Ora, nas universidades européias, nas quais a Filosofia era ensinada apenas em função da Teologia, era natural delongar-se mais nesses dois capítulos do que em qualquer outro da ciência. Eles foram sendo gradualmente ampliados e divididos em muitos subcapítulos, até que, ao final, a doutrina sobre os espíritos, acerca da qual tão pouco podemos conhecer, acabou ocupando, no sistema da Filosofia, tanto espaço quanto a doutrina sobre os corpos, a respeito da qual tanto podemos conhecer. Considerou-se que as doutrinas relacionadas com esses dois assuntos constituíam duas ciências distintas. O que se denominou de Metafísica ou Pneumática foi colocado em oposição à Física e cultivada não somente como a mais sublime, senão também, para os objetivos de uma determinada profissão, como a mais útil das duas. Negligenciou-se quase inteiramente o objetivo adequado do experimento e da observação, assunto no qual uma atenção cuidadosa é capaz de levar a tantas descobertas úteis. Explorou-se profundamente, em contrapartida, aquele objetivo no qual, depois de algumas verdades muito simples e quase óbvias, a mais cuidadosa atenção nada consegue descobrir, a não ser obscuridão e incerteza, não podendo, portanto, criar outra coisa que não sutilezas e sofismas. Quando essas duas ciências foram assim opostas uma a outra, a comparação entre elas deu naturalmente origem a uma terceira, a chamada Ontologia, ou seja, a ciência que tratava das qualidades e atributos comuns aos dois objetivos das duas outras ciências. Mas, se as sutilezas e os sofismas constituíam na Metafísica ou Pneumática ensinada nas escolas a maior parte, nessa emaranhada ciência da Ontologia — que, às vezes, também se denominava Metafísica — eles constituíam a totalidade. O que a antiga filosofia moral se propunha a investigar era em que consiste a felicidade e perfeição do homem, considerado não apenas 236
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como indivíduo, mas também como membro de uma família, de um Estado e da grande sociedade do gênero humano. Nessa filosofia, os deveres da vida humana eram considerados subordinados à felicidade e à perfeição da vida humana. Mas, quando a filosofia moral, assim como a filosofia natural, passaram a ser ensinadas apenas como subordinadas à Teologia, os deveres da vida humana eram considerados sobretudo como subordinados à felicidade de uma vida vindoura. Na antiga Filosofia, afirmava-se que a perfeição da virtude dava necessariamente à pessoa que a possui a mais perfeita felicidade na vida presente. Na Filosofia moderna, considerou-se muitas vezes que a perfeição da virtude geralmente, ou quase sempre, é inconciliável com qualquer grau de felicidade nesta vida; e que só se pode ganhar o céu pela penitência e pela mortificação, com as austeridades e as humilhações a que se submete um monge, e não através da conduta liberal, generosa e vigorosa do homem. A casuística e um moralismo ascético passaram a constituir, de um modo geral, a maior parte da filosofia moral dessas escolas. Dessa forma, o que de longe é o mais importante de todos os ramos da Filosofia tornou-se também de longe o mais degenerado. Tal era, pois, o curso normal de formação filosófica na maior parte das universidades da Europa. Primeiro, ensinava-se a Lógica; em segundo lugar vinha a Ontologia; depois se seguia a Pneumatologia, englobando a doutrina relativa à natureza da alma humana e da divindade; em quarto lugar vinha um degenerado sistema de filosofia moral, considerado diretamente ligado às doutrinas da Pneumatologia, à imortalidade da alma, e às recompensas e castigos que, em uma vida futura, se devia esperar da justiça divina; o curso geralmente concluía com um sistema breve e superficial da Física. Assim, todas as alterações que as universidades européias introduziram no antigo curso de Filosofia visavam à educação dos eclesiásticos, objetivando também fazer com que a Filosofia constituísse uma introdução mais adequada para o estudo da Teologia. Entretanto, a quantidade adicional de sutilezas e sofismas, a casuística e o moralismo ascético introduzidos na Filosofia por essas mudanças certamente não contribuíram para que ela se tornasse mais apropriada para a formação dos fidalgos ou homens do mundo, ou mais apta para melhorar a compreensão do homem ou torná-lo mais cordial. Este é o curso de Filosofia que ainda continua a ser ensinado na maior parte das universidades da Europa; com maior ou menor diligência, conforme a estrutura de cada universidade em particular, torna a aplicação mais ou menos necessária para os professores. Em algumas das universidades mais ricas e mais bem-dotadas, os tutores contentam-se em ensinar fragmentos e partes desconexas desse curso degenerado; sendo que, mesmo isso, eles geralmente ensinam muito negligente e superficialmente. A maior parte dos aperfeiçoamentos que, nos tempos modernos, tem sido feita em vários setores diferentes da Filosofia, não foi efetuada em universidades, excetuados, sem dúvida, alguns deles. A maior parte 237
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das universidades nem sequer foi muito favorável à adoção desses aperfeiçoamentos, após efetuados; e várias dessas sociedades eruditas preferiram, durante muito tempo, manter os santuários, em que encontravam guarida e proteção sistemas desacreditados e preconceitos obsoletos, depois de ter sido banidos de todos os outros recantos do mundo. No geral, as universidades mais ricas e mais bem-dotadas de recursos têm sido as mais lentas em adotar esses melhoramentos e as mais avessas a permitir qualquer alteração considerável no plano de educação estabelecido. Esses melhoramentos foram introduzidos com mais facilidade em algumas das universidades mais pobres, nas quais os professores, cuja reputação era a principal responsável por sua subsistência, eram obrigados a dispensar mais atenção às opiniões correntes do mundo. Muito embora, porém, as escolas públicas e as universidades da Europa visassem, em sua origem, somente à educação de uma profissão em particular, a dos eclesiásticos, e conquanto nem sempre fosse muito diligentes em instruir seus alunos, mesmo nas ciências que se suponham necessárias para essa profissão, não obstante isso, atraíram para si gradativamente a educação de quase todas as demais pessoas, particularmente de quase todos os fidalgos e homens de fortuna. Ao que parece, não se poderia ter encontrado método melhor para empregar com alguma vantagem o longo intervalo entre a infância e esse período da vida no qual os homens começam a dedicar-se com seriedade às atividades reais do mundo, as quais os ocuparão pelo resto da vida. Entretanto, a maior parte do que é ensinado nas escolas e universidades não parece constituir a preparação mais adequada para essas atividades. Na Inglaterra, generaliza-se cada dia mais o costume de mandar jovens viajar por países estrangeiros, imediatamente após deixar a escola, sem mandá-los à universidade. Alegam-se que os nossos jovens costumam voltar mais preparados, após essas viagens. Um jovem que vai ao exterior com dezessete ou dezoito anos, e regressa com vinte e um, volta três ou quatro anos mais velho do que quando deixou o país; ora, nessa idade, é muito difícil não progredir bastante em três ou quatro anos. No decurso de suas viagens, ele geralmente aprende alguma coisa de uma ou duas línguas estrangeiras, mas tal conhecimento raramente é suficiente para possibilitar-lhe falar ou escrever corretamente esses idiomas. Sob outros aspectos, ele comumente volta mais presunçoso, mais vazio de princípios, mais dissipado, e mais incapaz de qualquer aplicação mais séria ao estudo ou ao trabalho, de quanto poderia ter se tornado em tão pouco tempo, se tivesse vivido no país. Viajando em idade tão baixa, desperdiçando na dissipação mais frívola os anos mais preciosos de sua vida, longe da inspeção e do controle de seus pais e parentes, quase inevitavelmente se enfraquece, ou apaga — em vez de se assentar e consolidar — qualquer hábito útil que os anos anteriores de sua formação poderiam ter, de alguma forma, contribuído para formar no jovem. Nada, senão o descrédito em que as universidades se estão permitindo cair, poderia jamais ter dado pres238
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tígio a uma prática tão absurda como a de viajar nesse período precoce da vida. Ao enviar seu filho ao exterior, um pai se livra, ao menos por algum tempo, de algo tão desagradável quanto ver diante de seus olhos um filho desempregado, descuidado e caminhando para a ruína. Estes têm sido os efeitos de algumas das modernas instituições destinadas à educação. Em outras épocas e nações, parece terem sido diferentes os planos e as instituições para a educação. Nas repúblicas da Grécia Antiga, todo cidadão livre recebia instrução em exercícios ginásticos e em música, sob a direção do magistrado público. Com os exercícios de ginástica tencionava-se dar têmpera a seu corpo, aguçar sua coragem e prepará-lo para as fadigas e os perigos da guerra; ora, já que a milícia grega, segundo todos os relatos, era uma das melhores que jamais existiram no mundo, essa parte de sua educação pública deve ter atendido em cheio ao propósito visado. Por outro lado, a música, ao menos no dizer dos filósofos e historiadores que nos transmitiram relatos sobre essas instituições, visava a humanizar a inteligência, moldar o caráter, e prepará-lo para cumprir todos os deveres sociais e morais da vida pública e privada. Na Roma Antiga, os exercícios feitos no Campo de Marte atendiam aos mesmos propósitos que os executados no Ginásio da Grécia Antiga e, ao que parece, atendiam com igual sucesso a esse objetivo. Entretanto, entre os romanos não havia nada que correspondesse à educação musical dos gregos. Em contrapartida, a moral dos romanos, tanto na vida privada como na pública, no global parece ter sido bem superior à dos gregos. Que a moral dos romanos era superior na vida privada, testemunham-no expressamente Políbio e Dionísio de Halicarbasso, dois autores bem familiarizados com ambas as nações; por outra parte, todo o teor da história grega e da romana dá testemunho da superioridade da moral pública dos romanos em relação à dos gregos. O bom caráter e a moderação em superar dissensões parecem ser o ponto mais essencial na moral pública de um povo livre. Mas as dissensões dos gregos eram quase sempre violentas e sanguinárias, ao passo que, entre os romanos, até a época dos Gracos, jamais se derramou sangue em qualquer dissensão romana — e a partir do tempo dos Gracos, pode-se considerar como dissolvida, na realidade, a república romana. A despeito, pois, da autoridade sumamente respeitável de Platão, Aristóteles e Políbio, e apesar das razões extremamente engenhosas com as quais o Sr. Montesquieu procura apoiar essa autoridade, parece provável que a educação musical dos gregos não teve grandes efeitos na melhoria de sua moral, já que, sem tal educação, a dos romanos era, no seu todo, superior. O respeito daqueles antigos sábios pelas instituições de seus antepassados provavelmente os levara a achar muita sabedoria política naquilo que, talvez, não passasse de mero costume antigo, prolongado sem interrupção desde o período mais antigo dessas sociedades, até os tempos em que haviam atingido admirável grau de refinamento. A música e a dança representam os grandes 239
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divertimentos de quase todas as nações bárbaras, bem como as grandes realizações que supostamente predispõem toda pessoa a entreter sua sociedade. Assim acontece, ainda hoje, entre os negros da costa da África. Assim era entre os antigos celtas, entre os antigos escandinavos e, como podemos observar em Homero, entre os antigos gregos, na época que precedeu à Guerra de Tróia. Quando as tribos gregas se haviam transformado em pequenas repúblicas, era natural que o estudo da música e da dança continuasse por muito tempo a constituir parte da educação pública e comum do povo. Ao que parece, os mestres que instruíam os jovens, quer na música quer nos exercícios militares, não eram pagos e nem nomeados pelo Estado, nem em Roma nem mesmo em Atenas, república grega sobre cujas leis e costumes possuímos melhores informações. O Estado exigia que cada cidadão livre se preparasse para defendê-lo na guerra e, assim, aprendesse os exercícios militares. Deixava, porém, que ele aprendesse dos mestres que pudesse encontrar, e parece não ter progredido nada nesse sentido, a não ser encontrando um campo ou local oficial para exercícios, no qual deveria praticá-los. Nas épocas antigas, tanto das repúblicas gregas como da romana, as outras formas da educação parecem haver consistido em aprender a ler, escrever e calcular, segundo a aritmética do tempo. Esse aprendizado, os cidadãos mais ricos parecem tê-lo muitas vezes feito em casa, com ajuda de algum pedagogo familiar, geralmente um escravo ou um homem livre, ao passo que os cidadãos mais pobres o faziam nas escolas de mestres para os quais o ensino era um comércio remunerado. Entretanto, esses ramos da educação estavam totalmente confiados ao cuidado dos pais ou tutores de cada indivíduo. Não parece que o Estado jamais assumiu alguma inspeção ou supervisão sobre isso. Com efeito, em virtude de uma lei de Sólon, os filhos eram dispensados da obrigação de manterem seus pais quando velhos, se estes tivessem negligenciado o dever de formá-los para alguma profissão ou atividade rentável. Com o aumento da prosperidade, quando a Filosofia e a Retórica se impuseram, a camada mais alta da população costumava enviar seus filhos às escolas dos filósofos e retóricos para serem instruídos nessas ciências então em voga. Entretanto, essas escolas não eram sustentadas pelo Estado. Durante muito tempo, foram apenas toleradas por ele. Durante muito tempo, a Filosofia e a Retórica foram objeto de procura tão reduzida, que os primeiros professores professos das duas ciências não conseguiam encontrar emprego constante em nenhuma cidade, sendo obrigados a deslocar-se de uma cidade para outra. Foi assim que viveram Zenão de Eléia, Protágoras, Górgias, Hípias e muitos outros. Quando aumentou a demanda, tornaram-se estacionárias as escolas de Filosofia e de Retórica: primeiro em Atenas e depois em várias outras cidades. Ao que parece, porém, o Estado nunca lhes deu outro incentivo a não ser transformando algumas delas em local especializado para o ensino, o que às vezes também era feito por doa240
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dores privados. O Estado parece ter destinado a Academia a Platão, o Liceu a Aristóteles, e o Pórtico a Zenão de Cício, o fundador do estoicismo. Epicuro, porém, deixou em herança seus jardins para sua própria escola. Entretanto, até mais ou menos ao tempo de Marco Antônio, parece que nenhum professor recebia salário algum do Estado, nem quaisquer outros emolumentos, a não ser o que lhes advinha dos honorários ou das remunerações de seus alunos. O subsídio que esse imperador filósofo, segundo nos informa Luciano, concedeu a um dos professores de Filosofia, provavelmente durou apenas enquanto viveu o imperador. Não havia nada que equivalesse aos privilégios do diploma, não sendo necessário ter freqüentado alguma dessas escolas para poder exercer qualquer atividade ou profissão. Se o conceito que se tinha da utilidade dessas escolas não conseguia atrair alunos para elas, a lei não forçava ninguém a freqüentá-las nem recompensava ninguém por tê-las freqüentado. Os professores não tinham nenhum poder sobre seus alunos, nem alguma outra autoridade, a não ser essa autoridade natural que, em razão da superioridade dos mestres no tocante à virtude e à capacidade, os alunos nunca deixam de reconhecer àqueles a quem está confiada alguma parte de sua formação. Em Roma, o estudo de Direito Civil fazia parte da educação de algumas famílias em particular, embora não da maior parte dos cidadãos. Entretanto, os jovens que desejassem adquirir conhecimento do Direito não dispunham de escolas públicas, não tendo outro meio de estudá-lo senão freqüentando a companhia de parentes e amigos que, supostamente, entendessem do assunto. Talvez valha a pena observar que, embora muitas das leis das Doze Tábuas fossem copiadas das leis de algumas antigas repúblicas gregas, o Direito não parece ter se tornado ciência em nenhuma república da Grécia Antiga. Em Roma o Direito tornou-se muito cedo uma ciência, dando notável prestígio aos cidadãos que tinham a reputação de compreendê-la. Nas repúblicas da Grécia Antiga, particularmente em Atenas, os tribunais de Justiça normais constavam de numerosos e, portanto, desordenados grupos de pessoas, que muitas vezes decidiam mais ou menos a esmo, ou conforme viesse a determinar o clamor, o espírito faccioso ou partidário. A ignomínia de uma decisão injusta, quando tivesse que ser dividida entre quinhentas, mil ou mil e quinhentas pessoas (já que eram bastante numerosos aqueles que compunham alguns de seus tribunais) não podia cair tão pesadamente sobre um indivíduo. Ao contrário, em Roma, os principais tribunais de justiça consistiam em um único juiz ou então em um número reduzido deles, o renome destes não podia deixar de ser profundamente afetado por nenhuma decisão precipitada ou injusta, sobretudo porque as deliberações eram sempre públicas. Em casos duvidosos, tais tribunais, preocupados em evitar censuras, naturalmente procuravam amparar-se no exemplo ou em precedentes dos juízes que o haviam antecedido, no mesmo ou em outro tribunal. Essa atenção à prática e aos precedentes necessariamente transformou o Direito romano nesse sistema regular e ordenado em que ele foi transmitido 241
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até nós; e a mesma atenção tem tido os mesmos efeitos sobre as leis de todos os outros países em que tem sido observada essa atenção. A superioridade de caráter dos romanos em relação aos gregos, tão salientada por Políbio e Dionísio de Halicarnasso, provavelmente se deveu mais à melhor constituição de seus tribunais de justiça do que a qualquer dos fatores aos quais os referidos autores a atribuem. Afirma-se que os romanos se distinguiam particularmente pelo seu maior respeito a um juramento. Mas as pessoas que foram acostumadas a prestar juramento somente perante algum tribunal de justiça diligente e bem informado naturalmente estavam muito mais atentas ao que juravam do que aquelas habituadas a jurar diante de assembléias turbulentas e desordenadas. Reconhecer-se-á prontamente que as capacidades dos gregos e romanos, tanto civis como militares, foram no mínimo iguais às de qualquer nação moderna. Talvez o nosso preconceito nos faça antes tender a superestimá-las. Mas, com exceção do que diz respeito aos exercícios militares, o Estado não parece ter-se preocupado em adquirir essas grandes capacidades, pois não posso crer que a educação musical dos gregos pudesse ter muita importância para que eles adquirissem essas capacidades. Ao que parece, porém, encontraram-se mestres para instruir as melhores pessoas entre essas nações, em todo ofício e ciência em que as circunstâncias de sua sociedade tornavam necessário ou conveniente instruí-las. A procura dessa instrução produziu aquilo que sempre produz: o talento para ministrar tal instrução; e a emulação, que uma irrestrita concorrência nunca deixa de despertar, parece ter levado esse talento a altíssimo grau de perfeição. Os antigos filósofos parecem ter sido muito superiores a qualquer professor moderno, pela atenção de que eram alvo, pela influência que exerciam sobre as opiniões e princípios de seus ouvintes, pela capacidade que possuíam de imprimir um certo tom e caráter à conduta e à conversação desses ouvintes. Nos tempos modernos, a diligência dos professores públicos é mais ou menos deturpada pelas circunstâncias que os tornam mais ou menos independentes de seu sucesso e de sua reputação em suas respectivas profissões. Ademais, seus salários colocam o professor particular, que pretendesse concorrer com eles, na mesma situação em que estaria um comerciante que tentasse praticar o comércio sem um subsídio, devendo competir com aqueles que comercializam favorecidos por um subsídio considerável. Se ele vender suas mercadorias mais ou menos ao mesmo preço, não poderá auferir o mesmo lucro que eles, e sua sorte — a sua infalível será, no mínimo, a pobreza e a penúria, senão a falência e a ruína. Se tentar vendê-las muito mais caro, provavelmente terá tão poucos clientes que sua situação não melhorará muito. Além disso, os privilégios dos diplomas, em muitos países, são condições necessárias, ou ao menos extremamente convenientes para a maioria das pessoas de profissões eruditas, isto é, para a grande maioria daqueles que têm oportunidade de uma educação erudita. Ora, só se consegue tais privilégios freqüentando as preleções de professores 242
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públicos. A mais diligente freqüência às mais competentes aulas de qualquer professor particular nem sempre pode assegurar algum título para exigir tais privilégios. É por todas essas razões que o professor particular de qualquer ciência comumente ensinada nas universidades é, na época moderna, geralmente considerado como pertencente à categoria mais baixa de letrados. Uma pessoa de capacidade real dificilmente poderá encontrar uma ocupação mais humilhante e menos rentável à qual possa dedicar-se. Dessa forma, as dotações concedidas às escolas e colégios não somente corromperam a diligência dos professores públicos, senão também tornaram quase impossível conseguir bons professores particulares. Se não houvesse instituições públicas para a educação, não se ensinaria nenhum sistema e nenhuma ciência que não fossem objeto de alguma procura ou que as circunstâncias da época não tornassem necessário, conveniente ou, pelo menos, de acordo com a moda. Um professor particular jamais poderia considerar vantajoso ensinar uma ciência reconhecida como útil, mas num sistema desacreditado e antiquado, ou então uma ciência que todos consideram um simples acervo inútil e pedante de sofismas e coisas destituídas de sentido. Tais sistemas e tais ciências só podem subsistir em sociedades devidamente incorporadas para a educação, cuja prosperidade e renda são, em grande parte, independentes de seu renome e totalmente independentes de sua operosidade. Se não houvesse instituições públicas para educação, seria impossível a um fidalgo, após ter passado, com aplicação e capacidade, pelo mais completo curso de formação que as circunstâncias da época supostamente permitiam, ingressar no mundo desconhecendo inteiramente tudo aquilo que constitui o assunto comum de conversa entre fidalgos e homens do mundo. Não existem instituições públicas para a educação de mulheres, não havendo, portanto, nada de inútil, absurdo ou fantástico no curso normal de sua formação. Aprendem o que seus pais ou tutores consideram necessário ou útil que aprendam, e nada mais do que isso. Toda a educação delas visa evidentemente a algum fim útil: ou melhorar os atrativos naturais de sua pessoa, ou plasmar sua mente para a discrição, a modéstia, a castidade, a economia doméstica, fazer com que tenham a probabilidade de um dia se tornarem donas de casa e a se comportar devidamente quando se tornarem efetivamente tais. Em cada período de sua vida, a mulher vê alguma conveniência ou vantagem em cada etapa de sua educação. Ao contrário, raramente ocorre que um homem, em qualquer período de sua vida, veja alguma conveniência ou vantagem de algumas das mais difíceis e incômodas etapas de sua educação. Seria lícito então perguntar: não deverá o Estado dispensar nenhuma atenção à educação das pessoas? Ou, se alguma atenção deve dispensar, quais são as matérias que deve reconhecer, nas diversas categorias da população? E de que maneira as deverá reconhecer? Em alguns casos, o estado da sociedade necessariamente leva a 243
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maior parte dos indivíduos a situações que naturalmente lhes dão, independentemente de qualquer atenção por parte do Governo, quase todas as capacidades e virtudes exigidas por aquele estado e que talvez ele possa admitir. Em outros casos, o estado da sociedade não oferece a maioria dos indivíduos em tais situações, sendo necessária certa atenção do Governo para impedir a corrupção e degeneração quase total da maioria da população. Com o avanço da divisão do trabalho, a ocupação da maior parte daqueles que vivem do trabalho, isto é, da maioria da população, acaba restringindo-se a algumas operações extremamente simples, muitas vezes a uma ou duas. Ora, a compreensão da maior parte das pessoas é formada pelas suas ocupações normais. O homem que gasta toda sua vida executando algumas operações simples, cujos efeitos também são, talvez, sempre os mesmos ou mais ou menos os mesmos, não tem nenhuma oportunidade para exercitar sua compreensão ou para exercer seu espírito iventivo no sentido de encontrar meios para eliminar dificuldades que nunca ocorrem. Ele perde naturalmente o hábito de fazer isso, tornando-se geralmente tão embotado e ignorante quanto o possa ser uma criatura humana. O entorpecimento de sua mente o torna não somente incapaz de saborear ou ter alguma participação em toda conversação racional, mas também de conceber algum sentimento generoso, nobre ou terno, e, conseqüentemente, de formar algum julgamento justo até mesmo acerca de muitas das obrigações normais da vida privada. Ele é totalmente incapaz de formar juízo sobre os grandes e vastos interesses de seus país; e, a menos que se tenha empreendido um esforço inaudito para transformá-lo, é igualmente incapaz de defender seu país na guerra. A uniformidade de sua vida estagnada naturalmente corrompe a coragem de seu espírito, fazendo-o olhar com horror a vida irregular, incerta e cheia de aventuras de um soldado. Esse tipo de vida corrompe até mesmo sua atividade corporal, tornando-o incapaz de utilizar sua força física com vigor e perseverança em alguma ocupação que não aquela para a qual foi criado. Assim, a habilidade que ele adquiriu em sua ocupação específica parece ter sido adquirida à custa de suas virtudes intelectuais, sociais e marciais. Ora, em toda sociedade evoluída e civilizada, este é o estado em que inevitavelmente caem os trabalhadores pobres — isto é, a grande massa da população — a menos que o Governo tome algumas providências para impedir que tal aconteça. Não ocorre o mesmo nas comumente chamadas sociedades primitivas, de caçadores, pastores, e mesmo de agricultores, naquele estágio agrícola primitivo que antecede o melhoramento das manufaturas e a ampliação do comércio exterior. Em tais sociedades, as variadas ocupações de cada pessoa obrigam todos a exercitar sua capacidade e a inventar meios de eliminar dificuldades que sobrevêm continuamente. Conserva-se viva a capacidade inventiva, não havendo perigo de que o espírito caia naquele embotamento indolente que, em uma sociedade civilizada, parece entorpecer a inteligência de quase todas as categorias 244
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mais baixas da população. Nessas sociedades primitivas, como são chamadas, todo homem é um guerreiro, como já observei. Cada homem é também, até certo ponto, um estadista, podendo formar um juízo razoável acerca do interesse da sociedade e sobre a conduta dos que a governam. Até que ponto seus chefes são bons juízes em tempos de paz ou bons líderes em épocas de guerra, é evidente para a observação de quase todo membro de tal sociedade. Sem dúvida, nessa sociedade ninguém tem condições de adquirir aquele aprimoramento ou refinamento mental que alguns poucos homens às vezes possuem em uma nação mais civilizada. Conquanto em uma sociedade primitiva haja muita variedade de ocupações para cada indivíduo, não existe grande variedade nas ocupações da sociedade inteira. Cada um faz, ou é capaz de fazer, quase tudo o que faz ou é capaz de fazer qualquer outro. Cada qual tem um grau considerável de conhecimento, talento e espírito inventivo, mas dificilmente alguém tem essas faculdades desenvolvidas em alto grau. De um modo geral, porém, o grau que as pessoas possuem é suficiente para conduzir todas as atividades mais simples da sociedade. Ao contrário, em um país civilizado, ainda que haja pouca variedade de ocupações para a maioria dos indivíduos, é quase infinita a variedade de ocupações existentes na sociedade inteira. Essas diversas ocupações apresentam uma variedade quase infinita de objetivos à contemplação daqueles poucos, que, por não estarem ligados a nenhuma ocupação específica, têm tempo e propensão para pesquisar as ocupações de outros. A contemplação de uma multiplicidade tão grande de objetivos necessariamente exercita suas mentes em comparações e combinações sem fim, tornando sua compreensão extraordinariamente aguda e ampla. A menos, porém, que esses poucos se vejam em situações demasiado peculiares, suas grandes capacidades, embora honrosas para eles próprios, possivelmente contribuam muito pouco para o bom governo ou felicidade de sua sociedade. Não obstante as grandes capacidades desses poucos, todos os aspectos mais nobres do caráter humano podem, em grande parte, ser esquecidos e extintos no conjunto da população. A educação das pessoas comuns talvez exija, em uma sociedade civilizada e comercial, mais atenção por parte do Estado que a de pessoas de alguma posição e fortuna. Estas últimas costumam completar dezoito ou dezenove anos antes de iniciar-se nos negócios, profissão ou atividade específica com a qual pretendem distinguir-se no mundo. Até então, têm todo o tempo necessário para adquirir ou, ao menos, para preparar-se para adquirir mais tarde tudo o que possa recomendá-los à estima pública ou torná-los dignos dela. Seus pais ou tutores costumam preocupar-se suficientemente para que isso ocorra e, na maioria dos casos, estão devidamente dispostos a despender a soma necessária para tal fim. Se nem sempre são bem formados, raramente isso acontece por se ter gasto pouco em sua educação, mas antes devido à aplicação inadequada desses gastos. Raramente é por falta de professores, mas pela negligência e incapacidade dos profes245
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sores disponíveis e pela dificuldade, ou melhor, pela impossibilidade de encontrar melhores mestres no atual estado de coisas. Outrossim, as ocupações em que as pessoas de alguma posição ou fortunas gastam a maior parte de sua vida não são simples e uniformes como no caso das pessoas comuns. Quase todas elas são extremamente complexas, exercitando mais as faculdades mentais do que as corporais. A mente dos que estão empenhados nessas ocupações raramente pode entorpecer-se por falta de exercício. Além disso, as ocupações de pessoas de alguma posição e fortuna raras vezes são de molde a molestá-las da manhã à noite. Tais pessoas costumam dispor de bastante lazer, durante o qual podem aperfeiçoar-se em qualquer ramo de conhecimento útil ou decorativo para o qual possam ter lançado alguma base ou pelo qual possam ter adquirido certo gosto, no período anterior de sua vida. O mesmo não corre com as pessoas comuns. Tais pessoas dispõem de pouco tempo para dedicar à educação. Seus pais dificilmente têm condições de mantê-las, mesmo na infância. Tão logo sejam capazes de trabalhar, têm que ocupar-se com alguma atividade, para sua subsistência. Este tipo de atividade é geralmente muito simples e uniforme para dar-lhes pequenas oportunidades de exercitarem a mente; ao mesmo tempo, seu trabalho é tão constante e pesado que lhes deixa pouco lazer e menos inclinação para aplicar-se a qualquer outra coisa, ou mesmo para pensar nisso. Embora, porém, as pessoas comuns não possam, em uma sociedade civilizada, ser tão bem instruídas como as pessoas de alguma posição e fortuna, podem aprender as matérias mais essenciais da educação — ler, escrever e calcular — em idade tão jovem, que a maior parte, mesmo daqueles que precisam ser formados para as ocupações mais humildes, têm tempo para aprendê-las antes de empregar-se em tais ocupações. Com gastos muito pequenos, o Estado pode facilitar, encorajar e até mesmo impor a quase toda a população a necessidade de aprender os pontos mais essenciais da educação. O Estado pode facilitar essa aprendizagem elementar criando em cada paróquia ou distrito uma pequena escola, onde as crianças possam ser ensinadas pagando tão pouco que até mesmo um trabalhador comum tem condições de arcar com este gasto, sendo o professor pago em parte, não totalmente, pelo Estado, digo só em parte porque, se o professor fosse pago totalmente, ou mesmo principalmente, com o dinheiro do Estado, logo começaria a negligenciar seu trabalho. Na Escócia, essas escolas paroquiais ensinaram a quase a totalidade das pessoas comuns a ler e a enorme proporção delas a escrever e a calcular. Na Inglaterra, a criação de escolas de caridade tem surtido um efeito do mesmo gênero, ainda que não tão generalizado, porque esses estabelecimentos não são tão numerosos. Se, nessas pequenas escolas, os livros com os quais se ensinam as crianças a ler fossem um pouco mais instrutivos do que comumente o são, e se, em vez de um pequeno verniz de latim, que às vezes ali se ensinam aos filhos das pessoas comuns — e que dificilmente poderá ser-lhes de alguma utilidade —, 246
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se ensinassem os rudimentos da geometria e da mecânica, a educação literária dessa classe popular talvez fosse a mais completa possível. É raro encontrar uma atividade comum que não ofereça algumas oportunidades para se aplicar nela os princípios da geometria e da mecânica e que, portanto, não exercitem e aprimorem as pessoas comuns nesses princípios que constituem a propedêutica necessária para as ciências mais elevadas e mais úteis. O Estado pode estimular a aquisição desses elementos mais essenciais da educação oferecendo pequenos prêmios e pequenas distinções aos filhos das pessoas comuns que neles sobressaírem. O Estado pode impor à quase totalidade da população a obrigatoriedade de adquirir tais elementos mais essenciais da educação, obrigando cada um a submeter-se a um exame ou período de experiência em relação aos mesmos, antes que ele possa obter a liberdade em qualquer corporação ou poder exercer qualquer atividade, seja em uma aldeia, seja em uma cidade corporativa. Foi desse modo — facilitando o aprendizado dos exercícios militares e ginásticos, estimulando a população, e mesmo impondo-lhe a obrigatoriedade de aprender tais exercícios — que as repúblicas gregas e a romana mantiveram o espírito marcial de seu respectivos cidadãos. Elas facilitavam a realização desses exercícios, designando o determinado local para aprendê-los e praticá-los, e outorgando a alguns mestres o privilégio de ensinar nesse local. Não parece que esses mestres tivessem salários ou privilégios exclusivos de qualquer espécie. Sua remuneração consistia exclusivamente no que recebiam de seus alunos; outrossim, um cidadão que tivesse aprendido seus exercícios nos ginásios públicos não possuía perante a lei nenhuma vantagem sobre alguém que os tivesse aprendido em particular, desde que este último os tivesse aprendido com a mesma perfeição. As mencionadas repúblicas estimulavam o aprendizado desses exercícios, conferindo pequenos prêmios e distinção àqueles que neles sobressaíam. Ter ganho um prêmio nos Jogos Olímpicos, Ístmicos ou Nemeanos constituía um prestígio não somente para a pessoa que os ganhava, mas também para toda a sua família e afins. A obrigação a que estava sujeito todo o cidadão de servir um certo número de anos nos exércitos da república, no caso de ser convocado, impunha suficientemente a obrigatoriedade de aprender esses exercícios, sem os quais ele não poderia estar apto para aquele serviço. O exemplo da Europa moderna demonstra suficientemente que, com o aumento da prosperidade, a prática dos exercícios militares, a menos que o Governo não se dê ao trabalho de apoiá-la, vai decaindo gradualmente e, juntamente com ela, o espírito marcial do conjunto da população. Ora, a segurança de cada país deve sempre depender, em menor ou maior grau, do espírito marcial do conjunto da população. Sem dúvida, nos tempos atuais, esse espírito marcial só e sem o apoio de um exército efetivo bem disciplinado talvez não fosse suficiente para a defesa e segurança de qualquer país. Entretanto, onde cada 247
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cidadão tivesse o espírito de um soldado, certamente seria menor o exército efetivo de que se teria necessidade. Além disso, esse espírito faria com que diminuíssem muito os perigos reais ou imaginários que ameaçam a liberdade, os quais se costuma temer com um exército efetivo. Assim como facilitaria muito as operações desse exército contra um invasor externo, da mesma forma constituiria um obstáculo para esse exército, caso ele, por infelicidade, agisse contra a integridade do país. As antigas instituições da Grécia e de Roma parecem ter sido muito mais eficientes na manutenção do espírito marcial entre a grande massa da população, do que a instituição das chamadas milícias dos tempos modernos. Eram muito mais simples. Uma vez criadas, aquelas instituições funcionavam por si mesmas, exigindo pouca ou nenhuma atenção do Governo para mantê-las no mais pleno vigor. Ao contrário, para se manter, de maneira apenas satisfatória, os regulamentos complexos de qualquer milícia moderna, requer-se a atenção contínua e penosa do Governo, sem o que elas são constantemente negligenciadas e caem em desuso. Além disso, a influência das instituições antigas era muito mais generalizada. Através delas, toda a população era plenamente instruída no manejo das armas, ao passo que, pelos regulamentos de qualquer milícia moderna, só se consegue instruir plenamente uma parcela muito reduzida da população, excetuando-se, talvez, a milícia da Suíça. Ora, um covarde, um homem incapaz de defender-se a si mesmo ou vingar-se, evidentemente carece de um dos traços mais essenciais do caráter de um homem. Ele é mentalmente tão mutilado e deformado quanto é fisicamente mutilado alguém a quem faltem alguns de seus membros mais essenciais ou que perdeu o uso deles. O covarde é obviamente mais desprezível. O covarde é mais desprezível e digno de comiseração do que o mutilado fisicamente, já que a felicidade e a sordidez, que residem totalmente no espírito, forçosamente dependem mais da condição saudável ou doentia da mente, mais da condição mutilada ou íntegra da mente, do que da do corpo. Mesmo que o espírito marcial da população não tivesse nenhuma utilidade para a defesa da sociedade, ainda assim seria necessária a mais dedicada atenção do Governo para impedir que esse tipo de mutilação mental, deformidade e miséria que a covardia traz em seu bojo, se espalhassem em toda a população, da mesma forma como seria necessária a mais cuidadosa atenção do Governo para impedir que a lepra ou qualquer outra doença repugnante e prejudicial, ainda que não mortal nem perigosa, se propagasse em toda a população; isto, mesmo que, talvez, essa atenção do Governo não tivesse nenhum outro resultado para o público senão a prevenção de um mal público tão grande. O mesmo se pode dizer da ignorância e estultícia crassas que, em uma sociedade civilizada, parecem entorpecer com freqüência a mente de todas as camadas inferiores da população. Um homem destituído do uso adequado das faculdades intelectuais humanas é, se isso é possível, mais desprezível até mesmo do que um covarde, parecendo 248
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mutilado e deformado em um ponto ainda mais essencial do caráter da natureza humana. Ainda que o Estado não aufira nenhuma vantagem da instrução das camadas inferiores do povo, mesmo assim deveria procurar evitar que elas permaneçam totalmente sem instrução. Acontece, porém, que o Estado aufere certa considerável vantagem da instrução do povo. Quanto mais instruído ele for, tanto menos estará sujeito às ilusões do entusiasmo e da superstição que, entre nações ignorantes, muitas vezes dão origem às mais temíveis desordens. Além disso, um povo instruído e inteligente sempre é mais decente e ordeiro do que um povo ignorante e obtuso. As pessoas se sentem, cada qual individualmente, mais respeitáveis e com maior possibilidade de ser respeitadas pelos seus legítimos superiores e, conseqüentemente, mais propensas a respeitar seus superiores. Tais pessoas estão mais inclinadas a questionar e mais aptas a discernir quanto às denúncias suspeitas de facção e de sedição, pelo que são menos suscetíveis de ser induzidas a qualquer oposição leviana e desnecessária às medidas do Governo. Nos países livres, onde a segurança do Governo depende muitíssimo do julgamento favorável que o povo pode emitir sobre a conduta daquele, sem dúvida deve ser sumamente importante que este não esteja propenso a emitir julgamentos precipitados ou arbitrários sobre o Governo. ARTIGO III Os gastos com as instituições destinadas à instrução das pessoas de todas as idades As instituições destinadas à instrução das pessoas de todas as idades são principalmente as que visam à instrução religiosa. Estamos diante de um tipo de instrução cujo objetivo não consiste tanto em tornar as pessoas bons cidadãos neste mundo, mas antes em prepará-las para um mundo melhor, em uma vida futura. Da mesma forma que outros professores, também os mestres da doutrina que contém essa instrução podem, para sua subsistência, depender inteiramente das contribuições voluntárias de seus ouvintes; ou então prover sua subsistência de algum outro fundo que a lei de seu país lhes pode assegurar, por exemplo, uma propriedade territorial, um dízimo ou imposto territorial, um salário, ou estipêndio fixo. Sua aplicação, seu zelo e operosidade serão provavelmente muito maiores no primeiro caso do que no último. Sob esse aspecto, os mestres de religiões novas sempre têm levado vantagem considerável em atacar os sistemas antigos e oficializados, cujo clero, apoiado em seus benefícios, havia descurado de manter o fervor da fé e da devoção junto à grande massa da população, tendo-se, outrossim, entregue à indolência, se havia tornado totalmente incapaz de agir com energia, até mesmo na defesa de sua própria instituição. Com freqüência, o clero de uma religião oficial e com boas dotações se transforma em uma classe dada à erudição e à elegância, com todas as virtudes dos fidalgos, ou que podem recomendá-los à 249
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estima destes; porém, esse clero tende a ir perdendo gradualmente aquelas qualidades, tanto boas como más, que lhe davam autoridade e influência sobre as camadas inferiores da população, e que talvez haviam constituído as causas originais do sucesso e da implantação de sua religião. Tal clero, quando atacado por um grupo de exaltados populares e audaciosos, ainda que talvez obtusos e ignorantes, sente-se tão indefeso quanto as nações indolentes, efeminadas e empanturradas das regiões meridionais da Ásia, ao sobrevir a invasão dos tártaros ativos, audaciosos e esfomeados do norte. Em tais emergências, esse tipo de clero geralmente não tem outro recurso senão apelar para o magistrado civil a fim de que persiga, destrua ou expulse seus adversários, como perturbadores da tranqüilidade pública. Foi assim que o clero da Igreja Católica Romana recorreu ao magistrado civil para perseguir os protestantes, o mesmo fazendo a Igreja da Inglaterra para perseguir os dissidentes; o mesmo tem feito, em geral, toda seita religiosa que, depois de ter desfrutado durante um século ou dois da segurança de uma instituição legal, sentiu-se incapaz de defender-se com energia contra toda nova seita que investisse contra sua doutrina ou disciplina. Em tais ocasiões, às vezes pode levar vantagem a Igreja estabelecida, em termos de erudição e de bem escrever. Todavia, a arte da popularidade e a arte de ganhar prosélitos favorecem sempre os adversários. Na Inglaterra, essa arte foi por muito tempo negligenciada pelo clero rico da Igreja estabelecida, sendo atualmente cultivada sobretudo pelos dissidentes e metodistas. O sustento independente, contudo, que em muitos lugares se tem providenciado para mestres dissidentes, mediante subscrições voluntárias de direitos de crença e outras burlas à lei, parecem ter abatido sobremaneira o zelo e a atividade desses mestres. Vários deles se tornaram homens muito eruditos, talentosos e respeitáveis, mas, em geral, deixaram de ser pregadores muito populares. Os metodistas, sem sequer a metade da erudição dos dissidentes, são muito mais populares. Na Igreja de Roma, a atividade e o zelo do baixo clero se mantêm mais pela poderosa motivação do interesse próprio do que, talvez, em qualquer Igreja protestante estabelecida. O clero das paróquias, ao menos boa parte dele, em grande parte deve sua subsistência às ofertas voluntárias do povo — fonte de renda que a prática da confissão lhe dá muitas oportunidades de aumentar ainda mais. As Ordens Mendicantes devem sua subsistência totalmente às ofertas dos fiéis. Acontece com elas o que se dá com os hussardos e com a infantaria ligeira de certos exércitos: não há pilhagem, não há pagamento. O clero paroquial é como esses professores cuja remuneração depende, em parte, de seu salário e, em parte, dos honorários ou remunerações que recebem de seus alunos; e estes devem sempre depender, em grau maior ou menor, de seu trabalho e de sua reputação. As Ordens Mendicantes são como os professores cuja subsistência depende totalmente de sua atividade. Por isso, são obrigadas a utilizar todos os meios que possam estimular a devoção das pessoas comuns. Maquiavel observa que a fundação das 250
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duas grandes Ordens Mendicantes, a de São Domingos e a de São Francisco, reavivaram, nos séculos XIII e XIV, a fé e a devoção da Igreja Católica, que estavam morrendo. Nos países dominados pela Igreja Católica Romana o espírito de devoção é inteiramente sustentado pelos monges e pelo clero paroquial mais pobre. Os grandes dignitários da Igreja, com todas as características de cavalheiros e homens do mundo, e às vezes com as de homens letrados, são suficientemente cuidadosos para manter a necessária disciplina sobre seus inferiores, mas raramente se preocupam com a instrução do povo. A maior parte das artes, ofícios e profissões em um Estado [diz o mais ilustre filósofo e historiador atual] é de tal natureza que, enquanto promove os interesses da sociedade, é também útil e agradável para alguns indivíduos; e, em tal caso, a norma constante seguida pelo magistrado — excetuado talvez o caso da criação de algum ofício — é deixar a profissão abandonada à sua própria sorte, confiando sua promoção aos indivíduos que dela colhem os benefícios. Os artífices, sabedores de que seus lucros aumentam graças a seus clientes, aperfeiçoam, tanto quanto possível, sua habilidade e seu empenho; e se o curso dos acontecimentos não for perturbado por intervenções imprudentes, sempre há a certeza de que a todo instante a oferta da mercadoria é mais ou menos proporcional à demanda. Existem, porém, algumas profissões que, embora úteis e até necessárias para a sociedade, não trazem vantagem ou prazer para nenhum indivíduo, sendo o poder supremo obrigado a mudar sua conduta em relação aos que a exercem. Este poder precisa dar-lhes um estímulo oficial para possibilitar sua subsistência, devendo tomar providências contra essa carência à qual, por natureza, estão sujeitos, seja concedendo honras específicas à profissão — criando uma longa série de classes hierárquicas e uma dependência estrita —, seja lançando mão de algum outro expediente. Exemplos dessa categoria de pessoas são as que se ocupam com finanças, esquadras e magistratura. À primeira vista se poderia talvez pensar que os eclesiásticos fazem parte da primeira classe, e que seu estímulo, tanto como o dos advogados e médicos, pode com segurança ser confiado à liberalidade dos indivíduos simpáticos às suas doutrinas e que gozam de benefícios ou consolação do ministério e da ajuda espiritual deles. Sem dúvida, seu empenho e sua vigilância serão aguçados por tal motivação adicional; e sua habilidade profissional, bem como sua capacidade de orientar a mente do povo, deve aumentar diariamente, em decorrência de sua prática, esforço e atenção crescentes. Entretanto, se considerarmos as coisas mais de perto, veremos que essa aplicação interessada do clero é o que todo legislador sensato procurará impedir porque, em cada religião, excetuada a verdadeira, é altamente perniciosa, tendo mesmo uma tendência natural a perverter a religião verdadeira, infundindo nela uma forte dose mista de superstição, engano e ilusão. Todo religioso praticante, para tornar-se mais apreciado e consagrado aos olhos de seus adeptos, lhes inspirará a 251
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repugnância mais violenta a todas as outras seitas e se empenhará continuamente, mediante alguma inovação, em despertar a devoção enfraquecida de seus ouvintes. Não se levará absolutamente em consideração a verdade, a moral ou a decência das doutrinas inculcadas. Adotar-se-á toda doutrina que melhor se ajuste às emoções desordenadas da natureza humana. Atrair-se-ão clientes a cada conventículo, através de novo empenho e habilidade para explorar as paixões e a credulidade do populacho. E ao final, o magistrado civil descobrirá que pagou caro pela sua pretensa austeridade em recusar uma posição boa e fixa aos sacerdotes e que, na realidade, o acordo mais decente e vantajoso que pode fazer com os líderes espirituais é contornar sua indolência, estabelecendo determinados salários para essas profissões, dispensando-os da necessidade de se empenharem em outra coisa que não seja impedir seu rebanho de desgarrar-se na busca de novas pastagens. Dessa forma, as instituições eclesiásticas, embora em geral tenham surgido inicialmente de visões religiosas, ao final se tornam vantajosas para os interesses políticos da sociedade. Contudo, quaisquer que tenham sido os bons ou maus efeitos do sustento independente do clero, talvez muito raramente este lhe foi dado visando a tais efeitos. Períodos de violenta controvérsia religiosa geralmente têm sido também períodos de dissensões políticas igualmente violentas. Em tais ocasiões, todo partido político constatou ou imaginou que atendia a seus interesses ligar-se a uma ou outra das seitas religiosas contendoras. Mas isso só era possível adotando ou ao menos favorecendo as doutrinas de determinada seita. A seita que tivesse a felicidade de estar ligada ao partido vencedor necessariamente partilhava da vitória de seu aliado, mediante cujo favor e proteção tinha logo condições, até certo ponto, de silenciar e subjugar todos os seus adversários. Esses adversários geralmente se ligavam aos inimigos do partido vencedor, sendo portanto inimigos dele. Uma vez que o clero dessa seita passava a dominar totalmente o terreno, e tendo, com sua influência e autoridade junto à grande massa da população, atingido o vigor máximo, ele se tornava suficientemente poderoso para intimidar os chefes e líderes de seu próprio partido, obrigando o magistrado civil a respeitar suas opiniões e inclinações. Sua primeira exigência era, em geral, que o magistrado calasse e subjugasse todos os seus adversários; e a segunda, que concedesse fundos independentes para sua própria subsistência. Já que o clero, via de regra, havia contribuído bastante para a vitória, não parecia injusto que tivesse alguma participação nos despojos. Além disso, estava cansado de condescender com o povo e de depender de seu capricho para sua subsistência. Ao fazer essa exigência, portanto, o clero atendia à sua própria tranqüilidade e conforto, sem preocupar-se com o efeito que isso poderia ter futuramente na influência e autoridade de sua ordem. O magistrado civil, que só poderia atender ao clero dando-lhe algo que teria preferido escolher ou reservar para si mesmo, raramente estava muito inclinado a concedê-lo. Todavia, a necessidade sempre acabava forçando-o a isso, 252
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embora muitas vezes o fizesse depois de muitas delongas, evasões e escusas mentirosas. No entanto, se a política nunca tivesse pedido a ajuda da religião, se o partido vencedor nunca houvesse adotado as doutrinas de uma seita preferencialmente às de outra, ao vencer a guerra provavelmente teria tratado com igualdade e imparcialidade todas as diversas seitas, deixando cada um escolher livremente seus próprios sacerdotes e sua própria religião, como achasse melhor. Nesse caso, certamente teria havido uma imensidade de seitas religiosas. Provavelmente, quase toda congregação poderia ter constituído sua própria seita, ou adotado algumas doutrinas próprias. Cada mestre, sem dúvida, sentir-se-ia obrigado a empenhar-se ao máximo, recorrendo a todos os meios para preservar e para aumentar o número de seus discípulos. Mas, já que todos os outros mestres sentiriam a mesma necessidade, não poderia ser muito grande o sucesso de nenhum mestre ou grupo de mestres. O zelo interessado e atuante dos mestres religiosos somente pode ser perigoso e incômodo quando só há uma seita tolerada no país, ou, então, quando todo o país está dividido em duas ou três grandes seitas, os mestres de cada qual agindo em conjunto e obedecendo a metódica disciplina e subordinação. Esse zelo é totalmente inofensivo quando o país está dividido em duzentas ou trezentas seitas, ou talvez em tantos milhares de pequenas seitas de tal modo que nenhuma poderia ter suficiente influência para perturbar a tranqüilidade pública. Os mestres de cada seita, vendo-se rodeados por todos os lados mais de adversários do que de amigos, seriam obrigados a agir com a candura ou moderação que tão raramente se encontra entre os mestres das grandes seitas, cujos credos, apoiados pelo magistrado civil, são venerados por quase todos os habitantes de vastos reinos e impérios e que, portanto, não vêem ao redor deles senão seguidores, discípulos e humildes admiradores. Os mestres de cada pequena seita, vendo-se quase sozinhos, seriam obrigados a respeitar os de quase todas as outras seitas, e as concessões que considerariam conveniente e agradável fazer entre si, poderiam, provavelmente, com o tempo reduzir a doutrina da maior parte deles àquela religião autêntica e racional, isenta de toda mescla de absurdos, imposturas ou fanatismo, que as pessoas sensatas desejaram ver implantada em todas as épocas — religião esta que a lei positiva talvez nunca tenha conseguido implantar até hoje e, provavelmente, nunca conseguirá implantar em qualquer país, já que, com respeito à religião, a lei positiva sempre tem sido mais ou menos influenciada, e provavelmente sempre o será, pela superstição e pelo fanatismo popular. Foi esse plano de governo eclesiástico — ou melhor, esse plano de ausência de governo eclesiástico — que a seita denominada dos Independentes — sem dúvida uma seita de fanáticos extremamente indisciplinados — se propunha a implantar na Inglaterra por volta do final da guerra civil. Se esse tipo de governo tivesse sido implantado, embora sua origem fosse muito antifilosófica, provavelmente a essa altura teria gerado a mais filosófica serenidade e mode253
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ração em relação a cada tipo de princípio religioso. Ele foi implantado na Pensilvânia, onde, embora os quacres sejam os mais numerosos, a lei na realidade não favorece nenhuma seita mais que outra, afirmando-se lá ter sido ele responsável por essa serenidade e moderação filosófica. Mesmo que essa igualdade de tratamento não fosse a causadora dessa serenidade e moderação em todas as seitas religiosas de um determinado país, talvez nem mesmo na maior parte delas, não obstante isto, desde que tais seitas fossem suficientemente numerosas, e cada uma, conseqüentemente, muito pequena para perturbar a tranqüilidade pública, o zelo excessivo de cada uma pelo seu credo específico dificilmente poderia provocar efeitos muito danosos; ao contrário, geraria vários efeitos bons; e, se, o governo estivesse firmemente decidido a dar liberdade a cada uma e a exigir que elas, entre si, respeitassem a liberdade de todas, seria bem provável que, espontaneamente, se subdividissem com grande rapidez, de forma a se tornar logo suficientemente numerosas. Em toda sociedade civilizada, em toda sociedade em que se tenha estabelecido plenamente a distinção de classes, sempre houve simultaneamente dois esquemas ou sistemas diferentes de moralidade; um deles pode ser denominado rigoroso ou austero e o outro, liberal ou, se preferirmos, frouxo. O primeiro costuma ser admirado e reverenciado pelas pessoas comuns e o segundo geralmente é mais estimado e adotado pelas chamadas pessoas de destaque. O grau de desaprovação que se deve atribuir às depravações da leviandade — males que facilmente se originam da grande prosperidade e do excesso de satisfação e bom humor — parece constituir a principal diferença entre esses dois esquemas ou sistemas opostos. No sistema liberal ou frouxo, o luxo, a devassidão e até mesmo a alegria desordenada, a busca de prazer até certo grau de intemperança, a violação da castidade, ao menos em um dos dois sexos etc., desde que não venham acompanhados de indecência grosseira e não levem à falsidade ou à injustiça, são geralmente tratados com bastante indulgência, sendo facilmente desculpados, ou até totalmente perdoados. Ao contrário, no sistema austero, esses excessos são vistos com o máximo de repugnância e ódio. As depravações da leviandade são sempre maléficas para as pessoas comuns, bastando muitas vezes um descuido e a dissipação de uma semana para arruinar para sempre um trabalhador pobre e levá-lo, pelo desespero, a cometer os maiores crimes. Por isso, a parcela mais sensata e melhor do povo sempre aborrece e detesta ao máximo tais excessos, e com a experiência que têm tais pessoas, sabem de imediato que eles são fatais a todas as pessoas de sua condição. Ao contrário, o desregramento e a extravagância de vários anos nem sempre levarão à ruína um homem de posição, e as pessoas dessa classe são fortemente propensas a considerar o poder de entregar-se até certo ponto a tais excessos como uma das vantagens de sua fortuna, e a liberdade de fazer isso sem censura ou repreensão como um dos privilégios condizentes com sua posição. Por isso, em se tratando de pessoas de sua 254
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posição, é muito pequena a desaprovação que dão a tais excessos, e mínima ou até nula a censura que lhes imputam. Quase todas as seitas religiosas tiveram início no meio do povo no qual, geralmente, têm recrutado seus primeiros e mais numerosos seguidores. Por isso, quase sempre ou com muito poucas exceções — já que tem havido algumas — essas seitas têm adotado o sistema de austera moralidade. Era o sistema que melhor lhes permitia impor-se a essa classe de pessoas às quais primeiro propuseram seu plano de reforma em relação ao que existia anteriormente. Muitas delas, talvez a maior parte, têm até mesmo tentado ganhar crédito enrijecendo ainda mais este sistema austero e levando-o a certo grau de insensatez e extravagância; esse rigor excessivo muitas vezes lhes deu mais títulos de recomendação para merecerem o respeito e a veneração do povo comum do que qualquer outra coisa. Um homem de posição e fortuna é, pela sua própria situação, membro destacado de uma grande sociedade, a qual presta atenção a todos os seus atos, obrigando-o também a prestar a mesma atenção. Sua autoridade e consideração dependem muitíssimo do respeito que essa sociedade tem por ele. Ele não se atreve a fazer nada que possa prejudicá-lo ou desacreditá-lo nessa sociedade, sendo obrigado a respeitar muito rigorosamente esse tipo de moral liberal ou austera que o consenso geral dessa sociedade prescreve a pessoas de sua posição e fortuna. Ao contrário, uma pessoa de baixa condição está longe de ser um membro destacado de uma grande sociedade. Enquanto ela permanece em uma aldeia do interior, possivelmente sua conduta seja observada e ela deva ser obrigada a dar atenção à sua própria conduta. Nesta situação, e somente nesta, pode a pessoa vir a perder o que se chama reputação. Entretanto, no momento em que ela se transfere para uma cidade grande, desaparece no anonimato e na obscuridade. Ninguém observa ou presta atenção à sua conduta, sendo então muito provável que ela mesma também deixe de dar importância a isso, entregando-se a todo tipo de libertinagem e vícios. Ela assim nunca sai, efetivamente, de seu anonimato e sua conduta nunca desperta tanto a atenção de uma sociedade respeitável quanto no momento em que ela se torna membro de uma pequena seita religiosa. A partir daí ela adquire um grau de consideração que nunca conhecera antes. Todos os seus irmãos de seita, pelo bom nome da mesma, estão interessados em observar sua conduta e, se ela der azo a algum escândalo, se se desviar muito dessa moral austera que eles quase sempre exigem uns dos outros, estão prontos para infligir-lhe o que é sempre uma punição muito severa, mesmo quando não ocorreram efeitos civis: a expulsão ou excomunhão da seita. Por isso, em pequenas seitas religiosas a moral do povo quase sempre tem sido extraordinariamente metódica e ordeira, geralmente, muito mais do que na Igreja oficial. A moral dessas pequenas seitas tem sido em geral desagradavelmente rigorosa e anti-social. Existem, porém, dois remédios muito fáceis e eficazes com os 255
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quais, aplicados conjuntamente, o Estado pode corrigir sem violência tudo aquilo que de anti-social ou desagradavelmente rigoroso existe na moral de todas as pequenas seitas em que se dividiu o país. O primeiro deles é o estudo da ciência e da filosofia, que o Estado poderia tornar mais ou menos geral entre todas as pessoas de posição e fortuna médias ou superiores à média — não pagando aos professores salários que os tornam negligentes e preguiçosos, mas instituindo algum tipo de período de experiência, mesmo nas ciências mais elevadas e mais difíceis, a que se submeteria toda pessoa antes de se lhe permitir exercer alguma profissão liberal ou de poder ela ser admitida como candidata a qualquer cargo de prestígio, de confiança ou lucrativo. Se o Estado impusesse a essa classe de pessoas a obrigatoriedade de aprender, não precisaria ter preocupação alguma em arranjar-lhes professores adequados. Essas pessoas logo encontrariam professores melhores do que os que o Estado lhes poderia fornecer. A ciência é o grande antídoto para o veneno do fanatismo e da superstição, e quando todas as classes superiores da população estivessem imunizadas contra esse veneno, as classes inferiores não poderiam ficar muito expostas a ele. O segundo dos citados remédios é a freqüência e a alegria das diversões públicas. O Estado, ao estimulá-las, isto é, ao dar inteira liberdade de ação a todos aqueles que, movidos pelo próprio interesse, procurassem, sem escândalo ou indecência, divertir e distrair o povo com a pintura, a poesia, a música, a dança, com todos os tipos de representações e exibições, facilmente dissiparia, na maior parte da população, a melancolia e a tristeza que quase sempre alimentam a superstição e o fanatismo populares. As diversões públicas sempre têm constituído objeto de medo e ódio para todos os fanáticos promotores desse delírio popular. A alegria e o bom humor que essas diversões inspiram seriam totalmente inconciliáveis com esse estado de espírito que constitui o terreno mais propício para os propósitos desses fanáticos ou sobre o qual eles podem trabalhar melhor. Além disso, as representações dramáticas, ao expor muitas vezes os artifícios desses fundadores de seitas à irrisão pública, e às vezes até mesmo à execração popular, constituíram para eles, sob esse aspecto, objeto de aversão especial, mais do que todas as outras diversões. Em um país em que a lei não favorecesse aos mestres de uma religião mais do que aos de outra, não seria necessário que alguma delas dependesse de maneira especial ou imediata do soberano ou do poder executivo; nem seria necessário que o soberano tivesse algo a ver com sua nomeação ou demissão dos respectivos cargos. Em tal situação, o soberano não teria nenhuma preocupação com eles, a não ser a de manter a paz entre os mesmos, da mesma forma como entre o restante de seus súditos — ou seja, só lhe caberia impedir mutuamente que se perseguissem, oprimissem ou abusassem. Bem outra é a situação em países em que existe uma religião oficial ou que governa o país. Nesse caso, o soberano nunca poderá ter segurança, a menos 256
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que disponha dos meios de exercer uma influência considerável sobre a maioria dos mestres daquela religião. O clero de cada Igreja oficial constitui uma grande corporação. Ele pode agir de comum acordo e defender seus interesses dentro de um mesmo plano e com um mesmo espírito, como se estivesse sob a direção de um único homem; aliás, muitas vezes isso efetivamente ocorre. Sendo uma corporação, seu interesse nunca se identifica com o do soberano e, por vezes, é diretamente oposto a este. Seu grande interesse consiste em manter sua autoridade sobre o povo, e essa autoridade depende da suposta certeza e da importância de toda a doutrina que o clero inculca e da suposta necessidade de se adotarem todos os artigos dessa doutrina com a fé mais íntima, a fim de escapar da condenação eterna. Se o soberano, eventualmente, cometer a imprudência de parecer ridicularizar ou manifestar dúvidas sobre o mais insignificante artigo de sua doutrina, ou, por motivos humanitários, tentar proteger os que a isso se atreverem, a honra exigente de um clero que não depende de forma alguma do soberano é imediatamente levada a proscrevê-lo como um profano e a empregar todos os terrores da religião para obrigar o povo a transferir sua fidelidade a algum príncipe mais ortodoxo e mais obediente. Se o soberano tentar opor-se a algumas de suas pretensões ou usurpações, o perigo é o mesmo. Os príncipes que, dessa forma, ousaram rebelar-se contra a Igreja, além desse crime de rebeldia, geralmente têm sido incriminados também por crime de heresia, a despeito dos protestos solenes de sua fé e humilde submissão a todo artigo que a Igreja considerasse justo prescrever-lhes. Mas a autoridade da religião é superior a qualquer outra. Os temores que ela sugere superam todos os demais temores. Quando os mestres credenciados da religião propagam no conjunto da população doutrinas subversivas sobre a autoridade do soberano, este só tem condições de manter sua autoridade com o uso da violência ou da força de um exército efetivo. Mesmo um exército efetivo não é capaz, nesse caso, de garantir-lhe uma segurança duradoura porque, se os soldados não forem estrangeiros — o que raramente é possível — mas recrutados da massa da população — o que quase sempre ocorrerá — provavelmente serão logo corrompidos por essas próprias doutrinas. As revoluções que a turbulência do clero grego continuamente procurava em Constantinopla, enquanto subsistiu o Império Oriental, as convulsões que durante o decurso de vários séculos a turbulência do clero romano provocou continuamente em todas as partes da Europa, demonstram suficientemente quão precária e insegura deve sempre ser a situação do soberano que não dispuser de meios adequados para influenciar o clero da religião estabelecida que governa seu país. É suficientemente óbvio que os artigos de fé, bem como todos os outros assuntos de ordem espiritual, não estão no âmbito da competência de um soberano temporal, o qual, embora possa estar perfeitamente qualificado para proteger a população, raramente o está, supostamente, para instruí-la. Com respeito a tais assuntos, portanto, sua 257
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autoridade raras vezes pode ser suficiente para contrabalançar a autoridade unificada do clero da igreja estabelecida. No entanto, a tranqüilidade pública, bem como a segurança do próprio soberano, muitas vezes podem depender das doutrinas que o clero possa considerar oportuno propagar acerca destes assuntos. Uma vez que, pois, ele raramente pode opor-se diretamente à decisão clerical com peso e autoridade adequados, é necessário que tenha condições para influenciar a igreja; ora, ele só pode influenciá-la pelo medo e pela expectativa que puder suscitar na maior parte dos indivíduos dessa classe. Esse medo e essa expectativa podem consistir no medo da destituição ou de outra punição, e na expectativa de ulterior promoção. Em todas as Igrejas cristãs, os benefícios do clero constituem uma espécie de propriedade livre e alodial de que ele desfruta, não durante o tempo que lhe aprouver, mas durante toda a vida, ou enquanto se comportar devidamente. Se o título que lhe dá direito a tais benefícios fosse de natureza mais precária, e se o clero estivesse sujeito a ser privado deles toda vez que se tornasse levemente desobrigado em relação ao soberano ou a seus ministros, talvez lhe fosse impossível manter sua autoridade junto ao povo, que o consideraria como mercenário dependente da corte, na sinceridade de cujas instruções não mais poderia ter confiança. Entretanto, se o soberano tentasse irregularmente, e pela violência, privar qualquer número de eclesiásticos de suas propriedades alodiais, talvez por terem propagado com zelo fora do comum alguma doutrina facciosa ou sediciosa, com tal perseguição ele apenas tornaria esses eclesiásticos e sua doutrina dez vezes mais populares, e portanto dez vezes mais incômodos e perigosos do que antes. O medo é, em quase todos os casos, um instrumento odioso de governo e, em particular, nunca deveria ser empregado contra qualquer categoria de pessoas com a mínima pretensão à independência. Tentar inspirar-lhes medo só serve para irritar seu mau humor, e confirmá-las em uma oposição que um tratamento mais gentil talvez pudesse facilmente induzi-las a abrandar, ou então a abandonar totalmente. Muito raramente conseguiu sucesso a violência que o governo francês costumava empregar para obrigar todos os seus Parlamentos, ou cortes soberanas de justiça a registrarem qualquer edito impopular. No entanto, poder-se-ia pensar que os meios comumente utilizados — a prisão para todos os membros insubmissos — fossem suficientemente eficazes. Os príncipes da Casa de Stewart às vezes empregavam os mesmos meios para influenciar alguns dos membros do Parlamento inglês e geralmente constatavam que eles eram igualmente intratáveis. O Parlamento inglês é hoje conduzido de outra forma; e uma experiência muito breve, que o Duque de Choiseul fez há aproximadamente doze anos no Parlamento de Paris, demonstrou de modo suficiente que todos os Parlamentos da França poderiam ter sido conduzidos com facilidade ainda maior da mesma forma. Essa experiência não teve prosseguimento. Pois, embora o bom relacionamento e a persuasão sejam sempre os instrumentos mais fáceis e mais seguros de governo, assim como a 258
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força e a violência são os piores e mais perigosos, não obstante isto, ao que parece, a insolência natural do homem é tal que quase sempre deixa de utilizar o bom instrumento, a não ser quando não pode ou não se atreve a usar o mau. O governo francês tinha condições e podia atrever-se a usar a força e, por isso, deixou de recorrer às boas maneiras e à persuasão. Entretanto, creio não haver nenhuma classe de pessoas, segundo nos ensina a experiência de todas as épocas, contra a qual seja tão perigoso, ou melhor, realmente prejudicial empregar a força e a violência, como o clero respeitado de uma igreja estabelecida. Os direitos, os privilégios, a liberdade pessoal de cada eclesiástico individualmente que está em boas relações com sua própria classe são, mesmo nos governos mais despóticos, mais respeitados do que os de qualquer outra pessoa de posição hierárquica e fortuna mais ou menos iguais. Assim acontece em todos os níveis de despotismo, desde o governo generoso e compassivo de Paris até o governo violento e impetuoso de Constantinopla. Todavia, embora dificilmente jamais se possa coagir essa classe de pessoas, ela pode ser tratada com a mesma facilidade que qualquer outra; e a segurança do soberano, bem como a tranqüilidade pública parecem depender muitíssimo dos meios de que o soberano dispõe para tratar com ela; esses meios parecem consistir exclusivamente na promoção que o soberano tem que lhe dar. Na antiga constituição da Igreja cristã, o bispo de cada diocese era eleito pelos votos conjuntos do clero e do povo da cidade episcopal. O povo não conservou por muito tempo seu direito de eleição; e, no período em que o manteve, quase sempre agiu sob a influência do clero que, em tais assuntos espirituais, constituía seu guia natural. Contudo, o clero logo se cansou do incômodo de tratar com o povo e considerou mais fácil eleger ele mesmo seus bispos. Analogamente, o abade era eleito pelos monges do mosteiro, pelo menos na maior parte das abadias. Todos os benefícios eclesiásticos inferiores compreendidos dentro da diocese eram conferidos pelo bispo, que os confiava aos eclesiásticos que considerasse dignos. Assim, todos os cargos e promoções eclesiásticos estavam à disposição da Igreja. O soberano, ainda que pudesse ter alguma influência indireta nessas escolhas, e embora, às vezes, fosse costume pedir seu consentimento para a escolha e sua aprovação após ela, não dispunha de meios diretos ou suficientes para controlar o clero. A ambição de cada eclesiástico o levava naturalmente a cortejar não tanto o soberano, mas antes sua própria ordem, pois só dela se podiam esperar promoções. Na maior parte da Europa, o papa gradualmente reservou para si mesmo, primeiro, a nomeação de todos os bispados e abadias, ou os chamados benefícios consistoriais e, posteriormente, recorrendo a várias maquinações e pretensões, também a maior parte dos benefícios inferiores compreendidos em cada diocese, não deixando ao bispo muito mais do que o estritamente necessário para lhe assegurar razoável autoridade sobre seu próprio clero. Com isso, a condição do soberano tornou-se ainda pior do que antes. Dessa forma, o clero de todos os 259
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diversos países da Europa foi transformado numa espécie de exército espiritual, disperso por diferentes lugares, mas de maneira que todos os seus movimentos e operações podiam agora ser comandados por uma só cabeça e dirigidos em obediência a um plano uniforme. O clero de cada país podia ser considerado como um destacamento específico desse exército, cujas operações podiam ser facilmente apoiadas e secundadas por todos os demais destacamentos estacionados nos diversos países ao redor. Cada destacamento não somente era independente do soberano do país no qual estava aquartelado e pelo qual era sustentado, como também dependia de um soberano estrangeiro que podia a cada momento voltar-se contra o soberano do respectivo país, e ajudar o clero local com as armas de todos os demais destacamentos. Essas armas eram as mais temíveis que se possa imaginar. Na antiga situação da Europa, antes da implantação das artes, ofícios e manufaturas, o clero, em virtude de sua riqueza, tinha o mesmo tipo de influência sobre o povo que os grandes barões, por sua riqueza, tinham sobre seus respectivos vassalos, inquilinos e dependentes. Nas grandes propriedades fundiárias, que a falsa piedade religiosa dos príncipes e das pessoas privadas tinham doado à Igreja, implantaram-se jurisdições do mesmo tipo que as dos grandes barões, e pelas mesmas razões. Nessas grandes propriedades fundiárias, o clero ou seus bailios podiam com facilidade manter a paz sem o apoio ou a ajuda do rei ou de qualquer outra pessoa, e nem o rei nem qualquer outra pessoa tinha condições de manter a paz ali, sem o apoio e a ajuda do clero. Por conseguinte, as jurisdições do clero, em seus baronatos ou senhorios, gozavam da mesma independência e da mesma autonomia em relação à autoridade dos tribunais régios, que as dos grandes senhores temporais. Os inquilinos do clero eram, como os dos grandes barões, quase todos inquilinos ao arbítrio dos patrões, totalmente dependentes de seus senhores imediatos e, portanto, sujeitos a serem convocados a bel-prazer, para lutar em qualquer contenda na qual o clero achasse oportuno empenhá-los. Além das rendas dessas propriedades, o clero possuía nos dízimos uma grandíssima parcela das rendas de todas as outras propriedades em cada reino europeu. A maior parte das receitas desses dois tipos de rendas eram pagas em espécie, cereais, vinho, gado, aves domésticas etc. A quantidade ultrapassava de muito o que o próprio clero tinha condições de consumir, e não havia nem artesanato nem manufaturas que pudessem produzir artigos pelos quais o clero pudesse trocar o excedente. O clero só podia tirar vantagem desse imenso excedente empregando-o como faziam os grandes barões que utilizavam o mesmo excedente de suas rendas, na hospitalidade mais pródiga possível e nas mais amplas obras de caridade. Segundo se afirma, tanto a hospitalidade como a caridade do clero antigo eram muito grandes. Ele não somente mantinha quase todos os pobres de cada reino, como também muitos cavaleiros e fidalgos freqüentemente não tinham outra fonte de subsistência senão indo de um mosteiro a outro, sob pretexto de devoção mas, na realidade, apenas para desfrutar 260
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da hospitalidade do clero. Os dependentes de certos prelados eram muitas vezes tão numerosos quanto os dos maiores senhores leigos, e os dependentes de todo o clero talvez fossem mais numerosos do que os de todos os senhores leigos. Havia sempre muito mais união entre o clero do que entre os senhores leigos. O primeiro estava sob a disciplina e a subordinação regulares da autoridade papal. Os últimos não estavam sujeitos a nenhuma disciplina ou subordinação regulares, mas quase sempre eram igualmente ciumentos uns em relação aos outros, e também em relação ao rei. Portanto, ainda que os inquilinos e os dependentes do clero fossem, juntos, menos numerosos do que os dos grandes senhores leigos e seus inquilinos, provavelmente, muito menos numerosos, sua união, de qualquer forma, os teria tornado mais temíveis. Além disso, a hospitalidade e a caridade do clero não somente lhe garantiam o controle de uma grande força temporal, como também aumentavam muitíssimo o peso de suas armas espirituais. Essas virtudes lhe asseguravam o mais alto respeito e veneração entre todas as classes inferiores do povo, dentre o qual muitos eram constantemente e quase todos ocasionalmente alimentados por ele. Tudo o que pertencesse ou estivesse relacionado com uma classe tão popular, suas posses, seus privilégios, suas doutrinas, necessariamente parecia sagrado aos olhos do povo, e toda violação dos mesmos itens, fosse ela real ou não, constituía ato da maior maldade e profanação sacrílegas. Em tal estado de coisas, se o soberano às vezes encontrava dificuldade em resistir à conspiração de alguns membros da grande nobreza, não é de admirar que tenha encontrado dificuldade ainda maior em resistir à força unida do clero de seus próprios domínios, apoiada por aquela do clero de todos os domínios vizinhos. Em tais circunstâncias, o que surpreende não é que às vezes ele tivesse que ceder, mas que alguma vez tivesse condições de resistir. Os privilégios do clero naqueles tempos antigos (que a nós, que vivemos na época atual, parecem os mais absurdos), por exemplo, sua isenção total da jurisdição secular, ou seja, o que na Inglaterra se denominava o benefício do clero, representavam a conseqüência natural, ou melhor, necessária, deste estado de coisas. Quão perigoso deve ter sido para o soberano tentar punir um eclesiástico, por qualquer crime que fosse, se sua própria classe estivesse disposta a protegê-lo e alegar que a prova era insuficiente para incriminar um homem tão santo, ou, então, que a punição era por demais rigorosa para ser imposta a uma pessoa que a religião havia sacralizado! Em tais circunstâncias, o melhor que o soberano podia fazer era deixar que o clérigo fosse julgado pelos tribunais eclesiásticos, os quais, em defesa da honra de sua própria classe, estavam interessados em coibir o mais possível cada membro da mesma de cometer grandes crimes, ou mesmo de dar azo a um escândalo tão patente que pudesse desgostar ao povo. No estado em que se encontravam as coisas, na maior parte da Europa, durante os séculos X, XI, XII e XIII, e durante algum tempo antes e depois do citado período, a constituição da Igreja de Roma 261
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pode ser considerada como o conluio mais temível que jamais se formou contra a autoridade e a segurança do governo civil, bem como contra a liberdade, a razão e a felicidade da humanidade, as quais só podem florescer onde o governo civil tem condições de protegê-las. Nessa constituição, as ilusões mais grosseiras da superstição eram apoiadas de tal maneira pelos interesses privados de tão grande número de pessoas, que estavam a salvo de qualquer assalto por parte da razão humana; com efeito, embora esta pudesse talvez ter tido condições de revelar algumas das ilusões da superstição, mesmo aos olhos do povo, jamais poderia ter rompido as amarras do interesse privado. Se esta constituição não tivesse sido atacada por nenhum outro inimigo senão pelos fracos esforços da razão humana, ela teria durado para sempre. Entretanto, esta imensa e bem construída estrutura, que nem toda a sabedoria e força do homem nunca teriam conseguido abalar, muito menos derrubar, foi, primeiro, enfraquecida pelo curso natural das coisas, depois parcialmente destruída, e, agora, talvez no decurso de mais alguns séculos, provavelmente ruirá totalmente. Os aperfeiçoamentos graduais das artes e ofícios, das manufaturas e do comércio, as mesmas causas que destruíram a força dos grandes barões, destruíram igualmente, na maior parte da Europa, todo o poder temporal do clero. Nos produtos do artesanato, das manufaturas e do comércio, o clero, como os grandes barões, encontrou algo pelo qual podia trocar sua produção natural e, com isso, descobriu os meios de gastar toda a sua receita com suas próprias pessoas, sem dar a outras uma parte considerável da mesma. Sua caridade tornou-se gradualmente menos ampla, sua hospitalidade menos liberal ou menos pródiga. Em conseqüência, seus dependentes tornaram-se menos numerosos e aos poucos desapareceram totalmente. Também o clero, como os grandes barões, desejava auferir uma receita maior das suas propriedades fundiárias, a fim de gastá-la da mesma forma para satisfazer sua vaidade e insensatez pessoais. Mas esse aumento da receita só seria possível assegurando arrendamentos a seus inquilinos que, com isso, se tornaram em grande parte independentes deles. Dessa maneira, romperam-se e desapareceram gradualmente os laços de interesse que ligavam ao clero as classes inferiores da população. Romperam-se e desapareceram até antes dos laços que ligavam as mesmas classes de pessoas aos grandes barões; isso porque, sendo a maior parte dos benefícios da Igreja muito menores do que os latifúndios dos grandes barões, o usufrutuário de cada benefício tinha condições de gastar muito antes todo o seu rendimento com sua própria pessoa. Durante a maior parte dos séculos XIV e XV, o poder dos grandes barões ainda estava em pleno vigor, na maior parte da Europa. Entretanto, já havia decaído muito o poder temporal do clero, o controle absoluto que havia chegado a manter sobre a massa da população. Durante essa época, o poder da Igreja foi mais ou menos reduzido, na maior parte da Europa, ao que decorria de sua autoridade espiritual, e mesmo esta foi muito enfraquecida quando deixou de se estribar na caridade e na hospita262
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lidade do clero. As classes inferiores da população já não viam a classe clerical, como anteriormente, como consoladora de suas desgraças e aliviadora de sua indigência. Pelo contrário, o povo humilde se indignava e se revoltava com a vaidade, o luxo e as despesas do clero mais rico, que comprovadamente gastava para satisfazer seus próprios prazeres o que anteriormente sempre havia sido considerado patrimônio dos pobres. Em tal situação, os soberanos dos diversos países europeus procuraram recuperar a influência que uma vez haviam tido no direito de dispor dos grandes benefícios da Igreja, cuidando que aos decanos e aos capítulos de cada diocese fosse restituído seu antigo direito de eleger o bispo, e, aos monges de cada abadia, de eleger seu abade. O restabelecimento dessa ordem antiga foi objeto de vários estatutos decretados na Inglaterra durante o curso do século XIV, especialmente do assim chamado estatuto de provisores e da Pragmática Sanção estabelecida na França, no século XV. Para tornar válida a eleição, era obrigatório que o soberano lhe desse consentimento prévio e, posteriormente, aprovasse a pessoa eleita, e embora a eleição ainda fosse supostamente livre, o soberano dispunha de todos os meios indiretos que sua posição necessariamente lhe garantia, de influenciar o clero em seus próprios domínios. Em outros países da Europa decretaram-se outras medidas de tendência similar. Todavia, parece que em parte alguma o poder do papa de conferir os grandes benefícios eclesiásticos foi tão generalizadamente restringido e com tanta eficácia, antes da Reforma, como na França e na Inglaterra. Posteriormente, no século XVI, a Concordata deu aos reis da França o direito absoluto de apresentar seus candidatos a todos os grandes benefícios — os assim chamados benefícios consistoriais — da Igreja galicana. Desde o estabelecimento da Pragmática Sanção e da Concordata, o clero da França geralmente passou a demonstrar menos respeito aos decretos da corte papal do que o clero de qualquer outro país católico. Em todas as disputas que seu soberano teve com o papa, quase constantemente ele tomou partido do primeiro. Essa independência do clero da França em relação à corte romana parece fundar-se sobretudo na Pragmática Sanção e na Concordata. Nos períodos mais antigos da monarquia, o clero da França parece ter sido tão devotado ao papa como o de qualquer outro país. Quando Roberto, o segundo príncipe da estirpe dos Capetos, foi muito injustamente excomungado pela corte de Roma, seus próprios servidores, ao que se diz, atiraram aos cães os alimentos que vinham de sua mesa, e se recusaram a provar o que quer que tivesse sido poluído pelo contato de uma pessoa excomungada. Pode-se presumir com segurança que foram instruídos a agir dessa forma pelo clero de seus próprios domínios. Dessa maneira, a reivindicação de dispor dos grandes benefícios da Igreja — uma reivindicação em defesa da qual a corte de Roma muitas vezes abalou, e até derrubou os tronos de alguns dos maiores soberanos da cristandade — foi restringida, modificada ou mesmo to263
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talmente abandonada, em muitos países da Europa, mesmo antes da época da Reforma. Assim, como o clero tinha agora menos influência sobre o povo, da mesma forma o Estado exercia maior influência sobre o clero. Por isso, o clero tinha menos poder e estava menos propenso a perturbar o Estado. A autoridade da Igreja de Roma estava nesse estado de declínio quando começou, na Alemanha, a disputa que deu origem à Reforma, e que logo se estendeu a todos os países da Europa. As novas doutrinas foram recebidas em toda parte com grande simpatia popular. Elas foram propagadas com todo o zelo entusiástico que costuma animar o espírito partidário quando ataca a autoridade estabelecida. Os mestres dessas doutrinas embora, talvez, sob outros aspectos, não fossem muito mais instruídos do que muitos dos teólogos que defendiam a Igreja Oficial, no geral parecem ter tido mais familiaridade com a história eclesiástica e com a origem e o desenvolvimento daquele sistema de opiniões sobre o qual se fundava a autoridade da Igreja, e com isso levaram alguma vantagem em quase todas as disputas. A austeridade de seus costumes lhes dava autoridade junto ao povo, que estabelecia contraste entre a estrita regularidade da conduta desses pregadores e a vida desordenada da maior parte de seu próprio clero. Além disso, os pregadores da Reforma dominavam, em grau muito superior ao de seus adversários, todos os recursos da popularidade e do proselitismo, artes que os anfatuados e prestigiados filhos da Igreja há muito haviam negligenciado como coisas em grande parte inúteis para eles. Pelo seu fundamento racional, as novas doutrinas atraíam alguns, pela sua novidade, atraíam muitos; pelo ódio e menosprezo que essas doutrinas votavam ao clero estabelecido, elas atraíam um número ainda maior; entretanto, o que atraiu sobremaneira o maior número foi a eloqüência com a qual essas novas doutrinas eram inculcadas — uma eloqüência cheia de zelo, paixão e fanatismo, embora muitas vezes grosseira e rústica. O êxito das novas doutrinas foi em quase toda parte tão grande que os príncipes que, na época, estavam em más relações com a corte de Roma, mediante essas doutrinas facilmente tiveram condições de, em seus próprios domínios, derrubar a Igreja, a qual, tendo perdido o respeito e a veneração das camadas inferiores da população, dificilmente podia opor alguma resistência. A corte de Roma havia desagradado alguns príncipes menos importantes nas regiões setentrionais da Alemanha, considerando-os provavelmente muito insignificantes para merecerem um tratamento mais diplomático. Assim, eles implantaram de modo geral a Reforma em seus próprios domínios. Cristiano II e Troll, arcebispo de Upsala, pela sua tirania, possibilitaram sua expulsão da Suécia por Gustavo Vasa. O papa favoreceu ao tirano e ao arcebispo, e Gustavo Vasa não encontrou dificuldade em implantar a Reforma na Suécia. Posteriormente, Cristiano II foi deposto do trono da Dinamarca, onde sua conduta o tornara tão odioso como na Suécia. Mesmo assim, o papa ainda estava disposto a favorecê-lo, e Frederico de Hosltein, que havia subido ao trono em seu lugar, vingou-se seguindo o 264
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exemplo de Gustavo Vasa. Os magistrados de Berna e Zurique, que não tinham nenhuma rixa especial com o papa, implantaram com grande facilidade a Reforma em seus respectivos cantões onde, um pouco antes, alguns representantes do clero, por uma impostura que ultrapassava um pouco o normal, haviam tornado odiosa e desprezível toda a ordem clerical. Nessa situação crítica, a corte papal tinha suficientes dificuldades para cultivar amizade com os poderosos soberanos da França e da Espanha, sendo este último, na época, o imperador da Alemanha. Com a ajuda deles, conseguiu, embora não sem grandes dificuldades, e com muito derramamento de sangue, suprimir totalmente ou ao menos dificultar muitíssimo o avanço da reforma nos domínios desses soberanos. A corte papal queria também agradar ao rei da Inglaterra. Todavia, devido às circunstâncias da época, não podia fazê-lo sem ofender um soberano ainda maior, Carlos V, rei da Espanha e imperador da Alemanha. Eis por que Henrique VIII, embora pessoalmente não abraçasse a maior parte das doutrinas da Reforma, teve, devido à difusão geral dessas doutrinas, condições de suprimir todos os mosteiros e de abolir a autoridade da Igreja de Roma em seus domínios. Embora ele não tenha podido ir mais longe, o fato de haver chegado a tanto satisfez até certo ponto os patronos da Reforma, os quais, após tomarem posse do governo no reinado do filho e sucessor de Henrique VIII, completaram sem qualquer dificuldade a obra que este havia iniciado. Em alguns países, como na Escócia, onde o Governo era fraco, impopular e não muito firmemente estabelecido, a Reforma foi suficientemente forte para derrubar não somente a Igreja como também o Estado, por tentar este apoiar a Igreja. Entre os seguidores da Reforma espalhados por todos os países da Europa, não havia um tribunal geral que, como o da corte de Roma, ou como um concílio ecumênico, pudesse acertar todas as disputas surgidas entre eles e, com autoridade irrecusável, prescrever a todos os limites precisos da ortodoxia. Quando, pois, os seguidores da Reforma em um país eventualmente divergiam de seus irmãos em outro país, como não tinham um juiz comum a quem apelar, nunca se conseguiu decidir a disputa; assim, muitas controvérsias desse gênero surgiram entre eles. As concernentes ao governo da Igreja e ao direito de conferir benefícios eclesiásticos eram talvez as mais relevantes para a paz e o bem-estar da sociedade civil. Foram, pois, essas disputas que deram origem aos dois principais partidos ou seitas entre os seguidores da reforma, as seitas luterana e calvinista, as únicas entre elas, cuja doutrina e disciplina jamais tinham até então sido estabelecidas por lei em algum país da Europa. Os seguidores de Lutero, juntamente com o que se denomina Igreja da Inglaterra, conservaram, em grau maior ou menor, o governo episcopal, estabeleceram subordinação entre os membros do clero, deram ao soberano o direito de dispor de todos os bispados e outros benefícios consistoriais dentro de seus domínios e, com isso, o tornaram 265
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chefe efetivo da Igreja, e, sem privar o bispo do direito de conferir os benefícios menores dentro de sua diocese, mesmo em se tratando destes, eles não somente admitiram mas até favoreceram, tanto ao soberano como a todos os outros patronos leigos, o direito de apresentarem candidatos para os cargos. Esse sistema de governo eclesiástico, desde o início, favoreceu a paz e a boa ordem, bem como a submissão ao soberano civil. Por isso, jamais deu azo a algum tumulto ou agitação civil em qualquer país em que algum dia tenha sido estabelecido. A Igreja da Inglaterra, em particular, sempre se ufanou, com muita razão, da lealdade irrepreensível de seus princípios. Sob tal governo, o clero naturalmente se empenha em tornar-se recomendável ao soberano, à corte, à alta e pequena nobreza do país, por de meio de cuja influência, em especial, espera obter promoções. Sem dúvida, por vezes ele procura agradar a esses patronos, recorrendo à bajulação e ao assentimento servil mais indigno, mas, muitas vezes, também o faz cultivando todos os meios mais dignos e que, por isso, têm mais probabilidade de granjear-lhe a estima de pessoas de posição e fortuna; para este fim, o clero faz valer também o conhecimento que tem de todos os diversos setores da erudição útil e decorativa, a liberalidade moderada de suas maneiras, sua conversação social agradável e o seu declarado menosprezo pela austeridade absurda e hipócrita que os fanáticos inculcam e pretendem praticar para atrair a si a veneração, ao passo que, sobre a maior parte das pessoas de posição e fortuna, que confessam não praticar essa austeridade, procuram atrair a repugnância do povo. No entanto, tal clero, ao mesmo tempo que procura assim agradar às pessoas de categoria superior, tem muita propensão a negligenciar inteiramente os meios suscetíveis de manterem sua influência e autoridade junto às camadas inferiores do povo. Ele é ouvido, estimado e respeitado por seus superiores, mas, diante de seus inferiores, freqüentemente é incapaz de defender, com eficácia e com força de convicção para tais ouvintes, suas próprias doutrinas sóbrias e moderadas contra o fanático mais ignorante que resolver atacá-lo. Ao contrário, os seguidores de Zwínglio ou, mais propriamente, os de Calvino, conferiram ao povo de cada paróquia o direito de eleger seu próprio pastor, onde quer que a igreja se tornasse vacante; ao mesmo tempo estabeleceu a mais perfeita igualdade entre o clero. A primeira dessas disposições, enquanto permaneceu em vigor, parece não ter produzido outra coisa senão desordem, confusão e igualmente tendido a corromper a moral, tanto do clero como do povo. Quanto à segunda medida, parece nunca ter produzido senão efeitos perfeitamente positivos. Enquanto o povo de cada paróquia conservou o direito de eleger seus próprios pastores, quase sempre agiu sob a influência do clero e, geralmente, de seus membros mais facciosos e fanáticos. Muitos membros do clero, visando preservar sua influência nessas eleições populares, tornavam-se eles mesmos fanáticos — ou assim pareciam — estimulando o fanatismo entre o povo e quase sempre dando preferência 266
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ao candidato mais fanático. Um assunto tão irrelevante como a designação de um pároco quase sempre ocasionava uma disputa violenta, não somente em sua paróquia, mas também em todas as paróquias vizinhas, que raramente deixavam de se envolver na briga. Quando acontecia que a paróquia estivesse localizada em uma cidade grande, dividiam-se todos os habitantes em dois partidos; e quando, acontecia que esta cidade era uma pequena república, ou então a principal cidade ou capital de uma pequena república, como ocorre com muitas das cidades importantes da Suíça e da Holanda, toda mesquinha disputa desse gênero, sobre exasperar a animosidade de todas as suas outras facções, ameaçava provocar um novo cisma na Igreja e uma nova facção no Estado. Por isso, nessas pequenas repúblicas muito cedo o magistrado civil achou necessário, para preservar a paz pública, assumir ele mesmo o direito de apresentar os candidatos a todos os benefícios vacantes. Na Escócia, o país mais extenso em que essa forma presbiteriana de governo eclesiástico jamais foi implantada, os direitos de padroado foram efetivamente abolidos pela lei que estabeleceu o presbitério no início do reinado de Guilherme III. Essa lei pelo menos deu a certas classes de pessoas a possibilidade de comprar em cada paróquia, por um preço bem baixo, o direito de elegerem seu próprio pastor. Permitiu-se que a constituição estabelecida por essa lei subsistisse durante aproximadamente 22 anos, mas ela foi abolida pelo Estatuto 10 da Rainha Ana, capítulo 12, devido às confusões e desordens que essa modalidade mais popular de eleição ocasionou em quase toda parte. Todavia, em um país tão extenso como a Escócia, um tumulto em uma paróquia longínqua não tinha tanta probabilidade de perturbar o Governo quanto em um país menor. O Estatuto 10 da Rainha Ana restabeleceu os direitos de padroado. Entretanto, embora, na Escócia a lei, sem exceção alguma, dê o benefício à pessoa apresentada pelo patrono, a Igreja exige, às vezes (pois, sob esse aspecto, ela não tem sido muito uniforme em suas decisões), certa cooperação do povo, antes de conferir ao apresentado o que se chama de cura das almas, ou seja, a jurisdição eclesiástica na paróquia. Ao menos em certos casos, movida por uma simulada preocupação pela paz da paróquia, ela retarda a posse do escolhido até se conseguir essa cooperação. As manobras particulares de alguns membros do clero vizinho, às vezes para conseguir essa cooperação, porém mais freqüentemente para impedi-la, e os artifícios populares de que lançam mão para possibilitar-lhes, em tais ocasiões, influenciar com mais eficácia, são talvez as principais causas responsáveis pela subsistência de tudo aquilo que ainda resta do antigo espírito fanático, seja entre o clero, seja entre o povo da Escócia. A igualdade que a forma presbiteriana de governo eclesiástico estabelece entre o clero consiste, primeiro, na igualdade de autoridade ou de jurisdição eclesiástica; segundo, na igualdade de benefícios. Em todas as igrejas presbiterianas é total a igualdade de autoridade; a dos benefícios, não. Entretanto, a diferença entre um benefício e outro raramente é muito considerável para tentar comumente o detentor de 267
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um benefício, mesmo que pequeno, a cortejar seu patrono, recorrendo aos mesquinhos artifícios da bajulação e do assentimento servil para obter um benefício melhor. Em todas as igrejas presbiterianas em que estão perfeitamente estabelecidos os direitos de padroado é através de meios mais nobres e melhores que o clero oficial costuma granjear as boas graças de seus superiores: pela erudição, pela regularidade irrepreensível de sua vida e pelo cumprimento fiel e diligente de seu dever. Seus patronos muitas vezes se queixam da independência de seu espírito, que podem interpretar como ingratidão a favores passados, mas que, na pior das hipóteses, talvez raramente vá além daquela indiferença que naturalmente nasce da consciência de que não se deva esperar novos favores desse tipo. Talvez seja difícil encontrar, em qualquer parte da Europa, uma classe de pessoas mais instruídas, decentes, independentes e respeitáveis do que a maioria dos membros do clero presbiteriano da Holanda, de Genebra, da Suíça e da Escócia. Onde os benefícios eclesiásticos são quase todos iguais, nenhum deles pode ser muito grande, e o fato de serem pequenos os benefícios, conquanto, sem dúvida possa acarretar algumas conseqüências negativas, tem alguns efeitos muito positivos. Nada, a não ser a moral mais exemplar, pode dar dignidade a um homem de poucas posses. As depravações da leviandade e da vaidade necessariamente o tornam ridículo, além de quase tão ruinosos para ele como para o povo. Por isso, em sua própria conduta ele é obrigado a seguir o sistema de moral que o povo comum mais respeita. Ele ganha sua estima e seu afeto com esse tipo de vida que seu próprio interesse e situação o levariam a seguir. O povo o considera com essa gentileza com a qual naturalmente consideramos alguém cuja condição, de certo modo, assemelha-se à nossa, ainda que pensamos que deva ser melhor. A gentileza do povo provoca naturalmente a gentileza da parte dele. Ele zela no sentido de instruí-lo, sendo atencioso em atender e aliviar o povo. Abstém-se até de desprezar os preconceitos de pessoas inclinadas a simpatizar tanto com ele, e nunca as trata com aquele ar de desprezo e arrogância que tantas vezes observamos nos orgulhosos dignitários de Igrejas opulentas e bem-dotadas. Em conseqüência, o clero presbiteriano tem mais influência sobre a mente do povo que talvez o clero de qualquer outra Igreja oficial. É, portanto, somente em países presbiterianos que encontramos o povo completamente convertido, sem perseguição e quase em sua unanimidade, à Igreja oficial. Nos países em que os benefícios eclesiásticos são, na maior parte, muito moderados, uma cátedra universitária é geralmente um cargo melhor do que um benefício eclesiástico. Nesse caso, as universidades podem escolher à vontade seus professores dentre todos os eclesiásticos do país, os quais em todo país constituem, sem comparação, a classe mais numerosa de letrados. Ao contrário, quando os benefícios eclesiásticos são, em sua maioria, muito consideráveis, a Igreja tira naturalmente das universidades a maior parte de seus eminentes homens de letras que geralmente encontram algum patrono que se sente hon268
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rado em conseguir-lhes um cargo eclesiástico. No primeiro caso, provavelmente veremos as universidades cheias dos mais eminentes letrados que se encontram no país. No segundo, é provável que se encontrem nela poucos homens eminentes e estes poucos, entre os membros mais jovens da sociedade, que aliás também podem ser arrebatados à universidade, antes que tenham adquirido experiência e conhecimento suficientes para lhe serem devidamente úteis. O Sr. Voltaire observa que o padre Porrée, jesuíta não muito eminente no mundo das letras, foi o único professor universitário que a França jamais teve cujas obras mereciam ser lidas. Em um país em que tem aparecido tantos letrados eminentes, pode parecer um tanto singular que apenas um tenha sido professor de universidade. O célebre Gassendi, no início de sua vida, foi professor da universidade de Aix. Ao primeiro despertar de seu gênio, foi-lhe dito que, tornando-se eclesiástico, facilmente poderia encontrar uma subsistência muito mais tranqüila e cômoda, bem como uma situação melhor para prosseguir em seus estudos; ele seguiu imediatamente o conselho. Penso que a observação do Sr. Voltaire pode ser aplicada não apenas à França, mas também a todos os demais países católicos romanos. É muito raro encontrarmos, em algum desses países, um letrado eminente que seja professor de universidade, a não ser, talvez, entre os profissionais do Direito e da medicina, profissões das quais não é tão provável que a Igreja os consiga desviar. Depois da Igreja Católica Romana, a da Inglaterra é, sem dúvida, a mais rica e mais bem dotada da cristandade. Por isso, na Inglaterra, a Igreja continuamente arrebata das universidades todos os seus melhores e mais capacitados membros; e um antigo tutor colegial que seja conhecido e renomado na Europa como um letrado eminente é tão raro de se encontrar nas universidades inglesas quanto em qualquer país católico romano. Ao contrário, em Genebra, nos cantões protestantes da Suíça, nas regiões protestantes da Alemanha, da Holanda, da Escócia, da Suécia e da Dinamarca, os mais eminentes letrados que surgiram foram, em sua grandíssima maioria — não todos, sem dúvida —, professores de universidade. Nesses países, as universidades estão continuamente arrebatando à Igreja todos os seus mais eminentes homens de letras. Talvez seja digno de nota que, se excetuarmos os poetas, alguns oradores e alguns historiadores, a grande maioria dos demais eminentes homens de letras, tanto da Grécia como de Roma, parecem ter sido professores públicos ou particulares e, em geral, de Filosofia ou de Retórica. Constatar-se-á que esta observação é verdadeira desde os dias de Lísias e Isócrates, de Platão e Aristóteles, até o tempo de Plutarco e Epicteto, de Suetônio e Quintiliano. Efetivamente, obrigar alguém a ensinar, ano após ano, algum ramo específico da ciência, parece ser o método mais eficaz para transformá-lo em mestre consumado da matéria. Sendo obrigado a repisar cada ano a mesma matéria, se ele for realmente bom para alguma coisa, necessariamente se familiariza em poucos anos com cada parte da respectiva ciência; e, se 269
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em um determinado ponto, ele formar uma opinião excessivamente apressada em um ano, com muita probabilidade corrigirá seu ponto de vista quando, durante suas preleções, voltar a considerar o mesmo assunto, no ano seguinte. Assim, como ser professor de ciências é certamente a ocupação natural de um verdadeiro letrado, da mesma forma é talvez o ensino aquilo que mais o possibilitará a tornar-se um homem de saber e conhecimento sólidos. A mediocridade dos benefícios eclesiásticos tende naturalmente a atrair a maior parte dos homens de letras, no país onde tal mediocridade existe, para a ocupação na qual possam ser mais úteis ao público e, ao mesmo tempo, a dar-lhes, talvez, a melhor educação que têm condições de receber. Esta circunstância tende a fazer com que seus conhecimentos sejam tão sólidos e tão úteis quanto possível. Cabe observar que a receita de toda Igreja oficialmente estabelecida, excetuadas aquelas parcelas que podem provir de terras ou domínios particulares, é um setor da receita geral do Estado, que é assim desviada para uma finalidade bem diversa da defesa do Estado. O dízimo, por exemplo, é um imposto territorial efetivo, que priva os proprietários de terra de contribuírem muito mais para a defesa do Estado quanto de outra forma poderiam fazê-lo. No entanto, a renda da terra é, segundo alguns, o único fundo e, segundo outros, o fundo principal com o qual, em todas as grandes monarquias, se pode, em última análise, atender às exigências do Estado. É óbvio que, quanto maior for a parcela desse fundo que vai para a Igreja, tanto menos sobrará para o Estado. Pode-se estabelecer com máxima segurança que, supondo-se iguais todos os outros fatores, quanto mais rica for a Igreja, tanto mais pobre deverá necessariamente ser, de um lado, o soberano e, de outro, o povo; e, em todos os casos, tanto menor será a capacidade de defesa do Estado. Em vários países protestantes, particularmente em todos os cantões protestantes da Suíça, tem-se constatado que a receita que antigamente pertencia à Igreja Católica Romana, os dízimos e as terras eclesiásticas, constituem um fundo suficiente não só para assegurar bons salários ao clero oficial, como também para cobrir, com pouco ou nenhum adicional, todas as demais despesas do Estado. Os magistrados do poderoso cantão de Berna, em especial, têm acumulado uma soma muito grande — retirando-a deste fundo eclesiástico — que, supostamente, ascende a vários milhões, parte da qual é depositada em um tesouro público, e parte depositada para render a juros nos chamados fundos públicos das diversas nações endividadas da Europa, sobretudo nos da França e da Grã-Bretanha. Não tenho a pretensão de saber qual possa ser o montante total da despesa que a Igreja, seja de Berna ou de qualquer outro cantão protestante, custa ao Estado. Segundo um cômputo muito exato, vê-se que, em 1775, a receita total do clero da Igreja da Escócia, incluindo seus passais ou terras da Igreja, e o aluguel de suas residências paroquiais e casas de moradia, calculada segundo uma avaliação razoável, representava apenas 68 514 £ 1 s 5 d 1/12. Esta receita bem modesta 270
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proporciona uma subsistência decente para 944 ministros. Não é de supor que a despesa total da Igreja, incluindo o que é ocasionalmente aplicado na construção e na reparação de igrejas e das residências dos ministros, supere 80 ou 85 mil libras por ano. A mais rica Igreja da cristandade não mantém melhor do que essa paupérrima Igreja da Escócia a uniformidade da fé, o fervor da devoção, o espírito de ordem, a constância e a austeridade moral frente ao conjunto da população. Todos os bons efeitos, tanto civis como religiosos, que uma Igreja estabelecida possa produzir, são produzidos pela Igreja da Escócia, tão bem como por qualquer outra. A maior parte das Igrejas protestantes da Suíça, que geralmente não são mais bem-dotadas do que a Igreja da Escócia, produzem esses efeitos em grau ainda mais elevado. Na maioria dos cantões protestantes não se encontra uma única pessoa que não declara pertencer à Igreja oficial. Se ele declara pertencer a alguma outra Igreja, a lei o obriga a deixar o cantão. Ora, uma lei tão rigorosa, ou melhor, tão opressiva, jamais poderia ter sido aplicada em tais países livres, se a diligência do clero não tivesse de antemão convertido à Igreja oficial toda a população, excetuadas, talvez, algumas pessoas. Em conseqüência, em algumas regiões da Suíça, onde, devido à união acidental de uma região protestante e uma católica romana, a conversão não foi completa, as duas religiões são não somente toleradas, como estabelecidas por lei. O desempenho adequado de cada serviço parece exigir que seu pagamento ou recompensa seja mais exatamente possível proporcional à natureza do serviço. Se algum serviço for pago muito abaixo do devido, estará facilmente sujeito a ser prejudicado em decorrência da mediocridade e da incapacidade da maioria daqueles que o executam. Em contrapartida, se a remuneração for excessiva, talvez ele esteja sujeito a ser ainda mais prejudicado, devido à negligência e à ociosidade dos executantes. Uma pessoa de alta renda, qualquer que seja sua profissão, pensa que deve viver como as outras, de renda elevada, e gastar grande parte de seu tempo com festas, vaidades e dissipação. Ora, em se tratando de um eclesiástico, este tipo de vida não somente consome o tempo que deveria ser empregado nas funções de seu cargo, senão que, aos olhos do povo, destrói quase inteiramente aquela santidade de caráter que é a única capaz de dar-lhe condições para cumprir tais deveres com o devido peso e autoridade. PARTE QUARTA AS DESPESAS COM
O
SUSTENTO
DA
DIGNIDADE
DO
SOBERANO
Além da despesa necessária para possibilitar ao soberano o cumprimento de seus vários deveres, requer-se determinada despesa para sustentar sua dignidade. Essa despesa varia tanto em função dos diferentes períodos de prosperidade como das diversas formas de governo. Em uma sociedade rica e desenvolvida, em que todas as diversas 271
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classes da população gastam cada dia mais com suas casas, com sua mobília, com sua mesa, roupas e pertences, não é de esperar que o soberano, sozinho, vá contra os costumes. Naturalmente, ou melhor, necessariamente, também ele gasta mais com todos os referidos artigos. Parece até mesmo que a sua dignidade assim o exige. Visto que, em termos de dignidade, um monarca está mais acima de seus súditos do que sempre se supõe que o magistrado supremo de alguma república esteja em relação a seus concidadãos, da mesma forma se requer um gasto maior para sustentar essa dignidade superior do monarca. Naturalmente esperamos encontrar mais esplendor na corte de um rei do que na mansão de um doge ou de um burgomestre. CONCLUSÃO Tanto a despesa destinada à defesa da sociedade como a destinada ao sustento da dignidade do magistrado supremo são aplicadas em benefício geral de toda a sociedade. É, pois, justo que ambas sejam cobertas pela contribuição geral de toda a sociedade, contribuindo todos os seus membros, na medida do possível, em proporção com suas respectivas capacidades. Sem dúvida, também a despesa com a administração da justiça pode ser considerada como sendo aplicada em benefício de toda a sociedade. Por isso, não é injusto que ela seja paga com a contribuição geral de toda a sociedade. Entretanto, as pessoas que causam essa despesa são aquelas que, por sua injustiça, cometida de uma forma ou de outra, fazem com que seja necessário procurar reparação ou proteção dos tribunais de justiça. Por sua vez, as pessoas mais diretamente beneficiadas com esse gasto são aquelas a quem os tribunais de justiça restituem ou mantêm os direitos. Por isso, as despesas com administração da justiça podem ser muito apropriadamente cobertas pela contribuição particular de uma ou de outra dessas duas categorias de pessoas, ou pelas duas, conforme o exige a diversidade de circunstâncias — em outras palavras, com as taxas judiciárias. Pode não ser necessário recorrer, neste caso, à contribuição geral da sociedade, a não ser para processar os criminosos que, pessoalmente, carecem de propriedade ou fundo suficientes para pagar tais taxas. As despesas locais ou provinciais que beneficiam apenas um lugar ou uma província (por exemplo, as que se aplicam no policiamento de uma cidade ou de um distrito em particular) devem ser cobertas por uma receita local ou provincial, sem onerar a receita geral da sociedade. É injusto exigir que toda a sociedade contribua para custear uma despesa cuja aplicação beneficia apenas uma parte dessa sociedade. Os gastos despendidos com a manutenção de boas estradas e comunicações beneficiam, sem dúvida, toda a sociedade e, portanto, sem injustiça, podem ser cobertos pela contribuição geral de toda a sociedade. Entretanto, esse gasto beneficia mais imediata e diretamente aqueles que viajam ou transportam mercadorias de um lugar a outro 272
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e que consomem essas mercadorias. As taxas de pedágio da Inglaterra, e as taxas denominadas peagens em outros países, impõem essa despesa exclusivamente a essas duas categorias de pessoas e, com isso, desafogam a sociedade em geral de um ônus bem considerável. Indubitavelmente, também as despesas com as instituições destinadas à educação e à instrução religiosa são benéficas para toda a sociedade, podendo, portanto, sem injustiça, ser cobertas com a contribuição geral da sociedade. Todavia, talvez com igual justiça e até com alguma vantagem, essa despesa poderia ser paga exclusivamente por aqueles que auferem o benefício imediato de tal educação e instrução, ou pela contribuição voluntária daqueles que acreditam precisar de uma ou de outra. Quando as instituições ou outras obras públicas que beneficiam toda a sociedade não podem ser mantidas integralmente ou não são assim efetivamente mantidas com a contribuição daqueles membros particulares da sociedade mais diretamente beneficiados por elas, essa deficiência deve, na maioria dos casos, ser suprida pela contribuição geral de toda a sociedade. A receita geral da sociedade, além de cobrir os gastos com a defesa da sociedade, e sustentar a dignidade do magistrado supremo, tem que suprir a deficiência de muitos setores específicos da receita. No próximo capítulo procurarei explicar as fontes dessa receita geral ou pública.
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CAPÍTULO II As fontes da Receita Geral ou Públicas da Sociedade
A receita destinada a pagar não somente as despesas com a defesa da sociedade e com a manutenção da dignidade do chefe supremo da nação, mas também todas as outras despesas necessárias de governo, para as quais a constituição do Estado não previu uma receita específica podendo ser tirada, em primeiro lugar, de algum fundo que pertença exclusivamente ao soberano ou ao Estado, o qual é independente do rendimento do povo — ou, em segundo lugar do rendimento do povo. PARTE PRIMEIRA OS FUNDOS OU FONTES DE RECEITA QUE PODEM PERTENCER PARTICULARMENTE AO SOBERANO OU AO ESTADO Os fundos ou fontes de receita que podem pertencer particularmente ao soberano ou ao Estado podem consistir em capital ou em terras. O soberano, como qualquer outro proprietário de capital, pode auferir renda deste, seja aplicando-o ele mesmo, seja emprestando-o a outros. No primeiro caso seu rendimento é lucro, no segundo são juros. O rendimento de um chefe tártaro ou árabe consiste em lucros. Este advém sobretudo do leite e do aumento de seus rebanhos, cuja administração é supervisionada por ele mesmo, sendo ele o pastor principal em sua própria horda ou tribo. Entretanto, é somente neste estágio mais primitivo e rudimentar de governo civil que o lucro sempre constituiu a parte principal da receita pública de um Estado monárquico. As pequenas repúblicas às vezes têm derivado uma receita considerável do lucro dos empreendimentos comercias. Pelo que se afirma, a república de Hamburgo aufere tal receita dos lucros de uma adega 275
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oficial de vinhos e de uma farmácia.18 Não pode ser muito grande o país cujo soberano tem tempo para operar como comerciante de vinhos ou como farmacêutico. Para países maiores, o lucro de um banco estatal tem sido uma fonte de receita. Isto ocorreu não somente com Hamburgo, mas também com Veneza e Amsterdam. Alguns pensaram em uma receita desse gênero até um império tão grande como o a Grã Bretanha. Calculando os dividendos normais distribuídos pelo Banco da Inglaterra em 5,5%, e seu capital em 10,78 milhões de libras esterlinas, o lucro líquido anual após pagas as despesas de administração, deve ascender — segundo se afirma — a 592 900 libras. Alega-se que o Governo poderia tomar emprestado esse capital a juros de 3% e, assumindo ele mesmo a administração do Banco, poderia auferir um lucro líquido de 269 500 libras por ano. Comprova-se por experiência que a administração ordeira, vigilante e parcimoniosa de aristocracias como as de Veneza e de Amsterdam é extremamente adequada para gerir um empreendimento mercantil desse gênero. Todavia, é, no mínimo, necessariamente um tanto mais duvidoso se a administração de tal empreendimento poderia ser confiada com segurança a um governo como da Inglaterra, que, quaisquer que sejam suas virtudes, nunca foi renomeado pelo seu senso de economia e que, em tempo de paz, via de regra tem demonstrado aquela prodigalidade indolente e negligente que talvez seja natural às monarquias e, em tempos de guerra, tem agido constantemente com toda a extravagância despreocupada em que caem facilmente as democracias. Os serviços postais representam um empreendimento comercial propriamente dito. O Governo adianta a despesa necessária para implantar as diversas agências de correio para comprar ou alugar cavalos ou carruagens necessárias, sendo ressarcido com grande lucro pelas taxas pagas pela correspondência e demais artigos transportados. Acredito que esse seja o único empreendimento comercial que tenha sido administrado com sucesso por todos os governos. O capital a ser adiantado não é muito considerável. Não há mistérios nesse negócio. Os retornos não somente são certos mas imediatos. Todavia, os príncipes têm se envolvido em muitos outros empreendimentos comerciais e têm desejado, como as pessoas particulares, aumentar suas fortunas aventurando-se nos setores comuns do comércio. Dificilmente alguma vez tiveram sucesso. A prodigalidade que quase sempre costumava caracterizar a administração dos príncipes faz com que isso seja quase impossível. Os agentes de um príncipe consi18
Ver Mémoires Concernant les Droits & Impostitions en Europe, t. I, p. 73. Essa obra foi compilada por ordem da corte para uso de uma comissão que se ocupou, há alguns anos, em estudar os meios apropriados para a reforma das finanças da França. Os dados sobre os impostos franceses, que ocupam três volumes in quarto, podem ser considerados como inteiramente autênticos. Os referentes aos impostos de outras nações européias foram compilados a partir das informações que os ministros franceses lotados nas diversas cortes conseguiram coletar. A parte que contém esses últimos dados é muito mais breve e provavelmente não é tão exata quanto a referente ao impostos franceses. 276
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deram a riqueza de seu patrão inesgotável; não se preocupam com preço de compra; não se preocupam com o preço de venda; não se preocupam com a despesa que custa o transporte das mercadorias do patrão de um lugar para outro. Esses agentes vivem freqüentemente com a prodigalidade de príncipes e às vezes também adquirem fortunas de príncipes, a despeito dessa profusão, mediante métodos adequados de montar sua contabilidade. Assim é que como nos conta Maquiavel, os agentes de Lourenço de Médici — príncipe de grandes habilidades — administravam seu comércio. A república de Florença foi várias vezes obrigada a pagar as dívidas em que a extravagância desses agentes havia envolvido o príncipe. Por isso, este achou conveniente abandonar a ocupação de comerciante, negócio ao qual sua família originalmente devia sua fortuna; no último período de sua vida, resolveu empregar tanto o que lhe restara de sua fortuna quanto a receita pública de que dispunha em projetos e gastos mais condizentes com sua função. Ao que parece, não há duas mentalidades mais incompatíveis entre si do que a de comerciante e a de soberano. Se o espírito comercial da Companhia Inglesa das Índias Orientais faz com que eles se tornem muito maus soberanos, o espírito de soberania parece tê-los transformado em comerciantes igualmente maus. Enquanto eram apenas comerciantes, tiveram sucesso em suas transações, podendo pagar, dos lucros auferidos, dividendos razoáveis aos proprietários de seu capital. Desde que se tornaram soberanos, com uma receita que, segundo se diz, era originalmente superior a 3 milhões de esterlinos, eles foram obrigados a solicitar a ajuda extraordinária do Governo, para evitar a falência imediata. Na primeira situação, seus empregados na Índia se consideravam como funcionários de comerciantes; na situação atual, eles se consideravam como ministros de soberanos. Um Estado pode, por vezes, auferir alguma parte de sua receita pública dos juros de dinheiro, bem como dos lucros do capital. Se juntou um tesouro, pode emprestar parte dele a países estrangeiros ou a seus próprios súditos. O cantão de Berna deriva uma receita notável emprestando uma parte de seu tesouro a países estrangeiros, isto é, colocando-o nos fundos públicos das diversas nações endividadas da Europa, especialmente nos da França e nos da Inglaterra. A segurança dessa receita deve depender, primeiro, da segurança dos fundos nos quais ela é investida ou da boa-fé do Governo que os administra; em segundo lugar, da certeza ou probabilidade de continuar em paz com a nação devedora. No caso de guerra o primeiro ato de hostilidade por parte da nação devedora pode ser o confisco dos fundos de seu credor. Quanto eu saiba, essa política de emprestar dinheiro a países estrangeiros é peculiar ao cantão de Berna. A cidade de Hamburgo19 implantou uma espécie de casa oficial 19
Ver Mémoires Concernant les Droits & Impositions en Europe, t. I, p. 73. 277
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de penhores, que empresta dinheiro aos súditos do Estado sob fiança, a juros de 6%. Segundo se alega, essa casa de penhores ou Lombard, como se denomina, proporciona ao Estado uma receita de 150 mil coroas, as quais, ao câmbio de 4,5 xelins por coroa equivalem a 33 750 libras esterlinas. O Governo da Pensilvânia, sem acumular um tesouro, inventou um método de emprestar a seus súditos não dinheiro, mas algo que equivale a dinheiro. Adiantando a pessoas particulares — a juros, e mediante caução de terras no dobro do valor emprestado — títulos de crédito a serem resgatados quinze anos após a data de emissão e neste meio tempo transferíveis de mão em mão como bilhetes de banco e, depois tais títulos serem declarados por lei da Assembléia como moeda legal em todos os pagamentos feitos por um habitante da província a outro, levantou uma receita razoável que muito contribuiu para o pagamento de uma despesa anual de aproximadamente 4 500 libras esterlinas, montante total da despesa normal daquele governo parcimonioso e ordeiro. O sucesso de um expediente desse tipo dependeu necessariamente de três circunstâncias: primeiro, da demanda de algum outro instrumento de comércio, além de dinheiro em ouro prata; ou da demanda de uma quantidade tal de estoque de artigos de consumo, que não seria conseguido sem o país enviar ao exterior a maior parte de seu dinheiro em ouro e prata para comprá-lo; em segundo lugar, o sucesso desse expediente dependeu do bom crédito do Governo que a ele recorreu; e terceiro, da moderação com a qual se lançou mão desse meio, sendo que o valor total dos títulos de crédito nunca devia superar o valor do dinheiro em ouro e prata que teria sido necessário para efetuar sua circulação, caso não tivesse havido títulos de crédito. O mesmo expediente foi adotado em ocasião diferentes por várias outras colônias americanas; todavia, por falta da citada moderação, ele produziu, na maioria delas, muito mais confusão do que efeitos benéficos. Entretanto, a natureza instável e perecível do estoque e do crédito faz com que eles apresentem pouca confiabilidade como sendo os fundos principais daquela receita segura, constante e permanente que, só ela, pode dar segurança e respeitabilidade ao Governo. Jamais, ao que parece, o Governo de alguma grande nação que tenha avançado além do estágio pastoril auferiu a maior parte de sua receita pública de tais fontes. A terra é um fundo de natureza mais estável e permanente; em conseqüência, a renda de terras do Estado tem sido a fonte principal da receita pública de muitas grandes nações que progrediram além do estágio pastoril. Foi da produção ou da renda das terras do Estado que as antigas repúblicas da Grécia e da Itália auferiram durante muito tempo a maior parte da receita que cobria as despesas necessárias do Estado. Durante muito tempo, a renda das terras da Coroa constituiu a maior parte da receita dos antigos soberanos da Europa. A guerra e sua preparação representam, nos tempos modernos, as duas circunstâncias que ocasionam a maior parte dos gastos necessários de todos os países. Na antiga república da Grécia e da Itália, 278
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todo cidadão era um soldado, que às suas próprias expensas servia ao país e também se preparava militarmente para esse serviço. Por conseguinte, nenhuma dessas duas circunstâncias podia acarretar uma grande despesa para o Estado. A renda de uma propriedade fundiária bem modesta podia ser plenamente suficiente para cobrir todas as despesas necessárias de governo. Nas antigas monarquias da Europa, os usos e os costumes da época preparavam suficientemente o conjunto da população para a guerra, e quando o povo ia ao campo de batalha, os guerreiros, pela condição de seus títulos feudais, tinham que ser mantidos às suas próprias custas ou à custa de seus senhores imediatos, sem acarretarem nenhum novo ônus para o soberano. Quanto às demais despesas de governo, a maior parte delas eram bem modestas. A administração da Justiça, como demonstrei, em vez de acarretar despesa, constituía fonte de receita. O trabalho dos habitantes do campo, de três dias antes e três depois da colheita, era considerado um fundo suficiente para construir e manter todas as pontes, estradas e outras obras públicas que o comércio do país supostamente exigia. Naquela época, a despesa principal do soberano parece haver consistido na manutenção de sua própria família e seus domésticos. Em conseqüência, seus empregados domésticos eram então os grandes funcionários do Estado. O tesoureiro-mor recebia as rendas do soberano. O mordomo-mor e o camareiro-mor cuidavam das despesas da família do rei. A manutenção dos estábulos reais estava confiada ao Lorde Condestável e ao Lorde Mestre de Cerimônias. As casas do rei eram todas construídas em forma de castelos e parecem ter sido as principais fortalezas que ele possuía. Os guardas dessas casas ou castelos podiam ser considerados como uma espécie de governadores militares. Parecem ter sido os únicos oficiais militares que era necessário manter em tempo de paz. Em tais circunstâncias, a renda de uma grande propriedade fundiária podia, em ocasiões normais, pagar muito bem todas as despesas necessárias de governo. No estado atual da maior parte das monarquias civilizadas da Europa, a renda de todas as terras do país, da forma como provavelmente seriam administradas se pertencessem todas a um único proprietário, dificilmente talvez ultrapassaria a receita normal que é recolhida do povo, mesmo em tempo de paz. Assim, por exemplo, a receita normal da Grã-Bretanha, incluindo não somente o que é necessário para cobrir as despesas correntes do ano, mas também para pagar os juros das dívidas públicas e para amortizar uma parte do capital dessas dívidas, ascende a mais de 10 milhões por ano. O imposto territorial, porém, a 4 xelins por libra, fica abaixo de 2 milhões por ano. Ora, supõe-se que esse imposto territorial, como se denomina, representa 1/5 não somente da renda de toda a terra, mas também do aluguel de todas as casas e dos juros de todo o capital da Grã-Bretanha, excetuada apenas aquela parte do capital que é emprestada ao público ou é aplicada como capital de giro no cultivo da terra. Uma parcela bem considerável do produto desse imposto provém do aluguel da casa e dos 279
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juros do capital. Assim, por exemplo, o imposto territorial da cidade de Londres, a 4 xelins por libra, representa £ 123 399 6 s 7 d. O da cidade de Westminster atinge £ 63 092 1 s 5 d. O dos palácios de Whitehall e de St. James chega a £ 30 754 6 s 3 d. Uma determinada proporção do imposto territorial é, da mesma forma, cobrada de todas as outras cidades do reino, provindo quase exclusivamente do aluguel de casas ou do que se supõe serem os juros do comércio e do capital aplicado no comércio e em títulos. Portanto, segundo a estimativa feita para imposto territorial da Grã-Bretanha, o total da receita auferida da renda de todas as terras, do aluguel de todas as casas e dos juros de todo capital, excetuando-se apenas a parcela deste que é emprestada ao público ou aplicada no cultivo da terra, não ultrapassa os 10 milhões de libras por ano, que representam a receia normal que o Governo recolhe do povo, mesmo em tempo de paz. Sem dúvida a estimativa feita para o imposto territorial na Grã-Bretanha, considerando-se uma média do reino inteiro, está muito abaixo do valor real, ainda que, segundo se diz, em vários condados e distritos específicos ela seja quase igual a esse valor. Muitos têm calculado que apenas a renda das terras, excluindo-se o aluguel das casas e os juros do capital, seria de 20 milhões, estimativa feita em grande parte sem método e que, em meu entender, tem tanta probabilidade de estar acima como abaixo do montante verdadeiro. Ora se as terras da Grã-Bretanha, no atual estado de cultivo, não proporcionam uma renda superior a 20 milhões por ano, dificilmente teriam condições de proporcionar a metade ou sequer a quarta parte dessa renda, se pertencessem todas a um único proprietário, e fossem colocadas sob a administração negligente, cara e opressiva de seus feitores e agentes. As terras da Coroa britânica atualmente não proporcionam 1/4 da renda que provavelmente delas se poderia auferir se fossem propriedades de pessoas particulares. Se as terras da Coroa fossem mais extensas, provavelmente sua administração seria ainda pior. O rendimento que o conjunto da população aufere da terra é proporcional não à renda, mas à produção da mesma. O total da produção anual da terra de cada país, se excetuarmos a parte reservada para semente, é anualmente consumido pela população ou trocado por alguma outra coisa consumida por esta. Tudo aquilo que mantém a produção da terra abaixo daquilo que ela de outra forma produziria mantém baixo o rendimento do conjunto da população, ainda mais do que o dos proprietários de terra. Supõe-se que a renda da terra, ou seja, a parcela da produção que pertence aos proprietários, dificilmente ultrapassa, em algum lugar da Grã-Bretanha, 1/3 da produção total. Se a terra, que em um estado de cultivo proporciona uma renda de 10 milhões de libras esterlinas anuais, proporcionasse, em um outro estado de cultivo, uma renda de 20 milhões — e supondo que, nos dois casos, a renda representasse 1/3 da produção —, a renda dos proprietários seria inferior em apenas de 10 milhões por ano em relação ao que seria de outra forma, ao passo que a renda do conjunto da 280
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população — deduzindo apenas o que seria necessário reter para semente — seria inferior em 30 milhões por ano em relação ao que seria de outra forma. Então a população do país seria menor, ou seja, faltaria nessa população o contingente de pessoas que 30 milhões de libras por ano — deduzindo sempre a parte necessária para a semeadura — poderiam manter dentro do padrão de vida e de gasto específico que poderia ocorrer nas diversas categorias de pessoas entre as quais fosse distribuído o restante. Embora não haja atualmente na Europa nenhum país civilizado que aufira a maior parte de sua receita pública da renda de terras que são propriedades dos Estado, em todas as grandes monarquias da Europa existem ainda muitas áreas grandes de terra que pertencem à Coroa. Em geral são campos e, às vezes, campos em que, depois de viajar várias milhas, dificilmente se encontra uma única árvore — puro desperdício e perda da terra, tanto no tocante à produção quanto à população. Em toda grande monarquia da Europa, a venda das terras da Coroa geraria uma soma muito grande de dinheiro, a qual, se aplicada no pagamento das dívidas públicas, livraria de hipoteca uma renda muito superior a qualquer renda que essas terras jamais proporcionariam à Coroa. Em países em que terras melhoradas e cultivadas em altíssimo grau — e que no momento da venda proporcionam uma renda tão grande quanto a que facilmente se poderia obter delas — costumam ser vendidas pelo valor de 30 anos de renda, bem se poderia ter a esperança de vender as terras da Coroa não melhoradas nem cultivadas e proporcionando uma renda baixa, pelo valor de 40, 50 ou 60 anos de renda. A Coroa poderia imediatamente desfrutar do rendimento que esse alto preço livraria da hipoteca. No decurso de alguns anos provavelmente desfrutaria de outro rendimento. Quando as terras da Coroa se tornassem propriedade privada, no prazo de alguns anos estariam melhoradas e bem cultivadas. O aumento de sua produção faria aumentar a população do país, aumentando o rendimento e o consumo da população. Ora, com aumento do rendimento e do consumo da população, necessariamente aumentaria também a receita que a Coroa auferiria das taxas alfandegárias e dos impostos de consumo. Embora pareça que nada custe aos indivíduos a renda que, em qualquer monarquia civilizada, a Coroa aufere de suas terras, na realidade ela talvez custe à sociedade mais do que qualquer outra renda igual que a Coroa possa ter. Em todos os casos, seria de interesse para a sociedade substituir essa renda pertencente à Coroa por alguma outra renda igual, dividindo-se as terras entre a população — e, para fazer isto, talvez o melhor seria colocá-las à venda pública. Segundo me parece, as únicas terras que, em uma monarquia grande e civilizada, deveriam continuar pertencendo à Coroa seriam terras para fins de lazer e luxo, parques, jardins, passeios públicos etc., terras que em toda parte são consideradas fonte de despesa e não fonte de rendimento. Se, pois, tanto o capital público quanto as terras públicas — as 281
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duas fontes de rendimento que podem em particular pertencer ao soberano ou ao Estado — são ambos fundos inadequados e insuficientes para cobrir a despesa necessária de um país grande e civilizado, resulta que a maior parte dessa despesa deve ser paga por taxas ou impostos de outro tipo, fazendo com que o povo contribua com uma parte de seu próprio rendimento privado para constituir uma receita pública para o soberano ou para o Estado. PARTE SEGUNDA IMPOSTOS No primeiro livro desta investigação mostrei que o rendimento privado dos indivíduos advém, em ultima análise, de três fontes distintas: renda, lucro e salários. Todo imposto deve, em última análise, ser pago sobre um ou outro desses três tipos de rendimentos ou sobre todos eles. Procurarei falar do melhor modo que puder, primeiro, dos impostos que, como se pretende, devem recair sobre a renda; em segundo lugar, daqueles que, como se pretende, devem recair sobre o lucro; em terceiro lugar, daqueles que, como se pretende, devem recair sobre o salário; e, em quarto lugar, daqueles que, como se pretende, devem recair indistintamente sobre todas as três fontes de rendimento privado. A consideração específica de cada um desses quatro tipos diversos de impostos faz com que esta segunda parte do presente capítulo seja divida em quarto artigos, três dos quais exigirão várias outras subdivisões. Da análise que farei a seguir, ver-se-á que muitos desses impostos, afinal, não são pagos sobre o fundo ou a fonte de rendimento sobre a qual deveriam recair. Antes de entrar no exame de impostos específicos, é necessário antepor as quatro máximas seguintes, com respeito a impostos em geral. I. Os súditos de cada Estado devem contribuir o máximo possível para a manutenção do Governo, em proporção a suas respectivas capacidades, isto é, em proporção ao rendimento de que cada um desfruta, sob a proteção do Estado. As despesas de governo, em relação aos indivíduos de uma grande nação, são como despesas de administração em relação aos rendeiros associados de uma grande propriedade, os quais são obrigados a contribuir em proporção aos respectivos interesses que têm na propriedade. É na observância ou não-observância desse princípio que consiste o que se denomina de eqüidade ou falta de eqüidade da tributação. Importa observar, uma vez por todas, que todo imposto que, em última análise recai exclusivamente sobre um dos três tipos de rendimento acima mencionados é necessariamente nãoeqüitativo, na medida em que não afeta os dois outros tipos de rendimentos. No estudo que a seguir farei dos diversos impostos, raramente destacarei de novo esse tipo de desigualdade, senão na maioria dos casos limitarei minhas observações àquela falta de eqüidade ocasionada 282
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pelo fato de um imposto específico recair desigualmente até mesmo sobre aquele tipo específico de rendimento particular que é por ela afetada. II. O imposto que cada individuo é obrigado a pagar deve ser fixo e não arbitrário. A data do recolhimento, a forma de recolhimento, a soma a pagar, devem ser claras e evidentes para o contribuinte e para qualquer outra pessoa. Se assim não for, toda pessoa sujeita ao imposto está mais ou menos exposta ao arbítrio do coletor, o qual pode aumentar o imposto para qualquer contribuinte que lhe é odioso ou então extorquir, mediante a ameaça de aumento do imposto, algum presente ou gorjeta para si mesmo. A indefinição da taxação estimula a insolência e favorece a corrupção de uma categoria de pessoas que são por natureza impopulares mesmo quando não são insolentes nem corruptas. A certeza sobre aquilo que cada indivíduo deve pagar é, em matéria de tributação, de tal relevância que, segundo entendo e com base na experiência de todas as nações, um grau muito elevado de falta de eqüidade de impostos nem de longe representa um mal tão grande quanto um grau muito pequeno de incerteza ou indefinição. III. Todo imposto deve ser recolhido no momento e da maneira que, com maior probabilidade, forem mais convenientes para o contribuinte. Um imposto sobre o arrendamento da terra ou sobre o aluguel de casas, se cobrado no mesmo período em que se costuma pagar tais arrendamentos ou aluguéis, é recolhido no momento em que, com maior probabilidade, o contribuinte terá facilidade em pagar, ou seja, quando é mais provável que ele tenha com que pagar o imposto. Impostos sobre bens de consumo, tais como artigos de luxo, são todos, em última análise, pagos pelo consumidor, e geralmente de uma forma que é muito conveniente para ele. Ele os paga pouco a pouco, na medida em que compra as mercadorias. Além disso, já que ele tem liberdade de comprar ou não comprar, conforme lhe aprouver, será culpa dele alguma vez arcar com alguma dificuldade considerável em razão desses impostos. IV. Todo imposto deve ser planejado de tal modo, que retire e conserve fora do bolso das pessoas o mínimo possível, além da soma que ele carreia para os cofres do Estado. Há quatro maneiras de fazer com que um imposto retire ou então conserve fora do bolso das pessoas muito mais do que aquilo que ele carreia para os cofres públicos. Primeiramente, o recolhimento do imposto pode exigir um grande número de funcionários, cujos salários podem devorar a maior parte do montante do imposto, e cujas gorjetas podem impor ao povo uma nova taxa adicional. Em segundo lugar, o imposto pode dificultar a iniciativa das pessoas e desestimulá-las de aplicar em certos setores de negócios que poderiam dar sustento e empregos a grandes multidões. Ao mesmo tempo em que o imposto obriga as pessoas a pagar, ele pode assim diminuir, ou talvez até destruir alguns dos fundos que lhes poderiam possibilitar fazer isto com mais facilidade. Em terceiro lugar, devido 283
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aos confiscos e outras penalidades em que incorrem aqueles infelizes indivíduos que tentam, sem êxito, sonegar o imposto, este pode muitas vezes arruiná-los e com isto pôr fim ao benefício que a comunidade poderia ter auferido do emprego de seus capitais. Um imposto pouco criterioso representa uma grande tentação para o contrabando. Ora, as penalidades para o contrabando devem aumentar em proporção à tentação. Contrariando a todos os princípios normais da Justiça, a lei primeiro cria a tentação e depois pune aqueles que a ela sucumbem; ela costuma também aumentar a punição em proporção à circunstância que certamente deveria diminuir a tentação de cometer o crime.20 Em quarto lugar, o imposto, por sujeitar as pessoas às visitas freqüentes e à odiosa inspeção dos coletores, pode expô-las a muitos incômodos, vexames e opressões desnecessários; e embora o vexame não seja, no sentido estrito da palavra, uma despesa, ele certamente é equivalente à despesa pela qual cada um gostaria de livrar-se dele. É devido a um ou outro desses quatro modos inadequados de impor ou recolher tributos, que estes muitas vezes acarretam muito mais incômodos para as pessoas do que benefícios para o soberano. Em razão da evidente justiça e utilidade das regras acima, estas se têm recomendado, em grau maior ou menor, à atenção de todas as nações. Todas elas têm procurado, utilizando da melhor forma seu discernimento, tornar seus impostos tão eqüitativos quanto possível, tão fixos e tão convenientes para o contribuinte, quer no tocante ao tempo, quer no tocante à forma de pagamento, quer em proporção à receita que carreavam para o príncipe, como também pouco incômodo às pessoas. A análise sucinta que a seguir farei de alguns principais impostos que se têm observado em épocas e países diferentes, mostrará que os esforços de todas as nações não têm sido sempre igualmente bem-sucedidos sob esse aspecto. ARTIGO I Tributação sobre a renda. Tributação sobre a renda de terras Um tributo sobre a renda de terras pode ser exigido segundo determinado critério, fixando-se para cada distrito determinada renda, avaliação esta que posteriormente não deve ser alterada; ou então, ele pode ser exigido de modo a variar toda vez que houver variação na renda real da terra, e de modo a aumentar ou diminuir à medida que aumentar ou diminuir o cultivo da terra. Um imposto territorial que, como o da Grã-Bretanha, é cobrado de cada distrito segundo determinado critério invariável, ainda que fosse eqüitativo na época de sua introdução, necessariamente se torna injusto com o correr do tempo, conforme os graus diferentes de aprimoramento ou de negligência no cultivo de diversas regiões do país. 20
Ver Sketches of the History of Man, p. 474 et seqs. 284
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Na Inglaterra, a avaliação segundo a qual, com o Estatuto 4, de Guilherme e Maria, se cobrava o imposto territorial nos diversos condados e paróquias era muito pouco eqüitativa mesmo quando foi introduzida. Sob esse aspecto, portanto, esse imposto peca contra a primeira das quatro regras acima mencionadas. Ele obedece perfeitamente às outras três. Ele é perfeitamente definido. O momento do pagamento do imposto, por coincidir com o do recebimento da renda, é o mais conveniente possível para o contribuinte. Embora o contribuinte real seja, em todos os casos, o senhor da terra, o imposto costuma ser adiantado pelo rendeiro, sendo o proprietário obrigado a descontar esse imposto do arrendamento, a favor do rendeiro quando este o paga. Esse imposto é recolhido por um número muito menor de funcionários do que qualquer outro que gera aproximadamente a mesma receita. Uma vez que o imposto para cada distrito não sobe com o aumento da renda, o soberano não participa dos lucros provenientes das melhorias efetuadas na terra pelo seu proprietário. Sem dúvida, essas melhorias às vezes contribuem para desonerar os demais proprietários de terras do distrito. Contudo, o aumento do imposto, que essas melhorias podem por vezes ocasionar para uma propriedade específica, é sempre tão pequeno, que nunca pode desestimulá-las, nem manter a produção da terra abaixo do nível que ela caso contrário atingiria. Assim como ele não tem tendência a diminuir o volume da produção, da mesma forma não tem nenhuma a aumentar o preço da mesma. Ele não dificulta a iniciativa das pessoas. Ele não sujeita o proprietário de terra a nenhum outro inconveniente a não ser o de pagar o imposto, que é inevitável. Todavia, as vantagens que o proprietário de terras tem auferido da constância invariável da avaliação de todas as terras da Grã-Bretanha, para efeito de imposto territorial, têm sido devidas sobretudo a algumas circunstâncias totalmente alheias à natureza do imposto. Isso se deve atribuir, em parte, à grande prosperidade de quase todas as regiões do país, já que, desde o tempo em que essa avaliação foi implantada pela primeira vez, as rendas de quase todas as propriedades da Grã-Bretanha subiram continuamente, sendo que dificilmente houve alguma que caiu. Por isso, quase todos os proprietários de terras ganharam a diferença entre o imposto que teriam pago, segundo a renda atual de suas propriedades e o que efetivamente pagaram, segundo a avaliação antiga. Se o estado do país tivesse sido diferente, se as rendas tivessem caído gradualmente em decorrência do declínio do cultivo, quase todos os proprietários teriam perdido essa diferença. No estado de coisas que se seguiu desde a revolução, a constância da avaliação tem trazido vantagem para o senhor de terras e danos para o soberano. Se as coisas tivessem evoluído diversamente, a constância da avaliação poderia ter trazido vantagem para o soberano e prejuízo para o proprietário de terras. Assim como imposto é pagável em dinheiro, da mesma forma a avaliação da terra é expressa em dinheiro. Desde a implantação dessa avaliação, o valor da prata tem se mantido uniforme, não tendo ocorrido 285
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alteração no padrão da moeda, no peso e no quilate. Se a prata tivesse aumentado consideravelmente de valor, como parece ter acontecido no decurso dos dois séculos que precederam a descoberta das minas da América, a constância da avaliação poderia ter se mostrado bem opressiva para o proprietário de terras. Se o valor da prata tivesse diminuído consideravelmente, como certamente ocorreu durante mais ou menos um século, no mínimo, após a descoberta das citadas minas, a mesma constância de avaliação teria reduzido muito esse tipo de receita do soberano. Se tivesse ocorrido alguma mudança notável no padrão da moeda, seja rebaixando a mesma quantidade de prata para um valor nominal inferior, seja elevando-a para um valor nominal superior, se por exemplo, uma onça de prata, em vez de ser cunhada em 5 xelins e 2 pence, tivesse sido cunhada em moedas de valor nominal tão baixo como 2 xelins e 7 pence, ou então em moedas com valor nominal tão alto como 10 xelins e 4 pence, no primeiro caso a avaliação constante teria prejudicado a renda do proprietário, e no segundo a do soberano. Por conseguinte, em circunstâncias diferentes das que ocorreram efetivamente, essa constância de avaliação poderia ter sido muito prejudicial para os contribuintes ou para o Estado. Ora, tais circunstâncias ocorrem necessariamente, vez por outra, no decurso do tempo. Acontece, porém, que, embora todos os impérios até hoje se tenham demonstrado mortais como as demais obras humanas, cada império busca ser imortal. Por isso, toda Constituição, que se deseja tão permanente quanto o próprio império, deve ser apropriada não somente para determinadas circunstâncias, mas para todas elas; ou seja, deve adequar-se não a circunstâncias transitórias, ocasionais ou acidentais, mas àquelas que são necessárias, e portanto sempre as mesmas. Um imposto sobre a renda da terra, variando conforme a variação da renda, isto é, que aumenta e diminui conforme melhora ou piora o cultivo da terra, é recomendado por aqueles letrados franceses que se autodenominam economistas, como o mais justo de todos os impostos. Alegam eles que todos os tributos, em última análise, recaem sobre a renda da terra e, portanto, devem ser impostos igualmente sobre o fundo que em última análise deve pagá-los. Certamente é verdade que todos os impostos devem recair, com a maior eqüidade possível, sobre o fundo que em última análise os paga. Entretanto, sem entrar na enfadonha discussão dos argumentos metafísicos com os quais fundamentam sua teoria altamente engenhosa, a análise que se segue mostrará suficientemente quais são os impostos que em última análise recaem sobre a renda da terra, e quais são aqueles que, ao final, recaem sobre algum outro fundo. No território de Veneza, todas as terras aráveis que são arrendadas aos lavradores são taxadas com um imposto equivalente a 1/10 da renda.21 Os arrendamentos são registrados em um registro público 21
Ver Mémoires Concernant les Droits & Impositions en Europe, pp. 240, 241. 286
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que é mantido pelos funcionários da receita em cada província ou distrito. Quando o proprietário cultiva suas próprias terras, essas são avaliadas segundo uma estimativa justa, permitindo-se ao proprietário deduzir 1/5 do imposto, de sorte que, para tais terras, ele paga apenas 8%, em vez de 10% da suposta renda. Não cabe dúvida de que um imposto territorial desse tipo é mais eqüitativo do que o vigente na Inglaterra. Talvez ele não seja tão definido e sua cobrança possa muitas vezes acarretar muito mais incômodo para o dono de terras. Também o recolhimento desse imposto talvez seja bem mais dispendioso. Todavia, talvez se pudesse imaginar um sistema de administração que pudesse, em grande parte, evitar essa incerteza e diminuir esse gasto. Por exemplo, tanto o dono da terra quanto o arrendatário poderiam, conjuntamente, ser obrigados a registrar seu contrato de arrendamento num registro público. Poder-se-iam decretar penalidades adequadas para quem ocultasse ou falseasse algumas dessas condições: e se uma parte do valor dessas multas fosse cedidas àquela entre as duas partes que denunciasse a outra ou comprovasse ter ela ocultado ou falseado os fatos, teríamos uma forma eficaz de dissuasão para impedir as duas partes de se mancomunarem para fraudar a receita pública. Tal registro poderia revelar suficientemente todas as condições do arrendamento. Alguns proprietários de terra, em vez de aumentarem o arrendamento, cobram luvas pela renovação do contrato de arrendamento. Na maioria dos casos, essa prática e expediente utilizado por perdulários, que por uma soma de dinheiro à vista vendem uma renda futura de valor muito superior. Ela é, pois, prejudicial ao proprietário de terras, na maior parte dos casos. Ela é muitas vezes danosa para o arrendatário, sendo sempre prejudicial para a comunidade. Muitas vezes priva o arrendatário de uma parcela tão grande de seu capital e com isto diminui tanto sua capacidade de cultivar a terra, que ele acha mais difícil pagar uma pequena renda, do que, de outra forma, pagar uma renda elevada. Tudo o que diminuir sua capacidade de cultivar, necessariamente mantém o componente mais importante do rendimento da comunidade abaixo do que ele teria sido em caso contrário. Aumentando-se o imposto sobre tais luvas, bem mais do que o imposto sobre a renda normal, poder-se-ia desestimular essa prática, com vantagens apreciáveis para todas as partes envolvidas: o dono da terra, o rendeiro, o soberano, e toda a comunidade. Alguns contratos de arrendamento prescrevem ao rendeiro determinado modo de cultivo e certa sucessão de colheitas, durante toda a vigência do contrato. Essa condição — que geralmente se deve ao fato de o dono da terra presumir-se mais conhecedor da matéria que o arrendatário (presunção que, na maioria dos casos, está pessimamente fundamentada) — deveria sempre ser considerada com uma renda adicional: como uma renda em forma de serviço, em vez de uma renda em dinheiro. Para desestimular essa prática, esse tipo de renda deveria 287
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ser avaliado bem alto, devendo conseqüentemente ser taxada com um imposto um pouco mais alto que as rendas correntes em dinheiro. Alguns donos de terra, em vez de uma renda em dinheiro, exigem uma renda em espécie: em trigo, gado, aves domésticas, vinho, azeite etc., ao passo que outros cobram uma renda de serviço. Tais rendas são sempre mais prejudiciais para o rendeiro do que benéficas para o patrão. O que elas tiram do bolso do rendeiro ou mantêm fora dele é superior àquilo que colocam no bolso do proprietário da terra. Em toda região em que se observam tais práticas, os rendeiros são pobres e mendicantes, mais ou menos de acordo com a intensidade em que elas se verificam. Fazendo-se uma avaliação bem alta de tais rendas, e conseqüentemente impondo-lhes impostos algo mais elevados, poderse-ia talvez desestimular suficientemente uma prática que é danosa para a comunidade inteira. Quando o dono de terras opta por ocupar ele mesmo uma parte delas, a renda poderia ser avaliada segundo uma arbitragem dos arrendatários e dos senhores de terras da redondeza, podendo-se conceder-lhe um moderado abatimento do imposto, da mesma forma que no território de Veneza, desde que a renda das terras que ele ocupar não supere certa soma. É importante que o senhor da terra seja encorajado a cultivar uma parte de sua propriedade. Seu capital costuma ser maior que o do rendeiro, e com menos habilidade ele pode muitas vezes conseguir uma produção maior. O senhor da terra pode permitir-se tentar experimentos e geralmente está disposto a fazê-lo. É pequeno o prejuízo que lhe advém das suas experiências malsucedidas. Em contrapartida, suas experiências bem-sucedidas contribuem para o aprimoramento e para o melhor cultivo de todo o país. Entretanto, poderia ser importante que o abatimento do imposto o estimulasse a cultivar uma parte apenas de suas propriedades. Se a maior parte dos proprietários fosse tentada a cultivar toda a extensão de suas próprias terras, o país (em vez de rendeiros sóbrios e operosos, que por interesse próprio são obri-gados a cultivar as terras tão bem quanto seu capital e habilidade lhes permitirem) se povoaria de meirinhos preguiçosos e devassos, cuja administração abusiva logo faria degenerar o cultivo, reduzindo a produção anual da terra, e com isto diminuindo não somente o rendimento de seus senhores, mas também a parcela mais importante do rendimento de toda a sociedade. Tal sistema de administração poderia, talvez, livrar esse imposto de todo grau de incerteza que pudesse acarretar opressão ou inconvenientes para o contribuinte; e ao mesmo tempo poderia servir para introduzir na administração comum da terra um plano ou política que talvez contribuísse bastante para o aprimoramento geral e para o bom cultivo do país. Sem dúvida, os gastos com o recolhimento de um imposto territorial que variasse com toda variação da renda seriam um pouco maiores do que a despesa necessária para recolher um imposto que fosse sempre calculado com base em uma avaliação fixa. Necessariamente 288
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se incorreria em alguma despesa adicional, tanto devido aos diversos ofícios de registro que seria indicado criar nos diferentes distritos do país, quanto em região das diversas avaliações que ocasionalmente se fariam das terras que o proprietário optasse por ocupar pessoalmente. No entanto, toda essa despesa poderia ser bem pequena, muito inferior à que se incorre no recolhimento de muitos outros impostos, que proporcionam uma receita muito pequena em confronto com a que se poderia facilmente auferir de um imposto desse gênero. O desestímulo que tal imposto territorial variável poderia acarretar para o aprimoramento da terra parece constituir a objeção mais ponderável que se lhe possa fazer. O dono da terra certamente estaria menos disposto a empenhar-se no aprimoramento da mesma, se o soberano, que em nada contribui para cobrir os gastos, partilhasse dos lucros decorrentes do aprimoramento. Mesmo a essa objeção se poderia talvez obviar, permitindo ao dono da terra antes de ele dar início ao aprimoramento, fixar, juntamente com os funcionários da receita, o valor efetivo de suas terras, segundo uma arbitragem justa de certo número de donos de terra e arrendatários da redondeza, escolhidos igualmente pelas duas partes, e taxando-o segundo essa avaliação por um número de anos plenamente suficiente para garantir sua indenização total. Uma das vantagens principais oferecidas por esse tipo de imposto territorial consiste em atrair a atenção do soberano para o aprimoramento da terra, fazendo-o considerar o aumento de sua própria receita. Por isso, o prazo permitido para a indenização do senhor de terra não deveria ser muito mais longo do que o necessário para essa finalidade, para que o fato de o interesse ser longíquo não desestimulasse demais a solicitude do soberano. Entretanto, sob qualquer aspecto, melhor seria que esse prazo fosse muito longo, em vez de muito curto. Nenhum estímulo à solicitude do soberano pode jamais contrabalançar o menor desestímulo à solicitude do dono de terras. A preocupação do soberano, na melhor das hipóteses, só pode ser uma consideração muito genérica e vaga daquilo que tem probabilidade de contribuir para o melhor cultivo da maior parte de seus domínios. A preocupação do senhor de terras é uma consideração específica e minuciosa do que tem probabilidade de ser a aplicação mais vantajosa de cada polegada de solo de sua propriedade. A preocupação primordial do soberano deve ser a de encorajar, por todos os meios ao seu alcance, tanto a preocupação do dono de terra como do arrendatário, deixando que ambos busquem seu próprio interesse, à sua maneira e segundo seu próprio critério, dando a ambos a mais completa segurança de que desfrutarão de plena recompensa por sua operosidade, e proporcionando a ambos o mercado mais amplo para cada item de sua produção, em decorrência da implantação das comunicações mais fáceis e mais seguras por terra e por água, através de todas as partes de seus domínios, bem como através da mais ilimitada liberdade de exportar para os domínios de todos os demais príncipes. Se, com tal sistema de administração, se pudesse administrar 289
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um imposto desse tipo de modo não somente a não desestimular, mas, ao contrário, a dar algum estímulo ao aprimoramento da terra, não parece provável que ele geraria algum outro inconveniente para o senhor da terra, salvo o sempre inevitável ônus de ser obrigado a pagar esse imposto. Em todas as variações do estado da sociedade, no aprimoramento e no declínio da agricultura, em todas as variações do valor da prata e em todas as variações no padrão da moeda, um imposto desse tipo haveria de, espontaneamente e sem nenhuma preocupação da parte do Governo, adequar-se prontamente à situação efetiva das coisas, e seria igualmente justo e eqüitativo em todas essas diversas variações. Por conseguinte, ele seria muito mais indicado para ser implantado como uma medida permanente e inalterável, do que qualquer imposto que sempre tivesse que ser recolhido com base em uma avaliação fixa. Alguns países, em vez do expediente simples e óbvio de um registro de arrendamentos, têm recorrido ao expediente trabalhoso e caro de levantamento e avaliação de todas as terras do país. Provavelmente suspeitavam que o senhorio e o arrendatário, visando a fraudar a receita pública, poderiam fazer um conluio para ocultar as condições reais do arrendamento. O cadastro das terras inglesas parece ter sido o resultado de um levantamento muito acurado desse gênero. Nos antigos domínios do rei Prússia, o imposto territorial é cobrado com base em levantamento e em uma avaliação efetiva, que é revista e alterada de tempos em tempos.22 Consoante essa avaliação, os proprietários leigos podem pagar de 20 a 25% de seu rendimento, e os eclesiásticos, de 40 a 45%. O levantamento e a avaliação da Silésia foram feitas por ordem do rei atual; e, segundo se diz, foram efetuados com grande precisão. De acordo com essa avaliação, as terras pertencentes ao bispo Breslau são taxadas em 25% de sua renda. As outras rendas dos eclesiásticos das duas religiões, 50%. As comendas da Ordem Teutônica e as da Ordem de Malta, a 40%; as terras cuja propriedade se funda em um título de nobreza, 38 1/3%, aquelas cujo título de posse é desvalorizado, a 35 1/3%. O levantamento e a avaliação da Boêmia foi obra de mais de 100 anos, segundo se diz. Só foram terminados depois da paz de 1748, por ordem da atual imperatriz-rainha.23 O levantamento do ducado de Milão que foi iniciado no tempo de Carlos VI, só foi consumado depois de 1760. É considerado como um dos mais exatos que já foram executados. O levantamento da Savóia e do Piemonte foi feito por ordem do falecido rei da Sardenha.24 Nos domínios do rei da Prússia, o rendimento da Igreja é taxado com um imposto muito maior que o dos proprietários leigos. A maior parte do rendimento da Igreja representa um ônus que pesa sobre a 22 23 24
Mémoires Concernant les Droits & Impositions en Europe, t. I, pp. 114, 115, 116 etc. Ibid., pp. 83, 84. Ibid., p. 208 etc., também pp. 287 etc. até 316. 290
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renda da terra. Raramente acontece que alguma parte dela seja aplicada no aprimoramento da terra, isto é, seja empregada de modo a contribuir, sob qualquer aspecto que seja, para aumentar o rendimento do conjunto da população em geral. Foi provavelmente por essa razão que Sua Majestade, o rei da Prússia, considerou justo que esse rendimento eclesiástico contribuísse bem mais para atender às exigências do Estado. Em alguns países, as terras da Igreja são isentas de todo e qualquer imposto. Em outros, elas são taxadas com impostos mais elevados que outras terras. No ducado de Milão, as terras que a Igreja possuía antes de 1575 são taxadas com o imposto de apenas 1/3 de seu valor. Na Silésia, as terras cuja propriedade é mantida por um título de nobreza são taxadas com um imposto 3% superior ao que pesa sobre as que se baseiam em título de posse desvalorizado. Provavelmente, Sua Majestade, o rei da Prússia, acreditou que as honras e privilégios de vários tipos, anexados às primeiras, seriam suficientemente compensados para o proprietário por um aumento do imposto, enquanto que a inferioridade humilhante das outras terras seria até certo ponto compensada pelo fato de serem taxadas com imposto um pouco menor. Em outros países, o sistema de taxação, em vez de aliviar, agrava essa desigualdade. Nos domínios do rei da Sardenha e naquelas províncias francesas que estão sujeitas ao que se chama talha imobiliária ou real, o imposto recai exclusivamente sobre as terras com título de posse desvalorizado. Aquelas cuja propriedade é mantida por um título de nobreza estão isentas. Um imposto territorial calculado com base em um levantamento e uma avaliação geral, por mais eqüitativo que seja de início, deve tornar-se injusto, no decurso de um período de tempo bem curto. Para impedir que isso aconteça, seria necessária a atenção contínua e árdua do Governo a todas as variações no estado e na produção de cada propriedade existente no país. Os governos da Prússia, da Boêmia, da Sardenha e do ducado de Milão exercem efetivamente uma atenção desse gênero: aliás, uma atenção tão pouco condizente com a natureza do Governo, que não tem probabilidade de durar muito e que, se continuar, provavelmente ocasionará a longo prazo, mais incômodo e vexames do que auxílio para os contribuintes. Em 1666, a generalidade25 de Montauban foi taxada com uma talha imobiliária ou real consoante, segundo se diz, com um levantamento e avaliação muito exatos.26 Por volta de 1727, essa cobrança se havia tornado inteiramente injusta. A fim de remediar esse inconveniente, o Governo não encontrou melhor meio do que impor ao conjunto da generalidade uma taxa adicional de 120 mil libras francesas. Essa 25
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Eram as circunscrições administrativas essenciais do Antigo Regime, na França. Recebem essa denominação porque, de início, eram governadas por um “general” de finanças, que depois passou a chamar-se intendente. No século XV, seu número era de 4; em 1789, quando foram extintas, somavam 33. (N. do E.) Mémoires Concernant les Droits & Impositions, t. II, p. 139 etc. 291
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taxa adicional é calculada para todos os distritos sujeitos à talha segundo a taxação antiga. Todavia, ela é recolhida somente sobre aqueles que, na atual situação, estão subavaliados naquela taxação, sendo aplicada para aliviar os distritos que estão taxados em excesso pela taxação antiga. Por exemplo, dois distritos, um dos quais deve no atual estado de coisas, ser taxado a 900 libras, e outro 1 100; pelo velho cálculo eram ambos taxados com mil libras. Pela taxa adicional, os dois distritos são taxados com 1 100 Libras cada um. Mas essa taxa adicional é cobrada somente do distrito taxado abaixo do devido, sendo aplicada exclusivamente para aliviar o distrito sobretaxado, que em conseqüência paga apenas 900 libras. O Governo não ganha nem perde com a taxação adicional, a qual é aplicada exclusivamente para remediar as desigualdades oriundas do antigo cálculo. A aplicação é basicamente regulada segundo a vontade do intendente da generalidade devendo, portanto, ser em grande parte arbitrária. Impostos Proporcionais à Produção da Terra e não à Renda Os impostos incidentes sobre a produção da terra são na realidade impostos sobre a renda; e ainda que, originalmente, possam ser adiantados pelo arrendatário, em última análise são pagos pelos proprietários da terra. Quando o arrendatário tem que pagar certa parcela da produção como imposto, ele calcula, da melhor forma que pode, qual é o valor provável dessa parcela, um ano pelo outro, e faz uma dedução proporcional na renda que concorda pagar ao senhorio. Não existe arrendatário que não calcule de antemão qual é o montante provável, um ano pelo outro, do dízimo eclesiástico que é um imposto territorial desse tipo. O dízimo, bem como qualquer outro imposto territorial desse gênero, são impostos muito pouco eqüitativos, embora pareçam extremamente eqüitativos, pois determinada parcela de produção equivale, em situações diferentes, a uma porção muito diferente da renda. Em algumas terras muito ricas, a produção é tão abundante que a metade dela é plenamente suficiente para repor ao arrendatário seu capital aplicado no cultivo, juntamente com os lucros normais do capital agrícola vigentes na região. A outra metade ou, o que é a mesma coisa, o valor dessa outra metade, ele teria recursos para pagá-la como renda ao senhor da terra, se não houvesse dízimo. Mas, no caso de se retirar 1/10 da produção em forma de dízimo, ele tem que exigir uma redução de 1/5 de sua renda, pois de outra forma não consegue recuperar seu capital com o lucro normal. Nesse caso, a renda do dono da terra, em vez de corresponder à metade ou a 5/10 da produção total, equivalerá apenas a 4/10 dela. Ao contrário, em terras mais pobres, às vezes a produção é tão pequena e as despesas com o cultivo são tão elevadas que são necessários 4/5 de toda a produção para repor ao arrendatário seu capital, com o lucro normal. Nesse caso, mesmo que não houvesse dízimo a pagar, a renda do dono da terra não poderia ser mais do que 292
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1/5, ou seja, 2/10 da produção total. Ora, se o arrendatário pagar 1/10 da produção em forma de dízimo, tem que exigir uma dedução igual da renda a pagar ao dono da terra, e com isto a renda será reduzida a apenas 1/10 da produção total. Em se tratando da renda de terras ricas, o dízimo pode às vezes representar um imposto de apenas 1/5, isto é, 4 xelins por libra, ao passo que no caso de terras mais pobres, às vezes pode representar um imposto equivalente à metade, ou seja, 10 xelins por libra. O dízimo, assim como freqüentemente é um imposto muito injusto sobre a renda, da mesma forma é sempre um grande desestímulo, tanto para as melhorias a serem feitas pelo senhor da terra como para o cultivo por parte do arrendatário. Se a Igreja, que não entra com nada na despesa, fizer questão de ter uma participação tão grande no lucro, o primeiro não pode aventurar-se a implantar as melhorias mais importantes, que geralmente são as mais caras, e o segundo não pode cultivar as safras mais valiosas, que geralmente são também as mais caras. Devido ao dízimo, o cultivo de garança teve que restringir-se por muito tempo às Províncias Unidas, as quais, por serem regiões presbiterianas e, por esse motivo, isentas desse imposto destrutivo, desfrutavam, contrariamente ao resto da Europa, de uma espécie desse útil corante. As recentes tentativas de introduzir a cultura dessa planta na Inglaterra só foram feitas em conseqüência do estatuto que decretou que, em lugar de qualquer tipo de dízimo sobre a garança, se pagassem 5 xelins por acre. Assim como, na maior parte da Europa, é a Igreja que se mantém sobretudo com um imposto sobre a terra, proporcional à produção dessa e não à renda, da mesma forma isso ocorre com o Estado, em vários países da Ásia. Na China, a receita primordial do soberano consiste em 1/10 da produção de todas as terras do império. Contudo, esse 1/10 é avaliado tão moderadamente, que em muitas províncias, segundo se afirma, não ultrapassa 1/30 da produção normal. Pelo que se diz, o imposto sobre a terra ou a renda da terra costumava ser pago ao governo maometano de Bengala, antes que o país caísse nas mão da Companhia Inglesa das Índias Orientais, representava aproximadamente 1/5 da produção. Diz-se que o imposto sobre a terra no Egito Antigo também representava 1/5. Na Ásia, afirma-se que esse tipo de imposto territorial faz com que o soberano se interesse pelo aprimoramento e pelo cultivo da terra. Afirma-se, pois, que os soberanos da china, os de Bengala sob o governo maometano e os do Egito Antigo se preocupavam ao extremo com a construção e manutenção de boas estradas e canais navegáveis, a fim de aumentar o máximo possível a quantidade e o valor de cada item da produção da terra, proporcionando a cada produto o mercado mais amplo que seus domínios podiam oferecer. O dízimo da igreja é dividido em parcelas tão pequenas que nenhum de seus proprietários pode ter algum interesse desse gênero. O vigário de uma paróquia nunca poderia encontrar vantagem para ele em construir uma estrada ou um canal 293
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para uma região distante do país, a fim de ampliar o mercado para a produção de sua paróquia específica. Tais impostos, quando destinados à manutenção do Estado, têm algumas vantagens, que até certo ponto podem contrabalançar os inconvenientes que eles acarretam. Quando destinados à manutenção da Igreja, só acarretam inconvenientes. Os impostos sobre a produção da terra podem ser recolhidos em espécie ou, consoante em determinada avaliação, em dinheiro. O vigário de uma paróquia ou um fidalgo de pequena fortuna que vive em sua propriedade podem, possivelmente, ver alguma vantagem em receber respectivamente seu dízimo e sua renda em espécie. A quantidade a ser recolhida e o distrito dentro do qual ela deve ser coletada são tão pequenos, que os dois podem supervisionar pessoalmente a coleta e o emprego de cada parte que lhes é devida. Um fidalgo de grande fortuna que vivesse na capital estaria exposto ao perigo de ser muito prejudicado pela negligência e, mais ainda, pelas fraudes de seus feitores e agentes, se as rendas de uma propriedade localizada em uma província distante lhe fossem paga em espécie. Muito maior ainda seria, necessariamente, a perda do soberano, devido ao abuso e ao saque de seus coletores de impostos. Os empregados da pessoa particular mais descuidada estão talvez mais sob o controle de seu patrão do que os do que os do príncipe mais cuidadoso; e uma receita pública que fosse paga em espécie sofreria tanto pela má administração dos coletores, que uma parte mínima dos gêneros recolhidos da população chegaria ao tesouro do príncipe. Não obstante, afirma-se que uma parte da receita da China é paga em espécie. Os mandarins e outros coletores da receita pública devem encontrar sua vantagens em prolongar a prática de um tipo de pagamento que está bem mais exposto a abusos do que qualquer pagamento em dinheiro. Um imposto sobre a produção da terra, cobrado em dinheiro, pode ser recolhido com base em uma avaliação que varia com todas as variações do preço do mercado ou então com base em avaliação fixa, sendo que, por exemplo, 1 alqueire de trigo é sempre avaliado ao mesmo preço em dinheiro, qualquer que seja a situação do mercado. O produto de um imposto recolhido da primeira forma variará apenas de acordo com as variações real da terra, conforme o cultivo for aprimorado ou negligenciado. O produto de imposto recolhido da segunda maneira variará não somente de acordo com as variações da produção da terra, mas também segundo as variações do valor dos metais preciosos e as variações da quantidade desses metais que em períodos diferentes está contida nas moedas do mesmo valor nominal. O produto do imposto coletado do primeiro modo terá sempre a mesma proporção com o valor da produção real da terra. O produto do imposto coletado do segundo modo pode, em períodos diferentes, apresentar proporções bem diferentes com o citado valor. Quando, em lugar de certa parcela de produção da terra ou do preço de determinada parcela, se deve pagar determinada soma em dinheiro para compensar plenamente todo o imposto ou dízimo, o tributo 294
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passa a ser exatamente da mesma natureza que o imposto territorial vigente na Inglaterra. Ele não aumenta nem diminui com a renda da terra. Ele nem estimula nem desestimula o aprimoramento da terra. Um imposto desse tipo é o dízimo na maior parte daquelas paróquias que pagam o que se chama de modus, em lugar de qualquer outro dízimo. Durante o governo maometano de Bengala, em vez do pagamento de 1/5 em espécie da produção criou-se, na maior parte dos distritos e zemindares do país, um encargo que era bem modesto, segundo se diz. Alguns empregados da Companhia das Índias Orientais, sob o pretexto de reconduzir a receita pública ao seu valor devido, trocaram esse encargo em algumas províncias por um pagamento em espécie. Sob a administração deles, essa mudança contribui para desestimular o cultivo da terra e ao mesmo tempo para dar novas oportunidade para abusos no recolhimento da receita pública, que caiu muitíssimo abaixo do que dizem ter sido quando ela passou a ser administrada pela Companhia. Os empregados da Companhia podem talvez ter tirado proveito dessa mudança, mas provavelmente à custa de seus patrões e do país. Impostos sobre aluguéis de casa O aluguel de uma casa se divide em duas partes, podendo a primeira ser denominada com muita propriedade de aluguel da edificação, e a segunda costuma ser denominada de renda do terreno. O aluguel da edificação são os juros ou o lucro do capital gasto na sua construção. Para colocar a profissão de um construtor civil em pé de igualdade com outras profissões, é necessário que esse aluguel seja suficiente, primeiro, para pagar-lhe os mesmos juros que ele teria obtido com seu capital se o tivesse emprestado sob fiança, e, segundo, para manter a casa constantemente em bom estado, ou, o que é equivalente, para repor, dentro de determinado número de anos, o capital que foi empregado na construção da mesma. Por conseguinte, o aluguel da edificação ou lucro normal de construção é em toda parte regulado pelo juros normais que se pagam pelo dinheiro. Onde a taxa de juros de mercado é de 4%, o aluguel de uma casa que, além de pagar a renda do terreno, dá 6 ou 6,5% sobre o total gasto na construção, talvez possa proporcionar um lucro suficiente para o construtor. Onde a taxa de juros de mercado for de 5%, talvez sejam necessários 7 ou 7,5%. Se, em proporção com os juros do dinheiro, a profissão do construtor em algum momento der um lucro superior a este, ela logo desviará tanto o capital de outros negócios, que o lucro se reduzirá ao seu nível adequado. Se em algum momento ela der um lucro muito inferior ao mencionado, outros negócios logo desviarão tanto capital dela, que este lucro aumentará novamente. Toda parcela do aluguel total de uma casa que vai além do que é suficiente para garantir esse lucro justo vai naturalmente para a renda do terreno, e quando o proprietário do terreno e o proprietário da edificação são duas pessoas diferentes, ela é, na maioria dos casos, 295
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paga totalmente ao primeiro. Essa renda suplementar é o preço que o morador da casa paga por alguma vantagem real ou presumida da localização. Em casas localizadas no campo, longe de qualquer cidade grande, onde há bastante solo para escolher, a renda do terreno representa pouco, ou então, não mais do que renderia o solo sobre o qual o imóvel está construído, caso ele fosse empregado para finalidades agrícolas. Em vilas rurais e na vizinhança de alguma cidade grande, ela às vezes é bem mais elevada, sendo que nesse caso a comodidade ou beleza da localização é freqüentemente muito bem paga. As mais altas rendas do terreno ocorrem geralmente na capital e naqueles bairros específicos dela onde existe a maior procura de casas, qualquer que seja a razão da procura: comércio e negócios, diversão e vida social, ou simplesmente vaidade e moda. Um imposto sobre aluguel e casa, pagável pelo inquilino e proporcional ao aluguel total de cada casa, não poderia afetar o aluguel da edificação, ao menos por um período considerável. Se o construtor não auferisse seu lucro justo, ele seria obrigado a abandonar a profissão, e isto, por fazer aumentar a demanda de construções, em pouco tempo haveria de reconduzir o lucro dele a seu patamar adequado, proporcional ao de outros setores. Tampouco esse imposto recairia totalmente sobre a renda do terreno; ele se dividiria de modo a recair, em parte, sobre o morador da casa e em parte sobre o proprietário do solo. Suponhamos, por exemplo, que determinada pessoa calcule poder dispor, para pagar aluguel de uma casa de 60 libras esterlinas por ano; suponhamos também que o imposto incidente sobre o aluguel da casa seja de 4 xelins por libra, ou seja, de 1/5 do aluguel, devendo o imposto ser pago pelo morador. Nesse caso, uma casa cujo aluguel é de 60 libras, lhe custará 62 libras por ano, o que significa 12 libras a mais do que aquilo que ela julga poder pagar. Em conseqüência, ela se contentará com uma casa inferior, ou seja, uma casa cujo aluguel é de 50 libras, o que, somado às 10 libras adicionais que deverá pagar de imposto sobre aluguel, completará a soma de 60 libras por ano, o gasto que ela julga poder permitir-se; e para pagar o imposto, ela abrirá mão de uma parte da conveniência adicional que teria em alugar uma casa cujo aluguel custa 10 libras a mais por ano. Digo: abrirá mão de uma parte dessa conveniência adicional, uma vez que raramente será obrigada a abrir mão de toda ela, senão que, em conseqüência do imposto, ela conseguirá uma casa melhor do que teria podido obter por 50 libras anuais, se não tivesse havido imposto. Com efeito, assim como esse imposto, por eliminar esse concorrente específico, necessariamente faz diminuir a concorrência por casas de 60 libras de aluguel, da mesma forma também deve fazer diminuir a concorrência por casas de 50 libras de aluguel, bem como a concorrência por quaisquer outras casas de aluguel, excetuadas as de aluguel mais baixo, em relação às quais a concorrência haveria de aumentar por algum tempo. Ora, necessariamente reduzir-se-iam, em grau maior ou menor, os aluguéis de toda categoria de casas que fossem objeto de menor concorrência. 296
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Como, porém, nenhuma parcela dessa redução poderia, ao menos durante um período considerável, afetar o aluguel da edificação, toda essa redução deve, necessariamente, ao longo prazo, recair sobre a renda do terreno. Por conseguinte, o pagamento final desse imposto recairá em parte sobre o morador da casa — o qual, para pagar sua parte, seria obrigado a abrir mão de uma parte de sua conveniência — e em parte sobre o proprietário do terreno, o qual, a fim de pagar sua parte, seria obrigado a desfazer-se uma parte de seu rendimento. Talvez não seja muito fácil determinar em que proporção esse pagamento final seria divido entre os dois. Provavelmente, a divisão variaria muito conforme a diversidade das circunstâncias, e um imposto desses poderia, segundo essa diversidade, afetar de modo muito desigual tanto o morador da casa como o proprietário do terreno. A desigualdade com a qual esse tipo de imposto poderia recair sobre os possuidores de diferentes rendas de terreno adviria exclusivamente da desigualdade acidental dessa divisão. Mas a desigualdade com a qual ele poderia recair sobre os moradores de casas diferentes proviria, não somente disso, mas também de outra causa. A proporção da despesa do aluguel de casa em relação à despesa total para viver varia conforme variarem os graus de riquezas. Talvez ela atinja o máximo quando a riqueza for máxima, diminuindo gradualmente através dos graus inferiores, de maneira a ser a mínima no grau mais baixo de riqueza. A causa geradora dos maiores gastos dos pobres são as coisas indispensáveis para viver. Eles acham difícil conseguir alimentos e a maior parte de seu pequeno rendimento é gasta na obtenção deles. Em contrapartida, para os ricos a causa primordial de gastos são o luxo e a ostentação; ora, uma casa magnífica embeleza o propicia o melhor proveito de todos os outros luxos e vaidades que eles possuem. Por isso, um imposto sobre aluguéis de casa geralmente recairia com maior peso sobre os ricos, não havendo, talvez, nesse tipo de desigualdade nada de particularmente absurdo. É muito razoável que os ricos contribuam para a receita pública, não somente em proporção com sua renda, mas em proporção maior. O aluguel de casas, conquanto se assemelha sob alguns aspectos ao arrendamento de terras, é essencialmente diferente dele sob certo aspecto. A renda de terras é paga pelo uso que se faz de uma coisa produtiva. A mesma terra que paga essa renda a produz. O aluguel de moradias é pago pelo uso de uma coisa improdutiva. Nem a casa nem o terreno sobre o qual ela está construída produzem algo. Por isso, a pessoa que paga o aluguel deve tirá-lo de alguma outra fonte de rendimento, diferente desse objeto e independente dele. Um imposto sobre o aluguel de casas, na medida em que recai sobre os moradores, tem que ser tirado da mesma fonte que o próprio aluguel, devendo ser pago pelo rendimento dos moradores, advenha este do salário do trabalho, do lucro do capital ou do arrendamento de terras. Na medida em que ele recai sobre os moradores, é um desses impostos que recai não apenas sobre uma, porém indiferentemente sobre todas as três 297
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fontes de rendimento, sendo, sob todos os aspectos, da mesma natureza que um imposto incidente sobre qualquer outro tipo de bem de consumo. Em geral, talvez não exista nenhum outro item de despesa ou de consumo que possa oferecer um critério melhor para julgar da maior ou menor liberalidade de gastos de uma pessoa, do que o aluguel que paga pela sua moradia. Um imposto proporcional sobre esse item especifico de despesa poderia, possivelmente, gerar uma receita superior àquela que se tem até agora recolhido dele, em qualquer país da Europa. Com efeito, se o imposto fosse muito alto, a maioria da população procuraria fugir dele, na medida do possível, contentando-se com casas menores, e canalizando a maior parte de seus gastos para alguma outra coisa. O aluguel de casas poderia ser facilmente determinado com suficiente precisão, adotando uma política do mesmo tipo que aquela que seria necessária para determinar com certeza a renda normal da terra. As casas desabitadas não deveriam pagar imposto, um imposto sobre elas haveria de recair sobre o proprietário, que assim seria taxado por uma coisa que não lhe traria nem vantagens nem renda. Casas habitadas pelo proprietário deveriam ser taxadas, não de acordo com o seu eventual custo de construção, mas de acordo com o valor do aluguel que, com base em uma arbitragem justa, elas provavelmente renderiam, se fossem locadas a um inquilino. Se o imposto fosse calculado segundo o custo de sua construção, de um imposto de 3 ou 4 xelins por libra, aliado a outros impostos, levaria à ruína quase todas as famílias ricas importantes desse país e, segundo acredito, de qualquer outro país civilizado. Quem quer que examine com atenção as diversas casas de algumas das mais ricas e mais importantes famílias desse país, nas cidades e no campo, verá que, à taxa de apenas 6,5 ou 7% sobre o custo original de construção, seu aluguel de casa é quase igual à renda líquida total de suas propriedades. Sem dúvida, ele é a despesa acumulada de várias gerações sucessivas aplicada em coisas de grande beleza e magnificência; mas, em proporção com o que custam, têm valor de troca muito reduzido.27 As rendas do terreno constituem um item de taxação ainda mais adequado do que o aluguel de casas. Um imposto sobre as rendas de terreno não faria aumentar os aluguéis de casas. Ele recairia exclusivamente sobre o beneficiário da renda do terreno, o qual sempre age como um monopolista, reclamando o máximo de renda que puder obter do uso de seu terreno. Pode-se obter mais ou menos rendas do terreno, conforme os concorrentes forem mais ricos ou mais pobres, ou seja, conforme puderem permitir-se satisfazer ao seu desejo de determinado terreno com gasto maior ou menor. Em todo país, o número maior de concorrentes ricos está na capital, sendo portanto sempre lá que se pode encontrar as rendas de terreno mais elevadas. Como a riqueza 27
Desde a primeira publicação da presente obra, impôs-se um tributo mais ou menos na base dos princípios acima mencionados. 298
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desses concorrentes sob nenhum aspecto aumentaria em decorrência de um imposto sobre as rendas de terreno, provavelmente não estariam propensos a pagar mais pelo uso do terreno. Pouco importaria se o imposto devesse ser adiantado pelo usuário ou pelo proprietário do terreno. Quanto mais o usuário fosse obrigado a pagar pelo imposto, tanto menos ele estaria propenso a pagar pelo terreno; assim sendo, o pagamento final do imposto recairia exclusivamente sobre o beneficiário da renda do terreno. Não deveria haver imposto sobre rendas de terreno de casas desabitadas. Tanto as rendas de terreno como a renda normal da terra são uma espécie de rendimento de que o proprietário desfruta, em muitos casos, sem nenhum cuidado ou preocupação de sua parte. Ainda que se lhe tirasse uma parte desse rendimento para pagar as despesas do Estado, não se estaria desestimulando com isso nenhum tipo de iniciativa. Com ou sem esse imposto, poderia ser idêntica a produção anual da terra e do trabalho do país, a riqueza e o rendimento real do conjunto da população. Por conseguinte, as rendas de terreno e a renda normal da terra são talvez os tipos de rendimento que melhor suportam a incidência de um imposto específico. Sob esse prisma, as rendas de terreno representam um item mais adequado para a taxação do que a própria renda normal da terra. Em muitos casos, a renda normal da terra se deve, ao menos em parte, ao cuidado e à boa administração do dono da mesma. Um imposto muito elevado poderia desestimular excessivamente esse cuidado e boa administração. As rendas de terreno, na medida em que ultrapassam a renda normal da terra, devem-se totalmente à boa administração do soberano, o qual, protegendo a iniciativa da população inteira, ou então dos habitantes de algum lugar específico, lhes possibilita pagarem pelo terreno sobre o qual constroem suas casas mais do que seu valor real, ou seja, possibilita-lhes dar ao proprietário do terreno mais do que uma simples compensação pela perda que ele poderia ter com esse uso do terreno. Não pode haver nada mais justo do que impor um tributo especial a um fundo que deve sua existência à boa administração do Estado, ou seja, nada mais justo que tal fundo contribua um pouco mais do que a maior parte dos outros fundos para cobrir as despesas do Governo. Embora, em muitos países da Europa, se tenha cobrado imposto sobre os aluguéis de casas, não conheço nenhum em que as rendas de terreno tenham sido consideradas item separado de taxação. Provavelmente, os criadores de impostos encontraram alguma dificuldade em determinar qual a parte do aluguel que deve ser considerada como renda do terreno, e qual a que deve ser considerada como aluguel da edificação. No entanto, não parece ser muito difícil distinguir um do outro estes dois componentes do aluguel. Na Grã-Bretanha, o aluguel de casas deve ser taxado na mesma proporção que a renda da terra, mediante o assim chamado imposto anual sobre a terra. É sempre igual a avaliação segundo a qual se 299
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determina esse imposto para cada paróquia e distrito. Em sua origem, a avaliação era extremamente desigual e ainda continua a ser assim. Na maior parte do reino, esse imposto continua a ser menor para o aluguel de casas do que para arrendamento de terras. Somente em alguns poucos distritos — cuja taxa era originalmente alta e nos quais os aluguéis de casas caíram consideravelmente — o imposto sobre terras, de 3 ou 4 xelins por libra, atinge, segundo se diz, uma proporção igual à do aluguel real de casas. Casas desalugadas, embora por lei estejam sujeitas ao imposto, são isentadas dele na maior parte dos distritos, por condescendência dos cobradores; essa isenção às vezes ocasiona alguma pequena variação na taxação das casas particulares, ainda que a do distrito seja sempre a mesma. Aumentos de aluguel, devidos a novas construções, reparações etc., são dispensados pelo distrito, o que ocasiona uma variação ainda maior na taxação das casas. Na província da Holanda,28 sobre cada casa se cobra um imposto de 2,5% de seu valor, sem em nada considerar o aluguel que ela efetivamente proporciona, nem a circunstância de estar ou não alugada. Parece injusto obrigar um proprietário a pagar imposto por uma casa desalugada, da qual ele não tem condições de auferir renda alguma, sobretudo em se tratando de um imposto tão alto. Na Holanda, onde a taxa de juros de mercado não ultrapassa 3%, 2,5% sobre o valor total da casa deve, na maioria dos casos, representar mais de 1/3 do aluguel da edificação, talvez do aluguel total. A avaliação segundo a qual as casas são taxadas, embora muito desigual, está sempre abaixo do valor real, segundo se afirma. Quando uma casa é reconstruída, melhorada ou ampliada faz-se uma nova avaliação, alterando-se então também o imposto. Os criadores dos vários tributos sobre as casas que têm imposto, na Inglaterra, em épocas diferentes, parecem ter imaginado ser muito difícil determinar, com exatidão aceitável, qual era o aluguel real de cada casa. Por isso, regularam seus impostos de acordo com um fator mais óbvio, o qual, segundo provavelmente imaginaram, na maioria dos casos apresentaria alguma proporção com o aluguel. O primeiro imposto desse gênero foi o cobrado por lareira: um imposto de 2 xelins para cada lareira existente na casa. Para determinar quantas lareiras havia na casa, era necessário que o coletor de impostos entrasse em cada quarto. Essa visita odiosa tornou o imposto também odioso. Por isso, logo após a revolução, ele foi abolido como sendo símbolo de servidão. O próximo imposto desse tipo foi um tributo de 2 xelins sobre cada moradia habitada. Uma casa com dez janelas pagava 4 xelins a mais. Uma casa com vinte ou mais janelas pagava 8 xelins. Esse imposto foi posteriormente alterado, de sorte que casas com vinte janelas e com menos de trinta tinham que pagar 10 xelins, e as de trinta ou 28
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mais janelas pagavam 20 xelins. Na maioria dos casos, o número de janelas pode ser contado de fora e, em todo caso, sem entrar em cada quarto da casa. Portanto, a visita do coletor de impostos era menos desagradável nesse imposto do que no imposto por lareira. Esse imposto foi mais tarde revogado, e em lugar dele criou-se o imposto por janela, o qual também passou por várias alterações e aumentos. Esse imposto, tal como é atualmente (janeiro de 1775), além da taxa de 3 xelins para cada casa na Inglaterra, e de 1 xelin para cada casa na Escócia, impõe uma taxa para cada janela, imposto esse que, na Inglaterra, aumenta gradativamente de 2 pence — a taxa mais baixa, para casas com não mais de sete janelas — até 2 xelin, a taxa mais alta, para casas com 25 janelas ou mais. A objeção principal contra tais impostos é sua desigualdade e desigualdade do pior tipo, pois com freqüência eles resultam muito mais pesados para os pobres do que para os ricos. Uma casa que propicia um aluguel de 10 libras em uma cidade provinciana pode às vezes ter mais janelas do que uma que proporciona um aluguel de 500 libras em Londres: e não obstante o morador da primeira ser provavelmente uma pessoa muito mais pobre do que o da última, na medida em que a contribuição do pobre é regulada pelo imposto por janela, ele tem que contribuir mais para o custeio do Estado. Por isso, tais impostos contrariam diretamente a primeira das quatro máximas acima mencionadas. Não parecem, porém, contrariar muito nenhuma das outras três. A tendência natural do imposto por janela, bem como a de todos os outros impostos sobre casas, é fazer baixar os aluguéis. É evidente que quanto mais uma pessoa paga pelo imposto, tanto menos poderá permitir-se pagar pelo aluguel. No entanto, desde a imposição do tributo por janela, os aluguéis de casa, no global, subiram mais ou menos em quase todas as cidades e aldeias da Grã-Bretanha que conheço. Quase em toda parte a demanda de casas tem sido tal, que ela faz aumentar os aluguéis mais do que o imposto por janela poderia fazê-los baixar — eis uma das muitas provas da grande prosperidade do país e do aumento de renda de seus habitantes. Não fora o imposto, os aluguéis provavelmente teriam subido ainda mais. ARTIGO II Impostos sobre o lucro ou sobre o rendimento proveniente do capital O rendimento ou lucro oriundo do capital divide-se naturalmente em dois componentes: o que paga os juros e pertence ao dono do capital, e aquele excedente que vai além do que é necessário para pagar os juros. Evidentemente, este último componente é um item não passível de tributação direta. É a compensação, e na maioria dos casos não passa de uma compensação modesta, pelo risco e pelo trabalho de aplicar o capital. O aplicador precisa ter essa compensação, sem o que não pode continuar com esse negócio, sob pena de comprometer seu 301
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próprio interesse. Por conseguinte, se o aplicador fosse taxado diretamente, em proporção ao lucro total, seria obrigado a aumentar a taxa de seu lucro ou a descarregar o imposto sobre os juros do dinheiro, isto é, pagar menos juros. Se aumentasse a taxa de seu lucro em proporção ao imposto, o total do tributo, ainda que fosse adiantado por ele, ao final seria pago por uma ou outra de duas categorias de pessoas, conforme as maneiras diferentes que ele empregasse para aplicar o capital que administra. Se ele o empregasse como capital agrícola no cultivo da terra, só poderia aumentar a taxa de seu lucro retendo uma parcela maior — ou, o que dá no mesmo, o preço de uma parcela maior — da produção da terra; e uma vez que isto só poderia ocorrer diminuindo o valor do arrendamento, o pagamento final do imposto recairia sobre o dono da terra. Se ele empregasse o capital no comércio ou em uma manufatura, só poderia aumentar a taxa de seu lucro elevando o preço de suas mercadorias, caso em que o pagamento final do imposto recairia totalmente sobre os consumidores das ditas mercadorias. Se ele não aumentasse a taxa de seu lucro, seria obrigado a descarregar o imposto todo sobre a parte do lucro destinada a pagar os juros do dinheiro. Só poderia pagar menos juros por qualquer capital que tomasse emprestado e todo o peso do imposto recairia, nesse caso, em última análise, sobre os juros do dinheiro. Na medida em que não pudesse livrar-se do imposto da primeira maneira, seria obrigado a livrar-se dele da segunda. À primeira vista, os juros do dinheiro parecem ser um item tão susceptível de taxação direta quanto a renda da terra. Como a renda da terra, eles constituem um produto líquido que resta após compensar completamente todo o risco e trabalho de empregar o capital. Assim como um imposto sobre a renda da terra não pode fazer aumentar os arrendamentos pois o produto líquido que resta após o capital do arrendatário, juntamente com seu justo lucro, não pode ser maior antes do imposto do que depois dele — da mesma forma e pela mesma razão, um imposto sobre os juros do dinheiro não poderia fazer aumentar a taxa de juros, já que supostamente a quantidade de capital ou de dinheiro no país, como a quantidade de terra, permanecem as mesmas tanto depois do imposto como antes dele. Conforme mostrei no Livro Primeiro, a taxa normal de lucro é sempre regulada pelo volume de capital a ser empregado em proporção com a dimensão do emprego ou do negócio a ser realizado com o capital não poderia ser aumentada nem diminuída por nenhum imposto sobre os juros do dinheiro. Se, pois, o volume do capital a ser empregado não foi aumentado nem diminuído pelo imposto, a taxa normal de lucro necessariamente permaneceria a mesma. Entretanto, permaneceria idêntica também a parcela desse lucro necessária para compensar o risco e o trabalho do aplicador, pois não há nenhuma alteração nesse risco e trabalho. Por conseguinte, necessariamente permaneceria idêntico também o remanescente — a parcela que pertence ao dono do capital e que paga os juros do dinheiro. À 302
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primeira vista, portanto, os juros do dinheiro parecem ser um item tão apto a ser taxado diretamente quanto a renda da terra. Há, porém, duas circunstâncias que fazem com que os juros do dinheiro sejam um item muito menos adequado para taxação direta do que a renda da terra. Primeiramente, a quantidade e o valor da terra possuída por qualquer pessoa nunca podem ser um segredo, pois podem ser sempre averiguados com grande precisão. Ao contrário, o montante total do capital que a pessoa possui é quase sempre um segredo, e raramente pode ser averiguado com exatidão aceitável. Além disso, ele está sujeito a variações quase contínuas. Raramente passa um ano — muitas vezes nem sequer um mês e por vezes um único dia — em que esse montante não aumente ou diminua em grau maior ou menor. Uma sindicância em torno das condições particulares de cada pessoa e uma sindicância que, no intuito de adequar o imposto a essas condições, observasse todas as flutuações de suas fortunas seriam uma fonte de aborrecimentos tão contínuos e infindos, que ninguém os suportaria. Em segundo lugar, a terra é algo irremovível, ao passo que o capital pode ser removido com facilidade. O proprietário de terra é inevitavelmente um cidadão do país em que está localizada sua propriedade. O proprietário de capital é propriamente um cidadão do mundo, não estando necessariamente ligado a algum país determinado. Ele facilmente deixaria o país no qual estivesse exposto a uma sindicância vexatória, visando onerá-lo com um imposto incômodo e transferiria seu capital a algum outro país em que pudesse continuar seu negócio ou desfrutar de sua fortuna mais à vontade. Ao retirar seu capital, ele poria fim a todo o trabalho que esse capital havia mantido no país que deixou. O capital cultiva a terra; o capital emprega a mão-de-obra. Sob esse aspecto, um imposto que tendesse a desviar capital de determinado país tenderia a fazer secar toda fonte de receita, quer para o soberano, quer para a sociedade. Com a retirada desse capital, inevitavelmente diminuiria, em grau maior ou menor, não somente o lucro do capital, mas também a renda da terra e os salários do trabalho. Em conseqüência, as nações que tentaram taxar a renda proveniente do capital, em vez de praticarem alguma sindicância rigorosa desse tipo, têm-se visto obrigadas a contentar-se com alguma estimativa muito vaga e portanto mais ou menos arbitrária. A desigualdade e incerteza extremas de um imposto calculado dessa maneira só podem ser compensadas pela extrema moderação do imposto, e com isso cada um será taxado tão abaixo de sua renda real que não se preocupará muito, ainda que o imposto cobrado de seu vizinho seja um pouco mais baixo. Pelo assim chamado imposto sobre a terra da Inglaterra, pretendia-se que o capital fosse taxado na mesma proporção que a terra. Quando o imposto sobre a terra era de 4 xelins por libra, ou de 1/5 da renda suposta, pretendia-se que o capital fosse taxado em 1/5 dos juros supostos. Quando se introduziu pela primeira vez o atual imposto 303
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anual sobre a terra, a taxa legal de juros era de 6%. Em conseqüência, supunha-se que cada 100 libras esterlinas de capital fosse taxada com 24 xelins — 1/5 de 6 libras. Desde que a taxa legal de juros foi reduzida para 5%, supõe-se que cada 100 libras de capital sejam taxadas apenas com 20 xelins. A soma a ser recolhida pelo assim chamado imposto sobre a terra foi dividida entre o campo e as cidades principais. A maior parte dela foi cobrada do campo; e da parcela que foi cobrada das cidades, a maior parte foi das casas. O que restava a ser cobrado do capital ou do comércio das cidades (pois não se pretendia taxar o capital agrícola) estava muito abaixo do valor real desse capital ou comércio. Por esse motivo, quaisquer que fossem as desigualdades que pudessem ocorrer na cobrança original, elas pouco preocupavam. Cada paróquia e distrito ainda continuam a ser taxados pelas suas terras, suas casas e seu capital, com base na avaliação original; e a prosperidade quase geral do país, que na maioria dos lugares fez aumentar muitíssimo o valor de todos eles, fez com que essas desigualdades se tornassem ainda menos relevantes nos dias de hoje. Já que também a taxa para cada distrito continuou sempre a mesma, diminuiu muitíssimo a incerteza desse imposto, na medida em que ele podia ser cobrado sobre o capital de qualquer indivíduo, e ao mesmo tempo essa incerteza perdeu muitíssimo de sua importância. Se a maior parte das terras da Inglaterra não são taxadas pela metade de seu valor efetivo, a maior parte do capital da Inglaterra talvez dificilmente seja taxada a 1/5 de seu valor efetivo. Em algumas cidades, todo o imposto sobre a terra é cobrado das casas — como em Westminster, onde o capital e o comércio são isentos. O mesmo não acontece em Londres. Em todos os países, tem-se evitado cuidadosamente uma sindicância rigorosa em torno das condições das pessoas particulares. Em Hamburgo, !29 cada habitante é obrigado a pagar ao Estado 0,25% de tudo o que possui; e uma vez que a riqueza da população de Hamburgo consiste principalmente em capital, esse tributo pode ser considerado como um imposto sobre o capital. Cada um taxa-se a si mesmo e, na presença do magistrado, carreia anualmente para os cofres públicos certa quantia de dinheiro, que declara sob juramento representar 0,25% de tudo o que possui, mas sem declarar o montante de suas posses ou sem estar sujeito a qualquer inspeção no tocante a isso. Costuma-se supor que esse imposto é pago com grande fidelidade. Em uma pequena república, onde as pessoas confiam inteiramente em seus magistrados, elas estão convencidas da necessidade do imposto para cobrir os gastos do Estado e acreditam que o imposto será aplicado fielmente para esse fim, pode-se às vezes esperar tal pagamento consciencioso e voluntário. Ele não é privativo da população de Hamburgo. O cantão de Underwald, na Suíça, é continuamente assolado por tempestades e inundações, estando pois exposto a despesas extraordiná29
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rias. Em tais ocasiões, o povo se reúne e, segundo se conta, cada um declara com franqueza suas posses, para ser taxado de acordo. Em Zurique, manda a lei que, em casos de necessidade, cada um seja taxado proporcionalmente à sua renda, cujo montante é obrigado a declarar sob juramento. A população, segundo se afirma, não tem nenhuma suspeita de que algum de seus concidadãos sonegue. Em Basiléia, a receita principal do Estado provém de uma pequena taxa alfandegária imposta às mercadorias exportadas. Todos os cidadãos fazem juramento de que pagarão a cada três meses todas as taxas impostas por lei. Confia-se a todos os comerciantes, e até a todos os proprietários de hospedarias, a contabilização das mercadorias que vendem dentro ou fora do território. Ao final de cada três meses enviam as contas ao tesoureiro, juntamente com o montante do imposto computado, na parte inferior do extrato contábil. Não há suspeitas de que essa confiança depositada nos cidadãos acarrete prejuízos para a receita.30 Ao que parece, nesses cantões suíços não se deve considerar incômodo obrigar todo cidadão a declarar publicamente, sob juramento, o montante de suas posses. Em Hamburgo, isso seria tido como máximo incômodo. Os comerciantes engajados nos arriscados empreendimentos comerciais tremem ao pensamento de serem obrigados todas as vezes a expor sua situação financeira real. Prevêem que demasiadas vezes a conseqüência disso seria a ruína de seu crédito e o malogro de seus projetos. Um povo sóbrio e parcimonioso, alheio a todos esses tipos de empreendimentos, não acredita precisar desse tipo de sigilo. Na Holanda, logo depois da elevação do último príncipe de Oranges ao estatuderato, impôs-se um tributo de 2% ou o quinto pêni, como se denominava, sobre o total das posses de cada cidadão. Cada um taxava-se a si mesmo e pagava seu imposto da mesma forma que em Hamburgo; e geralmente supunha-se que o imposto era pago com grande fidelidade. Naquela época o povo nutria a maior afeição pelo seu novo governo, que havia justamente implantado através de uma insurreição geral. Só se precisava pagar o imposto uma vez, com o fim de aliviar o Estado em uma necessidade específica. Com efeito, ele era pesado demais para ser permanente. Em um país em que a taxa de juros de mercado raramente supera 3%, um imposto de 2% representa 13 xelins e 4 pence por libra sobre a renda líquida mais alta que se costuma auferir do capital. É um imposto que muito poucos poderiam pagar sem mexer, mais ou menos, com seus capitais. Em determinada necessidade, o povo, levado por grande zelo pela coisa pública, pode fazer um grande esforço e até mesmo abrir mão de uma parte de seu capital, a fim de aliviar o Estado. Mas é impossível que ele continue a fazer isso por muito tempo; e se o fizesse, o imposto logo arruinaria o povo a tal ponto, que ele se tornaria simplesmente incapaz de manter o Estado. 30
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O tributo sobre o capital, imposto pela lei sobre o imposto territorial na Inglaterra, conquanto seja proporcional ao capital, não visa a diminuir ou a retirar o que quer que seja desse capital. Pretende-se que ele seja apenas um imposto sobre os juros do dinheiro, proporcional ao tributo incidente sobre a renda da terra; de tal maneira que, quando esse último for de 4 xelins por libra, também o primeiro possa ser de 4 xelins por libra. Também o imposto vigente em Hamburgo e os impostos ainda mais modestos de Underwald e Zurique não se destinam a ser impostos sobre o capital, mas sobre os juros ou a renda líquida do capital. Já o da Holanda destinava-se a ser um imposto sobre o capital. Impostos sobre o lucro de aplicações específicas de capital Em alguns países, impõem-se tributos extraordinários sobre os lucros do capital; às vezes, quando este é empregado em setores específicos do comércio e às vezes quando aplicado na agricultura. Ao primeiro tipo pertencem, na Inglaterra, o imposto para vendedores ambulantes e mascates, o imposto sobre carruagens e liteiras de aluguel e o que pagam os donos de casas de cerveja por uma licença que os autoriza a vender no varejo cerveja inglesa e licores alcoólicos. Durante a recente guerra, propôs-se um outro imposto do mesmo tipo sobre as lojas. Alegou-se que, pelo fato de o país ter entrado na guerra em defesa de seu comércio, os comerciantes, que por ela seriam beneficiados, tinham que contribuir para pagar os custos da mesma. Entretanto, um imposto sobre os lucros do capital empregado em qualquer ramo do comércio nunca pode recair, em última análise, sobre os vendedores (que, em todos os casos comuns, devem ter seu razoável lucro e, lá onde a concorrência é livre, raramente podem ter um lucro superior a isto), mas sempre sobre os consumidores, que inevitavelmente são obrigados a pagar, no preço das mercadorias, o imposto adiantado pelo comerciante e, ainda por cima, geralmente com algum acréscimo. Um imposto desse gênero, quando é proporcional ao volume de negócios do comerciante, ao final é pago pelo consumidor, não acarretando opressão alguma para o comerciante. Quando essa proporcionalidade não existe, sendo igual o imposto para todos os comerciantes, embora também nesse caso ele seja, em última análise, pago pelos consumidores, mesmo assim favorece aos grandes comerciantes e é um tanto opressivo para os pequenos. O imposto de 5 xelins sobre cada carruagem de aluguel e o de 10 xelins anuais sobre cada liteira de aluguel, na medida em que é pago adiantadamente pelos que operam com tais carruagens e liteiras, mantém uma proporcionalidade suficientemente exata com o volume de negócios de cada um. Não favorece o comerciante de grande porte nem oprime o de pequeno. O imposto de 20 xelins anuais que se paga por uma licença para vender cerveja inglesa, de 40 xelins por uma licença para vender licores alcoólicos e de outros 40 xelins por uma licença para vender vinho, pelo fato de 306
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serem os mesmos para todos os comerciantes varejistas, inevitavelmente proporciona alguma vantagem para os grandes comerciantes e acarreta certa opressão para os pequenos. Os primeiros necessariamente encontram mais facilidade que os segundos para ressarcir-se do imposto, no preço de suas mercadorias. Todavia, o baixo valor desse imposto faz com que essa desigualdade seja menos importante, sendo que aliás muitos podem não considerar contra-indicado desestimular um pouco a proliferação de pequenas casas de venda de cerveja. O imposto sobre as lojas foi pensado para ser igual para todas elas. Aliás, dificilmente poderia ser de outra forma. Teria sido impossível fazer com que houvesse uma proporção aceitavelmente precisa entre o imposto sobre a loja e o valor da movimentação de mercadorias nela efetuada, sem uma sindicância tal que teria sido totalmente insuportável em um país livre. Se o imposto tivesse sido grande, teria oprimido os pequenos comerciantes e forçado a concentração de quase todo o comércio varejista nas mãos dos comerciantes de porte. Eliminando-se a concorrência dos comerciantes menores, os de maior porte gozariam de um monopólio do comércio e, como todos os outros monopolistas, logo se mancomunariam para aumentar seu lucro além do necessário para pagar o imposto. O pagamento final, em vez de recair sobre o lojista, teria recaído sobre o consumidor, com uma sobrecarga considerável para o lucro do lojista. Por essas razões, abandonou-se o projeto de taxar as lojas, sendo esse imposto substituído pelo subsídio de 1759. O que na França se denomina talha pessoal representa, possivelmente, o mais importante imposto sobre os lucros de capital aplicado na agricultura que se conhece em qualquer país da Europa. Na situação de desordem da Europa durante a vigência do governo feudal, o soberano era obrigado a contentar-se em taxar aqueles que eram muito fracos para se recusarem a pagar impostos. Os grandes senhores feudais, conquanto dispostos a ajudá-lo em emergências especiais, recusavam sujeitar-se a qualquer imposto constante e o soberano não dispunha de força suficiente para pressioná-los. A maior parte dos ocupantes de terra, em toda a Europa, eram originalmente os escravos. Na maior parte da Europa, conseguiram gradativamente sua emancipação. Alguns deles adquiriram a propriedade das terras que mantinham por força de algum título inferior ou plebeu, às vezes sob a proteção do rei, e às vezes de algum outro grande senhor, como os antigos foreiros da Inglaterra. Outros, sem adquirirem a propriedade, conseguiram arrendamentos para vários anos das terras que ocupavam sob a proteção de seu senhor, tornando-se assim menos dependentes deles. Os grandes senhores parecem ter olhado com uma indignação violenta e desdenhosa o grau de prosperidade e independência que essa categoria inferior de pessoas passara assim a desfrutar, e de bom grado passaram a consentir que o soberano os tributasse. Em alguns países, esse imposto se limitava às terras que eram possuídas por força de um título plebeu de posse, e nesse caso dizia-se que a talha era real. O imposto territorial criado pelo último rei da Sardenha, e 307
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a talha nas províncias de Languedoc, Provença, Delfinado e na Bretanha, na generalidade de Montauban, e nas eleições31 Agen e Condom, bem como em alguns outros distritos da França, são impostos sobre terras possuídas por força de um título plebeu de posse. Em outros países, o tributo foi imposto aos supostos lucros de todos aqueles que exploravam, como arrendatários, terras pertencentes a outras pessoas, qualquer que fosse o título que garantisse a posse do proprietário, e nesse caso dizia-se que a talha era pessoal. Na maior parte das províncias da França que são chamadas Países de Eleições a talha é desse tipo. A talha real, por ser imposta somente a uma parte das terras do país, é inevitavelmente desigual, mas nem sempre é um imposto arbitrário, ainda que o seja em alguns casos. A talha pessoal, pelo fato de pretender ser proporcional aos lucros de uma determinada categoria de pessoas, que só pode ser estimada conjecturalmente, é inevitavelmente arbitrária e também desigual. Na França, a talha pessoal hoje (1775) imposta anualmente às 20 generalidades, denominadas Países de Eleições, chega a 40 107 329 libras francesas e 16 soldos.32 A proporção em que essa soma é imposta às diversas províncias varia de ano para ano, conforme os relatórios enviados ao Conselho Régio sobre a abundância ou a escassez das safras e de acordo com outras circunstâncias, que podem aumentar ou reduzir as possibilidades que cada província tem de pagar. Cada generalidade é dividida em certo número de eleições e a proporção em que a soma imposta a toda a generalidade é dividida entre essas diversas eleições também varia de ano para ano, conforme os relatos enviados ao Conselho Régio no tocante às suas respectivas capacidades de pagamento. Parece impossível que o Conselho, mesmo com as melhores intenções, possa ajustar, com exatidão aceitável, essas duas cobranças às capacidades reais da província ou distrito aos quais são respectivamente impostos. Inevitavelmente, a falta de conhecimento e as informações incorretas sempre induzem a erro, maior ou menor, até o Conselho mais honesto. A proporção em que cada paróquia deve arcar com aquilo que é imposto à eleição inteira e aquela que cada indivíduo deve custear do que é cobrado de sua paróquia específica, ambas variam de ano para ano, conforme se supõe exigirem as circunstâncias. Essas circunstâncias são avaliadas, no primeiro caso, pelos oficiais da eleição e, no segundo, pelos da paróquia; ora, tanto uns como outros estão, em grau maior ou menor, sob a direção e a influência do intendente. Pelo que se ouve, tais cobradores são induzidos a erro não somente pela falta de conhecimento e por deficiência de informação corretas, mas também pela amizade, pela animosidade facciosa e pelo 31
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Datando de 1380, a eleição era um serviço de administração financeira, um tribunal e a circunscrição geográfica onde essas duas funções eram exercidas. Contrapondo-se aos Países de Eleições, havia os Países de Estados, nos quais a arrecadação de subsídios e sua distribuição eram atribuídas aos Estados provinciais. (N. do E.) Mémoires Concernat les Droits & Impositions en Europe, t. II, p. 17. 308
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ressentimento particular. É evidente que nenhuma pessoa sujeita a esse imposto jamais sabe com certeza o que terá que pagar, antes da taxação efetiva. Nem mesmo depois de ser taxado, pode ter certeza. No caso de haver sido taxada uma pessoa que deveria ter sido isenta, ou se alguém foi taxado além da proporção que lhe cabia, ainda que ambos devam pagar por ora; se essas pessoas apresentarem queixa e esta se comprovar fundada, a paróquia toda é taxada novamente no ano subseqüente, a fim de reembolsá-las. Se algum contribuinte for à falência ou cair na insolvência, o coletor é obrigado a adiantar o imposto dele e a paróquia toda é novamente taxada no ano seguinte, para reembolsar ao coletor. Se o próprio coletor falir, a paróquia que o elege é obrigada a responder por sua conduta perante o coletor-geral da eleição. Mas, já que poderia ser incômodo para esse coletor processar a paróquia inteira, escolhe livremente cinco ou seis de seus contribuintes mais ricos, obrigando-os a reparar a perda causada pela insolvência do coletor. A paróquia é depois novamente taxada, a fim de reembolsar a esses cinco ou seis ricos. Tais novas cobranças sempre vão além da talha do ano específico em que eram cobradas. Quando se cobra um imposto sobre os lucros do capital em determinado setor do comércio, os comerciantes todos tomam cuidado para não colocar em oferta mais mercadorias do que quanto podem vender a um preço suficiente para reembolsar-lhes o imposto pago adiantadamente. Alguns deles retiram uma parte de seus estoques do comércio e o mercado passa a estar mais subabastecido que antes. O preço das mercadorias sobe e o pagamento final do imposto recai sobre o consumidor. Mas, quando se cobra um imposto dos lucros do capital aplicado na agricultura, os arrendatários não têm interesse em retirar nenhuma parcela de seu capital dessa aplicação. Cada um ocupa determinada área de terra pela qual paga uma renda. Para o cultivo adequado de sua terra, é necessário certo montante de capital; ora, retirando qualquer parcela desse montante necessário, o arrendatário provavelmente não terá maior possibilidade de pagar a renda ou o imposto. Para pagar o imposto, ele jamais pode ter interesse em reduzir o volume de sua produção, nem conseqüentemente em colocar no mercado menos produção do que antes. Portanto, o imposto nunca lhe possibilitará elevar o preço de sua produção, de maneira a poder ressarcir-se dele descarregando o pagamento final do mesmo sobre o consumidor. Entretanto, o arrendatário deve ter assegurado seu justo lucro, tanto como qualquer outro comerciante, pois do contrário tem que abandonar seu negócio. Depois da imposição de um tributo desses, ele só pode conseguir esse lucro justo pagando uma renda menor ao dono da terra. Quanto mais for obrigado a pagar de imposto, tanto menos pode permitir-se pagar de renda. Sem dúvida, em tributo desse gênero, imposto durante a vigência de um arrendamento, pode abater ou arruinar o arrendatário. Na renovação do contrato, ele inevitavelmente recairá sobre o dono da terra. Nos países em que vigora a talha pessoal, o arrendatário costuma 309
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ser taxado proporcionalmente ao capital que demonstra aplicar no cultivo. Por essa razão, muitas vezes ele tem medo de ter uma boa parelha de cavalos ou bois, senão que procura cultivar a terra com os instrumentos agrícolas mais ordinários e miseráveis que puder. Tal é sua desconfiança na justiça de seus cobradores, que ele simula pobreza, no desejo de parecer, na medida do possível, incapaz de pagar algo e com medo de ser obrigado a pagar demais. Com essa mísera política, talvez nem sempre atenda a seu próprio interesse da maneira mais eficaz; provavelmente perde mais com a redução de sua produção do que economiza com a redução de seu imposto. Embora, em conseqüência desse cultivo precário, o mercado seja sem dúvida um pouco menos bem abastecido, o pequeno aumento de preço que isso pode acarretar, pelo fato de provavelmente nem sequer indenizar o arrendatário pela diminuição de sua produção, tem ainda menos probabilidade de possibilitar-lhe o pagamento de uma renda mais alta ao dono da terra. Com esse mau cultivo, sofrem, com maior ou menor intensidade, o povo, o arrendatário e também o senhor da terra. Já tive ocasião de mostrar, no terceiro livro desta investigação, que a talha pessoal tende, de muitas formas, a desestimular o cultivo da terra e conseqüentemente a fazer secar a fonte primordial da riqueza de todo grande país. Os assim chamados impostos per capita (poll-taxes) nas províncias meridionais da América do Norte, e nas ilhas das Índias Ocidentais, tributos anuais per capita sobre cada negro, constituem propriamente impostos sobre os lucros de certo tipo de capital empregado na agricultura. Já que os plantadores são, em sua maior parte, ao mesmo tempo senhores e exploradores da terra, o pagamento final do imposto recai sobre eles, na qualidade de senhores da terra, sem nenhuma retribuição. Ao que parece, antigamente os impostos pagos por cabeça de escravo empregado na agricultura eram comuns em toda a Europa. Atualmente, existe um imposto desse gênero no império russo. É provavelmente por isso que impostos per capita desse tipo têm sido apresentados muitas vezes como símbolos de escravatura. No entanto, todo imposto é, para a pessoa que o paga, um símbolo não de escravatura, mas de liberdade. Sem dúvida, ele denota que o contribuinte está sujeito ao Governo, mas que, pelo fato de ter alguma propriedade, ele mesmo não pode ser propriedade de um patrão. Um imposto per capita sobre escravos é totalmente diferente de um imposto per capita incidente sobre pessoas livres. Este último é pago pelas pessoas às quais ele é imposto, ao passo que o primeiro é pago por outra categoria de pessoas. O segundo é totalmente arbitrário ou totalmente proporcional, e na maioria dos casos é uma e outra coisa; o primeiro, conquanto seja desproporcional sob alguns aspectos, porque o valor de um escravo é diferente do valor de outro, sob nenhum aspecto é arbitrário. Cada patrão que conhece o número de seus escravos sabe exatamente o que deve pagar. E, no entanto, esses impostos diferentes, pelo fato de terem a mesma denominação, têm sido considerados como da mesma natureza. 310
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Os tributos que na Holanda se impõem a criados e criadas incidem sobre gastos e não sobre capital, assemelhando-se sob este aspecto aos impostos sobre mercadorias de consumo. Da mesma espécie é o tributo de um guinéu per capita sobre criados, recentemente imposto na GrãBretanha. Ele é o mais pesado para a classe média. Uma pessoa com renda de 200 libras anuais pode manter um único criado. Uma com renda de 10 mil por ano não chega a manter cinqüenta. O imposto não afeta os pobres. Os impostos sobre lucros de determinadas aplicações de capital nunca podem afetar os juros do dinheiro. Ninguém emprestará seu dinheiro àqueles que empregam o capital em aplicações taxadas a juros inferiores aos cobrados daqueles que o empregam em aplicações não sujeitas a imposto. Em muitos casos, os impostos incidentes sobre a renda oriunda de capital em todas as aplicações onde o Governo procura recolhê-los com algum grau de exatidão recairão sobre os juros do dinheiro. O vingtième33 ou vigésimo pêni, na França, é um imposto do mesmo tipo que o assim chamado tributo inglês sobre a terra, sendo também cobrado sobre a renda proveniente de terras, casas e capital. Na medida em que ele afeta o capital, é cobrado, se não com grande vigor, ao menos com precisão muito maior do que aquela parte do tributo territorial inglês que se impõe ao mesmo fundo. Em muitos casos ele incide totalmente sobre os juros do dinheiro. Na França, o capital é freqüentemente aplicado nos chamados contratos para a constituição de um arrendamento; isto é, renda anual permanente resgatada a qualquer tempo pelo devedor como parcelas da restituição da soma originalmente adiantada, mas cuja devolução não é exigível pelo credor, exceto em casos particulares. O vingtième não parece ter aumentado a taxa dessas rendas anuais embora ele seja recolhido com exatidão sobre todas elas. APÊNDICE AOS ARTIGOS I E II Impostos sobre o valor-capital de terras, casas e capital Enquanto a propriedade continua a pertencer ao mesmo dono, quaisquer que sejam os tributos permanentes que se lhe tenha imposto, nunca se pretendeu que eles reduzissem ou retirassem alguma parte de seu valor-capital, mas apenas uma parte do rendimento dela derivado. Todavia, quando o proprietário muda, quando a propriedade é transferida, seja de mortos para vivos, seja entre vivos, muitas vezes se lhe tem imposto tributos tais, que necessariamente subtraem uma parcela do valor-capital. A transferência de qualquer tipo de propriedade de mortos e vivos e a de propriedades imóveis — terras ou casas — entre vivos constituem 33
Imposto criado em 1749 que incidia em 5% sobre todos os rendimentos declarados pelos contribuintes. (N. do E.) 311
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transações que, por sua natureza, são públicas ou notórias; ou, ao menos, não podem ficar ocultas por muito tempo. Por isso, essas transações podem ser objeto de taxação direta. A transferência de título, ou seja, de propriedade móvel entre vivos, mediante empréstimo de dinheiro, muitas vezes é uma transação secreta, podendo sempre ser efetuada em sigilo. Dificilmente se presta, pois, à taxação direta. Ela tem sido taxada, indiretamente, de dois modos diferentes: primeiro, exigindo que o título que contém a obrigação de restituir o empréstimo seja consignado em papel ou pergaminho que tenha pago determinado imposto de selo, sob pena de invalidade do ato; segundo, exigindo, também aqui sob pena de invalidade, que o documento seja apontado em um registro público ou secreto, impondo-se determinadas taxas a esse ato de registro. Têm-se outrossim cobrado impostos de selo e taxas de registro aos títulos que transferem propriedade de qualquer tipo, de morto para vivos, e aos que transferem propriedades imóveis entre vivos, transações estas que facilmente poderiam ter sido taxadas diretamente. A Vicesima Hereditatum, ou seja, o vigésimo pêni sobre heranças, imposto por Augusto aos antigos romanos, era um tributo incidente sobre a transferência de propriedade, de mortos para vivos. Dion Cássio,34 autor que escreve sobre o assunto com menos obscuridade, afirma que esse tributo era imposto a todas as sucessões, legados e doações, em caso de morte, salvo em se tratando de transferência aos parentes mais próximos e aos pobres. Ao mesmo gênero pertence o imposto holandês sobre sucessões.35 As sucessões colaterais são tributadas, conforme for o grau de parentesco, com uma taxa que vai de 5% até 30% do valor total da sucessão. Às mesmas taxas estão sujeitas as doações por testamento ou os legados a parentes colaterais. Os que são feitos do marido para a mulher ou da mulher para o marido estão sujeitos ao 15º pêni. A Luctuosa Hereditas, a sucessão lutuosa de ascendentes para descendentes, está sujeita apenas ao 20º pêni. As sucessões diretas, isto é, as de descendentes para ascendentes, são isentas. Para os filhos que vivem com o pai na mesma casa, sua morte raramente acarreta para eles um aumento de renda, senão que em muitos casos gera uma redução, devido à perda de sua atividade, de seu cargo ou de alguma renda vitalícia sobre bens, à qual eventualmente tinha direito. Seria cruel e opressivo o imposto que agravasse a perda sofrida pelos filhos, privando-os de alguma parte de sua herança. Todavia, pode às vezes ser diferente o caso daqueles filhos que, na linguagem do Direito romano, se denominam emancipados, e que na linguagem do Direito escocês são denominados egressos da família, isto é, que já receberam sua parte, constituíram sua própria família e são sustentados com fundos diferentes e 34 35
Livro Qüinquagésimo Quinto. Ver também BURMAN. De Vectigalibus Populi Romani, capítulo XI, e BOUCHAUD. De l’Impôt du Vingtième sur les Successions. Ver Mémoires Concernant les Droits & Impositions en Europe, t. I, p. 225. 312
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independentes dos de seu pai. Qualquer parcela da sucessão paterna que adviesse a tais filhos, constituiria um acréscimo real à fortuna deles, podendo, pois, possivelmente estar sujeitos a alguma taxa, sem que houvesse outro inconveniente além do que acarretam todos os impostos desse tipo. As casualties36 da lei feudal eram impostos incidentes sobre a transferência de terra, tanto dos mortos para vivos, como entre vivos. Antigamente, em toda a Europa eles representavam uma das principais fontes de receita da Coroa. O herdeiro de cada vassalo imediato da Coroa pagava uma certa taxa, geralmente uma renda anual, ao ser investido da propriedade. Se o herdeiro fosse menor de idade, todas as rendas da propriedade, enquanto persistisse a condição de menoridade, iam para o superior sem nenhum ônus, a não ser a manutenção do menor e o pagamento da terça à viúva, quando acontecia haver na terra uma viúva que conservasse o uso do título ou propriedade do marido. Quando o menor atingia a maioridade, uma outra taxa, que geralmente também equivalia a uma renda anual, continuava a ser devida ao superior. Um período de menoridade prolongado, que nos tempos de hoje, com tanta freqüência, livra uma grande propriedade de todos os ônus e encargos que sobre ela pesam, fazendo com que a família readquira seu antigo esplendor, não podia ter o mesmo efeito naquela época. O efeito normal de uma menoridade prolongada era o desperdício e não a desoneração da propriedade. Pela lei feudal, o vassalo não podia alienar sem o consentimento de seu superior, o qual costumava extorquir uma compensação ou “acerto” para concedê-lo. Essa compensação, que de início era arbitrária, em muitos países passou a equivaler a determinada parcela do preço da terra. Em alguns países em que a maior parte dos demais costumes feudais caíram em desuso, esse imposto sobre a alienação de terras continua ainda a representar uma fonte bastante considerável da receita do soberano. No cantão de Berna, ele chega a representar 1/6 do preço de todos os feudos nobres e 1/10 do preço de todos os feudos plebeus.37 No cantão de Lucerna, o imposto sobre a venda de terras não é universal, tendo vigência somente em determinados distritos. Mas se alguma pessoa vender sua terra para sair do território, paga 10% sobre o preço total de venda.38 Taxas do mesmo gênero sobre a venda de terras, seja de todas elas, seja daquelas cuja propriedade é garantida por determinados títulos, vigoram em muitos outros países, representando uma parte mais ou menos considerável da receita do soberano. 36 37 38
Termo inglês que designava, na época feudal, os tributos que, no feudalismo português, eram denominados “lutuosa” e “laudêmio”, o primeiro referente à transferência da posse da terra por morte do titular; o segundo, à transferência por alienação inter vivos. (N. do E.) Mémoires Concernant les Droits & Impositions en Europe, t. I, p. 154. Ibid., p. 157. 313
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Tais transações podem ser taxadas indiretamente, por meio de impostos de selo ou então de taxas de registro; essas taxas, por sua vez, podem ser ou não proporcionais ao valor do objeto transferido. Na Grã-Bretanha, os impostos de selo são mais altos ou mais baixos, não tanto de acordo com o valor da propriedade transferida (sendo suficiente um selo de 18 pence ou de meia coroa sobre um contrato para a quantia máxima de dinheiro), mas antes conforme a natureza do título. Os mais altos não ultrapassam 6 libras por cada folha de papel ou pele de pergaminho; essas altas taxas recaem principalmente sobre doações da Coroa e sobre certos processos legais, não tendo nenhuma relação com o valor do objeto. Não há, na Grã-Bretanha, taxas para registro de títulos ou documentos, excetuados os honorários dos oficiais de registro, os quais em raros casos representam mais do que uma remuneração razoável pelo seu trabalho. A Coroa não aufere receita alguma deles. Na Holanda,39 há tanto imposto de selo quanto taxas de registro, os quais em alguns casos são proporcionais ao valor da propriedade transferida e em outros não. Todos os testamentos devem ser escritos em papel timbrado, cujo preço é proporcional à propriedade transferida, de maneira que há selos que custam desde 3 pence, ou 3 stivers40 por folha, até 300 florins, equivalentes a aproximadamente £ 27 10 s em nossa moeda. Se o selo for de preço inferior àquele que o testador deveria ter utilizado, a sucessão é confiscada; isto além de todas as outras taxas vigentes na Holanda para os casos de sucessão. Excetuadas as letras de câmbio e alguns outros títulos comerciais, todos os demais títulos, compromissos e contratos estão sujeitos a pagar selo. Entretanto, essa taxa não aumenta em proporção ao valor do objeto. Todas as vendas de terras e de casas, e todas as hipotecas sobre umas e outras, têm que ser registradas e no ato do registro pagam ao Estado uma taxa de 2,5% do montante do preço ou da hipoteca. Essa taxa estende-se à venda de todos os navios e embarcações de mais de duas toneladas de capacidade, quer tenham ou não cobertura. Ao que parece, essas embarcações são consideradas uma espécie de casas sobre a água. A venda de bens móveis, quando ordenada por um tribunal judicial, está sujeita à mesma taxa de 2,5%. Na França tanto existem impostos de selo como taxas de registro. Os primeiros são considerados como um setor dos impostos de consumo, e nas províncias em que vigoram são recolhidos pelos oficiais do imposto de consumo. As taxas de registro são consideradas um setor do domínio da Coroa, sendo recolhidas por outra categoria de oficiais. Essas modalidades de taxação, por meio de selo e de taxas de registro, são de invenção bem moderna. No entanto, no decurso de pouco mais de um século os impostos de selo se tornaram quase universais na Europa, e as taxas de registro se tornaram extremamente 39 40
Mémories Concernant les Droits & Impositions en Europe, t. I, pp. 223, 224, 225. Antiga moeda holandesa de pouco valor. (N. do E.) 314
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comuns. Não existe arte que um governo aprenda do outro com maior rapidez, do que a de extrair dinheiro dos bolsos da população. Os impostos sobre transferências de propriedade de mortos para vivos recaem, em última análise e também diretamente, sobre a pessoa à qual se faz a transferência. Os impostos sobre a venda de terras recaem totalmente sobre o vendedor. Este quase sempre está na necessidade de vender, devendo, portanto, contentar-se com o preço que conseguir. O comprador raramente está na necessidade de comprar e por isso só pagará o preço que quiser. Ele leva em consideração o que a terra lhe custará, em taxas e preço conjuntamente. Quanto mais for obrigado a pagar de imposto, tanto menos estará disposto a pagar como preço. Tais taxas, portanto, quase sempre recaem sobre uma pessoa em necessidade e por isso muitas vezes são necessariamente muito penosas e opressivas. Os impostos sobre a venda de casas recém-construídas, em que a construção é vendida sem o terreno, costumam recair sobre o comprador, pois o construtor geralmente precisa assegurar seu lucro, sob pena de abandonar a ocupação. Se, portanto, for ele quem adiantar o pagamento do imposto, o comprador geralmente tem que reembolsá-lo. Os impostos pela venda de casas usadas, pela mesma razão que os que incidem sobre a venda de terra, costumam recair sobre o vendedor, que na maioria dos casos é obrigado a vender por conveniência ou por necessidade. O número de casas recém-construídas colocadas à venda anualmente é mais ou menos regulado pela procura. Se a demanda não for tal que esteja garantido o lucro do construtor, depois de pagar todas as despesas, este não construirá novas casas. O número de casas usadas que em qualquer momento são colocadas à venda é regulado por eventos que, na maior parte, nada têm a ver com a demanda. Duas ou três grandes falências em uma cidade comercial são suficientes para que sejam colocadas à venda muitas casas velhas, que têm que ser vendidas pelo preço que se obtiver. Os impostos sobre a venda de rendas de terreno recaem por inteiro sobre o vendedor, pelo mesmo motivo que os impostos incidentes sobre a venda de terra. Impostos de selo e taxas de registro sobre compromissos e contratos de empréstimo de dinheiro recaem totalmente sobre o tomador e efetivamente sempre são pagos por ele. As taxas do mesmo gênero, incidentes sobre processos judiciais, recaem sobre as partes litigantes. Elas reduzem, para as duas partes, o valor-capital do objeto disputado. Quanto mais custar a aquisição de uma propriedade, tanto menor deve ser o valor líquido da mesma, quando adquirida. Todas as taxas sobre transferência de propriedade de qualquer espécie na medida em que reduzem o valor-capital da referida propriedade, tendem a fazer diminuir os fundos destinados à manutenção de mão-de-obra produtiva. São todas taxas mais ou menos improfícuas, que aumentam a receita do soberano, o qual raramente mantém outra mão-de-obra que não a improdutiva; aliás, à custa do capital da população, que só mantém mão-de-obra produtiva. 315
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Tais taxas ou impostos, mesmo quando são proporcionais ao valor da propriedade transferida, continuam a ser desiguais, já que a freqüência da transferência não é sempre igual em propriedades de valor igual. São ainda muito mais desiguais quando não são proporcionais a esse valor — o que ocorre com a maior parte dos impostos de selo e das taxas de registro. De forma alguma são arbitrários, mas são ou podem ser em todos os casos perfeitamente claros e definidos. Ainda que por vezes recaiam sobre a pessoa que não tem muita capacidade para pagar, a data do pagamento é na maioria dos casos suficientemente conveniente para o contribuinte. No vencimento do imposto, o contribuinte, na maioria dos casos, deve ter o dinheiro para pagar. A despesa do recolhimento é mínima e geralmente não sujeita o contribuinte a nenhum outro inconveniente a não ser o inevitável, de pagar o imposto. Na França, não há muita queixa contra os impostos de selo, ao passo que as taxas de registro, que os franceses chamam de controle, são objeto de tais reclamações. Alega-se que dão margem a muita extorsão por parte dos oficiais do administrador geral que recolhe a taxa, a qual, na maioria dos casos, é altamente arbitrária e indefinida. Na maior parte dos libelos que se tem escrito contra, o atual sistema financeiro vigente na França, os abusos em torno das taxas de registro representam um artigo primordial. Contudo, não parece que a indefinição seja necessariamente inerente à natureza dessas taxas. Se as queixas da população forem bem fundadas, inevitavelmente o abuso provém não tanto da natureza da taxa mas antes da falta de precisão e de clareza de expressão dos editos ou leis que a impõem. O registro de hipotecas, e, de modo geral, de todos os direitos sobre bens imóveis, por dar grande segurança tanto aos credores como aos compradores, é extremamente vantajoso para o público. O registro da maior parte dos títulos de outros tipos muitas vezes é inconveniente e até perigoso para os indivíduos, não trazendo nenhuma vantagem para o público. É reconhecido que todos os registros que têm que ser mantidos em segredo certamente nunca deveriam existir. Inegavelmente, o crédito dos indivíduos nunca deve depender de uma segurança tão frágil como a probidade e a religião dos oficiais inferiores da receita. Ora, onde os honorários de registro foram transformados em fonte de receita para o soberano, os cartórios de registro geralmente se têm multiplicado ao infinito, tanto para os títulos que devem ser registrados, como para os que não devem. Na França existem vários tipos de registros secretos. Embora se reconheça que esse abuso talvez não seja inevitável, ele é um efeito muito natural de tais taxas. Impostos de selo como os que existem na Inglaterra sobre jogos de carta e de dados, sobre jornais e boletins periódicos etc., são propriamente impostos sobre consumo; o pagamento final deles recai sobre os usuários ou consumidores de tais mercadorias. Quanto às taxas de selo do tipo das impostas às licenças para vender cerveja, vinho e 316
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licores alcoólicos no varejo, embora na intenção talvez devessem recair sobre os lucros dos varejistas, são também elas, em última análise, pagas pelos consumidores dessas bebidas. Essas taxas, embora tenham o mesmo nome, sejam recolhidas pelos mesmos oficiais e da mesma forma que as taxas de selo acima mencionadas incidentes sobre a transferência de propriedade, são de natureza totalmente distinta e recaem sobre fundos bem diferentes. ARTIGO III Impostos sobre o salário do trabalho Como procurei mostrar no Livro Primeiro, os salários da classe inferior de trabalhadores são, em toda parte, necessariamente regulados por dois fatores distintos: a demanda de mão-de-obra e o preço normal ou médio dos mantimentos. A demanda de mão-de-obra, conforme ocasionalmente estiver aumentando, permanecendo estacionária ou estiver em declínio, ou seja, conforme exigir uma população em aumento, uma população estacionária ou uma população em declínio, regula o sustento do trabalhador e determina em que grau essa subsistência será liberal, modesta ou deficiente. O preço normal ou médio dos mantimentos determina a quantidade de dinheiro que tem que ser paga ao trabalhador para possibilitar-lhe, um ano pelo outro, a compra dessa subsistência liberal, modesta ou deficiente. Portanto, enquanto permanecerem inalteradas a demanda de mão-de-obra e o preço dos mantimentos, um imposto direto sobre os salários não pode ter outro efeito senão aumentá-los algo acima do imposto. Suponhamos, por exemplo, que em determinado lugar a demanda de mão-de-obra e o preço dos mantimentos sejam tais, que o salário comum seja de 10 xelins por semana e que se imponha aos salários um tributo de 1/5, ou seja, 4 xelins por libra. Se permanecerem inalterados a demanda de mão-de-obra e o preço dos mantimentos, continuaria a ser indispensável que o trabalhador, naquele lugar, ganhasse uma subsistência tal que pudesse ser comprada com apenas 10 xelins por semana, ou seja, que, após pagar o imposto, o trabalhador tivesse 10 xelins por semana como salário livre. Ora, para lhe deixar esse salário livre após o pagamento do imposto, o preço da mão-de-obra no referido lugar logo tem que subir, não apenas para 12 xelins por semana, mas para 12 xelins e 6 pence; isto é, para capacitar o trabalhador a pagar um imposto de 1/5, necessariamente seu salário logo deve subir, não somente de apenas 1/5, mas de 1/4. Qualquer que seja a proporção do imposto, em todos os casos o salário do trabalho tem que subir não somente na mesma proporção, mas em uma proporção maior. Se, por exemplo, o imposto foi de 1/10, o salário do trabalho deve inevitavelmente logo subir, não somente de 1/10, mas de 1/9. Conseqüentemente, não se poderia dizer com propriedade que um imposto direto sobre o salário do trabalho, ainda que o trabalhador talvez o possa pagar ele mesmo, deva ser adiantado pelo trabalhador 317
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— ao menos se a demanda de mão-de-obra e o preço médio dos mantimentos fossem os mesmos antes e depois do imposto. Em todos esses casos, não somente o imposto, mas algo mais do que ele, seria na realidade adiantado pela pessoa que diretamente lhe desse emprego. O pagamento final recairia em pessoas diferentes, conforme a diversidade dos casos. O aumento que esse imposto poderia produzir no salário da mão-de-obra manufatureira seria adiantado pelo dono da manufatura, que teria o direito e a obrigação de cobrá-lo, juntamente com um lucro, no preço de suas mercadorias. Portanto, o pagamento final desse aumento salarial, juntamente com o lucro adicional do patrão da manufatura, recairia sobre o consumidor. O aumento que tal imposto poderia ocasionar nos salários da mão-de-obra agrícola seria adiantado pelo arrendatário, o qual, para manter o mesmo contingente de mão-de-obra que antes seria obrigado a aplicar um capital maior. A fim de recuperar esse capital maior, juntamente com os lucros normais do capital, seria necessário que ele retivesse uma parcela maior — ou, o que dá no mesmo, o preço de uma parcela maior — da produção da terra e conseqüentemente pagasse menos renda ao senhorio. Portanto, o pagamento final desse aumento salarial recairia, nesse caso, sobre o dono da terra, juntamente com o lucro adicional do arrendatário que concedeu esse aumento de salário. Em todos os casos, um imposto direto sobre o salário do trabalho deve, a longo prazo, gerar tanto uma redução maior da renda da terra como um aumento maior do preço dos bens manufaturados, do que o resultante de uma cobrança de uma soma igual ao produto do imposto, em parte sobre a renda da terra e em parte sobre mercadorias de consumo. Se os impostos diretos sobre os salários do trabalho nem sempre geram um aumento proporcional dos salários, é porque geralmente ocasionaram uma queda considerável da demanda de mão-de-obra. O efeito de tais impostos tem sido geralmente o declínio do trabalho, a diminuição de empregos para os pobres, a redução da produção anual da terra e do trabalho do país. Em conseqüência desses impostos, porém, o preço da mão-de-obra sempre deverá ser mais alto do que teria sido no estado efetivo da demanda; e esse aumento do preço, juntamente com o lucro dos que o adiantam, sempre será inevitavelmente pago pelos senhores de terra e pelos consumidores. Um imposto sobre os salários da mão-de-obra agrícola não faz subir o preço da produção bruta da terra proporcionalmente ao imposto; isto, pela mesma razão que um imposto sobre o lucro do arrendatário não faz subir esse preço na citada proporção. Ainda que absurdos e destrutivos, porém, tais impostos existem em muitos países. Na França, aquela parcela da talha com que se onera a atividade dos trabalhadores e diaristas das aldeias do campo é propriamente um imposto desse gênero. Seu salário é computado segundo a taxa comum do distrito em que residem, e, para que eles possam estar sujeitos o menos possível a qualquer sobrecarga, seus ganhos anuais são estimados em não mais de duzentos dias de trabalho 318
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ao ano.41 O imposto de cada indivíduo varia de ano para ano, conforme várias circunstâncias, cujo julgamento está entregue ao critério do coletor ou do agente que o intendente designar para ajudá-lo. Na Boêmia, em decorrência da alteração no sistema de finanças que teve início em 1748, impõe-se um tributo pesadíssimo à atividade dos artífices, os quais estão divididos em quatro classes. A classe mais alta paga 100 florins por ano, os quais, a 22,5 pence por florim, representam £ 9 7s 6 d. A segunda classe paga 70 florins, a terceira 50, e a quarta, que engloba os artífices das aldeias e a categoria mais baixa operante nas cidades, 25 florins.42 Como procurei mostrar no Livro Primeiro, a remuneração dos artistas talentosos e dos profissionais liberais necessariamente mantém certa proporção com os vencimentos de profissões inferiores. Por isso, um imposto sobre essa remuneração não poderia ter outro efeito senão aumentá-la em termos um pouco mais altos do que em relação ao imposto. Se não o fizesse, as artes inventivas e as profissões liberais, pelo fato de não estarem mais em pé de igualdade com outras ocupações, seriam abandonadas a tal ponto que logo voltariam àquele nível de remuneração. Os vencimentos de cargos públicos, ao contrário dos salários das ocupações e das profissões, não são regulados pela livre concorrência do mercado e por isso nem sempre mantêm uma proporção justa com o exigido pela natureza da ocupação. Na maioria dos países talvez esses vencimentos sejam mais altos que o exigido pela sua natureza, já que os que têm a administração pública costumam estar dispostos a remunerar a si mesmos e seus dependentes imediatos acima do suficiente. Conseqüentemente, os vencimentos de cargos públicos, na maioria dos casos, suportam muito bem uma taxação. Além do mais, as pessoas que ocupam cargos públicos, em especial os mais lucrativos, são em todos os países alvo de inveja generalizada e um imposto sobre seus vencimentos, mesmo que ele fosse algo superior ao cobrado sobre qualquer outro tipo de rendimento, é sempre muito popular. Na Inglaterra, por exemplo, quando, em virtude do imposto sobre a terra, se supunha pesar sobre todos os outros tipos de renda uma taxa de 4 xelins por libra, era muito popular impor um tributo real de 5 xelins e 6 pence por libra sobre os vencimentos de cargos públicos que passassem de 100 libras anuais, excetuadas as pensões dos setores mais jovens da família real, o pagamento dos oficiais do Exército e da Marinha e alguns outros menos sujeitos à inveja. Afora esses, não há na Inglaterra outros impostos diretos sobre os salários do trabalho. ARTIGO IV Impostos que, como se pretende, devem recair indiferentemente sobre cada tipo de rendimento Os impostos que, como se pretende, devem recair indiferente41 42
Mémoires Concernant les Droits & Impositions en Europe, t. II, p. 108. Ibid., t. I, p. 87. 319
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mente sobre todos os diversos tipos de rendimento são os de capitação, bem como os impostos sobre mercadorias de consumo. Estes têm que ser pagos indiferentemente, independentemente do rendimento que os contribuintes possuírem: a renda proveniente do arrendamento de suas terras, dos lucros de seu capital ou do salário de seu trabalho. Impostos de capitação Os impostos de capitação, caso se tente torná-los proporcionais à fortuna ou ao rendimento de cada contribuinte, tornam-se totalmente arbitrários. A situação da fortuna de uma pessoa varia diariamente e, a menos que se faça uma sindicância, mais insuportável do que qualquer imposto, sindicância essa que precisa ser repetida no mínimo uma vez por ano, só pode ser calculada conjecturalmente. Por conseguinte, a taxação de tal pessoa inevitavelmente depende do bom ou mau humor de seus cobradores, devendo portanto ser totalmente arbitrária e incerta. Os impostos de capitação, se forem proporcionais à classe ou posição de cada contribuinte e não à fortuna que supostamente possui, tornam-se inteiramente desiguais, pois os graus de fortuna muitas vezes são desiguais no mesmo grau de posição. Por isso, caso se tente tornar tais impostos iguais, eles se tornam totalmente arbitrários e incertos, e caso se tente torná-los certos e não arbitrários, tornam-se totalmente desiguais. Seja o imposto leve ou pesado, a incerteza sempre é uma grande injustiça. Em um imposto leve, pode-se suportar um grau considerável de desigualdade; em um imposto pesado, ela é simplesmente insuportável. Nos diversos impostos per capita que havia na Inglaterra durante o reinado de Guilherme III, a maior parte dos contribuintes eram taxados conforme o grau de sua posição: como duques, marqueses, condes, viscondes, barões, escudeiros, fidalgos, como os filhos mais velhos e mais moços dos pares etc. Todos os lojistas e comerciantes possuidores de mais de 300 libras, isto é, a melhor categoria deles, estavam sujeitos à mesma taxação, por mais que fosse a diferença de suas fortunas. Considerava-se mais sua posição do que sua fortuna. Vários dentre aqueles que no primeiro recolhimento do imposto per capita haviam sido taxados com base em sua suposta fortuna, posteriormente foram taxados com base na posição que ocupavam. Advogados, procuradores e inspetores que no primeiro recolhimento do imposto per capita haviam sido taxados a 3 xelins por libra de sua suposta renda, posteriormente foram taxados como fidalgos. Na cobrança de um imposto que não era muito pesado, um grau notável de desigualdade foi considerado menos insuportável do que qualquer grau de incerteza. No imposto de capitação que se tem recolhido na França, sem nenhuma interrupção, desde o início do século atual, as classes mais altas são taxadas de acordo com sua posição, com base em uma tarifa invariável; as classes mais baixas são taxadas de acordo com sua suposta fortuna, com uma cobrança que varia de um ano para outro. Os 320
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oficiais da corte real, os juízes e outros oficiais nos tribunais judiciais superiores, os oficiais das tropas etc. são taxados do primeiro modo e as categorias inferiores da população das províncias são taxadas do segundo. Na França, os grandes facilmente se submetem a um grau notável de desigualdade, em se tratando de um imposto que, na medida em que os afeta, não é muito pesado, mas não poderiam tolerar a cobrança arbitrária de um intendente. As categorias inferiores, naquele país, têm que suportar com paciência o tratamento que seus superiores considerarem adequado dispensar-lhes. Na Inglaterra, os diversos impostos per capita nunca produziram a receita que deles se esperara, ou a que se supunha poderem ter produzido, se recolhidos com exatidão. Na França, a tributação per capita sempre produz a receita que dela se espera. O brando governo da Inglaterra, quando Fixava o imposto per capita para as diversas categorias, se contentava com a receita que ele gerasse, não exigindo nenhuma compensação pela perda que o Estado poderia ter da parte daqueles que não tinham condições de pagar ou então daqueles que não pagavam (já que destes havia muitos) e que, devido à indulgência usada na execução da lei, não eram forçados a pagar. O governo francês, mais severo, impõe a cada generalidade uma determinada quantia, que o intendente tem que arrecadar da mareira que puder. Se alguma província se queixar por lhe estar sendo cobrada uma taxa excessivamente alta, poderá, no recolhimento do ano subseqüente, obter uma dedução proporcional à sobrecarga do ano anterior. Até lá, porém, tem que pagar o estabelecido. O intendente, para ter certeza de arrecadar a quantia imposta à sua generalidade, tinha o poder de impor-lhe uma soma superior, a fim de que a falha ou incapacidade de alguns contribuintes pudesse ser compensada pela sobrecarga dos restantes, sendo que até 1765 a fixação dessa cobrança excedente ficava inteiramente a seu critério. Nesse ano, com efeito, o Conselho avocou a si essa competência. Segundo observa o muito bem informado autor dos Mémoires sobre os impostos na França, no tributo per capita imposto às províncias, a parcela que recai sobre a nobreza e sobre aqueles que, por seus privilégios, são isentos de pagar a talha é a menor. A maior recai sobre os que estão sujeitos à talha, para os quais o imposto per capita é de cerca de uma libra com relação ao que pagaram de talha. Os impostos de capitação, na medida em que são recolhidos das classes mais baixas da população, constituem impostos diretos incidentes sobre o salário do trabalho, acarretando todos os inconvenientes próprios de tais tributos. As despesas de recolhimento dos impostos de capitação são pequenas, e quando são cobrados com rigor, garantem uma receita muito segura para o Estado. É por este motivo que, em países em que não há muita preocupação com a tranqüilidade, o conforto e a segurança das classes inferiores da população, os impostos de capitação são muito generalizados. No entanto, no geral, em se tratando de um grande império, pequena tem sido a parcela da receita pública arrecadada 321
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desses impostos; por outro lado, o montante máximo que eles já proporcionaram ao Estado sempre poderia ter sido arrecadado de alguma outra maneira muito mais conveniente para a população. Impostos sobre bens de consumo A impossibilidade de taxar a população proporcionalmente a seu rendimento mediante qualquer imposto per capita parece ter dado origem à invenção de impostos sobre bens de consumo. Não sabendo como taxar direta e proporcionalmente a renda de seus súditos, o Estado procura taxá-la indiretamente, tributando seus gastos, os quais se supõe serem, na maioria dos casos, mais ou menos proporcionais ao rendimento das pessoas. Seus gastos são taxados, taxando os bens de consumo em que são aplicados. Os bens de consumo são artigos de necessidade ou artigos de luxo. Por artigos de necessidade entendo não somente os bens indispensáveis para o sustento, mas também tudo aquilo sem o que, por força do costume do país, é indigno passarem pessoas respeitáveis, mesmo da classe mais baixa. Assim, por exemplo, uma camisa de linho não é um artigo de necessidade para se viver, no sentido estrito. Suponho que os gregos e romanos viviam muito bem, mesmo sem terem linho. Mas nos tempos de hoje, na maior parte da Europa, um trabalhador diarista respeitável se envergonharia de aparecer em público sem uma camisa de linho, cuja falta supostamente denotaria aquele desonroso estado de pobreza no qual, como se presume, ninguém pode cair a não ser por conduta extremamente má. Analogamente, o costume fez com que sapatos de couro sejam um artigo de necessidade na Inglaterra. A pessoa respeitável, de qualquer sexo, mesmo a de condição mais pobre, se envergonharia de aparecer em público sem eles. Na Escócia, o costume fez com que os sapatos de couro sejam um artigo de necessidade para a categoria mais baixa de homens, mas não para a mesma categoria de mulheres, que sem qualquer descrédito podem andar descalças. Na França, os sapatos de couro não são artigos de necessidade nem para homens nem para mulheres, sendo que os homens e as mulheres da classe mais pobre aparecem publicamente, sem nenhum descrédito, às vezes usando calçados de madeira, às vezes descalços. Por artigos de necessidade entendo, pois, não somente as coisas que por natureza são necessárias para a camada mais baixa da população, mas também as que o são em virtude de leis correntes da decência. Todas as demais coisas eu as denomino artigos de luxo, sem com este termo pretender lançar a mínima censura a quem deles faz uso moderado. Denomino artigos de luxo, por exemplo, a cerveja e a cerveja inglesa, na Grã-Bretanha, e o vinho, mesmo nos países produtores desse artigo. Uma pessoa de qualquer classe, sem merecer nenhuma censura, pode abster-se totalmente dessas bebidas. Por natureza, elas não são necessárias para o sustento da vida e nem o costume faz com que em parte alguma seja indigno viver sem elas. Uma vez que os salários do trabalho são em todo lugar regulados 322
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em parte pela demanda de mão-de-obra e em parte pelo preço médio dos artigos necessários para a subsistência, tudo o que eleva o preço médio destes deve necessariamente fazer subir esses salários, de sorte que o trabalhador ainda possa manter a capacidade de comprar aquela quantidade desses artigos de necessidade que o estado da demanda — crescente, estacionário ou em declínio — exige que ele tenha.43 Um imposto sobre tais artigos inevitavelmente eleva seu preço algo acima do montante do imposto, pois o comerciante que adianta o pagamento do tributo geralmente precisa recuperar o valor dele com um lucro. Conseqüentemente, tal imposto tem que acarretar o aumento dos salários do trabalho, proporcionalmente a esse aumento de preço. Assim, pois, um imposto sobre os artigos de necessidade opera exatamente da mesma forma que um imposto direto sobre os salários do trabalho. Embora possivelmente seja o trabalhador que o paga, não se pode com propriedade sequer dizer que ele o adiante, ao menos não durante muito tempo. A longo prazo, o imposto a pagar sempre terá que ser adiantado ao trabalhador pelo seu empregador imediato, no aumento de seu salário. Seu empregador, se for manufator, descarregará este aumento salarial, juntamente com uma parcela de lucro, sobre o preço de suas mercadorias, de maneira que o pagamento final do imposto, juntamente com esta sobrecarga, recairá sobre o consumidor. Se o empregador for um arrendatário de terra, o pagamento final do imposto, juntamente com uma sobrecarga similar, recairá sobre a renda a ser paga ao dono da terra. Diverso é o caso com os impostos incidentes sobre o que chamo artigos de luxo, mesmo se o consumidor for da classe pobre. O aumento de preço dos bens tributados não produzirá necessariamente um aumento dos salários dos trabalhadores. Por exemplo, um imposto sobre o fumo, embora se trate de um artigo de luxo tanto para os pobres quanto para os ricos, não gerará elevação de salários. Ainda que na Inglaterra o tributo incidente sobre ele corresponda ao triplo de seu preço básico, e na França atinja 15 vezes esse preço, tais impostos elevados não parecem ter tido efeito algum sobre os salários da mão-de obra. O mesmo pode dizer-se dos impostos sobre o chá e sobre o açúcar, mercadorias que na Inglaterra e na Holanda se tornaram artigos de luxo para as camadas mais baixas da população, bem como os tributos sobre o chocolate, artigo que, pelo que consta, está hoje na mesma situação na Espanha. Não se supõe que tenham tido qualquer efeito sobre os salários dos trabalhadores os diversos tributos que na GrãBretanha têm sido impostos, no decorrer do século atual, às bebidas alcoólicas. O aumento do preço da cerveja preta decorrente de um imposto adicional de 3 xelins por barril de cerveja forte não fez subir os salários da mão-de-obra comum em Londres. Estes eram de aproximadamente 18 a 20 pence diários antes do imposto e hoje são mais altos. 43
Ver Livro Primeiro, cap. 8. 323
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O alto preço dos artigos de luxo não diminui necessariamente nas camadas inferiores da população a capacidade de constituir família. Em relação aos pobres sóbrios e operosos, os impostos sobre tais artigos agem como leis suntuárias, levando-os a moderar-se no uso de artigos supérfluos que já não podem permitir-se ou então a abster-se totalmente deles. Talvez até aconteça com freqüência que, em razão dessa frugalidade forçada, esse aumento de preço dos artigos de luxo faça aumentar sua capacidade de constituir família. São os pobres sóbrios e operosos que geralmente mantêm as famílias mais numerosas e que mais atendem à demanda de mão-de-obra útil. Sem dúvida, nem todos os pobres são sóbrios e dados ao trabalho, sendo que os dissolutos e desregrados podem até continuar a entregar-se ao uso de artigos de luxo após o aumento de seu preço da mesma forma que antes, sem atentarem para a infelicidade que isto pode acarretar para suas famílias. Entretanto, tais pessoas desregradas raramente constituem famílias numerosas; seus filhos geralmente perecem pela negligência, pela má administração, pela escassez da alimentação ou pelo fato de ser esta pouco saudável. Se, em razão do vigor de sua constituição, esses filhos sobrevivem às durezas às quais os expõem seus pais, pela sua má conduta, não cabe dúvida de que o exemplo dessa má conduta corrompe a moral dos filhos, de sorte que, em vez de serem úteis à sociedade pelo seu trabalho, se transformam em elementos perniciosos a ela, pelos seus vícios e desregramentos. Por isso, ainda que o aumento dos preços dos artigos de luxo dos pobres possa aumentar um tanto a miséria de tais famílias desregradas, e conseqüentemente diminuir um tanto sua capacidade de criar filhos, provavelmente não faria diminuir muito a população útil do país. Todo aumento do preço médio dos artigos de necessidade, a menos que seja compensado por um aumento proporcional dos salários do trabalhador, necessariamente reduz nos pobres, em grau maior ou menor, a capacidade de constituir famílias numerosas e conseqüentemente de atender à demanda de mão-de-obra útil — qualquer que seja o estado dessa demanda: em aumento, estacionário ou em declínio, ou seja, quer essa demanda exija um aumento da população, quer exija uma parada ou um declínio dela. Os impostos sobre artigos de luxo não apresentam nenhuma tendência a produzir aumento do preço de quaisquer outros bens, a não ser o das mercadorias tributadas. Os impostos sobre artigos de necessidade, por elevar os salários dos trabalhadores, tendem necessariamente a elevar o preço de todos os manufaturados e portanto a diminuir as vendas e o consumo dos mesmos. Os impostos sobre artigos de luxo são ao final pagos pelos consumidores das mercadorias taxadas, sem reembolso para estes. Recaem indistintamente sobre qualquer uma das três fontes de rendimentos: o salário do trabalho, os lucros do capital e a renda da terra. Os impostos sobre artigos de necessidade, na medida em que incidem sobre os pobres que trabalham, ao final são pagos em parte pelos donos da terra — pela redução da renda que 324
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lhes é paga — e em parte por consumidores ricos, donos de terra ou outros — pelo aumento de preço dos bens manufaturados, e sempre com uma sobrecarga considerável. O aumento do preço de manufaturados que representam artigos de necessidade e se destinam ao consumo dos pobres — como, por exemplo, lãs grosseiras — tem que ser compensado aos pobres por meio de um outro aumento de seus salários. As classes média e superior da população, se compreendessem devidamente seus próprios interesses, deveriam sempre opor-se a todos os impostos sobre artigos de necessidade, bem como a todos os impostos diretos sobre os salários do trabalho. O pagamento final de uns e de outros recai totalmente sobre elas e sempre com uma sobrecarga notável. Eles recaem o mais pesadamente sobre os proprietários de terra, que sempre pagam a duplo título: como proprietários de terra, pela redução de sua renda, e como consumidores ricos, pelo aumento de seus gastos. A observação de Sir Matthew Decker de que certos impostos são por vezes repetidos e acumulados quatro ou cinco vezes através do preço de certas mercadorias é perfeitamente justa em relação aos tributos incidentes sobre artigos de necessidade. No preço do couro, por exemplo, tem-se que pagar não somente o imposto sobre o couro dos próprios sapatos, mas também uma parte do tributo incidente sobre os sapatos do sapateiro e do curtidor. Tem-se que pagar também o imposto sobre o sal, o sabão e as velas que esses trabalhadores consomem quando trabalham para nós, bem como o imposto incidente sobre o couro que usam os produtores de sal, de sabão e de velas quando a serviço dos citados trabalhadores. Na Grã-Bretanha, os principais impostos sobre os artigos de necessidade são os que incidem sobre as quatro mercadorias que acabei de mencionar: o sal, o couro, o sabão e as velas. O sal é um produto muito antigo e muito generalizado de tributação. Era tributado entre os romanos, e acredito que o seja atualmente em todos os países da Europa. A quantidade anual consumida por cada indivíduo é tão pequena, e pode ser comprada tão gradualmente, que parece ter-se pensado que ninguém poderia ressentir-se muito de um imposto sobre este artigo, mesmo que fosse bastante pesado. Na Inglaterra, paga-se pelo sal um imposto de 3 xelins e 4 pence por alqueire: mais ou menos o triplo do preço original do produto. Em alguns outros países o imposto é ainda maior. O couro constitui um verdadeiro artigo de necessidade, o mesmo acontecendo com o sabão, pelo uso que se faz do linho. Nos países em que as noites de inverno são longas, as velas são um instrumento de trabalho necessário. Na Grã-Bretanha, o couro e o sabão são tributados com 3,5 pence por libra; as velas, com um pêni — impostos que, em relação ao preço original do couro, podem representar aproximadamente 8 ou 10%, em relação ao preço original do sabão, aproximadamente 20 ou 25%, e em relação às velas, aproximadamente 14 ou 15% — impostos esses que, embora inferiores ao que incide sobre o sal, mesmo assim são bem pesados. Pelo fato de todas essas quatro mercadorias serem verdadeiros 325
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artigos de necessidade, tais impostos pesados sobre eles necessariamente devem aumentar em algo os gastos dos pobres sóbrios e operosos, devendo conseqüentemente elevar, em grau maior ou menor, os salários de seu trabalho. Em um país em que os invernos são tão frios como na Grã-Bretanha, o combustível é, durante a citada estação, um artigo de necessidade no sentido rigoroso do termo, não somente para o preparo dos alimentos, mas também para o conforto essencial de muitos tipos de pessoas que trabalham dentro de casa; o carvão é o mais barato de todos os combustíveis. O preço do combustível exerce uma influência tão grande sobre o preço da mão-de-obra que em toda a Grã-Bretanha as manufaturas têm se limitado a instalar-se sobretudo nas regiões produtoras de carvão, já que outras regiões do país, devido ao alto preço desse artigo de necessidade, não têm condições de operar a preço tão baixo. Além disso, em algumas manufaturas o carvão constitui um instrumento indispensável de trabalho, como nas de vidro, ferro e outros metais. Se algum caso há em que seria racional criar um subsídio, talvez o seria em relação ao transporte de carvão das regiões do país em que ele abunda para aquelas em que ele escasseia. Ora, o Parlamento, em vez de instituir um subsídio, impôs um tributo de 3 xelins e 3 pence por tonelada de carvão transportado em direção à costa — o que, no caso da maior parte dos tipos de carvão, representa mais de 60% do preço original na mina. O carvão transportado por terra ou por navegação interna não paga imposto. Onde ele é naturalmente barato, é consumido sem ônus tributário; onde ele é naturalmente caro, é onerado com uma pesada taxa. Apesar de tais impostos elevarem o preço do custo de vida básico e conseqüentemente também os salários do trabalho, geram uma receita considerável para o Governo, que talvez seria difícil arrecadar de outra forma. Por isso, pode haver boas razões para mantê-los. O subsídio à exportação de trigo, na medida em que, no atual estado de cultivo agrícola, tende a elevar o preço desse artigo de necessidade, produz todos os mesmos maus efeitos, mas, em vez de gerar alguma receita para o Governo, com freqüência gera uma despesa elevadíssima. As altas taxas alfandegárias incidentes sobre a importação de trigo estrangeiro, que em anos de pouca abundância equivalem a uma proibição de importar, bem como a proibição absoluta de importar gado vivo ou mantimentos salgados — proibição essa que vigora no estado normal da lei e, devido à escassez, está atualmente suspensa por tempo limitado, em relação à importação da Irlanda e das colônias britânicas — acarretam todos os efeitos negativos próprios dos impostos incidentes sobre os artigos de necessidade, além de não gerarem receita para o Governo. Ao que parece, para a revogação de tais dispositivos basta convencer o Estado da inutilidade do sistema que levou à sua criação. Os impostos sobre os artigos de necessidade são bem maiores em muitos outros países do que na Grã-Bretanha. Em muitos países impõem-se taxas à farinha de trigo e de cereais, quando feitas no 326
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moinho, e sobre o pão, quando cozido no forno. Na Holanda, supõe-se que essas taxas fazem dobrar o preço em dinheiro do pão consumido nas cidades. Em lugar de uma parte desses impostos, a população rural paga anualmente um tanto por cabeça, conforme o tipo de pão que supostamente consome. Os que utilizam pão de trigo pagam 3 guilders e 15 stivers, em torno de 6 xelins e 9,5 pence. Esses impostos e outros do mesmo gênero, por elevarem o preço da mão-de-obra, arruinaram, segundo se diz, a maior parte das manufaturas da Holanda.44 Impostos similares, embora não tão pesados, existiam na região de Milão, nos Estados de Gênova, no ducado de Modena, nos ducados de Parma, Piacenza, Guastalla e no Estado Pontifício. Um autor francês45 de certo renome propôs a reforma das finanças de seu país substituindo a maior parte dos demais impostos por esse tributo, o mais prejudicial de todos. No dizer de Cícero, não existe absurdo algum que já não tenha sido defendido por alguns filósofos. Os impostos sobre a carne de açougue são ainda mais generalizados do que os que incidem sobre o pão. Cabe duvidar se a carne de açougue é, em algum lugar, um artigo de necessidade. Como se sabe por experiência, os cereais e outros vegetais, juntamente com leite, queijo, manteiga ou azeite — lá onde não há manteiga — podem, sem carne de açougue, propiciar a alimentação mais abundante, mais sadia, mais nutritiva e mais vigorosa. Em parte alguma a dignidade exige que se coma carne de açougue, como exige que na maioria dos lugares se use uma camisa de linho ou um par de sapatos de couro. Os artigos de consumo, sejam eles de necessidade ou de luxo, podem ser taxados de duas maneiras diferentes. O consumidor pode pagar uma quantia anual por usar ou consumir produtos de certo tipo ou então os produtos podem ser tributados enquanto estiverem nas mãos do vendedor, antes de serem entregues ao consumidor. A primeira modalidade de taxação é a mais adequada para os produtos de consumo que duram muito tempo antes de serem consumidos e a segunda é a mais apropriada para aqueles cujo consumo é mais imediato ou mais rápido. O imposto sobre carruagens e sobre prataria são exemplos da primeira modalidade, e a maior parte dos outros impostos de consumo e aduaneiros o são da segunda. Uma carruagem, se bem tratada, pode durar 10 ou 12 anos. Ela poderia ser taxada de uma vez por todas, antes de sair das mãos de seu construtor. Entretanto, certamente é mais conveniente para o comprador pagar 4 libras anuais pelo privilégio de ter uma carruagem do que pagar 40 ou 48 libras adicionais no preço ao produtor de carruagens, ou seja, uma soma equivalente ao que provavelmente lhe custará o imposto durante o período de uso da carruagem. Da mesma forma, um serviço de prataria pode durar mais de um século. Certamente é mais fácil para o consumidor pagar 5 xelins anuais para cada 100 44 45
Mémoires Concernant les Droits etc., pp. 210, 211. Le Réformateur. 327
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onças de prataria, aproximadamente 1% do valor, do que resgatar essa longa anuidade pelo valor de 5,20 ou 30 anos de uso do produto; o que aumentaria o preço no mínimo em 25% ou 30%. Certamente é mais conveniente pagar os diversos impostos sobre casas em prestações anuais moderadas do que pagar um pesado imposto de valor igual, na construção ou na primeira venda da casa. É bem notório que a sugestão de Sir Matthew Decker foi no sentido de que todas as mercadorias, mesmo aquelas cujo consumo é imediato ou então muito rápido, sejam taxadas dessa forma, isto é, sem que o vendedor adiante nenhum pagamento, pagando o consumidor certa soma anual pela licença de consumir certas mercadorias. O objetivo desse esquema era promover todos os diversos setores do comércio exterior, particularmente o comércio de transporte de mercadorias, eliminando todas as taxas de importação e exportação, possibilitando ao comerciante empregar todo o seu capital e crédito na compra de mercadorias e de frete para os navios, sem ter que canalizar nenhuma parte dele para o pagamento de impostos. Todavia, o projeto de taxar dessa forma os produtos de consumo imediato ou rápido parece prestar-se às quatro objeções seguintes, muito importantes: primeiro, o imposto seria mais desigual ou não tão proporcional aos gastos e ao consumo dos diferentes contribuintes, como acontece na modalidade em que se costuma cobrá-lo. Os tributos sobre a cerveja inglesa, o vinho e os licores alcoólicos, pagos adiantadamente pelos comerciantes, ao final são pagos pelos diversos consumidores exatamente na proporção de seu respectivo consumo. Ora, caso se impusesse um imposto na compra da licença para tomar essas bebidas, ao consumidor sóbrio se imporia um tributo que, em proporção ao seu consumo real, seria muito mais pesado do que o imposto sobre o consumidor acostumado a beber. A uma família que recebe muitos hóspedes impor-se-ia uma taxa muito mais leve do que a uma que recebesse menos. Em segundo lugar, essa maneira de taxar, pagando uma licença anual, semestral ou trimestral para consumir determinados artigos, reduziria de muito uma das vantagens principais dos impostos sobre bens de consumo rápido: o pagamento gradual. No preço de 3,5 pence, que atualmente se paga por caneca de cerveja preta, os diversos impostos sobre malte, lúpulo e cerveja, juntamente com o lucro extraordinário que o cervejeiro cobra por tê-lo pago adiantadamente, talvez possam representar aproximadamente 1,5 pêni. Se um trabalhador conseguir sem inconvenientes economizar esse 1,5 pêni, compra uma caneca de cerveja preta; se não conseguir, contenta-se com um pint,46 e, já que 1 pêni economizado representa 1 pêni ganho, sua moderação o faz ganhar 1/4 de pêni. Ele paga o imposto gradualmente da maneira como puder pagar e quando puder pagar: cada ato de pagamento é totalmente voluntário, podendo ele evitá-lo, se optar por isso. Em terceiro lugar, tais impostos funcio46
Medida de capacidade equivalente a 0,568 litros na Inglaterra. (N. do E.) 328
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nariam menos como leis suntuárias. Uma vez comprada a licença, o imposto seria o mesmo, quer o comprador bebesse muito ou pouco. Em quarto lugar, se um trabalhador tivesse que pagar de uma só vez, com pagamentos anuais, semestrais ou trimestrais, um imposto igual ao que paga atualmente, com pouco ou nenhum inconveniente, sobre os diversos pints e canecas de cerveja preta que toma em qualquer período de tempo determinado, a soma a pagar muitas vezes poderia afetá-lo muitíssimo. Parece evidente, pois, que essa modalidade de taxação nunca poderia, a não ser com a mais injusta opressão, gerar uma receita nem de longe igual à que se consegue com a modalidade atualmente em vigor sem opressão alguma. Na Holanda, a população paga um tanto por cabeça por uma licença para tomar chá. Já mencionei um imposto sobre o pão, o qual, na medida em que for consumido em casas de fazenda e em aldeias rurais, é cobrado da mesma forma naquele país. Os impostos de consumo são cobrados principalmente sobre mercadorias de produção interna destinadas ao consumo interno. São cobrados somente sobre alguns tipos de mercadorias de uso bem generalizado. Nunca pode haver dúvida alguma sobre as mercadorias sujeitas a esses impostos ou sobre o imposto específico ao qual está sujeito cada tipo de mercadoria. Eles incidem quase exclusivamente sobre o que denomino artigos de luxo, excetuando sempre os quatro impostos acima mencionados: sobre o sal, sabão, couro e velas, e, talvez o imposto sobre o vidro verde. As taxas alfandegárias são muito mais antigas que os impostos de consumo. Ao que parece, passaram a denominar-se customs por denotarem pagamentos costumeiros que estavam em uso desde tempos imemoriais. Segundo parece, eram originalmente consideradas impostos sobre o lucro dos comerciantes. Durante os tempos bárbaros da anarquia feudal, os comerciantes, como todos os outros moradores dos burgos, eram considerados pouco superiores aos escravos emancipados, sendo também objeto de desprezo e constituindo seus ganhos alvo de inveja. A grande nobreza, que havia consentido em que o rei taxasse os lucros de seus próprios rendeiros, via com bons olhos que ele taxasse os de uma categoria de pessoas que a nobreza tinha muito menos interesse em proteger. Naquela época de ignorância, não se compreendia que os lucros dos comerciantes constituem um item que não admite taxação direta, ou seja, que o pagamento final desses impostos recai inevitavelmente, e com uma sobrecarga considerável, sobre os consumidores. Os ganhos dos comerciantes estrangeiros eram vistos ainda com menos simpatia que os dos comerciantes ingleses. Era, pois, natural que os lucros dos primeiros fossem taxados com impostos mais pesados do que os dos segundos. Essa distinção entre as taxas impostas a estrangeiros e as impostas aos comerciantes ingleses, que começou a vigorar por ignorância, foi prolongada por efeito do espírito de monopólio, isto é, para proporcionar aos nossos comerciantes uma vantagem, tanto no mercado interno como no externo. 329
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Com essa distinção, as antigas taxas alfandegárias foram igualmente impostas a todos os tipos de mercadorias, tanto às de necessidade como às de luxo, tanto às exportadas como às importadas. Por que favorecer mais aos comerciantes de um tipo de mercadorias do que aos de um outro? — assim parece ter-se pensado na época. Ou por que razão se haveria de favorecer mais ao exportador do que ao importador? As antigas taxas alfandegárias dividiam-se em três setores: o primeiro, e talvez o mais antigo de todos, era o das taxas incidentes sobre a lã e o couro. Parece ter sido sobretudo, ou exclusivamente, um imposto de exportação. Quando se implantou a indústria de lã na Inglaterra, para que o rei não perdesse nenhuma parte de suas taxas sobre a lã, pela exportação de tecidos de lã, impôs-se um tributo igual a esses tecidos. Os outros dois setores eram: primeiro, um imposto sobre o vinho, o qual, por ser de certo montante por tonelada, foi denominado tonnage; segundo, um imposto sobre todas as outras mercadorias, o qual, por ser de certo montante por libra-peso presumido valor das mercadorias, denominava-se poundage. No 47º ano do reinado de Eduardo III, impôs-se uma taxa de 6 pence por libra a todas as mercadorias exportadas e importadas, excetuadas as seguintes: lãs, pelegos, couro e vinhos, sujeitos a taxas especiais. No 14º ano do reinado de Ricardo II, essa taxa foi aumentada para 1 xelim por libra, sendo, porém, reduzida novamente para 6 pence, três anos depois. Foi aumentada para 8 pence no 2 ano do reinado de Henrique IV; e, no 4º ano do mesmo rei, para 1 xelim. Desde essa época até o 9º ano do reinado de Guilherme II, essa taxa continuou sendo de 1 xelim por libra. As taxas por tonelada e as por libra eram geralmente asseguradas ao rei por uma mesma lei do Parlamento, denominando-se tributo por tonelada e por libra. Pelo fato de ter o tributo por libra continuado por tanto tempo a ser de 1 xelim por libra, ou seja, de 5%, o termo subsidy passou a designar, na linguagem aduaneira, uma taxa geral de 5% desse gênero. Esse tributo, que atualmente se chama the old subsidy, continua a ser recolhido de acordo com o livro de tarifas estabelecido no 12º ano do rei Carlos II. Afirma-se que a maneira de fixar, por um livro de tarifas, o valor das mercadorias sujeitas a essa taxa é anterior ao tempo de Jaime I. O novo tributo imposto pelos Estatutos 9 e 10 de Guilherme III representava um adicional de mais 5% sobre a maior parte das mercadorias. O tributo de 1/3 e o de 2/3 perfaziam juntos outros 5% dos quais eram partes proporcionais. O tributo de 1747 perfez um quarto 5% sobre a maior parte das mercadorias; e o de 1759, um quinto 5% sobre alguns tipos especiais de mercadorias. Além desses cinco tributos, tem-se imposto ocasionalmente uma grande variedade de outras taxas, às vezes para atender às exigências do Estado e às vezes para regular o comércio do país, em conformidade com os princípios do sistema mercantil. Esse sistema passou a impor-se gradualmente cada vez mais. O old subsidy foi imposto indistintamente à exportação e à importação. Os quatro tributos subseqüentes, bem como as outras taxas que desde 330
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então se têm ocasionalmente imposto a determinados tipos de mercadorias, foram todos impostos à importação, com poucas exceções. As antigas taxas que haviam sido impostas à exportação de produtos e manufaturados internos foram na maior parte amenizadas ou totalmente eliminadas. Concederam-se até subsídios para a exportação de alguns deles. Por outro lado, pagaram-se drawbacks, reembolsando-se ao exportador, às vezes do montante total das taxas pagas na importação de mercadorias estrangeiras, sendo que na maioria dos casos reembolsava-se apenas uma parte das taxas recolhidas na importação. Reembolsa-se na exportação apenas a metade das taxas referentes ao old subsidy sobre a importação; em se tratando, porém, das taxas impostas pelos tributos recentes e por outros impostos, reembolsa-se o total recolhido na importação da maior parte das mercadorias. Esse favorecimento crescente à exportação e o desestímulo crescente à importação têm sofrido apenas algumas exceções, relativas sobretudo às matérias-primas de alguns manufaturados. Essas matérias-primas, no desejo de nossos comerciantes e manufatores, devem chegar às suas mãos ao preço mais baixo possível, sendo o mais caro possível para seus rivais e concorrentes de outros países. Em razão disso, permite-se às vezes a entrada de matérias-primas estrangeiras, sem pagar taxas: por exemplo, lã espanhola, cânhamo e fio de linho bruto. A exportação de matérias-primas para a produção interna, e das que constituem produtos especiais das nossas colônias, tem sido às vezes proibida, e outras vezes tem sido sujeita a taxas mais altas. Proibiu-se a exportação de lã inglesa; a de peles de castor, lã de castor e goma arábica tem sido sujeita a taxas mais altas, já que, com a conquista do Canadá e do Senegal, a Grã-Bretanha adquiriu quase o monopólio dessas mercadorias. No Livro Quarto dessa investigação procurei mostrar que o sistema mercantil não tem sido muito favorável ao rendimento da população em geral, à produção anual da terra e do trabalho do país. Ao que parece, ele não foi mais favorável à receita do soberano, ao menos na medida em que esta depende das taxas alfandegárias. Em decorrência desse sistema, proibiu-se totalmente a importação de vários tipos de mercadorias. Em alguns casos, essa proibição impediu totalmente e em outros reduziu em muito a importação dessas mercadorias, levando os importadores à necessidade de praticar o contrabando. Impediu totalmente a importação de lãs estrangeiras e reduziu em muito a de sedas e veludos estrangeiros. Nos dois casos aniquilou inteiramente a receita aduaneira que poderia ter sido arrecadada de tal importação. As altas taxas impostas à importação de muitos tipos de mercadorias estrangeiras, a fim de desestimular seu consumo na Grã-Bretanha, em muitos casos têm servido apenas para encorajar o contrabando, e em todos os casos reduziu a receita aduaneira abaixo daquela que teria entrado, se as taxas de importação tivessem sido mais moderadas. A afirmação do Dr. Swift de que, na aritmética da alfândega, dois mais dois às vezes são apenas três e não quatro mostra-se perfeitamente verdadeira com respeito a tais taxas elevadas, que nunca 331
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poderiam ter sido impostas se o sistema mercantil não nos tivesse ensinado, em muitos casos, a utilizar a taxação como um instrumento para garantir o monopólio, e não para assegurar a receita. Os subsídios que às vezes se têm concedido à exportação de produtos e manufaturados internos e os drawbacks que se pagam na reexportação da maior parte das mercadorias estrangeiras têm dado margem a muitas fraudes e a um tipo de contrabando mais destrutivo da receita pública do que qualquer outro. Como se sabe muito bem, para beneficiar-se do subsídio ou do drawback, por vezes embarcam-se as mercadorias nos navios e estes zarpam do porto, mas logo depois ancoram novamente em algum outro local do país. É muito grande o desfalque da receita aduaneira devido aos subsídios e aos drawbacks, sendo fraudulenta a maneira de beneficiar-se da maior parte deles. No ano que se encerrou a 5 de janeiro de 1755, a receita bruta da alfândega foi de 5 068 000 libras esterlinas. Embora naquele ano não houvesse subsídio para o trigo, os subsídios pagos, sobre essa receita, foram de 167 800 libras. Os drawbacks, que foram pagos contra debêntures e certificados, ascenderam a 2 156 800 libras. Somando-se os subsídios aos drawbacks, temos 2 324 600 libras. Em conseqüência dessas deduções, a receita aduaneira representou apenas 2 743 400 libras: deduzindo disso o valor de 287 800 libras como despesas administrativas com salários e outros itens, a receita líquida da alfândega naquele ano resultou em 2 455 500 libras. Assim, a despesa administrativa representa entre 5% e 6% da receita bruta da alfândega e um pouco mais de 10% do remanescente da receita, após deduzir o que é pago em forma de subsídios e drawbacks. Pelo fato de se imporem altas taxas a todos os produtos importados, nossos comerciantes importadores introduzem no país o máximo de contrabando que podem, registrando oficialmente o mínimo. Ao contrário, nossos exportadores registram mais do que exportam efetivamente: às vezes e por vaidade, e para passarem por grandes comerciantes vendedores de mercadorias que não pagam imposto e às vezes para obterem um subsídio ou um drawback. Em conseqüência dessas diversas fraudes, nos registros da alfândega as nossas exportações se apresentam como muito superiores às nossas importações — para a inefável tranqüilidade daqueles políticos que medem a prosperidade nacional com base no que chamam de balança comercial. Todas as mercadorias importadas, a menos que especialmente isentas — e tais isenções não são muito numerosas —, estão sujeitas a algumas taxas alfandegárias. Caso se importe alguma mercadoria não mencionada no livro das tarifas, ela é taxada a 4 s 9 9/20 d para cada 20 xelins de valor, segundo o juramento do importador, isto é, quase com cinco tributos, ou 5 xelins por libra. O livro de tarifas é extremamente abrangente, enumerando grande variedade de artigos, muitos deles pouco usados e, portanto, não muito conhecidos. Por isso, muitas vezes não está bem definido em que artigo tem que ser enquadrado determinado tipo de mercadoria e conseqüentemente que taxa 332
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deve pagar. Erros desse gênero às vezes levam à ruína o oficial da alfândega, e freqüentemente acarretam muito incômodo, despesas e vexames para o importador. Em termos de clareza, precisão e definição, portanto, os impostos alfandegários são muito inferiores aos de consumo. Para que a maior parte dos membros de uma sociedade contribua para a receita pública em proporção a seus respectivos gastos, não parece necessário taxar cada artigo que seja objeto desses gastos. Supõe-se que a receita arrecadada pelos impostos de consumo recai sobre os contribuintes com a mesma igualdade que a arrecadada pelas taxas alfandegárias; ora, os impostos de consumo incidem somente sobre alguns artigos do uso e consumo mais generalizado. Muitos têm pensado que, com uma administração apropriada, os impostos alfandegários também poderiam ser limitados a alguns artigos, sem perda alguma para a receita pública e com grande vantagem para o comércio exterior. Atualmente, os artigos estrangeiros de uso e consumo mais generalizado na Grã-Bretanha parecem consistir principalmente em vinhos e conhaques importados do exterior, bem como em alguns produtos da América e das Índias Ocidentais, como açúcar, rum, fumo, castanhas de cacau etc. e em alguns trazidos das Índias Orientais, como chá, café, porcelanas, especiarias de todos os gêneros, vários tipos de mercadorias vendidas por peça etc. São esses vários artigos que, no momento, talvez proporcionem a maior parte da receita arrecadada com as taxas alfandegárias. Quanto às taxas atualmente em vigor sobre manufaturados estrangeiros, se excetuarmos as incidentes sobre os poucos artigos contidos na enumeração acima, a maioria delas foi imposta não para fins de arrecadar receita, mas para garantir o monopólio, ou seja, para garantir aos nossos próprios comerciantes uma vantagem no mercado interno. Eliminando todas as proibições e sujeitando todos os manufaturados estrangeiros a taxas modestas que, com base na experiência, se comprovam suficientes para que o arrecadado sobre cada artigo seja o máximo para a receita pública, nossos próprios trabalhadores poderiam continuar a gozar de uma vantagem considerável no mercado interno e muitos artigos — alguns dos quais, atualmente, não trazem nenhuma receita para o Governo, e outros trazem uma receita irrelevante — poderiam produzir uma receita bem grande. Impostos altos, às vezes pelo fato de reduzirem o consumo das mercadorias taxadas, às vezes por estimularem o contrabando, freqüentemente trazem para o Governo uma receita inferior àquela que se poderia obter com impostos mais baixos. Quando a diminuição da receita é efeito da redução do consumo, só pode haver um remédio: diminuir o imposto. Quando a diminuição da receita é efeito do estímulo dado ao contrabando, talvez isso possa ser remediado de duas maneiras: diminuindo a tentação do contrabando ou aumentando a dificuldade para contrabandear. A única maneira de diminuir a tentação do contrabando é baixar o imposto; e para dificultar mais o contrabando, a única solução consiste em criar um sistema de administração que seja mais adequado para impedi-lo. 333
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Segundo acredito, a experiência nos mostra que as leis sobre o imposto de consumo representam para o contrabandista um obstáculo e um embaraço muito mais eficaz do que as leis alfandegárias. Introduzindo na alfândega um sistema de administração tão semelhante ao vigente para o imposto de consumo quanto o permita a natureza dos diversos direitos, poder-se-ia dificultar muitíssimo a prática do contrabando. Na opinião de muitos, essa alteração poderia ser feita com facilidade muito grande. Tem-se dito que ao importador de mercadorias sujeitas a alguma taxa alfandegária se poderia permitir, à sua escolha, levá-las ao seu próprio depósito ou guardá-las em um depósito custeado por ele mesmo ou pelo Estado, mas cuja chave permanecesse com o oficial aduaneiro, só podendo ser aberto na sua presença. Se o comerciante levasse as mercadorias a seu próprio depósito, as taxas seriam pagas imediatamente, não podendo nunca ser posteriormente reembolsadas, devendo tal depósito estar sempre sujeito à visita e à inspeção do oficial da alfândega, a fim de verificar até que ponto a quantidade ali guardada correspondia à que foi declarada como base para pagamento do imposto. Se o comerciante levasse as mercadorias ao depósito público, não se pagaria nenhum imposto até o momento de serem elas retiradas para o consumo. Se as mercadorias fossem retiradas para exportação, não haveria imposto a pagar, desde que sempre se oferecesse garantia adequada de que seriam efetivamente exportadas. Os comerciantes dessas mercadorias específicas, seja no atacado, seja no varejo, estariam sempre sujeitos à visita e à inspeção do oficial da alfândega, devendo justificar, por certificados apropriados, o pagamento do imposto sobre a quantidade total contida em suas lojas ou depósitos. É dessa maneira que se recolhem atualmente os assim chamados impostos de consumo sobre o rum importado, podendo-se talvez estender o mesmo sistema de administração a todos os impostos sobre mercadorias importadas, desde que esses impostos, analogamente aos impostos de consumo, sempre fossem limitados a alguns tipos de mercadorias de uso e consumo mais generalizado. Se esses impostos fossem estendidos a quase todos os tipos de mercadorias, como atualmente, não seria fácil providenciar depósitos públicos suficientemente grandes, e o comerciante não poderia confiar com segurança a outro depósito senão o próprio produto muito delicado ou cuja preservação exigisse muito cuidado e atenção. Se, com tal sistema de administração, se pudesse impedir o contrabando de forma considerável, mesmo que fosse com impostos bem elevados, e se cada imposto fosse ocasionalmente aumentado ou diminuído, conforme a maior probabilidade que tivesse, de uma forma ou de outra, de proporcionar o máximo de receita para o Estado, utilizando-se sempre a taxação como instrumento de receita e nunca de monopólio, não parece improvável que se poderia arrecadar uma receita — no mínimo igual à receita alfandegária líquida de hoje — dos impostos sobre a importação de apenas alguns tipos de mercadorias do uso e consumo mais generalizado, e que dessa forma as taxas alfandegárias viessem a caracterizar-se pelo mesmo grau de simplicidade, 334
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certeza e precisão que os impostos de consumo. Com esse sistema economizar-se-ia inteiramente o que a receita atualmente perde por meio dos drawbacks sobre a reexportação de mercadorias estrangeiras, que posteriormente são novamente desembarcadas e consumidas no país. Se a essa economia, que por si só já seria expressiva, se acrescentasse a abolição de todos os subsídios concedidos à exportação de produtos do país, em todos os casos em que esses subsídios não representam na realidade reembolsos de algum imposto de consumo anteriormente pago, dificilmente se poderia duvidar que a receita líquida da alfândega, depois de tal alteração, atingiria plenamente o que já chegou a ser. Se, por um lado, com tal mudança de sistema, a receita pública não sofresse nenhuma perda, o comércio e as manufaturas do país teriam certamente uma vantagem altamente considerável. O comércio das mercadorias não taxadas, que constituem de longe a maioria, seria inteiramente livre, podendo ser efetuado para e de todas as regiões do mundo, com todas as vantagens possíveis. Entre essas mercadorias estariam compreendidos todos os artigos de necessidade e todas as matérias-primas para manufaturas. Na medida em que a livre importação dos artigos de necessidade reduzisse seu preço médio em dinheiro no mercado interno, reduziria também o preço em dinheiro da mãode-obra, mas sem reduzir em nada sua remuneração real. O valor do dinheiro é proporcional à quantidade dos artigos de necessidade que com ele se pode comprar. O valor dos artigos de necessidade é totalmente independente da quantidade de dinheiro que com eles se pode conseguir. A redução do preço em dinheiro da mão-de-obra necessariamente acarretaria uma redução proporcional no preço de todos os manufaturados feitos no país, os quais obteriam com isto alguma vantagem em todos os mercados do Exterior. O preço de algumas manufaturas reduzir-se-ia em proporção ainda maior, pela importação livre das matérias-primas. Se pudéssemos importar seda bruta sem taxas, da China e do Hindustão, os manufatores de seda inglesa poderiam vender a preços muito inferiores aos da França e da Itália. Não haveria necessidade alguma de proibir a importação de sedas e veludos estrangeiros. O baixo preço das mercadorias de produção interna asseguraria aos nossos próprios trabalhadores não somente a posse do mercado interno, mas também um controle muito grande do mercado externo. Até o comércio de mercadorias taxadas seria efetuado com vantagem muito maior do que atualmente. Se essas mercadorias fossem entregues pelo depósito público para exportação ao Exterior, sendo elas neste caso isentas de todos os impostos, sua comercialização seria completamente livre. Com esse sistema, o comércio de transporte de mercadorias, de quaisquer tipos que fossem, desfrutaria de todas as vantagens possíveis. Se essas mercadorias fossem entregues para consumo interno, pelo fato de o importador não ser obrigado a pagar enquanto não tivesse oportunidade de vender suas mercadorias a algum comerciante ou a algum consumidor, ele sempre poderia permitir-se vendê-las mais barato do que se tivesse sido obrigado a pagar adian335
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tadamente o imposto no momento da importação. Com os mesmos impostos, o comércio exterior de bens de consumo, mesmo em se tratando de mercadorias taxadas, poderia assim ser efetuado com vantagens muito maiores do que atualmente. O objetivo visado pelo célebre esquema tributário de Sir Robert Walpole era implantar, com respeito ao vinho e ao fumo, um sistema não muito diferente do aqui proposto. Embora a lei então apresentada ao Parlamento englobasse apenas essas duas mercadorias, suponha-se em geral que estava projetada como introdução para um esquema mais amplo do mesmo gênero. O espírito faccioso, associado aos interesses dos comerciantes contrabandistas, levantou clamor tão violento — se bem que injusto — contra essa lei que o Ministro considerou indicado sustá-la; e por medo de suscitar um clamor do mesmo gênero, nenhum de seus sucessores ousou retomar o projeto. Ainda que os impostos incidentes sobre artigos de luxo importados para consumo interno recaiam, por vezes, sobre os pobres, recaem principalmente sobre pessoas de posses médias ou acima. Tais são, por exemplo, os impostos sobre vinhos estrangeiros, café, chocolate, chá, açúcar etc. Os impostos sobre os artigos de luxo mais baratos, de produção interna, destinados ao consumo do país recaem com bastante eqüidade sobre pessoas de todas as categorias, em proporção com seus respectivos gastos. Os pobres pagam os impostos sobre malte, lúpulo, cerveja e cerveja inglesa, quando consomem esses produtos; os ricos pagam sobre seu consumo e o de seus criados. Cabe observar que todo o consumo das classes inferiores de população, isto é, dos que estão abaixo da classe média, é muito maior em todos os países, não somente em quantidade, mas também em valor, que o da classe média e da classe superior. O gasto total da classe inferior é muito maior que o das classes superiores. Em primeiro lugar, quase todo o capital de cada país é anualmente distribuído entre as classes inferiores da população, na forma de salários do trabalho produtivo. Em segundo lugar, uma grande parte do rendimento derivado tanto da renda da terra como do lucro do capital é anualmente distribuída entre a mesma classe, em forma de salário e sustento dos criados domésticos e de outros trabalhadores improdutivos. Em terceiro lugar, uma parte dos lucros do capital também vai para a mesma classe, como rendimento derivado da aplicação de seus pequenos capitais. Em toda parte é bem considerável o montante de lucros anualmente auferidos por pequenos lojistas, comerciantes e varejistas de todos os tipos, perfazendo uma parcela bastante considerável da produção anual. Em quarto e último lugar, até uma parte da renda das terras pertence à mesma classe: uma parcela considerável da mesma pertence à camada que está um pouco abaixo da classe média e uma pequena parcela vai até para a camada mais baixa, já que os trabalhadores comuns às vezes possuem um ou dois acres de terra. Ainda que, portanto, o gasto dessas classes mais baixas da população seja muito pequeno, quando consideradas individualmente, se as conside336
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rarmos coletivamente a massa total desse gasto sempre representa de longe a maior parcela de toda a despesa do país; o que resta da produção anual da terra e do trabalho do país para o consumo das classes superiores sempre representa muito menos, não somente em quantidade mas também em valor. Por conseguinte, os impostos sobre os gastos, que recaem principalmente sobre as classes superiores da população, isto é, sobre a parcela menor da produção anual do país, provavelmente são muito menos produtivos que os que recaem indistintamente sobre os gastos de todas as classes, e até mesmo que aqueles que recaem principalmente sobre os gastos das classes inferiores, ou seja, do que aqueles que recaem indistintamente sobre a produção anual total, bem como daqueles que recaem principalmente sobre a maior parcela da mesma. Conseqüentemente, o imposto de consumo sobre as matérias-primas e sobre a manufatura de licores fermentados e alcoólicos produzidos no país, dentre todos os diversos impostos incidentes sobre os gastos, é, de longe, mais produtivo; ora, esse imposto recai em muito, talvez principalmente, sobre os gastos do povo. No ano encerrado em 5 de julho de 1775, a arrecadação bruta desse setor tributário ascendeu a £ 5 341 837 9 s 9 d. Importa sempre relembrar, porém, que o que se deve taxar são os artigos de luxo e não os gastos necessários das camadas inferiores da população. O pagamento final de qualquer imposto sobre os gastos necessários dessas classes inferiores recairia totalmente sobre as camadas superiores da população, isto é, sobre a parcela menor da produção anual e não sobre a maior. Tal imposto, em todos os casos, inevitavelmente faz com que subam os salários da mão-de-obra, ou então faz diminuir a demanda dessa mão-de-obra. Ele não poderia elevar os salários da mão-de-obra sem descarregar o pagamento final do imposto sobre as camadas superiores da população. Não poderia, também, reduzir a demanda de mão-de-obra sem diminuir a produção anual da terra e do trabalho do país, fundo este do qual devem ser pagos, em última análise, todos os impostos. Qualquer que fosse a condição à qual um imposto desse tipo reduzisse a demanda de mão-de-obra, necessariamente fará os salários subirem acima do que, caso contrário, seriam nessa condição; e o pagamento final desse aumento em todos os casos recai inevitavelmente sobre as classes superiores da população. Na Grã-Bretanha, as bebidas fermentadas e as bebidas alcoólicas destiladas, não destinadas à venda, mas para consumo particular, não estão sujeitas a nenhum imposto de consumo. Essa isenção, cuja finalidade é poupar aos particulares a odiosa visita e inspeção do coletor de impostos, tem como conseqüência que o peso desses impostos com freqüência é muito mais leve para os ricos do que para os pobres. Com efeito, não é muito comum destilar para uso privado, ainda que às vezes isso se faça. Entretanto, nesse país, muitas famílias da classe média e quase todas as famílias ricas e importantes fazem sua própria cerveja. Sua cerveja forte, portanto, lhes custa 8 xelins a menos por barril do que ao cervejeiro comum, que deve tirar seu lucro do imposto bem como de todos os outros gastos que ele tem que adiantar. Tais 337
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famílias, portanto, devem tomar sua cerveja no mínimo por 9 ou 10 xelins mais barato o barril do que qualquer bebida da mesma qualidade que possa ser tomada pelo povo, para o qual é sempre mais conveniente comprar sua cerveja pouco a pouco, da cervejaria ou da taverna. Da mesma forma o malte preparado para o uso de uma família em especial não está sujeito à visita ou à inspeção do coletor de impostos, mas nesse caso a família tem que aceitar pagar 7 xelins e 6 pence por cabeça como imposto. 7 xelins e 6 pence equivalem ao imposto de consumo sobre 10 alqueires de malte, quantidade plenamente igual à média que todos os membros de uma família sóbria — homens, mulheres e crianças — têm probabilidade de consumir. Ora, em famílias ricas e importantes, onde se costumam receber muitos hóspedes, as bebidas de malte consumidas pelos membros da família representam apenas uma pequena parcela do consumo da casa. Entretanto, por causa desse acordo ou por outros motivos, não é tão comum preparar malte como preparar cerveja para consumo privado. É difícil imaginar alguma razão justa que explique por que a fermentação ou destilação para consumo privado não estejam sujeitas a um acordo como o existente para o malte. Tem-se afirmado com freqüência que se poderia auferir uma receita superior à que atualmente é recolhida de todos os pesados impostos sobre o malte, cerveja, cerveja inglesa, impondo-se um tributo muito mais leve sobre o malte, de vez que é muito maior a oportunidade de fraudar a receita em uma cervejaria do que em um estabelecimento para preparação de malte; e porque aqueles que fazem cerveja para consumo privado estão isentos de todos os impostos ou acordos para seu pagamento, o que não acontece com os que preparam malte para o próprio consumo. Em Londres, na cervejaria especializada em cerveja preta, usa-se normalmente um quarter de malte para fermentar mais de dois barris e meio e às vezes até três barris dessa cerveja. Os diversos impostos incidentes sobre o malte montam a 6 xelins por quarter, e os incidentes sobre a cerveja forte ou cerveja inglesa são de 8 xelins por barril. Conseqüentemente, nesta cervejaria os diversos impostos sobre o malte, a cerveja e a cerveja inglesa representam entre 26 e 30 xelins sobre o produto de um quarter de malte. Nas cervejarias do restante do país, para venda local, um quarter de malte raramente é usado para fermentar menos de dois barris de cerveja forte e um barril de cerveja leve, com freqüência, é usado para dois barris e meio de cerveja forte. Os diversos impostos sobre a cerveja leve são de 1 xelim e 4 pence por barril. Portanto, nas cervejarias do restante do país, os diversos impostos sobre malte, cerveja e cerveja inglesa raramente são inferiores a 23 xelins e 4 pence e muitas vezes a 26 xelins sobre o produto de um quarter de malte. Considerando-se, portanto, a média do reino inteiro, o montante total dos impostos sobre malte, cerveja e cerveja inglesa não pode ser estimado em menos de 24 ou 25 xelins sobre o produto de um quarter de malte. Entretanto, suprimindo-se todos os diversos impostos sobre a cerveja e a cerveja inglesa, e triplicando-se o imposto sobre o malte, isto é, elevando-a de 6 para 18 xelins por 338
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quarter de malte, poder-se-ia arrecadar uma receita maior — segundo se tem afirmado — com esse único imposto do que a que atualmente se obtém de todos esses impostos mais pesados. Efetivamente, no regime do antigo imposto sobre o malte está compreendido um imposto de 4 xelins por barril de cidra, e um outro de 10 £ Em 1772, o antigo imposto sobre o malte gerou . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 722 023 O adicional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 356 776 Em 1773, o antigo imposto gerou . . . . . . . . 561 627 O adicional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 278 650 Em 1774, o antigo imposto gerou . . . . . . . . 624 614 O adicional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 310 745 Em 1775, o antigo imposto gerou . . . . . . . . 657 357 O adicional . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323 785 4)
3 835 580
Média desses quatro anos . . . . . . . . . . . . . . . 958 Em 1772, os impostos de consumo gerados no restante do país . . . . . . . . . . . 1 243 E pelas cervejarias de Londres . . . . . . . . . . 408 Em 1773, os impostos de consumo no restante do país . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 245 Cervejarias de Londres . . . . . . . . . . . . . . . 405 Em 1774, os impostos de consumo no restante do país . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 246 Cervejarias de Londres . . . . . . . . . . . . . . . 320 Em 1775, os impostos de consumo no restante do país . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 214 Cervejarias de Londres . . . . . . . . . . . . . . . 463 4)
11 7 3 15 17 2 — 12
d 9 7 3 5 8 8 6
11 3/4 1/2 3/4 3/4 1/2 1/4 1/4
12
— 3/4
895
3
— 3/16
128 260
5 7
3 2 3/4
808 406
3 17
3 10 1/2
373 601
14 18
5 1/2 — 1/4
583 670
6 7
6 547 832
Média desses quatro anos . . . . . . . . . . . . . 1 636 958 Acrescentando a isso o imposto médio sobre o malte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 958 895 O montante total desses diversos impostos vem a ser de . . . . . . . . . . . . . . . 2 595 853 Mas, triplicando o imposto sobre o malte, isto é, aumentando-o de 6 para 18 xelins por quarter de malte, esse único imposto geraria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 876 685 Essa soma ultrapassa a quantia supra de . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 280 832 339
s
1 1/4
19
2 1/4
4
9 1/2
3
— 3/16
7
9 11/16
9
— 9/16
1
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xelins por barril de mum.47 Em 1774, o imposto sobre cidra gerou apenas £ 3 083 6 s 8 d. Provavelmente ficou um pouco abaixo de seu montante habitual, uma vez que todos os demais impostos sobre cidra geraram naquele ano menos do que de costume. O imposto sobre mum, embora muito mais alto, gera ainda menos, devido ao menor consumo dessa bebida. Mas para equilibrar o que possa ser o montante normal desses dois impostos, estão compreendidos sob o assim chamado Imposto de Consumo Nacional: primeiro, o antigo imposto de 6 xelins e 8 pence por barril de cidra; segundo, um imposto igual de 6 xelins e 8 pence por barril de agraço; terceiro, um outro de 8 xelins e 9 pence por barril de vinagre; e finalmente um quarto imposto de 11 pence por galão de hidromel. A receita produzida por esses diversos impostos provavelmente equilibra sobremodo o montante dos tributos impostos pelo assim chamado Imposto Anual sobre Malte sobre Cidra e Mum. O malte é consumido não somente no preparo da cerveja e da cerveja inglesa, mas também na manufatura de vinhos de baixo teor alcoólico e de outras bebidas que contêm pouco álcool. Se o imposto sobre o malte aumentasse para 18 xelins por quarter, poderia ser necessário fazer algum abatimento nas diversas taxas de consumo impostas a esses tipos específicos de vinhos e aguardentes, nos quais o malte entra de alguma forma como matéria-prima. Nos assim chamados maltes destilados, o malte representa comumente apenas 1/3 da matéria-prima, sendo que os outros 2/3 são constituídos por cevada em estado bruto, ou por 1/3 de cevada e 1/3 de trigo. Na destilação dos maltes destilados, tanto a oportunidade como a tentação para o contrabando são muito maiores do que em uma cervejaria ou em um estabelecimento de preparação do malte: a oportunidade, devido ao menor volume e ao valor maior da mercadoria; e a tentação, pelo fato de os impostos serem mais elevados, representando 3 s 10 2/3 d por galão de malte destilado.48 Aumentando-se os impostos sobre o malte e reduzindo-se os impostos sobre a destilação, reduzir-se-iam tanto as oportunidades quanto a tentação de contrabando, o que poderia gerar um outro aumento de receita. Há algum tempo, a Grã-Bretanha vem adotando a política de desestimular o consumo de bebidas alcoólicas, pela sua suposta tendência de arruinar a saúde e corromper a moral do povo. De acordo com essa política, o abatimento nos impostos sobre a destilação não deveria ser tão grande a ponto de reduzir, sob qualquer aspecto, o preço dessas bebidas. As bebidas alcoólicas poderiam permanecer no mesmo preço de sempre, ao mesmo tempo que os líquidos saudáveis 47 48
Espécie de cerveja forte. (N. do E.) Embora as taxas diretamente impostas aos proof spirits* sejam de apenas 2 s 6 d por galão, acrescentando-se isto às taxas incidentes sobre vinhos de baixo teor alcoólico, dos quais são destilados, ascendem a 3 s 10 2/3 d. Para evitar fraudes, tanto os vinhos de baixo teor alcoólico quanto os proof spirits são agora taxados com base em seu teor quando prontos para a destilação. * Bebida alcoólica ou mistura de álcool e água contendo 50% de álcool. (N. do E.) 340
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e revigorantes da cerveja e da cerveja inglesa poderiam baixar consideravelmente de preço. Dessa forma, a população poderia ver-se em parte livre de um dos pesos de que hoje mais se queixa, e ao mesmo tempo poderia aumentar consideravelmente a receita pública. Parecem destituídas de fundamento as objeções do Dr. Davenant a essa alteração proposta no atual sistema de impostos de consumo. As objeções resumem-se no seguinte: o imposto, em vez de dividir-se com bastante igualdade sobre o lucro do preparador de malte, o do cervejeiro e o do comerciante varejista — como acontece atualmente —, passaria a recair totalmente sobre o lucro do preparador de malte; este último não conseguiria recuperar o montante do imposto que pagou adiantadamente na compra do malte com a mesma facilidade que o cervejeiro e o comerciante varejista o podem fazer no preço que pagam pelas suas bebidas; e um imposto tão pesado sobre o malte poderia fazer diminuir a renda e o lucro das terras em que se cultiva a cevada. Não há imposto que possa reduzir, por muito tempo, a taxa de lucro em qualquer ocupação, a qual sempre deve manter seu nível com outras ocupações vigentes na redondeza. Os atuais impostos sobre o malte, a cerveja e a cerveja inglesa não afetam os lucros dos que comercializam tais mercadorias, pois todos eles recuperam o imposto com um adicional, no preço aumentado das mercadorias que vendem. Sem dúvida, um imposto pode fazer com que as mercadorias sobre as quais incide sejam tão caras a ponto de gerar uma diminuição do consumo das mesmas. Todavia, o consumo do malte está no consumo de bebidas de malte; ora, seria difícil um imposto de 18 xelins por quarter de malte tornar essas bebidas mais caras do que o fazem atualmente os diversos impostos, que representam 24 ou 25 xelins. Pelo contrário, essas bebidas provavelmente diminuiriam de preço e seu consumo teria maior probabilidade de aumentar do que de diminuir. Não é muito fácil entender por que motivo seria mais difícil para o preparador de malte recuperar 18 xelins no preço aumentado de seu malte do que atualmente para o cervejeiro recuperar 24 ou 25 xelins, e às vezes até 30 xelins no preço aumentado de sua bebida. Sem dúvida, o preparador de malte, em vez de um imposto de 6 xelins, seria obrigado a adiantar o pagamento de um imposto de 18 xelins sobre cada quarter de malte. Mas o cervejeiro é hoje obrigado a adiantar o pagamento de 24 ou 25 xelins e às vezes até de 30 xelins para cada quarter de malte que transforma em cerveja. Não poderia ser mais desvantajoso para o preparador de malte adiantar o pagamento de um imposto mais baixo do que atualmente para o cervejeiro adiantar o pagamento de um imposto mais alto. Nem sempre o preparador de malte mantém em seus celeiros um estoque de malte que levará mais tempo para vender do que o estoque de cerveja e de cerveja inglesa que o cervejeiro mantém freqüentemente em suas adegas. Portanto, o preparador de malte muitas vezes pode ter o retorno de seu dinheiro tão rapidamente quanto o cervejeiro. Todavia, quaisquer que sejam os inconvenientes que possam advir ao preparador de malte por ser obrigado a pagar 341
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adiantadamente um imposto mais alto, esse inconveniente poderia ser facilmente solucionado concedendo-se a ele um crédito de alguns meses a mais do que aquele que se costuma hoje dar ao cervejeiro. Nada há que poderia reduzir a renda e o lucro das terras em que se cultiva cevada, sem ao mesmo tempo reduzir a demanda de cevada. Ora, uma mudança de sistema que reduzisse os impostos sobre o quarter de malte transformado em cerveja e em cerveja inglesa, de 24 e 25 xelins para 18 xelins, teria mais probabilidade de aumentar do que de diminuir tal demanda. Além disso, a renda e o lucro das terras utilizadas para o cultivo de cevada inevitavelmente serão sempre mais ou menos iguais aos de outras terras da mesma fertilidade e cultivadas com igual esmero. Se a renda e o lucro fossem inferiores, uma parte da terra utilizada para o cultivo de cevada logo seria usada para alguma outra finalidade, e se a renda e o lucro fossem superiores, logo utilizar-se-ia mais terra para o cultivo de cevada. Quando o preço corrente de algum produto específico da terra atinge o que se pode chamar preço de monopólio, um imposto sobre esse produto inevitavelmente reduz a renda e o lucro da terra em que ele é produzido. Um imposto sobre o produto desses preciosos vinhedos, cujo vinho está tão longe de atender à demanda efetiva que seu preço sempre está acima da proporção natural ao do produto de outras terras da mesma fertilidade e cultivadas com o mesmo esmero, inevitavelmente reduziria a renda e o lucro dos vinhedos em questão. Pelo fato de ser já o preço dos vinhos o máximo que se poderia conseguir pela quantidade comumente posta à venda, esse preço não poderia aumentar sem que diminuísse a quantidade disponível; ora, essa quantidade não poderia diminuir sem perda ainda maior, pois as respectivas terras não poderiam ser utilizadas para cultivar nenhum produto de valor igual. Por conseguinte, todo o peso do imposto recairia sobre a renda e o lucro do vinhedo — mais propriamente, sobre a renda do vinhedo. Quando se propôs impor algum novo tributo sobre o açúcar, nossos plantadores de cana-de-açúcar com freqüência se queixaram de que todo o peso de tais impostos recairia não sobre o consumidor, mas sobre o produtor, por nunca terem podido depois do novo imposto aumentar o preço de seu açúcar acima do que era antes dele. Ao que parece, antes do imposto o preço do açúcar era um preço de monopólio; e o argumento apresentado para demonstrar que o açúcar não era um item apropriado para taxação mostrou talvez que o era, uma vez que os ganhos dos monopolistas, sempre que possam ser obtidos, são certamente o mais adequado de todos os itens para taxação. Entretanto, o preço corrente da cevada nunca foi um preço de monopólio e a renda e o lucro das terras em que se cultiva esse produto nunca estiveram acima de sua proporção natural com o preço das terras de igual fertilidade e cultivadas com o mesmo cuidado. Os diversos tributos que se têm imposto ao malte, à cerveja e à cerveja inglesa nunca fizeram baixar o preço da cevada, como nunca fizeram baixar a renda e o lucro das terras dedicadas ao cultivo de cevada. O preço do malte para o cervejeiro sempre aumentou 342
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em proporção aos impostos que gravam o produto; e esses impostos, juntamente com os diversos impostos sobre a cerveja e a cerveja inglesa, sempre fizeram subir o preço dessas mercadorias para o consumidor, ou, o que dá no mesmo, fizeram baixar a sua qualidade para ele. O pagamento final desses impostos sempre recaiu sobre o consumidor e não sobre o produtor. As únicas pessoas que provavelmente sofreriam com a mudança de sistema aqui proposta são as que fazem cerveja para seu próprio uso. Ora, a isenção de que atualmente goza essa classe superior da população quanto aos impostos pesadíssimos que são pagos pelo trabalhador e pelo artífice pobres é, por certo, altamente injusta e discriminativa, devendo portanto ser eliminada, mesmo que essa mudança proposta nunca fosse feita. Provavelmente é o interesse dessa classe superior que até agora tem impedido que se efetuasse uma mudança de sistema, a qual dificilmente poderia deixar de aumentar a renda do povo e de aliviar o peso que o onera. Além dos impostos aduaneiros e os de consumo acima mencionados, existem vários outros, que afetam o preço das mercadorias de maneira mais desigual e mais indireta. A esse gênero pertencem as taxas que em francês se denominam péages, que na antiga época dos saxões se chamavam Direitos de Passagem e que em sua origem parecem ter sido criadas visando à mesma finalidade que os nossos pedágios, ou os direitos de passagem sobre os nossos canais e rios navegáveis, para a manutenção das estradas ou da navegação. Esses direitos, quando aplicados para essa finalidade, são mais adequadamente impostos com base no volume ou peso das mercadorias transportadas. Por serem na origem tributos locais e provinciais, aplicáveis para fins locais e provinciais, sua administração, na maioria dos casos, era confiada à cidade específica, à paróquia ou senhorio em que eram recolhidos, sendo tais comunidades, de uma forma ou outra, responsáveis pela aplicação da respectiva receita. O soberano, que é totalmente dispensado de prestar contas, em muitos países avocou a si a administração desses tributos, e embora na maioria dos casos os tenha aumentado muitíssimo, em muitos outros negligenciou a aplicação dos mesmos. Se um dia os direitos de pedágio se transformassem em um dos recursos financeiros do Governo, o exemplo de muitas outras nações nos ensinaria qual seria a provável conseqüência disso. Não cabe dúvida de que tais tributos são, em última análise, pagos pelo consumidor; entretanto, este não é taxado em proporção a seus gastos, quando paga não com base no valor que ele consome, mas com base no volume ou peso do que consome. Quando tais tributos são impostos não com base no volume ou peso, mas com base no suposto valor das mercadorias, eles se transformam propriamente em um tipo de imposto aduaneiro interno ou de consumo, que representa um enorme obstáculo para o mais importante de todos os setores do comércio — o comércio interno do país. Em alguns Estados pequenos, impõem-se tributos similares ao 343
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do pedágio sobre mercadorias transportadas através do território, por terra ou por água, de um país estrangeiro para outro. Em alguns países eles são designados com o nome de direitos de trânsito ou passagem. Alguns dos pequenos Estados da Itália, localizados às margens do rio Pó e dos rios que nele desembocam, auferem uma certa receita desses tributos, pagos exclusivamente por estrangeiros e que talvez sejam os únicos que um Estado pode impor aos súditos de outro Estado sem em nada obstruir sua própria atividade ou comércio. O mais importante direito de passagem existente no mundo é recolhido pelo rei da Dinamarca sobre todos os navios mercantes que passam pelo estreito. Os impostos sobre artigos de luxo, tais como a maior parte das taxas alfandegárias e dos impostos de consumo, embora recaiam todos, indistintamente, sobre cada uma das três fontes de renda, e embora sejam em última análise pagos, sem nenhuma retribuição, por todo aquele que consome os produtos sobre os quais são impostos, nem sempre incidem de maneira equânime ou proporcional sobre a renda de cada indivíduo. Já que é o estado de espírito de cada um que determina o grau de seu consumo, cada um contribui conforme seu estado de espírito, mais do que em proporção com sua renda, sendo que os pródigos contribuem mais do que na proporção adequada, e os parcimoniosos contribuem menos. Durante o período de minoridade de um indivíduo muito rico, ele costuma contribuir muito pouco, mediante seu consumo, para o sustento daquele Estado de cuja proteção aufere uma grande renda. Os que vivem em outro país em nada contribuem, com seu consumo, para o sustento do Governo do país no qual está localizada a fonte de sua renda. Se neste último não houver imposto sobre a terra, nem nenhum imposto notável sobre a transferência de bens móveis ou imóveis, como ocorre na Irlanda, tais ausentes podem auferir uma grande renda da proteção de um Governo para cujo sustento não contribuem com um xelim sequer. Essa falta de equanimidade provavelmente atingirá o máximo em um país cujo Governo, sob alguns aspectos, estiver subordinado e depender do Governo de algum outro país. As pessoas que possuem as maiores propriedades no país dependente geralmente optarão, nesse caso, por viver no país que governa. A Irlanda está exatamente nessa situação, não devendo, portanto, surpreender-nos que seja tão popular naquele país a proposta de se impor um tributo aos ausentes. Talvez possa ser um pouco difícil determinar com precisão que tipo ou que grau de ausência deveria sujeitar uma pessoa a ser taxada como ausente, ou em que ponto exato o imposto deveria começar ou terminar. Se, porém, excetuarmos essa situação bem peculiar, toda desigualdade de contribuição dos indivíduos, que possa provir de tais taxas, é muito mais do que compensada pela própria circunstância que dá origem a essa desigualdade, isto é, a de que a contribuição de cada um é inteiramente voluntária, já que está totalmente em sua opção consumir ou não a mercadoria tributada. Quando, portanto, esses impostos são devidamente cobrados, e incidem sobre as mercadorias apropriadas, são pagos com menos reclamação do que 344
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qualquer outro. Quando são pagos adiantadamente pelo comerciante ou manufator, o consumidor, que é quem os paga no final, acaba logo por confundi-los com o preço das mercadorias e quase esquece que está pagando um imposto. Tais impostos são ou podem ser inteiramente certos e definidos, isto é, podem ser cobrados de tal forma que não resta dúvida alguma em relação ao que deve ser pago e a quando isso deve acontecer, ou seja, em relação à quantia a pagar e à data do recolhimento. Qualquer que seja a incerteza ou indefinição que possa por vezes haver, seja nas taxas alfandegárias da Grã-Bretanha seja em outros impostos do mesmo gênero em outros países, ela não pode provir da natureza desses impostos, mas da inexatidão ou da impropriedade de expressão da lei que os impõe. Os impostos sobre artigos de luxo geralmente são pagos, ou ao menos sempre podem sê-lo, gradualmente, isto é, à medida que os contribuintes têm ocasião de comprar as mercadorias sobre as quais incidem. Quanto à data e à modalidade de pagamento, eles são — ou ao menos podem ser — os mais convenientes de todos os impostos. No global, tais impostos obedecem, pois, aos três primeiros dos quatro preceitos gerais relativos à tributação, na mesma medida que qualquer outro imposto. Contrariam, porém, sob todos os aspectos, ao quarto preceito. Esses impostos, em proporção com o que arrecadam para os cofres públicos, sempre tiram ou mantêm fora dos bolsos da população mais do que quase todos os outros. Ao que parece, isso ocorre em qualquer das quatro maneiras diferentes em que seja possível conceber. Primeiramente, o recolhimento desses tributos, mesmo quando impostos da maneira mais criteriosa, exige grande número de oficiais da alfândega e da receita, sendo que os salários e as gratificações que recebem representam para a população uma taxa real que nada traz para os cofres do Estado. Deve-se reconhecer, porém, que essa despesa é menor na Grã-Bretanha do que na maioria dos demais países. No ano terminado em 5 de julho de 1775, o montante bruto dos diversos impostos, sob a administração dos encarregados do imposto de consumo, na Inglaterra, ascendeu a £ 5 507 308 18 s 8 1/4 d, cujo recolhimento acusou um custo pouco superior a 5,5%. Desse montante bruto, porém, é preciso deduzir o que foi pago em subsídios e drawbacks na exportação de mercadorias sujeitas a tributo, o que reduz o montante líquido a menos de 5 milhões.49 O recolhimento do imposto sobre o sal, um imposto de consumo, mas sob uma administração diferente, é muito mais dispendioso. A receita líquida da alfândega não chega a 2,5 milhões, sendo que o recolhimento dessa quantia acarreta uma despesa superior a 10%, representada pelos salários dos funcionários da alfândega e por outros itens. Entretanto, as gratificações para os funcionários da alfândega são em toda parte muito superiores a seus salários; em alguns 49
A receita líquida daquele ano, deduzidas todas as despesas e subsídios, foi de £ 4 975 652 19 s 6 d. 345
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portos, elas representam mais que o dobro ou o triplo desses salários. Se, portanto, os salários dos funcionários da alfândega e outros itens ascendem a mais de 10% da receita líquida da alfândega, sendo que o custo total do recolhimento dessa receita, somando os salários e as gratificações, deve representar mais de 20% ou 30%. Os encarregados do imposto de consumo recebem pouca ou nenhuma gratificação, e, pelo fato de a administração desse setor da receita ser de criação mais recente, ela geralmente é menos corrupta que a administração alfandegária, na qual, em virtude do longo tempo de funcionamento, foram introduzidos e autorizados muitos abusos. Supõe-se que, recolhendo sobre o malte toda a receita hoje proveniente dos diversos impostos sobre o malte e as bebidas contendo malte, poder-se-ia conseguir uma economia de mais de 50 mil libras nos gastos anuais decorrente do recolhimento do imposto de consumo. Limitando as taxas alfandegárias e alguns tipos de mercadoria, e recolhendo esses impostos segundo as leis do imposto de consumo, provavelmente se poderia obter uma economia muito maior na despesa anual da alfândega. Em segundo lugar, tais impostos inevitavelmente acarretam alguma obstrução ou desestímulo para certos setores de atividade. Por aumentarem sempre o preço da mercadoria tributada, sob esse aspecto desestimulam o consumo da mesma e conseqüentemente sua produção. Se for uma mercadoria produzida ou manufaturada no país, seu cultivo e produção dão emprego a um contingente menor de mão-de-obra. Se for uma mercadoria estrangeira, cujo preço é assim aumentado pelo imposto, sem dúvida as mercadorias do mesmo tipo produzidas no país podem, com isso, obter alguma vantagem no mercado interno, podendo-se portanto empregar um contingente maior de mão-de-obra interna na produção das mesmas. Contudo, ainda que esse aumento de preço de uma mercadoria estrangeira possa estimular a atividade do país em um setor específico, ele inevitavelmente desestimula essa atividade em quase todos os demais setores. Quanto mais alto for o preço pelo qual o manufator de Birmingham compra seu vinho estrangeiro, tanto mais baixo será necessariamente o preço pelo qual venderá aquela parte de seus manufaturados de ferro com os quais — ou, o que dá no mesmo, com o preço dos quais — ele compra o vinho. Por conseguinte, essa parte de seus produtos passa a ter menos valor para ele, sentindo-se menos estimulado para continuar a manufaturá-los. Quanto mais caro os consumidores de um país pagarem pelo excedente de produção de um outro, tanto mais barato necessariamente venderão aquela parcela de seu próprio excedente de produção com a qual — ou, o que é a mesma coisa, com o preço da qual — comprarão o excedente do outro. Essa parte de seu próprio excedente de produção passa a ter menos valor para eles, tendo menos estímulo para aumentarem a quantidade do mesmo. Por conseguinte, todos os impostos sobre mercadorias de consumo tendem a reduzir o contingente de mão-de-obra produtiva abaixo do que seria de outra forma, seja no preparo das mercadorias taxadas — em se tratando de mercadorias produzidas no país — seja 346
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no preparo daquelas com as quais se compram as mercadorias estrangeiras. Além disso, esses impostos sempre alteram, em grau maior ou menor, a orientação natural da atividade nacional, e sempre a direcionam para um canal diferente — e geralmente menos vantajoso — daquele para o qual ela se orientaria espontaneamente. Em terceiro lugar, a esperança de sonegar tais impostos pelo contrabando dá muito ensejo a confiscos e outras penalidades, que acarretam a ruína completa do contrabandista — pessoa que, conquanto, sem dúvida, seja atualmente censurável por violar as leis de seu país, muitas vezes é incapaz de violar as leis da justiça natural e teria sido sob todos aspectos um excelente cidadão, se as leis de seu país não tivessem transformado em crime aquilo que a natureza nunca entendeu como tal. Naqueles governos corruptos em que existe ao menos uma suspeita geral de muitos gastos supérfluos, e muita aplicação desregrada da receita pública, são pouco respeitadas as leis que proíbem o contrabando. Poucos são os que têm escrúpulos de praticar o contrabando quando, sem perjúrio, puderem encontrar alguma oportunidade fácil e segura de praticá-lo. Pretender que se tenha algum escrúpulo em comprar mercadorias contrabandeadas, embora isso represente um estímulo evidente à violação das leis da receita e ao perjúrio que quase sempre lhe segue, na maioria dos países seria considerado como um desses atos pedantes de hipocrisia que, em vez de granjear crédito junto a quem quer que seja, servem apenas para expor a pessoa que os pratica à suspeita de ser um patife maior do que a maioria de seus vizinhos. Com essa indulgência do público, o contrabandista muitas vezes é estimulado a continuar a exercer uma atividade que se lhe ensina a considerar até certo ponto inocente; e quando o rigor das leis da receita está pronto para cair sobre ele, muitas vezes ele está disposto a defender com violência o que foi acostumado a considerar como sua justa propriedade. Depois de ter sido, de início, mais imprudente talvez que criminoso, ao final ele muitas vezes se transforma em um dos mais atrevidos e decididos violadores das leis da sociedade. Pela ruína do contrabandista, seu capital, que anteriormente havia sido empregado para manter mão-de-obra produtiva, é incorporado à receita do Estado ou à dos funcionários da receita, sendo empregado, a partir dali, na manutenção de mão de-obra improdutiva, diminuindo assim o capital global do país e a atividade útil que de outra forma poderia ter mantido. Em quarto lugar, tais impostos, por sujeitarem, no mínimo, os comerciantes que lidam com as mercadorias taxadas às freqüentes visitas e à odiosa inspeção dos coletores da receita, às vezes os expõem a certo grau de opressão e sempre a grande dose de incômodos e vexames; ora, como já disse, embora o vexame não seja, estritamente falando, uma despesa, certamente equivale à despesa pela qual cada um gostaria de livrar-se dele. As leis do imposto de consumo, embora sejam mais eficazes para o objetivo em função do qual foram instituídas, são, sob esse aspecto, mais vexatórias que as da alfândega. Quando 347
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um comerciante importou mercadorias sujeitas a determinadas taxas alfandegárias, depois de tê-las pago e colocado em seu depósito, na maioria dos casos não está mais sujeito a outro incômodo e vexame por parte do funcionário da alfândega. O mesmo não acontece com as mercadorias sujeitas a impostos de consumo. Os comerciantes não têm trégua diante das contínuas visitas e inspeções dos funcionários da receita. Em razão disso, os impostos de consumo são mais impopulares do que os da alfândega, acontecendo o mesmo com os funcionários encarregados de seu recolhimento. Segundo se alega, esses cobradores de impostos de consumo, ainda que, no geral, talvez cumpram seu dever tão bem quanto os funcionários da alfândega; pelo fato de que seu dever os obriga a serem com freqüência muito molestos para alguns de seus semelhantes, costumam adquirir uma certa dureza de caráter, que os outros muitas vezes não têm. Entretanto, é muito provável que essa observação representa simplesmente uma sugestão vinda de comerciantes fraudulentos, cujo contrabando é impedido ou descoberto pela diligência dos representantes do fisco. Não obstante isso, os inconvenientes que talvez, até certo ponto, são inseparáveis dos impostos que gravam as mercadorias de consumo não são mais pesados para o povo da Grã-Bretanha do que para o povo de qualquer outro país, cujas despesas de governo são mais ou menos do mesmo porte. Nosso Estado não é perfeito podendo ser melhorado; mas ele é tão bom ou até melhor do que o da maioria dos nossos vizinhos. Em decorrência da idéia de que os tributos sobre bens de consumo seriam impostos sobre os lucros dos comerciantes, em alguns países eles têm sido repassados por ocasião de cada venda sucessiva das mercadorias. Taxando-se os lucros do comerciante importador ou do comerciante manufator, a eqüidade parecia exigir que se tributassem também os lucros dos compradores intermediários que intervinham entre os primeiros e o consumidor. Esse parece ter sido o princípio que serviu de base para a criação da célebre alcavala da Espanha. De início era uma taxa de 10%, depois, de 14%, sendo atualmente apenas de 6% sobre a venda de todo tipo de propriedade, seja móvel ou imóvel, repassando-se o imposto toda vez que a propriedade é vendida.50 A arrecadação desse imposto demanda uma multidão de funcionários da receita que fosse suficiente para vigiar o transporte de mercadorias, não somente de uma província para outra, mas também de uma loja para outra. O imposto sujeita às contínuas visitas e inspeções dos coletores da receita não somente os que comercializam alguns tipos de mercadorias, mas também todo explorador de terras, todo manufator, todo comerciante e lojista. Na maior parte do país em que vigora tal imposto, nada se pode produzir para venda à distância. A produção de cada região do país tem que ser proporcional ao consumo das ime50
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diações. É, pois, à alcavala que Ustaritz atribui a ruína das manufaturas na Espanha. A ela poderia ter atribuído outrossim o declínio da agricultura, já que o tributo incide não somente sobre os manufaturados, mas também sobre a produção agrícola. No reino de Nápoles, há um imposto similar de 3% sobre o valor de todos os contratos e, portanto, sobre o valor de todos os contratos de venda. Ele é mais suave do que o imposto espanhol, e além disso a maior parte das cidades e paróquias pode pagar em lugar dele uma quantia combinada. Arrecadam essa quantia da maneira que quiserem, geralmente de uma forma que não faça interromper o comércio interno do lugar. Por isso, o imposto napolitano não é tão ruinoso como o espanhol. O sistema uniforme de taxação — que, salvo algumas exceções de pouca importância, vigora em todas as regiões do Reino Unido da Grã-Bretanha — deixa liberdade quase completa para o comércio interno do país, o comércio interiorano e o costeiro. O comércio interno é quase inteiramente livre, sendo que a maior parte das mercadorias pode ser transportada de uma extremidade do reino à outra, sem exigência de nenhuma permissão ou salvo-conduto, sem necessidade de interrogatório, visita ou inspeção dos funcionários da receita. Há algumas exceções, porém são tais que não podem gerar nenhuma interrupção de algum setor do comércio interno do país. Com efeito, para as mercadorias transportadas em direção à costa exigem-se certificados ou selos alfandegários. Se excetuarmos o carvão, porém, as demais mercadorias são quase todas isentas de tributação. Essa liberdade de comércio interno, efeito da uniformidade do sistema de tributação, é talvez uma das causas primordiais da prosperidade da Grã-Bretanha, já que todo grande país representa necessariamente o melhor e o mais vasto mercado para a maior parte da produção resultante de sua atividade. Se a mesma liberdade, em decorrência da mesma uniformidade, pudesse ser estendida à Irlanda e às colônias, tanto a grandeza do Estado como a prosperidade de todas as partes do Império seriam provavelmente ainda maiores do que são atualmente. Na França, a diversidade das leis tributárias vigentes nas diferentes províncias exige uma multidão de funcionários da receita para cercar não somente as fronteiras do reino, mas também as de quase toda província específica, seja para impedir a importação de determinadas mercadorias, seja para obrigá-la ao pagamento de certos impostos, gerando não pequenas interrupções no comércio interno do país. A algumas províncias permite-se fazer um acerto para o pagamento da gabelle ou imposto sobre o sal. Outras são totalmente isentas de pagá-lo. Algumas províncias são excluídas da venda exclusiva de fumo, direito de que desfrutam os rendeiros na maior parte do reino. As aides, que correspondem ao imposto de consumo na Inglaterra, diferem muito de uma província para outra. Algumas províncias são isentas delas, pagando um acerto ou algo semelhante. Nas províncias em que tais impostos estão em vigor e são administrados por terceiros, existem 349
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muitos impostos locais que não se estendem além de uma determinada cidade ou distrito. As Traites,51 que correspondem à nossa alfândega, dividem o reino em três grandes partes: primeiro, as províncias sujeitas à tarifa de 1664, denominadas as províncias dos cinco grandes farms,52 englobando-se neles a Picardia, a Normandia, bem como a maior parte das províncias do interior do reino; segundo, as províncias sujeitas à tarifa de 1667, consideradas províncias estrangeiras, estando nelas compreendida a maior parte das províncias de fronteira; e terceiro, as províncias que, como se diz, são tratadas como estrangeiras, ou seja, que, por terem permissão de manter comércio livre com países estrangeiros, em seu comércio com as demais províncias da França estão sujeitas aos mesmos impostos que outros países estrangeiros. São elas: a Alsácia, os três bispados de Metz, Toul e Verdun, e as três cidades de Dunquerque, Bayonne e Marselha. Tanto nas províncias dos cinco grandes farms (assim chamados devido a uma antiga divisão dos impostos alfandegários em cinco grandes setores, cada um dos quais estava originalmente sujeito a um farm específico, embora hoje estejam todos unidos em um único) como naquelas que são consideradas estrangeiras, há muitos impostos locais que não se estendem além de uma cidade ou distrito específico. Alguns desses impostos existem também até nas províncias que são tratadas como estrangeiras, particularmente na cidade de Marselha. É supérfluo observar até que ponto é preciso multiplicar tanto as restrições ao comércio interno do país quanto o número de funcionários da receita, para guardar as fronteiras das diversas províncias e distritos, sujeitos a tais sistemas diferentes de tributação. Além das restrições gerais oriundas desse complicado sistema de lei tributárias, o comércio do vinho, que depois do trigo talvez represente o produto mais importante da França, está na maioria das províncias sujeito a restrições especiais, em decorrência do favorecimento que se tem dado aos vinhedos de determinadas províncias e distritos, em relação aos de outros. Constatar-se-á, como acredito, que as províncias mais famosas por seus vinhos são aquelas em que o comércio de vinhos está menos sujeito a restrições desse gênero. O amplo mercado desfrutado por essas províncias estimula a boa administração, tanto no cultivo de seus vinhedos quanto no subseqüente preparo de seus vinhos. Essa variedade e complexidade da legislação tributária não são exclusivas da França. O pequeno ducado de Milão está dividido em seis províncias, em cada uma das quais vigora um sistema de tributação diferente com respeito a tipos diversos de bens de consumo. Os territórios ainda menores do Duque de Parma estão divididos em três ou quatro províncias, cada uma das quais tem, da mesma forma, um sis51
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Direitos aduaneiros, cobrados pelos grandes senhores ou pelo rei, que eram recolhidos sobre os produtos que transpusessem os limites do reino ou certas linhas aduaneiras internas. (N. do E.) Distrito arrendado pelo governo para o recolhimento de impostos. (N. do E.) 350
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tema próprio. Com uma administração tão absurda, nada, a não ser a grande fertilidade do solo e a excelência do clima, conseguiu preservar tais países de recair logo no mais baixo estado de pobreza e barbárie. Os impostos sobre bens de consumo podem ser recolhidos por uma administração cujos funcionários são designados pelo Governo e são imediatamente responsáveis perante ele — sendo que nesse caso a receita deve variar anualmente, de acordo com as variações ocasionais do produto dos impostos — ou então podem ser cobrados e administrados por terceiros, a troco de um arrendamento definido, permitindo-se então ao administrador designar seus próprios funcionários, os quais, embora sendo obrigados a arrecadar o imposto da maneira prescrita pela lei, estão sob a inspeção direta do administrador, sendo diretamente responsáveis perante ele. O melhor e mais econômico meio de arrecadar impostos nunca pode ser o da administração por terceiros. Além do que é necessário para pagar o arrendamento estipulado, os salários dos funcionários e toda a despesa de administração, o administrador sempre tem que deduzir do produto do imposto um certo lucro, no mínimo proporcional aos pagamentos adiantados que faz, ao risco que corre, ao trabalho e ao incômodo com que arca e ao conhecimento e habilidade que se requerem para administrar um negócio tão complicado. Criando uma administração sob sua inspeção direta, do mesmo tipo que a implantada pelo administrador, o Governo poderia, no mínimo, economizar esse lucro, que é quase sempre exorbitante. Para administrar qualquer setor considerável da receita pública exige-se um grande capital ou um grande crédito, fator que por si só limita a concorrência em tal empreendimento a um número muito reduzido de pessoas. Dos poucos que dispõem de capital ou crédito desse porte, um número ainda menor possui o conhecimento ou a experiência exigidos — outra circunstância que restringe ainda mais o círculo dos possíveis concorrentes. Os pouquíssimos que estiverem em condições de competir acabam achando mais interessante para eles mancomunar-se, tornar-se sócios em vez de concorrentes, de tal modo que, ao ser colocado em leilão, o farm não oferecerá renda, mas ficará muito abaixo de seu valor real. Em países em que a receita pública é administrada por terceiros, os administradores costumam ser as pessoas mais opulentas. Bastaria sua riqueza para excitar a indignação pública; e a vaidade que quase sempre acompanha tais fortunas de novos ricos, a ostentação descabida com que geralmente dão vazão a esta riqueza excitam ainda mais a indignação popular. Os administradores da receita pública nunca acham excessivamente severas as leis que punem qualquer tentativa de sonegação de impostos. Não têm compreensão alguma para com os contribuintes que não são seus súditos, sendo que a falência de todos eles não afetaria muito seus interesses, se ocorresse no dia seguinte ao do término de seu contrato de administração. Mesmo nas maiores necessidades do Estado, quando inevitavelmente atinge o máximo a preocupação do soberano pela entrada exata de sua receita, raramente deixam de alegar 351
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que, sem leis mais rigorosas do que as atualmente em vigor, lhes será impossível pagar até mesmo a renda usual. Em tais momentos de aflição pública, é impossível resistir às imposições deles. Em conseqüência, as leis da receita se tornam gradativamente mais rigorosas. As leis mais sanguinárias vigoram sempre nos países em que a maior parte da receita pública é administrada por terceiros, e as menos severas se encontram nos países em que ela é arrecadada sob a inspeção direta do soberano. Mesmo um mau soberano sente mais compaixão por seu povo do que a que jamais se pode esperar dos administradores de sua receita. Sabe o soberano que a dignidade permanente de sua família depende da prosperidade de seu povo, e nunca arruinará conscientemente essa prosperidade em função de algum interesse econômico pessoal. O mesmo não acontece com os administradores da receita do soberano, pois a dignidade deles muitas vezes pode ser efeito da ruína, e não da prosperidade do povo. Por vezes, um imposto não somente é administrado por determinada renda, senão que, além disso, o administrador tem o monopólio da mercadoria tributada. É dessa maneira que, na França, são recolhidos os impostos sobre o fumo e o sal. Em tais casos, o administrador, em vez de recolher um rendimento da população, recolhe dois que são exorbitantes: o que lhe cabe na qualidade de administrador e o ainda mais exorbitante que lhe cabe na qualidade de monopolista. Sendo o fumo um artigo de luxo, cada um pode comprá-lo ou não, como lhe aprouver. Quanto ao sal, porém, por se tratar de um artigo de necessidade, cada um é obrigado a comprar do administrador uma determinada quantidade, já que, se não comprasse dele essa quantidade, possivelmente a adquiriria de algum contrabandista. Os impostos sobre as duas mercadorias são exorbitantes. Em conseqüência, a tentação do contrabando é irresistível para muitos, enquanto que ao mesmo tempo o rigor da lei, bem como a vigilância dos funcionários do administrador fazem com que quase certamente vá à ruína quem ceder à tentação. O contrabando de sal e fumo envia anualmente várias centenas de pessoas às galeras, além de um número bem considerável que manda para a forca. Esses impostos, recolhidos dessa forma, produzem uma receita bem considerável para o Governo. Em 1767, a administração do fumo foi cedida por 22 541 278 libras francesas por ano e a do sal, por 36 492 404 libras francesas. Nos dois casos, a administração devia começar em 1768 e durar seis anos. Aqueles para os quais o sangue do povo nada é em comparação com a receita do rei talvez possam aprovar esse método de recolher impostos. Impostos e monopólios similares sobre o sal e o fumo têm sido implantados em muitos outros países, especialmente nos domínios austríacos e prussianos e na maior parte dos Estados da Itália. Na França, a maior parte da receita efetiva da Coroa provém de oito fontes diferentes: a talha, a capitação, os dois vingtièmes, as gabelles, as aides, as traites, a domaine e a administração do fumo. As cinco últimas estão sob administração de terceiros, na maioria das 352
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províncias. As três primeiras são em toda a França recolhidas por uma administração diretamente inspecionada e sujeita ao Governo, reconhecendo todos que, em proporção com aquilo que extraem dos bolsos da população, as três carreiam para os cofres do rei mais do que as outras cinco, cuja administração comporta muito mais desperdício e gastos. No estado em que atualmente se encontram, as finanças da França parecem comportar três reformas muito óbvias. Primeiramente, abolindo-se a talha e a capitação e aumentando o número de vingtièmes, de molde a produzir uma receita adicional equivalente ao montante da talha e da capitação, a receita da Coroa poderia ser mantida, os gastos de recolhimento poderiam ser notavelmente reduzidos, a opressão das camadas inferiores da população, gerada pela talha e pela capitação, poderia ser totalmente evitada, e as classes superiores da população poderiam não ser mais oneradas do que a maior parte delas é atualmente. Já observei que o vingtème é um imposto que se aproxima muito, em seu gênero, do imposto sobre a terra vigente na Inglaterra. Reconhece-se que o ônus da talha recai ao final sobre os proprietários de terras; e como a maior parte da capitação incide sobre os que estão sujeitos à talha, à razão de certa quantia de libras por talha, a maior parte da capitação também acaba recaindo necessariamente sobre os proprietários de terras. Por conseguinte, mesmo que o número dos vingtièmes fosse aumentado, de maneira a produzir uma receita adicional equivalente ao montante da talha e da capitação, possivelmente as classes superiores da população não ficariam mais oneradas do que atualmente. Sem dúvida, muitos indivíduos ficariam mais onerados em razão da grande desigualdade que costuma caracterizar a cobrança da talha sobre as propriedades e os rendeiros de diferentes indivíduos. O interesse e a oposição de tais indivíduos favorecidos constituem os obstáculos mais prováveis para se efetuar essa ou alguma outra reforma do mesmo gênero. Em segundo lugar, fazendo com que a gabelle, as aides, as traites, os impostos sobre o fumo, bem como todos os diversos direitos alfandegários e impostos de consumo, sejam uniformizados em todas as partes do reino, esses impostos poderiam ser recolhidos com muito menos gastos, e o comércio interno do reino poderia tornar-se tão livre quanto o da Inglaterra. Em terceiro e último lugar, fazendo com que a administração de todos esses impostos seja feita sob a inspeção e a direção direta do Governo, os lucros exorbitantes dos rendeiros poderiam ser acrescidos à receita do Estado. É provável que a oposição oriunda do interesse privado de indivíduos seja tão eficaz para sustar esses dois projetos de reforma, quanto o será para impedir a concretização do primeiro citado. Sob todos os aspectos, o sistema tributário francês é inferior ao britânico. Na Grã-Bretanha, arrecadam-se anualmente 10 milhões de libras esterlinas, sobre uma população inferior a oito milhões, não sendo possível afirmar-se que alguma determinada categoria de pessoas seja oprimida. Tomando por base os dados compilados pelo padre Expilly, bem como as observações do autor do Ensaio sobre a Legislação e o 353
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Comércio de Cereais, parece provável que a França, incluindo as províncias da Lorena e Bar, conta aproximadamente com 23 ou 24 milhões de pessoas, número possivelmente três vezes superior à população da Grã-Bretanha. O solo e o clima francês são superiores aos da Grã-Bretanha. Faz muito mais tempo que o país está em situação de aprimoramento e cultivo agrícola e, por essa razão, está mais bem aparelhado com tudo aquilo que se leva muito tempo para cultivar e acumular, como grandes cidades e casas confortáveis e bem construídas, tanto na área urbana como na rural. Com essas vantagens, poder-se-ia esperar arrecadar na França uma receita de 30 milhões de libras esterlinas para o sustento do Estado, com tão poucos problemas quanto uma receita de 10 milhões na Grã-Bretanha. Em 1765 e 1766, a receita total que entrou nos cofres públicos da França, segundo os melhores — embora, reconheço, bem imperfeitos — cálculos que consegui obter, normalmente oscilou entre 308 e 325 milhões de libras francesas, ou seja, não chegou a 15 milhões de libras esterlinas; nem sequer a metade do que se poderia ter esperado, se a população tivesse contribuído na mesma proporção de seu contingente que a população da Grã-Bretanha. E, no entanto, é geralmente reconhecido que a população francesa é muito mais oprimida pelos impostos do que a população britânica. Ora, a França é certamente, na Europa, o grande império que, depois da Grã-Bretanha, tem o Governo mais moderado e mais indulgente. Na Holanda, afirma-se que os pesados impostos sobre os artigos de necessidade arruinaram suas manufaturas principais, tendo probabilidade de desestimular até a pesca e a construção naval do país. Os impostos sobre os artigos de necessidade são irrelevantes na Grã-Bretanha, sendo que eles até agora não arruinaram manufatura alguma. Os impostos britânicos que mais pesam sobre os manufaturados são algumas taxas incidentes sobre importação de matérias-primas, particularmente os incidentes sobre a seda bruta. No entanto, segundo se diz, a receita dos Estados Gerais e das diversas cidades ultrapassa 5 250 milhões de libras; e como dificilmente se pode supor que a população das Províncias Unidas ultrapasse 1/3 da população da GrãBretanha, devem ser muito mais pesados os impostos que oneram o povo holandês, em proporção com o contingente populacional do país. Se, depois de estarem exauridos todos os itens adequados para tributação, a situação do Estado continuar a exigir novas taxas e tributos, estes têm que ser impostos sobre artigos inadequados para taxação. Por isso, os impostos sobre artigos de necessidade podem não depor contra a sabedoria daquela República que, para adquirir e manter sua independência, apesar de sua grande parcimônia, teve que envolver-se em guerras tão dispendiosas que foi obrigada a contrair grandes dívidas. Aliás, as regiões características da Holanda e da Zelândia exigem gastos consideráveis até para preservarem sua existência, ou seja, para não serem tragadas pelo mar, o que deve ter contribuído para aumentar consideravelmente o peso dos impostos naquelas duas províncias. A forma republicana de Governo parece ser o suporte prin354
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cipal da atual importância da Holanda. Os proprietários de grandes capitais, as grandes famílias de comerciantes costumam ter alguma participação direta na administração daquele Governo ou então alguma influência indireta nele. Pelo respeito e autoridade que lhes advêm dessa posição, estão dispostos a viver em um país em que seu capital, por ser aplicado por eles mesmos, lhes traz menos lucro e, se o emprestarem a outros, lhes traz menos juros; e onde a renda muito modesta que têm condições de auferir tem, em relação aos artigos de necessidade e de conforto material, poder de compra inferior ao que teria em qualquer outro país da Europa. A residência dessas pessoas ricas necessariamente mantém vivo, no país, um certo grau de atividade, a despeito de todas as desvantagens. Qualquer calamidade pública que destruísse a forma republicana de Governo, que abandonasse toda a administração às mãos de nobres e de soldados, que aniquilasse totalmente o prestígio desses comerciantes ricos, logo faria com que eles não tivessem mais prazer em viver onde não houvesse mais probabilidade de serem publicamente respeitados. Transfeririam tanto sua residência como seu capital para algum outro país, sendo que a indústria e o comércio da Holanda logo seguiriam os capitais que lhes davam sustentação.
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CAPÍTULO III As Dívidas Públicas
Naquele primitivo estágio da sociedade que antecede a ampliação do comércio e o aprimoramento das manufaturas, quando se desconhecem totalmente aqueles artigos de luxo que somente o comércio e as manufaturas podem introduzir, a pessoa que possui uma renda elevada não tem meios de gastá-la ou dela desfrutar senão sustentando quase tantas pessoas quantas puder, conforme procurei mostrar no Livro Terceiro desta pesquisa. Pode-se dizer que uma renda elevada, em qualquer época que seja, consiste no controle que se tem sobre uma grande quantidade de artigos de primeira necessidade. Nesse estágio primitivo, essa alta renda costumava ser paga em forma de uma grande quantidade desses artigos de primeira necessidade, em elementos para alimentação simples e vestimentas grosseiras, em cereais e gado, em lã e couros crus. Quando nem o comércio nem as manufaturas oferecem algo pelo qual o possuidor possa trocar a maior parte desses materiais que vão além de seu próprio consumo, não pode ele fazer outra coisa com o excedente senão alimentar e vestir tantas pessoas quantas o excedente puder. Nesse estado de coisas, os gastos principais dos ricos e dos grandes consistem em uma hospitalidade na qual não há luxo algum e numa liberalidade em que não há ostentação. Ora, conforme procurei igualmente mostrar no mesmo Livro, essas despesas têm pouca possibilidade de levar as pessoas à ruína. Talvez não haja nenhum prazer egoísta tão frívolo, cujo gozo não tenha alguma vez arruinado até mesmo pessoas sensatas. Uma paixão por brigas de galo leva muitos à ruína. Entretanto, acredito não serem muito numerosos os exemplos de pessoas que se tenham arruinado com esse tipo de hospitalidade ou liberalidade, ainda que a hospitalidade faustosa e a liberalidade ostensiva tenham arruinado a muitos. Entre os nossos antepassados feudais, o longo tempo durante o qual as propriedades costumavam pertencer à mesma família demonstra sobejamente que as pessoas geralmente viviam dentro dos limites de sua renda. Con357
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quanto a hospitalidade rústica, constantemente exercida pelos grandes senhores de terras, possa, para nós que vivemos hoje, parecer inconciliável com essa categoria de pessoas que estamos propensos a considerar como inseparavelmente associada à boa economia, certamente temos que reconhecer que essas pessoas tenham sido frugais, ao menos a ponto de, via de regra, não gastarem toda a sua renda. Tinham geralmente oportunidade de vender por dinheiro parte de sua lã e de seus couros crus. Parte desse dinheiro, talvez elas gastassem na compra dos poucos objetos suscetíveis de satisfazer a vaidade e o luxo que podiam conseguir naquela época; alguma parte dele, porém, elas parecem ter geralmente acumulado. Na realidade, dificilmente poderiam ter feito outra coisa senão amealhar todo o dinheiro que conseguissem poupar. Praticar comércio representava uma desonra para um fidalgo, e emprestar dinheiro a juros, que naquela época era considerado como usura e proibido por lei, teria sido ainda mais desonroso. Naqueles tempos de violência e desordem, além disso, era recomendável ter-se à mão uma reserva de dinheiro, para que, no caso de as pessoas serem expulsas de seu próprio lar, pudessem levar consigo algo de reconhecido valor para algum lugar seguro. A mesma violência, que tornava igualmente conveniente acumular dinheiro, tornava também recomendável esconder o dinheiro amealhado. A freqüência da descoberta de tesouros, isto é, de tesouros cujos donos eram desconhecidos, constitui prova suficiente do costume, vigente na época, de amealhar e esconder dinheiro. A descoberta desses tesouros era então considerada como uma importante fonte da receita do soberano. Hoje em dia, mesmo todos os tesouros encontrados no reino dificilmente constituiriam uma fonte importante da receita de um fidalgo particular, dono de uma boa propriedade rural. A mesma propensão para economizar e acumular dinheiro prevalecia tanto em relação ao soberano como aos seus súditos. Entre nações que pouco conhecem o comércio e as manufaturas, o soberano, como já observei no Livro Quarto, acha-se em uma situação que, naturalmente, o leva à parcimônia necessária para acumular. Nessa situação, os gastos, mesmo de um soberano, não podem ser ditados por aquela vaidade que se deleita nos adereços pomposos de uma corte. A ignorância dos tempos só possibilita poucas das bugigangas em que consiste tal pompa. Não há necessidade de exércitos efetivos, de sorte que os gastos, mesmo de um soberano, como os de qualquer outro grande senhor, dificilmente podem ser aplicados em outras coisas senão em beneficiar seus rendeiros e em dar hospedagem a seus dependentes. Ora, é muito raro a beneficência e a hospitalidade levarem à extravagância, ao passo que a vaidade sempre a isso conduz. Como já observei, portanto, todos os antigos soberanos da Europa possuíam tesouros. Ainda hoje, afirma-se que todo chefe tártaro continua a ter um. Em um país comercial em que abunda todo tipo de artigos caros de luxo, o soberano, da mesma forma que quase todos os grandes proprietários em seus domínios, naturalmente gasta grande parte de sua 358
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renda na compra desses artigos de luxo. Seu próprio país e os países vizinhos também lhe fornecem em abundância todos os adereços preciosos que compõem o fausto, esplêndido, mas insignificante, de uma corte. Com vistas a um fausto inferior do mesmo tipo, seus nobres demitem seus dependentes, concedem liberdade a seus rendeiros e se tornam eles mesmos, aos poucos, tão insignificantes como a maior parte dos ricos burgueses de seus domínios. As mesmas paixões frívolas que influenciam sua conduta acabam influenciando a do rei. Como se poderia supor que ele fosse o único homem rico em seus domínios a permanecer insensível a prazeres desse gênero? Se não gastar — como fará com muita probabilidade — com esses prazeres parte tão grande de sua renda a ponto de enfraquecer muitíssimo o poder defensivo do Estado, é difícil esperar que não gaste nisso toda a parte da renda, além do necessário para sustentar aquele poder defensivo. Sua despesa normal passa a igualar sua receita normal, e será bom se muitas vezes não a ultrapassar. Não é mais de esperar que ele acumule dinheiro e, quando necessidades extraordinárias exigirem gastos igualmente extraordinários, necessariamente ele recorrerá a seus súditos para uma ajuda extraordinária. O atual e o falecido rei da Prússia são os únicos grandes príncipes europeus que, desde a morte de Henrique IV da França, em 1610, supostamente acumularam um tesouro considerável. A parcimônia que leva a acumular dinheiro tornou-se quase tão rara no governos republicanos como nos monárquicos. As repúblicas italianas, as Províncias Unidas dos Países Baixos, todas estão endividadas. O cantão de Berna é a única república européia que acumulou um tesouro considerável. As demais repúblicas suíças não o fizeram. O gosto por algum tipo de Fausto, pelas construções esplêndidas, no mínimo, e outras obras ornamentais públicas com freqüência prevalece tanto na aparentemente sóbria casa do senado de uma pequena república quanto na corte dissipada do maior monarca. A falta de parcimônia em tempo de paz impõe a necessidade de contrair dívidas em tempo de guerra. Quando sobrevém a guerra, não existe outro dinheiro no Tesouro a não ser o necessário para cobrir as despesas normais das instituições em tempo de paz. Em tempo de guerra, torna-se necessário dispor de três ou quatro vezes mais do que isso para a defesa do Estado e, por conseguinte, de uma receita três ou quatro vezes superior à suficiente para tempos de paz. Supondo-se que um soberano tivesse — o que dificilmente acontece — os meios imediatos para aumentar sua receita proporcionalmente ao aumento de seus gastos, mesmo assim o produto dos impostos, dos quais terá de ser tirado esse aumento de receita, só começará a entrar nos cofres públicos talvez dez ou doze meses depois da decretação dos mesmos. Ora, no momento em que a guerra começa, ou melhor, no momento em que parece em via de começar, é necessário aumentar o efetivo do exército, a esquadra precisa ser aparelhada, as cidades fortificadas têm que ser colocadas em condições de defesa; esse exército, essa esquadra, essas cidades fortificadas precisam receber armas, munições 359
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e mantimentos. Impõe-se um gasto imediato e vultoso, nesse momento de perigo imediato, gasto que não esperará pelo retorno gradual e lento dos novos impostos. Em tal emergência, o Governo não dispõe de outro recurso senão tomar dinheiro emprestado. A mesma situação comercial da sociedade que, através do efeito de causas morais, coloca o Governo na necessidade de tomar empréstimos, produz nos súditos tanto uma capacidade como uma propensão para dar empréstimos. Se a nova situação traz consigo a necessidade de tomar empréstimos, da mesma forma traz consigo a facilidade de concedê-los. Num país em que abundam os comerciantes e manufatores, necessariamente há também vasta categoria de pessoas por cujas mãos passam não somente seus próprios capitais, mas também os capitais de todos aqueles que lhes emprestam dinheiro ou lhes confiam mercadorias, sendo que esses capitais passam por essas mãos com a mesma freqüência e até com freqüência superior àquela com que passa pelas mãos de uma pessoa particular sua renda, pessoa que, por não ser comerciante ou negociante, vive de seus rendimentos. A renda dessa pessoa particular pode passar normalmente pelas suas mãos apenas uma vez por ano. Entretanto, o montante total do capital e do crédito de um comerciante que lida com um negócio cujos retornos são muito rápidos, pode às vezes passar pelas mãos dele duas, três ou quatro vezes por ano. Portanto, um país que tem em abundância comerciantes e manufatores necessariamente conta com enorme número de pessoas sempre em condições, se o quiserem, de adiantar ao Governo uma soma altíssima de dinheiro. Daí a capacidade que, em um país comercial, têm os súditos de oferecer empréstimos. O comércio e as manufaturas raramente podem florescer por muito tempo em um país que não tenha uma administração de justiça normal, no qual as pessoas não se sintam seguras na posse de suas propriedades, no qual a fidelidade nos contratos não seja garantida por lei e no qual não se possa supor que a autoridade do Estado seja regularmente empregada para urgir o pagamento das dívidas por parte de todos aqueles que têm condições de pagar. Em suma, o comércio e as manufaturas raramente podem florescer em qualquer país em que não haja um certo grau de confiança na justiça do Governo. A mesma confiança que dispõe grandes comerciantes e manufatores, em ocasiões normais, a confiarem sua propriedade à proteção de um governo em particular, leva-os, em ocasiões extraordinárias, a confiar ao Governo o uso de sua propriedade. Ao emprestar dinheiro ao Governo, em momento algum reduzem sua capacidade de levar avante seus negócios e suas manufaturas. Pelo contrário, geralmente essa capacidade aumenta. As necessidades do Estado fazem com que, na maioria das vezes, o Governo esteja disposto a tomar empréstimos em condições extremamente vantajosas para o mutuante. A garantia ou fiança que o Estado oferece ao credor é transferível a qualquer outro credor e, devido à confiança geral que se tem na Justiça do Estado, geralmente pode ser vendida no mercado por preço superior àquele pelo qual foi 360
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originariamente comprada. O comerciante ou a pessoa rica ganha dinheiro emprestando dinheiro ao Governo e, em vez de diminuir seu capital comercial, aumenta-o. Por isso, ele geralmente considera um favor o fato de a administração o admitir a participar da primeira subscrição de um novo empréstimo. Daí a inclinação ou disposição dos cidadãos de um Estado comercial para emprestar dinheiro. O Governo de tal Estado está muito propenso a confiar nessa capacidade de disposição de seus cidadãos para emprestar-lhe dinheiro em casos excepcionais. Ele prevê as facilidades de contrair empréstimos e, assim, dispensa-se da obrigação de economizar. No estágio primitivo de uma sociedade não há grandes capitais mercantis ou de manufaturas. Os indivíduos que acumulam todo dinheiro que conseguem poupar, e que escondem sua reserva, assim procedem por desconfiar da justiça do Governo, temerosos de que, se este souber que dispõem de dinheiro, serão saqueados logo que for descoberto o local onde está escondido. Em tais condições, poucas seriam as pessoas que teriam capacidade — e ninguém estaria disposto — de emprestar dinheiro ao Governo em casos de estrita necessidade. O soberano sente que deve prover tais exigências, economizando, porque prevê a absoluta impossibilidade de tomar empréstimos. Essa previsão aumenta ainda mais sua disposição natural para economizar. Tem sido bastante uniforme o aumento das enormes dívidas que atualmente oprimem todas as grandes nações da Europa, e a longo prazo provavelmente as levará à ruína. As nações, como as pessoas particulares, geralmente começaram a tomar empréstimos com base no que se pode chamar de crédito pessoal, sem ceder ou hipotecar nenhum fundo específico para o pagamento da dívida; e quando não dispunham mais desse recurso do crédito pessoal, continuaram a tomar empréstimos sobre cessões ou hipotecas de fundos particulares. A assim chamada dívida sem fundos da Grã-Bretanha foi contraída com base no crédito pessoal. Ela consiste, em parte, em uma dívida que não rende ou se supõe não render juros, e que se assemelha às dívidas que um particular contrai a prazo; em parte, consiste em uma dívida que rende juros e que se assemelha à que uma pessoa particular contrai sobre seu título ou nota promissória. As dívidas contraídas por serviços extraordinários, por serviços não executados ou não pagos no momento em que são prestados, bem como parte dos serviços extraordinários do Exército, da Marinha e da Artilharia, os atrasados de subsídios para príncipes estrangeiros, dos salários dos marinheiros etc. geralmente constituem dívidas do primeiro tipo. Os títulos da Marinha e do Erário, que, às vezes, são emitidos em pagamentos como parte de tais dívidas e, às vezes, para outras finalidades, constituem uma dívida do segundo tipo; os títulos do Erário rendem juros a partir do dia de sua emissão, e os da Marinha, seis meses depois de sua emissão. O Banco da Inglaterra — descontando voluntariamente esses títulos ao valor corrente dos mesmos ou concordando com o Governo em relação a certas considerações para a circulação 361
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dos títulos do Erário, isto é, recebê-los ao par, pagando os juros que ocasionalmente lhe são devidos — mantém seu valor e facilita sua circulação, com o que muitas vezes possibilita ao Governo contrair uma dívida muito grande desse tipo. Na França, onde não existem bancos, os títulos do Estado53 às vezes têm sido vendidos com um desconto de 60% ou 70%. Durante a grande recunhagem de moeda no tempo do rei Guilherme, quando o Banco da Inglaterra considerou conveniente sustar suas transações costumeiras, afirma-se que os títulos do Erário e as talhas foram vendidos com um desconto de 25% até 60%; sem dúvida, isso se deveu, em parte, à suposta instabilidade do novo governo implantado pela Revolução, mas em parte também à falta de apoio do Banco da Inglaterra. Quando esse recurso se exaure, sendo preciso, para arrecadar dinheiro, ceder ou hipotecar determinada parcela da receita pública para o pagamento da dívida, o Governo, em ocasiões diferentes, tem feito isso de duas maneiras distintas. Por vezes tem feito essa cessão ou hipoteca somente a curto prazo — um ano ou alguns poucos anos, por exemplo; e, às vezes, em caráter perpétuo. No primeiro caso, supunha-se que o fundo fosse suficiente para pagar, no prazo fixado, tanto o principal como os juros do dinheiro emprestado. No segundo, supunha-se suficiente apenas para pagar os juros ou uma anuidade perpétua equivalente aos juros, tendo o Governo liberdade para resgatar a qualquer momento essa anuidade, restituindo a soma principal que tomara emprestado. Quando a arrecadação do dinheiro era feita como no primeiro caso, dizia-se ter sido arrecadado por antecipação; no segundo caso, dizia-se que era arrecadado mediante um fundo perpétuo ou, mais concisamente, constituindo um fundo. Na Grã-Bretanha, os impostos anuais sobre a terra e sobre o malte são normalmente antecipados cada ano, em virtude de uma cláusula de empréstimo constantemente inserida nas leis que os impõem. O Banco da Inglaterra geralmente empresta a juros que, desde a Revolução, têm variado de 8% a 3%, o montante correspondente a esses tributos, e recebe o pagamento à medida que os impostos são arrecadados. Se houver um déficit — o que sempre ocorre —, tomam-se providências para possibilitar os suprimentos no ano seguinte. A única seção considerável da receita pública que ainda permanece livre da hipoteca é, assim, regularmente exaurida antes de ser recolhida. Como um perdulário imprevidente, cujas necessidades urgentes não lhe permitem esperar o pagamento regular de sua receita, o Estado adota constantemente a prática de emprestar dinheiro de seus próprios ecônomos e agentes, e de pagar juros para utilizar seu próprio dinheiro. No reinado do rei Guilherme e durante grande parte do da rainha Ana, antes de nos termos familiarizado tanto como hoje com a prática de criar fundos perpétuos, a maior parte dos novos tributos era imposta 53
Ver Examen des Réflexions Politiques sur les Finances. 362
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apenas por um breve período de tempo (somente para quatro, cinco, seis ou sete anos), e grande parte de subvenções de cada ano consistia em empréstimos por antecipação do produto desses impostos. Sendo o dinheiro arrecadado muitas vezes insuficiente para pagar, no prazo estabelecido, o principal e os juros do empréstimo, surgiam déficits e para remediá-los se tornava necessário prorrogar o prazo. Em 1697, por força do Estatuto 8, de Guilherme III, capítulo 20, os déficits de vários impostos recaíam sobre o que então se denominava primeira hipoteca ou fundos gerais, consistindo em um prolongamento, até 1º de agosto de 1706, de vários impostos que teriam expirado em um prazo mais curto, e cujo produto foi acumulado em um fundo geral. Os déficits que recaíam sobre esse prazo prolongado eram de £ 5 160 459 14 s 9 1/4 d. Em 1701, esses impostos, juntamente com alguns outros, foram prorrogados ainda mais, para os mesmos fins, até 1º de agosto de 1710, sendo denominados segunda hipoteca ou fundo geral. Os déficits incidentes sobre ele eram de £ 2 055 999 7s 11 1/2 d. Em 1707, esses impostos foram prorrogados ainda mais, como fundo para novos empréstimos, até 1º de agosto de 1712, sendo denominados terceira hipoteca ou fundo geral. A quantia dele emprestada foi de £ 983 254 11 s 9 1/4 d. Em 1708, todos esses impostos (excetuado o old subsidy por tonelagem e por libra, do qual somente a metade passou a fazer parte desse fundo, bem como um imposto sobre a importação de linho escocês, que havia sido suprimido pelos artigos da união) foram prorrogados mais uma vez, como fundo para novos empréstimos, até 1º de agosto de 1714, sendo denominados quarta hipoteca ou fundo geral. A quantia dele emprestada foi de £ 925 176 9 s 2 1/4 d. Em 1709, todos esses impostos (excetuado o old subsidy por tonelagem e por libra, que foi agora totalmente excluído desse fundo) foram novamente prorrogados com a mesma finalidade, até 1º de agosto de 1716, sendo chamados de quinta hipoteca ou fundo geral. O montante dele emprestado foi de £ 922 029 6 s 0 d. Em 1710, os referidos impostos foram outra vez prorrogados até 1º de agosto de 1720, sendo chamados de sexta hipoteca ou fundo geral. A soma dele emprestada foi de £ 1 296 552 9 s 11 3/4 d. Em 1711, os mesmos impostos (que, a essa altura, estavam portanto, sujeitos a quatro antecipações), juntamente com vários outros, foram prorrogados definitivamente, transformando-se em fundo para pagar os juros do capital da South Sea Company, que naquele ano havia adiantado ao Governo, para pagamento de dívidas e coberturas de déficits, a soma de £ 9 177 967 15 s 4 d — o maior empréstimo até então contraído. Antes dessa época, o principal — na medida em que pude observar —, os únicos tributos que haviam sido impostos para pagar os juros de uma dívida de caráter perpétuo, eram os destinados a pagar os juros do dinheiro que havia sido adiantado ao Governo pelo Banco da 363
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Inglaterra e pela Companhia das Índias Orientais, e do que se esperava fosse adiantado — mas que nunca foi — por um projetado banco financiador de transações em bens de raiz. O fundo bancário na época era de £ 3 375 027 17 s 10 1/2 d pelo qual se pagava uma anuidade ou juros de £ 206 501 13 s 5 d. O fundo das Índias Orientais era de 3,2 milhões de libras, pelo qual se pagava uma anuidade ou juros de 160 mil libras, sendo que o fundo do Banco da Inglaterra tinha juros de 6% e o fundo das Índias Orientais, de 5%. Em 1715, em virtude do Estatuto 1, de Jorge I, capítulo 12, os diversos impostos que haviam sido hipotecado para pagar a anuidade bancária, juntamente com vários outros que, por essa lei, também se tornaram perpétuos, foram acumulados em um fundo comum denominado Fundo Agregado, encarregado não somente de pagar a anuidade do Banco da Inglaterra, mas também várias outras anuidades e ônus de tipos diversos. Posteriormente esse fundo foi aumentado pelo Estatuto 3, de Jorge I, capítulo 8, e pelo Estatuto 5, de Jorge I, capítulo 3, e os diversos impostos que lhe foram então acrescentados, tomando-se também perpétuos. Em 1717, pelo Estatuto 3, de Jorge I, capítulo 7, vários outros impostos se tornaram perpétuos, sendo acumulados em um outro fundo comum, denominado Fundo Geral, para o pagamento de certas anuidades, equivalendo seu total a £ 724 849 6 s 10 1/2 d. Em conseqüência dessas diversas leis, a maior parte dos impostos que anteriormente haviam sido antecipados apenas para um prazo breve de alguns anos, se tornaram perpétuos, como fundo destinado a pagar, não o capital, mas somente os juros do dinheiro que havia sido tomado emprestado, com base nesses fundos, por diferentes antecipações sucessivas. Se nunca se tivesse arrecadado dinheiro senão por antecipação, alguns poucos anos teriam sido suficientes para desonerar a receita pública, sem qualquer outra preocupação do Governo afora a de não sobrecarregar o fundo, onerando-o com dívidas superiores às que tinha condições de pagar dentro do prazo fixado, e a de não antecipar novamente antes de expirar a primeira antecipação. Contudo, a maior parte dos Governos europeus não tem tido essas preocupações. Com freqüência, tem sobrecarregado o fundo, mesmo na primeira antecipação; e, quando isso não ocorria, geralmente se encarregava de sobrecarregar o fundo, antecipando uma segunda e uma terceira vez, antes de expirar a primeira antecipação. Tendo o fundo se tornado assim totalmente insuficiente para pagar tanto o principal como os juros do dinheiro emprestado, tornou-se necessário onerá-lo apenas com os juros ou com uma anuidade perpétua igual aos juros; tais antecipações imprevidentes inevitavelmente deram origem à prática ainda mais ruinosa de constituir fundos perpétuos. Ora, ainda que esta prática adie, necessariamente, a liberação da receita pública de um período fixo para um período tão indefinido que pouca probabilidade há de jamais esgotar-se; não obstante isso, uma vez que sempre se pode arrecadar 364
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uma quantia maior com essa nova prática do que com a antiga, de antecipações, tem-se globalmente preferido, nos casos de grande necessidade de Estado, a primeira modalidade à segunda, uma vez que o Governo chegou a familiarizar-se com a primeira. O objetivo de primordial interesse dos que estão diretamente envolvidos na administração da coisa pública é aliviar as necessidades atuais. Quanto à liberação futura da receita pública, deixam-na aos cuidados da posteridade. Durante o reinado da rainha Ana, a taxa de juros de mercado caiu de 6% para 5% e, no 12º ano de seu reinado, declarou-se que 5% era a taxa máxima que legalmente se poderia cobrar por dinheiro emprestado contra garantia particular. Logo depois de a maior parte dos impostos temporários da Grã-Bretanha ter se tornado perpétua e ser distribuída entre os fundos Agregado e Geral, além do South Sea, os credores do Estado, como os de pessoas particulares, foram induzidos a aceitar 5% de juros por seu dinheiro, o que gerou uma economia de 1% sobre o capital da maior parte das dívidas que haviam sido acumuladas em fundos perpétuos, isto é, um sexto da maior parte das anuidades pagas dos três grandes fundos acima mencionados. Essa economia permitiu um excedente considerável no montante dos diversos impostos que se haviam acumulado nesses fundos, além do necessário para pagar as anuidades que então pesavam sobre eles, lançando os fundamentos para o que desde então passou a chamar-se Fundo de Amortização. Em 1717, este era de £ 323 434 7 s 7 1/2 d. Em 1727, os juros da maior parte das dívidas públicas foram reduzidos ainda mais, para 4% e, em 1753 e 1757, reduzidos a 3,5% e a 3%; essas reduções aumentaram ainda mais o Fundo de Amortização. Um fundo de amortização, embora instituído para pagar dívidas velhas, facilita muitíssimo que se contraiam novas. Ele constitui um fundo subsidiário sempre disponível para ser hipotecado e para ajudar qualquer outro fundo duvidoso, podendo-se com ele arrecadar dinheiro em qualquer caso em que o Estado necessite. A exposição subseqüente mostrará suficientemente se o Fundo de Amortização da Grã-Bretanha tem sido aplicado com mais freqüência para uma ou outra dessas duas finalidades. Além desses dois sistemas de empréstimo citados — por antecipações e por constituição de fundos perpétuos — existem dois outros que ficam como que a meio caminho entre os dois primeiros: o de tomar empréstimos com base em anuidades a serem pagas durante um prazo fixo de anos, e o de tomá-los com base em anuidades a serem pagas enquanto viverem os mutuantes. Durante os reinados do rei Guilherme e da rainha Ana, tomaram-se com freqüência vultosos empréstimos para determinados períodos de anos, períodos esses às vezes mais longos, às vezes mais breves. Em 1693, aprovou-se uma lei que autorizava tomar um empréstimo de um milhão, pagando uma anuidade de 14%, isto é, 140 mil libras por ano, durante dezesseis anos. Em 1691, aprovou-se uma lei autorizando tomar empréstimo de um milhão pagando anuidades 365
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enquanto vivessem os mutuantes, em condições que, atualmente, pareceriam bastante vantajosas. Mas a subscrição não se completou. No ano subseqüente, o que faltava foi completado com novo empréstimo, com pagamento de anuidades de 14%, enquanto viverem os mutuantes, ou por pouco mais de sete anos de renda anual. Em 1695, permitiu-se às pessoas que haviam comprado essas anuidades, trocá-las por outras de 96 anos, pagando ao Tesouro 63 libras por 100, ou seja, a diferença entre 14% enquanto vivessem os mutuantes e 14% para 96 anos foi vendida por 63 libras, ou por 4,5 da renda anual. A suposta instabilidade do Governo era tão grande que mesmo nessas condições houve poucos compradores. No reinado da rainha Ana, tomaram-se empréstimos em várias ocasiões, tanto com anuidades enquanto vivessem os mutuantes quanto com anuidades por prazos de 32, 89, 98, e 99 anos. Em 1719, os proprietários das anuidades para 32 anos foram induzidos a aceitar, em lugar delas, capital da South Sea no montante de 11,5 anos de renda das anuidades, juntamente com uma quantidade adicional de capital igual aos atrasados, que então lhes eram devidos. Em 1720, foi subscrita no mesmo fundo a maior parte das outras anuidades para prazos anuais, tanto longos como breves. As anuidades para prazo longo somavam, na época, £ 666 821 8 s 3 1/2 d por ano. Em 5 de janeiro de 1775, o remanescente dessas anuidades, ou o que não foi subscrito na época, era de apenas £ 136 453 12 s 8 d. Durante as duas guerras, que começaram em 1739 e em 1755, foram pequenos os empréstimos tomados, seja com base em anuidades para períodos de anos, seja para enquanto vivessem os subscritores. Todavia, uma anuidade para 98 ou 99 anos vale quase tanto dinheiro quanto uma anuidade perpétua, o que poderia levar a pensar que tal anuidade poderia constituir um fundo para emprestar quase a mesma quantia de dinheiro. Todavia, aqueles que, no intuito de juntar fundos para a família e prevenir-se para um futuro remoto, comprassem capital público, não fariam questão de comprar de um fundo cujo valor estivesse diminuindo constantemente; ora, tais pessoas representam uma porcentagem bastante considerável dos proprietários e compradores de capital. Por conseguinte, ainda que o valor intrínseco de uma anuidade a longo prazo possa ser mais ou menos o mesmo que o de uma anuidade perpétua, ela não encontrará mais ou menos o mesmo número de compradores. Os subscritores de um novo empréstimo, que geralmente pretendem vender sua subscrição logo que possível, preferem sem discussão uma anuidade perpétua resgatável pelo Parlamento, a uma anuidade não resgatável para longo prazo, de valor apenas igual. Podese supor que o valor da primeira é sempre o mesmo, ou quase o mesmo, razão pela qual ela representa um capital transferível mais conveniente do que a segunda. Durante as duas últimas guerras mencionadas, as anuidades, seja para prazo fixo seja para o tempo em que vivessem os mutuantes, raramente eram concedidas a não ser como prêmios aos que subscrevessem um novo empréstimo, além da anuidade ou juros resgatáveis 366
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sobre cujo crédito se faria o suposto empréstimo. Eram concedidas, não como fundo propriamente dito com base no qual o dinheiro era tomado, mas como um estímulo adicional ao mutuante. As anuidades para o período em que vivessem os mutuantes têm sido ocasionalmente concedidas de duas maneiras diferentes: enquanto viver o respectivo indivíduo ou enquanto viver um grupo de indivíduos — modalidade esta denominada, em francês, tontines, do nome do seu inventor. Quando as anuidades são concedidas enquanto viver o respectivo indivíduo, a morte de cada beneficiário de uma anuidade desonera a receita pública na medida em que era afetada pela sua anuidade. Quando as anuidades são concedidas sob a forma de tontines, a liberação da receita pública só começa com a morte de todos os beneficiários de uma anuidade em grupo, o qual às vezes pode constar de vinte ou trinta pessoas sendo que os sobreviventes do grupo recebem as anuidades como sucessores de todos aqueles que falecem antes deles, e o último sobrevivente recebe as anuidades do grupo inteiro. Sobre a mesma receita sempre se pode arrecadar mais dinheiro por tontines do que por anuidades concedidas enquanto viver o indivíduo. Uma anuidade sob a forma de tontine realmente vale mais do que uma anuidade igual concedida enquanto viver o indivíduo, e devido à confiança que cada um tem na sua boa sorte — princípio sobre o qual se fundamenta o sucesso de todas as loterias — tal anuidade geralmente é vendida por preço um pouco acima do que realmente vale. Por esse motivo, em países onde é comum o Governo arrecadar dinheiro oferecendo anuidades, as tontines costumam ser preferidas às anuidades para indivíduos separados. Quase sempre é maior a preferência ao expediente que renda mais dinheiro em relação àquele que tem probabilidade de efetuar da maneira mais rápida a liberação da receita pública. Na França, a porcentagem de dívidas públicas que consistem em anuidades válidas enquanto viver o indivíduo é muito maior do que na Inglaterra. Segundo um relatório apresentado ao rei pelo Parlamento de Bordéus em 1764, o total da dívida pública da França é estimado em 2,4 bilhões de libras francesas, sendo que o capital para o qual se ofereceram anuidades com validade enquanto viver o indivíduo, segundo se supõe, monta a 300 milhões, oitava parte do montante da dívida pública. As próprias anuidades são calculadas em 30 milhões por ano, quarta parte de 120 milhões, os supostos juros do montante total da citada dívida. Sei muito bem que esses cálculos não são exatos mas, já que foram apresentados por um organismo tão respeitável como próximos à verdade, acredito que se possa considerá-los como tais. O que gera essa diferença nas respectivas modalidades de tomar empréstimos na França e na Inglaterra não é o maior ou menor grau de preocupação dos Governos com a liberação da receita pública. A diferença deve-se exclusivamente à diversidade de concepções e de interesses dos subscritores de empréstimos. Na Inglaterra, onde a sede do Governo fica na maior cidade mer367
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cantil do mundo, as pessoas que costumam adiantar dinheiro ao Governo são os comerciantes. Ao fazer isso, não têm em mente diminuir seus capitais mercantis mas, ao contrário, aumentá-los; e, se não esperassem vender com algum lucro sua parcela na subscrição de um novo empréstimo, nunca o subscreveriam. Ora, se ao adiantar seu dinheiro comprassem, em vez de anuidades perpétuas, anuidades que duram apenas enquanto vivem eles mesmos ou outras pessoas, nem sempre teriam tanta probabilidade de vendê-las com lucro. As anuidades com validade apenas enquanto eles mesmos vivem, vendê-las-iam sempre com prejuízo, porque ninguém pagará por uma anuidade válida enquanto durar a vida de outra pessoa — cuja idade e estado de saúde são mais ou menos iguais aos dele — o mesmo preço que pagaria por uma cuja validade durasse enquanto ele mesmo vivesse. Sem dúvida, uma anuidade válida enquanto durar a vida de uma terceira pessoa tem valor igual para o comprador e o vendedor, porém seu valor real começa a diminuir a partir do momento em que é oferecida, continuando a decrescer cada vez mais, enquanto subsistir a anuidade. Tal anuidade, portanto, jamais pode constituir um capital transferível tão conveniente quanto uma anuidade perpétua, cujo valor real, é de supor, permanece sempre o mesmo ou quase o mesmo. Na França, não estando a sede do Governo localizada em uma grande cidade mercantil, os comerciantes não representam uma porcentagem tão grande entre as pessoas que adiantam dinheiro ao Governo. A maior parte dos que adiantam seu dinheiro em todos os casos de necessidade pública é constituída por pessoas interessadas em finanças, financistas com o direito de receber impostos, arrecadadores de taxas que não se dedicam a atividades agrícolas, banqueiros da corte etc. Tais pessoas geralmente são gente de ascendência humilde, mas muito ricas e, muitas vezes, extremamente orgulhosas. São suficientemente orgulhosas para casar-se com seus iguais e as mulheres de alta categoria sentem repulsa em casar-se com eles. Por isso, muitas vezes eles decidem permanecer solteiros e, por não terem nem família própria nem muita consideração pelas famílias de seus parentes — que eles nem sempre gostam muito de reconhecer —, só desejam levar uma vida de esplendor enquanto viverem, não se preocupando com a eventualidade de sua fortuna terminar com eles. Além disso, é muito maior na França do que na Inglaterra o número de pessoas ricas que têm aversão ao casamento e que, devido à sua condição de vida, consideram contra-indicado ou inconveniente casar-se. Para tais pessoas, que pouco ou nada se preocupam com a posteridade, nada há de mais conveniente do que trocar seu capital por uma renda que deve durar tanto e não mais do que desejam. Como o gasto normal da maior parte dos Governos modernos, em tempo de paz, é igual ou quase igual à sua receita normal, quando sobrevém a guerra não desejam nem têm condições para aumentar sua receita proporcionalmente ao aumento de seus gastos. Não o desejam, temendo desagradar à população, a qual logo se desgostaria 368
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com a guerra, com um aumento tão grande e tão repentino dos impostos; e não têm condições, por não saber ao certo que impostos seriam suficientes para produzir a receita de que necessitam. A facilidade de levantar empréstimos os livra do embaraço que esse temor e essa incapacidade, de outra forma, lhes acarretariam. Os empréstimos lhes possibilitam, com um aumento de impostos bastante moderado, arrecadar, de um ano para outro, dinheiro suficiente para custear a guerra e, com a prática de constituir fundos perpétuos, podem, com o aumento mínimo possível de impostos, levantar anualmente a quantia máxima possível de dinheiro. Nos grandes impérios, muitas das pessoas que vivem na capital e das que vivem nas províncias localizadas longe do cenário bélico sentem pouca preocupação em decorrência da guerra; e desfrutam tranqüilamente do prazer de ler nos jornais as façanhas das esquadras e dos exércitos de seu país. Para eles esse divertimento compensa a pequena diferença entre os impostos que pagam em conseqüência da guerra e os que estavam habituados a pagar em tempo de paz. Costumam até entristecer-se com o retorno da paz, que põe fim à sua diversão, bem como a milhares de expectativas visionárias de conquista e glória nacional, caso a guerra continuasse por mais tempo. Com efeito, o retorno da paz raramente livra essas pessoas da maior parte dos tributos impostos durante a guerra. Estes são hipotecados para pagar os juros da dívida contraída para fazer a guerra. Se a antiga receita, juntamente com os novos impostos, além de pagarem os juros dessa dívida e cobrirem os gastos normais de Governo, produzirem algum excedente de receita, este talvez possa ser convertido em um fundo de amortização para liquidar a dívida. Entretanto, em primeiro lugar, esse fundo de amortização, mesmo supondo-se que não seja aplicado para nenhuma outra finalidade, é geralmente de todo insuficiente para pagar, no decurso de qualquer período durante o qual se possa razoavelmente esperar que a paz perdure, a dívida total contraída durante a guerra; e em segundo lugar, esse fundo quase sempre é aplicado para outros fins. Os novos tributos foram impostos com o único intuito de pagar os juros do dinheiro tomado emprestado com base neles. Se produzirem mais do que isso, trata-se geralmente de algo de que não se cogitava e nem se esperava e, por isso, raramente é considerável. Os fundos de amortização geralmente têm se originado não tanto de algum excedente dos impostos, que ultrapassaria o necessário para pagar os juros ou anuidades originalmente cobrados, mas antes de uma subseqüente redução desses juros. Tanto o fundo de amortização da Holanda, em 1655, como o do Estado Pontifício, em 1685, tiveram essa gênese. Daí a costumeira insuficiência de tais fundos. Durante a paz mais completa, ocorrem vários acontecimentos que exigem gastos extraordinários, e sempre o Governo acha mais conveniente cobrir essa despesa aplicando mal o fundo de amortização do que impondo novos tributos. A população ressente-se imediatamente, com intensidade maior ou menor, de cada novo imposto. Este sempre 369
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desperta comentários e encontra alguma oposição. Quanto mais se tiver multiplicado os impostos, quanto mais altos tiverem sido sobre cada item de taxação, tanto mais alto a população gritará contra cada novo imposto, tanto mais difícil se tornará encontrar novos itens a serem tributados, ou então aumentar muito os tributos antigos. Uma suspensão momentânea do pagamento da dívida não é imediatamente sentida pelo povo, não ocasionando nem comentários nem queixas. Emprestar dinheiro do fundo de amortização sempre é um recurso óbvio e fácil para sair da dificuldade atual. Quanto mais se tiverem acumulado as dívidas públicas, quanto mais necessário se tiver tornado procurar reduzi-las, tanto mais perigoso poderá ser aplicar mal alguma parcela do fundo de amortização, tanto menor será a probabilidade de se reduzir a dívida em medida considerável, tanto maior será a probabilidade, a certeza de que o fundo de amortização será mal aplicado para cobrir todas as despesas extraordinárias que ocorrem em tempo de paz. Quando uma nação já está sobrecarregada de impostos, nada, a não ser as exigências de uma nova guerra, nada a não ser a animosidade da vingança nacional ou a preocupação pela segurança nacional, pode levar a população a submeter-se com razoável paciência a um novo imposto. Daí os usuais desvios na aplicação do fundo de amortização. Na Grã-Bretanha, desde o tempo em que pela primeira vez recorremos ao ruinoso expediente de constituir fundos perpétuos, a redução da dívida pública em tempo de paz nunca manteve proporção alguma com o acúmulo da mesma em tempo de guerra. Foi na guerra iniciada em 1688, e encerrada pelo tratado de Ryswick, em 1697, que se lançaram os fundamentos que começaram a pesar sobre a enorme dívida atual da Grã-Bretanha. Em 31 de dezembro de 1697, a dívida pública da Grã-Bretanha. contraída com ou sem fundo, era de £ 21 515 742 13 s 8 1/2 d. Grande parte dessa dívida tinha sido contraída com base em breves antecipações e parte com base em anuidades a serem pagas enquanto vivessem as pessoas; assim, antes de 31 de dezembro de 1701, em menos de quatro anos, havia sido em parte liquidada e em parte revertida ao público a soma de £ 5 121 041 12 s 0 3/4 d — a maior redução da dívida pública jamais conseguida desde então, em tão pouco tempo. A dívida remanescente era, portanto, de apenas £ 16 394 701 1 s 7 1/4 d. Na guerra que teve início em 1702, e que terminou com o tratado de Utrecht, as dívidas públicas tinham se acumulado ainda mais. Em 31 de dezembro de 1714 somavam £ 53 681 076 5 s 6 1/12 d. A subscrição das anuidades curtas e longas no South Sea aumentou o capital da dívida pública, de sorte que, em 31 de dezembro de 1722, ela era de £ 55 282 978 1 s 3 5/6 d. A redução da dívida começou em 1723, continuando com tanta lentidão que, em 31 de dezembro de 1739, durante 17 anos de completa paz, o total amortizado não passava de £ 8 328 354 17 s 11 3/12 d, montando o capital da dívida pública na época a £ 46 954 623 3 s 4 7/12 d. 370
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A guerra com a Espanha, que começou em 1739, e a guerra contra a França, que logo se seguiu, acarretaram um novo aumento da dívida, a qual, em 31 de dezembro de 1749, depois do término da guerra, com o tratado de Aix-la-Chapelle, era de £ 78 293 313 1 s 10 3/4 d. Durante o período de maior paz, que durou dezessete anos contínuos, não se conseguiu abater dessa dívida pública mais do que £ 8 328 354 17 s 11 3/12 d, ao passo que uma guerra de menos de nove anos de duração lhe acrescentara £ 31 338 689 18 s 6 1/6 d.54 Durante a administração do Sr. Pelham, reduziram-se os juros da dívida pública de 4% para 3%, ou ao menos adotaram-se medidas para que isso ocorresse; aumentou-se o fundo de amortização, liquidando-se parte da dívida pública. Em 1755, antes de irromper a última guerra, a dívida da Grã-Bretanha, contraída com base em fundos, era de 72 289 673 libras. No dia 5 de janeiro de 1763, com a conclusão da paz, a dívida dos fundos ascendia a £ 122 603 336 8 s 2 1/4 d. A dívida sem fundos tinha sido fixada em £ 13 972 589 2 s 2 d. Mas os gastos ocasionados pela guerra não cessaram com o advento da paz, de sorte que, em 5 de janeiro de 1764, a dívida contraída com base em fundos aumentou (em parte devido a um novo empréstimo, em parte por se ter constituído fundo para uma parte da dívida destituída de fundo) para £ 129 586 789 10 s 1 3/4 d; restava ainda (segundo o muito bem informado autor de Considerations on the Trade and Finances of Great Britain) uma dívida desprovida de fundo que correspondia naquele ano e no seguinte a £ 9 975 017 12 s 2 15/44 d. Em 1764, portanto, a dívida pública da Grã-Bretanha, juntando-se a baseada em fundos e à desprovida de fundos, era, segundo esse autor, de £ 139 561 807 2 s 4 d. Além disso, as anuidades concedidas enquanto vivessem os mutuantes, e que haviam sido outorgadas como prêmios aos subscritores dos novos empréstimos em 1757, estimadas em catorze anos da renda anual, eram avaliadas em 472 500 libras e as anuidades para longo prazo, também elas dadas como prêmios, em 1761 e 1762, estimadas em 27 1/2 anos de renda anual, eram avaliadas em 6 826 875 libras. Durante uma paz de aproximadamente 7 anos de duração, a administração prudente e verdadeiramente patriótica do Sr. Pelham não conseguiu liquidar uma velha dívida de 6 milhões. Durante a guerra, que teve quase a mesma duração, contraiu-se uma nova dívida, superior a 75 milhões. Em 5 de janeiro de 1775, a dívida da Grã-Bretanha, baseada em fundo, somava £ 124 996 086 1 s 6 1/4 d. A dívida destituída de fundos, excluindo uma grande dívida das despesas totais do governo civil, era de £ 4 150 236 3 s 11 7/8 d. Juntando as duas, o montante era de £ 129 146 322 5 s 6 d. Segundo esse cálculo, o total da dívida liquidado durante onze anos de grande paz não passou de £ 10 415 474 16 s 9 7/8 d. Entretanto, nem sequer essa pequena redução da dívida foi 54
Ver POSTLETHWAITE, James. History of the Public Revenue. 371
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totalmente conseguida com o que se economizou da receita normal do Estado. Contribuíram para isso várias somas estranhas, completamente independentes dessa receita normal. Entre elas podemos computar um xelim adicional por libra no imposto sobre: a terra, durante três anos, os 2 milhões recebidos da Companhia das Índias Orientais, como indenização pelas aquisições territoriais da mesma, e as 110 mil libras recebidas do Banco para a renovação da escritura da Companhia. A estas devem-se acrescentar várias outras somas que, resultantes da recente guerra, talvez devam ser consideradas como deduções das despesas da mesma. As principais são: £ Produto de capturas francesas . . . . . . . . . . . 690 449 Acordo em relação aos prisioneiros franceses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 670 000 O recebido pela venda das ilhas cedidas . . 95 500 Total
1 455 949
s 18
d 9
0 0
0 0
18
9
Se a esta soma acrescentarmos o saldo das contas do Conde de Chatham e do Sr. Calcraft, e outras poupanças do Exército, do mesmo gênero, juntamente com o que foi recebido do Banco, da Companhia das Índias Orientais, bem como o xelim adicional por libra do imposto sobre a terra, o total deve dar bem mais de 5 milhões. Por conseguinte, o montante da dívida que, desde o advento da paz, foi liquidado com o que se poupou da receita normal do Estado, não atingiu, um ano pelo outro, meio milhão por ano. Inegavelmente, o fundo de amortização aumentou consideravelmente desde o advento da paz, em virtude da dívida que foi amortizada, da redução dos 4% resgatáveis a 3% e das anuidades com duração enquanto vivessem os mutuantes que tombaram e, se a paz continuasse, poder-se-ia talvez poupar anualmente 1 milhão desse fundo, para o pagamento da dívida. Conseqüentemente, outro milhão foi pago no decurso do ano passado; mas, ao mesmo tempo, permaneceu sem ser paga uma grande dívida das despesas totais do governo civil, e agora estamos envolvidos em nova guerra que, em seu desenvolvimento, poderá ser tão dispendiosa como qualquer outra das nossas guerras anteriores.55 A nova dívida, que provavelmente será contraída antes do término da próxima campanha, talvez possa ser quase igual a toda a velha dívida liquidada com que se economizou da receita normal do Estado. Seria, pois, pura quimera esperar que a dívida pública 55
Ela tem se comprovado mais dispendiosa do que qualquer outra das nossa guerras anteriores, envolvendo-nos em uma dívida adicional superior a 100 milhões. Durante uma paz de onze anos, pagaram-se pouco mais de 10 milhões de dívida; durante uma guerra de sete anos, contraíram-se mais de 100 milhões de dívida. 372
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fosse completamente paga com qualquer economia que provavelmente se possa fazer da receita normal como se apresenta no momento. Um autor descreveu os fundos públicos das diversas nações endividadas da Europa, especialmente os da Inglaterra, como sendo o acúmulo de um grande capital acrescido ao outro capital do país, através do qual seu comércio se amplia, multiplicam-se suas manufaturas e as suas terras são cultivadas muito além do que poderiam ter sido apenas com o capital normal do país. Não levou em conta que o capital que os primeiros credores do Estado adiantaram ao Governo representou, desde o momento em que o adiantaram, uma determinada parcela da produção anual, que deixou de servir como capital e foi desviada para servir como renda; esta parcela deixou de manter trabalhadores produtivos e foi desviada para a manutenção de trabalhadores improdutivos, e para ser gasta e desperdiçada, geralmente no decurso de um ano, sem a esperança sequer de ser futuramente reproduzida. Sem dúvida, para o retorno do capital que adiantaram ao Governo, esses credores obtiveram uma anuidade nos fundos públicos, na maioria dos casos de valor até superior. Inegavelmente, essa anuidade lhes repôs seu capital, e lhes possibilitou dar continuidade a seu comércio e negócios, com a mesma intensidade de antes, talvez até com intensidade maior; ou seja, tiveram a possibilidade de tomar emprestado de outras pessoas um novo capital, com base no crédito da citada anuidade ou vendendo-a, de comprar de outras pessoas um novo capital próprio, igual ou superior àquele que haviam adiantado ao Governo. Todavia, esse novo capital, que dessa forma compraram ou tomaram emprestado de outras pessoas, deve ter existido anteriormente no país, aplicado na manutenção de mão-de-obra produtiva, como o são todos os capitais. Quando esse capital caiu nas mãos daqueles que tinham adiantado seu dinheiro ao Governo, embora fosse, sob alguns aspectos, um capital novo para eles, não era novo para o país; tratava-se apenas de um capital desviado de certas aplicações para ser empregado em outras. Embora esse capital tenha reposto a tais credores do Estado o que haviam adiantado ao Governo, não o repôs ao país. Se eles não tivessem adiantado esse capital ao Governo, teria havido no país dois capitais, duas parcelas da produção anual em vez de uma, para a manutenção da mão-de-obra produtiva. Quando, para cobrir os gastos do Governo, arrecada-se durante o ano uma receita do produto de impostos livres ou não hipotecados, determinada parcela da renda de pessoas particulares é apenas desviada da manutenção de um tipo improdutivo de mão-de-obra para a manutenção de outro tipo igualmente improdutivo. Sem dúvida, parte do que essas pessoas pagam nesses impostos poderia ter sido acumulada em capital e, conseqüentemente, empregada para manter mão-de-obra produtiva; mas a maior parte dela provavelmente teria sido gasta e, conseqüentemente, empregada na manutenção de mão-de-obra improdutiva. Os gastos públicos, porém, quando cobertos dessa forma, sem dúvida impedem, em maior ou menor grau, o ulterior acúmulo de novo 373
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capital, mas não necessariamente levam à destruição de qualquer capital efetivamente existente. Quando os gastos públicos são pagos com a emissão de títulos da dívida pública, são pagos com a destruição anual de algum capital existente anteriormente no país, com o desvio de uma parcela da produção anual, anteriormente destinada a manter mão-de-obra produtiva para a manutenção de mão-de-obra improdutiva. Como, porém, nesse caso, os impostos são menos pesados do que teriam sido caso se tivesse, durante o ano, conseguido uma receita suficiente para cobrir a mesma despesa, necessariamente a renda particular dos indivíduos seria menos onerada e, conseqüentemente, também bem menos prejudicada a capacidade dos mesmos em economizar e acumular parte dessa sua renda sob a forma de capital. Se o método de emitir títulos da dívida pública destrói mais capital velho, ao mesmo tempo impede menos o acúmulo ou a aquisição de capital novo do que o método de cobrir a despesa pública com uma receita levantada durante o ano. No sistema de emissão de títulos da dívida pública, a parcimônia e a atividade dos cidadãos particulares podem mais facilmente reparar as brechas que o desperdício e a extravagância do Governo podem ocasionalmente provocar no capital geral do país. Contudo, o sistema de emitir títulos da dívida pública só tem essa vantagem sobre o outro sistema, enquanto perdurar a guerra. Se as despesas de guerra sempre fossem pagas com uma receita arrecadada durante o ano, os impostos dos quais provém essa receita extraordinária não se prolongariam além da guerra. A capacidade que as pessoas particulares têm de acumular capital, embora diminua durante a guerra, teria sido maior durante a paz do que no sistema de emissão de títulos da dívida pública. A guerra não teria levado inevitavelmente à destruição de nenhum capital velho, e a paz teria levado a acumular muito mais capitais novos. As guerras geralmente terminariam depressa e haveria mais cautela em iniciá-las. Sentindo a população, durante a guerra, todo o ônus dela decorrente, logo se cansaria do conflito e o Governo, para satisfazer o povo, não teria necessidade de prolongá-la além do necessário. A previsão dos pesados e inevitáveis ônus da guerra impediria o povo de reclamar dela sem necessidade quando não houvesse nenhum interesse real ou concreto que a justificasse. Seriam mais raros e de menor duração os períodos durante os quais a capacidade que os particulares têm de acumular seria de alguma forma prejudicada. Ao contrário, os períodos em que tal capacidade atinge o ponto máximo teriam duração muito maior do que sob o sistema de criação de fundos. Além disso, quando a prática de emitir títulos da dívida pública avançou até certo ponto, a multiplicação de impostos que ela traz consigo às vezes prejudica tanto a capacidade que as pessoas particulares têm de acumular, mesmo em tempo de paz, quanto o outro sistema as impediria em tempo de guerra. Atualmente, a receita da Grã-Bretanha em tempo de paz é superior a 10 milhões por ano. Se essa 374
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receita fosse livre e não estivesse sob hipotecas, poderia ser suficiente, quando devidamente administrada, para efetuar a guerra mais violenta, sem contrair um único xelim de novas dívidas. A renda particular dos habitantes da Grã-Bretanha está atualmente tão comprometida em tempo de paz e sua capacidade de acumular tão prejudicada quanto o teria sido em tempo da guerra mais dispendiosa, se jamais se houvesse adotado o pernicioso sistema de emitir títulos da dívida pública. Disse alguém que, no pagamento dos juros da dívida pública, é a mão direita que paga a esquerda. O dinheiro não sai do país. O que acontece é apenas que parte da renda de uma parcela dos habitantes é transferida para outra, sem que a nação como tal se empobreça em um ceitil. Essa apologia funda-se totalmente nos sofismas do sistema mercantil e, depois do longo exame que fiz desse sistema, talvez seja desnecessário alongar-me nesse ponto. Além do mais, ela supõe que a totalidade da dívida pública se deva aos habitantes do país, o que não é verdade, pois a Holanda, bem como várias outras nações estrangeiras, tem considerável participação nos nossos fundos públicos. Aliás, mesmo que toda a dívida se devesse aos habitantes do país, nem por isso ela seria menos perniciosa. A terra e o capital são as duas fontes originais de toda renda, tanto particular como do Estado. O capital paga os salários da mãode-obra produtiva, quer esta opere na agricultura, nas manufaturas ou no comércio. A administração dessas duas fontes originais de renda pertence a duas categorias de pessoas: os proprietários de terras e os donos ou aplicadores de capital. O senhor de terras, visando a seu próprio rendimento, tem interesse em manter sua propriedade em tão boas condições quanto possível, construindo e reparando as casas de seus rendeiros, construindo e mantendo as necessárias obras de drenagem e as cercas, bem como todas essas outras melhorias dispendiosas que cabe pessoalmente ao dono efetuar e manter. Entretanto, como decorrência dos diversos impostos sobre a terra, o rendimento do proprietário de terras pode diminuir tanto e, devido aos diversos impostos sobre os artigos de primeira necessidade e os de conforto material, essa renda já reduzida pode passar a ter um valor real tão pequeno que mesmo o proprietário de terra pode sentir-se totalmente incapaz de empreender ou manter essas melhorias dispendiosas. Quando o proprietário de terras, no entanto, deixa de colaborar, é simplesmente impossível que o arrendatário continue a fazê-lo. À medida que aumenta a dificuldade do proprietário de terras, a agricultura do país inevitavelmente se torna pior. Quando, em conseqüência dos diversos impostos sobre artigos de primeira necessidade e os de conforto material, os donos e aplicadores de capital constatam que todo rendimento que auferem dele não poderá, em um determinado país, comprar a mesma quantidade desses artigos de necessidade e de conforto que um rendimento igual poderia adquirir em quase todos os outros países, estarão propensos a se mudar para algum outro. E quando, para aumentar esses impostos, todos ou a 375
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maior parte dos comerciantes e manufatores, isto é, todos ou a maior parte dos aplicadores de grandes capitais, ficam continuamente expostos às visitas humilhantes e vexatórias dos coletores de impostos, essa propensão para mudar-se logo se transformará em mudança efetiva. A atividade do país necessariamente declinará com a evasão do capital que lhe dava emprego, a ruína do comércio e da manufatura acompanharão o declínio da agricultura. A transferência do predomínio dos donos dessas duas grandes fontes de rendimento — a terra e o capital —, das pessoas diretamente interessadas na boa condição de cada parcela em particular de terra e na boa gestão de cada parcela específica de capital para uma outra categoria de pessoas (os credores do Estado, que não têm tal interesse especial), faz com que a maior parte do rendimento originário dessas duas fontes deva, a longo prazo, acarretar tanto a negligência em relação à terra, quanto o desperdício ou a evasão do capital. Sem dúvida, um credor do Estado tem interesse genérico na prosperidade da agricultura, das manufaturas e do comércio do país e, conseqüentemente, na boa condição das terras e na boa gestão do capital do país. Com efeito, se um desses setores viesse a sofrer uma falência geral ou a acusar algum declínio em qualquer desses pontos, o produto dos diversos impostos poderia não mais ser suficiente para pagar-lhe a anuidade ou os juros que lhe são devidos. Todavia, um credor do Estado, considerado apenas como tal, não tem interesse algum na boa condição de uma determinada área de terra ou na boa administração de uma determinada parcela de capital. Como credor do Estado, não tem conhecimento algum de nenhuma parcela específica. Não exerce nenhuma inspeção sobre isso. Não tem nenhuma preocupação com isso. A ruína de uma determinada parcela de terra ou capital pode, em alguns casos, ser-lhe desconhecida, sem afetá-lo diretamente. A prática de emitir títulos da dívida pública vem enfraquecendo gradualmente todos os Estados que a adotaram. Os pioneiros parecem ter sido as repúblicas italianas. Gênova e Veneza, as duas únicas remanescentes que podem pretender uma existência independente, enfraqueceram-se com esse sistema. A Espanha parece ter aprendido a prática das repúblicas italianas e (pelo fato de seus impostos provavelmente serem menos criteriosos que os delas) enfraqueceu-se ainda mais, em proporção à sua força natural. As dívidas da Espanha vêm de muito longe. O país estava afundado em dívidas antes do fim do século XVI, mais ou menos cem anos antes que a Inglaterra devesse um único xelim. A França, não obstante todos os seus recursos naturais, se esgota sob um peso opressivo do mesmo gênero. A república das Províncias Unidas está tão enfraquecida por suas dívidas quanto Gênova ou Veneza. Haverá probabilidade de que somente na Grã-Bretanha se comprove totalmente inocente a prática que acarretou essa fraqueza ou essa desolação a todos os outros países? Alegar-se-á, talvez, que o sistema de tributação instituído nesses diversos países é inferior ao vigente na Inglaterra. Acredito que assim 376
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seja. Mas é necessário recordar que, quando um governo, mesmo o mais sensato, exauriu todos os itens adequados para taxação, em casos de necessidade urgente, tem que recorrer a itens de tributação inadequados. Em algumas ocasiões, a sensata república da Holanda foi obrigada a recorrer a impostos tão inconvenientes como a maior parte dos vigentes na Espanha. Uma nova guerra, iniciada antes de ocorrer uma liberação considerável da receita pública, guerra esta cujos custos, à medida que avança, vão se tornando tão vultosos quanto os do último conflito, por necessidade irresistível pode tornar o sistema tributário britânico tão opressivo como o da Holanda ou até como o da Espanha. Para honra do nosso atual sistema tributário, sem dúvida, deve-se dizer que ele até agora criou tão poucos obstáculos para a atividade do país, que até mesmo no decurso das guerras mais dispendiosas a parcimônia e a boa conduta dos indivíduos parecem ter sido capazes, mediante a poupança e o acúmulo, de cobrir todos os rombos que o desperdício e a extravagância do Governo têm provocado no capital geral do país. Ao término da recente guerra, a mais dispendiosa que a Grã-Bretanha jamais empreendeu, sua agricultura era tão florescente, suas manufaturas tão numerosas e tão plenamente operantes e seu comércio tão vasto como jamais acontecera anteriormente. Em conseqüência, o capital que sustentava todos esses diversos setores deve ter sido igual ao que havia antes. Com o advento da paz, a agricultura tem sido ainda mais aprimorada, os aluguéis de casas subiram em todas as cidades e aldeias do país, prova da crescente riqueza e rendimento da população; e o montante anual arrecadado com a maior parte dos antigos impostos, particularmente dos principais setores de taxação e direitos alfandegários, tem aumentado continuamente, o que constitui uma prova igualmente evidente do aumento de consumo e, conseqüentemente, de um aumento da produção, já que por si só esta poderia sustentar tal consumo. A Grã-Bretanha parece suportar com facilidade uma carga que, há meio século, ninguém acreditaria fosse ela capaz de agüentar. Nem por isso, porém, estamos autorizados a concluir precipitadamente que ela tenha capacidade para suportar qualquer carga, nem mesmo devemos confiar muito em que ela possa suportar, sem grande embaraço, um peso levemente superior ao que já lhe foi imposto. Quando as dívidas de uma nação se acumularam atingindo determinado ponto acredito que dificilmente haja um único exemplo em que elas tenham sido efetivamente e completamente pagas. A liberação da receita pública, se é que jamais ocorreu em algum caso, sempre é causada por uma falência: às vezes por uma falência confessada, mas sempre por uma falência real, ainda que, muitas vezes, com um pretenso pagamento. A elevação da titulação oficial da moeda tem sido o expediente mais comum sob o qual se tem disfarçado uma falência pública real sob o manto de um pretenso pagamento. Se, por exemplo, uma moeda de 6 pence passasse a receber a titulação de 1 xelim — por lei do 377
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Parlamento ou por proclamação do rei — e vinte moedas de 6 pence a denominar-se 1 libra esterlina, a pessoa que, no regime da titulação antiga, tivesse tomado emprestado 20 xelins, ou seja, quase quatro onças de prata, pagaria a dívida, no regime da nova titulação, com vinte moedas de 6 pence, ou seja, com um pouco menos que duas onças. Uma dívida nacional de aproximadamente 128 milhões — que é mais ou menos o capital da dívida provida e desprovida de fundos da Grã-Bretanha — poderia assim ser paga com cerca de 64 milhões do nosso dinheiro atual. Na verdade, tratar-se-ia apenas de um pretenso pagamento, e os credores do Estado, na realidade, seriam fraudados de 10 xelins por libra do que lhes fosse efetivamente devido. Além disso, a calamidade iria muito além dos credores do Estado e os credores de todas as pessoas particulares sofreriam uma perda proporcional; e isto sem nenhuma vantagem, senão, ao contrário, na maioria dos casos, com uma grande perda adicional para os credores do Estado. Com efeito, se estes geralmente tivessem grande dívida com outras pessoas poderiam, até certo ponto, compensar sua perda pagando seus credores na mesma moeda em que o Estado lhes tivesse pago. Acontece, porém, que na maioria dos países os credores do Estado são, em sua maior parte, pessoas ricas que, em relação a seus demais concidadãos, estão mais na posição de credores do que na de devedores. Um pretenso pagamento desse tipo, portanto, em vez de aliviar, agrava na maioria dos casos a perda dos credores do Estado e, sem qualquer vantagem para o Estado, estende a calamidade a um grande número de outras pessoas inocentes. Ele provoca uma subversão generalizada e altamente perniciosa das fortunas das pessoas particulares, enriquecendo, na maioria dos casos, o devedor indolente e perdulário, à custa do credor operoso e parcimonioso, transferindo uma grande parcela do capital da nação, das mãos daqueles que teriam probabilidade de aumentá-lo e melhorá-lo para as daqueles que provavelmente o dissiparão e o destruirão. Quando a necessidade obriga um Estado a declarar-se em falência, da mesma forma que quando essa necessidade ocorre para um indivíduo particular, uma falência honesta, aberta e confessada constitui sempre a medida menos desonrosa para o devedor e menos prejudicial para o credor. Salvaguarda de maneira bem precária sua honra, sem dúvida, um Estado que, para encobrir o revés de uma falência real, lança mão de uma artimanha desse tipo, que se pode descobrir com tanta facilidade e ao mesmo tempo é tão perniciosa. Não obstante isso, quase todos os Estados, antigos e modernos, vítimas de tal necessidade, às vezes recorreram a esta artimanha. Os romanos, ao término da primeira Guerra Púnica, reduziram o asse — moeda ou título com a qual calculavam o valor de todas as suas outras moedas — de doze onças de cobre para apenas duas, isto é, elevaram duas onças de cobre a uma titulação que, anteriormente, sempre expressara o valor de doze onças. Dessa forma, a República teve meios de pagar as grandes dívidas que havia contraído com 1/6 do montante real que devia. Estaríamos inclinados a imaginar hoje que uma falência 378
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tão súbita e considerável deve ter gerado imenso clamor popular. No entanto, não parece ter suscitado clamor algum. A lei que decretou essa medida, como todas as demais leis relacionadas com a moeda, foi apresentada e levada a bom termo na assembléia do povo por um tribuno, e provavelmente era uma lei muito popular. Em Roma, como em todas as demais repúblicas antigas, a população pobre estava constantemente em dívida com os ricos e os grandes, os quais, para assegurar seus votos nas eleições anuais, costumavam emprestar dinheiro aos pobres, com juros exorbitantes que, jamais sendo pagos, logo se acumulavam em uma quantia excessivamente grande para que o devedor a pudesse pagar, ou para que alguma outra pessoa pudesse pagála em lugar dele. O devedor, temendo uma execução extremamente rigorosa, era assim obrigado, sem nenhuma outra retributação, a votar no candidato que o credor recomendasse. A despeito de todas as leis contra o suborno e a corrupção, os subsídios dos candidatos, juntamente com as distribuições ocasionais de cereais, ordenadas pelo Senado, constituíam os fundos principais de que, durante o último período da República romana, os cidadãos mais pobres garantiam sua subsistência. Para livrar-se dessa sujeição a seus credores, os cidadãos mais pobres continuamente clamavam por uma abolição total das dívidas ou pelo que denominavam de Novas Tábuas, ou seja, por uma lei que lhes assegurasse uma quitação completa, pagando apenas uma certa porcentagem de suas dívidas acumuladas. A lei, que reduziu a moeda de todas as titulações a 1/6 de seu valor anterior, possibilitando-lhes pagar suas dívidas com 1/6 do montante de sua dívida efetiva, equivalia às mais vantajosas Novas Tábuas. Para satisfazer a população, muitas vezes os ricos e os grandes eram obrigados a dar seu consentimento tanto às leis que aboliam dívidas como às que introduziam novas tábuas; e, provavelmente, foram induzidos a dar seu consentimento a essa lei, em parte pela mesma razão e, em parte, para que, liberando a receita pública pudessem restituir vigor àquele Governo do qual eles mesmos tinham o principal controle. Uma operação desse tipo reduziria imediatamente uma dívida de 128 milhões de libras para £ 21 333 333 6 s 8 d. No decurso da segunda Guerra Púnica, o asse foi reduzido ainda mais: primeiro, de duas onças de cobre para uma e, depois, de uma onça para meia onça, ou seja, para 1/24 de seu valor original. Combinando em uma só as três operações de desvalorização da moeda efetuadas pelos romanos, uma dívida de 128 milhões de libras em nosso dinheiro atual poderia, dessa maneira reduzir de uma só vez a £ 5 333 333 6 s 8 d. Até a enorme dívida da Grã-Bretanha poderia, assim, ser paga sem demora. Foi através de tais expedientes que se desvalorizou gradualmente a moeda, segundo acredito, de todas as nações, reduzindo-a cada vez mais abaixo de seu valor original, permitindo que a mesma soma nominal passasse gradualmente a conter uma quantidade cada vez menor de prata. Visando ao mesmo intuito, as nações por vezes adulteraram o padrão de sua moeda, isto é, adicionaram-lhe uma quantidade maior 379
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de liga. Assim, por exemplo, se na libra-peso de nossa moeda de prata, em vez de 18 pence-peso, segundo o padrão atual, se misturassem oito onças de liga, 1 libra esterlina, ou 20 xelins dessa moeda, valeria pouco mais de 6 xelins e 8 pence do nosso dinheiro atual. Dessa forma, a quantidade de prata contida em 6 xelins e 8 pence do nosso dinheiro atual seria elevada bem perto da titulação de 1 libra esterlina. A adulteração do padrão da moeda tem exatamente o mesmo efeito que aquilo que os franceses chamam de augmentation, ou seja, uma elevação direta da titulação da moeda. Uma augmentation, isto é, uma elevação direta da titulação da moeda, é sempre — e por sua natureza tem de ser — uma operação aberta e confessada. Através dela peças de peso e volume menores passam a ter o mesmo nome que antes tinha sido dado a peças de maior peso e volume. Pelo contrário, a adulteração do padrão da moeda geralmente tem sido uma operação oculta. Através desse artifício, a casa da moeda emitia moedas da mesma titulação e, tão aproximadamente quanto se poderia imaginar, do mesmo peso, volume e aparência que as moedas anteriormente em circulação corrente e de valor bem superior. Quando o rei João da França,56 para pagar suas dívidas, adulterou sua moeda, todos os oficiais da sua Casa da Moeda tiveram que jurar segredo. As duas operações são injustas. Entretanto, uma simples augmentation é uma injustiça de violência aberta, ao passo que uma adulteração é uma injustiça de fraude insidiosa. Por isso, esta última operação, tão logo foi descoberta — e jamais poderia permanecer oculta por muito tempo —, sempre suscitou muito maior indignação do que a primeira. Depois de toda augmentation considerável, é muito raro a moeda ser reconduzida ao seu peso anterior; ao contrário, depois das maiores adulterações, quase sempre ela foi reconduzida a seu quilate anterior. Dificilmente aconteceu que alguma vez se conseguisse, de outra forma, apaziguar a fúria e a indignação do povo. No fim do reinado de Henrique VIII, e no início do de Eduardo VI, a moeda inglesa não somente foi elevada em sua titulação, como também adulterada em seu padrão. As mesmas fraudes foram cometidas na Escócia durante a menoridade de Jaime VI. Elas foram cometidas, ocasionalmente, também na maioria dos outros países. Parece totalmente inútil esperar que a receita pública da Grã-Bretanha possa um dia ser inteiramente liberada ou mesmo que se consiga algum progresso considerável nesse sentido, enquanto for tão pequeno o excedente dessa receita, ou o que vai além do necessário para cobrir as despesas anuais em tempo de paz. É evidente que tal liberação nunca poderá ocorrer sem um aumento considerável da receita pública, ou então sem uma redução igualmente considerável das despesas públicas. Um imposto mais equânime sobre a terra, um imposto mais eqüitativo sobre os aluguéis de casas e alterações do atual sistema de 56
Veja-se DU CANGE. Glossarium, verbete “Moneta”; Ed. Beneditina. 380
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tributos alfandegários e de taxas, como as que mencionei no capítulo anterior, tudo isto talvez pudesse, sem aumentar o ônus para a maior parte da população, mas apenas distribuindo o seu peso com mais equanimidade sobre todos, produzir um aumento considerável da receita. Contudo, nem mesmo o mais exacerbado planejador poderia facilmente iludir-se acreditando que algum aumento dessa ordem pudesse ser capaz de inspirar esperanças razoáveis de liberar inteiramente a receita pública ou mesmo de obter um impulso para essa liberação em tempo de paz, suscetível de impedir ou compensar o ulterior acúmulo da dívida pública na próxima guerra. Poder-se-ia esperar um aumento muito maior da receita, caso se estendesse o sistema tributário britânico a todas as diversas províncias do Império habitadas por pessoas de descendência britânica ou européia. Ocorre, porém, que isso talvez dificilmente pudesse ser feito sem contrariar os princípios da Constituição britânica, sem admitir no Parlamento britânico, ou, se quisermos, nos Estados Gerais do Império Britânico, uma representação honesta e equânime de todas essas diversas províncias, tendo a representação de cada província a mesma proporção em relação ao produto de seus impostos, como a representação da Grã-Bretanha em relação ao produto dos impostos arrecadados no território britânico. Sem dúvida, o interesse particular de muitos indivíduos poderosos, os preconceitos comprovados de grandes grupos da população parecem, no momento, opor a essa mudança obstáculos de envergadura tal que possivelmente seja difícil e talvez de todo impossível superar. Todavia, sem pretender determinar se tal união é exeqüível ou não, talvez não seja descabido, em uma obra especulativa desse gênero, considerar até que ponto o sistema tributário britânico poderia ser aplicável a todas as várias províncias do Império, que receita se poderia esperar disso, no caso em que o plano fosse aplicável, e de que maneira uma união geral como essa poderia afetar a felicidade e a prosperidade das várias províncias do Império. Na pior das hipóteses, tal especulação pode ser considerada como uma nova Utopia, certamente menos divertida do que a antiga, porém não mais inútil e quimérica do que ela. Os quatro setores principais de impostos britânicos são o imposto sobre a terra, os impostos sobre o selo, as diversas taxas alfandegárias e os impostos de consumo. A Irlanda tem tanta capacidade de pagar o imposto sobre a terra quanto a Grã-Bretanha, e as nossas colônias na América e nas Índias Ocidentais têm até mais capacidade para isso. Onde o proprietário de terras não está sujeito nem ao dízimo nem à taxa para os pobres ele certamente deve ter mais condições de pagar o imposto sobre a terra, do que onde está sujeito aos dois ônus citados. O dízimo, onde não existe o modus,57 e onde ele é pago em espécie, reduz mais do que de 57
De modus decimandi, aplicação do dízimo por meio de um acordo e não do dízimo propriamente dito. (N. do E.) 381
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outra forma reduziria o rendimento do proprietário de terras, do que um imposto sobre a terra que realmente fosse de 5 xelins por libra. Constatar-se-á que na maioria dos casos, o dízimo representa mais que 1/4 da renda real da terra, ou do que resta após repor inteiramente o capital do arrendatário, juntamente com seu justo lucro. Caso se eliminassem todos os modus e todas as transferências dos bens eclesiásticos a particulares, dificilmente se poderia estimar o montante total do dízimo eclesiástico na Grã-Bretanha e na Irlanda em menos de 6 ou 7 milhões de libras esterlinas. Se não houvesse dízimo nem na Grã-Bretanha nem na Irlanda, os proprietários de terras poderiam pagar 6 ou 7 milhões a mais de imposto sobre a terra, sem com isso ficar mais onerados do que o está atualmente uma parte deles. A América não paga dízimo e, portanto, poderia muito bem pagar um imposto territorial. Sem dúvida, as terras na América e nas Índias Ocidentais geralmente não são ocupadas nem arrendadas a lavradores. Por isso, não poderiam ser tributadas com base em qualquer renda nominal. Entretanto, tampouco as terras da Grã-Bretanha, no ano 4 de Guilherme e Maria, pagavam imposto com base no valor da renda, senão com base na referida relação, mas de conformidade com uma estimativa vaga e inexata. O imposto territorial na América poderia ser calculado da mesma forma ou então com base em uma avaliação justa subseqüente a um levantamento acurado, como o que foi recentemente efetuado no ducado de Milão e nos domínios da Áustria, Prússia e Sardenha. Quanto aos impostos de selo, é evidente que poderiam ser cobrados, sem nenhuma variação, em todas as regiões em que são as mesmas ou mais ou menos as mesmas as formas dos processos judiciais, e os títulos de transferência de propriedade real e pessoal. A extensão das leis alfandegárias britânicas à Irlanda e às colônias, desde que, como por justiça deveria ser, viesse acompanhada de uma ampliação da liberdade de comércio, seria de máxima vantagem para a Irlanda e para as colônias. Acabariam inteiramente todas as restrições odiosas que atualmente oprimem o comércio da Irlanda, a distinção entre as mercadorias enumeradas e não enumeradas da América. As regiões localizadas ao norte do cabo de Finisterra estariam tão abertas a qualquer item da produção americana quanto estão as localizadas ao sul daquele cabo para alguns dos produtos americanos. Em decorrência dessa uniformidade de leis alfandegárias, o comércio entre todas as diversas partes do Império Britânico seria tão livre quanto o é atualmente o comércio costeiro da Grã-Bretanha. Dessa maneira, o Império Britânico se transformaria ele mesmo em um imenso mercado interno para todos os produtos de suas diversas províncias. Uma ampliação tão grande de mercado logo acabaria compensando, tanto para a Irlanda quanto para as colônias, tudo o que pudesse vir a sofrer em virtude do assunto das taxas alfandegárias. Os impostos de consumo são os únicos do sistema britânico de taxação que teriam que ser adaptados, sob alguns aspectos, conforme fossem aplicados às diferentes províncias do Império. Na Irlanda, o sistema poderia ser 382
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aplicado sem mudança alguma, já que a produção e o consumo daquele reino são exatamente da mesma natureza dos da Grã-Bretanha. Na aplicação à América e às Índias Ocidentais, cuja produção e consumo diferem tanto dos da Grã-Bretanha, poderiam ser necessárias algumas modificações, da mesma forma que na aplicação do sistema nos condados produtores de cidra e de cerveja da Inglaterra. Assim, por exemplo, uma bebida fermentada que se denomina cerveja, mas que, por ser feita de melaço, tem muito pouca semelhança com a nossa cerveja, é uma bebida bastante comum na América. Visto que essa bebida só pode ser conservada por alguns poucos dias, não pode, como nossa cerveja, ser preparada e estocada para venda em grandes cervejarias, tendo toda família de fermentá-la para seu próprio consumo, da mesma forma como os americanos cozinham seus alimentos. Ora, sujeitar cada família particular às visitas e à inspeção odiosas dos coletores de impostos, da mesma forma que nós sujeitamos os donos de cervejarias e tabernas para venda ao público, representaria algo de inteiramente inconciliável com a liberdade. Se, para efeito de eqüidade, se considerasse necessário tributar essa bebida, poder-se-ia fazê-lo taxando a matéria-prima de que é feita, seja no local da manufatura seja, se as circunstâncias do comércio tornassem inadequado tal recolhimento, impondo uma taxa na importação à colônia na qual fosse consumida. Além da taxa de 1 pêni por galão, imposta pelo Parlamento britânico à importação de melaço da América, existe um imposto provincial sobre sua importação na Baía de Massachusetts, em navios pertencentes a qualquer outra colônia, de 8 pence por galão, e um outro, de 5 pence por galão, sobre a importação das colônias do norte para a Carolina do Sul. Ou então, se nenhum desses dois métodos fosse considerado oportuno, cada família poderia entrar em acordo para seu consumo dessa bebida, seja considerando o número de pessoas integrantes do grupo, da mesma forma que famílias particulares se reúnem para o imposto sobre o malte, na Grã-Bretanha, seja, então considerando as diferenças de idade e de sexo dessas pessoas, da mesma maneira que se recolhem vários impostos na Holanda — seja, mais ou menos como Sir Matthew Decker propõe, isto é, que sejam cobrados todos os impostos sobre bens de consumo na Inglaterra. Como já observei, essa modalidade de taxação, quando aplicada a bens de consumo rápido, não é muito conveniente, podendo, porém, ser adotada em casos em que não se conseguisse solução melhor. O açúcar, o rum e o fumo constituem mercadorias que em parte alguma são artigos de primeira necessidade, mas que se tornaram elementos de consumo quase universal e que, por conseguinte, são extremamente apropriados para tributação. Caso se efetuasse uma união com as colônias, esses produtos poderiam ser taxados antes de saírem das mãos do manufator ou cultivador, ou então, se esse tipo de taxação não conviesse às circunstâncias dessas pessoas, as mercadorias poderiam ser mantidas em depósitos públicos, tanto no local da manufatura como em todos os diversos portos do Império aos quais 383
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viessem posteriormente a ser transportados, permanecendo nesses locais, sob a custódia conjunta do proprietário e do oficial da receita, até o momento em que fossem liberados para o consumidor ou comerciante varejista para consumo interno, ou para o comerciante exportador, não sendo o imposto pago antes dessa entrega. Quando o produto fosse entregue para exportação, deveria haver isenção de taxas, desde que se garantisse devidamente que seria efetivamente exportado para fora do Império. São essas, talvez, as principais mercadorias em relação às quais, se a união com as colônias viesse a efetivar-se, poderia impor-se a necessidade de alguma mudança considerável no atual sistema tributário britânico. Sem dúvida, deve ser inteiramente impossível determinar com exatidão razoável qual poderia ser o montante da receita que poderia resultar desse sistema de taxação, se estendido a todas as diversas províncias do Império. Tal sistema permite arrecadar anualmente, na Grã-Bretanha, sobre menos de 8 milhões de habitantes, mais de 10 milhões de receita. A Irlanda tem mais de 2 milhões de habitantes e, segundo cálculos apresentados ao Congresso, as doze províncias associadas da América têm mais de 3 milhões. Todavia, esses cálculos podem ter sido exagerados, talvez para encorajar a população local ou talvez para intimidar o povo de nosso país pelo que, portanto, somos levados a supor que as nossas colônias norte-americanas, juntamente com as das Índias Ocidentais, não têm mais de 3 milhões de habitantes, ou que todo o Império Britânico, na Europa e na América, não possui mais de 13 milhões de habitantes. Se entre menos de 8 milhões de habitantes esse sistema tributário consegue arrecadar uma receita superior de 10 milhões de libras esterlinas, entre 13 milhões ele deveria arrecadar uma receita superior a 16,25 milhões de libras esterlinas. Dessa receita, supondo-se que esse sistema pudesse gerá-la, deve ser reduzida a receita normalmente arrecadada na Irlanda e nas colônias para cobrir as despesas de seus respectivos governos civis. A despesa com o governo civil e militar na Irlanda, juntamente com os juros da dívida pública monta, em uma média dos dois anos que terminaram em março de 1775, a pouco menos de 750 mil libras por ano. Com base em um cômputo exatíssimo da receita das principais colônias da América e das Índias Ocidentais, ela montou, antes do início dos distúrbios atuais, a 148 800 libras. Falta porém, nesse cômputo, a receita de Maryland, da Carolina do Norte e de todas as nossas últimas conquistas, tanto no continente como nas ilhas, o que talvez dê uma diferença de 30 ou 40 mil libras. Por isso, para ficarmos com números redondos, suponhamos que a receita necessária para sustentar o governo civil da Irlanda e das colônias possa ascender a 1 milhão de libras. Restaria, portanto, uma receita de 15,25 milhões de libras, para ser aplicada na cobertura dos gastos gerais do Império e no pagamento da dívida pública. Ora, se da atual receita da Grã-Bretanha em tempos de paz se pudesse poupar 1 milhão para o pagamento da referida dívida, da receita aumentada se poderia muito bem poupar 6,25 milhões 384
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de libras. Aliás, esse grande fundo de amortização poderia ser aumentado anualmente pelos juros da dívida pagos no ano anterior, podendo assim aumentar com tanta rapidez que o fundo seria suficiente, em poucos anos, para liquidar a dívida integral, e assim restaurar por completo o atualmente debilitado e exaurido vigor do Império. Nesse meio tempo, a população poderia ser liberada de alguns dos impostos mais pesados: os que incidem sobre os artigos de primeira necessidade ou então os que incidem sobre as matérias-primas para manufatura. Os trabalhadores pobres teriam condições de viver melhor, produzir mais barato e enviar ao mercado suas mercadorias a preço mais baixo. O baixo preço de suas mercadorias aumentaria a demanda das mesmas e, conseqüentemente, da mão-de-obra que as produz. Esse aumento da demanda de mão-de-obra, tanto aumentaria o contingente de trabalhadores pobres empregados, quanto melhoraria a situação deles. Seu consumo aumentaria e, com isso também a receita proveniente de todos os artigos por eles consumidos, sobre os quais continuariam a incidir os impostos atuais. Contudo, a receita provinda desse sistema tributário não poderia aumentar imediatamente em proporção ao número de pessoas a ele sujeitas. Por algum tempo dever-se-ia demonstrar grande indulgência em relação às províncias do Império assim submetidas a ônus aos quais não estavam até aqui habituadas e, mesmo quando em toda parte se viesse a cobrar os mesmos impostos, com a máxima exatidão possível, ainda assim não produziriam em toda parte uma receita proporcional ao número de habitantes. Em um país pobre, é muito pequeno o consumo dos artigos principais sujeitos a impostos alfandegários e de consumo e, por outra parte, em um país pouco populoso, as oportunidades de contrabando são muito grandes. O consumo de bebidas de malte entre as classes inferiores da população escocesa é muito pequeno, e o imposto de consumo sobre o malte, a cerveja, e a cerveja inglesa gera lá menos receita do que na Inglaterra, em proporção com o número de habitantes e a taxa dos impostos que, no caso do malte é diferente, devido à suposta diferença de qualidade. Nesses setores específicos de impostos de consumo, não creio haver muito mais contrabando na Irlanda do que na Inglaterra. Os impostos sobre a destilação e a maior parte dos impostos alfandegários, em proporção com o número de habitantes nos respectivos países, produzem menos receita na Escócia do que na Inglaterra, não somente em virtude do volume menor do consumo das mercadorias taxadas, como também na facilidade muito maior de praticar o contrabando. Na Irlanda, as classes inferiores da população são ainda mais pobres que na Escócia, e em muitas regiões do país a densidade da população é mais ou menos tão baixa quanto na Escócia. Por isso, na Irlanda, o consumo das mercadorias taxadas, em proporção com o contingente populacional, possivelmente seja ainda menor do que na Escócia e mais ou menos igual a facilidade de contrabando. Na América e nas Índias Ocidentais, os brancos, mesmo da classe mais baixa, estão em situação bem melhor 385
OS ECONOMISTAS
que os da mesma condição na Inglaterra, sendo provavelmente muito maior o consumo de artigos de luxo que adquirem. Quanto aos negros, que representam a maioria dos habitantes das colônias no sul do continente e das ilhas das Índias Ocidentais, por ser escravos, sem dúvida estão em condições piores do que as pessoas mais pobres da Escócia e da Irlanda. Nem por isso, porém, devemos imaginar que eles se alimentem de maneira mais deficiente, ou que seu consumo de artigos, que poderiam estar sujeitos a impostos moderados, seja inferior até mesmo ao consumo das camadas mais baixas da população da Inglaterra. Para que possam trabalhar bem, é de interesse de seu patrão que se alimentem bem e mantenham boa disposição, da mesma forma como os patrões têm interesse em que o mesmo aconteça com seu gado empregado nos trabalhos agrícolas. Por isso, quase em toda parte os escravos negros têm suas boas doses de rum e de melaço, ou de cerveja fermentada com extrato de folhas de abeto e brotos, da mesma forma que os servos brancos; ora, estas doses provavelmente não seriam suprimidas, mesmo que tais artigos fossem moderadamente tributados. Por conseguinte, o consumo das mercadorias taxadas, em proporção ao número de habitantes, provavelmente seria tão grande na América e nas Índias Ocidentais quanto em qualquer parte do Império Britânico. Quanto às oportunidades de contrabando, certamente seriam muito maiores, já que a América, em proporção com a extensão do país, tem uma densidade populacional muito inferior à da Escócia ou da Irlanda. Se, porém, a receita atualmente arrecadada dos diversos impostos sobre o malte e as bebidas de malte passassem a ser recolhidas com um único imposto sobre o malte e as bebidas de malte, desapareceria quase inteiramente a oportunidade de contrabando no mais importante ramo dos impostos de consumo; e se as taxas alfandegárias, em vez de ser impostas a quase todos os artigos importados, fossem limitadas a alguns poucos de uso e consumo mais generalizado, e se a arrecadação delas fosse feita obedecendo às leis que regem os impostos de consumo, a oportunidade de contrabando diminuiria muito, ainda que não fosse eliminada totalmente. Em conseqüência dessas duas alterações, aparentemente muito simples e fáceis, provavelmente os impostos alfandegários e de consumo pudessem produzir uma receita tão grande, em proporção com o consumo da província de menor densidade demográfica, quanto a que produzem atualmente, em proporção ao consumo das mais povoadas. Tem-se dito que os americanos não têm dinheiro em ouro ou prata, sendo o comércio interno do país efetuado mediante papel-moeda e sendo todo o ouro e prata que ocasionalmente lá se encontra enviado à Grã-Bretanha, em troca das mercadorias que recebem de nós. Ora, sem ouro e prata — acrescenta-se — não há possibilidade de pagar impostos. Já recebemos todo o ouro e a prata que eles possuem. Como é possível tirar deles o que não têm? A atual escassez de dinheiro em ouro e prata na América não é conseqüência da pobreza daquele país ou da incapacidade de seu povo comprar esses metais. Em um país 386
ADAM SMITH
em que os salários dos trabalhadores são mais altos e o preço dos mantimentos tão mais baixo que na Inglaterra a maior parte da população seguramente tem possibilidade de comprar uma quantidade maior, se isso fosse para ela necessário ou conveniente. Por conseguinte, a escassez desses metais deve ser efeito de uma opção, e não de uma necessidade. É para movimentar o comércio interno ou externo que há necessidade ou conveniência do dinheiro em ouro e prata. Como ficou demonstrado no Livro Segundo dessa pesquisa, o comércio interno de qualquer país pode ser movimentado, ao menos em tempos de paz, mediante papel-moeda, quase com o mesmo grau de conveniência que com dinheiro em ouro e prata. Convém aos americanos, que poderiam sempre ter condições de aplicar com lucro, no aprimoramento de suas terras, um capital superior ao que conseguem obter com facilidade para economizar ao máximo possível a despesa de um instrumento de comércio tão caro como o ouro e a prata, e preferivelmente empregar aquela parcela de seu excedente de produção, que fosse necessária para adquirir tais metais, na compra de instrumentos de trabalho, de peças de vestuário e de mobília doméstica, bem como ferragens necessárias para construir e ampliar suas fundações e colonizações; em outras palavras, na aquisição de capital ativo e produtivo, e não de capital inativo e morto. Os governos das colônias consideram de seu interesse fornecer à população uma quantidade de papel-moeda plenamente suficiente e geralmente mais do que suficiente para esta movimentar seus negócios internos. Alguns desses governos, em particular o da Pensilvânia, auferem renda do empréstimo a seus súditos desse papel-moeda a juros de tantos por cento. Outros, como o da baía de Massachusetts adiantam, em emergências extraordinárias, um papel-moeda desse gênero para pagar a despesa do Estado e, mais tarde, quando convém à colônia, o resgatam pelo valor depreciado ao qual cai gradualmente. Em 1747,58 aquela colônia pagou, dessa maneira, a maior parte de sua dívida pública, com 1/10 do dinheiro pelo qual seus títulos haviam sido oferecidos. Convém aos plantadores economizar a despesa de utilizar dinheiro em ouro e prata em suas transações internas; e convém aos Governos da colônia fornecer-lhes um instrumento que, embora acarrete algumas desvantagens muito grandes, lhes possibilita poupar aquela despesa. A abundância de papelmoeda necessariamente afasta o ouro e a prata das transações internas das colônias, pela mesma razão que afastou esses metais da maior parte das transações na Escócia; nos dois países não foi a pobreza, mas o espírito empreendedor e planejador do povo, o seu desejo de empregar todo o capital que pudesse conseguir como capital ativo e produtivo, que deu origem a tal abundância de papel-moeda. No comércio exterior que as diversas colônias mantêm com a 58
Ver HUTCHINSON. History of Massachusetts Bay, v. II, p. 436 et seq. 387
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Grã-Bretanha, utiliza-se em grau maior ou menor ouro e prata, exatamente na proporção em que estes são mais ou menos necessários. Onde não há necessidade de ouro e prata, raramente eles aparecem. Onde são necessários, raramente são encontrados. No comércio entre a Grã-Bretanha e as colônias produtoras de fumo, as mercadorias britânicas costumam ser adiantadas aos comerciantes da colônia a crédito bastante longo, sendo depois pagas com fumo, calculado a um determinado preço. Convém mais à colônia pagar em fumo do que em ouro e prata. Para qualquer comerciante, seria mais conveniente pagar as mercadorias que seus agentes lhe tivessem vendido, com algum outro tipo de mercadorias com as quais ele lidasse, do que efetuar o pagamento em dinheiro. Tal comerciante não teria nenhuma necessidade de conservar consigo nenhuma parcela de seu capital não aplicada, e em dinheiro vivo, para atender as demandas coloniais. Ele poderia, a qualquer momento, ter maior volume de mercadorias em sua loja ou em seu depósito, com um aumento de seus negócios. Entretanto, raramente acontece convir a todos os agentes de um comerciante receberem em troca das mercadorias que lhe vendem algum outro tipo de mercadoria com a qual ele negocia. Casualmente, os comerciantes britânicos que comercializam com a Virgínia e Maryland constituem uma categoria especial de agentes, para os quais convém mais receber o pagamento das mercadorias que vendem àquelas colônias em fumo do que em ouro e prata. Esperam obter lucro da venda do fumo, lucro que não conseguiriam se recebessem ouro e prata em pagamento. Por isso, muito raramente intervêm ouro e prata no comércio entre a Grã-Bretanha e as colônias de tabaco. Maryland e a Virgínia têm tão pouca necessidade desses metais em seu comércio externo como no interno. Eis por que se diz que têm menos dinheiro em ouro e prata do que qualquer outra colônia da América. E, no entanto, são tidas como tão prósperas e, conseqüentemente, tão ricas quanto qualquer outra colônia vizinha. Nas colônias do norte — Pensilvânia, Nova York, Nova Jersey, os quatro governos da Nova Inglaterra etc. — o valor de sua própria produção que exportam à Grã-Bretanha não é igual ao dos manufaturados que importam para seu próprio uso e para o de algumas outras colônias para as quais transportam esses manufaturados. Nessas condições, geralmente têm que pagar à Grã-Bretanha o que falta em ouro e prata, e geralmente o conseguem. Nas colônias açucareiras, o valor da produção anualmente exportada à Grã-Bretanha é muito superior ao de todas as mercadorias dela importadas. Se o açúcar e o rum anualmente enviados à mãe-pátria fossem pagos naquelas colônias, a Grã-Bretanha seria obrigada a exportar cada ano uma quantidade muito grande de dinheiro, e o comércio com as Índias Ocidentais seria considerado por certa casta de políticos como extremamente desvantajoso. Acontece, porém, que muitos dos principais proprietários de plantações de cana-de-açúcar residem na Grã-Bretanha. Suas rendas lhes são remetidas em açúcar e rum, pro388
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dutos de suas propriedades. O açúcar e o rum que os comerciantes das Índias Ocidentais compram naquelas colônias por sua própria conta não equivalem, em valor, às mercadorias que anualmente vendem lá. Em razão disso, necessariamente esses comerciantes têm anualmente um saldo a receber, em ouro e prata, e também esse dinheiro, geralmente, as colônias o encontram. A dificuldade e a irregularidade de pagamento das diversas colônias para a Grã-Bretanha de forma alguma têm sido proporcionais ao alto ou baixo saldo devedor que têm tido na balança comercial com a Grã-Bretanha. Geralmente os pagamentos das colônias do norte têm apresentado mais regularidade que os das colônias de tabaco, embora as primeiras tenham em geral pago um saldo bastante grande em dinheiro, ao passo que as segundas não pagaram saldo algum ou então um saldo muito menor. A dificuldade de receber pagamento das nossas diversas colônias açucareiras tem sido maior ou menor, não tanto em proporção com o montante de seus respectivos saldos devedores, mas antes em proporção com a quantidade de terra não cultivada das colônias, ou seja, em proporção com a tentação maior ou menor que os plantadores têm tido de manter um comércio excessivo, ou de desenvolver a colonização e a plantação em maiores quantidades de terra inculta em proporção superior à que comportam seus capitais. Os retornos da grande ilha de Jamaica, onde há ainda muita terra inculta, têm sido, geralmente, sob esse aspecto, mais irregulares e incertos do que os das ilhas menores de Barbados, Antígua e Saint Christopher, que durante esses muitos anos têm sido inteiramente cultivadas e, por esse motivo, deram menos margem às especulações do plantador. As novas aquisições de Grenada, Tobago, São Vicente e Dominica abriram novo campo para essas especulações, e os retornos dessas ilhas têm sido ultimamente tão irregulares e incertos quanto os da grande ilha de Jamaica. Como se vê, não é a pobreza das colônias que, na maioria delas, gera a atual escassez de dinheiro em ouro e prata. É sua grande demanda de capital ativo e produtivo que faz com que lhes seja conveniente ter o menos possível de capital morto e inativo, levando-as a se contentar com um instrumento de comércio mais barato, embora menos cômodo do que o ouro e a prata. Com isso, têm a possibilidade de converter o valor de seu ouro e prata em instrumentos de trabalho, em peças de vestuário, mobiliário doméstico e ferragens necessários para construir e ampliar suas fundações e plantações. Em se tratando de setores comerciais que não podem ser movimentados sem dinheiro em ouro e prata, nota-se que as colônias sempre conseguem encontrar a quantidade necessária desses metais; e se com freqüência não a encontram, a falha geralmente é conseqüência não de sua pobreza inevitável, mas do seu desnecessário e excessivo espírito empresarial. Seus pagamentos são irregulares e incertos, não porque sejam pobres, mas porque são por demais ávidos de enriquecer excessivamente. Mesmo que tivesse que ser enviado para a Grã-Bretanha, em ouro e prata, 389
OS ECONOMISTAS
todo aquele excedente da receita tributária das colônias que superasse o necessário para pagar os gastos de seu próprio governo civil e de suas instituições militares, as colônias teriam recursos abundantes com que comprar a quantidade necessária desses metais. Na realidade, nesse caso seriam obrigadas a trocar parte do excedente de sua produção, com a qual atualmente compram capital ativo e produtivo, por capital inativo. Na movimentação de seu comércio interno seriam obrigadas a utilizar um instrumento de comércio dispendioso, em vez de um barato, e o que teriam que gastar para comprar esse instrumento caro poderia refrear um pouco a vivacidade e o ardor de sua avidez excessiva no aprimoramento da terra. Contudo, poderia não ser necessário remeter parte alguma da receita tributária americana em ouro e prata. Ela poderia ser remetida em títulos emitidos e sacados por comerciantes ou companhias particulares sediadas na Grã-Bretanha, e por eles endossados, aos quais se tivesse consignado uma parte do excedente de produção da América, os quais, por sua vez, pagariam ao erário a receita americana em dinheiro, após terem eles mesmos recebido o valor da mesma em mercadorias; assim sendo, freqüentemente toda a transação poderia ser feita sem exportar uma única onça de ouro ou prata da América. Não é contrário à justiça exigir tanto da Irlanda quanto da América que contribuam para o pagamento da dívida pública da Grã-Bretanha. Essa dívida foi contraída para sustentar o governo implantado pela Revolução, governo ao qual os protestantes da Irlanda devem, não somente, toda a autoridade de que atualmente desfrutam em seu próprio país, como também toda a segurança que possuem para sua liberdade, sua propriedade e sua religião; governo ao qual várias colônias da América devem seus privilégios atuais e, conseqüentemente, sua atual constituição, e ao qual todas as colônias da América devem a liberdade, a segurança e a propriedade de que desde então desfrutaram. Essa dívida pública foi contraída não somente em defesa da Grã-Bretanha, mas também na de todas as províncias do Império; em especial, a imensa dívida contraída na última guerra, e grande parte contraída na guerra que lhe precedeu, ambas foram estritamente contraídas em defesa da América. Por uma união com a Grã-Bretanha, a Irlanda ganharia, além da liberdade de comércio, outras vantagens muito mais importantes, que compensariam muitíssimo qualquer aumento de impostos que pudesse vir na esteira dessa união. Pela união com a Inglaterra, as classes média e inferior da população libertaram-se completamente do poder de uma aristocracia que sempre as oprimira anteriormente. Unindo-se à Grã-Bretanha, a maior parte das pessoas de todas as classes da Irlanda se libertou, com igual plenitude, de uma aristocracia muito mais opressiva — aristocracia não se fundamenta, como na Escócia, na diferença natural e respeitável de nascimento e de fortuna, mas na mais odiosa de todas as diferenças, a dos preconceitos religiosos e políticos, distinções que, mais do que qualquer outra, estimulam tanto 390
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a insolência dos opressores quanto o ódio e a indignação dos oprimidos, e que geralmente tornam os habitantes do mesmo país mais hostis uns aos outros do que o possam ser entre si os de países diferentes. Sem união com a Grã-Bretanha, os habitantes da Irlanda não têm probabilidade de considerar-se um só povo durante muitas gerações. Nas colônias, nunca chegou a prevalecer uma aristocracia opressiva. Mesmo elas, porém, em termos de felicidade e tranqüilidade, ganhariam muito com uma união com a Grã-Bretanha. Em todo o caso, a união os libertaria daquelas rancorosas e virulentas facções inseparáveis das pequenas democracias, e que com tanta freqüência têm dividido sua população e perturbado a tranqüilidade de seus governos, tão próximos à democracia em sua forma. No caso de uma separação total da Grã-Bretanha — a qual parece ter grande probabilidade de ocorrer, se não for evitada com essa união — tais facções seriam dez vezes mais virulentas do que nunca. Antes do início dos distúrbios atuais, o poder coercitivo da mãe-pátria sempre tinha sido capaz de impedir que essas lutas facciosas se transformassem em algo pior que a brutalidade e o insulto mais graves. Caso desaparecesse totalmente esse poder coercitivo, as facções provavelmente logo desandariam para a violência aberta e o derramamento de sangue. Em todos os grandes países unidos sob um governo uniforme, o espírito partidário costuma prevalecer menos nas províncias longínquas do que no centro do Império. A distância dessas províncias em relação à capital, à sede principal da grande disputa das facções e da ambição, faz com que elas sejam menos visadas por algum dos partidos em luta, tornando-as espectadores mais indiferentes e imparciais da conduta de todos. O espírito de facção prevalece menos na Escócia do que na Inglaterra. No caso de uma união ele provavelmente prevaleceria menos na Irlanda do que na Escócia, e as colônias provavelmente desfrutariam logo de um grau de concórdia e unanimidade atualmente desconhecido em qualquer parte do Império Britânico. Sem dúvida, tanto a Irlanda como as colônias ficariam sujeitas a impostos mais onerosos do que todos os que atualmente pagam. Entretanto, em decorrência de uma aplicação diligente e fiel da receita pública para o pagamento da dívida nacional, possivelmente a maior parte desses impostos não seria de longa duração, e a receita pública da Grã-Bretanha poderia logo reduzir-se ao que é necessário para manter um razoável estado de paz. As posses territoriais da Companhia das Índias Orientais, posses que constituem direito indiscutível da Coroa, isto é, do Estado e do povo da Grã-Bretanha, poderiam transformar-se em outra fonte de receita, talvez mais abundante do que todas as já mencionadas. Esses países são considerados mais férteis, mais extensos e, em proporção com sua extensão, muito mais ricos e mais povoados que a Grã-Bretanha. Para se auferir deles uma grande receita, provavelmente não seria necessário um novo sistema de tributação em países já suficientemente taxados, e até sobretaxados. Talvez fosse mais adequado diminuir do que aumentar o ônus que pesa sobre esses países desafor391
OS ECONOMISTAS
tunados, procurando auferir deles uma receita não pela imposição de novos tributos, mas impedindo a malversação e a má gestão da maior parte dos que já estão pagando. Caso se considerasse impraticável para a Grã-Bretanha aumentar consideravelmente sua receita, lançando mão dos recursos de que venho tratando, a única saída que lhe pode restar é diminuir seus gastos. Na maneira de recolher e de empregar a receita, ainda que em ambos os setores ainda possa haver campo para aprimoramentos, a Grã-Bretanha parece ser, no mínimo, tão econômica quanto qualquer um dos países vizinhos. O aparato militar que ela mantém para sua própria defesa em tempo de paz é mais modesto que o de qualquer Estado europeu que possa pretender rivalizar com ela em riqueza ou em poder. Por isso, nenhum desses itens parece comportar alguma redução considerável de despesas. Os gastos de manutenção das colônias em tempo de paz eram, antes do início dos atuais distúrbios, bastante consideráveis, constituindo uma despesa que certamente pode ser totalmente economizada, e deverá sê-lo, caso não se consiga auferir nenhuma receita das colônias. Essa despesa constante em tempo de paz, embora muito alta, é insignificante em confronto com o que nos custou a defesa das colônias em tempo de guerra. A última guerra, empreendida exclusivamente por causa das colônias, custou à Grã-Bretanha mais de 90 milhões, como já foi observado. A guerra com a Espanha, de 1739, foi empreendida sobretudo em conseqüência das colônias; nesta, e na guerra contra a França, que foi decorrência dela, a Grã-Bretanha gastou mais de 40 milhões, montante que, em grande parte, por justiça, deveria caber às colônias. Nessas duas guerras, as colônias custaram à GrãBretanha muito mais que o dobro do montante da dívida nacional antes do início da primeira delas. Não fossem essas guerras, aquela dívida poderia, e provavelmente estaria a essa altura completamente liquidada; e, não fosse por causa das colônias, talvez não se tivesse empreendido a primeira dessas guerras, e a segunda certamente não teria ocorrido. Se fizemos esse gasto com as colônias, foi porque se supunha serem elas províncias do Império Britânico. Contudo, não se pode considerar como províncias regiões que não contribuem nem com receita nem com força militar para o Império. Podem talvez ser consideradas apêndices, uma espécie de equipagem esplêndida e vistosa do Império. Mas, se o Império não é mais capaz de suportar a despesa de manter tal equipagem, certamente deve abrir mão dela; e, se não tiver condições de aumentar sua receita proporcionalmente a seus gastos deve, no mínimo, ajustar seus gastos à sua receita. Se as colônias, apesar de recusarem submeter-se aos impostos britânicos, tiverem que continuar a ser consideradas províncias do Império Britânico, a defesa das mesmas em alguma guerra futura poderá custar à Grã-Bretanha um gasto tão elevado quanto teve com qualquer guerra anterior. Durante mais de um século, os governantes da Grã-Bretanha alegraram o povo fazendo-o imaginar que ele possuía um grande império no lado 392
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ocidental do Atlântico. Acontece que esse império até hoje só existiu na imaginação. Até o presente, não foi um império, mas o projeto de um império; não uma mina de ouro, mas o projeto de uma mina de ouro; aliás, um projeto que custou, continua a custar e, se as coisas continuarem da mesma forma como até aqui, provavelmente custará uma despesa imensa, sem perspectivas de proporcionar lucro algum, pois, como já mostrei, os efeitos do monopólio do comércio colonial representam, para a população em geral, pura perda, em vez de lucro. Certamente já é tempo de os nossos governantes transformarem em realidade esse sonho dourado, ao qual talvez se tenha entregue até agora, juntamente com o povo — ou que acordem eles próprios de tal sonho, e procurem despertar também a população. Se o projeto não puder ser completado, deve ser abandonado. Se não se conseguir que as províncias do Império contribuam para o sustento do Império em sua totalidade, chegou certamente a hora de a Grã-Bretanha libertar-se da despesa de defender essas províncias em tempo de guerra, e da de sustentar qualquer parcela de seu governo civil ou instituições militares em tempo de paz, e de procurar ajustar suas perspectivas e seus planos futuros à mediocridade real de sua situação.
393
APÊNDICE
Os dois cálculos que se seguem são acrescentados para ilustrar e confirmar o que ficou dito no capítulo V do Livro Quarto, com referência ao subsídio de tonelagem concedido à pesca do arenque-branco. Acredito que o leitor pode confiar na exatidão dos dois cálculos. Cálculo relativo às pequenas embarcações utilizadas na pesca de arenques na Escócia para onze anos, com o número de barris vazios utilizados e o número de barris de arenques pescados, também o subsídio médio de cada barril de instrumentos pontiagudos e de cada barril quando plenamente carregado.
Instrumentos pontiagudos
378 347
Subsídio médio por cada barril de instrumentos pontiagudos £ 0 8 2 1/4 Como, porém, um barril de instrumentos pontiagudos conta apenas como 2/3 de um barril plenamente carregado, deduz-se 1/3 395
OS ECONOMISTAS
dedução de 1/3 126 1152/3, com que o subsídio é de . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . £
0
12
E se os arenques forem exportados, há além disso um prêmio de . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
0
2
Assim sendo, o subsídio pago pelo Governo, em dinheiro, por cada barril, é de . . . . . . . . . £
0
14
11 3/4
Se porém, a isso se acrescentar o imposto sobre o sal, na quantidade normalmente calculada para curar cada barril de arenque, imposto esse que, em se tratando de sal estrangeiro, é de 1 bushel e 1/4 de bushel a 10 s por bushel. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O subsídio de cada barril será de . . . . . . . . . £
0 1
12 7
6 5 3/4
0
14
11 3/4
0 0
3 17
0 11 3/4
0 0 0
12 1 11
3 3/4 0 3 3/4
0
12
6
1
3
9 3/4
Barris plenamente carregados
3 3/4
252 2311/3
Se os arenques forem curados com sal britânico, teremos o seguinte: Subsídio como acima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . £ — se, porém, a esse subsídio acrescentarmos o imposto sobre 2 bushels de sal escocês, que é de 1 s 6 d por bushel, supondo-se que, em média, é a quantidade supra para curar cada barril de arenque, o subsídio por cada barril acrescentado é . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . £ E, Quando as pequenas embarcações utilizadas na pesca de arenque para consumo interno na Escócia pagam o imposto de 1 xelim por barril, o subsídio fica assim a saber, como antes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . £ Disso deve-se deduzir 1 s por barril . . . . . . . A isso, porém, tem-se que acrescentar novamente o imposto do sal estrangeiro usado para curar um barril de arenques, isto é . . . Assim sendo, o prêmio concedido por cada barril de arenques que dá entrada para consumo interno é de . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . £ Se os arenques forem curados com sal britânico, teremos o seguinte: Subsídio em cada barril introduzido pelas pequenas embarcações para a pesca de arenque 396
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ADAM SMITH
conforme supra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . £ 0 12 3 3/4 Disso deduz-se o imposto de 1 s por barril, pago no momento em que o produto dá entrada para consumo interno . . . . . . . . . . . . . . 0 1 0 £ 0 11 3 3/4 Se, porém, ao subsídio acrescentarmos o imposto sobre 2 bushels de sal escocês, de 1 s 6 d por bushel, supondo-se que, em média, é esta a quantidade de sal escocês requerida para curar cada barril de arenques, isto é . . 0 3 0 O prêmio por barril de arenques que dá entrada para consumo interno será de . . . . . . . £ 0 14 3 3/4 Embora a perda dos impostos sobre os arenques exportados talvez não possa propriamente ser considerada como subsídio, certamente se pode considerar como tal a perda dos impostos sobre arenques que dão entrada para consumo interno. Cálculo da quantidade de sal estrangeiro importado pela Escócia, e de sal escocês lá entregue, isento de taxa, pelas salinas para a pesca — de 5 de abril de 1771 até 5 de abril de 1782, com uma média de ambos para um ano.
Note-se que o bushel de sal estrangeiro pesa 84 libras, ao passo que o de sal britânico pesa somente 56 libras.
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ÍNDICE
A RIQUEZA DAS NAÇÕES LIVRO QUARTO — Sistemas de Economia Política . . . . . . . . . 5 CAP. IV — Os Drawbacks . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 CAP. V — Os Subsídios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Digressão sobre o comércio de cereais e a legislação sobre os cereais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 CAP. VI — Os Tratados Comerciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 CAP. VII — As colônias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 Parte Primeira — Os motivos da fundação de novas colônias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 Parte Segunda — Causas da prosperidade das novas colônias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 Parte Terceira — As vantagens que a Europa auferiu da descoberta da América e da descoberta de uma passagem para as Índias Orientais através do cabo da Boa Esperança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86 CAP. VIII — Resultado do Sistema Mercantil . . . . . . . . . . . . . . 131 CAP. IX — Os Sistemas Agrícolas ou os Sistemas de Economia Política que Representam a Produção da Terra como a Fonte Única ou a Fonte Principal da Renda e da Riqueza de cada País . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 LIVRO QUINTO — A Receita do Soberano ou do Estado . . . . CAP. I — Os Gastos do Soberano ou do Estado . . . . . . . . . . . . . Parte Primeira — Os gastos com a Defesa . . . . . . . . . . . . Parte Segunda — Os gastos com a Justiça . . . . . . . . . . . . Parte Terceira — Os gastos com as obras e as instituições públicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Artigo I — As obras e as instituições públicas destinadas a facilitar o comércio da sociedade . . . . . . . Em primeiro lugar, as que são necessárias para facilitar o comércio em geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 399
171 173 173 187 198 198 198
OS ECONOMISTAS
As obras e as instituições públicas necessárias para facilitar determinados setores do comércio . . . . . Artigo II — Os gastos das instituições para a educação da juventude . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Artigo III — Os gastos com as instituições destinadas à instrução das pessoas de todas as idades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Parte Quarta — As despesas com o sustento da dignidade do soberano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. II — As Fontes da Receita Geral ou Pública da Sociedade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Parte Primeira — Os fundos ou fontes de receita que podem pertencer particularmente ao soberano ou ao Estado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Parte Segunda — Impostos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Artigo I — Tributação sobre a renda. Tributação sobre a renda de terras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Impostos proporcionais à produção da terra, e não à renda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Impostos sobre aluguéis de casas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Artigo II — Impostos sobre o lucro ou sobre o rendimento proveniente do capital . . . . . . . . . . . . . . . Impostos sobre o lucro de aplicações específicas de capital . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Apêndice aos Artigos I e II — Impostos sobre o valor-capital de terras, casas e capital . . . . . . . . . . . . . Artigo III — Impostos sobre o salário do trabalho . . . . . Artigo IV — Impostos que, como se pretende, devem recair indiferentemente sobre cada tipo de rendimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Impostos de capitação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Impostos sobre bens de consumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . CAP. III — As Dívidas Públicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Apêndice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
400
205 228 249 271 272 275 275 282 284 292 295 301 306 311 317 319 320 322 357 395