134 16 52MB
Portuguese Pages 262 Year 2000
Frederico
A
de Castro
Neves
MULTIDÃO
E A Histr ÓRIA Saques e outras ações de massas no Ceará
Coleção
Ourros DiÁLoGos
RIO () BECRCTARIA DA CULTURA E DESPORTO
RELUME qÃã Rio
de
DUMARÁ
Janeiro 2000
ves Frederico de Castro Ne O Copyrig ht 2000. a edição à Prraitos cedidos para est pg PuBLICAÇÕES LTDA. Dumara DISTRIBUIDORA br WWW relumedumara com. ha Circular Travessa Juraci, 37 - Pen Janeiro, RJ 21020-220 - Rio de
(21) 590 0135 Tel 421) 564 6869 Fax: ra.com.br E-mail. relumerelumeduma Coleção
Outros DIÁLOGOS Coonlenação Daniel Lins
Revisão
Argemiro de Figueiredo Editoração Dilmo Milheiros Capa Simone Villas Boas
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Neves, Frederico de Castro Nd24m
A multidão é à história: saques e outras ações de massas no Ceará/ Frederico de Castro Neves. - Rio de Janeiro: Relume Dumará; Fortaleza, CE. Secretaria de Cultura e Desporto, 2000
— (Coleção Outros diálogos; 3)
Inclu bibliografia
ISBN 85-7316-217-1 1. Multidões - Ceará — História. 2. Revoltas - Ceará — História. 3. Movimentos sociais - Ceará — História. |. Ceará. Secretaria de Cultura €
Desporto, Il. Título. || Série.
00-0947
CDD 312.33 CDU 316.353
Todos os direitos reservados. A reprodução não-auturizada desta publicação, por qualquer meio. seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei nº 5.988.
SUMÁRIO
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CarfruLo I
I. Fortaleza, “Capital de um Pavoroso Reino” ........cccciscicceeees
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Il. Ongens da Seca ........ccc ss
42
HI. Lições da Tragédia ........cc see erererererereraereers eres
47
CarfruLo TI
I. Primeiras Experiências... ....cccssccsescsrarestessrre caserna
63
II. Novas Estruturas de Sentimentos .......cccccccscrerieseraraerseso
92
CaríruLo II I. A Multidão Ganha Visibilidade ........ccccccccerciecerrre res TE RESCUE ssa usas CESTA OEICRIE Cas EU ERia
105 HO
HI. Consequências é Desdobramentos .. «ss agusass avessas poses
116
CaríruLo IV
1. O: Estado Intervém:. ... eme nossas ts eme rair UE
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II. A Seca Local e a Guerra Mundial... .....ccccccccsccrrraseatres 14] EDUCA UCS 152 TT O Parlião-SEstado NOVO. sacras suar FRUTO vas CaríruLo V mana I. A Multidão se Movimenta ........ccccsccrereneceecerarra
161
II. Novos Homens, Velhas Estruturas .........ccccccccecerenerencana 170 HE A Fonçáda TRdIÇãO as esexssse eres
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CaríruLo VI
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Freverico DE CAstRO NEVES
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III. O Medo da Multidão ......ciiiiis
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CaríruLo VII
I. A Multidão u e a tradição Tradição Oral. Oral. .......... eus susaess mese és cesine comsaasos 233 Cc ONCLUSÃO KO: . comida GM LRGUAS CUPS TERES on ou ines Cais CAD NES SSspa DE SEs Gá masi am CasdR AA
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255
INTRODUÇÃO
Asoris
em 1942, por exemplo. A multidão acomoda-se por perto.
Muitos trazem mulher e filhos. Todos vêem no chefe sua única esperança para escapar vivo e não passar fome. Mas o chefe, normalmente, ainda não
tem condições nem ordem de empregar. Eles vão ficando. Assim o ex-engenheiro do Departamento Nacional de Obras Contra as Se-
cas (DNOCS), Paulo de Brito Guerra, começa sua descrição de um conflito entre retirantes e chefes de serviço encarregados das obras de combate às secas. Tais
conflitos são tão comuns em épocas de seca — note-se o “por exemplo” — que passaram a fazer parte da própria paisagem do sertão. Depois de março, as plantações perdidas, o gado doente, morto ou transferido para áreas úmidas, “muita gente já pensando em escapar” começa a “sondar os conhecidos mais ricos, as Prefeituras, as Agências do Governo” e, após o dia 19 — dia de São José e passagem do equinócio —, “tem início, real ou oficial, a odisséia da seca”. Com a movimentação dos retirantes, à procura de proteção e assistência, os focos de conflito se multiplicam. Procurando descrever as “vicissitudes de qualquer chefe de serviço nas Agências do Governo no interior”, o Dr. Guerra nos deixa entrever o processo de “negociação” que se estabelece entre autoridades e retirantes, para que a demanda por comida e trabalho não se transforme em invasões descontroladas e saques aos armazéns. Uma “negociação” em que poucas palavras são enunciadas, mas
que a própria presença dos retirantes nos canteiros de obras públicas funciona como um elogiiente e apaixonado discurso. Há passamentos — (vertigens). Se o chefe nada faz, nada promete, eles vão ficando. E a multidão se avoluma. Se os emprega, no outro dia chegam mais, aos borbotões. Nos municípios próximos — acontecia isso —, as Pre-
feituras, assediadas, alugavam caminhões e mandavam despejar os inopor-
9
Freverico DE Castro NEVES
tunos nos acampamentos do Governo, ou seja, do DNOCS, com uma carta de apresentação ou mesmo sem ela.
A aglomeração de pessoas à espera de solução é o principal argumento e, ao mesmo tempo, o mais poderoso meio de pressão que os retirantes trazem Para o cenário da “negociação”, e a fome — ou a perspectiva de passar fome — é a moti-
vação essencial. O crescente volume da multidão constitui uma pressão irresistível
que precisa ser neutralizada antes que a revolta tome conta dos espíritos, outrora
pacíficos e conformados, dos homens do campo. É preciso responder aos argu-
mentos: “Aí é que o chefe tem que se desdobrar em promessas, em radiogramas, em meias medidas, para evitar a revolta. Se mostrar fraqueza ou desânimo Estará
perdido”.
Os chefes de obras do DNOCS precisam, portanto, ser mais do que tecnicamente competentes; fundamentalmente, necessitam desenvolver uma habilidade política que os livre de situações complexas como essa. Mais do que isso, preci-
sam conhecer os códigos desta negociação para poder colocar em prática um
conjunto de atitudes capazes de contra-argumentar, ou “contra-atacar”. Entre as medidas adotáveis como contra-ataque, até que tenha lugar o alis-
tamento oficial, estão o contato pessoal, a conversa promissora, a distribui-
ção de um pouco de alimento (farinha ou pão e rapadura), com a condição de sumirem. Porque naturalmente muitos ainda poderiam resistir em casa mais umas semanas, mas o pavor do futuro próximo os precipitou na estrada. Uma tática é aceitar só os que já arrastam consigo a família, o que é prova de miséria. Outra, empregar só os que trazem qualquer ferramenta: uma enxada, uma pá ou foice. De início, só os casados.
As “medidas” e “táticas” colocadas em prática pelo engenheiro, para não ficar “perdido”, demonstram um ambiente de conflito e negociação. E algumas soluções, no meio deste clima tenso, são encontradas, mesmo que provisórias: “Havendo alguma terra disponível, muitos casos ficam resolvidos, pois os pequenos proprietários, neoflagelados, pedem primeiro uma vazante, depois pe-
dem emprego. Evitam todos, quanto possível, pedir esmola”. Mas o “alistamento oficial”, apontado como solução derradeira, nem sempre resolve o conflito; às vezes. é um fator a mais no caldo da insatisfação generali-
zada: “Após o alistamento, as coisas se complicam. Geralmente, há pouca ferramenta. As tarefas de campo e de escritório são redobradas, mas o pessoal disponível para executá-las é quase o mesmo”. 10
A MuztibÃo E A HisTÓRIA
O controle sobre milhares de homens despreparados para este tipo de tarefas não é fácil e “um engenheiro muitas vezes é obrigado, sozinho, à comandar uma legião” — as comparações com organizações militares são inevitáveis. O que parece um caos impenetrável se complica ainda mais quando a multi-
dão se impacienta e resolve tomar atitudes por sua conta e risco. Enquanto isso, verificam-se ameaças e assaltos a barracões. Em 1942, em poucas horas, foram roubadas muitas toneladas de batata e mandioca dos
campos irrigados. Movimentada a polícia, o roubo foi tomado e mais tarde distribuído a todos, com advertências! As atitudes de “contra-ataque” devem se restringir, como bem sabe o engenheiro, a admoestações, promessas ou conversas; a ação da polícia somente deve ser requisitada em casos extremos e deve ser estritamente controlada de modo a
evitar uma explosão geral de revolta que transforme o conflito em rebelião. Os ataques da multidão, por outro lado, oferecem às autoridades — chefes de serviço, prefeitos, delegados, vigários etc — a concretização das ameaças veladas que todos vislumbram nas concentrações de retirantes. São amostras que alimentam um medo constante que todos experimentam: uma ruptura no processo de “negociação” que o inviabilize, deixando aberto o conflito, sem possibilidades de solução negociada, meio caminho para uma explosão social. * ok +
Dezesseis anos depois dos episódios relatados pelo Dr. Guerra, a multidão permanece ativa durante os períodos de seca e, mais do que isso, ocupa os territórios mais inusitados, como o espaço urbano de Fortaleza, a capital do Ceará. Na manhã do dia 24 de março de 1958, um grupo indefinido de retirantes “esteve no Palácio da Luz, a fim de solicitar auxílio ao Governador”, mas não foi
recebido. Na confusão que se seguiu, uma tentativa de assalto ao Mercado Cen-
tral assustou comerciantes e autoridades. O jornal procurou atenuar o episódio, informando que “quase não houve furtos, a não ser uns poucos quilos de peixe que se encontravam nas calçadas”. No entanto, “para evitar novas arremetidas, o mercado cerrou os seus portões por cêrca de uma hora”, Por outro lado, a reportagem enfatiza que o ato não foi de iniciativa dos “pacíficos camponeses”, mas
de “uma malta de desocupados” que se juntou a eles, formando uma multidão heterogênea; ainda por cima, os atacantes “foram açulados por elementos tendenciosos, com o visível propósito de colocar mal o Govêrno”, )
FreDerico DE Castro NEVES
De qualquer maneira, o Governador, “tão logo tomou conhecimento da situ. ação”, providenciou transporte para “o pessoal que realmente queria trabalhar” dirigir-se até o canteiro de obras da construção da rodovia Parangaba-Messejana, dois distritos muito populosos da capital, e — depurados dos “desocupados” e dos “tendenciosos” — “os sertanejos foram imediatamente incorporados às turmas que estão construindo aquela estrada”.2
O deslocamento dos retirantes, contudo, não resolve o problema. Uma semana depois, cerca de “1.800 flagelados tentaram invadir Messejana à procura de alimentos”. Alguns deles são identificados como aqueles que “já tentaram invadir o Mercado Central, dias antes, e foram enviados para esse serviço pelo Governador”.
A situação no acampamento da construção da estrada não estava das melho-
res. Os “salários estão atrasados há dois dias e não há armazém de fornecimento” De fato, a situação “está-se tornando quase insustentável, dada a quantidade de homens que ali buscam trabalho”: “Os serviços, até agora iniciados, são muito
poucos, distantes um do outro, insuficientes, portanto, para dar ocupação a todos os necessitados”.
Por outro lado, “não há ferramenta para todos” e “a verba destinada aos aludidos serviços não é de molde a garantir ocupação para tanta gente durante muito tempo”. O Governador, mais uma vez, é chamado a intervir “para verificar o que é possível fazer. com os limitados recursos de que dispõe o Estado, para fazer face à difícil situação que se criou com a sêca”.* Com “promessas” e “meias
medidas”, os responsáveis pela obra procuraram convencer os retirantes a retornar ao acampamento em Messejana. Mas as promessas de pagamento, porém, não convencem um grupo de retirantes, que “começou a se mover para Fortaleza”. Outro grupo permanece nos
arredores de Messejana, ameaçando o comércio. Um novo impasse se estabelece, enquanto, por via das dúvidas, os comerciantes fecham as suas portas. O conflito, por alguns momentos, foi pacificamente resolvido pela polícia, que distribuiu leite - do próprio bolso do Secretário de Polícia, segundo o jornal — e, com O auxílio de alguns comerciantes, outros gêneros alimentícios. O chefe dos serviços conseguiu, ainda, o pagamento de um dia de trabalho para evitar um novo
deslocamento dos descontentes.º No entanto, o conflito apenas desloca-se para a outra ponta da estrada. No dia 4 de abril, cerca de “2 milhares de flagelados dirigem-se à Parangaba em busca de alimentos”, O proprietário de uma padaria, assediado pelos retirantes.
“entregou todo o estoque que possuía”. A população da localidade estava
“intrangúila”, mas o jornal assegura que “nada havia na atitude dos flagelados 12
A MuitDÃo E A História
que detonasse (sic!) a intenção de saquear”. O Governador Paulo Sarasate, novamentc instado a intervir, “organizou um movimento de socorro com viaturas de
rádio-patrulha”, as quais foram utilizadas para transportar alimentos para os famintos. Depois da distribuição, os retirantes “foram enviados ao ponto de concentração em Messejana”. O pagamento, contudo, permanecia atrasado e, novamente, a multidão se dividiu: alguns aceitaram os alimentos e foram para o acam-
pamento, outros reagiram com protestos e reclamações inconformadas, e outros
ainda resolveram retomar o caminho para Parangaba.é O desfecho destes conflitos é parcialmente ignorado. A rodovia só foi inaugurada alguns anos depois da seça, embora os trabalhos dos retirantes continuassem até 1959. O comércio de Parangaba fechou naquele dia com receio de saque,
mas retomou suas atividades assim que possível. Os retirantes continuaram à pressionar as autoridades por pagamentos, fornecimento regular e outras demandas básicas por todo o ano de 1958 e começo de 1959; com as chuvas a partir de março deste ano, a maior parte retornou para o interior do estado, para as terras
que ainda possuíam ou ocupavam em arrendamento. No entanto, tudo leva a crer que estes eventos fazem parte do mesmo movimento que se iniciou com a tentativa de assalto ao Mercado Central e se ampliou
para as obras de construção da rodovia que circunda a capital. Parece, também, que tem a ver com o saque ao armazém do Serviço de Assistência e Proteção às Vítimas da Seca (SAPS), em Messejana, apenas quatro dias depois dos eventos de Parangaba — assalto que deve ter sido bem proveitoso, pois o posto “tinha sido abastecido recentemente”, e que contou com a colaboração de trabalhadores recém-chegados de Russas, além de “espertos e aproveitadores” que “conseguiram
surrupiar mercadorias em grande quantidade”. Parece, do mesmo modo, que a presença constante de cerca de 2 mil retirantes rondando o comércio de Messejana, que permaneceu “temeroso de ser visitado a qualquer instante”, se relaciona com
a suspensão dos serviços de construção da rodovia e até mesmo com a “dispensa em massa dos flagelados”, que ocorreria semanas depois, quando os retirantes
rumam imediatamente para o movimentado centro do distrito assim que sabem da notícia de que seriam transferidos para outros serviços em Guaiuba e Pacatuba. Pode ser ainda que mantenha mais afastadas relações com o assalto a uma mercearia no bairro próximo de Mondubim e com o aparecimento de várias reses abatidas em Pajuçara e Mondubim nos primeiros dias de maio.” Mas, certamente, estes eventos, assim como aqueles descritos pelo Dr. Guerra, demonstram uma determinada forma de “negociação” política que possui características específicas e que não pode ser avaliada a partir dos padrões e códigos da política representativa, dita “moderna”, A multidão, como se viu, negocia 13
Freverico DE CAsTRO NEVES
através da pressão direta, dos pedidos € exigências, dos saques e, especialmente, da exposição pública de suas misérias, que a seca aguça € dá visibilidade. Nos canteiros de obras públicas ou nas áreas comerciais urbanas, esta “ne.
gociação” se verifica em tempos de seca c a multidão escolhe as suas estratégias em função das opções disponíveis. As formas de pressão variam conforme as características. habilidades e capacidade de decisão demonstradas pelos negocia. dores — e o livro do Dr. Guerra transforma-se, nestc aspecto, num manual para um bom interlocutor. Assim, as ações empreendidas pelas multidões de retirantes constituem-se em atos de vontade que precisam ser examinados em sua própria especificidade e naqueles pontos em que se cruzam com as teias mais amplas das
relações sociais. Contudo. estas ações devem ser compreendidas tanto com relação ao curso dos eventos quanto ao entendimento subjetivo dos agentes envolvidos sobre suas próprias condutas, já que as intenções humanas, entre outros fatores, determinam seu comportamento.* Ações e intenções, portanto, possuem um significado que
os passos da pesquisa tendem a revelar e, juntos, constituem “a unidade da ordem cultural” que instaura e dá sentido às “formas de existência social”. Assim, no relato do Dr. Guerra transparecem
alguns métodos de pressão
utilizados pelos retirantes. O principal deles é a concentração maciça exigindo na forma, às vezes, de pedidos que apelam à caridade — trabalho e alimentos, deixando como último recurso, como bem enfatiza o engenheiro, a esmola pura e
simples. As autoridades locais, por sua vez, aprendem a se desfazer dos “inoportunos” transferindo para os escritórios do governo federal a responsabilidade de atender às reivindicações dos retirantes. Estes pressionam as autoridades que lhes parecem mais “poderosas”, isto é, aquelas que aparentam ter melhores condições de satisfazer as necessidades urgentes do momento. Há, portanto, opções de escolha e estratégias de conduta que são implementadas pelos flagelados, inclusive à hora certa de usar a violência dos saques e das invasões. Na capital, as opções são mais variadas, aumentando as possibilidades de escolha. As “marchas da fome”, seguidas de alguns atos de saque e pressões sobre os comerciantes, normalmente surtem alguns efeitos imediatos. A proximi-
dade com os governantes auxilia, certamente, nesta compreensão de que o caminho político mais viável para os retirantes, nesta “negociação”, é a pressão direta
da multidão. Como se viu na exposição dos eventos de 1958, os grupos se dividem e discordam das estratégias a serem empregadas: uns aceitam os termos negociados, outros procuram reiniciar as pressões sobre o comércio ou sobre 08 governantes. Isso demonstra um debate interno em que as opções à disposição são cuidadosamente avaliadas e em que o consenso nem sempre é alcançado. 14
A Muinpão E A História
Uma série de ações em seguida, por seu tumo. produz um efeito impactante de gerar o medo entre a população, medo este que se espalha com as notícias de ataques variados em locais diferentes e com as manchetes sensacionalistas dos jornais.
Estas intenções deliberadas e estas estratégias, contudo, nem sempre foram consideradas pelos estudiosos dos movimentos sociais populares rurais. Em maioria, esses estudos permaneceram no interior do campo denominado por E. P. Thompson de “visão espasmódica”.!º Tal como os autores criticados por esse historiador inglês, os estudiosos brasileiros enfatizam o estímulo biológico — a
fome — é com isso encerram a pesquisa exatamente no ponto em que esta deveria
começar. Dc fato, a fome é um elemento importante a considerar — e o próprio Thompson o fez — nas ações dos famintos em tempos de seca, “mas a fome não prescreve que eles devam se rebelar nem determina as formas da revolta”.! No entanto, esta vinculação estreita entre fome e ações da multidão acabou
por afastar este tema quase completamente dos estudos históricos e sociais. Mesmo as melhores pesquisas sobre os movimentos populares no meio rural desprezam os saques e as invasões como estratégias deliberadas de enfrentamento dos conflitos sociais aguçados pela seca, incluindo-as, ao contrário, no rol das “reações”, normalmente “desesperadas”, dos retirantes face a uma inacreditável situação de miséria, que o momento de crise acentua.
Um outro elemento acabaria por selar definitivamente o destino dos estudos sobre as ações da multidão: a seca. Entendida como um fenômeno natural, sobre o qual os homens apenas sofrem os efeitos, a escassez — ou melhor, a irregularidade — de chuvas, característica do semi-árido nordestino, transforma-se no pano de fundo básico que determina os movimentos dos sertanejos em busca da sobrevivência. A seca é, assim,
entendida basicamente como um “momento para repensar a pobreza”.!? como
chave explicativa para todo o processo de conflitos sociais que movimenta o sertão.
A fome e a seca, portanto, compõem um quadro estrutural que as ações dos retirantes necessariamente devem refletir: a seca provoca a fome gencralizada
que leva os sertanejos a movimentarem-se em busca de alimentos e que, finalmente, famintos e desesperados, atacam e invadem as cidades e armazéns para saciar suas necessidades vitais. A ação, assim, é apresentada como um “espasmo” biológico resultado do aguçamento das condições críticas do organismo de-
bilitado pela carência alimentar." Enquanto tal, não pode ser incluída entre as atividades coletivas. organizadas e políticas das massas rurais; pelo contrário, os
15
Freverico DE Castro Neves
estudos reforçam à imagem
dos saques como uma ameaça ao tecido social, à
civilização, às conquistas políticas da modernidade: “A fome dos trabalhadores,
simultancamente denúncia, crítica e ameaça de explosão social materializada nas constantes invasões, tem presença marcante em todos os documentos dos traba-
lhadores”.!4 Daí por que os estudos que tratam dos movimentos sociais — que, portanto,
privilegiam a atividade política das classes populares — esquecem ou desprezam as invasões, ameaças ce saques dos retirantes cem tempos de seca, centrando suas
análises no sindicalismo rural e outras formas de organização dos trabalhadores pobres ou, por outro lado, no famoso binômio “cangaceirismo e messianismo”, Os movimentos de invasão e saque cfetuados por multidões de retirantes são, assim, ignorados por boa parte da literatura disponível sobre movimentos sociais rurais no semi-árido nordestino. Até mesmo quando se procura incluir as invasões e os saques entre as “formas de mobilização dos trabalhadores rurais” durante as secas, esse impasse teórico permanece. Ao rejeitar “o estudo dessas ações diretas dos camponeses como
irracionais”, reconhecendo que as concentrações de trabalhadores “hoje, como ontem. têm um forte conteúdo de pressão social” e que as invasões e saques “constituem uma prática que os camponeses incorporaram à sua experiência política vigente nos anos de seca”, no entanto, outro esquema semelhante substitui a “visão espasmódica”: “Se as reuniões, as passeatas, os atos públicos, os encaminhamentos coletivos podem ser portadores do novo, as invasões ou Os saques configuram o velho, convivendo com o novo”. Assim, a conclusão necessária é que o saque “é o pedido de socorro de uma categoria social que se vê ameaçada em sua sobrevivência física”, “é o grito dos excluídos que ecoa mesmo em conjunturas marcadas pela presença de formas institucionalizadas de organizações representativas dos trabalhadores como os Sindicatos, sem forças suficientes para se imporem frente às forças de poder dominantes”.!5 Visto por outro ângulo, pode-se perceber a formação de um “sujeito co-
letivo”, que, em função das circunstâncias, permanece preso às “condiçõeslimite”. . Para que um grupo de excluídos possa se levantar contra uma norma tão fundamental [a propriedade privada], é preciso que se constitua um sujeito coletivo — a multidão — amalgamado pela fome e pelas condições-limite de sobrevivência, que não pode mais esperar pelas providências normais. Para
este sujeito, um confronto desta natureza é a alternativa à morte.!é 16
A Muri E dã A Histó o ria
Há. assim, uma grande dificuldade em considerar esse sujeito como “histórico”, apesar de “coletivo”, já que o que o constitui é a necessidade e não à vontade. Revela-se também uma outra dificuldade: compatibilizar a miséria com &
consciência, restringindo deste modo a própria noção de cidadania aos limites
formais das instituições estabelecidas." De modo geral, portanto, pode-se identificar que a pouca atenção dada às ações coletivas das multidões tem duas matrizes, que, de certa forma, se complementam. A primeira se refere à tradição de “um pesado investimento da teoria mar-
xista no domínio das interpretações sobre os movimentos sociais”. que, apesar da ênfase excessiva nas organizações e instituições operárias, possibilitou o aparecimento de obras que, no interior mesmo desta tradição, questionavam a ortodoxia urbano-industrial. Merece referência a obra de Eric Hobsbawm, Os Rebeldes
Primitivos, que, publicada no final dos anos 1950, “representou uma significativa mudança na direção dos estudos de inspiração marxista voltados para a temática
dos movimentos sociais” pois privilegiava “a análise dos processos revolucionários em países de estruturas sociais predominantemente agrárias”.!* No entanto, esta obra de Hobsbawm — assim como Bandidos e, de certa forma, também o livro escrito em parceria com George Rudé, Capitão Swing — desenvolve algumas questões problemáticas para quem pretende abordar a política das multidões. Expressões como “primitivos” ou “pré-políticos”, utilizadas para designar os movimentos da “turba tradicional”, revelam um certo determi-
nismo com relação às ações dos trabalhadores do campo.!º Por outro lado, as diferenças entre os trabalhadores rurais e urbanos permanecem em termos fundamentais para a compreensão das atividades políticas. (...) à industrialização substituiu o menu peuple pela classe trabalhadora industrial que tem na organização e na solidariedade duradoura a sua razão mesma de ser, tal como a razão de ser da turba clássica é a intermitência c o
motim rápido? Dito de outra forma, o baixo desenvolvimento tecnológico e a dependência ante as forças da natureza fariam com que “a mobilização duradoura” não encontrasse afiliados “em uma massa rural inteiramente submetida aos imperativos da sobrevivência”. Mas, como esta dependência é igualmente política, o círculo se fecha.
O camponês pobre, ou o trabalhador rural sem terra, que depende de um grande proprietário para a maioria ou para a totalidade de sua subsistência,
17
FreDericO DE CAsTRO NEVES
não possui qualquer controle tático. Ele se encontra inteiramente sob o domínio de seu empregador, sem recursos próprios suficientes para sustentar a luta política. Assim, a ação do trabalhador rural é sempre determinada do exterior, “pelas condições econômicas e sociais”, já que não tinha sua “razão mesma de ser” na “solidariedade duradoura” ou na “organização” e, consequentemente, “é pouco
provável. portanto, que camponeses pobres e trabalhadores rurais sem terra venham a rebelar-se, a menos que possum apoiar-se em algum poder externo capaz
de desafiar o poder que os oprime”?! Nos momentos maiores de crise. portanto, “era-lhe impraticável continuar a não resistir”, “sua situação tornava inevitável
algum tipo de rebelião”. Como consegiiência, a “modernização” dos movimentos de camponeses só acontece quando são “absorvidos pelos movimentos sociais modernos”: “Parece-nos que não há modernização, ou que esta ocorre de torma muito lenta e incompleta. quando o problema fica entregue aos próprios
camponeses”.? Os “modemos” movimentos revolucionários. portanto, substituiriam progressivamente as “tradicionais” rebeliões populares. A segunda destas matrizes reafirma. para o caso brasileiro, essa mesma distinção hierárquica entre os movimentos sociais urbanos € rurais. De fato, os movimentos populares no campo só são considerados como tais no momento em que são “absorvidos” pelo métodos, formas institucionais e modelos de representauvidade característicos dos movimentos urbanos.?* Quando fogem aos organismos típicos de classe, como os sindicatos rurais ou as Ligas Camponesas, os movimentos rurais são incluídos no campo do “cangaceirismo e messianismo”. O principal destes trabalhos. e referência para grande parte dos estudos sobre o mundo rural brasileiro, é o livro Os Camponeses e a Política no Brasil, de José de Souza Martins. A sua crítica à “perspectiva evolucionista” se resume ao “eta-
pismo” que lhe é característico e ele apenas observa que os movimentos messiãnicos e de banditismo social, “pré-políticos”, permanecem acontecendo no Brasil ao mesmo tempo em que ocorrem os “movimentos políticos” do sindicalismo € de outras organizações de classe — o “velho” convivendo com o “novo”. Assim, suas análises dos movimentos políticos dos camponeses não alcançam as ações
da multidão — e o mundo rural tradicional permanece basicamente dominado, no
universo das pesquisas sociais, pelo “cangaceirismo e messianismo”.25
É interessante observar, talvez mais como curiosidade, que essa perspectiva de análise — que reduz toda a complexidade da cultura política tradicional dos
homens do campo ao “cangaceirismo e messianismo” — tem antecedentes ilustres 18
A Muztinão E A História
nas ciências sociais. Djacir Menezes. por exemplo, já preconizava que o sertane-
jo, ao agir socialmente, ao procurar alternativas para o mundo em que vivia, tornava-se “violento” ou “místico”, Entendia ele que o atrasado mundo rural co-
locava os homens em posição de subalternidade com relação à natureza e. por conseguinte, ao mundo civilizado. Assim. a população rural, submetida a uma
sacrificada posição no mundo social, formava uma “legião impressionante de
vítimas esquecidas (...) cujo comportamento social recua no tempo a formas anteriores de evolução civilizada”2 Impressão semelhante causa a leitura de Os Sertões. O homem sertanejo, se-
gundo Euclides da Cunha, tinha uma irresistível tendência a se transformar em “jagunço” ou em seguidor de um místico — ou “paranóico”, como ele qualifica Antônio Conselheiro. A analogia que ele usa para explicar o aparecimento dos movimentos sertanejos é geológica: “é natural que estas camadas profundas da nossa estratificação étnica se sublevassem numa anticlinal extraordinária”. A con-
fguração racial e a relação com o meio hostil determinam. para ele, as possibilidades de desenvolvimento político do scrtancjo. Assim, a mestiçagem combina-se com o misticismo e a impotência ante as forças da natureza reproduz-se no mundo
social: “a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela civilização” 2? Dessas duas matrizes, portanto, surge a compreensão geral das ações da multidão como “atrasadas”, “primitivas”. “pré-políticas”, “instintivas”, “reações espasmódicas” e “biológicas” aos estímulos da fome e aos instintos de sobrevivência etc. Caminho distinto percorreu esta pesquisa, aproveitando o saber acumulado de algumas (poucas) pesquisas que já apontavam para direções próximas.? Desprezando as distinções entre “político” e “pré-político”, ou entre “novo” e “velho”, as análises foram se dirigindo para a compreensão de que as relações sociais de tipo paternalista, que pareciam enterradas junto com o processo de
modernização da sociedade brasileira no período que se inicia no final de século XIX e vai até a década de 1950, permaneciam — e permanecem — orientando
muitas das práticas políticas, culturais e sociais dos homens que habitam os sertões do Ceará. Assim, as suas ações estão referenciadas e delimitadas pelas alternativas e possibilidades existentes no horizonte destas relações paternalistas, e somente em relação a este campo podem ser compreendidas. O seu “controle tático” e seus “recursos próprios suficientes para sustentar a luta política” estão, portanto, condicionados pelas experiências que vivenciam e pelas “determina-
ções” de sua realidade socioeconômica e cultural.” Desta forma, não se pode transportar para este mundo “tradicional”, em que a maioria das relações sociais é mediada pelos conhecimentos pessoais e pelo
19
Freperico DE CASTRO NEVES
“moderna”, na reconhecimento direto, as normas e valores vigentes na sociedade
ção social relacionada E lugar qual “a maioria dos sujeitos sociais tem sua inser seu
mas, também, que ocupam no salariado, ou seja, não somente sua renda, status, sua proteção, sua identidade”; proteção, ao mesmo NS
Fam, sendo
à legislação, faz com resultado de um longo processo de conquistas incorporadas
mas que a que “o trabalho não fosse apenas à retribuição pontual de uma tarefa,
o
ele fossem vinculados direitos”.
um sujeito polfNa tentativa de apreender a constituição da multidão como
tico, portanto, foi necessário examinar O processo histórico de Festa ção dos con-
uma tradição de ações direflitos que lhe deram origem. até que se estabelecesse
tas como mecanismo de pressão política, por parte dos trabalhadores rurais que
se deslocam de suas terras durante as secas, Os retirantes, para obtenção de reivindicações e conquistas específicas.
Este processo demonstra, ao contrário da “visão espasmódica”, uma com-
preensão generalizada € “plebéia” de que a distribuição da riqueza social deveria
ser regulada, em momentos diferencia das regras usuais no mercado de alimentos e moral” que orienta, motiva
de crise, por um conjunto de regras morais que se do mercado. A intervenção requerida pela multidão de trabalho evidencia a presença de uma “economia e, principalmente, legitima as ações da multidão.*!
Assim, busquei encontrar essas origens da multidão na seca de 1877 (Capítulo 1), quando, pela primeira vez, o fenômeno da escassez ou irregularidade de chuva no semi-árido do nordeste brasileiro transformou-se numa “questão soci-
al” relevante, já que extrapola os limites das fazendas e do mundo rural para invadir O universo urbano. “moderno” e “civilizado”.
Os conflitos e alternativas que se seguem, nas secas seguintes, de 1877 a 1919 (Capítulo II), parecem envolver um ensaio em que experiências de mobilização e estabelecimento de estratégias são efetivadas, não só por parte dos retirantes mas também pelas autoridades que se contrapõem à multidão. No período do primeiro governo Vargas (1930 a 1945), um amadurecimento
em torno das táticas e das estratégias é atenuada por contextos específicos em que ocorrem as secas - em 1932, a Revolução Constitucionalista de São Paulo, e, em 1942, a Segunda Guerra Mundial (Capítulos Il e IV).
. A década de 1950, por conseguinte, assiste ao estabelecimento desta tradição das ações diretas e a formação amadurecida da multidão como um sujeito
político que Se apresenta na arena política das relações de poder no sertão sempre que as situ
ações de seca e de fome se re petem (Capítulos V e VI). Por outro lado, a multidão constitui-se também em im portante referencial para a memóri a, que uma série de
depoimentos orais pode reve lar (Capítulo VII). 20
A Muznvão E A História
É a este trajeto - sinuoso e difícil, cheio de cenas de sofrimento e lances de
solidariedade — que convido o leitor a percorrer comigo a partir das próximas páginas deste livro.
Este trabalho foi originalmente apresentado como Tese de Doutorado em História Social na Universidade Federal Fluminense. As generosas sugestões da Banca Examinadora, formada pelos Profs. Drs. Rachel Soihet, Gladys S. Ribeiro,
Antônio Jorge Siqueira, Jorge Ferreira e Sidney Chalhoub, se não foram integralmente incorporadas ao texto, por um motivo ou por outro, mereceram minha mais respeitosa atenção. No processo de elaboração de uma Tese, necessariamente deixamos pendentes algumas dívidas com inúmeras pessoas que, aqui e ali, ajudaram com alguma informação, dica de documentação, sugestão de leituras, orientações etc. Somente assim as dificuldades de preservação e catalogação de documentos são superadas. Obtive bolsa de doutorado da CAPES, no Programa Institucional de Capacitação Docente e Técnica da Universidade Federal do Ceará (UFC). Meus
colegas do Departamento de História da UFC desdobraram-se em cumprir todas as inúmeras atividades dos cursos de graduação e especialização, para que eu pudesse me afastar por quatro anos. Apesar das restrições governamentais à contratação de novos professores, o Departamento, apesar do pequeno número de docentes, mantém uma política séria e permanente de qualificação do pessoal. A Fundação Cearense de Amparo à Pesquisa (FUNCAP) financiou a passagem aérea para que eu pudesse apresentar uma parte da Tese (Capítulo VII) no encontro anual da American Oral History Association, em New Orleans, EUA.
A Prof" Rachel Soihet, minha orientadora, sempre procurou, além de orientar-me academicamente, estimular-me para a confecção do trabalho, acreditando
sempre na minha capacidade para realizar alguma coisa de boa qualidade. Agradeço à Prof* Fátima Gouvêa por ter intermediado o nosso encontro.
O Prof. Jorge Ferreira, na momentânea ausência da Prof" Rachel, foi funda-
mental na consolidação do trabalho, num momento de encruzilhada em que eu não estava seguro das alternativas a seguir. Maria José e Eveline levantaram e organizaram grande parte dos jornais,
para o período de 1928 a 1959. Mardônio pesquisou incansavelmente no Arquivo Público à procura de processos ou inquéritos judiciais. Elmadan e Gertrudes, como sempre, fizeram o possível para que as fontes microfilmadas estivessem à 21
Freverico DE CAstTRO NEVES
disposição da pesquisa. Walda Weyne colocou as fontes disponíveis no Arquivo Público do Ceará sempre ao meu alcance, apesar dos sérios problemas enfrentados por essa instituição. O amigo Praxedes conduziu-me pelos árduos caminhos
da legislação penal brasileira, apresentando-me ao “crime multitudinário” e ao “furto famélico”. Sérgio Paula e Sérgio Filho prepararam no computador as re-
produções dos jornais e as fotografias. Maria de Jesus abriu-me as portas de sua casa e das redes de entrevistas em Iguatu e nas redondezas. Sem ela, os depoimentos seriam impossíveis. Sr. Batista, Sr. Valdemiro, D. Nair, Sr. Lauristo, D. Luzia, Sr. Pedro e sua esposa, D. Laurenice, Sr. Francisco. Sr. Raimundo, Sr. Manuel, Dr. Mendonça, Sr. Salviano. Sr. Porfírio. Sr. Aloísio e todos aqueles com quem pude conversar
em Iguatu. Quixelô, Icó e Orós, mudaram os rumos da pesquisa, transformandoa em algo vivo, de carne c osso. As conversas com essas pessoas me fizeram ver que, talvez, essa Tese possua um sentido social mais amplo, revelado por esta
convivência de poucos dias: de qualquer forma, só eles poderão senti-lo em toda a sua profundidade. Apesar da presença destas pessoas em trechos ou mesmo na concepção deste trabalho, somente eu posso me responsabilizar pelo resultado final.
Referências bibliográficas ! GUERRA, Paulo de Brito. Flushes das Secas. Fortaleza: DNOCS,
1983. pp. 21-23.
20 Povo, 24 de março de 1958. “O Democrata, 1º de abril de 1958. 80 Povo. 1º de abril de 1958.
*O Democrata, 02 de abril de 1958. 80 Democrata, 04 de abril de 1958. 70 Povo, 08 de abril de 1958; O Democrata, 10 de abril, 06 e 10 de maio de 1958.
* Cf ROSALDO. Renato. “Celebrating Thompson's Heroes: Social Analysis in History and Anthropology.” In: KAYE, Harvey J. e MCCLELLAND, Keith. (eds.) E. P Thompson: Critical
Perspectives. London: Polity Press, 1990. p. 115. ? SAHLINS, Marshall. Cultura e Razão Prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. pp. 227-228. W THOMPSON, E. P. “A economia moral da multidão inglesa do século XVIII.” In: Costumes em Comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 150.
! THOMPSON, E. P. “Economia moral revisitada.” In; Costumes em Comum, Op. Cit. p. 208. 2 Cf. CASIMIRO, Liana M. Carleial de. Seca: Momento para Repensar a Pobreza do Ceará. Fortaleza: FIEC/IEL, 1984.
“CF. por exemplo: “a fome conduz às invasões ao comércio e, principalmente, a armazéns de gêncros alimentícios”. BARREIRA, César. “Seca: Reprodução do Poder e Rebelião.” Socie-
dade e Estado. Brasília: BnB, v. 1, nº |, jan/jul 1990. p. 15. 22
A MuizripãÃo E A História
4 CARVALHO, Rejane V. Accioly. A Seca e os Movimentos Sociais. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, 1991. p. 35. (grito no original)
15 PARENTE, Eneida R. Seca, Estado e Mobilização Cumponesa: a expressão da resistência coletiva dos trabalhadores rurais cearenses na seca de 1979-1983. Dissertação de Mestrado em Sociologia apresentada à UFC. Fortaleza: 1985. pp. 144-147 e 185-200. (grifos no original) Esta autora faz um importante levantamento das ações da multidão no Ceará durante a
seca de 1978-1982, sendo, neste estado, o único trabalho (conhecido por esta pesquisa) que valoriza os saques e as invasões como formas políticas - embora, para ela, limitadas — de mobilização dos trabalhadores rurais.
14 SOUZA, Luís Eduardo de. “Resistência Popular ao Genocídio.” In; CPT/CEPAC/IBASE. O Genocídio do Nordeste (1979-1983), São Paulo: Mandacaru, 1989. p. 98.
17 Cf DE CERTEAU, Michel. A Arte de Fazer. A Invenção do Cotidiano. São Paulo: Ática, 1993. p. 25. 8 DE DECCA, Edgar S. “Rebeldia e Revolução na História Social.” In: BRESCIANI,
M.
Stella M. et alli (orgs) Jogos da Política. Imagens, Representações e Práticas. São Paulo:
nenhum modo políticas, mas que eram políticas antes da invenção da terminologia, do contexto moderno e do complexo institucional da política — o cenário moderno, o teatro moderno da
política, o drama moderno da política.” HOBSBAWM, Eric J. “Entrevista com Eric Hobsbawm.” Estudos Históricos. Rio de Janeiro: vol. 3, nº 6, 1990. p. 271. W HOBSBAWM,
Eric J. Rebeldes Primitivos. Estudos de Formas Arcaicas de Movimentos
Sociais nos Séculos XIX e XX. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.p. 127. (grifos no original) 2! WOLF, Eric R. “Revoluções sociais no campo.” in: SZMRECSÁNYI, Tomás é QUEDA, Oriowaldo (orgs.) Vida Rural e Mudança Social. 3 ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1979.
pp. 97-98. 2 HOBSBAWM, Eric J. é RUDÉ, George. Capitão Swing. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. p. 18,
2 HOBSBAWM, Eric 3. Rebeldes Primitivos. Op. Cit. p. 16. 24 Cf. por exemplo: GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e Descaminhos dos Movimentos Sociais no Campo. Rio de Janeiro: FASE, 1987. 35 Cf. MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil. 3 ed. Petrópolis:
Vozes, 1986. pp. 27-31. Cf. também FACÓ, Rui. Cangaceiros e Funáticos. 7 ed. Rio de Janei-
ro: Civilização Brasileira, 1983. 2% MENEZES, Djacir. O Outro Nordeste. 3 ed. Fortaleza: UFC/Casa de José de Alencar, 1995. pp. 79-86.
2? CUNHA, Euclydes da. Os Sertões: campanha de Canudos. 37 ed. Rio de Janeiro: F. Alves, 1995. pp. 125-165. No caso de Canudos, todavia, “as armas” foram muito mais eficazes do que o processo civilizador — ou demonstraram o seu fracasso.
** Cf. QUIROGA F. NETO, Ana M. “As Frentes de Emergência e o Movimento dos Saques: atenuação e expressão do conflito no meio rural paraibano.” In: ANPOCS. Movimentos So-
ciais, Para além da dicotomia rural-urbano. Recife: Centro de Estudos e Pesquisas Josué de
23
E o Sa e o ed
procura relativizar a sua posição: “Eu não utilizaria mais esse termo fpré-político] sem uma qualificação bastante cuidadosa. O que eu queria dizer não era que as pessoas não eram de
nd
9 Cf. PAMPLONA, Marco A. À Historiografia do Protesto Popular e das Revoltas Urbanas. Rio de Janeiro: PUC-RJ. 1991. (Rascunhos de História, nº 3) p. 5. O próprio Hobsbawm
e
ea
Marco Zero/ANPUH, 1992. pp. 13-15.
FreDERICO DE CASTRO NEVES .
:
Castro, 1985. pp. 101-116; DINIZ, Atiaern
o da S. “Movimentos Sociais no Meio Ruy
ara
Mei
Ve
Nordestino: a Questão dos Saques.” Política
Sociais/UFPB, 1986. pp. 91-110; BANDEIRA, Francinaldo.
“Historicidade dos S os
E
: Os
UFPB, sd. Esses artigos são resunta ce 3. Cajazeiras-PB: História,quenº tinha depesquisa, lugar no programa de pós-graduação em Ciências Sociais
Cri
RR
Saques,” Textos
e
da UFPB, em
João Pessoa, mas que, infelizmente, não teve continuidade.
?» Sobre o paternalismo, Cf. THOMPSON, E. P. “La Sociedad Inglesa del Siglo XVIII; ilucha
de clases sin clases?” In: Tradición, Revuelta y Consciencia de Clase. 3 ed. Barcelona: Edito.
rial Critica, 1989. pp. 15-20; GENOVESE. Eugene D. Roll, Jordan, Roll. The World the Slaves Made. New York: Vintage Books, 1976. pp. 3-7 c 661 -665. Genovese destaca a possibilidade de similaridade entre sistemas “não liberais” de controle de classe a partir do estabelecimento dos deveres mútuos. (“A common declaration that the strong must protect and lead the weak in
return for obedience and labor gives all nonliberal systems of class rule a certain similarity”)
Sobre as ligações entre paternalismo e coronelismo, Cf. MARTINS, Esta, “Coronelismo,
Poder Burguês e Movimentos Populares.” Presença: Política e Cultura. nº 5, dez 84/fey 85. pp. 139-147. X CASTEL, Robert. “As transformações da questão social.” In: BELFIORI-WANDERLEY, Mariangela et alli (orgs) Desigualdade e a Questão Social. São Paulo: EDUC, 175.
1997. pp. 169-
M Cf. THOMPSON, E. P. “A economia moral da multidão inglesa do século XVIII.” Op. Cit. p. 152. Este conceito, elaborado para o contexto do século XVIII inglês, foi objeto de uma série de interpretações em contextos diferentes, o que lhe garante uma certa eficácia, observadas as especificidades. Cf. Id. “Economia moral revisitada.” Op. Cit. pp. 203-266. Para uma avaliação das possibilidades de utilização deste conceito fora de seu contexto original, Cf. NEVES, Frederico de €. “Economia Moral versus Moral Econômica: o que é economicamente correto para os pobres?” Projeto História. São Paulo: nº 16, 1998. pp. 39-57.
24
CAPÍTULO |
I. Fortaleza, “Capital de um Pavoroso Reino” A “grande seca” de 1877 - ou a “seca-tipo”, como preferia Rodolpho Theophilo, seu grande cronista — trouxe para dentro de Fortaleza a presença
impactante de multidões de retirantes esfaimados e andrajosos a implorar por
ajuda, “contaminando” a cidade com sua miséria explícita, suas doenças, seus “vícios”, sua fome, seus crimes e sua ofensiva ameaça à civilização. A vida urbana passa a ser o cenário privilegiado do drama da seca. Em termos de intensidade, duração, extensão ou mortalidade, no entanto, a seca de 1877 não se diferencia tanto de outros períodos de escassez, nem mesmo em termos de prejuízos econômicos. Mas, ao contrário destas épocas, a seca adentrou o mundo do poder constituído, avançou sobre o centro imaginário deste poder, sem respeitar-lhe os “canais competentes”, e atingiu o cerne da aventura
civilizatória que a elite local imaginava experimentar neste momento. Enquanto a seca foi problema para o mundo dos despossuídos, ela era uma senhora desconhecida, não merecia mais que breves notas em pé de páginas de jornais, mas, quando chega ao mundo dos proprietários, ela não só é
percebida, como é transformada no cavalo de buralha de uma elite necessitada de argumentos fortes, para continuar exigindo seu quinhão, na partilha dos benefícios econômicos e dos postos políticos em âmbito nacional.!
O “'mundo dos proprietários”, contudo, vivia momentos de euforia. A partir de 1870, a preocupação estética com o “aformoscamento” de Fortaleza traduzia uma sintonia das elites locais com as novas concepções sobre o espaço urbano como um espaço público a ser por elas usufruído. A necessidade de uma organi-
zação e uma disciplinarização deste espaço implicava na imposição de novas estratégias de ordenamento social e político. Assim, a remodelação da cidade não 25
Freperico DE Castro NEvEs
se constituía apenas numa técnica de planejamento urbano, mas numa Mecânica de controle das atividades desenvolvidas pelos diversos grupos sociais, na qual não havia lugar para miseráveis cm busca de uma mutualidade perdida. Os planos de expansão projetavam Fortaleza cm
direção à civilização de
modelo europeu, traçando geomcetricamente as ruas, praças c bulevares, preten. dendo dar-lhe um ar de metrópole. A criação de asilos, hospitais, teatros e outras instituições que constituem o palco da vida urbana moderna foi pensada e planejada a partir destes anos. A contratação do arquiteto-engenheiro Adolfo Herbster pela Câmara Municipal tinha o claro objetivo de disciplinar o espaço urbano com vistas à sua adaptação aos novos tempos e estava em completa sintonia com os ideais de modernidade. Os lucros do algodão — apesar do reinício da desfavorável concorrência com o Sul dos EUA, que reorganizara sua produção depois da Guerra Civil. ocasionando a diminuição da exportação, que retornou aos índices
de 1864 — ainda ressoavam nas empresas de comércio, como a Boris et Frêres. O anno de 1877 veio encontrar a população do Ceará Iruindo as venturas de um bem estar de trinta e dois annos. Longe iam na memória de todos as scenas horríveis de 1845. Não se pensava que cedo ou tarde egual calami-
dade havia de voltar, que a secca, maldito legado do povo cearense, viria de novo cobril-o de lucto.
Rodolpho Thcophilo — Farmacêutico, intelectual, político, sanitarista etc — ainda acrescenta que, “com suas 45 ruas, largas, espaçosas, cortando-se em ân-
gulos rectos, com suas 16 praças todas ornadas de frondosas árvores, com seus elegantes e numerosos edifícios públicos, illuminada a gaz, abastecida d'agua”, Fortaleza “veio a ser uma das mais lindas cidades do Império”.?
Os 32 anos de regularidade climática — o que significava pensar em abastança e. principalmente, estabilidade social — faziam pensar que “o que se passou no anno de 1845 era um quadro lugubre apagado pelo attrito de seis lustros”.? Assim, a chegada dos retirantes à Fortaleza — após um cortejo de misérias em que não faltam cenas de desespero, mortes, suicídios, antropofagia etc — provoca na população urbana c em suas autoridades uma reação dupla. De um lado,
O pavor ante uma multidão que, aos poucos, vai tomando de assalto o espaço
urbano tão cuidadosamente constituído. À “angustiosa expectativa” em que “viviam todos”, seguiu-se o pânico que “apoderou-se de todos os espíritos”. Segundo o censo de 1872, Fortaleza possuía uma população de 21.000 habitantes, que
O historiador Raimundo Girão acredita ter acrescido em mais 4.000 até 1877; ele avalia, com base nos cálculos de Rodolpho Theophilo, que em setembro de 1878 26
A Muirripão E A HisTÓRIA
m Fortaleza “na metrópole da fome. havia 114.000 retirantes. que transformava lema, centros enfrentavam o mesmo prob
capital dum pavoroso reino”4 Outros es, que “estava comportando mais de como Aracati. cidade de 5.000 habitant e, com apenas 4.000 habitantes, aten60.000": Mossoró. no Rio Grande do Nort
deu a mais de 32.000 retirantes.
idão de miseráveis agride a De outro lado, a sensação de que aquela mult es pedem esmolas, sensibilidade de uma elite urbana civilizada. Os pobr
icas da cidade, ecmo perambulam pelas ruas sem ocupação, utilizam as áreas públ
caridade. Os jornais praças e ruas, € trapacciam para obter maiores ganhos da
ra 05 Nose denunciam “esse espetáculo” da mendicância por ser “deponente cont gnante”. sos costumes, alem de ser, a maior parte das vezes. imoral € repu
inalidade e da Thecophilo. mais uma vez. horroriza-se com 0 aumento da crim
prostituição, bradando contra os “seductores que infestavam à deshoras os abarracamentos prostituindo até creanças de dez annos” c contra Os “audazes
rapineiros” que “penetravam ás vezes no mais recondito aposento para furtar”: “a cidade testemunhava scenas de anarchia”! Entre esta onda maltrapilha vomitada pela miséria, se encontrava em muito pequena escala a pureza de costumes, a honestidade e a gratidão. O vício parecia ter contaminado todos os famintos. Viam-se em todas as edades
creaturas pervertidas.* Assim, por tudo isso, a seca de 1877 assumia “não apenas o aspecto de flagelo público. mas também de estranha e dolorosa novidade”: “Para a geração que tinha, então, o comando da vida pública nacional. na administração, no Parlamento, no comércio, na indústria, no ensino, a sêca, tal como se apresentava, era um fato nôvo”. Poucos anos depois. em 1889, já se percebia que “até então [1877] não se
sabia o que era uma sêcca!”? Por outro lado. a marcha dos retirantes em direção às cidades do litoral era
marcada pelos mais impressionantes obstáculos. O abandono de suas casas e plantações só acontecia quando as últimas esperanças de chuvas já se haviam desva-
necido c os últimos grãos, que ficariam para as sementes, sido consumidos. Isso
significa que, logo no início da jornada, já era precário o estado de saúde e de
nutrição destas famílias. Já saíam famintos de suas terras.
“No fim de março, começou o povo a deslocar-se” e, “a 14 [de abril], che-
gou á Fortaleza, vinda de Uruburetama, a primeira caravana de retirantes, com posta de 35 pessoas que se aboletaram no morro do Croatá”. sore já 27
es FREDERICO DE CASTRO Nev
tra. ham “sobre o corpo immundos “no mais completo estado de miséria e tin de pé”. No fim do ano de 1877, as múmi ciam pare dos, arna pos”: “macilentos. desc centro. de tresentas a quik do cen : ssem.
i não entra no entanto. “raro era o dia em que
nhentas pessoas”* «b cedia ocuimediatamente Os sertões desabitados, “reduzidos a desertos , foram áreas de controle, is na dis puta pelas pados por bandos armados que se enfrentavam nas cidades do interior. Gruaterrorizando as populações que ainda permaneciam
tos, Os Malhen e os Calangros, pos de bandidos se tornaram famosos, como 08 Viria € povapções Para melhor Estes, “disfarçados de mendigos. entravam nas villas
os a partir de crimes, de combinar os meios faceis e seguros de assalto”. Originad
como Os antepassados lutas entre famílias e vinganças, podem ser identificados é o XX. 10 s das do sécul saio déca das primeiras
dos cangaceiros
em cenários de aconteOs caminhos em direção ao litoral transformavam-se
cimentos impressionantes. “theatro das mais pungentes scenas”: “As caravanas de retirantes a marchar sempre, como o Ashaverus da legenda, supplicando
embalde á muda immensidade uma gotta d'agua para lhes mitigar o calor dos
labios incendiados pela sêde!”!
Árvores secas, cadáveres insepultos, carcaças de animais mortos, “creanças, que semi-mortas tinham sido abandonadas por paes desalmados, a servir de pasto aos esfaimados morcegos”. compunham o ambiente em que viajavam estes homens e mulheres. “suppondo encontrar adiante a paz e um novo theatro”.!? Sem
alternativas, “se deslocam precipitadamente em fuga para a Capital, onde os anima a tranquilidade de que, nella se lhe fará effectiva, sem intermittencias, a
protecção que o Estado lhe concede”.!* Os retirantes procuravam quaisquer meios para sobreviver, mesmo tendo
que enfrentar a violência ou a indiferença: “nas cidades exploravam a caridade publica, nas serras viviam da caça, das raízes e fructos silvestres e do furto nas
lavras”. Muitos, porém, morriam “envenenados pelas raízes silvestres”, especialmente a mucunã, leguminosa bastante conhecida pelos sertanejos, que, “prevenidos sempre contra as suas propriedades nocivas, só se utilisam d'ella, quando
lhes têm faltado todos os meios de subsistência”, assim mesmo, o preparo da farinha de mucunã deveria obedecer a um rigoroso processo de lavagens repetidas, com vistas a “prival-a do principio toxico”. Além da mucunã, outros recursos de que se valiam os retirantes durante sua jornada eram o chique-chique, à
macambira, O croatá e a “gomma da carnaubeira”.14
já ne
em
mortos, de peste ou de fome, cujas carcaças apodreciam pelos ca-
o, também podiam ser consumidos pelos retirantes durante sua caminhada
direção às cidades. Muitos sucumbiam nessa tentativa, acossados por molés28
A Mutnoão E A História
tias, “disformes e inchados, tendo os corpos crivados de carbunculos, soffrendo as dores de tão terriveis pustulas malignas”, depois de, “como corvos esfaima-
dos”, devorarem “uma vacca quasi em estado de decomposição”.!S
A seca, por outro lado, acaba com as fontes de água, tornando as longas distâncias em verdadeiros desertos, fazendo com que os retirantes se precipitassem, descuidadamente, “sobre os caldeirões d'agua que encontravam, com a qual, quente, impura, a grandes goles enchiam o estomago”; a insalubridade, muitas vezes, era responsável pela transmissão de doenças, como as “febres paludosas”. Tomados pelo desespero. muitas vezes, alguns retirantes cometem crimes
contra os de suas próprias famílias, na tentativa de aliviar-lhes o sofrimento ou,
simplesmente. para alimentar-se. Em Quixadá, um filhinho de dous annos de edade”, depois “desvairado, atira ao chão a inocente creança, entre as mãos, estrangula-a e leva-a ao fogo”,
um pai, que “trazia aos hombros de ser tomado por alucinações, precipita-se sobre ella, suffoca-a Em Assaré, “uma infeliz de 14
annos, parda, chamada Maria, em um desses momentos de luta entre a vida € à
morte, na tarde do dia 12 de fevereiro, matou a duas irmãs menores” e “alimentava-se a desgraçada fratricida com a carne dos cadaveres, quando foi sorprehendida
pela justiça”. Na ausência de socorros organizados, de trabalho ou de qualquer assistência, no limiar da morte física, os retirantes retiravam das lavouras que ainda se mantinham alguns frutos para mitigar a fome. Contudo, a resposta de proprietários e moradores nem sempre era pacífica. No Cariri, por exemplo, zona sul do estado e área mais úmida — que resiste melhor à estação seca e, portanto, junto com áreas litorâneas, é mais procurada pelos agricultores em fuga -, os descuidados invasores eram recebidos à bala e “rara era a noite em que as deshoras não se ouvissem (...) o estampido do bacamarte do assassino” e “raro era o dia em que não amanhecessem na visinhança dos cannaviaes quatro a cinco cadaveres de infelizes”. Mas “o crime ficava impune, porque o retirante era considerado como
cão leproso que ia empestar a terra alheia”. Em outros lugares, O retirante era castigado com violência — era açoitado e tinha seus cabelos raspados — antes de ser morto e seu cadáver atirado ao campo,
quando não era, simplesmente, assassinado pelo proprietário das terras, incomo-
dado em seu “sagrado” direito de propriedade. Neste momento, a distinção entre saque e roubo, que se tornará mais nítida com a segiiência de secas e saques durante o século XX, ainda não está presente e, mesmo que alguns retirantes tenham tido mais sorte ao encontrar proprietários mais caridosos ou surpreendi-
dos pelas circunstâncias, de modo geral a tomada de alimentos pelos famintos era
qualificada como simples roubo e tratado como tal.!$ 29
Freverico DE CastTRO NEvEs
A chegada de um grupo de retirantes a uma cidade era, assim, além de um “espectaculo contristador”, um momento de preocupação, pois, junto a ele, um conjunto de outros problemas iriam abalar o cotidiano dos moradores: criminalidade, mendicância, prostituição. doenças... À seca passou a ser um problema que afeta diretamente a população urbana e, mais do que isso, a coloca junto aos setores sociais que mais sofrem seus efeitos. Os retirantes exigem, com sua presença indesejada, uma solução imediata para suas aflições: trabalho, comida, esmolas... Não é à toa que Rodolpho Theophilo irá dizer, mais tarde, que “flagelados somos todos nós durante a calamidade” c pergunta: “não será um flagelo ter-se a porta cheia de famintos, de manhã à noite, pedindo esmola pelo
amor de Deus?""” Chegando à capital, as esperanças de terminarem com seu sofrimento eram imediatamente frustradas, já que os serviços organizados para absorver esta mãode-obra não obedeciam às regras das relações de trabalho então habituais em
tempos normais; cram formas de ocupar estes retirantes que ocupam a cidade e, portanto, não precisavam obedecer aos mecanismos de mercado. Os commissarios, distribuidores dc socorros, tinham ordem de dar ração ao retirante unicamente no dia de chegada. No dia seguinte, se queria ter direito a socorro, devia de ir á pedreira do Mocuripe, uma legua distante da capital, carregar pedras! Uma viagem de duas leguas, com o peso de 15 kilogrammas, pouco mais ou menos, aos hombros, seria nada para um organismo são e vigoroso, mas para um enfermo, que tinha os membros tolhidos do cançasso de tantos dias de jornada, cra bastante para acabar de
extenual-o, roubando-lhe depois a vida. Enfim. “o retirante, se queria comer, trabalhava, como também a mulher, a
filha e o filho menor”. Não tinham dó do sexo fraco. Todos os dias pela manhã seguiam aquelas pobres mulheres para a pedreira do Mucuripe, e de lá voltavam, alto dia, trazendo uma pedra para os calçamentos que se estavam fazendo. Aquelas
infelizes, escavadeiras, trambecando de inanição, faziam esta viagem de duas léguas, quer estivessem grávidas ou assistidas.!º
A ajuda oficial, assim, ao contrário da “caridade pública”, estava condicionada, pelo menos em parte, ao trabalho, e, “fosse como medida de mero combate à seca, como necessidade de disciplina social, ou como ideal de progresso material para à província, pode-se dizer que a política assistencialista do Estado impe30
mt q epa De ua 0 —
A Muznidão E A História
rial, que assegurava a todo brasileiro o direito de receber socorro em caso de calamidade pública, foi rapidamente transformada pelas elites locais num instrumento de coerção ao trabalho".2º Se a caridade nada pedc em troca, OS socorros oficiais jamais poderiam ser oferecidos sem que sc transformassem em um inves-
timento para o futuro, já que “ninguém quercrá contestar as vantagens resultantes de tais trabalhos e com eles, em vez de mendigos, teremos trabalhadores”, “evitando-se assim a ociosidade, que nestas, assim como em todas as circunstâncias, torna-se a nascente de todos os vícios”.2! Ao mesmo tempo, “não pode ser função publica a alimentação do ocio e da preguiça, nem a fomentação da inercia, da
imprevidencia e da mendicancia pela charidade official não temperada pela orga-
nização do trabalho”.?? Por outro lado, uma preocupação com a ordem não impedia que o trabalho fosse utilizado “como elemento vital na ordem e na consceução da tranquilidade pública”, objetivando combater “o ócio gerador de perturbações internas”, mesmo assim, os serviços atenderiam a estes propósitos, especialmente por não demandar do governo o dispêndio com salários, já que “exi-
gem apenas as despesas de alimento e vestuário”? Assim, tanto o calçamento das ruas centrais de Fortaleza — onde habitava sua elite orgulhosa da beleza, organização e simetria de sua cidade, o que pode ser apreciado nas fotos e postais de início do século XX — quanto os trilhos da extensão da estrada de ferro de Baturité — que iria minorar as penúrias dos retirantes das secas seguintes. além de possibilitar o transporte do algodão a partir da década de 1910 — seriam obras implantadas nestas condições de trabalho, resultados do esforço sobre-humano de retirantes fracos, andrajosos e indigentes. A
beleza da cidade foi construída pelas “múmias famintas” e cada pedra do calçamento podc guardar um sofrimento inenarrável. São produtos do trabalho dos retirantes de 1877, apresentados, nos relatórios, como simples “melhoramentos
publicos, resultantes da sêcca”"?*. Na capital, assim como em Aracati, o governo procurou organizar os acampamentos de refugiados — os “abarracamentos”, ajuntamentos de retirantes que
procuravam se arranjar sob as árvores ou construindo precárias barracas de palha — através de comissões de socorros formadas por pessoas pertencentes às classes
mais abastadas da cidade. Os abarracamentos foram divididos em distritos, que a princípio eram nove, mas que chegaram a onze ao final de 1878, e os retirantes divididos em turmas. Foram criados cargos remunerados para a direção destes
distritos — comissários, administradores, encarregados de escrituração etc — enquanto que os chefes de turma eram escolhidos entre os próprios retirantes, “vojuntariamente”. Várias instruções baixadas pelos Presidentes da Província no ano de 1878 demonstram
a dificuldade de administrar esta população faminta, As
31
Freverico DE CAsTRO NEVES
eram objeto de inúmeros obras públicas e as esmolas, assim como a alimentação, meios de enriquecer às cuç. tipos de irregularidades. Aproveitadores procuravam da singeleza e frapilid ae tas dos recursos destinados aos socorros, utilizando-se dos métodos de controle e fiscalização.?* Outras instituições. como a Maçonaria, procuravam
recolher subscrições,
na”. com o objetivo de colaborar na assistência caridosa aos “deserdados da fortu
A Loja maçônica “Fraternidade Cearense”. por exemplo, “teve grande atuação
no amparo aos flagelados da seca de 1877”, dirigindo apelos aos “irmãos” de
l”, para que sejam todo o País, através do “Boletim do Grande Oriente do Brasi
enviados donativos, que terão “a aplicação mais sancta que a ocasião depara”,
Afirmam os maçons cearenses que “esta oficina não pode ficar surda aos clamores das vítimas da seca, que tem reduzido milhares de famílias à indigência e condenado à morte outras pela fome”. Relatam, porém, que a Loja “participa das
dificuldades e deficiências de meios que a situação tomou commum a todas as classes e corporações”. A necessidade de controlar os abusos, por outro lado, assim como definir rigorosamente os critérios para a distribuição dos benefícios, levou ao estabeleciam
“2
mento de uma regulamentação dos socorros e dos beneficiários, dividindo os retirantes em categorias, conforme, principalmente, sua situação de saúde. Os soccorros autorisados foram os seguintes: esmolas para os invalidos e familias que não podessem subsistir com o seu trabalho; salario para os validos que fossem empregados em serviços publicos; alojamento e roupa indispensavel; rações para os recem-chegados e emigrantes; medicamentos e dietas para os enfermos; transporte para os emigrantes.??
Ao mesmo tempo, uma tentativa de disciplinar a própria instalação e organização dos abarracamentos já se insinuava, buscando controlar os movimentos dos retirantes no interior da cidade, o que, mais tarde (1915), iria se transformar
em Campo de Concentração. Estabelecendo uma divisão entre os sertanejos em turmas lideradas por um dentre eles, uma hierarquia na supervisão oficial e, espe-
cialmente, determinando que a distribuição dos socorros seja feita no interior dos abarracamentos, o poder público poderia manter restrita a circulação dos indigentes indesejados. Tentando limitar os contatos da população local com os mendigos, o Presidente da Província ordena que “o socorro ás familias abarracadas será publicamente prestado nos proprios abarracamentos, em dias marcados para cada um deles”.?* Este contato, por vezes, parece que as autoridades o viam como
sujo ou impuro: “Immediatamente tratei de promover por todos os meios ao meu alcance a limpeza da capital, de retirar para fóra della os indigentes”? 32
A MuticãEoA História
Os pobres da capital, “uma classe que sofíria atrozmente em consequencia
da seca”, classificada como “pobreza envergonhada”, também mereceria as atenções dos dirigentes do governo. Uma “commissão domiciliaria”, composta por
“membros distintos da sociedade cearense”, tratou de esquadrinhar as famílias pobres residentes em Fortaleza com o objetivo de estabelecer quais, “por seu
estado de pobreza, não podiam subsistir sem auxilio do Estado”.
A emigração para a Amazônia era uma outra forma de evitar o contato, além
de ser, igualmente, um outro recurso para fugir dos efeitos da seca, do ponto de vista dos retirantes. Mesmo assim, era uma outra viagem perigosa a ser enfrentada, tanto pelos obstáculos relativos às condições dos navios, quanto pelo trabalho : nos seringais da floresta amazônica. Já no embarque, os retirantes enfrentavam os mais inusitados desafios, com os desmandos dos responsáveis pelo alistamento e alojamento das famílias. O embarque era feito de um modo afflictivo. Os encarregados do transporte para as lanchas arrancavam as creanças dos braços maternos e levavam-nas como fardos que sacudiam sem piedade no fundo da embarcação. As mulheres eram carregadas a empurrões, sem o menor respeito, entre ditos indecentes. A moça, a donzella não encontrava no meio daquella multidão
selvagem e sem caridade, o respeito devido a seu estado.” As denúncias contra os maus tratos não demoraram e “todos os dias a imprensa da capital registrava scenas que se passavam com os infelizes que deixavam o torrão natal”. Em 12 de setembro de 1877, o vapor Pernambuco deixa o porto em direção ao Pará, levando apenas uma parte dos retirantes alistados para a viagem, separando famílias e abandonando bagagens. No cais, “só se ouviam prantos e gritos de desespero”; no navio, o comandante “olhava para aquella
scena angustiosa com uma frieza, com uma indifferença de bruto”.?? Embarcar, contudo, nem sempre poderia ser a melhor solução. Os relatos conhecidos das condições de trabalho e salubridade nos seringais amazonenses
traziam insegurança e temor. Porém, tudo parece fazer crer que a política de migração para o Norte foi uma estratégia governamental para desafogar os equipamentos urbanos da enorme pressão exercida pelos milhares de retirantes sem teto, sem alimento, sem saúde.
Se a opção de emigrar para a Amazônia já era arriscada desde o embarque, a
estadia na capital cearense e nas cidades litorâneas maiores poderia não ser muito diferente. Além dos infortúnios relativos aos trabalhos, aos socorros, aos abarracamentos etc, as epidemias iniciaram uma nova e rápida frente de mortalidade entre 33
Freverico DE Castro NEvEs
os retirantes. Febres, diarréia, desinteria, anasarca, beribéri e, de modo ESpecia) a varíola hemorrágica — “molestia terrivel e fatal, € ainda não conhecida x provincia” — fizeram um número incalculável de vítimas. Segundo Rodo pho Theophilo, “a população adventicia da capital decrescia de um modo espantoso”. em 40 dias, entre setembro e novembro de 1878, a população caiu de 114.404
para 108.656 por obra das doenças que grassavam nos abarracamentos, Ele cj
culava em 40.000 os “variolosos” em novembro; em dezembro, já eram 80,099) No dia 10 de dezembro do mesmo ano, “haviam fallecido de variola 1.004 pesso. as na capital e seus suburbios”; a sobrecarga de trabalho para os coveiros fez com que restassem 230 “cadaveres insepultos” para o dia seguinte: “A variola havia chegado ao auge do furor! O panico estava disseminado pelos habitantes da Cida. de, o lucto cobria todas as familias e a tristeza morava em todas as habitações":
Em 1878. o número total de mortos foi avaliado entre 57.766 e 24.8494 lazareto da Lagoa Funda não dava conta da demanda de doentes. Mesmo com a criação de novos lazaretos, elevando a capacidade de atendimento para 6,000 doentes, e com a dedicação de médicos, enfermeiros e religiosos, a mortalidade não decresceu.
Um lazareto, pode-se dizer, é um lago de pús onde boiam enfermos, moribundos e mortos! É a morada do soffrimento, é um foco de podridão, á cuja
vista todos fogem excepto as affeições caras e sinceras e a caridade, sublime filha de Deus. D'estes tristes logares tudo havia fugido excepto o medi-
co, que a sciencia havia atado ao leito do enfermo, os enfermeiros que a falta dos meios de subsistencia prendia ali, e as irmãs de caridade que, fieis a seu voto, iam procurar a humanidade nos seus mais angustiosos momen-
tos, para cumprirem assim a promessa que haviam feito ao Crucificado.*
O transporte dos mortos era, segundo Theophilo, um outro foco permanente de disseminação das epidemias. Quando o morto era homem de algumas posses, mesmo que poucas, “deitavam o cadaver em uma rêde, depois prendiam-no pelas
extremidades em um longo páo, e dous homens conduziam-no para o cemitério”, quando não, “era o corpo envolvido em um pedaço de estopa velha, da que havia servido para enfardar a carne do sul, depois amarravam-no pela cabeça, cinta é pés a um pão e conduziam-no á valla commum”. O trajeto para O cemitério, porém, incluía as ruas centrais da cidade, orgulho de seus habitantes, € ainda não
atacadas pela epidemia. Os carregadores, normalmente embriagados, frequente mente cansavam-se no caminho, “paravam e deitavam a rêde com o cadaver S” bre a calçada, mesmo nas ruas mais publicas € frequentadas”, horrorizando&
famílias, que “fugiam de chegar ás janelas de suas casas, porque não estavam SaSies
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A Muinoão E A História
livres de ver um corpo (...) semi-nú, banhado de pús e exhalando um cheiro extraordinariamente fetido e nauseabundo”; horrorizando, principalmente, o saber médico consciente do farmacêutico ocupado em enfrentar com vacinas fabricadas em seu próprio vacinogêneo doméstico uma epidemia que se alastrava sem ces-
sar.*6 Ao lado das doenças, a criminalidade aumentou consideravelmente durante os anos 1877, 1878 e 1879, apavorando autoridades, observadores € retirantes.
Todos, de uma forma ou de outra, sofriam os efeitos do caos em que se tornou a vida urbana e rural no Ceará. No interior, os grupos de salteadores ocupavam o espaço vazio deixado pela população retirante e ameaçavam livremente as cidades quase desabitadas. Os efetivos policiais foram reduzidos a quase zero, em função da necessidade de controlar a situação na capital e mesmo com a redução dos meios de subsistência no interior. Os Presidentes da Província, em seus relatórios, deixavam transparecer
essa preocupação com a “trangiiilidade pública”. Sob pretexto da fome, os crimes de furto longa escala, especialmente nas comarcas são mais escassos e mais facil o emprego de admirar que frequentes homicídios vão
e roubo se têm desenvolvido em do sertão, onde os meios de viver da violencia, não sendo por isso completando a obra da perversi-
dade. Os “malfeitores” percorriam os sertões, encetando disputas com grupos rivais, aterrorizando as vilas pobres ou empobrecidas; sem enfrentar uma sociedade organizada, “continuavam a fazer correrias”. Tais grupos tinham origem em crimes de morte, cometidos contra familiares ou amigos, e a consegiiente organização de um bando, normalmente de foras-da-lei, para perseguir os assassinos. A vingança movida pela família de Adelino Araújo, por exemplo, deu origem ao bando dos “Pellados”, liderado por Sebastião Pellado. Os “Calangros” — nome relacionado a João Calangro, condenado por roubo de gado e fugitivo da cadeia do Crato — formaram-se em defesa do assassino, Innocencio Vermelho, e, em
pouco tempo, o bando já reunia mais de 60 salteadores. Outro grupo, que se formou em hostilidade a estes, foi liderado por José Matheus. Na cidade, os furtos são frequentes. Grupos de assaltantes se formam, aproveitando o grande movimento de pedintes pelas ruas, abordando pessoas e casas. Rodolpho Theophilo, para quem “o furto se havia desenvolvido entre os retirantes de maneira incrivel”, chamou a atenção para um aspecto peculiar do principal
grupo de assaltantes da capital. A assim chamada “companhia da russega” — uma referência ao instrumento usado pelos assaltantes — “era composta em sua totali35
Freverico DE CastRO Neves
dade de meninos de 7 a 12 anos”.*”º Soltos pela cidade, longe da família e do controle paterno, encontravam uma certa liberdade na circulação pelo espaço urbano, na conquista do temor da população, nas possibilidades de uma alimen. tação melhor às custas de pequenos ou grandes furtos nas casas de pessoas abastadas. De modo geral, portanto, era presumível que, no contexto de uma crise sem precedentes, com o rápido empobrecimento de grande parte da população, incluindo homens de posses da cidade e do campo, as autoridades percebessem que “são os analphabetos, os proletarios, os homens carecidos de todos os beneficios da civilização que commettem a quasi totalidade dos crimes”.“º De fato, a fragilidade da fiscalização e a crítica situação dos retirantes acabavam por colocá-los com o pretexto e a ocasião em mãos. O transporte de gêne-
ros para os abarracamentos, feito pelos próprios retirantes, era o momento ideal para subtrair aos sacos de farinha algo mais para alimentar a família. “Todos
furtam”, brada Rodolpho Theophilo, “porquanto muito convencidos estavam de que tudo era do Rei e por consequencia lhes pertencia”. Na polícia, quando era o caso de haver prisões, “defendiam-se dizendo que estavam com fome”. Duas fontes de legitimação se pronunciavam aqui. A primeira, abortada pela Proclamação da República, estabelecia uma vinculação direta com o Imperador D. Pedro II, que simboliza e personifica a caridade e a proteção aos pobres. A segunda, que se desenvolverá por todo o século XX, assegura a imposição da “lei
da vida” que se sobrepõe à “lei do direito”, garantindo um suporte moral indispensável para os famintos que roubavam alimentos. Por outro lado, a muamba, nome dado ao objeto dos furtos, era assunto das
conversas e da poesia popular. A barca da muamba
Corre mais que o vapor, Ai amor!
O romance A Fome reforça esta visão dos pobres como criaturas à beira de um ataque de perversão, possuidoras de valores morais e éticos bastante frágeis e sempre propensas às formas pouco confessáveis de ganhar a vida. Mesmo entre
os desafortunados da seca, contudo, o autor faz distinção entre os pobres e os homens de posição. O coronel Manuel de Freitas, por exemplo, era um proprietário de terras que perdeu tudo com a estiagem, mas que, mesmo vivendo na cidade inteiramente às custas de um corrupto comissário de socorros, não concordava
36
Deeca so
em receber dinheiro da verba “Socorros Públicos”, aceitando a ajuda como uma
A Munoão E A Históma oferta pessoal. Aceitaria um emprego para ganhar um salário, embora concordas-
se que “o transporte de pedras” fosse “uma medida vexatória e extravagante”,
indigna de sua posição. Mantinha sua dignidade. O mesmo não acontecia com os
outros retirantes, que mendigavam, carregavam pedras e procuravam por todos
os meios ganhar sem trabalhar.“ A corrupção era outro crime a se espalhar pelo terreno movediço da desor-
ganização social. As denúncias se sucediam, os relatos também. Poucos, no entanto, além de alguns que perderam seus empregos comissionados, foram puni-
dos. O jornal O Retirante fazia denúncias semanais, cobrando dos Presidentes da
Província uma posição mais firme contra os atravessadores, os açambarcadores e os corruptos, entendendo que a responsabilidade no atendimento às vítimas da seca — de proteção aos pobres em momentos de escassez — era do governo, na
impossibilidade de os próprios proprietários poderem fazê-lo. Este jornal — que trazia como subtítulo: “ORGAM DAS VICTIMAS DA SECCA” - foi criado com o objetivo de dedicar-se à “causa dos famintos”, procurando enfocar os problemas contemporâneos do ponto de vista dos retirantes. Era de propriedade do Sr. Francisco Perdigão, que, “abalado com o soffrimento dos indigentes, atacava desabrido a administração, ultrapassando muitas vezes os limites da accusação
séria e moralisada, e ferindo com insultos ao presidente da provincia”. O abolicionista José do Patrocínio, em missão jornalística a serviço do jornal carioca Gazeta de Notícias, teve diferente impressão. Para ele, O Retirante significava
apenas o veículo de “uma resistência hedionda contra o pujante caráter do presidente Aguiar”, apresenta o jornal como “o poste infamante em que a própria
família do honrado presidente foi amarrada para ser coberta da baba asquerosa dos mais infames detratores que a terra tem produzido”. De qualquer maneira, os comerciantes, em períodos de escassez, sempre são
objeto da desconfiança popular. As denúncias do jornal continuavam e os preços subiam descontroladamente, Os gêneros colocados à disposição dos retirantes foram objeto de ampla exploração. As verbas dos socorros públicos, segundo denúncias dos jornais, “não conseguiram socorrer senão as comissões, os comissionados, as subcomissionadas e protegidas”, em que “fica muita casa-far-
ta, muita grimpa erguida com os despojos da miséria”. De fato, segundo o nosso cronista, “os especuladores tiravam partida das condições anormaes” e, indo contra o livre funcionamento do mercado, algumas autoridades procuravam intervir, aumentando a oferta de alimentos.
A carne verde custava 640 a 800 réis o kilogramma! A camara municipal de Fortaleza, achando exaggerados aqueles preços, resolveu abrir competencia 37
FrevEriCO DE CAstRO NEVES
os retirantes. Febres, diarréia, desinteria, anasarca, beribéri e, de modo especial, a varíola hemorrágica — “molestia terrivel e fatal, e ainda não conhecida na
provincia” - fizeram um número incalculável de vítimas. Segundo Rodolpho
Theophilo, “a população adventicia da capital decrescia de um modo espantoso”:
em 40 dias, entre setembro e novembro de 1878, a população caiu de 114.404
calpara 108.656 por obra das doenças que grassavam nos abarracamentos. Ele 80.000! culava em 40.000 os “variolosos” em novembro; em dezembro, já eram pessoNo dia 10 de dezembro do mesmo ano, “haviam fallecido de variola | 004 com as na capital e seus suburbios”; a sobrecarga de trabalho para os coveiros fez que restassem 230 “cadaveres inscpultos” para O dia seguinte: “A variola havia chegado ao auge do furor! O panico estava disseminado pelos habitantes da cida-
de. o lucto cobria todas as familias ea tristeza morava em todas as habitações peaa Em 1878, o número total de mortos foi avaliado entre 57.766 e 24.849. O lazareto da Lagoa Funda não dava conta da demanda de doentes. Mesmo com a criação de novos lazaretos, elevando a capacidade de atendimento para 6.000 doentes, e com a dedicação de médicos, enfermeiros e religiosos, a mortalidade não decresceu.
Um lazareto, pode-se dizer, é um lago de pús onde boiam enfermos, bundos e mortos! É a morada do soffrimento, é um foco de podridão, vista todos fogem excepto as affeições caras e sinceras e a caridade, me filha de Deus. D'estes tristes logares tudo havia fugido excepto o co, que a sciencia havia atado ao leito do enfermo, os enfermeiros
moriá cuja sublimedique a
falta dos meios de subsistencia prendia ali, e as irmãs de caridade que, fieis a seu voto, iam procurar a humanidade nos seus mais angustiosos momen-
tos, para cumprirem assim a promessa que haviam feito ao Crucificado.?5 O transporte dos mortos era, segundo Theophilo, um outro foco permanente de disseminação das epidemias. Quando o morto era homem de algumas posses, mesmo que poucas, “deitavam o cadaver em uma rêde, depois prendiam-no pelas extremidades em um longo páo, e dous homens conduziam-no para o cemitério”; quando não, “era o corpo envolvido em um pedaço de estopa velha, da que havia
servido para enfardar a carne do sul, depois amarravam-no pela cabeça, cinta e pés a um páo e conduziam-no á valla commum”. O trajeto para o cemitério,
porém, incluía as ruas centrais da cidade, orgulho de seus habitantes, e ainda não atacadas pela epidemia. Os carregadores, normalmente embriagados, fregiente-
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bre a calçada, mesmo nas ruas mais publicas e frequentadas”, horrorizando as famílias, que “fugiam de chegar ás janelas de suas casas, porque não estavam
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mente cansavam-se no caminho, “paravam e deitavam a rêde com o cadaver so-
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em seu próprio vacinogêneo doméstico uma epidemia que se alastrava sem cessar.' Ao lado das doenças, a criminalidade aumentou consideravelmente durante os anos 1877, 1878 e 1879, apavorando autoridades, observadores € retirantes. Todos, de uma forma ou de outra, sofriam os efeitos do caos em que se tornou à
vida urbana e rural no Ceará. No interior, os grupos de salteadores ocupavam o espaço vazio deixado pela população retirante e ameaçavam livremente as cidades quase desabitadas. Os
efetivos policiais foram reduzidos a quase zero, em função da necessidade de controlar a situação na capital e mesmo com a redução dos meios de subsistência no interior. Os Presidentes da Província, em seus relatórios, deixavam transparecer essa preocupação com a “tranquilidade pública”. Sob pretexto da fome, os crimes de furto e roubo se têm desenvolvido em longa escala, especialmente nas comarcas do sertão, onde os meios de viver
são mais escassos e mais facil o emprego da violencia, não sendo por isso de admirar que frequentes homicídios vão completando a obra da perversidade.”
Os “malfeitores” percorriam os sertões, encetando disputas com grupos rivais, aterrorizando as vilas pobres ou empobrecidas; sem enfrentar uma sociedade organizada, “continuavam a fazer correrias”. Tais grupos tinham origem em crimes de morte, cometidos contra familiares ou amigos, € a conseguente organização de um bando, normalmente de foras-da-lei, para perseguir os assassinos. A vingança movida pela família de Adelino Araújo, por exemplo, deu origem ao bando dos “Pellados”, liderado por Sebastião Pellado. Os “Calangros” — nome relacionado a João Calangro, condenado por roubo de gado e fugitivo da cadeia do Crato — formaram-se em defesa do assassino. Innocencio Vermelho, e, em pouco tempo, o bando já reunia mais de 60 salteadores. Outro grupo, que se formou em hostilidade a estes, foi liderado por José Matheus.
Na cidade, os furtos são frequentes. Grupos de assaltantes se formam, aproveitando o grande movimento de pedintes pelas ruas, abordando pessoas e casas. Rodolpho Theophilo, para quem “o furto se havia desenvolvido entre os retirantes de maneira incrivel”, chamou a atenção para um aspecto peculiar do principal grupo de assaltantes da capital. A assim chamada “companhia da russega” — uma
referência ao instrumento usado pelos assaltantes — “era composta em sua totali35
Freperico DE CastRO NEVES
dade de meninos de 7 a 12 anos”.*º Soltos pela cidade, longe da família e do controle paterno, encontravam uma certa liberdade na circulação pelo espaço urbano, na conquista do temor da população, nas possibilidades de uma alimen. tação melhor às custas de pequenos ou grandes furtos nas casas de pessoas abas-
tadas, De modo geral, portanto, era presumível que, no contexto de uma crise sem precedentes, com o rápido empobrecimento de grande parte da população, in-
cluindo homens de posses da cidade e do campo, às autoridades percebessem que “são os analphabetos, os proletarios, os homens carecidos de
ca os beneficios
da civilização que commettem a quasi totalidade dos crimes” De fato, a fragilidade da fiscalização e a crítica situação dos retirantes aca-
bavam por colocá-los com o pretexto e a ocasião em mãos. O transporte de gêne-
ros para os abarracamentos, feito pelos próprios retirantes, era o momento ideal para subtrair aos sacos de farinha algo mais para alimentar a família. “Todos furtam”, brada Rodolpho Theophilo, “porquanto muito convencidos estavam de que tudo era do Rei e por consequencia lhes pertencia”. Na polícia, quando era o caso de haver prisões, “defendiam-se dizendo que estavam com fome”. Duas fontes de legitimação se pronunciavam aqui. A primeira, abortada pela Proclamação da República, estabelecia uma vinculação direta com o Imperador D. Pedro II, que simboliza e personifica a caridade e a proteção aos pobres. A
segunda, que se desenvolverá por todo o século XX, assegura a imposição da “lei da vida” que se sobrepõe à “lei do direito”, garantindo um suporte moral indispensável para os famintos que roubavam alimentos. Por outro lado, a muamba, nome dado ao objeto dos furtos, era assunto das conversas e da poesia popular. A barca da muamba
Corre mais que o vapor, Ai amor!
O romance A Fome reforça esta visão dos pobres como criaturas à beira de um ataque de perversão, possuidoras de valores morais e éticos bastante frágeis e sempre propensas às formas pouco confessáveis de ganhar a vida. Mesmo entre
os desafortunados da seca, contudo, o autor faz distinção entre os pobres e os
homens de posição. O coronel Manuel de Freitas, por exemplo, era um proprietário de terras que perdeu tudo com a estiagem, mas que, mesmo vivendo na cidade
inteiramente às custas de um corrupto comissário de socorros, não concordava
em receber dinheiro da verba “Socorros Públicos”, aceitando a ajuda como uma 36
A Muiunoão E A História
oferta pessoal. Aceitaria um emprego para ganhar um salário, embora concordas-
se que “o transporte de pedras” fosse “uma medida vexatória e extravagante”, indigna de sua posição. Mantinha sua dignidade. O mesmo não acontecia com Os outros retirantes, que mendigavam, carregavam pedras e procuravam por todos
os meios ganhar sem trabalhar. À corrupção era outro crime a se espalhar pelo terreno movediço da desor-
ganização social. As denúncias se sucediam, os relatos também. Poucos, no entanto, além de alguns que perderam seus empregos comissionados, foram punidos. O jornal O Retirante fazia denúncias semanais, cobrando dos Presidentes da
Província uma posição mais firme contra os atravessadores, os açambarcadores e os corruptos, entendendo que a responsabilidade no atendimento às vítimas da seca — de proteção aos pobres em momentos de escassez — era do governo, na impossibilidade de os próprios proprietários poderem fazê-lo. Este jornal — que trazia como subtítulo: “ORGAM DAS VICTIMAS DA SECCA” — foi criado com o objetivo de dedicar-se à “causa dos famintos”, procurando enfocar os problemas contemporâneos do ponto de vista dos retirantes. Era de propriedade do Sr. Francisco Perdigão, que, “abalado com o soffrimento dos indigentes, atacava desabrido a administração, ultrapassando muitas vezes os limites da accusação séria e moralisada, e ferindo com insultos ao presidente da provincia”. O abolicionista José do Patrocínio, em missão jornalística a serviço do jornal carioca Gazeta de Notícias, teve diferente impressão. Para ele, O Retirante significava
apenas o veículo de “uma resistência hedionda contra o pujante caráter do presidente Aguiar”; apresenta o jornal como “o poste infamante em que a própria família do honrado presidente foi amarrada para ser coberta da baba asquerosa dos mais infames detratores que a terra tem produzido”4 De qualquer maneira, os comerciantes, em períodos de escassez, sempre são objeto da desconfiança popular. As denúncias do jornal continuavam e os preços subiam descontroladamente. Os gêneros colocados à disposição dos retirantes foram objeto de ampla exploração. As verbas dos socorros públicos, segundo
denúncias dos jornais, “não conseguiram socorrer senão as comissões, os comissionados, as subcomissionadas e protegidas”, em que “fica muita casa-far-
ta, muita grimpa erguida com os despojos da miséria”.“º De fato, segundo o nosso cronista, “os especuladores tiravam partida das condições anormaes” e, indo contra o livre funcionamento do mercado, algumas autoridades procuravam in-
tervir, aumentando a oferta de alimentos.
A carne verde custava 640 a 800 réis o kilogramma! A camara municipal de Fortaleza, achando exaggerados aqueles preços, resolveu abrir competencia
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Freverico DE CAstRO NEVES
com os marchantes, e mandou matar gado por sua conta, fazendo d'este . . so modo descer os preços a 320 e 400 réis por kilogramima.
brigas. Uma das Os crimes, porém, não se resumiam a furtos, assassinatos e
ações das autoridades e dos moradores cra com a Prostituição, grandes p ppreocup
capital”. Uinia predisposição natural mas sempre seria aos vícios morais e ao crime poderia ser resultado da miséria, necessário o agente “seductor”, nem sempre, ou quiase munoa Mm pre
PANA,
va em sua mas “o miscravel grande. que á custa do valor de suas moedas, compra a. porta a honra das donzellas a vis e asquerosas mulheres, que a natureza desgraç damente fizera mães!”
nos impõem o devere o Historiando os factos com a imparcialidade que mia de opuléntos, que, criterio. não podemos deixar de estigmatisar a infa uam com mães cordevorados pela sensualidade brutal dos jumentos, pact
filhas. rompidas e desalmadas, comprando-lhes friamente a honra das
As mulheres. em Theophilo, aparecem como santuários da virtude, mas com poucas possibilidades de ação autônoma. A prostituição é sempre um ato externo, vindo de um agente corruptor que, contra a vontade da mulher, a leva à perversão através de variados estratagemas, dos quais a pressão financeira é preponderante. A miséria aparece sempre como origem de inúmeros vícios e crimes.
Uma vez prostituídas, todavia, as mulheres jamais se livrarão desta marca e “vagarão por muitos annos, como negros testemunhos da bruteza humana”, “perdidas pela libidinagem dos reprobos sociaes”: “Vimos algumas meninas perdidas pela perversidade desses covardes. Entre ellas duas menores de dez annos e já
tão pervertidas como a mais devassa Messalina”.*? Novamente o romance A Fome pode lançar algumas luzes sobre esta ques-
tão. Carolina, filha do coronel Manuel de Freitas, resiste aos assédios do comissário Arruda. firme em seus princípios morais, mesmo adoecendo por má alimentação c tristeza. Nem lê o livro emprestado pelo comissário — “Permita que peça o favor de dá-lo a meu pai; nada leio sem que ele o autorize”. — por ser um
“romance de época”, desses “estudos psicológicos, que devem ser lidos por espíritos cultos e amadurecidos”, segundo o coronel, muito zeloso pela educação da filha. Já Vitorina, uma órfã pobre, filha de retirantes, largada num abarracamento de indigentes famintos, sem educação ou, principalmente, orientação de um pai
a ape a
eta cortada, e depois de ser alcoolizada,
38
A Muztidão E A História
entregou-se “sem resistência” ao mesmo comissário Arruda. Pela manhã, “saiu incorporada às prostitutas": “uma noite de crápula basto u para crestar aquela flor
de quatorze anos". Os padrões da desigualdade social se reproduzem na econo-
mia da sedução. Neste clima, em que imperam a fome, os desmandos, os crime s € o caos, os
conflitos abertos não demoram a surgir. Sinais de uma reaçã o coletiva um pou-
co mais articulada começavam a aparecer no interior dos abarracamentos, nas
ruas, nos postos de distribuição de alimentos, chegando ao palácio do gover no.
A princípio, os retirantes realizam petições às autoridades, reclamando novas
medidas de atendimento ou protestando contra a insuficiência das medidas exis-
tentes. Uma atitude nova, diferente dos padrões rurais de relacionamento com
as autoridades, em que os proprietários assumem integralmente esta intermediação entre o que eles entendem ser as necessidades da população e os dirigentes do Estado — e a submissão dos camponeses é parte integrante de sua integração social. Em 7 de dezembro [de 1877], os retirantes domiciliados em Arronches, não recebendo rações, havia muitos dias, vieram ao palacio do governo, em
numero superior a 500, todos chefes de familia, implorar do presidente uma esmola para não morrerem á fome. A reação foi de desprezo pela ação dos pobres. A eles não era dado o direito de manifestar-se publicamente, de ocupar a cena da capital, área destinada a pessoas com instrução e posses. Sem tomar conhecimento da ocupação das áreas próximas ao palácio pelos retirantes, “o presidente demittiu imediatamente o subdelegado de policia e exonerou a commissão de socorros, pelo facto de terem deixado sahir da povoação os infelizes famintos”. No entanto, a ação não foi de todo mal-sucedida, já que, “n"este mesmo dia, toi mandado tomar conta da commissão um official do 15º batalhão de infantaria,
o qual conduziu algumas saccas de farinha para distribuir com os retirantes”*º Assim. uma medida disciplinar se combina a outra de caráter conciliatório, procurando articular duas formas de ordenar o espaço urbano: a autoritária e a
paternalista. De qualquer maneira, o desconhecimento oficial destas atitudes que colocam em questão a ordem revelam-se nos relatórios e, ao mesmo tempo, revelam a percepção de que, para as autoridades, a política não inclui os pobres.
Também em abono dos sentimentos cordatos e pacificos da população convem produzir a confissão de que, qualquer que tenha sido o lance apertado 39
es FreDeriCO DE CASTRO Nev
ja Imposto, d sto ja olhe dahajadosorda
à
de sua situação e os inummeros sofirimentos
ainda não sahio do terreno legal, nem empunhoumaisis *sagrados a satisfação
dos direitos anarchia, procurando na violencia : so de suas mais palpitantes necessidades.
à pior
íncia cra a prova indoi ão aç tu ã si & o, nt ta no en 8 ivamente eleva+0ss Em março de 1878, a os aos Te tirantes esca eços res destinad Fenano St actual e pr m m possível.”! Os víve dos da capital estava co os posição nos merc es esgotados OS cofr € os id ur ha neh dos e, por fim. “se ach gamentos, r €”,os Osparetir gulaeira ito dairre antes mu se pedr vatoma s raçõe Esdas Fazenda”. A distribuição
voltaram res ingidos. No dia 18, “depois que foramoram restr OS
otesto foi geral e “os
O conflito se geneEH em E au i ucei dt a pedrapolicial foi “debandada E R T a E gs conreforços, a repressão foi imediata, Ra ad e çosiainã
E Boi E Es arda”, obn ne o EUA com “tiros de esping e as à praça do E E xim pró ruas s pela e ent dam era rem desesp Ao final, algumas crianç e das espadas dos policiais à cavalo. e das entre os feridos.
m: Rodolpho Theophilo ironiza à vitória das forças da orde
tarde. voltava o exercito pacificador. do os hymnos da victoria, e tendo miseraveis que estavam morrendo á A atitude dos responsáveis pela
“A's 3 horas da
precedido de uma banda de Pain, tocaná frente o bravo que mandou atirar sobre fome!” manutenção da ordem revoltou o farmacêu-
tico. muito mais inclinado a medidas de natureza humanitária, que se aproximam
dos modelos clássicos de relacionamento do paternalismo: “A população inteira
da capital deplorava tão triste acontecimento, que ter-se-hia evitado com algu-
mas saccas de farinha e poucos fardos de carne”*? Sem embargo da permanência de elementos marcantes do paternalismo nas relações entre os pobres. as autoridades governamentais, os proprietários e a população urbana, novas formas de manifestação de uma energia contestatória, represada pela submissão e garantida pela proteção, se gestavam neste novo contexto. Isso
gerava um clima de tensão em que os conflitos se sucediam: “rara era à prisão
efectuada pela cavalaria ou infantaria que não produzisse um assassinato” 5? Assim, atitudes de certo modo previstas e temidas passam a ter lugar num ambiente social propício à propagação da revolta. Não só se sabia da insuficiên-
cia dos socorros, mas das cenas de miséria e conflito aqui descritas, o que desen40
A Muznicão E A HisTÓRIA
volve um temor diante da possibilidade concreta de um confronto generalizado
entre os pobres e a população abastada da cidade: “No dia em que negarem socorros, ou estes não estiverem em proporções com as exigências da população
esfomeada, repetir-se-hão aquelas sangrentas e horríveis scenas de que a história tantas vezes nos fala”. Assim, mais do que a miséria, teme-se a revolução, representada pela de-
monstração violenta da insatisfação dos pobres para com a ordem constituída. Uma ordem, aliás, ainda permeada por elementos ambíguos de modelos que se digladiam. Mas o que se tem presente nestas representações é a idéia matriz de que a pobreza não só é origem dos vícios do corpo e da alma, dos crimes e da desonra, como também da revolta e da revolução. Concretamente, o temor da população era de que os retirantes, em desespero, atacassem as propriedades, as casas e estabelecimentos comerciais para satisfazer sua fome animal e, embriagados pela violência, destruíssem o próprio tecido social.
De fato, as mudanças no interior da ordem paternalista ainda não haviam sido tão radicais para permitir uma interpretação das regras do jogo fora do modelo clássico de relacionamento do tipo “submissão versus deferência”.
Mas, mesmo assim, alguns relatos nos indicam mudanças significativas nestas relações.
No dia 12 de março de 1878, em Aracati, alguns retirantes “assaltaram uma lancha que descarregava generos do governo, de bordo do vapor Conde d'Eu, e furtaram 43 saccas de farinha”. O que, a princípio, parecia ser um furto a ser consignado entre os atos criminosos comuns, negligenciado pelas autoridades, mais tarde se percebeu ser algo que se articulava com maior complexidade. Um mês depois. um novo ataque “provava evidentemente o interesse que havia da parte dos agitadores do socego publico em desmoralisar o novo agente” [de distribuição de gêneros). Desta feita, apesar da proteção policial requisitada, as canoas que descarregavam o vapor Ipujuca “foram assaltadas por uma turma de oitenta emigrantes”. O conflito resultou na “morte de cinco dos assaltantes € dos soldados, porém, “sahiu com o mais leve
ferimento”.
Os ataques, apesar do impacto que causaram, não abalaram as formas de percepção que se desenvolviam a respeito da capacidade que homens pobres, camponeses, submissos, tinham de agir autônoma e coletivamente na busca de
seus interesses, mesmo que os mais imediatos. Haveria, sempre, os “advogados do povo”, os png
da ordem publica” ue “não perdiam occasião de
sublevar os retirantes” etc.
41
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muitos ferimentos”; nenhum
FreperiCO DE CASTRO NEVES
Já em seus primeiros atos, portanto, a multidão1z é desqsqualificada sujeito.
No entanto, o que tomou essa seca uma
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alistas ciona-se com o momento em que os deveres paso E
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|. Origens da Seca Não é tão difícil estabelecer o momento em que O pio
os deveres paternalistas em períodos de ame
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Essa ocupação do interior se fez pringohalmento
sertão era a “civilização do couro”. E “o couro era o boi":
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implantação de um modelo de relacionamento bastando
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ganhava terreno fincando currais onde antes somente pisava O Índio
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cada curral iria ser uma fazenda, que se garantia juridicamente com à obtenção
da sesmaria ou data”. Toda a atividade econômica girava em torno do gado e seus derivados, como .
“47
as “charqueadas”, “instaladas nos estuários dos rios Jaguaribe, Acaraú e Core
As poucas profissões industriais ou manufatureiras se relacionavam à indústria
da carne seca; outras, artesanais, se relacionavam à lida com o gado. No entanto, os cuidados com o gado eram reduzidos: “O gado, no sertão, é criado á lei da
natureza, sólto pelo mato em fóra, sem o menor processo de pecuária inteligen167,59 De modo geral, neste contexto, “dentro da organização sócio-econômica bascada na produção agropastoril sobressaía a parceria”,8º em que vaqueiro e proprietário dividem o gado, ao final do ano, na proporção de 1 para 4; no caso da agricultura, o parceiro cultiva uma parte da terra do proprietário e, em troca, cede
uma parte da produção ou alguns dias de serviço.º! Porém, uma boa parte das atividades rurais se detinha na cultura de subsistência, complementando, para 0 vaqueiro, a renda advinda da “quarta”, e, para os poucos escravos, a alimentação e o vestuário. Para os parceiros, eram as atividades primordiais. Assim, é lícito
afirmar que “ao sertanejo pobre abrem-se duas carreiras: ou é vaqueiro de um
fazendeiro qualquer ou agregado, isto é, morador nas terras do fazendeiro, trabalhando como jornaleiro seu, podendo ser expulso da noite para o dia”,2 42
utilização de máquinas e equipamentos ou para a comercialização dos poucos
mandioca, o algodão, o milho e o feijão. Entre a plantação dos legumes
mais ligeiros e a colheita, accupa-se a família com a limpa do roçado, enquanto seu chefe, para alimental-a, trabalha a jornal nas lavras dos mais abastados; o salário é gasto na compra da farinha de que se alimentam com os preás fornecidos pelas armadilhas: fojos e quixós. Chegado o tempo da colheita. os pequenos lavradores se consideram felizes. Alimentam-se com os legumes e vendem o algodão para comprar roupa.
vidade produtiva dos setores da agricultura de subsistência em “tempos normais”, nos “anos regulares”, quando não há seca. A produção é quase que inteiramente destinada à obtenção da “segurança alimentar”; um pouco de algodão se destina ao mercado e é “trocado” por produtos essenciais. Nas “lavras dos mais abastados”, ao contrário, as principais atividades eram de natureza co-
mercial: o gado e o algodão. O autor observa também que “suor escravo não
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Essa citação, apesar de longa, mostra com alguns detalhes a rotina da ati-
verieis ali correr; é o trabalho livre e fecundo, amenisado ás vezes ou pela saudosa modinha cearense ao tanger da viola ou por intermináveis histórias de
cobras ou de onças”.
Tal conjunto de relações podia se manter estável enquanto houvesse uma disponibilidade de terras e recursos para serem aproveitados durante as secas. Nestes momentos de escassez de água, enquanto o gado cra transferido para áreas mais úmidas (serras € praias) ou para o Piauí, os moradores poderiam transferir-se também ou, em casos extremos, habitar os currais temporariamente abandonados, vivendo às custas da caridade do proprietário. Essa movimentação, por-
43
Pre uia
ap mptsppriterrsça emana DEPEESRC aa ra r
lia ajudado da mulher e filhos menores. As primeiras plantações constam de feijão ligeiro, milho de sete semanas, gerimum e melancia: depois vem a
aço
não exede de duzentos passos em quadro. Em fins de dezembro está queimado, em princípio de janeiro cercado e prompto para o plantio. Começado o inverno, lançam-se as sementes na terra, serviço feito pelo chefe da famí-
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Juntam-se, para este fim, os parentes e amigos da visinhança, permutando entre si os dias de serviço. Cada um abre o seu roçado, que o mais das vezes
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Nos annos regulares tudo corre bem. Em outubro brocam-se os roçados.
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excedentes. Sobre estes setores recaía - c recai - q impacto da seca.*?
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da proteção dos grandes proprietários em períodos de escassez ou mesmo para a
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sobrevivência dos pequenos proprietários, vaqueiros é parceiros. que dependiam
enÓ Cal PPA
fazenda. ou seja, à pecuária e, mais tarde. ao algodão. As piores restavam para à
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As melhores terras, no entanto, se destinavam às atividades principais da
a
A Muirinão & A História
Freverico DE CastTRO NEVES
e Ni : a em geral, tanto, não chegava a pressionar significativamente à vida urbar 8 nem a estrutura da capital em particular. i suportava €s se modelo. B asca. À economia predominantemente agropastoril
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terra, essa ativi
da em pouco capital investido. pouca mão-de-obra € ap ane e R
rando novas qa
econômica estendia-se por todo o território cearense, pr
Soy Sem
mais como reserva para Os períodos secos do que como inves
aumento da produção. Esse modelo. assim, pode ser caracterizado como
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tradicional”, em que acon.
tece uma “reprodução simples ou simplificada do precaRso de produção agríco-
la”. Neste contexto, “o equilíbrio continua tão frágil, que
de uma ligeira modificação o perturbará profundamente
elemento gerador
s Rana portanto, não
atua sobre uma matéria bruta, mas sobre um conjunto de cunpigões
sócio-históri.
socioeconômica cas definidas, nas quais se insere fundamentalmente a organização . camponesa de tipo “tradicional”.
um A seca representava, a despeito de todas essas medidas compensatórias,
momento de dificuldades profundas, grande mobilidade da população e mortali-
dade intensa. Até o século XVIII, porém, a principal vítima da seca era o gado,
Os cronistas e estudiosos se referem preferencialmente às perdas materiais, especialmente no que se refere ao rebanho, o que nos sugere uma pouco significativa mortalidade humana, quadro que se modifica radicalmente ao longo do século XIX. No entanto, o “nomadismo” da população sertaneja pode ser responsabili-
zado por uma recorrente “desorganização do trabalho”.º$ O ano de 1825, segundo o Senador Pompeu, “começou e continuou sob a influência de tríplice calamidade: seca e fome, guerra civil e morticínio, e mais logo a peste da bexiga”, acrescentando que “esse cortejo de calamidade foi ainda
agravado pelo recrutamento extenso e horrível dos braços válidos restantes da Província”. A mortalidade do povo nos centros e nos povoados, mesmo na capital , foi
horrível. Todavia, nos maiores povoados as vítimas de fome foram raras, porque a alimentação veio de fora da Província: porém a aglome ração de
povo imigrado do centro concorria para aumentar a mortalidade. Estima-se
em um terço da população a que morreu, quer de guerra, assassinatos, peste, fome, e a que emigrou, ou foi recrutada.
Por mais que esta avaliação esteja incorreta ou inexata, a percepção de uma crescente mortalidade em função da seca já se faz presente, asso ciando a fome
com as doenças e com o aumento da criminal idade, mesmo que em situação
44
A Muun E oã A Histór oia
peculiar: as consequências da “guerra civil” - a ativa presença cearense na Confederação do Equador - € as epidemias. No entanto, este autor ainda observa que “não consta que a pública administração tomasse. durante a calamidade de 1825, o menor interesse em minorar a desgraça do povo” e que “o governo geral só em
fins de 1826. ou seja, em 1827. quando o mal passava, mandou alguma tarinha para o Ceará, que não se aproveitou”, João Brígido, outro observador, acrescenta que “foi tríplice, pois, o flagelo
que pesou sobre o Ceará - a guerra, a fome e a peste”; e centra suas descrições muito mais nas lutas políticas que se travavam na Província.
Já o Barão de Studart, por outro lado, apenas nota, sem maior destaque, que
“neste anno o Ceará foi assolado por grande sêcca”.*? O clima político cearense estava, na verdade, dominado pelos conflitos gerados pela Confederação do Equador, as reações do governo imperial e, especialmente, as execuções públicas das
principais lideranças locais. Em 1845, um novo período seco se apresentou e novas descrições de calamidades: “atos horrendo e crimes de homicídios, que se tornaram então numerosos, sendo quase todos ocasionados por questões de alimento”, “as mulheres, morrendo à fome. depois de venderem por quase nada as últimas jóias de ouro que possuíam, entraram a vender a própria honra” etc. Fala-se em “milhares de victimas”. Neste momento, contudo, já se percebe que “a caridade pública por si não podia acudir às precisões de tanta gente, e o governo, à espera das ordens do ministério, a quem tinha dado parte do estado da Província, demorava-se em dar as providências urgentemente reclamadas por tão críticas circunstâncias”. Farinha foi distribuída entre os retirantes e “grandes palhoças” foram levantadas no “Campo d' Amélia” para receber as famílias que se “arranchavam nos matos”. A existência e/ou eficácia destas medidas, porém, já estavam sendo questionadas: segundo Rodolpho Theophilo, um crítico das ações governamentais, “fizeram-se preces, o governo remetteu esmolas, e ficou n'isso”; “entregue á sua habitual incuria, não pensou o govemo em estudar os meios de atenuar os effeitos de futuras seccas”.$ A ação oficial, quando acontece, é ainda pontual e episódica.
De fato, o governo provincial ainda não havia assumido esta função de proteger os pobres em caso de seca, o que era pensado como parte integrante da esfera
privada das relações paternalistas. A “demora” ou a “incúria” faziam parte deste momento de transição, em que as obrigações estão indefinidas. De qualquer maneira, o que se quer argumentar é que a presença do govemno — mesmo que discutível — na gestão da pobreza, em períodos de secas, é um fenômeno que se vai articulando ao longo do século XIX, substituindo, aos pou-
45
s perico DE CASTRO NevE a dar Conta a cada vez mais insuficiente par str mc se e qu E + a Í e trans. A cos. a “caridade públic que aumenta sem na
pulaçã o retirante dias das carências de uma po de seca. em uma questão de calamidade pú I ls odo »ríii no espaço público da cidade. pelo ee pú co, ds forma-se. a cada e rin
e erpessoais que mantinham à "eeciprntidade
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das propriedades entravam em crise — uma crise que
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preços no mercado interna. elevaçãoáriodos anto enqu exportaçõe: rtações do Ceará, nves nto quedos à prop time s de terras e comerciantes da riet
cional estimulava O 1 capital.
ibavam-se De um anno para outro. à provincia cobriu-se de algidoges: derr as mattas seculares do littoral ás serras, das serras ao sertão; o agricultor
s com o machado em uma das mãos e o facho noutra deixava após si ruina
ennegrecidas. Os homens descuidavam-se da mandioca e dos legumes, as
proprias mulheres ahandonavam os teares pelo plantio do precioso arbusto;
era uma febre que a todos hallucinava, a febre da ambição.”
Os lucros dos comerciantes e proprietários foram facilitados pelas decorrências da Lei de Terras de 1850, que permitiu a tomada de terras de posseiros e
pequenos proprietários com base no direito de compra e a incorporação, pela força e pela lei, das terras indígenas ao território da província.??
A Guerra Civil nos EUA (1861-1865), por outro lado, veio estimular ainda mais a produção do algodão, abrindo novos mercados antes dominados pelas plantações do Sul escravista. A exportação, que nos anos até 1864 mal chegava a
1.000.000 kg. atingiu mais de 8.000.000 kg na safra de 1871-2, cifra que só foi
retomada na década de 1910 com a introdução de importantes mudanças tecnoló-
gicas.”*
Na pecuária, porém, as atividades permaneciam presas ao modelo tradicio-
nal, extensivo, “á lei da natureza”. O próprio Presidente da Província criticava
nos produtores a postura passiva diante da criação do gado.
E a ER
ração das fazendas é entregue a homens ignorantes dos preceitos
da industria, e muito mal retribuidos. Ordinariamente só se occupam em
46
A Muznidão E A História
percorrer os campos, amansar os animaes, fazer alguns queijos durante O inverno, pegar as rezes destinadas a venda Isso significava que as reservas de terras para os períodos secos eram progressivamente reduzidas. Não só as melhores terras seriam destinadas ao gado e
ao algodão. As atividades de subsistência e de produção de alimentos cediam lugar para uma agricultura em grande escala, voltada para o mercado externo, que. mesmo utilizando primordialmente a mão-de-obra livre, não incorpora a
totalidade das terras. De um modo geral, portanto, pode-se afirmar que, após 1850, “a agricultura comercial entrava numa nova fase, subordinando a de sub-
sistência”.” Para a estrutura da economia camponesa, como foi aqui delincada, esta diminuição de sua reserva significava a impossibilidade de “atravessar” a seca em condições mínimas de “segurança alimentar”, em que a proteção oferecida pelo proprietário torna-se insuficiente e as famílias tornam-se, assim, “retirantes” à procura de trabalho e comida. Com a seca, o “filho dos sertões longínquos (...) perde as plantações, e com ellas a esperança de alimento para a família”.'* O
“frágil equilíbrio” desta economia “tradicional” torna-se ainda mais frágil, à mercê das irregularidades e da inclemência da natureza. Mais precisamente: as reservas garantiam economicamente a relação de dependência ao proprietário, significavam a possibilidade desta dependência direta se concretizar com a reprodução das famílias camponesas no interior da agricultura “tradicional” e das fazendas de criar, sem alterar suas bases. Ao mesmo tempo, devido a esta mobilidade crescente da população camponesa em busca da proteção estatal no espaço público da cidade, os períodos de escassez transformam-se em um problema social que afeta o conjunto da sociedade cearense e, portanto, ganha visibilidade social e espaço nas políticas oficiais. Assim, diante desse quadro, a seca de 1877 se apresenta como de gravíssicontabilizavam as perdas, se conjeturavam quanto às razões da irregularidade de chuvas”! e se lamentavam as mortes — a seca torna-se, a partir de então, um “fenômeno social”.
Ill. Lições da Tragédia A seca de 1877-1880 trouxe novidades no campo das relações de poder que
ficaram incorporadas ao imaginário político e social. O impacto deste evento sobre as formas de perceber a pobreza, a migração, a caridade e as responsabili47
=.
mas proporções, fechando o ciclo dos períodos de escassez em que apenas se
FreDEricO DE CASTRO Neves
porém, muitas dessas trans. dades sociais não pode ser medido quantitativamente, o ambiente cultural no qual a mujt. formações vieram a compor decisivamente
camente, após 1932. Alguns dão passará a agir durante o século XX e. especifi
ão em os, principalmente pontos deste processo de mudan ças merecem ser destacad
novas atitudes e novas experiências, termos de novas referências simbólicas. 1. Novos símbolos
na cidade de Fortaleza . A presença ostensiva de uma população retirante
aconteceu em todas as cidades que pode ser considerada um exemplo do que mais importantes do Ceará, especialmente as litorâncas — provocou uma pressão
simbólica sobre a população local que pode ser comparada à proporção dos nú-
meros: cerca de 114.000 sobre 25.000"
A pressão era exercida sobre todos os equipamentos urbanos e sobre todas
as estruturas de sentimentos que a população experimentava com relação à pobreza e à caridade. Ruas, praças e bulevares tomados por famintos sem noções de
higiene. demandando esmolas, água e comida por três anos; o espaço público
recém-adquirido pelos habitantes da cidade é invadido por pessoas que não o compreendem. Multiplicados por incongruências culturais que impediam uma compreensão mútua, os conflitos gerados por essa convivência forçada — e con-
turbada pela insuficiência dos meios de atendimento assistencial — acabam por desenvolver uma nova estrutura de sentimentos com relação aos migrantes da seca: a caridade desinteressada — que, para os cristãos, abençoa quem a pratica e não quem a recebe —- com que os primeiros retirantes são recebidos logo é substituída pela desconfiança, pelo medo e até pelo horror. O relato de Rodolpho Theophilo é claro neste ponto: ele mesmo, um intelectual que acompanha os mais recentes debates de idéias pelo mundo, e que se
proclama um observador isento, imparcial e neutro dos acontecimentos a que assistia e, principalmente. de que participava diretamente, demonstra o horror
ante a decadência física e moral de uma população de milhares de conterrâneos, os quais deveriam merecer de sua parte os mais elevados elogios, como “bravura”, “coragem”, “destemor”, “abnegação” etc. Ao expor as fraquezas morais -
especialmente com relação à prostituição e ao tratamento dispensado às mulhe-
res — tanto dos retirantes quanto dos responsáveis pelos socorros, Theophilo destila um desprezo de “homem civilizado” por sobre uma massa de “bárbaros” que
se amontoa em palhoças imundas ou que se utiliza de suas posições na sociedade
para seduzir mulheres indefesas — para ele, aliás, as mulheres parecem sempre indefesas. 48
A Munição E A História
Começa a se desenhar a noção de que há uma incompatibilidade completa €
profunda entre à miséria e a consciência, entre a preocupação com a satisfação das necessidades mais imediatas e a capacidade de ação racional, entre O despojamento da fome € o controle emocional e físico, característica dos homens civilizados. Algo que irá ganhar contornos mais nítidos quanto mais se repetirem as cenas de 1877; a clara visão de que “a necessidade intima de viver embota os sentimentos mais delicados c altruisticos” e que “o instinto de conservação é ordinariamente mais forte que qualquer outro”, aproximando cada vez mais dos
animais o homem que se encontra nesta desconfortável posição de ter que lutar pela vida no nível mais elementar. Os largos dias de jejum esgotaram todas as reservas do organismo e a tez macilenta do bando famelico, que se arrasta, denota a fraqueza extrema, o sofrimento atroz, e a vista inexpressiva revela o embotamento dos mais
delicados sentimentos humanos.” Assim, o relacionamento entre retirantes e população urbana vai ganhando
contornos mais nítidos, que, no entanto, revelam a formação de um campo de conflitos em que se confundem medo e terror, complacência € intolerância, cari-
dade e violência. Os refugiados da seca, a partir de agora, encontrarão nas cidades este ambiente ambíguo, que os empurra para uma posição de pedintes submissos, a esperarem com total resignação as providências que as autoridades puderem tomar,
mas, ao mesmo tempo, que os permite incorporar novas formas de comportamento político, mais diretas e reivindicativas, embora presas ao modelo paternalista de relacionamento com as autoridades. Do ponto de vista da população urbana e suas autoridades, a necessidade
que começa a se formar neste instante é a de manter os retirantes fora de um limite de contato, longe dos espaços públicos frequentados principalmente pelas elites aburguesadas da capital. Este comportamento — como iremos ver — irá se desenvolver com a repetição, mesmo em menor escala, dos acontecimentos chocantes da seca de 1877. Cada vez mais esta necessidade se manifestará, alcançando as atitudes individuais e coletivas, isoladas ou institucionalizadas. Ao mesmo tempo, € até anteriormente — veja-se as medidas de controle dos abarracamentos
e das casas dos “pobres envergonhados” —, uma outra necessidade se desenvolve. Controlar os movimentos dos retirantes, impedir sua livre circulação pelas cida-
des e até por todo o território do estado, vai ser a principal medida a ser implementada pelos governos provinciais ou estaduais desde então. Não é a seca o
49
Frepemico ve Casmo
Neves
medidas. mas à movimentação do, principal objeto a ser combatido por essas
nto. deixa de ser no sentdo retugiados. a migração. que. a partir deste mome r “do campo para a cidade”, “das áreas secas para as árcas úmidas” para se torna
ia serão objeto de uma aprendiza. Tais medidas de controle e de gestão da misér gem
permanente.
tanto
para
as aut
equiatitio oridades que as implementam,
para
o formas de assistência social, os retirantes: tomarão aspectos variados. assumind tamentos. trabalho compultério € cam. distribuição pública de alimentos, alis comum. no entanto. “fixar 0 homem pos de concentração. Terão como objetivo
no campo”
neste mo. Tais necessidades se ligam a um outro sentimento que se gesta de ali. mento: o medo! A multidão revoltada dos returantes assaltando lanchas mentos ou enfrentando abertamente os policiais armados no centro da capita) inarmento Fncial que aparece agora como uma ameaça à todas as formas de Pelucic
se encontram presentes na sociedade local. tanto à paternalista, “tradicional”,
daí em diante, por quanto a liberal, “moderna”. O período de secas será marcado,
aos períouma expectativa que não é somente rural, isto é, não se refere apenas
onado intidos da semcadura ou ao aproveitamento das colheitas. mas está relaci . A mamentc às cenas de miséria protagonizadas pelos retirantes... nas cidades
partir de 1877. a seca não é mais um simples fenômeno climático de ausência ou irregularidade de chuvas. mas é um fenômeno de caráter social, em que o cenário
se expande até alcançar todos os recantos da sociedade, no campo e na cidade, e seus atores não são somente os que sofrem as penúrias ou que passam fome, mas são todos os que se vêem envolvidos com estes; e cada vez mais fica difícil fugir deste contato.
Pensar em seca. portanto, não é mais pensar apenas na ausência de chuvas
que causa a destruição das colheitas, mas é, prioritariamente, pensar na massa de retirantes famintos € eslarrapados a invadir as cidades na busca de alimentos e trabalho. À expectativa que se vai formando neste anos, com a repetição contínua
das mesmas cenas, se refere ao temor deste contato, ao medo da multidão de pobres.*! 2. Novas atitudes
As atitudes de proteção aos pobres em tempos de escassez, portanto, se mo-
dificam. O que era um comportamento restrito à esfera privada, resolvido no interior da relação entre moradores/parceiros e proprietários de terras, torna-se
um assunto de Estado a ser decidido nas esferas públicas de governo. E, como
vimos, as medidas tomadas para neutralizar o impacto da presença da gli 50
A MurtiDÃo E A História
de pobres na cidade tomaram características de controle e disciplinamento dos movimentos dos retirantes, restringindo a moradia, o trabalho e a circulação dentro do espaço urbano. A chegada dos retirantes às cidades implicava uma necessidade de distribuir
alimentos em escala jamais pensada pelos habitantes, nem pelos governantes. Esta distribuição constituiu-se, inicialmente, numa extensão da caridade pessoal que distribufa esmolas € restos de comida aos mendigos. No entanto. o número de pessoas a ser beneficiado exigiu um sistema de compra, armazenamento € distribuição que requeria uma organização eficiente e ágil. Neste aspecto, o governo provincial procurou interferir nas relações de mercado através da compra em
outras localidades de gêncros de primeira necessidade, alterando os fluxos “normais” de preços em tempos de crise, ou fazendo um acordo com o comércio local “a fim de abastecer o mercado de gencros de primeira necessidade e vendel-os á população € ao proprio governo (...) mediante preços justos € rasoaveis”.8?
No entanto, esta interferência não era consensual entre os governantes, que, em geral, achavam que o mercado conseguiria encontrar um ponto de equilíbrio
entre a oferta e o súbito aumento da demanda. A respeito do supprimento de generos alimenticios, tenho por verdadeiro o
principio da não interferencia do Govêrno, sempre que os commerciantes podem regularmente abastecer os mercados. É obvio, com effeito, que a
interferencia do Govêrno produz uma alta geral. Estavam convencidos de que, “aberta a concorrencia, vem mais cedo ou mais tarde a normalidade dos preços, e as compras se podem fazer á medida das necessidades, dispensando grandes depositos, e poupando transportes”8? A interferência do governo no mercado de alimentos ocorria, portanto, aten-
dendo, por um lado, a um imperativo moral de socorrer pessoas necessitadas — na mais clássica tradição da caridade cristã — e, por outro lado, a uma figura jurídica presente na Constituição do Império. garantindo o socorro aos pobres em casos de calamidade pública. Esta posição se chocava com estes princípios do livre mercado. A hesitação dos governantes, criticada insistentemente pelo jornal O Retirante, encontra neste dilema sua explicação. Ao mesmo tempo, a primeira tentativa de manter um controle sobre os reti-
rantes vem do esquadrinhamento de suas condições de moradia. Os acampamentos, estabelecidos espontancamente pelas levas de famílias que chegam do interi-
or, são divididos em “distritos”, cada distrito com seu comissário e seu administrador, e os retirantes são organizados em turmas lideradas por um dentre eles,
51
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as mente de prepará-los para so o nã ão nç fu m hoças Tais turmas tê buição dos socorros e das Pal tri dis nã ém mb ta mas s, -mnpllem ementada onstra uma intenção de estabelecer um espaço de cony;. serem im » disponíveis. Isso dem populaçã e à caném-chegados a a, inclusive og po. ç o urban
chegados e pop vência ent re os pobres recém pelos famin. criminada do espaço indis o upaçã oc À . s” do ha bres envergon acompanhar q nt e as clites de Fortaleza, ocupadas em me al ci pe es da mo co in tos açãão e do progres so. dentre estas novas atitudes com relação ao, lizzaç iviili “mo da civ ntm — Outro ponto a merece» r atenç ão
r — é com respeito - trabalho. pobres em geral e aos retirantes em particula ondezas - par, obras públicas na capital e em suas red
O estabelecimento de
“ocupar” estes retirantes e, ao mesmo tempo, justificar a distribuição sos SOcorros, já que “não deve ser função pública alimentar poda Ea PSA = É uma
para uma nova tentativa de direcionar as já vacilantes energias destes pobres atividade física extremamente árdua e mal remunerada, para que seus ímpetos “revolucionários” ficassem aplacados. O trabalho cumpre uma fi nngao moralizante
explícita: a caridade. por si só. leva o pobre à resignação € ao Ócio, ao receber alimentos e outros benefícios sem contribuir com o esforço de seu trabalho para com a sociedade que lhe sustenta neste momento de crise. É preciso compensar,
de alguma forma, “os sacrifícios do Estado em soccorro das victimas da sêcca”4 Ao mesmo tempo. um novo mercado de trabalho se forma com a presença
de uma mão-de-obra muito barata e disponível para qualquer atividade. Não só0 carregamento de pedras para o calçamento das ruas, mas a abertura de novas estradas, a construção de prédios públicos e o prolongamento das linhas da estrada de ferro são serviços executados pelos retirantes. A expansão da capacidade do Estado em oferecer obras para a população urbana se expande com esta força
de trabalho utilizada até as últimas consegiiências; homens, mulheres e crianças, indistintamente, sem qualquer limite em termos de tempo e intensidade do esforço, eram incorporados em regime de quase escravidão.** As obras começam com
a seca, incorporando a mão-de-obra dos lavradores sem condições de trabalhar a terra e sem alternativas de outras terras. O “fechamento” das terras para os camponeses joga nas mãos do Estado
uma enorme mão-de-obra pouco qualificada, mas submissa e disponível para qualquer tarefa. A degradação do homem do campo que se vê obrigado a mendigar o coloca, a princípio, disponível para qualquer trabalho, sob quaisquer cir-
cunstâncias. De qualquer maneira, o atendimento assistencial às “vítimas da seca” con centrou-se nas cidades de Fortaleza e Aracati, inaugurando um novo mecanis-
mo de socorro, em que o espaço urbano torna-se o palco principal deste atendi52
A Muitid E A Histór ãoia
mento. Os sertanejos. em períodos de secas, não deviam mais esperar, a partir de então, serem inteiramente atendidos em suas necessidades nos locais de tra-
balho e moradia — Os currais, as fazendas, as casas dos grandes proprietários. Tornavam-se “retirantes * em direção às cidades, onde poderiam ser socomidos.
onde poderiam obter a assistência sem a qual estariam condenados à morte pela fome.
Os caminhos de “retirada”, portanto. são modificados durante a seca de 1877.
Se, antes, Os trajetos principais eram na procura de áreas mais úmidas ou de currais abandonados das grandes fazendas, agora se estabelece como fundamen-
tal o sentido do campo para a cidade.** A cidade, centro do poder e das decisões administrativas, incorpora ainda mais um sentido real e imaginário — o de centro
da assistência aos pobres refugiados. Os retirantes aprendem rapidamente este trajeto, incorporam-no às suas estratégias de sobrevivência no semi-árido; e, em
vista disso, cada vez mais a cidade torna-se o cenário primordial da seca, com a presença
constante dos famintos em suas ruas. Assim, ao primeiro sinal de seca,
as estradas em direção à Fortaleza se enchem de famílias inteiras de agricultores cujas terras — na maioria dos casos, lembre-se, arrendadas em parceria — se tornaram imprestáveis para a agricultura de subsistência. As novas condições - modos de relacionamento, atitude das populações urbanas, a caridade individual, as obras
e iniciativas governamentais — se incorporam ao arsenal de opções que o sertanejo tem à sua disposição dentro dos modelos sociais em que transita, transformando-se em experiências concretas de vida.
3. Novas experiências Uma difícil aprendizagem teve lugar durante estes anos de seca (1877-1880).
O retirante foi obrigado a travar contato com novas tecnologias, novas formas de moradia, novas hierarquias, novas relações familiares, novas relações com o meio
urbano, novas percepções sobre o crime € sobre a mendicância etc. Isso possibilitou-lhe um acúmulo de experiências que, de certa forma, somaram-se ao “caldo cultural” do patemalismo em crise, gerando novas percepções e sensibilidades sobre o social e sobre, especialmente, os critérios de distribuição da riqueza durante os momentos de crise e escassez.
Os acampamentos em Fortaleza careciam das mais elementares condições higiênicas. “Alojados em palhoças e á sombra das árvores”, os retirantes não
mantinham com o terreno ocupado a mesma relação “ecológica” que mantinham nos sertões. A cidade exige novas atitudes com relação ao corpo, à higiene e à moral.
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tamente um puder despótico ainda muior, que eles faziam QuESLAO de PERENA dire arquia se apresentava em toda a sua plenitude. No trabalho. porém, esta nova hier
em turmas € sob 0 comando de forma realmente desconhecida. O trabalho
enér-
e autônogico de um superivr contrastava radicalmente com o trabalho Eamitiar
do trabalho mo desempenhado nas terras arrendadas e representava uma divisão regamento de pemais aprofundada entre executantes € planejadores. Seja no car
dras para o calçamento das ruas, seja na construção de alvenaria dos prédios
públicos. ou seja na construção das linhas de trem, o saber relacionado ao trabalho acumulado pelos camponeses é inteiramente desprezado, com a exceção do desbravamento das matas para a passagem das linhas férreas. São atividades novas e desnecessárias no contexto da vida rural do semi-árido tal como praticado na agricultura “tradicional”. Além disso, a presença de engenheiros, muitas vezes vindos da capital do Império ou até do estrangeiro, aumentava a estranheza do retirante, já que a fonte do poder exercido por eles era o saber e não mais à propriedade.
Por outro lado, a organização da vida urbana, com seus códigos e suas normas, era estranha para os sertanejos. Cedo, porém, em função da necessidade de percorrer as casas para esmolar, ou de atravessar a cidade com pedras ou detun-
gs doocsts damas, pras ua toma-se ais cone E
palmente, desligadas das atividades normais da vida 54
A Muunioão E A Históma
a campo é afastadas do trabalho nas obras públicas, vagar pela malha urbana
jorma-se uma divéraldo. € uma ocupação para a “companhia da russega”. Essa rendizagem manilesta-se no momento da reivindicação: a utilização da praça
ública para O protesto, o espaço em frente à Assembléia Provincial transforma:
do em espaço de reunião, o enfrentamento com a força policial pelas ruas, utih-
zando os becos estreitos como trajetos de fuga. Os retirantes, membros de uma
multidão anônima e desqualificada, passam a fazer parte da paisagem urbana.
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Por fim. novas tecnologias médicas são colocadas à disposição dos sertane-
jos no momento de sua chegada à vida urbana. Portadores potenciais da doença € das cpidemias, seus corpos tornam-se presas de um sem-número de experiências, visando a proteger a população urbana de uma propagação letal. As vacinas,
especialmente. ocupavam um lugar importante neste rol de mecanismos de defesa, Nos abarracamentos, à vacina era obrigatória; no sertão, no entanto. algumas dificuldades foram encontradas pelo serviço provincial de saúde. É, pois, de esperar que sejam acometidos os retirantes, habitantes do sertão,
onde a vacina tem sido repelida com tal horror, que um professor de primeiras letras, tendo recebido ordem de só admitir meninos vacinados em sua
escola, viu-se obrigado a fechá-la por não ter um só aluno. De qualquer maneira. a presença de médicos no interior dos abarracamentos, dedicando-se a atender e a observar cada movimento estranho dos retirantes,
tentando prevenir ou neutralizar as epidemias, era uma novidade ambígua. De um lado, pessoas que, em muitos casos, nunca viram um médico passavam a ter
a quem reclamar de suas dores e dúvidas com relação a seu corpo. De outro lado, era um estranho a vasculhar os corpos, último reduto de autonomia e intimidade, tocá-los e maculá-los com a vacina ou outros exames e medicamentos, procuran-
do em cada um a origem do mal que ameaça a todos. A fundação dos lazaretos é emblemática desta relação. A remoção dos doentes e a mudança dos abarraca-
mentos de S. Luiz, Pajehú e Meirelles foi objeto de críticas por parte de alguns setores da imprensa — leia-se O Retirante: “Diziam que tão precipitada mudança servia unicamente para augmentar os soffrimentos dos infelizes enfermos, transportados sem as cautellas necessarias, á descreção de homens ebrios!”
Reconhecendo os abusos desta mudança, Rodolpho Theophilo ainda argumenta pela sua ineficácia, “porquanto a atmosphera achava-se saturada de miasmas
e havia bexigosos em quasi todas as casas”.*º A questão, contudo, é que uma nova experiência vai ser incorporada: o contato com uma medicina oficial, curativa e intervencionista, que considera o reti55
S Castro NEVE FREDERICO DE
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me . estes relac jona de seca. Após 1877 antes.
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gráficas Referências biblio ; “Palavras que calcinam, palavras que dominam: a M. Durval rco 20” | ALBUQUERQUE JR, » Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/Ma
ção da seca do Nordeste.
To,
Cf. Jd, ão com outras secas,
. Para uma interessante comparaç alas vol. 15. nº 28, 1995. p. 120 — de problema a solução. Dis stino norde inário g imu no a a sec 1988. pp. 15-83 Ao de Astúcia e de Angiístia: à UNICAMP. Campinas: a entad apres ia Histór em ção de Mestrado , assume estasc ea xo é “inventada” em 1877 e, desde então ple com al soci no ôme fen u com m SScopd que a seca, tal como a entendemos, tem orige rísticas. Podemos falar. portanto, mento. (1877-1880). Rio de Janeiro: Im O, Rodolp ho. História da Secca do Ceará
2 THEOPHIL
sa Inglesa. 1922. p. 71-72, Sobre a remodelação urbana de Fortaleza nos anos de 1870 a 19
Belle Époque Fortaleza: FDR/Multigraf, 1993.: e EAR Cf PONTE. Sebastião R. Fortaleza da Cidade de Fortaleza. Fortaleza: TRO. José L. de. Fatores de Localização e de Expansão a EYA, Denis Imprensa Universitária/UFC, 1977. Sobre as casas comerciais, Cf. TAK
po e ropa, França e Ceará. São Paulo: Hucitec: Natal: Ed. UFRN, 1995. pp 116-159. Ro
ce e A Abreu de C, O Engenheiro li nça de Herbster em Fortaleza, Cf. NEVES, , BereniBerenic prese leza: Bibli Es rovincia. Adolfo Herbster e o Ceará na segunda metade do século XIX Forta o de AE uiçã Pião Studart do Museu do Ceará, 1993.: e CASTRO, José L. de. “Contrib negro à forma urbana da cidade de Fortaleza.” Revista do Instituto do Ceará. Fortal E ' fixiam a Além do sul dos EUA, outras áreas algodoeiras que a 4 ep egg
o “a Índia. Coincidentemente, eram territórios de tradicional presença i É eba dg os pp consumidores desse algodão. Cf. JUCÁ Gizafran SUA E lia a ”
rodução — Opoe Espaço Nordestino. - O Papel da Pec da
ZA, Simone (Coord.) História do Ceará, 2 ed. es p. 20.
Ecs
froa Rocha, ce a ea 1994. ção de Demócrit : Fu Funda
3CEARÁ, . Falla com que o Exn. Sr, Deze
se Presidente da Provincia do Ceará, abriu a pç no dia 2 de julho de 1877. Fortaleza: Typographia do Ped “GIRÃO, , Raimundo. - E: Evoluçãoã Histórica C cearense. Fortaleza: ee
: Estellita Cavalcanti Pessoa,
E
RR
000 a da Província, por seu turno, calculava em 220 a ni pe, Acaraú, B nr RÁ 8 nas cidades de Fortaleza, MaranguaJul iode Alb d, Batunite, Pacatuba
e A Sig Cf
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o Exm. St Dr. José
com que ata neta a 1º Sessão da 24º Legislatura du . Fortaleza: : Ty Typographia Brasilei
retirantes chegados a estas cidades eram
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nba RO a incial, no dia 1º de Novemssembléa Provinci s
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«GUERRA, Felipe. “Sécas do Norde tn:
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SADO, Vingt-ElUn (org) Memorial da Seca. Mossorvense, 19x Mossoró: Coleção Fº, João. Os Degredados Filhos da E P- 23). Cf tumbém SOUZ .
ste”
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é Cearense, 29 de abnil de 1877, THE
ca. 2
Vono diam de e MEDEIROS
ed. Petrópolis:
«19BA. pi 82 R 100: OP 353.354 , 124-125 o d u l p h o . Himóri BO, pp. Cit. Op. |880). 354 e 365, PN: Históriada Secva da Ceará (1877.
CÂMARA, José Aurélio Saraiva. Fatos e Universitária, 1970.pp.
prensa
HO-1 H.
umentos do
Ceará Provincial. Fortaleza.
Im-
r Cart ano Estellita Cavalcanti bargado *
da Provincia do Ceará, abria az Presiden no dia te
Pessoa 2 de julho de 1877. Op. Cit p, 39, Sessão da 23º Legislatura da Respec nva Assembléa
do a ser conhecido como cangaço.” ALBU QUERQUE JR “der ai à da seca do palavras que dominam: a invenção
seu relatório de 2 de julho de 1877, o Pres
ide
na região, passan-
alci e EE a IM. “Palavras que calcinam.
Nordeste.” Op. Cit. p. 115. Curiosamente, em
nte da Província do Ceará faz uma curta menção a um criminoso chamado “Cangaço”. H'THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca d ' O Ceará , (1877.1
880). Op. Cit. p. 117.
12 Jd. Ibidem. pp. 118 e 332.
3 3 CEARA.Á Relatorio) com que o Exm. Sr Dezembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pes. soa passou a Administração da Provincia do Ceará ao Exm. S ) João José ; Ferreira d'Aguiar, Presidente da mesma Provincia, em 23 de e
do Pedro Il, 1877.p. 20.
- onselheiro
e 1877. Fortaleza: Typographia
4THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1 880). Op. Cit. pp.
81 e 91-92
Gustavo Barroso fala também de “uma batata inculta, sem nome, que existe no serio ainda
não estudada botanicamente, cujos efeitos toxicos sobre os orgãos do sistema nervoso da vida
de relação são violentos e rapidos, cegando, emudecendo, ensurdecendo”. BARROSO, Gustavo.
Terra de Sol. (Natureza e Costumes do Norte). 5 ed. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1956. p. 32.
IS THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 124. 16 [d. Ibidem. pp. 118, 171,97 e 98.
17 Id. A Seca de 1915. 2 ed. Fortaleza: Ed. UFC, 1980. p. 55. 18 Jd. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 132. 9 1d. A Seca de 1915. Op. Cit. p. 65. WCHAVES, José O. de Souza. Fortaleza e os Retirantes da Seca de 1877-1879: o real de um
imaginário dominante. Dissertação de Mestrado em História apresentada a UFPE. Recife: 1995. p. 91. 2 Cearense, 18 de abril de 1877 e 26 de julho de 1877.
2 CEARÁ. Falla com que o Exm. Sr. Dr. José Julio de Albuquerque Barros, Presidente da
Provincia do Ceará, abriu a 1º Sessão da 24º Legislatura da Assembléa Provincial, no dia 1º de Novembro de 1878. Op. Cit. p. 44.
BFROTA, Luciara S. de Aragão e. Documentação Oral e a Temática da Seca. Brasília: Cen-
.—
Ugo mm
tro Gráfico do Senado Federal, 1982. p. 156.
57
Neves Fasvenco ve CASTRO Prm 3r Desembargador Cuectuno Este o vom que o ri to Ha Cum la Sr « Re Eum A AR CE da Fresno do Ceara do ui am ade ç Mein, eca ant mun Adi Dá em 24 de Mute a. Pessani pres vesma «é inci Prov ma mes da a ty , Presidente Jusé Ferreira d Axutar de re Op Cu p 22 Província em iro Agutar. Presidente da he el ns a Co o pet E te as tad bar s Cy Instruçõe Rodulpho História da O, IL PH EO TH p “ta do ps Cu de 1877 e tevereiro de 62. 0-1 106 pr “3 CUNZTANSO! Op Cu Grandeza do Brasil. 3 ss à e a ri na ço Ma A o óni Ten k Ode "p'ALBUQUERO! E. A 0. : ros á ro: Aurora. sd pp $37-54 de Albuquerque Bar io Jul é Jos Dr Sr Ewm 3 m que Pesdem, P CEARÁ Fulla co atura da Assembléa Peti sl gi Le 24º da são Ses 1º a tal, o do Proven ia do Ceará, abriu
Cu p 4h. de Novembro de [578 Op ). Op Ci x ia da Secca do Ceará t 1877-1880 2" THEOPHILO. Rodolpho Histór
Falla com que o Eun. Sr Dr 14º sa José Juho de Alhuquerque 2 Barros, são da é 4º Legislatura da Assembléa Provinci E As Ses 1º a iu abr rá. Ceu do Provincia NMCEARA
de Novembro de 1878. Op
4
Cut pe 3.
rá (1877-1880), Op. Cir w THEOPHILO. Rodolpho. Historia da Secca do Cea , o Dr - RE Anton19.1 pd one | José Francisco da Silva Albano cor o pel ta pos com era 'O Pay É ão A comiss onio Pereira Alencar. Nogueira Accioly € O Padre Ant
V Jd Ibidem. po 133
“id Ibidem. pp 132
as desventuras dos mi 13-14 Theophilo procurou registrarnce, À Fome, de ROM
o roma e ( ) Parvara. Em outr Amazônia escrevendo o romanc r Pernambuco e ainda comenta:
“era a emigração + ele Feia, o mesmo episódio com o vapo 3 forçada, porque não queriam sair e e Ultima desgraça rescr vada do cearense; € à emigração Boven, 4 Id. A Fome, V; da província à 1sso os obrigava, diminuindo todos os dias os socorros”. 1979.p, 127 o emi a Cearense de Letras, Rio de Janeiro: José Olympio: Fortaleza: Acad ; Er
.
Girão. derxaram o Ceará, durante a seca de 1877-1880, 54.875 pessoas, a grande maior
direção aos serimg ais da Amazônia. Cf. GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Con
a
=Se qÀ
Fortaleza: Ed. UFC. 1984. p. 238.
Cit. pp. 29. 1 "THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. 240-241.
Souza. Fortaleza e os Retirantes da Sec “ Para o primeiro número, Cf € HAVES, José O. de
de no com base no jornal o Cearense segundo, decom05 base (Levantamento de 1877-1879. Op. Cit. p. de85. 1879 e 1 1 de janeiro de 1880.) Para
ape
|
ad g
de 1879. Q2 de dezembro no de Rodolpho Theophilo, Cf. PONTE, Sebastião R. Fortaleza Belle Époque. Op. Cit apenas dois meses de 1877, ainda segundo Ponte, “a epidemia vitimou 27.378 do arrabaldes de Fortaleza”. **THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 238
6 Jd. thidem. pp. 224-225. No conto Violação, apesar de ter como referência histórica a epde mia de cólera em 1862. Rodolpho Theophilo também relata esta forma de transporte a sal É pos e manifesta toda a sua indignação ante o “barbarismo” dos carregadores, homen |
envilecidos pela miséria”, normalmente “galés” (condenados pela Justiça) aprocura deal viar suas penas. Cf. THEOPHILO, Rodolpho. A Fome. Violação. Op. Cit. pp. 248-256. Pan & uma pequena análise deste conto, Cf. NEVES,
Barbárie.”
Frederico de C. “Cenas de Civilização
O Povo, Fortaleza: 02.06.95. Suplemento “Sábado”, p. 4. Para uma análise das 4
condições sanitárias em Fortaleza neste período e uma desérigão dá campanha de vacinação
58
*
A Muun E oã À Histó o ria cjo J oral
IA LO, Rodolpho, Varíala e Vacinação no Ceará. Fortaleza: Oficinas do o
CÊ
.
VCEARÁ. Relatorio com que o Exm, Sr. Conselheiro João José Ferreira de Aguiar passou a Administração da Provincia do Ceará ao Exm. Sr. Dr. Paulino Nogueira Borges da Fonseca, 3 Vice-Presidente da mesma Provincia, em 22 de Fevereiro de 1878. Op Cit. p. 3. MTHEOPHILO, Rodolpho. História da Seca do Ceurá ( 1877-1880). Op. Cit. pp. 103-110. V Id. Ibidem. pp. 353-354. Depois de afamada por seus roubos espetaculares, a “companhia
da russega” foi o pretexto final para a criação da “Colonia Orphanologica Christina” pelo presidente da Província, pressionado pela “necessidade de abrigar a infancia orphã”. ld.
43 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 172. 4 Gazeta de Notícias, 12 de setembro de 1878. Apud. CÂMARA, José Aurélio Saraiva. Fatos
e Documentos do Ceará Provincial. Op. Cit. p. 151. A série de reportagens de José do Patrocínio, acompanhada de um conjunto de impressionantes fotografias, originou “uma das primeiras tentativas de utilização da fotografia pela imprensa brasileira”. ANDRADE, Joaquim M. F. e LOGATTO, Rosângela. “Imagens da seca de 1877-78 no Ceará: uma contribuição para o conhecimento das origens do fotojornalismo na imprensa brasileira.” Anais da Biblioteca
Nacional. Rio de Janeiro: v. 114, 1994, p. 74. 45 O Retirante, 28 de outubro de 1877. Em sindicância empreendida, em face das denúncias de “fraudes e engodos”, ficou constatado que o “cerne das irregularidades aprovadas se ligam ao
modo de como foi empregado o dinheiro fornecido pelo Império”, já que “a escrituração do Tesouro no Ceará estava em dia”, FROTA, Luciara S. de Aragão e. Documentação Oral e a Temática da Seca. Op. Cit. p. 155. “%THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará ( 1877-1880). Op. Cit. pp. 326-327. 47 Id. Ibidem. pp. 353 e 389. 4 Jd A Fome. Violação. Op. Cit. pp. 107, 113 e 137-140.
4 jd. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 136-137. % CEARÁ. Falla com que o Exm. Sr: Dezembargador Caetano Estellita Cavalcanti Pessoa, Presidente da Provincia do Ceará, abriu a 2º Sessão da 23º Legislatura da Respectiva Assembléa
no dia 2 de julho de 1877. Op. Cit. p. 38. SI “E 4o Ceará o que custou a secca de 1877-797”, pergunta o Barão de Studart; “o desaparecimento total da industria creadora, que é a principal riqueza cearense; a ruina de toda fortuna
particular; 180.000 mortos, cabendo á Fortaleza 67.267; 125.000 expatriados, ou a perda equivalente a 375 mil contos.” STUDART, Guilherme Barão de. Climatologia, Epidemias e Endemias do Ceará. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997 (ed. Fac-sim. Fortaleza:
Typ. Minerva, 1909).pp. 45-46. '2THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 177-178. Para uma aproximação muito interessante entre humanitarismo e paternalismo, Cf. HIMMELFARB, Gertrude. Lu Idea de la Pobreza. Inglaterra a principios de la era industrial. Mexico: Fondo de Cultura Económica,
1988. pp. 209-223. A autora mostra como
59
a ética
“4
ASS RARASe Ad indie +
“2 1d. A Fome. Violação. Op. Cit. p. 116.
om E
«4: THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 194.
ATA
julho de 1880. Fortaleza: Typographia Brasileira, 1880. p.5.
CIVIS
s CEARA. Falla com que o Exn. Sr. Dr. José Julio Albuquerque Barros, Presidente da Provincia do Ceará, ubriu a 1º Sessão da 25º Legislatura da Assembléa Provincial, dia 1º de
e adm = 4
Ibidem. p. 390.
es Eneperico DE CASTRO Nev a f, oa, ca; e P juralista” e, de cert âni org Ta ca, qui hi rár , a i hie paternalista pode ser "autontár ia, mo todo social e alva pobres como parte do mes e s rico a o bav engl que já ria, nitá mente huma my a pobreza como um fato da natureza. 22 p, Cit. Op. 80). 7-18 . História da Secca do Ceará (187
“ THEOPHILO, Rodolpho
% Cearense, 25 de vutubro de 1877.
do Ceará (1877-1 ae) Op. Cit. p. 253, SS THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca obediência e da revolta. SãoPao Barrington. Injustiça. As bases sociais da
“MOORE JR. Brasiliense, 1987. p. 682. ti 6. A expr pp. 85-8 prei o “civi e essã Ceará. Op. Cit. : do ' a Históri a Pequen do. Raimun a. S"GIRÃO, a Capistrano de Abreu, que afirma ainda que “a criação do : n
ção do couro”
é atribuída a
lação”. ABREU,
Cap
J. Capistrano de, Camino
i odo por porque popu : : influe sobre o modo q sc forma São aPaulo: Xerox do Brasil/Câmara Brasileira do Livro 3 226. p. 1930.) RE . Gra os e Povoamento do do Brasil AntigRO! 1996. (Ed. fac-sim. Rio de Janeiro: Livraria
Fortaleza: SECULT.cp GIRÃO, Valdelice C. As Oficinas ou Charqueadas no Ceará. 2 ed.
1995.p. 101.
p. 44. S» BARROSO, Gustavo. Terra de Sol. Op. Cit.
“O Poder Local no Ceará.” In: SOUZA, Simone (Coord, His %% ARAÚJO, Mº do Carmo R.
tória do Ceará. Op. Cit. p. 109.
41 C£ BARREIRA, César. Trilhas e Atalhos do Poder. Conflitos Sociais no Sertão, Rig de Janeiro; Rio Fundo, 1992. pp. 81-83.
88. 2 BARROSO, Gustavo. Terra de Sol. Op. Cit. pp. 187-1
62 Em outras palavras. “em região onde a maioria da população vive da pequena agricultura, á e desorganiza É falta de chuvas suficientes para as colheitas e pastagens forçosamente abala
da Seca economia e a própria vida da sociedade”. GUERRA, Paulo de B. A Civilização Fortaleza: DNOCS, 1981. p. 21. Mesmo assim, é conveniente ressaltar que a expressão “chy. vas suficientes” se refere não só à quantidade, mas à regularidade, No semi-árido, a chuva eai
irregularmente no correr dos anos; irregularmente no correr de uma mesma estação e irregularmente sobre a própria superfície”. LISBOA, Miguel R. Arrojado. “O Problema das Secas”
Boletim DNOCS. Rio de Janeiro: v. 6, nº 20, nov/1959, pp. 42-55. “THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 77-78. € também: ANDRADE, Manuel C. de. A Terra e o Homem no Nordeste. 5 ed. São Paulo: Atlas,
1986. p. 159. 5º SCHWARZ, Alf. “Lógica do desenvolvimento do Estado e lógica camponesa.” Tempo Social, São Paulo: vol. 2, nº |, 1990. pp. 85-86. * ALEGRE, Sylvia Porto. “Fome de Braços— Questão Nacional. Notas sobre o Trabalho livre
no Nordeste no século XIX.” Revista de Ciências Sociais. Fortaleza; vol. 20/21, nº 1/2, 1989
1990. p. 127.
9 STUDART, Guilherme Barão de. Datas e Factos para a História do Ceará. Vol. 2. Fortaleza: Typographia Studart, 1896. p. 43. Para os depoimentos de João Brígido e do Senador
Pompei, Cj. GIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cit. pp. 195-196. Sobrea guerra civil « Cf, por exemplo, ARAUJO, Mº do Carmo R. “A Participação do Ceará na Confederação do Equador.” In: SOUZA, Simone (Coord.) História do Ceará. Op. Cit. pp 1453-154.
%% THÉBERGE, Pedro. “Extractos.” Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: nº 25, 1911. p. 231.
60
À Muunoão
E A História
THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 71-72.
Quanto 20 número de mortos, é conveniente destacar a dificuldade que estes observadores tinham para avaliar com exatidão à extensão da mortalidade por toda a Província, assim como
na própria capital. Essa dificuldade permanecerá ao longo de todo o século XX. permitindo avaliações inteiramente contrastantes e díspares. Em face disso, concordamos que, como em
outros contextos históricos, Os números que citaram devem ser considerados com cautela;
mas o que importa é o que sentiram”. MOLLAT, Michel. Os Pobres na Idade Média. Rio de Janeiro: Campus, 1989. p. 216. NGIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cit. p. 146.
1 THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 22. O algodão foi, inclusive, responsável pela consolidação de Fortaleza como “capital do estado, sede do poder”. Cf. SILVA, José B. da. “O Algodão na Organização do Espaço.” In: SOUZA,
gimone (Coord.) História do Ceará. Op. Cit. pp. 87-91. Cf também: LEITE, Ana C. O Algodão no Ceará. Fortaleza: SECULT-CE, 1994, pp. 55-68; e LEMENHE, Mº Auxiliadora. As Razões de uma Cidade. Fortaleza: Stylus Comunicações, 1991. pp. 97-125.
" Os índios foram subitamente declarados extintos com a simples afirmação de que “já não existem aqui indios aldeados ou bravios”. Assim, a proteção dada por lei aos aldeamentos foi suprimida, Cf. CEARÁ. Relatório apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Ceará pelo o 2 Dr. José Bento da Cunha Figueiredo Junior. Ceará: Typographia Cearense, 1863. p. 19.
BGIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cit. p. 154. “CEARÁ. Falla com que o Exm. Sr. Dr. José Julio de Albuquerque Barros, Presidente da
Provincia do Ceará, abriu a 1º Sessão da 24º Legislatura da Assembléa Provincial, no dia |
de Novembro de 1878. Op. Cit. p. 20.
ISPINHEIRO, Francisco J. “O homem livre/pobre e a organização das relações de trabalho no Ceará (1850-1880).” Revista de Ciências Sociais. Fortaleza: vol. 20/21, nº 1/2, 1989/1990. p. 199. WTHEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 352.
T Muitas são as teorias desenvolvidas a respeito das causas da escassez ou irregularidade das chuvas. Nenhuma delas, todavia, conseguiu estabelecer-se como “verdadeira”. Há, por exem-
plo, a teoria das “correntes aéreas” e a das “manchas solares”, muito comuns até as primei-
ras décadas do século XX. Cf GIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cit. pp. 183-193; THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. pp. 431-436; ALVES, Joaquim. História das Sêcas (Séculos XVII a XIX). Fortaleza: Edições do Instituto do Ceará, 1953. p. 242; SOBRINHO, Tomaz Pompeu. História das Sêcas (Século XX). Fortaleza: Ed. Batista Fontenele, 1953. pp. 61-75. Hoje, a ciência atribui a ocorrência da seca, assim como das enchentes no sul, a um fenômeno conhecido por “El Nifio”, em que há um aquecimento extraordinário das águas do Oceano Pacífico, dificultando a formação de nuvens sobre o nordeste do Brasil. Com a análise dos primeiros efeitos deste fenômeno, seria
possível prever as ocorrências meteorológicas para o ano seguinte. Já os “profetas populares”, por sua vez, procuram indícios nos próprios fenômenos da natureza para prever a chegada da seca, tais como o comportamento sexual das lacraias, as orelhas ou os testículos dos jumentos, a produtividade das abelhas, a posição dos astros, os pulos dos peixes no mar, o coaxar dos sapos e a observação de determinadas plantas. Cf. O Povo, 17 de novembro de 1997. * Ou 60.000 sobre 5.000 no caso de Aracati e 32.000 sobre 3.000 no caso de Mossoró-RN.
"SOBRINHO, Thomaz Pompeu. O Problema das Seccas. Ceará: Typo-lithographia Gadelha,
1917. p. 24-25,
61
Freverico DE CastRO NEVES 9 Cf. NEVES, Frederico de C. "A Seca e o Homem: Políticas Anti-migratórias no c Travessia. Revista do Migrante. São Paulo: CEM, nº 25, maio-agosto, 1996, pp, 18-24 é
No Elias Canetti fala do “temor do contato” como o “temor do contato com o desconheci que também, de certa forma, se relaciona com o nosso tema; acrescenta que este te
E pt
natureza individual e só é superado pela experiência coletiva: “some nte na massa é Possfy
homem libertar-se do temor do contato”. Cf. CANETTI, Elias. Massa e Poder. sã Pao
Companhia das Letras, 1995. pp. 13-14.
*! CEARÁ. Falla com que o Exm. Sr. Dezemburgador Caetano Estellita Cavalcanyi Phi va, Presidente da Provincia do Ceará, abriu a 2º Sessão da 23º Legisl atura da Respectiva Assembiç, q no dia 2 de julho de 1877. Op. Cit. p. 37.
"2 CEARÁ. Falla com que o Exm. Sr. Dr: José Julio de Albuquerque Barros, Presidente da Provincia do Ceará, abriu a 1º Sessão da 24º Legislatura da Assembléa Provincial, no dia
de Novembro de 1878. Op, Cit. p. 42.
l
3 CEARÁ. Falla com que o Exm. Sr. Dr. José Julio Albuquerque Barros, Presidente Provincia do Ceará, abriu a 1º Sessão da 25º Legislatura da Assembléa Provincial, no di da de julho de 1880. Op. Cit. p. 61. Ao mesmo tempo, “a construção de obras Públicas dg;
núcleos coloniais para ocupar a população pressupunha a idéia de que o desemprego só na ria ser combatido através de atividades físicas árduas e mal remuneradas”. DINIZ, Ariosvaldo
da S. “O trabalhador pobre no imaginário das elites nordestinas (1850-1920)” In: GAR,CIA JR, Afrânio er alli. Brasil Norte e Nordeste. Estudos em Ciências Sociais. Rio de Janeiro.
ANPOCS, 1991. p. 34.
“Cf ALBUQUERQUE JR, Durval M. Falas de Astúcia e de Angústia. Op. Cit. p. 72. 85 Id. Ibidem. p. 70.
*4THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880). Op. Cit. p. 102, "O Retirante, 08 de julho de 1877. '*THEOPHILO, Rodolpho. História da Secca do Ceará (1877-1880), Op. Cit. p. 231-239 *” FOUCAULT, Michel. A Microfísica do Poder. 7 ed, Rio de Janeiro: Graal, 1988.p. 90,
62
CAPÍTULO Il
1. Primeiras Experiências O final do século XIX assiste a mais duas secas, em 1889 e 1900. Nestas. assim como nas seguintes, as mesmas cenas de miséria, doenças, crimes e morte.
O quadro “objetivo” não se altera significativamente, mas a surpresa revelada por estas cenas em 1877 já não é a mesma. De certa forma, a surpresa vai sendo substituída pelo temor e pelo desprezo, que se combinam paradoxalmente com uma cada vez mais relutante solidariedade cristã.
Retomar estes relatos significa refazer o percurso de constituição do relacionamento entre retirantes e a cultura urbana, entre a multidão de pobres e a
população das cidades, entre famintos desesperados € as autoridades estatais. Assim, não se trata apenas de horrorizar-nos com as descrições - como faz Raimundo Girão, para quem “seria porventura sadismo repetir ou repintar tamanhas desgraças, só para descrever outras igualmente dolorosas, verificadas
em 1888, 1900, 1915, 1919, 1932, 1942, 1952, 1958, 1980-84, números que valem como negras cruzes às margens de uma estrada de expiações, aberta
friamente pelo destino para um povo andar e tropeçar”. Porque, se “não mudariam as cenas, nem o painel, nem os protagonistas, nem o enredo”,! certamente mudariam experiências importantes para o delineamento de novas sensibilida-
des urbanas e novas estratégias de relacionamento com os pobres em períodos de seças.
O debate, no momento da seca de 1889, girou em tono da imigração dos
retirantes para o sul do País e da criação da Hospedaria Geral de Emigração, instituição fundada pelo novo Presidente da Província, o paulista Caio Prado, 63
STRO Neves Fasvenco DE CA
s que capital. 05 infelize a st ne ra mo de durante a curta asylar tem. com “o fim de acolher, emigração. € la pe lo el ag escapar 20 fl obras de acossados pela secca, tentavam do nas diversas ti mi ad al velho excedente do pesso eres. creanças, lh poranamente o inevitave! mu de «to po so. em grande matoria com encontrar meios de am di soccorros, excedente po do estado
assistência e valetudinarios, que só na
dade”? uinte breviver aos rigores da calami s em 1888. as perspectivas para O ano Seg as insuficiente outras notas Depois de chuv
notícias ciro Se publicam á an j em Já . tas não eram as mais otimis “Bemuito da secca ou até mesmo um
€
relacionadas à seca
plantas sem vida, Estanques as fontes, as
ste andez, Os rios à secco, em tri terra os encantos Desfeião, enluctão da à custo refez, Que outr'ora o inverno terra inditosa E os filhos coitados, da
norte à seguir, Debandão sem rumo, sem mais fertcis Exhaustos. procuram paizes fugir. Da secca € da fome procurão Da fome, da secca, De todo este horror,
Da peste horrorosa,
Livrae-nos, Senhor.
Em Sobral, “é contristador o espectaculo de miseria que todos os dias assisti pobre d'esta localidade”: reias ca extrema penuria a que tem chegado a população
caravanas de milhares de famintos em grande numero vindos de varios pontos da em busca de trabalho na via-ferrea de Sobral, : percorrem diariamente as Re
* i ndo a caridade particular, já justamente esgotada” implora ruas 7: d”q i serva-se novamente que “os sertões s fazem-se de todo inhabita nhabit vei o E falta absoluta de meios de subsistencia, e as populaççõões movem-se precipitadaes
“ mente, fugindo á fome”. De-novo, “as caravancoas de retirante s apresentam aspecovo, “magros e seres de as compost repulsivo”,
to ascrçõ nús, famintos, homens se e mulheres carregand sui ã a rede ndo ci
separam, e filhos rachiticos, doentios,
ção selvagem e toxica”.5 A expectativa co m re
mente para que se possa a
1889”, “ainda é geral a d
ã
lividos de
f
pcs
'
torna ai
e tome ou opilados de alimenta-
ao ano de 1889 é das piores: “pouco falta infeliz-
CR A nona escrençacaraque reina a respeito de novo inverno” i Hg 6 É
64
A Mutivão E A História
As notícias que temos do interior principalmente do norte da provincia são desoladoras. Em Sobral já morre gente de fome: em Santa Quiteria, Ipú e Tamboril a população está completamente desanimada. Em toda parte a secca assume proporções aterradoras; e os poucos generos alimentícios ex-
postos á venda são por preços extraordinarios, incompatíveis com os recursos dos pobres.
Neste momento, é a região norte da província a que mais sofre os efeitos das migrações. “Sobral, porem, pelo annuncio dos trabalhos da via ferrea, tem sido o
ponto central pára onde teem convergido os mais indigentes”,7 A simples expec-
tativa da organização de uma obra pública já se torna um pólo importante de atração para OS retirantes à procura de assistência.
Assim, ao final de março, já 23.600 operários se achavam empregados em diversas obras públicas espalhadas pela província, especialmente na construção
de açudes.é A seca já era uma realidade! No entanto, não havia consenso entre os jornais a respeito das medidas a serem empregadas na ajuda aos retirantes de mais esta seca.
Para alguns, “é impossivel fugir á imigração” e, “conquanto não se possa contestar que seja um mal para a provincia, todavia todos reconhecem que é um mal inevitavel”. Isto porque a seca que se instala em 1888 e 1889 tem características especiais que a tornam, em certos aspectos, pior do que a de 1877-80. Esta grande estiagem, segundo o Constituição, “veio em seguida a grandes
invemos e encontrou a provincia inteiramente abastecida de agua”, o que não acontece neste momento, já que “d'ahi para cá ainda não houve um inverno que fizesse agua em grande quantidade e actualmente essa está faltando em todas as localidades do interior”. Assim, “em S. Benedito, por exemplo, um dos logares mais frescos, está já secco um açude que resistiu até 78”. Com isso, o fluxo de retirantes para a capital torna-se gigantesco, e “as obras publicas, açudes e estradas de ferro, que há projetado o governo, por mais numerosas que sejam, nunca serão sufficientes para dar trabalho a todos os necessitados”. Neste interessante artigo, o articulista ainda faz observações pertinentes a respeito dos próprios reti-
rantes. Segundo ele, os que primeiro se retiram, “logo que faltam as chuvas”, são “aquelles que dispõem de menos recursos, que não possuem terras e vivem exclusivamente de trabalhar a jornal para os proprietários”, estes, no entanto, não são os “mais infelizes”.
Os creadores de pequena escala, se assim nos é permittido chamal-os, aquelles que possuem um pedaço de terra, que hão preparado terrenos para à lavoura, que possuem alguns bens; esses só abandonam suas terras quan65
Neves FREDERICO DE CASTRO
a, Faltando as
fortun mingu ada sua da to res imo ult o do faltam em Março, do há desapparecido an qu c o rç Ma a pellam par o resolvem emigrar, chuvas em Janeiro, ap nd qua que i dah a ult Abril. Res appellam ainda para
dos.” estão completamente esgota
sistência daí
as cas dificuldades para à es nt ra ti re s do or lo Esta divisão no interi , à opção pelo estímu
à imigra. nal as m, segund o este jor do ano seco, com o decorrentes justificaria ng lo ao do an um de ntos vão se avol
mento ção. As caravanas de fa mi gando não só a um au ri ob is. ma z ve do ca da lume ainda maior de condições de saúde pioran ém exigind o um vo mb ta mo co as, lic am à capital ou às admitidos nas obras púb ente aos que cheg am at di ime dos buí
alimentos a serem distri . cidades maiores da província
de outra forma, que, va oca col se o stã que à o, Para o Cearense. no entant que humanitárias. A migra. do cas íti pol s mai s çõe ora evidentemente, assumia col está praticando
se “uma deshumant dade que mo co i aqu ia rec apa ção estimulada ta que se está fazendo aos brios ron aff ma “u ”, os mã ir zes eli i para c om os nossos inf o seu desenvolvimento
do Ceará”!!º Além de despovoar a província, impedind
do País, is”, a destinação preferencial para O sul econômico em períodos “norma do próprio governo imperial, eram recebidos por represen tantes
onde os migrantes
ração é inevitável, “é natural mig à se im, Ass . ões enç int as úri esp va demonstra afim de que, que se procure colocar taes braços nos logares mais proximos e ricos como até passada a crise, possam voltar à provincia onde não só deixam familia,
recurbens de raiz”. Neste período, pelo menos para O jornal, “a abundancia dos
sos naturaes da região amazonica não pode ser comparada com a das regiões do sul do Imperio”, e “'o emigrante ali chegado pode, pois. sem depender de ninguem, applicar-se a industria extractiva daqueles produtos, existentes em terrenos quasi
devolutos, é em pouco tempo constituir um patrimonio regular”. A preocupação eu uma dada forma de inserção econômica torna-se argumento, já que o que 1 ínci está em jogo é a possibilidade d
aa tia ai E e CERs feito com si para o tar-se ao salario que jamais o Gititjnénenit Já que sp : .E pi ed lhador assalariado”, “no Amazonas O ei grant y É e ceare nd nse podee tornar-se rico proprietario”. H Ao mesmo te
“oloc:
a liberdade de escolha dos questão em pi próprios ne tone: Ir para o sul, , onde o desc onhecido o espera, ou ir: para O
norte, onde uma
de conhecimentos já está estabelecida desde à extensa rede nro última seca. . OO t trat A virê : de denúncias amento dispensado aos retirantesSs €é motivo regientes. Hei 66
A MuztiDÃo E A História
Caravanas enormes de pessoas trapilhas, inanidas, entram diariamete nesta
capital, e são recolhidas na celebre hospedaria, a espera que o governo lhes mande atirar á praia de qualquer provincia do sul, onde substituirão os es-
cravos, ou do norte, para serem devorados pelas febres, que ali são
endemicas!!? A “expatriação forçada” é apresentada como um ato de violência cujo prin-
cipal responsável é O Presidente da Província, o conservador Caio Prado — que, além de conservador, é paulista. O Cearense questionava: “Que significa mandar o St. Caio recrutar emigrantes nas vesperas de vapores para o Sul, mandar trancalos no asylo, fazel-os acompanhar, escoltados por soldados, até a praia e forçal-os a embarcar quando a isto se recusam? Que significa tudo isso?7!" O embarque violento e desrespeitoso é denunciado. A presença de 47 praças com alferes, ajudante de ordens da presidência e o comandante do corpo de poli-
cia, segundo o jornal, demonstra o caráter de obrigatoriedade da opção pelo sul, além do interesse direto do governo provincial, Ao mesmo tempo, “quando alguns dos infelizes recusam alistar-se para aquelles portos e imploram passagens para a região amazonica, não tem ingresso no asylo, porque é esta a ordem do
presidente da provincia”! O Cearense, numa série de artigos, denuncia a presença de “duas crises” que assolam devastadoramente a província: a seca e o govemo Caio Prado. O “Bemdito da Secca” já incluía uma quadra relativa ao Presidente. Aguirre cruel Nos rege, que horror!
Do lobo do prado Livrai-nos, senhor!
Mas este tratamento desumano é contestado por outros observadores. Lassance Cunha, por exemplo, engenheiro encarregado da construção do prolongamento da estrada de ferro de Baturité, afirma que “o retirante, antes de embar-
car, era despojado dos andrajos imundos que lhe cobriam a nudez e vestido convenientemente, e a bordo tinha para fiscalizar seu bom tratamento, um empregado da província, para tal fim comissionado, que o acompanhava em toda a via-
gem”. O Constituição trava um intenso debate com o Cearense a respeito desta questão e denuncia também, por sua vez, a presença de “duas crises”: a seca, como calamidade climática, e “o demonio da calunia e da difamação, como cala-
midade moral”! 67
“o
esar denúncias. ap m é objeto decioso. Segundo seu bastante auspi “
.
a
ceio” tado de ac s e u se O Nos completo ecimento”. l e b rdeiro. «é a o t C s e é m e | t LT itario des pit = É Hospedaria cerca de 11.200 Inspetor. o Ca etro la pe m mais lisong a «jrcular moà tempo. mas, apesar desral dos
a
QU)| ao mes
fica do cearense s aim dole paci a ç a r g . o i b menor distu+r Destas pessoas, 4.744 foram embarcadas |
tirantes. €
taneaglomeração.
g
” e 312 mim à dotadas r po s registradas 42 mortes da o di send me . as ís pt Pa om do pr c á n orte ra de embarque.!6 foram para O 3 04 4. ospe dadas à espe e h l su 0 8 o 5 . 1 para o dança da política com relaainda cm març do u m an a st a re c i l s. p dispensa do im te € aio Pra en id es Pr do e A mort , novo Presidente
. O ção aos retirantes
4 antecipa um estratégia de desde a posse. )
s. s à dversário lo pe s da ma to d as desmonte das medi
população
strados a s Soccorm os mini ao s vo ti la re m os iç archia; e trabalho co an Encontrei 05 serv ta le mp co em , cia a nesta pro vin tes serviflagcllada pela secc methodo nestes importan o e m de or a ir uz od tr creio, podeafinco para não só in m elles se tem feito que, co e qu as ez sp de ços, como diminuir as oca do preparo € amanho ep à e -s do an im ox pr A . ços rão baixar de dous ter secca que ei aos chefes dos serviços da en rd O , es çõ ta an pl às a das terras par ão, os retirantes
ente, porem sem interrupç afim de as fossem colocando progressivam terras que devem cultivar, nas o, eçã dir sua sob que conservão ções na epoca propria; fornecendoprepararem para receberem às planta
isados os seus serviços de lhes alimentos até a primeira colheita, € fiscal
receberem generos lavoura, de modo que só possão obter bilhete para o caso de alimentícios os que efectivamente trabalharem nessas terras, salv força maior, ou impossibilidade real para o trabalho.”
ã
di : A opção era clara daí em m diante
mento E a tica de migrações, com o fecha
:
fim da polídos Renas públicos,
a dos retirantes de volta à suas terras, 2 suststentsr ando-os
= 1 ão, nova situaç
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para o trabalho a aco 0 eso nimando-a ao mesmo tempo
do-a e
desgraça desta laboriosa provincia” e O Senador d' Avila o Nai ções expedidas algumas sema nas j após sã em instru a posse, “parar com todas as obras em andamento por c
públicos” vs
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convencido de que “nenhuma d
onta da verba de soccorros
send lo construida tenestá obras estas previ ento orçam estudo é um por base umo Ga , sendo, pelo »
todas iniciadas e dirigidas, em su a 1amente organisado
'
construção, exclusivamente pelo
,
68
A Muricão E A História
richo, pelo arbitrio soberano € absoluto dos encarregados de sua construç ão”.
pai grande preocupação com a racionalidade no planejamento € execução das
assistenciais passou a fazer parte do vocabulário dos socorros públicos
pe
em tempo de seca e o controle sobre as despesas torna-se questão central na esta organização destas medidas. Por outro lado, outras preocupações motivavam atitude.
e e
um
Além disso, essas obras constituem grandes agglomerações de povo em alguns pontos da provincia, as quaes eu avalio em mais de 140 mil pessoas, que fóra das terras de lavoura, deixão passar o tempo de as preparar para plantação, de modo que chegando o tempo das chuvas, essa grande parte da população nada plantará, e nada poderá colher para sua manutenção durante O anno seguinte; e, então, ou continuará a pezar sobre os cofres publicos, ou se constituirá elemento permanente de perturbação da
———
ordem publica.
am
Uma massa de pobres aproximando-se lentamente dos centros de poder vai progressivamente atemorizando as autoridades provinciais novamente, estimu-
lando o aparecimento de fregientes discursos de defesa da ordem. Os acontecimentos de 1887-1880 retornam à memória como lições a serem aprendidas ao lidar com a multidão de retirantes. A política conservadora de Caio Prado contribuía, segundo o novo governo, para a organização e fortalecimento desta nova entidade — a multidão —, que passa a fazer parte da cena política e social, embora
er ER
tes
não seja reconhecida como um agente político. Ao mesmo tempo, como não podia deixar de ser, a preocupação política se combina com motivações de ordem moral para o estabelecimento de um novo
padrão de relacionamento com os retirantes. Mesmo não os reconhecendo propriamente como sujeitos, o Presidente os situa como agentes da desordem, que ameaçam a moralidade e a lei estabelecidas pela sociedade dita “civilizada”. Os pobres e sua vida promíscua, mais uma vez, aparecem como foco de doenças,
crimes e vícios do corpo e da alma. Aquilo que é uma condição da pobreza apa-
TARA TRTSA 2 E,
RI
rece como condição intrínseca dos homens pobres.
Finalmente, essas grandes agglomerações de homens, mulheres e crianças, vivendo em commum, em posição miseravel, têm ocasionado uma depressão moral verdadeiramente assustadora em grande parte da população da provincia. O vício da embriaguez, a devassidão de costumes, a prostituição, o jogo e todos os vícios, se desenvolvem espantosamente nessas
agglomerações de povo, contaminando-as.!º 69
Castro NEVES FREDERICO DE
enses. As denúncia, ar ce es it el às e br so ra de 1877 pai pa. Novamente O espectro lação pobre — € que se pro pu po a te me aco e qu l o mora de um comprometiment nte da população urbana me à am rn e to p Fe às epidemias r. ga rapidamente, como elcitos da fome no Org Estudos científicos sobre Os
ânimes em afi une ni o sãoi
i db sol acen sopomeita fticcdE Eeane Eei mar que “a exaltação do calor € da acção ões provenien s ageravam pelas modificaç
que também se
p a Ituição irá com o crime € Re o çã pa cu eo pr iva ess obs mia excessiva”. A irantes que tas de relacionamento com Os ret
figurar mais de uma vez nas propos
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pos de seca. : em tem de éa
uma perturbação da ordem é confirmada
Prado, os conflitos se davam pelos acontecimentos. Se. antes da morte de Caio
embarque dos retirantes, como a nos próprios locais organizados para recepção e
Senador d" Avila a rua Hospedaria, os locais de obras € O porto, no governo do
a multidão e as forças passou a ser o palco de novas cenas de confronto entre jornais. policiais. sendo registradas pontualmente pelos Com a fim das obras e o fechamento da hospedaria,
numerosa multidão de famintos, que avulta de dia em dia, agglomera-se andrajosa e mendiga em torno do palacio do governo ou dispersa-se pelos suburbios. azylando-se á sombra das arvores, improvisando ranchos miseraveis, nos terrenos devolutos, mendigando ás portas das casas comerciais e particulares.
Uma multidão heterogênea, formada de “turmas de operarios dispensados de varias obras em execução”,
sc
“caravanas de retirantes que se destinavam á Hospeda-
ria de Emigração” e os que
affluem de toda parte, não só necessitados como vadios, da população fixa E adventicia, arrastados pela seducção dos soccorros directos, distribuidos
argamente, a pretexto da internação das populações que o governo enten-
deu opportuno nesta ephoca, em pleno ri
balhos de lavoura.?!
gor da secca, empregal-as em tra-
Uma forma de relacionamento baseada na of, de trabalho, mesmo desord enado e infrutífero, é,e assim, substituída pela erta distribuição de ade
de plantio.
que
A Muztidão E A História
certamente incomodava uma grande parte da população urbana, fato que se reflepe nas críticas am ARLS de oposição. Um contato, por outro lado, que não tarda em
se tornar difícil e conflituoso.
Em Pacatuba, no dia 1º de setembro de 1889, “houve grossa pancadaria nos
infelizes retirantes que, agglomerados á porta do armazem, esperavam que lhes gassem às rações e desenganados tentaram apoderar-se dos viveres”. Dois dias depois, àtentativa foi melhor sucedida, quando os “pobres trabalhadores famin-
tos que O Sr. Avila tenta matar á fome, deixando-se arrastar pelo instincto da propria conservação, penetraram hoje pelas 8 horas da manhã no armazem do deposito de viveres, á estrada de Mecejana, conseguindo retirar alguns volumes”;
a repressão não demorou, €, perseguidos, alguns foram presos e, “com a mais feia rversidade, espaldeirados brutalmente”, No dia seguinte, “uma multidão de cerca de 400 pessoas, homens e mulheres, atacou o deposito de viveres no Pagehú”,
mas. desta vez, “não houve pancadaria”. No dia 6, “um grupo de famintos, mulheres pela maior parte, atacou tres carroças que conduziam viveres da intendencia para à tal casa de soccorros da Jacarecanga e tomou vinte e tantas saccas de generos diversos”. Em Baturité, área serrana próxima à capital, “homens, mulheres e crianças, em numero avultado, á porta do armazem de soccorros, ameaçam arrombar as portas” e o correspondente afirma que “qualquer demora nas providencias produzirá inevitaveis desordens”. A segiiência de conflitos leva as autoridades a reverem sua posições e, em 20 de setembro, o “vice-presidente da provincia restabeleceu o regimen de trabalho, como meio de prestar soccorros ás
victimas da secca”.22 No entanto, alguns episódios ainda permanecem assombrando as elites locais com o perigo da desagregação social. Em Barbalha, zona sul da província, “um grupo de 500 pessoas atacou o armazem de generos do governo e conduziu tudo que alli havia” e o jornal afirma
que “o povo está amotinado e receia-se desordens”. Os armazéns de Burity e Milagres foram igualmente atacados e saqueados. No Crato, “um grupo de homens atacou o armazem de soccorros á cargo da comissão nomeada pelo vicepresidente arrebentando á pedradas as portas e, engrossado este grupo por cerca de duas mil pessoas que affluiam de diversos lados, conduziu tudo o que havia no armazem”, Se aqui não houve reação policial, em Burity o delegado prendeu um certo Canuto, que, “reunido a um grupo de desordeiros”, teria sido responsabilizado pelo ataque; esta prisão detonou um grande tiroteio na cidade, que resultou
em mortos e feridos.? Uma certa aprendizagem, a respeito do momento exato de realizar a pressão direta, ia acontecendo entre os retirantes.
71
Neves Freverico DE CASTRO
o, mudariam as cenas” em que Se viam Envolvid Em 1900. de fato. “não seca. O novo Presidente do Esq com à cheg a da de uma nova
homens do campo. cui “o do. logo ao desembarcar na capital, se deparou de varios pontos munho da infeliz situação dos retirantes
a
E VIVO teste. é E erior do Estado,
em completo Ra MBO, EXPOstos ag, agglomerados na praia. sob as arvores. “o aspecto da nudez, jo a sua atenção chamando abrasador”. sol raios de um = 24 dos attribulava . fome, da miseria que à to € olocava novamente os ar. s pequena lavoura pela seca A desestruturação da
proprietários RA estrada, em busca rendatários e. posteriormente. os pequenos dos “socorros”, sujeitos a todas as angustiantes tribulações do trajeto pára à do interior do Estado para a capital ou outra cidade do litoral. “A emigração pou.
Rodolpho Theophilo, e, em Fortaleza augmentava todos Os dias”, comentou or”.
nando cada vez pei co tempo. “a situação do Ceará ia se tor
ular As ruas ocupadas por uma multidão de pedintes andrajosos, a peramb
a. pelas casas e praças. em busca de ajuda, de esmolas e alimentos, davam a sens representantes polj. ção de uma cidade ocupada: para a população urbana € seus
mpletamente sitia. ticos ou seus intelectuais. restava à idéia de que estavam “co
ilhos”. dos por uma columna de famintos trap
Como sempre, a caridade individual ou particular procurou dar conta dessa
casas, população de famintos. com esmolas e distribuição de alimentos, seja nas
de conforme apareciam os pedintes. seja em situações organizadas por grupos senhoras ou associações beneficentes. O volume das migrações, no entanto, em
meados do último ano do século XIX já superava a capacidade da população
urbana em atender. com socorros, às necessidades urgentes dos retirantes sem a
ajuda, apoio e organização do Estado. Dito de outra forma, isso significava que “a caridade particular por maior que fosse já não podia alimentar a população esfomeada que vagava pelas ruas da capital de manhã á noite”. Por outro lado, a desordem provocada pela pressão que a chegada desta massa “adventícia” exerce sobre os equipamentos urbanos gera a percepção de uma desagregação da sociabilidade, ameaçada por hábitos, procedimentos e necessi-
dades incompatíveis com os ditames da modernidade. Sistemas de esgotos, água potável. iluminação, arruamento, controle de doenças, vestimentas, moralidade de comportamentos, locais de encontros e lazer, tratamento interpessoal, todos
esses elementos se viam transgredidos pela presença dos retirantes, que, além de esfomeados, eram analfabetos e desconheciam essa rede de relações que confor-
ma a cidade e delimita a experiência urbana, Neste sentido é que pode ser com72
À Muzridão E A História ndida à afirmação de que “Fortaleza não parec ia uma cidade civilizada €
C
pristã, parecia uma terra de barbaros”38 .
O barbarismo, para O ilustrado farmacêutico, é a negação dos hábitos da civilização duramente construídos ao longo de uma vivência urbana considerá-
vel; hábitos que se espanta num conjunto de condicionamentos adaptados à
situação de uma vida equilibrada e, principalmente. sob o controle moral e político de uma elite consciente de seu papel de portadora do progresso. O novo Presidente procura encontrar uma “base estavel de um plano de
assistencia publica, organisado de modo a produzir salutares efeitos, medidas definitivas no presente é no futuro, além de outra medida. de expediente provisorio,
enquanto aquellas não fossem decretadas”. Sem outras alternativas à vista, O plano não inova: como medidas definitivas, “a construção de açudes e prolongamento das estradas de ferro, em trafego no Estado”; como medida provisória, “a emigração da população adventicia que, accumulada na capital, desassistida de todo regimen hygienico, no auge da miseria, vivendo ao relento, era um perigo
para à saude publica, que a mais vulgar prudencia aconselha conjurar”. A tentativa de manter a população de retirantes longe dos limites das cidades mais importantes, especialmente a capital do Estado, torna-se cada vez mais evi-
dente agora. As obras públicas a serem implementadas teriam uma função não só
de equipar o Estado de um sistema de armazenamento dágua capaz de fazer frente à irregularidade de chuvas, mas principalmente de manter o homem do campo
no campo, longe das cidades onde se torna um perigo para a salubridade social.
Se estas obras não fossem suficientes, e mesmo com elas a capital se enchesse de “bárbaros”, a solução é a transferência destes retirantes para o Pará e o Amazonas, “cujos Governadores, revelando sua sympathica solidariedade com o infortunio do Ceará, buscavam acolher seus filhos, estendendo-lhes mão protectora e amiga, no seio dos seus Estados”. A migração para a região amazônica é preferível, segundo ele, do que o desconhecido sul do País, pois, entre outros motivos, “aos cearenses não se afigura um exilio a emigração para esses dous Estados do Norte, ligados ao nosso por estreitas ligações commerciaes e outras ordens de interesses, há muito estabelecidas e que lhes facilitam promto regresso á terra
natal”.%º A questão levantada aqui tem a ver com a debandada de braços, fregientemente denunciada pela oposição em 1889, despovoando o interior e trazendo enormes prejuízos para os produtores, que, ao passar a seca, procuram
retomar suas atividades normais.
“Atividades normais”, aliás, frequentemente idealizadas pelas autoridades ou pelos jornalistas como resultado de uma terra fecunda que gera riquezas incal-
culáveis. O período de chuvas, ao contrário do período de seca — apresentado 73
FreDERICO DE CASTRO Neves
ura e da bonança, Um como tempo trágico —, É mostrado como à época da Fart
bem este conjunto de artigo de jornal, assinado por Mario Netto, ilustra muito ele, o Ceará é um pomar encanta, ndo segu nos. inver Os nte Dura representações.
e vegetal tem a pajança exhubcrante do. um encantado viveiro, onde a vida animal
“são Cellesros dos tropicos”. “Os vastos sertões”, ao contrário dos tempos de - seca, nização dá Orga À es culaveis riquezas agricolas € pent
de prodigiosas € incal que vida social aproxima-se da natureza à um tal ponto
a moeda se desvalorisa,
za torna-se acessível a volta-se ao regimen primitivo das permutas”, e a rique
todos: “não há pobre de Deus que não possua um imundo seu, dentro do qual possa viver sem dependencias”. As desigualdades sociais se diluem na abundãn.
cia, “porque alli a terra, à mãe fecunda e amorosa, distribue Os thesouros de sey sertaneja cearense é de um seio igualmente por todos Os filhos”: “a vida o de proletarios, que communismo perfeito”! Os agricultores formam uma “trib
as, por conta propria e exploram as parcelas de terrenos que lhes são arrendad deiros”. Esta independentementc da retribuição dos serviços prestados aos fazen
se aproxima visão idílica se transforma com a chegada da seca. Com ela — que
“a Fome “com a hesitação de uma ladra”. “como um espectro sinistro” — vem
dos sinistra que bate às portas dos pobres” e “a miscria que despoja os cabedaes ricos”. Tudo se modifica e “por toda a parte e em todas as direcções - o mesmo deserto e o mesmo cemiterio silencioso”. O que era um paraíso se torna um inferno. de onde “os animais já foram tangidos para as pastagens verdes do Piauhy ou transportados aos mercados do Pará” e “os homens partiram para os Estados
visinhos, emigraram para o Norte € para o Sul, agglomeraram-se na capital, fa-
mintos. esqueleticos e immundos, dizimados pela fome, pelas febres e pelas fadigas das viagens infindas”. Ao fim da seca, “os poucos q" sobrevivem á selecção
implacavel não receberam como um escarmento o indizivel martirio” e voltarão ao torrão natal “com a antiga confiança e a soffreguidão da saudade, perdoando e esquecendo todas as injurias da sorte e todas as torturas do passado”. Seu destino é, portanto, comparado ao destino de Sísifo.” No mundo real, as medidas empregadas na assistência social, contudo, como
reconhecia o próprio Presidente do Estado, não chegavam a satisfazer sequer a 8% da população necessitada. Segundo seus cálculos, um total de 311.674 pessoas, 1/3 da população do Ceará, estavam “reduzidas á penuria e nas condições de ser soccorridas”; porém, só 24.112 foram “amparadas pelos soccorros a cargo do
governo federal”, já que as medidas de assistência a cargo do governo estadual limiitavam-se à distribuição de alimentos. De fato, o “cumprimento do dispositivo st - ari, 5º da Constituição de 1891 — “que impunha ao Executivo à obrigação de providenciar adequadamente” os socorros em casos de emergência
74
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A Muiripão E A História
era normalmente protelado ao máximo € as verbas chegavam ao Estado com giraso. depois de um Branhe endividamento do governo estadual. Em 1900, so mente em outubro foi sancionada a lei que garantia 10 mil contos de réis “para
socorrer às populações do norte, flageladas pela sêca”, depois que mais de 10 mil retirantes já se encontravam em Fortaleza - que contava com uma população de cerca de 50 mil habitantes — e cerca de 290,000 sofriam as necessidades decor-
rentes da estiagem. Esta demora, ainda segundo o Dr, Pedro Borges, foi responsável pelos conflitos que se seguiram envolvendo retirantes e as forças policiais que acompanhavam os carregamentos de alimentos a serem distribuídos no interior. A expansão das estradas de ferro € seu uso para o transporte de víveres tornavam as estações de trem os locais preferidos para aglomerações de retirantes insatisfeitos e famintos, à espera da passagem de algum trem de mantimentos. Relata o Presidente que “na estação de Massapê, da ferrovia de Sobral, cêrca de dous mil famintos, reunidos na plata-forma e circumvisinhanças da estação, aguardavam a passagem do trem procedente de Camocim, carregado de viveres, para o assaltarem, quando por ali passasse”. À expansão do telégrafo, por outro lado, aumentou as possibilidades de defesa contra os ataques da multidão: “o chefe do trem, avisado a tempo, não parou na estação, evitando, d'esse modo, o assalto planejado”.
Essas pouco veementes exortações ao governo federal — que se tornaram comuns em tempos de seca — não evitaram que, ao primeiro sinal de chuvas. no
início de 1901, as obras fossem imediatamente suspensas. Somente do açude de
Quixadá — obra iniciada em 1877 e terminada apenas em 1906 — foram dispensados mil operários. Atenuando esta situação, um esforço conjunto formado por
“alguns Estados, por associações de beneficencia, por donativos promovidos e angariados por cidadãos benemeritos, em honra ao sublime sentimento da fraternidade social e da grande lei historica da solidariedade humana”, assim como da “Associação Comercial de Fortaleza e de algumas pessoas que se julgavam
influentes”, veio socorrer as iniciativas estaduais com créditos e gêneros. Ao final, a própria “caridade particular” foi a grande tônica do relacionamento com os retirantes na seca de 1900, reforçando os termos da relação paternalista “submissão versus proteção”; e a tendência das experiências acumuladas pelos agricultores que se retiram de suas terras em tempos de escassez con-
tinua a se orientar para a transformação da cidade — e especialmente Fortaleza — no principal cenário da seca. Isso não impediu, contudo, o “esgotamento” deste sentimento cristão em função de sua abusiva “utilização” por retirantes e habitantes de Fortaleza. A
chegada das chuvas apaga a principal chama que motiva a caridade: a necessida-
=
75
Neves FreDERICO DE CASTRO
=
vai
psi
decorrente da seca. Agora, ox
de - e todo o seu “cortejo” de miséria é fome
espaço urbano, permi “adventícios” deveriam deixar o amentos. ui ç .
o . Las Sê usufruir, sem constrangimentos, de ms
Rodolpho Theophilo. mais uma *
cá
a população possa
pré
4 mudança na estrutura de
dos
de 1901, segundo cle, “o inver.
é. consequentemente, “a pie. sentimentos com relação ao retirante. ip ai fa + , como em começo da à caridade publ (ão grande uco poiido um poue avi arrefec no havia
iá não era i é ieitipondecesonibimr a ais dade que nos inspirava o retirante ) E balho na terra, bia: tempo de traba é va *hu naiEé mec « de o ecca”. Temp “Davamos a é tempo de não aceitar à ociosidade:e à mendi igsr , ase ; ênf or mai m co a ci ân ic nd me i e co ntEinuass obavamos que o pedint pr ex o mp te o sm me ao esmola e tilisava todo o Cear+ á: fer o rn ve in . m ” bo o tã s portas quando
pela
Era momento de devolver o retirante ao Sen espaço
pi
a
FO;
no fia em devia ser estimulado a deixar à capital. A preocupação atividades agecolas puberam, festava-se nitidamente neste momento em que as e PAIS sem ter ao finalmente, ser retomadas: “Elles [os retirantes] as pars em ficar por mais ME menos o pão para a jornada; mas também não podiam a
deixando passar a epocha de semear Fortaleza, na mais vergonhosa ociosidade, terra”? para fazer retornar ao interior Mesmo assim, apesar de todos Os esforços
em Fortaleza uma população essa massa de retirantes, “a seca de 1900 deixou
da periferia adventícia de três a quatro mil pessoas, facilitando a formação favelada”.3º
HI
Em 1915, uma nova seca acomete a população sertaneja, assumindo proporções assustadoras que faziam lembrar
1877. Repetiam-se as mesmas cenas, os
mesmos personagens e o mesmo enredo, mas o painel já não era mais o mesmo, especialmente na capital.
Fortaleza havia passado, nestes primeiros anos do século XX, por um pro-
cesso de transformações que aprofundava rapidamente as tendências de “aformoseamento” já verificadas a partir de 1870, com o delineamento urbano defini-
do por Adolfo Herbster. Após 1900 — ou, mais especificamente, 1896 —, contudo,
uma série de melhoramentos havia dotado a capital de novas ruas e calçamentos, iluminação moderna, um sistema de transporte, enfim toda uma sorte de equipa-
mentos urbanos, inclusive teatros e cinemas, ao lado de instituições do saber, como a Academia Cearense e o Instituto Histórico do Ceará, que a podiam situar
no rumo da modernidade, como pretendiam seus dirigentes. São momentos 76
A
MuznDão
ccantes desse foi 4 prPe praças por (1902-3)
EA
História
a do Mercado de Ferro (1897), das princirequanto 0" Teatro José de Alencar (1910).
gi
um lado, estes investimentos podem ser entendidos, de uma forma geral,
o um “processo que gui
AS
q
a cidade e disciplinar seus habitan-
po ergência de novos grupos dominantes” e
rato
O
à diversificação sauia
Fara
pi
amplo desenvolvimento das atividades
comerciais e prdusuriais que experimentava a cidade. No pólo oposto, a presença
umá massa de mão-de-obra desqualificada e circulante preocupava as autori-
des, fazendo-as escolherem as estratégias urbanas mais adequadas à vigilância
e ao controle incial, PONTO asconsirugãa:ds largas avenidas e praças, sempre bem cuidadas, & à tora
de fazer vigorar o rigoroso Código do Posturas de 1893,
que permanecia como letra morta. As casas € locais de lazer popular também
foram devidamente esquadrinhados pelo “poder disciplinar” local, buscando eliminar os focos das doenças do corpo e do espírito, além de combater a prostituiçãoea criminalidade, € Foi a partir dos governos seguintes, de 1896 a 1930, que
realmente se tornaram mais recorrentes os investimentos de normalização ur-
bano-social em Fortaleza”. Curiosamente, é o início deste período marcado também pela maior centralização e repressão política, com o controle oligárquico exercido despoticamente pelo Dr. Antonio Pinto Nogueira Accioly, o qual, direta ou indiretamente, esteve no comando da máquina estatal cearense de 1892 a 1912. Este oligarca — genro do Senador Pompeu, homem de grande influência
política na Província durante o Império — iniciou sua carreira política ainda sob a monarquia, como deputado e senador; uma carreira que a Proclamação da República não abortou, já que ele não só a ela aderiu imediatamente, como ainda assumiu o controle do republicanismo local, fundando o Partido Republi-
cano Federalista.?! Mas, por outro lado, esse conjunto de saberes e práticas não se organizou “racionalmente” a partir de uma necessidade percebida pelas elites locais e da tentativa de sua resolução. Tinha como contraponto a permanente ameaça ao progresso representada pelas “visitas” periódicas de retirantes à capital, trazendo
consigo um arsenal cultural extremamente diferente daquele que as ilustradas autoridades pretendiam elaborar para os cearenses. Assim, a teoria do “controle social” necessita ser devidamente relativizada
em função das ações — planejadas e racionais ou não — dos setores populares que, Por seu turno, mantinham uma relação distinta com a vida urbana. As medidas de “disciplinamento” urbano, levadas à efeito em Fortaleza nos Primeiros anos do século XX, eram, de certa forma, produto da presença ostensi-
Ya destes setores na cidade, partícipes mas nem sempre cúmplices deste progra77 ow
es FREDERICO DE CASTRO Nev
ma
de rem
yde E
amen
toe
disc isciip lina T
e ” poder
O s o E . 7 ç ateO! Emos cament S
,
na
e agia sobr
não
verdade,
a
respondia
mas ras a”, a uma massa inerme o us bre uma “tábul ' elites locais.E as om vei »iá a s É ou desejávei eis láv tro con pre sem nem situações Asa by as em rd ha somente a E Fortaleza, nestes anos, náão tin Í ento S vi Doisi acontecim retirantes famintos das secas.
cs i ões en furecidas. te o terror urbano ante as : multid ão popular eiç ioly resulta de uma insurr Acc a qui gar oli da da que a Em 1912, em que. durante três dias. “a Cidade se bra OTRA sm E no ceia tiroteios, emboscadas. trincheiras € barricadas eae O movime ; “calvacionismo” desencadeado pelo pesiidério
to oposicionista consegue um amplo apoio da popu E anos de controle da máquina estatal pelo Exmos
E
cin
a
dee or e
quis dita
aca na os
da
os
Inesperadamente. porém. a ira da multidão volta-se tam
da modernidade. com a consequente depredação de praças, POBes
aa
PR
ca pode. lojas. fábricas e bondes. Nem mesmo 08 mais radicais inimigos do oligar
riam imaginar ou apoiar estas atitudes tão pouco civilizadas. RUMO Theophilo,
um destes, brada inconformado: “nada respeitaram Os Hásuaros : qua A violência popular como um “crime sem punição ironia 4 A pEaÇAs estria “quando nada mais faltava para saciar a sua loucura”, se transformou em ruÍ-
nas” depois que “a loucura do populacho havia passado por ali na sua faina de
destruição”. Note-se que Rodolpho Theophilo utiliza deliberadamente a palavra bárbaro para designar toda e qualquer manifestação de agressividade contrária à organização racional da vida social e urbana, identificada à noção de civili-
zação. Assim. tanto Os retirantes que não possuem noções de higiene e sucumbem à “imoralidade” em decorrência da miséria, quanto os revoltosos que atacam os equipamentos urbanos mais modernos, assim como quaisquer outros que ameacem a ordem civilizada, são bárbaros. O inusitado dessas atitudes, segundo Sebastião Ponte, faz com que “não se-
ria descabido indagar se aquelas investidas furiosas sobre alguns dos signos da modernização urbana não significaram, também, uma forma, mesmo que difusa, de protesto contra uma nova ordem urbana que se instaurava”, o que o leva à
indagar a respeito das noções de “ordem” e “desordem” como estruturadoras da
realidade social.
Aquilo que, do ponto de vista das autoridades e das elites, parece “ordem” €
Faciónalidade, do ponto de vista das camadas populares pode parecer “desor-
dem”, uma desestruturação da “ordem das ruas”, que, por sua vez, parece “desordem das ruas” para as autoridades, levando-nos a concluir que “a perspectiva ii
do que é “ordem” tas e sida *desordem' se dá de acordo com o lugar social dos agentes em 78
A MuiniDão E À História
gestão e que ambas encontram-se intrinsecamente ligadas e dessa ligação dende a sua manutenção € reprodução”.M
jndependentemente, portanto, dos significados imaginários conferidos pela pulação às reformas em curso em Fortaleza, os três dias de insurreição causaram pânico € medo entre os moradores mais abastados das áreas centrais da cidaemp oro APIS oag: pes
Estado não conseguiram resolver: os conflitos políticos estabelecidos entre as oli-
mis
A
mais intensa.
O UDDI pes
de, onde 08 investimentos Em equipamentos urbanos estavam se dando de forma Mas a deposição de Accioly e a posse de Franco Rabelo na Presidência do garquias locais. Dois anos depois, em 1914, outros desentendimentos entre as rincipais lideranças estaduais levaram a uma nova guerra civil, denominada pela
historiografia de “Sedição de Juazeiro”, quando “da região do Cariri veio um exército de sertanejos, comandados por coronéis acciolistas e abençoados pelo
PS
e
padre Cícero, para depor pela forças das armas o novo governo”. Se este exército não chegou a entrar na capital, em função de um acordo de última hora, contudo, trouxe O pânico à sua população, que viu as cidades vizinhas — como
Pacatuba, Baturité e Maranguape — caírem diante dos “cabras” e serem impiedo-
que não puderam conduzir queimaram”. A “horda de bárbaros protegidos pelo
governo do Marechal Hermes” provocou uma “onda exterminadora”, que “atemorizou de tal modo a população dos lugares em que passou, que esta abandonou as casas € fugiu aterrada, deixando à discrição dos bandidos os seus haveres”. Para Rodolpho Theophilo, este episódio, “tristíssima página da história política
do Brasil”, foi um dos fatores de agravamento da seca de 1915, já que “era tempo de se plantarem os roçados, de se fazerem as sementeiras”, mas que “tudo ficou arrasado, destruído, como se um incêndio tivesse lavrado naquelas paragens, excetuando as casas dos amigos dos sediciosos”.
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diversos pontos do Estado”. Chamadas “solidarísticas”, tais sociedades — “uma
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Rodolpho Theophilo anota ainda outros fatores a agravar a crise de 1915. Em primeiro lugar, “as sociedades mutuárias fundadas em Fortaleza e depois em armadilha na qual caíram os tolos e os de má fé” e que “raríssimos foram os que
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samente saqueadas e parcialmente destruídas; “desde o Crato até Fortaleza, em uma extensão de mais de cem léguas, tudo foi saqueado, os seleiros roubados, e o
escaparam ao contágio do vício” — arruinaram a vida financeira do Estado. Em segundo lugar, “a guerra da Europa” traz importantes complicações econômicas,
alterando os preços dos principais produtos cearenses de exportação, especialmente o algodão. Este último fato iria desagradar profundamente o farmacêutico, pois “não era o jagunço do Padre Cícero, bronco e matador, de trabuco ao ombro € facho na mão, que vinha retrogradar muitos séculos a civilização, mas o ho79
Frepenco DE Castro Neves
desilusão para q, mem culto da Europa”. “Essa guerra”, segundo ele, “foi uma no homem OS Seus maus ins, que acreditam que a cultura d o espírito destrór |
tos” e o leva a conclusões pessimistas: “para mim, a besta humana é a mesm,
, com a dife. das primeiras idades da terra, quando andava nua e ecra antropótaga” é rença de que “o homem modemo mata com mais arte, rouba com mais astúcia
|
corrompe com maior elegância”.
|
A produção de um saber sobre a cidade. que organiza as experiências de
ui, Portanto, “controle social” e de disciplinarização do espaço urhano, se constit “bárbaros” re. em contraste é em confronto com estas invasões recorrentes dos
voltados ou famintos, ou ambos, acontecendo em contextos específicos. Assim,
cidade e os uma nova estrutura de sentimentos se delincia nas relações entre a
“bárharos”. prenunciando intervenções mais radicais e excludentes. Quanto aos agricultores e sua trajetória em direção às cidades, a repetição do
mesmo “cortejo de misérias”, de que a composição do personagem Chico Bento, do romance O Quinze. de Rachel de Queiroz, é emblemático. O “vaqueiro das Aroeiras” se vê obrigado a soltar o gado à própria sorte, já que. para os proprietá.
rios da fazenda, “é melhor sofrer logo o prejuízo do que andar gastando dinheiro à toa em rama e caroço. pra não ter resultado”. Quanto a ele, “pode tomar um
rumo” ou, se quiser, ficar nas Aroeiras, “mas sem serviço na fazenda”. Sem saí. da. sem salário, sem trabalho, as terras esgotadas, decide vender sua parte na
“quarta” — “um boiote. uma vaca solteira e um garrote”, além da roupa de vaqueiro. “toda de couro de capociro” — e parte para o longo trajeto da migração: “agora, ao Chico Bento, como último recurso, só restava arribar”. Procura uma passa-
gem de trem para Fortaleza, mas não consegue: “porque não vai por terra?”,
pergunta o “homem das passagens”, “agora é que retirante tem esses luxos... no 77 não teve trem para nenhum”. A distribuição gratuita das passagens também logo foi incorporada ao sistema de apadrinhamento que caracteriza quase todas as relações sociais no sertão. “O governo ajuda”, um amigo consola, mas “o
preposto é que é um ratuíno”. “Cambada ladrona”, desabafa o vaqueiro.” De fato. a construção do prolongamento das estradas de ferro de Baturité e Sobral facilitara em muito o trajeto dos retirantes rumo às cidades litorâneas.
Estas obras, realizadas com a mão-de-obra dos próprios retirantes, objetivava reduzir o sofrimento dos que saíam de suas localidades em busca de abrigo €
proteção, além de facilitar o retorno desses mesmos refugiados de volta ao intenor de onde partiram — sem falar, é claro, dos objetivos econômicos. Ao mesmo
tempo, tornavam a viagem muito mais acessível e, por conseguinte, fazia com que os agricultores largassem suas terras mais cedo ante a ameaça de seca, já que
agora inexistia o temor da própria viagem, antes tão presente na vida sertaneja.
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trabalho para os retirantes em locais próximos às suas moradias. para que não
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precisassem deslocar-se à capital em busca de socorros: no entanto, findou por permitir o abandono das terras antes mesmo do período tradicionalmente estabelecido para o decretação da seca: 19 de março, dia de São José. Isso fez com que
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devem destinar os serviços da seca, retirando-os da cidade, “onde se achavam, esmolando”.** Aqui, o farmacêutico apresenta uma versão moralizada arespeito do fluxo migratório em tempos de seca. Uma rígida moral baseada na ética do trabalho, que define os que são preguiçosos, e abandonam a produção assim que se avizinha uma crise, € os que são trabalhadores, e resistem bravamente às intempéries. O artigo do jornal Constituição, de 8 de outubro de 1889, ao contrário,
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apresenta uma versão baseada na posse da terra e dos instrumentos de trabalho:
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o flagelo”. Ao mesmo tempo, ele percehe que é para os “preguiçosos” que se
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aos primeiros sinais de seca abandona os lares é ruim. saindo não faz falta, é vagabunda por instinto € preguiçosa por índole”; ao contrário, “o sertanejo trabalhador fica em sua casa, sofrendo as maiores privações, alimentado-se da mucunã e de outras plantas bravas, esperando à custa dos maiores sacrifícios que termine
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alguns intelectuais, como Rodolpho Theophilo, concluíssem que a “gente que
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Foram obras reivindicadas durante todas as seças anteriores como altemativa de
os que deixam mais cedo suas terras são os que menos possuem e nada têm por que lutar; os que resistem mais algum tempo são os que possuem alguma coisa €
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nam seus equipamentos e — por que não dizer? — a paciência de seus habitantes. A onda de migrações atinge todo o Estado. Além de Fortaleza e das cidades do litoral, era “na região das duas ferrovias, nas obras de açudagem e nas
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estradas de rodagem, mandadas executar pelo Governo Federal, onde se davam maiores agglomerações de pessoas esqueleticas, esfarrapadas, sujas, sem a minima hygiene, mal encontrando agua para beberem”, segundo o próprio Pre-
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cidade, como também de tentar esvaziar a cidade do excesso de retirantes que pressio-
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exposição pública da miséria. As obras, assim, têm a função não só de tentar evitar a chegada dos retirantes à
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cidade e os mecanismos de socorros já sobrecarregados, desde o bilhete de passagem de trem até a vaga em alguma obra pública. Encontram, também, a popu-
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piores condições de saúde, pois só empreendem a viagem rumo ao litoral quando todos os recursos locais já se esgotaram. Além disso, encontravam a estrada, a
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ou pequenos proprietários, segundo o Constituição — que chegam à cidade em
lação urbana já saturada com a mendicância, a prostituição e com a permanente
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são, a conclusão é a mesma: são os últimos — trabalhadores, segundo Theophilo,
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têm algo, mesmo que pouco, a perder. De qualquer maneira, seja qual for a ver-
Frederico DE CASTRO Neves
ira, OO trajeto teve que dê : uer mancira, 'amíliia . de qualq j famíl sua e Bento Chico Para seen e “tirado” a pé. “feito animal”, como tradicionalment morre no pelos mais velhos. m s ntada enfre já es uldad dific as todas as as di u de Quixadá até idi Acarape. quand a o Du unu Ando ões. icaç expl sem some outro o caminho, Ccido, cg : em sua ana um encontro inesperado veio auxiliá-lo + O COMpadre cidade — “uma aim um “compadre”, era agora delegado da
inhamento que Luís Bezerra” - é, somente assim, através da mesma rede de apadr
Fortaleza, o havia condenado à caminhada, conseguiu passagens de EA para realidade surpreendente, além de alimentos € roupas. Chegando à cidade, uma como, acharam-se is, ao chegarem à “Estação do Matadouro”, “sem saber
s da praça de areia, « ii pela onda que descia, e se viram levados atravé
andaram à pé por um calçamento pedregoso. € foram Jogados
a um curral de
o, acendendo fogo”. arame onde uma infinidade de gente se mexia, falando, gritand
r o estã. Arranjaram-se como puderam. conseguiram alguma farinha para engana no Campo de mago, e somente no dia seguinte se deram conta de que estavam
se Concentração do Alagadiço. Chico Bento, sem entender muito bem o que desenrolava a sua volta, resignava-se amargurado: “posso muito bem morrer aqui;
“ah!” 39 mas pelo menos não morro sozinho”.
Este era um investimento de novo tipo em Fortaleza, reorganizando as relações entre as autoridades e a população urbana, de um lado, e os retirantes, de outro. Um tipo de investimento mais intervencionista e excludente, na medida
em que explicita as tensas relações da cidade com seus “invasores” famintos e andrajosos. Nesta Capital os flagellados foram agasalhados, a principio, no Passeio
Publico, emquanto o numero não excedeu de tres mil, mas para logo subiu de uma maneira tão rapida que foi preciso retiral-os e localizal-os em um vasto terreno no Alagadiço, cercado, bem arborizado, que tomou o nome de Campo de Concentração, em que foram feitas ligeiras installações, inclusive de luz electrica que facilitava a fiscalização á noite. Isso deu logar a que
não fossem registrados actos de desrespeito ao pudor.“
Rodolpho Theophilo estranha ainda a mudança de nomes.
Os retirantes estiveram no Passeio Público até se preparar no Alagadiço o
futuro “abarracamento”, o qual tomou, não sei por quê, nome de “campo de
concentração” e o povo batizou de “curral”. O retirante perdeu o seu antigo
€ expressivo nome e começou a chamar-se “flag elado”. Coisas do tempo e 82
A Murnicão E A História
da moda. Em tuas às secas chamou-se ao sertanejo que emigra “retirante” e não “flagelado”. Flagelados somos todos nós durante a calamidade.“ A mudança de nomes. todavia, não é inocente nem casual: o Campo não é
um acampamento espontâneo,
como o eram os abarracamentos, assim como maiores flagelado dilui os sofrimentos € a própria conf iguração sociológica das
«vítimas da seca”, melhor expressos em retirante. À expressão curral manifesta
não só a impotência do pobre como uma das origens da assistência paternalista no interior das fazendas, já que os currais abandonados serviam de moradia para
os retirantes em tempos de seca.*? De qualquer maneira, comportando permanentemente “mais de 8 mil pessoas”, O Campo atendeu a uma preocupação expressa nas últimas palavras cita das do Presidente do Estado: “fiscalização” e “desrespeito ao pudor”, Esperavase evitar cenas de mendicância, criminalidade e prostituição recorrentes durante as secas anteriores através do isolamento dos retirantes, mantendo-os afastados
da população urbana. Rodolpho Theophilo, nosso companheiro de viagem pelas secas, discordava da idéia e ponderou com o Cel. Barroso que “aglomerar os retirantes era matálos”, relatando exemplos anteriores, como em 1900, quando os refugiados “se
agasalharam não só sob as árvores dos subúrbios como também nas das praças e ruas de Fortaleza” e a mortalidade entre eles foi relativamente baixa. Bascava-se em argumentações eminentemente humanitárias e médicas para reprovar a cria-
ção de um espaço de exclusão que é, ao mesmo tempo, um espaço de transmissão de epidemias fatais. Preocupava-o principalmente a idéia de que “esse abarracamento, mesmo ao ar livre, se empestaria e empestaria a cidade no fim de alguns
meses”. Mas o Presidente, segundo o farmacêutico, “não quis tomar o exemplo de 1900. alegando que assim não poderia fiscalizar a distribuição dos socorros e
velar pela honra das famílias que a seca expatriava”".* Racionalidade na assistência pública e controle dos comportamentos considerados “desviantes” foram, portanto, as preocupações que orientaram as medidas de socorros em 1915 e que presidiram o relacionamento entre os pobres e os habitantes da cidade. No entanto, a estratégia escolhida não surtiu os efeitos desejados, o que re-
presentou, numa avaliação posterior, “um erro palmar da Administração Pública da época”, pois o campo, “como era de se esperar, resultara improfícuo” e “trata-
va-se de uma densa concentração humana em promiscuidade, que o Governo não podia manter em boas condições de higiene e moralidade por falta de recursos
financeiros e pessoal competente e honesto que o administrasse” 83
NEvEs FreDerico DE CASTRO
s sobre os quais
pai e” er am os elementos princi Aliás. “higiene € moralidad stava. a dores. A falta de asseio manife erv obs Os o nçã ate or mai se detinham com pensava Con. !”, p u cheiroa se sentiad do EE E a pá
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atravancamento de gente imunda. da
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s sujos!”), E ; Ê : odo go Piso
r sido influência das teortas como transmissores = fecção”, as quais valorizavam os ares
sentidos capaz de único dos olfato era O Nossas que o idemias.S fontes para 1915, na ore perceber os miasmas causadores das epidem con: perig ia e. portanto,io e € de doenças
sentiam no mau € maioria bem informadas, provavelmente chegava Ren taminação e morte. Somente alguns abnegados para praticar mo entravam por seus becos mundos
caridade, senhoras caridosas — Conceição e a
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por exemplo — e os médicos, além dos “comissionados
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do Cl, Barroso,
rrspansáNeis pela distri-
buição dos socorros e das vagas de trabalho, eram os principais atores urbanos à
no circular por entre os famintos. As pessoas, cercadas, comprimiam-se na busca da sobrevivência num pre-
cário estado sanitário. A morte rondava o campo de concentração, fazendo suas
principais vítimas entre as crianças (“Fortaleza é um cemitério de crianças”, bradava R. Theophilo). Com o passar do tempo, as pequenas chuvas de setembro e
outubro — as “chuvas do caju” — e a conseguente “proliferação das moscas e maior contaminação da água potável'"º e a distribuição de leite adulterado às crianças, o “estado sanitario se foi aggravando, de sorte que, em Dezembro, já apresentava effeito assombroso na elevação da curva da mortalidade”.” Os ca-
dáveres empilhavam-se à espera de transporte, ao longo da linha de bonde que passava ao lado do campo. De tato, não havia uma estrutura sanitária no campo, que mais parecia um
“depósito de seres humanos”. Os “banheiros”, por exemplo, ficavam “à sotaven-
do abarracamento, no fundo do cercado, ao poente (...) onde os famintos, numa
to promiscuidade de bestas, defecavam, ficando as fezes expostas às moscas”, leado à necessária conclusão de que “aquele atentado à sã higiene não podia deixar de ter consegiiências desastradas”.48 Não é à toa que R. Theophilo, com
seu olhar higienista, se refere várias vezes àque la população concentrada como
uma “esterqueira humana”. Por outro lado, o tema da promiscuidade amiúde abordado por nossos observadores tinha certamente um conteú do moral. Temia- se o furto e a prostituição,
na certeza de que a fome é um campo propício para O desenvolvimento de perversões étic
as de todo tipo, além do que “desperta s entimentos atavicos do ho-
84
A MuiniDão E A História
ando se avizinhava da animalidade” e pera “intoxicações da idéia”, que mem
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covocam “extraordinaria ferocidade ou sordido egoismo".* atitudes grotescas se sucedem, como suicídios, assassinatos € não raros ca-
«os de antropofagia, além da utilização de crianças esqueléticas como recurso conseguir esmolas de transeuntes condofídos e outros expedientes condená-
veis, em que “a caridade pública individual viu-se explorada até as últimas possi-
s”.*? pilidade Era moeda
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corrente entre os analistas locais — da “situação” ou da “oposição”
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- a idéia de que à “miséria anestesia os mais puros sentimentos do homem bem educado, quanto mais os sentimentos dessa gente, cuja moral não foi cultivada (...) seres inferiores pela raça, pela falta de educação doméstica e cívica, criados na
satisfação de sua índole má e péssimos instintos, na prática de atos reprovados”.*!
De resto, foi diante do “inédito e lamentável espetáculo” representado pela aglomeração de retirantes nas áreas centrais da capital que orgulhosamente se
moderniza, percebido pelas elites como “promiscuidade e imundície aos olhos de milhares de espectadores e também de exploradores da miséria”? que o Cel. Barroso decidira pela criação do campo. O Passeio Público, ao mesmo tempo, significava, na época, a “principal área
de lazer e sociabilidade” da cidade e a “vitrine ideal para o desfile das elegâncias”,º um espaço de sociabilidade feito à imagem e semelhança das elites lo-
cais, ocupadas em “europeizar-se”, o que significava “civilizar-se”. A ocupação deste espaço por estes “seres inferiores” em estado de miséria e inanição é, por-
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tanto, ofensiva à civilização, à moral e aos bons costumes.
Assim, apesar de todos os esforços individuais e principalmente apesar de toda a vigilância, em face das condições gerais do campo e do progressivo avanço das moléstias infecciosas, Rodolpho Theophilo ainda observaria desolada e causticamente:
O Campo de Concentração transformou-se em Campo Santo, e o Governo do Estado viu-se obrigado a dissolvê-lo. O Dr. Benjamim Barroso não logrou ver o seu ideal realizado: uma seca sem prostituição e sem furto. Nas repetidas visitas que fiz ao abarracamento vi certos derriços que só pode-
riam ter acabado em pouca vergonha. A fome com seu cortejo de padecimentos dilui todos os bons sentimentos do coração humano. Uma mulher aviltada pela miséria mais facilmente cede à tentação da carne, do que outra
a coberto de necessidades.** Enfim, em resumo, o Campo de Concentração do Alagadiço aglomerou num terreno “cercado e arborizado” milhares de pessoas num ambiente de parcas ins-
85
FREDERICO DE CASTRO Neves
midis
os números da morte tam
talações físicas e piores condições sanitárias,
o campo do que fora rd
se concentraram: em geral. era mais fácil morrer “nada mais
repugnante € contrario as re.
observadores parecem concordar que cent ação O Campo de Con : que do de ida car € e ien hig gras mais elementares da 5
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periência, no relaciona.
dos retirantes do Alagadiço, em 1915.
Ex , cou marcada po resta A seca de 1915, portanto fi o o e reclusão daqueles
pa q Para isolament de habitantes, e mento entre retira tirantes o. marcando este momento em que ;
ia € fazer retornar a seca ma ívi destes. Um corte pode ser feito, então, os miseráveis alívio
cidade procura proteger-se do contato . 1 . As me o campo ao seu cenárAriio anterior,
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mpo”, cujo significado é diverso. Aq
uma estratégia de “fixar o homem ne es a de evitar as migrações em suas orj.
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incipalmente, seus protag
pais — do
forma de retirar a seca — €, P ane sociabilidade burguesa e civilizada já dir Sim ir soctã uma para destina cuja ção urbano, cenário foi aqui discutida; isso significa. certamente, combaterO
da prostituição e da mendicância nos espaços lirbanos. o
sensibilidade dos abastados das cidades como agridem RT
ção compatível com os investimentos de capital nessa
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para a implantação
de uma infra-estrutura moderna e adaptada ao ritmo frenético da circulação de
bens e serviços que caracteriza o capitalismo do século XX. A Fortaleza provin-
cial, onde a caridade predomina sobre a racionalidade da organização social burguesa, cede terreno a uma cidade moderna que se pretende estruturada segundo padrões modernos e liberais de ordenamento social €, principalmente, de relacionamento com os pobres. À partir de então, e especialmente depois de 1930, declina a criação de entidades beneficentes e aumenta a fundação de organismos, na maioria estatais, de apoio ou estímulo aos “trabalhadores”, “operários”, “agricultores” ou “pequenos produtores”, eufemismo para os pobres que pressionam periodicamente os equipamentos urbanos.
Com o início das chuvas em 1916, imediatamente o govemo tomou medidas para “internar” o retirante de volta aos sertões. No entanto, muitas vezes havia
formas de burlar a distribuição de passagens, o que levava Rodolpho Theophilo a achar que “o retirante não perdia ocasião de furtar”. “Recehia o socorro € tomava
irem imediatamente para o interior, mas, nas primeiras estações, descia e voltava à pé para a capital”, “de novo se alistava, recebia no socorro vo
tomads eem per As medidaso tomadas
ção
e tomava o trem”.*
1915, de qualquer maneira, aparentemente levaram
dos conflitos entre retirantes e autoridades. As fontes para este 86
A MuirEic A Histó ão ria
dodo pouco nos informam a sue respeito. Mesmo assim, os comentários do cados 40 enaltecer o sucesso
mesmo de seu relatório, parecem ser exage-
de sua ação.
Ainda parece ouvirmos em tumulto o queixume de um povo bom a debaterse na agonia de miserias que não vão bem longe. Soffreu com coragem
inimitavel os horrores da ssoea sem commeter desatinos; morreu de fome sem roubar nem saquear.
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pe sidente do Estado, na na
Conceição, por outro lado, a heroína de Rachel de Queiroz, tem ouvidos OS REV 2 BEM a)
ais sensíveis e argutos para perceber a “toada dolorida” que “chegava de mistu-
tio do Campo”. en do to li há o m co ra No céu entra quem merece No mundo vale quem tem Eu como tenho vergonha
Não peço nada a ninguém
Que me parece quem pede Ser cativo de quem tem.
IV Antes de 1930, ainda uma outra seca, de “pequenas proporções”,*º levou a alguns novos conflitos e reativou as formas de relacionamento entre as cidades e os retirantes. Depois de 1915, um período de enriquecimento se seguiu com a alta nos
preços do algodão. O desenvolvimento de melhoramentos técnicos e, especialmente, à introdução da variedade “mocó” fizeram com que os níveis de exportação alcançassem os de 1871-2, época de ouro da produção algodoeira do século
XIX, chegando a mais de 9.000.000 kg em 1918.ºº Combinada com bons períodos de chuvas regulares, trouxeram lucros para os comerciantes, uma “abastança phenomenal” para o “pequeno lavrador” e para o Estado, já que “os impostos
encheram o erario publico”. Os tempos de riqueza e expansão das atividades produtivas fizeram com que “o Presidente do Estado fascinado por tão grandes receitas esqueceu-se de que governava a terra das seccas e começou a dotar o
Ceará de melhoramentos, que só podiam possuir os Estados ricos”.%0 De fato, os melhoramentos iniciados pelo Intendente Idelfonso Albano entre
1912 e 1914 foram incorporados à vida urbana de tal forma que impulsionaram outras obras públicas e privadas, destinadas a dotar a cidade de um conjunto de 87
s capita;
mais modema das PAi a poe das to cui cir zãe no ade cid à € ças r pra lui das ma inc de ciNeste” em icátro -Al e ein equipament os capaz ae orm uito
uçução ou ref “tr ssii m como à constr
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ão do ca na capital, à fundaç tri elé e netituir um cenário urbano onde red da o o açã festal É a ins
l e ci se as amarras culturais ligadas veio incrementar à vida cultural exloca ercida, sse ser de pu sa a gue bur a sociabilidade 161 incial e/ou colonial. gi s vieram d Otar q das reformas urbanas, várias abra só passado peito Ao mesmo tempo, a par úblic as e particulares, construí. 1917,
barreira contra a falta dágua,
Estado de um conjunto de açudes - Ds e
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Assim, segundo
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vivendo das esmolas dos passageiros € e nei DO
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pagam a passagem delles no trem”.
roupas ainda Os vagons enchem-se de retirantes gordos, fortes, vestidos de
porcaria que embebeda. sãs, mas sujas, nojentos, exalando um cheiro de
da Este fartum especial da sujidade é tal que empesta o trem inteiro, vindo
cauda deste. Rodolpho Theophilo renova suas teorias a respeito dos que se retiram logo
que a seca é “declarada”, em março. “A gente que em Março retira-se para o littoral é vagabunda”, já que o período da colheita, normalmente, é abril, o que “prova que não semcou”. Assim, mesmo reafirmando ser contrário à emigração, que “sempre foi e será um grande mal para o Estado”, o farmacêutico afirma que “a população que se desloca logo que se declara a secca é preguiçosa e vagabun-
da e o Estado nada perdia vendo-a sahir do seu território”64 A capital foi sendo tomada novamente por retirantes famintos, que espera-
vam proteção por parte do governo e da população urbana, na forma de trabalho e esmolas. Os trens, todos os dias, “derramavam uma onda de famintos na capi-
tal”, que “espraia-se pras ruas da cidade e á noite pelos suburbios para pernoitar
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es O suficiente para evitar uma medida 88
Tr STUUA,
semelhante por parte das autoridades e, desta vez, “com esses exemplos o Dr. pr. Pedro Borges em 1900". Esta permissividade, embora pareça “desamor do deixando ao abandono
abarracar famintos,
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A MuriDão E A História
as victimas da secca”, é, segundo Rodolpho
contra as cpidemias, já que “os factos provam que
ra hygiene, é assassinal-os” e que “a vida do retirante e à
saude está mais garantida com esse abandono”, Poucas epidemias, de fato, assolaram os retirantes em 1919. A varíola, “companheira inseparável da seca”, como diz Rodolpho Theophilo, estava sob controle,
em parte graças aos esforços do próprio farmacêutico e seu vacinogêneo doméstico. À peste bulbônica, porém, importada do sul com a farinha de mandioca e outros gêneros que para aqui vieram, conseguiu alarmar algumas autoridades locais € na-
cionais. assim como a febre amarela. Em julho, “começou a funccionar em Fortaleza à Commissão Federal de Prophylaxia da febre amarela, sob a direção do Dr.
oliveira Borges”, trazendo para o Ceará “grande número de empregados, com grandes vencimentos, como se aqui não houvesse pessoal”. Os resultados, segundo O farmacêutico, seriam “nullos”, em parte por conta das condições de infra-estrutura da cidade, que não possuía água encanada; por outro lado, a Commissão “teve que luctar com a ignorancia e má vontade da população que impedia por todos os meios a marcha do serviço”. Os mata-mosquitos encontravam muitas dificuldades para atingir os focos nas casas: “muitos oppunham-se à entrada (...) e quando consen-
tiam não deixavam examinar os depositos dagua”, “a maioria das donas de casa não permittia (...) allegando os maridos não estarem em casa”.
“Com semelhante gente mal educada como fazer a prophylaxia de uma cidade!", desabafava Rodolpho Theophilo. Com a chegada de alguns casos da peste, a Commissão “teve ordem do Rio de agir contra a peste bulbonica, continuando a prophylaxia da febre amarela”. Mas os recursos para esta outra epidemia eram mais escassos ainda e, após uma desinfecção, o farmacêutico observa que “os ratos ficaram no goso da melhor saude como as baratas e até os mosquitos”. Por sorte, estas doenças não chega-
ram a alcançar números expressivos entre os retirantes.é Em dezembro, todavia, “24.000 retirantes famintos, esfarrapados e sem
trabalho de especie alguma” já se encontravam em Fortaleza. Destes, somente 1.100 eram diretamente atendidos pelo Dispensário dos Pobres, “instituição apreciável do Sr. Arcebispo — grande amigo dos pobres — e dirigida pelas se—— eme
nhoras de caridade, verdadeiras heroinas do amor ao proximo”, construída pela Liga das Senhoras Catholicas e “que tão bons serviços vem prestando aos
desfavorecidos da fortuna”. 89
Freverico DE CasTRO NEVES
e - aber-
o me
nos resnçoA em As obras públicas se reduziam a “peque
Hj
ora na efetivação de O o pa tura de comissões de soccorros”. À dem
es, agp massas de retirantes preocupava alguns habitant
calços. os começarem os trabalhos para Os Magellados des
par as
pe
riromdo E
nto, predomina E comido a verba”.9” Nos poucos serviços em andame
ae
preso eee ! E nização e a fraude. Além disso. os salários pagos pelo
colres e ainda sofriam descontos, “uma porcentagem para os
A
aç O à título
da
outro lado, não sei de que e mais outra para pagar O medico”; por
lidade alimentícios vendiam-se por altos preços”. “além da má qua
lhe
: J a m
de am
os generos
- Para compli-
serviços, no mais das vezas, era car ainda mais a vida dos retirantes, o chefe dos cido € educado na alaquria da “um homem mão” — “ás vezes um pelintra nas pendia ns operários Pela Capital da República”, “ás vezes um tyrano” que sus naressario a disciplina mais leve falta por dez e mais dias (...) allegando ser
is
a favor que “não tinha dó da miseria destes brazilciros a quem à Mação não fazi
encia em tempo de em soccorrer visto a Constituição mandar prestar-lhes assist
calamidade”. O resultado observado era que “a fome e a nudez andavam de mãos dadas nos serviços das obras contra as seccas” e “os operarios e suas familias " 65 estavam semi-nús”. Ao que parece, o governo do Estado quis deixar ao máximo possível por conta das instituições de caridade, ou da caridade individual, o atendimento à
população de retirantes. Talvez. mas isso as fontes não nos informam diretamente. o Presidente João Thomé e seus auxiliares estivessem convencidos de que uma excessiva intervenção do Estado no mercado de alimentos e de mão-de-obra pudesse ser mais inconveniente do que mesmo à presença dos famintos na capital, e o movimento do mercado, ele mesmo, pudesse fazer retornar a oferta de vagas de trabalho e de preços ao nível considerado normal, apesar das condições
especiais de escassez por conta da seca. A caridade, portanto, e não medidas governamentais de intervenção no mercado, seria o instrumento mais correto para relacionar-se com os retirantes, definindo esse relacionamento no círculo da esfera privada, das iniciativas individuais ou de grupos de indivíduos, como à Liga das Senhoras Catholicas, inserindo a assistência social no âmbito de ação da vida
religiosa.”
Em vista da precariedade das obras, o Dispensário dos Pobres tornou-se à entidade que conseguia maiores recursos para assistir os famintos, através da
recepção em seu alojamento ou através da distribuição de esmolas e refeições. Assim, é em torno desta instituição que se travam os maiores conflitos durante esta seca, que se estendem ao ano de 1920.
Em 30 de janciro, em face da ameaça de fechamento do Dispensário, “nu90
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meroso grupo de flagellados assaltou algumas
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giam da prata para O centro da cidade”, No o queo * dia, à, * na Praça do Ferreira houve um meeting que durou 4 horas”. após mesm dirigiu-se ao palácio do governo a fim de pedir ao Dr a prete de pups desgraças junto aos Poderes da Nação” Federal
envie socorros directos aos famintos”. Não iai
que “a polícia prohibiu a aproximação dos Helio
ni
se en a ser inter-
E O que
“o Govemo
RR
cs ram recebidos, já
ai escandalo geral à polícia embalada dispersou o cortejo de Nlagellados neo posto de homens, mulheres e creanças”. No dia seguinte, “repetiram-se aquel|
queiies actos de desespero”.à No mercado, meia “os famin: tos arrebatara m cêstas de pães e se apoder = algumas bancas de comidas feitas”; “ás 2 horas assal taram e a
uma GALEGA ds generos”, Como tumulto, “muitos armazens da praia fecharam as
suas portas” e “os caminhões da Light no serviço de transporte de generos trafe-
gam guardados por policiais armados de carabinas”. A reação do Presidente do Estado é rápida e “com força embalada”. A prisão de um flagelado causa uma grande confusão, em que a “multidão de famintos tentou tomar o preso apedrejando os soldados”. Outras detenções são efetuadas. sob a alegação de que insuflaram os famintos ao ataque. O advogado Augusto Bacurau, revoltado com sua
“arbitraria prisão”, publicou um “longo e vchemente artigo” que causa “enorme sensação” na cidade, já que “termina dizendo que João Thomé lhe há de dar plena e cabal satisfação logo que deixar o governo”. Como resultado deste con-
flito. o “governo mandou logo iniciar os trabalhos da estrada de rodagem a Canindé, enviando para este serviço cerca de 4.000 retirantes mediante a diaria de 1$800”, mais 2.000 são enviados de trem para Maranguape, e para outros serviços serão “alistados igualmente quantos operarios appareçam”. Outras verbas federais suplementares são enviadas para o Dispensário dos Pobres, num
total de 75 contos de réis, “afim de evitar novos assaltos”, evitando também o seu fechamento.?º As autoridades, como na maioria dos casos, combinaram atitudes repressivas com ações conciliadoras, demonstrando aguda sensibilidade no trato com os retirantes revoltados e famintos.
Como se vê, apesar da repressão violenta e dos ânimos exacerbados, o con-
flito resultou na concessão das reivindicações dos retirantes por parte do governo, de que podemos concluir que uma negociação se efetuou. Sem palavras, porém, sem representantes ou entidades reunidos com outros representantes ou en-
tidades, os pobres e famintos que ocupavam à cidade durante a seca de 1919 conseguiram chegar a um objetivo, defini-lo e alcançá-lo através de uma ação direta, tumultuária e coletiva, para o que o conceito de “negociação coletiva atra-
vés da arruaça”?! parece ser bastante operacional, 91
Freverico DE CastRO NEVES
ores Com as chuvas de 1920, reiniciou-se o processo de retorno dos agricult os aus seus locais de moradia nos sertões. Mas alguns permaneciam nos Subúrhi
“restos da secca de 1919”. Aproveitando uma doação = Maçonaria do Rio Gran.
Serviçoe de do Sul, o próprio Rodolpho Theophilo responsabilizou-se por este dando-lhes cr mandou “emissarios propor-lhes [aos retirantes] a volta a suas
passagens, algum dinheiro. viveres para à viagem e roupa aos mais nús”. Nova,
ravam formas mente, porém, os retirantes c os habitantes pobres da cidade encont
de ludibriar e aproveitar-se da iniciativa, de modo que “on uma lucta terrivel este
do serviço de internação”. Alguns aceitaram, mas “a maioria para illudir receben localizada na o auxilio e deixando-se ficar”. A “repartição da internação” ficou
ntes da capital própria residência do farmacêutico, mas, mesmo assim, “habita
tar-se como flagellados que moravam nas areias, à ralé da cidade, vinham apresen
dinheiro, os viveres e à que desejavam voltar para o sertão”, “outros recolhiam o po “do desbria. nitivamente o filantro passagem e ficavam”. Isso convenceu defi E ou”.12 mento dessa gente que a fome degrad os H. Novas Estruturas de Sentiment
Esses anos de secas e relações entre a vida urbana e os retirantes, de 1877 até 1919, trazem importantes modificações nas estruturas de sentimentos”? que delimitam a percepção dos fenômenos das secas e das migrações, assim como da presença recorrente dos retirantes nas cidades. Vários elementos aqui mencionados sofreram transformações, inflexões ou foram simplesmente eliminados. Convém, portanto, oferecer uma visão de conjunto destas novas sensibilidades. Em primeiro lugar, a percepção de uma decadência ou de uma degeneração
física e moral por conta da miséria, da fome e das agruras da migração parece ter se generalizado nestes primeiros anos de relacionamento com os refugiados da seca. Os atos violentos ou “bárbaros” — antropofagia, suicídios, assassinatos de membros das famílias — passam a ser vistos como resultado desta degeneração,
que “embota os sentimentos mais delicados” etc. Um olhar científico se estabele-
eae br arcar
mesmo de repressão violenta. Ao lon im secas o qem Sena
pe id
o XX, este an olhar científico produz “v erdades” dados io dps m o campo deagr atuação que delimita HR
social e principalmente política destes seres “inferior es pela raça e pelos costu| ; &O mesmo tempo, qualificando a capacidade de discernimento
me aminiesn dios
ou racionalizaç : nalização da realidade dos sertanejos como
92
limitada pelo meio € pelas
A Muinvão E A História
tural e uma dieta insuficiente para um desenvolvimento físico completo. Tais olhares, advindos do enfrentamento direto com a presença dos retirantes no cotidiano urbano em períodos de secas — expressos, por exemplo, nos jornais e nas
obras de Rodolpho Theophilo e Tomás Pompeu Sobrinho -, se complementam
com outras visões oriundas da literatura e da produção intelectual brasileiras em geral. Mas, talvez, a contribuição que mais conseguiu influir na conformação
desta visão científica — ou “cientificista” — do problema das secas e do homem sertanejo tenha sido Os Sertões, de Euclides da Cunha. O determinismo geográfico se manifesta na própria organização do livro, mas, especialmente, na disposição e análise do meio que circunda o sertanejo e, segundo ele, o conforma. A própria expressão de elogio ao rude vaqueiro e agricultor — “o sertanejo é antes
de tudo um forte” — é matizada pelas circunstâncias ambíguas da vida sertaneja e do biótipo deste homem:
“desgracioso, desengonçado, torto”, é “o homem per-
manentemente fatigado” que “reflete a preguiça invencível, a atonia muscular
perene”, mas que, no entanto, “basta o aparecimento de qualquer incidente” que “naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas”. Esta ambiguidade reflete “o caráter selvagem” da luta pela vida nos “sertões do Norte”, com “os horrores da seca e os combates cruentos com a terra ácida e exsicada”, “as cenas periódicas da devastação e da miséria, o quadro
assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado”. É um homem que “atravessa a vida entre ciladas, surpresas repentinas de uma natureza incompreensível” e “reflete, nestas aparências que se contrabatem, a própria natureza que o rodeia”;
e “é natural que o seja”, pois “viver é adaptar-se”.”* Essa essência ambígua se combina, no momento da seca, com as “psicoses tropicais”, com a degradação
moral resultante da necessidade e com as doenças epidêmicas para instituir simbolicamente o retirante como uma criatura inferior, capaz de atos “bárbaros” em momentos de dificuldades, que ocupa o espaço urbano sem a bagagem cultural Necessária para compreendê-lo. E essa barbárie ocupa o centro das percepções
Sobre os pobres e constitui um elemento da própria natureza da miséria. E segundo lugar, a presença dos retirantes no cenário urbano está, em dedio deste prio
Pi E Sia io Urbana
ia
aspecto, associada ao InCReIDERHO
da
a da mendicância, da corrupção e da prosieAÇÕo, A própria idéia de nessa imagem multifacetada. Assim, a proscirmcintio de uma o seca, apartir dos sinais já agora também conhecidos
pela população
uma ansiedade e um temor que se intensifica à iniedida que se
kembrança, ando as mais pessimistas expectativas.
deles Fi
das foenças,
eum
mesmo movimento, as
dê Próprias ou transmitidas — dos episódios de 1877 e a recorrência odos posteriores geram, combinadas, uma identificação da chegada 93
Neves FreDERICO DE CASTRO
d eve forçosamente conviver com og S€ que em o íod per um com s nte dos retira upa em controlar e combater, um ade se preoc cid elementos da barbárie que a
«ifício a ser
a solidariedade com as vítimas do feito em nome da caridade € apra O
lado. há que se fazer uma odds
aged
éria io E e os pobres “adventícios”. entre aqueles que à mis
lutam para manter sua dignidade, entre 08 que e mica
Eciom E
re
queles que
pa Es , , ad aan
o a árias E fica e poaçã fic ssi cla UMA te, men ada onh erg env que o fazem se possa aplicar as mediportanto. necessário estabelecer pará que bres se torna,
urbana do desassossego dos das corretas para cada caso. livrando à população r”. Assim, o conheci-
ão da caridade particula excessos e dos abusos. da “exploraç geral e sobre os retirantes da seca mento científico elaborado sobre os pobres em res, to de classificação dessa massa de pob em particular pode ser O instrumen conhecido, mas ao mesmo tempo colocando uma ordem no mundo estranho e des
a ser regulada, regrada, para temido, da pobreza.”* Além disso, à caridade precis m. poder ser estendida aos que realmente a merece
de por Em terceiro lugar. as ambigúidades existentes no exercício da carida
mente, as mudanças parte da população urbana revelam, cada vez mais explicita
lado, a nas estruturas de sentimentos com relação aos retirantes das secas. De um
prática deste sentimento cristão fundamental — que abençoa muito mais quem o e exercita do que quem o recebe — se combina perfeitamente com à reciprocidad paternalista. já que, segundo os cânones da Igreja Católica, “o forte devia susten-
tar O fraco e o segundo servir o primeiro”, e, como ponto essencial dessa relação, estaria a base da caridade.?* A esmola, portanto, podia ser considerada uma espécie de dever social para com os pobres, especialmente em momentos de escassez. Isso se reflete na forma como os observadores e os jornalistas se revoltam contra
a “exploração da caridade” pelos famintos e, principalmente, pelos aproveitado-
res: um limite que foi ultrapassado, mas que dificilmente pode ser determinado,
pois inscreve-se imaginariamente nas relações entre os cristãos e a pobreza variá-
e Mane apesar de xtemanene imposta - que regina as cidt
âncias particulares de cada momento de seca A o PA podem determinar o estabelecimento deste limite e as formas de transgredi-lo.
Ec
onde as as fontes Easão maisE abundantes. Isso não somente gera uma ani
“idade contraTa o aumento de retirantes | na cidade, como alimenta as reivindica-
A
e
pd
' Ro
o
mais efetiva e eficientemente as obrigações de
ER em forma de socorros públicos e assistência retirantes e habitantes torna m-se, em função desta ani-
94
A MuiripÃo E A História
mosidade, tensas €, Por vezes, os protestos e atitudes dos famin tos não conseseguem obter a solidariedade que costumam ter, pelo menos nas páginas d nais. A
A do Estado, aqui, irá recosturar esta ligação Mm
rei
cessiva Remdieinera; is entanto, permanece a necessidade de qualificar os po-
bres. classificá-los em envergonhados”, “flagelados” ou “ aproveitadores”, para que a esmola não se torne nem um vício, um estímulo à preguiça e à ociosidade, nem uma ofensa aos trabalhadores e pais de família que, pelo menos no discurso das elites intelectuais, procuram sustentar dignamente suas posses sem o auxílio
do Estado.” O exercício da caridade passa a ser regulado por essa classificação — que irá tomar forma mais definida com a proposta elaborada pelo Rotary Club e exposta por Raimundo Girão, durante a década de 1950 — e direcionado àquelas
categorias dos mais “necessitados”, os quais, em tempos de seca, se identificam aos “flagelados”. Em função disso, a caridade “oficial” se dirigirá prioritariamente
a esta categoria. mas procurando afastá-la do convívio da cidade e, portanto, do exercício direto da caridade individual. Mais uma vez, o objetivo dos planos de “combate às secas” se orientará para “fixar o homem no campo”, impedindo-o de
chegar à cidade. Esta ambigiiidade se refletirá nas medidas destinadas a identificar os verdadeiros mendigos — os inválidos, os velhos, os trabalhadores sem em-
prego etc — e combater os “excessos” da mendicância urbana.?8 Em quarto lugar, a preocupação com a mendicância e com seus excessos — à vagabundagem contumaz — levará necessariamente a uma valorização de seu in-
verso: 0 trabalho. Os socorros, outrora concedidos simplesmente como um fator de proteção (pública ou privada), não poderão mais ser dissociados de uma retribuição em forma de trabalho. Assim, não só a seca equipa as propriedades rurais
com açudes, as cidades com calçamentos e obras e o Estado com estradas de ferro — os “melhoramentos da seca” — como igualmente constitui uma força de
trabalho periodicamente disponível e permanentemente disciplinada. Ao mesmo tempo em que a proteção aos pobres em tempos de escassez vai sendo transferida
Para 0 âmbito do Estado, a exigência com o merecimento à psp o
mais sendo delineada através do trabalho en
social vai NIDA
di Unerado, uma pedagogia pouco sutil esa e “ap E SAE , Pela necessidade e pela fome. O “direito” à proteção estatal é, Taio ii má uma disposição incondicional para “Seja na faze a da o Nr ruas. SUspensos a aa = eee or Fetirantes : a a cai
“rviço in
aa aa
» Já que sua condição de “desterrados
sanal — são temporariamente xploração da mão-de-obra no iss a aceitar qualquer
»
ma
Oca da assistência social. Na visão que se estrutura nestas primeiras 95
Freperico DE Castro NEVES
r a que nedécadas do século XX, qualquer trabalho para á tuiranio é melho
é ocupar o
nhum, mesmo que os bens construídos sejam initeis io is retirante para que ele não mendigue. nem cobre pi
o Por outro
nem
lado, os retirantes logo aprendem que. por vezes, antes de rem caraacomida, a geo devem exigir “serviço”; aprendem, sobretudo. ei política naquilo em que ela se refere à assistência auxílios saber quando reivindicar trabalho e quando pedir
a
a
a
=
diretos, de acordo com
. a tendência dos governantes. no momento da seca. de ne roi faminEm quinto lugar. os conflitos gerados pela aglomeração | usa geral tos nas cidades levam, portanto, a um receio generalizado de um ao clássico, da pobreza”.”? As desi gualdades sociais, na percepção do patsemalia za e, assim, não csngam normalmente estão associadas a um fenômeno da nature
reiterada as multidão de graves fissuras no tecido social. No entanto, a presença
e de uma retirantes acaba por abalar esta concepção e apresentar à possibilidad s revolta dos pobres contra um sistema social injusto. De fato, as desigualdade
não são desconhecidas, mas são percebidas como um fato natural. Os atos da multidão que se insinuam nos momentos de seca e de crise na assistência social,
como foi apresentado em diversas oportunidades aqui neste capítulo, colocam
em questão esta segurança e, de uma maneira muito pouco clara, inscrevem O
fenômeno da pobreza como um elemento pertencente ao mundo social, resultan-
te de ações, deliberadas ou não, de sujeitos sociais precisos, cuja responsabilida-
de pode ser auferida. Isso impõe à sociedade a responsabilidade adicional de procurar soluções, isto é, de enfrentar diretamente a questão da pobreza, da mendicância e seus excessos, além dos comportamentos desviantes ou criminosos,
como o roubo e a prostituição. Esses elementos configuram uma desconfiança
contra os pobres em geral, especialmente em momentos de seca, levando a uma identificação, já analisada em diversos contextos históricos, entre classes pobres e classes perigosas. A fronteira entre estas duas noções torna-se, ao longo do
tempo, cada vez mais tênue e imprecisa, revelando que também os jornais e 28 fontes intelectualizadas do Ceará na virada do século estavam atentas para “os
sinais de uma irrupção das forças subterrâneas da sociedade”8º Parece que à res
indefinida, pouco identificadas à
a na estrutgra de pi vfindenniraos
dos retirantes, descritas como resultantes do
aero
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ai tag
" e ne pe
As
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Ri E sos noção, como “res ostas eo mai à partir vidas, s de desta involuntário Preservação da vida, tal ni dj a u noç ese Es Thompson da caso da historiografia inglesa! As oras aa errâneas” sc associam à metáto 96
ê 2 seus próprios
q +
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“abarracamentos”
+ OU em
ú
am
ento da população retirante
campos de concentração”
em
te criados pes poder público, revelam a desconfiança geral ração” especialmen-
ça geral com re lação aos poS, aqueles que, degradad os pela miséria e pela fome, estariam dispostos a come ter qualquer tipo de
bres. especialmente com determinados pobre
para saciar ua necessidades vitais mais elementares. A cada comportamento seca, as ea vas
pobres — e prneipairente Os retirantes — são observadas, classific
classes
adas e percchidas como classes perigosas, portadoras dos vícios do corpo e d a alma, que po-
dem epa
a sociedade inteira através do contato direto. Para sublimar este
perigo potencial, as estratégias se dirigem para o afastamento, o enclausuramento,
a apartação, O isolamento e a
proteção das cidades contra a invasão dos pobres.
Em sexto e último lugar, diante destas considerações, parece ter sentido, para esta situação específica, a sugestão de Elias Canetti acerca do “temor do contato”, apesar da excessiva — e, por vezes, abusiva — generalização que se
depreende da leitura de Massa e poder.*? Não nos referimos, aqui, ao “temor do contato” como uma característica da humanidade em geral, nem pensamos na multidão como uma forma de sublimar este temor através da compactação numa massa de seres humanos abstratos. Falamos de uma situação histórica particular, em que um conjunto de fenômenos se conjuga para nos sugerir esta idéia. À recorrência dos acontecimentos já descritos em momentos de seca, assim como o
curso assumido pelas relações entre a multidão de retirantes e às autoridades urbanas, geram uma desconfiança generalizada com relação às migrações e aos
migrantes pobres. As políticas de segregação destes pobres, em face diselevado volume deste fluxo irregular, respondem a esta desconfiança e, ao mesmo ven
a Ea generalizado contribuem para a estruturação de um receio indefinido € Ei do o ção aos “adventícios”, que pode ser descrito como "ipi ção das cidades prefere dar esmolas à grupos organizados ss rue pie em instituições como o Dispensário dos Pobres, à distribuir O
ce
dos passantes nas ruas; os governantes optam por e aritrê r OS SOCOITOS:
locais determinados. longe do espaço urbano, à fim E d ós a série de aconYagas em obras públicas e donativos. Esta postura, meio e do contato”, que
“não de uma natureza humana abstrata que sº a
deste “temor” pode ser
Car ss Rodolpho Theoptilo, coma
te momento. Um outro
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Ne
atos da multidão de retirantes ou de po 97
expressa várias
o que o faz identifi-
bros revoltados como “bárbaros .
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SÓ se institui após estes acontecimentos, o que nos ENE
ss que resultam deles
a
cimentos que descrevemos, sugere algo aged
ro NEVES FREDERICO DE Cast ; ante, entre Pobreza ss re te in ão aç ci so as a outra manifesta um m, Tal preocupação bres frequentemente assume po s lo pe s da ma tO es às atitud se mManifes. barbárie. já que OS pobres, quando m, si As ca. sti erí caract
esta zação so. segundo Thremeoph“bilaro,baramente”, contrapondo-se aos ditames da organi e rocessos civilizatórios em curso nos centros urbanos. Um tam. 0 fazem pelas auto. ad cial moder o ad im bl su e nt me da a ser devi tá Í emente de. A outro e epidemias use cial cia ao perigo das ridades. que se asso
e e evitar 0 contato i ss ce ne a , VEZ a um .*” Mais rela. nunciado pelo farmacêutico dias e povemo com me o pá vo ti je ob l pa ci prin O com essa massa torna-se ntam O programa de ção à os retirantes que orie
vai combate às secas” k que se nd da Ipolítica estatal, al ent dam fun e part o com rá Cea no o end aos pou cos estabelec desde então, como um de governo estadual, a figurar em todos os programas do seus itens fundamentais.
m o amAs estruturas de sentimentos aqui delineadas, portanto, conforma as relações entre os biente social e político onde se instituirão daí por diante característiretirantes e o universo da vida urbana, À permanência de elementos
cos do modelo paternalista se combina e se fusiona com novas noções e outros conceitos sobre à vida social c comunitária e, especialmente, sobre a divisão da riqueza social em momentos de escassez.
A transferência parcial da assistência paternalista exercida pelos coronéis para uma assistência igualmente paternalista exercida pelo Estado exigiu a incorporação das áreas urbanas ao fenômeno da seca, colocando a população das cidades no “olho do furacão”. De fato, mesmo se uma ruptura do pacto paternalista tenha acontecido já em 1877, pois que “os homens pobres e os escravos foram abandonados pelos coronéis-pais-patrões, rompendo o pacto tradicional de lealdade e apadrinhamento”** o Estado assume esta dívida com todas as suas obri-
Bnções costumelras, A ordem de grandeza assumida pelas migrações e pela necessária assistência emergencial obriga a uma nova “administração da miséria”,
sega dimensão ultrapassa as possibilidades materiais dos proprietários rurais, to-
pre Ad
neo forte; Exterosrdo preselies ps
her
A aseada nos termos da reciprocidade perma-
s € estimulando atitudes, O pacto, mesmo parcial-
mente rompido, ainda está de pé!
ad Pd ee o eamo temp, que nã é nero chega
€ inanição para procurar auxílio, inclusive porque 98
A Muznpão E A História
este estado o torna excessivamente fraco para organizar-se coletivamente ou to-
mar qualquer atitude mais ousada;** e o espaço privilegiado para este auxílio é a cidade.
Os movimentos da multidão, portanto, que irão se intensificar nos anos seguintes, vão encontrar estas estruturas de sentimentos já razoavelmente estabelecidas e daí por diante deverão, dentro dos termos ditados por elas, negociar com as autoridades urbanas. Assim, a seca, agora transformada definitivamente em um fenômeno social e político muito mais do que meramente climático, passa a constituir-se em uma
chave importante na compreensão da realidade histórica e social do Ceará, já que
funde, no momento de sua eclosão, os vários elementos da cultura ligados à concepção sobre a vida no campo, sobre a natureza e sua relações com a vida social, sobre a pobreza e sobre a possibilidade de ação autônoma e consciente por parte dos retirantes famintos que clamam por comida, trabalho, remédios e roupas.
Referências bibliográficas ! GIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cit. p. 203. ? Libertador, 12 de julho de 1889. 3Cearense, 19 de janeiro de 1889. *Cearense, 10 de abril de 1889.
* Constituição, É Constituição, "Cearense, 16 "Constituição,
12 de janeiro de 1889. 27 de fevereiro de 1889 e 15 de março de 1889. e 19 de março de 1889. 30 de março de 1889.
“Constituição, 08 de janeiro de 1889. "Cearense, 13 de janeiro de 1889. O Cearense era um “orgão liberal”, enquanto que o ConsHituição era um “orgão conservador” que tinha o apoio do Libertador. Ser situação ou oposição, neste momento, tinha grande importância para estes jornais, não só porque eram os representantes dos próprios partidos que dividiam a cena política no Império, mas também porque
loda a divulgação dos atos oficiais era veiculada pelo jornal da situação, que na primeira Página mantinha uma seção intitulada “Parte Official”, contendo os atos € despachos do goYerno provincial e suas secretarias. O Presidente da Província era Caio Prado, um conservador, que faleceu em maio de 1889, em meio à seca, sendo substituído pelo liberal Henrique vila, À posição que os jornais tomam diante das medidas assistenciais muda na metade do
e assim como as próprias medidas.
Ns Aga Éa
12 de janeiro de 1889.
4 Cir a era
18
e
e Ração
18
|
-
« Joaquim. História das Sêcas (Séculos XVI a XIX). Op. Cit. pp. 233-234,
stituição, 25 de janeir o de 1889.
99
Freperico DE CAsTRO NEVES
8 Constituição, 28 e 30 de abril de 1889. ique Francisco d'Avila, Presidente da 1 CEARÁ. Falla com que o Exm. Sr. Senador Henr Legis Jativa Provincial, no dia 15 de Provincia do Ceará. Abrio « 2º Sessão da Assembléa p» 8. julho de 1889, Fortaleza: Typographia Brasileira, 1889.
R Cearense, 24 de agosto de 1889.
das. pelo Presidente da Província, aos 1º Cearense. 07 de setembro de 1889. Instruções dirigi
dos socorros. “Comissarios Geraes”. responsáveis pela administração
ema das Seccas. Op. Cit. pp. 24-25. % SOBRINHO, Thomaz Pompeu. O Probl
2 Libertador. 23 de julho de 1889. 2 Libertador. 02. 04, 06, 07 e 23 de setembro de 1889.
ação e das medidas a serem 2 Cearense. 15 de novembro de 1889. O debate em torno da emigr qualquer
cearenses, O espaço de implementadas no momento da seca superou, nos jomais dias depois da proclainformação séria sobre a campanha republicana, Assim, somente alguns
as, noticiaram a mação os jornais mais importantes da capital. ligados aos partidos monarquist percebeu as sutilemudança de governo. O farmacéutico Rodolpho Theophilo, mais uma vez,
zas do ambiente político: “A notícia da mudança da forma de governo chegou ao Ceará, como
inteira talem quast toda parte, inesperadamente. Na vespera do acontecimento na provincia vez não se contassem tres republicanos. Dois dias depois da proclamação da republica dava-se
justamente o contrario, era difficil encontrar tres monarchistas.” THEOPHILO,
Rodolpho.
Seccas do Ceará (2º metade do sec. XIX). Ceará: Typ. Moderna/Ateliers Louis, 1901. p. 36.
” ESTADO DO CEARÁ. Mensagem apresentada á Assembléia Legislativa do Ceará em 1º
de julho de 1901 pelo Presidente do Estado Dr. Pedro Augusto Borges. Fortaleza: Typ. Economica, 1901, p. 24, Convém assinalar que o Dr. Pedro Borges trabalhou arduamente nos abarracamentos e lazaretos de Fortaleza, em 1877-1880, como médico responsável pelo combate às epidemias e outras doenças que grassavam entre os retirantes.
**THEOPHILO, Rodolpho. Seccas do Ceará (2º metade do sec. XIX). Op. Cit. pp. 68, 80 e 148.
*% ESTADO DO CEARÁ. Mensagem apresentada á Assembléia Legislativa do Ceará em 1º de julho de 1901 pelo Presidente do Estado Dr. Pedro Augusto Borges. Op. Cit. p. 29.
2 A Cidade (Sobral), 15 de agosto de 1900,
ci ESTADO DO CEARÁ. Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa do Ceará em 1º de julho de 1901 pelo Presidente do Estado Dr. Pedro Augusto Borges. Op. Cit. pp. 42-44; SOBRINHO, Tomaz Pompeu. Históriu dus Sêcas (Século XX). Op. Cit. pp. 192-196. A Cida-
de, de 29 de setembro de 1900, incentiva a realização uma campanha de arrecadação de recursos: “"façam-se subscrições, angariem-se donativos, inventem-se recursos de toda a especie”.
“2 THEOPHILO, Rodolpho. Seccas do Ceará (2º metade do see. XIX). Op. Cit. pp. 166-167. “FROTA, Luciara S. de Aragão e. Dociunentação Oral e a Temática da Seca. Op. Cit. p- 17. “ PONTE, Sebastião R. Fortaleza Belle Époque. Op. Cit. pp. 18. 28 e 37. Cf. ANDRADE. João M. AOli garquia Acciolina e a Política dos Governadores.” In: SOUZA, Simone (Coord.) História do Ceará. Op. Cit. pp. 213-222. A Intendência da capital, durante os governos de Accioly ou de seus aliados - Coronel Bizerril Fontenele (| 892-96) e Dr. Pedro Borges (1 04) -, foi confiada a Guilherme Rocha. uy
=
T THEQPRILO.
7
-
Rodolpho. A Libertação do Ceará (A Queda da Oligarquia Accioly). Lisboa:
ypographia À Editora Ltda., 1914. p, 123. Cf. também: SILVA, Virgínia T. da. “Aspectos da
Crise Política de 1912 no Ceará.” In: SOUZA, Simone (Coord.) História do Ceará. Op. Ci.
100
4
*À MuLtiDÃo E A História
secul
» XX. Fortaleza: SECULT-CE, 1991, Tal como na Europa do ra cdri a
sc
e " pobreza € mitiva da turbamiséria, a noção de barbárie atua como elemento explicativo da condição
entre
urbana”. BRESCIANI, Mº Stella M, “A Cidade das Multidões, a cidade
aterrorizada.” In: PECHMAN, Robert M. (org.) Olhares sobre a C idade, Rio de Janesro: Ed UFRJ.
1994. P.
19.
“PONTE. Sebastião R. Fortuleza Belle Époque. Op. Cit. p. SO. Para uma crítica aos excessos
qa teoria do “controle social”, Cf. HIMMELFARB, Gertrude. La Idea de lu Pobreza. Op. Cir
pp. 43 1-465.
Ra
u CHALHOUB. Sidney, RIBEIRO, Gladys e ESTEVES, Martha de A. “Trabalho escravo e
trabalho livre na cidade do Rio: vivência de libertos, “galegos” e mulheres pobres.” Revista
Brasileira de História. São Paulo; ANPUH/Marco Zero, vol. 5. nº 8/9, set. 1984/abr. 1985. p.
104. 1 PONTE. Sebastião R. Fortaleza Belle Époque. Op. Cit. p. 51. “THEOPHILO. Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit. pp. 43-47. (Note-se novamente o uso da
expressão “bárbaros «) Sobre a revolta, inspirada por Padre Cicero e liderada por Floro Bartolomeu. Cf. também Id. A Sedição do Joazeiro. São Paulo: Ed. Revista do Brasil. 1922.;
DELLA CAVA. Ralph. Milagre em Juazeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.: CAM URÇA, Marcelo. Marretas, molambudos e rabelistas. São Paulo: Maltese. 1994. “ QUEIROZ. Rachel de. O Quinze. 52 ed. São Paulo: Siciliano, 1993. pp. 21-31. Este romance. escrito em 1930, quando a autora tinha cerca de 20 anos, é considerado um marco importante do movimento chamado “romance de 30”, que procurava refletir a realidade regional, em
suas mais cruas manifestações e suas relações com a natureza agreste do semi-árido.
%THEOPHILO. Rodolpho. 4 Seca de 1915. Op. Cit. pp. 37-38. * QUEIROZ. Rachel de. O Quinze. Op. Cit. pp. 83-87; NEVES, Frederico de C. “Curral dos Bárbaros: os Campos de Concentração no Ceará (1915 e 1932)." Revista Brasileira de Histó-
ria. São Paulo: ANPUH/Contexto, vol. 15, nº 29, 1995. pp. 96-105. “ESTADO DO CEARÁ.
julho de 1916
Mensagem dirigida à Assembléia Legislativa do Ceará em 1º de
pelo Presidente do Estado Cel. Benjamim Barroso. Fortaleza: Typographia
Modema, 1916. p. 7.
“ THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit. pp. 54-55.
“Na seca de 1877, por exemplo, no “Curral do Açougue”, onde as reses eram abatidas, “fervilhavam, em ruidosa diligência, legiões de operários construindo a penitenciária de Sobral”, já que, segundo o romancista, “acertara a Comissão de Socorros em substituir a esmola
depressora pelo salário emulativo, pago em rações de farinha de mandioca, arroz, carne de charque, feijão e bacalhau, verdadeiras gulodices para infelizes criaturas, açoitadas pelo flagelo da seca a calamidade estupenda e horrível que devastava o sertão combusto”. OLÍMPIO, Domingos. Luzia Homem. São Paulo: Editora Três, 1973. pp. 23-24. “THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit. pp. 52-53. Além de argumentar com base na experiência passada, Theophilo foi conferir in loco e concluiu: “a primeira visita que
fiz ao "Campo de Concentração" deu-me a certeza de que em breves dias teríamos aí um
ani Santo”, Id. Ibidem. p. 57. a SOBRINHO, Tomaz Pompeu. História das Secas (século XX). Op. Cit. p. 32. E Cf. CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Cortiços e Epidemias na Corte Imperial. São alo; Cia, das Letras, 1996. pp. 62-67; e CORBIN, Alain. Saberes e Odores: o olfato e o “naginário social nos séculos dezoito e dezenove. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. Rodolpho
101
Es Freverico DE CASTRO NEv
da
dos higienistas de sua Ra Theophilo transitava, como à maioria defendia a
o tempo em que “infecção” e do “contágio”: ao mesm iasm m as” e “ares putrefatos”, : de mias : a em “atmosfera saturada contra a varíola, falav
aCinação
do qu
em 1º de
s (sécu “SOBRINHO. Tomaz Pompeu. História das Seca
lo XX). Op. Cit. p. 27.
ia aii 4? ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assemble julho de 1916
amim Barroso. Op. pelo Presidente do Estado Cel. Benj
Cit. p.
8.
Cit. p- 60. 4 THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. Op. das Seccas. Op. Cit. pp. 24-25. 4 SOBRINHO, Tomás Pompeu. O Problema Cit. p. 25. “14 História dus Secas (século XX). Op.
| Op. Cit. p. 83. Si! THEOPHILO, Rodolpho. A Seca de 1915. s (século XX). Op. Cit. p. 25. 2 SOBRINHO. Tomaz Pompeu. História das Seca ue. Op. Cit. p. 35. 3 PONTE. Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époq p. 103. “4 THEOPHILO., Rodolpho. A Seca de 1915. Op. Cit.
s* SOBRINHO, Tomás Pompeu. O Problema das Seccas. Ceará: Typo-lithographia Gadelha,
1917. p. 25. nota 11. As análises sobre O Campo de Concentração de 1915 foram desenvolvi de Concentração no das a partir de NEVES. Frederico de C. “Curral dos Bárbaros: os Campos am que dos cerca de Ceará (1915 e 1932)” Op. Cit. pp. 96-105. Os números “oficiais” indic
300 mil afetados pela seca (quase 1/3 da população do Estado), 70 mil emigraram e 27 mil
morreram. Cf. ESTADO DO € EARÁ. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará
em 1º de julho de 1916 pelo Presidente do Estado Cel. Benjumim Barroso. Op. Cit. p. 7. **THEOPHILO, Rodolpho. 4 Seca de 1915. Op. Cit. p. 78.
57 ESTADO DO CEARÁ. Mensagem dirigida à Assembleia Legislativa do Ceará em !º de
julho de 1916 pelo Presidente do Estado Cel. Benjamim Barroso, Op. Cit. p. 5. 8 Os critérios para avaliar a extensão de uma seca são sempre discutíveis. Os órgãos técni-
cos costumam utilizar a escala pluviométrica para medir a quantidade de chuvas, ou de falta
de chuvas. Prefiro, neste trabalho, o critério da mobilidade dos trabalhadores rurais: quanto maior a migração para as cidades — e os consequentes conflitos e medidas de controle dessa massa de famintos no espaço urbano — considero mais grave a seca. Este critério inclui
outro, referente aos anos seguidos de irregularidade climática. É certo que, quanto mais tempo dura a falta de chuvas, maior o número de pessoas que deixam as terras e procuram o auxílio nas cidades.
*º GIRÃO, Raimundo. Evolução Histórica Cearense. Op. Cit. pp. 155-160. A recomposição das plantações perdidas na seca de 1915 foi o momento de retomada do aprimoramento tecnológico em máquinas e sementes selecionadas.
* THEOPHILO, Rodolpho. A Secca de 1919. Rio de Janeiro: Imprensa Inglesa, 1922. pp. 9-10. “ PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza Belle Époque. Op. Cit. pp. 54-57. Várias fábricas, especialmente têxteis. foram inauguradas no Ceará no rastro dos lucros da cultura algodoeira. Uma sociabilidade burguesa, portanto, que convivia com sua antítese, o movimento operário. Em 1917 ocorreu a primeira greve “realmente operária”, a que se seguiram outras em 1918,
1925 e 1929. Id. Ibidem. pp. 35 e 57. Cf. também: SOUZA, Simone, e OLIVEIRA, Francisco
de A. O Movimento Operário Cearense na | “República. Fortaleza: UFC/NUDOC (Cadernos
do NUDOC, Série História, nº 3), s.d. A presença da Igreja Católica e de outras entidades, cómo a Maçonaria, na organização operária foi igualmente importante na formação de um
movimento” operário. Cf. PARENTE, Francisco J. C. “O Movimento Operário na 1º Repóblica.” In: SOUZA, Simone (Coord.) História do Ceará. Op. Cit. pp. 347-358.
102
À MuitiDÃo E A História ás OBRINHO, Tomaz Pompeu. História das Secas (século XX), Op. Cit. p. 38. A de armazenar água como forma de preven iniciativa ir à seca ficou conhec i ida como “solucão hi ue, em Seus fundamentos, perman ica" ece até hoje como base para os ea s is
de "combate às secas”, mesmo que "desmoralizada pela vida”, Cf. DO nuel. € BORGES, Geraldo A. Seca Seculorum. Flagelo e Mito =
ig
Teresina: CEPRO. 1987.p. 97.
$ NET O, Ma-
iauiense. 2 cd,
+ THEOPHILO, Rodolpho. A Secca de 1919. Op. Cit. p. 21. 8 1d. Ibidem. p. 22.
es Jd. Ibidem. pp. 22-23 e 60-67. 6 Correio do Ceará, 26 de dezembro de 1919; EST ADO DO CEARÁ. Mens
Assembleia Legislativa do Ceará em 1º de julho de 1920 pelo Presi dente do Estado Thomé
. Fortaleza: Typ. Moderna, 1920.pp. 33-34,
dirigida lo
W Correio do Ceará, 26 de dezembro de 1919. «&THEOPHILO, Rodolpho. A Secca de 1919. Op. Cit. pp. 44-46. O farmacêutico desanimase, observando que “infelizmente a maioria dos homens é insensivel aos soffrimentos de seus
semelhantes”.
* A concepção cristã da caridade “transforma a humildade espiritual num impulso para Deus, e visa aliviar a humilhação material e social dos pobres”. Assim, “a responsabilidade da miséria não cabe apenas à conjuntura econômica e às estruturas sociais”, mas é uma “questão de
consciência”. MOLLAT, Michel. Os Pobres na Idade Média. Op. Cit. pp. 21 e 289. WA Ordem (Sobral), 06 e 07 de fevereiro de 1920; Correio da Semana, 07 de fevereiro de 1920.
HHOBSBAWM, Eric J. “Os Destruidores de Máquinas.” In: Os Trabalhadores. Estudos sobrea História do Operariado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. p. 17. Através da “técnica da destruição” ou das insurreições rápidas, várias categorias de trabalhadores da Inglaterra do século XVIII e inícios do XIX exerciam pressão sobre os empregadores para obter alguma
espécie de modificação nas relações de trabalho. "THEOPHILO. Rodolpho. A Secca de 1919. Op. Cit. pp. 84-85. Ao trazer o serviço para sua residência, Theophilo conseguia fazer alguns pobres vacinarem-se contra a varíola. B Utilizo aqui a expressão “estrutura de sentimentos” na forma delineada por Raymond
Williams, em O Campo e a Cidade na História e na Literatura. São Paulo: Cia. das Letras,
1989 e em Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. Uma “estrutura” porque as formas de perceber estão articuladas, embora não haja necessariamente um único elemento articulador; “sentimentos” porque se trata de uma sensação nem sempre consciente ou racio-
halizada, No entanto, esta “estrutura de sentimentos”, por assim dizer, organiza a percepção e
dirige a elaboração de conceitos sobre a realidade. Forma, assim, um conjunto de convicções
Nlernalizadas e pouco problematizadas que se constrói ao longo do processo histórico, em “Ssociação com ele, dando-lhe sentido na vida cotidiana e entendimento no interior da teia de "elações na qual se está inserido necessariamente. Cf. também as interessantes reflexões de
“nah Arendt, em A Condição Humana. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.
Pp. 194.200, &
CUNH
:
e
:
A, Euclides da. Os Sertões. Op. Cit. pp. 129-135. À Percepção de um mundo distinto pertencente à pobreza não é nova na civilização ociden-
“le a ver com o triunfo da noção moralizante do trabalho. Assim, O “mundo diferente” é do e trabalho, dos vagabundos que vivem às custas do trabalho alheio, seja através do
se.
7%
in
-
103
*smnças
" “2 Mendicância ou da assistência pública. Cf. GEREMEK, Bronislaw. Os Filhos de
Freverico DE Castro NEVES Eure péia (I400-176H0). São Paulo: Cia dis Caun. Vagabundos e Miseráveis na Literatura um “paia za pode tam bém ser percebido como Letras, 1995. pp. 41-R6. O mundo da pobre de ta Pobre za. Op. Cit. pp. 3537-455, menoto” Cf HIMMELFARB, Gertrude. La Idea
Cit. D. 46 1 MOLLAT. Michel. Os Pobres na Idade Média. Op. dotô uma 7 Asum dizem Luís Gonzaga e Zédantas. na canção intitulada Virzes du Seca; “Masmesm o tem.
esmola/A um homem que é são/Ou lhe mata de vergonhwOu Vero po, como alternativa à esmola desmoralizadora, os poctas pedem um
o - ÃO a aos joe
comida a preço blica: “De serviço à nosso povo/Encha os rios de barragenyDé
da Repú.
Não esqueça
das arenas Em Jornais COrga a açudagem”, A poesia popular reproduz, nesse Caso, as deman de acumulação de água. nisimos urbanos: trabalho. comida e. principalmente, obras l, que 7 A originalidade da situação se refletirá nas atitudes dos próprios mendigos da capita próprio: por exemplo, muitas vezes se utilizarão desta ambiguidade em benefício
com as roupas características dos agricultores retirantes ou esmolando
vestindo-se
envergonhadamente”,
a de O. À como faria um “pai de familia” recém chegado à cidade. € F. ARAUJO, Mº Neyár
rado em SocioMiséria e as Dias. História Social da Mendicância no Ceará), Tese de Douto logia apresentada a FFLCH/USP. São Paulo: 1996. ia do Medo no 9 Tema também presente na tradição ocidental. Cf. DELUMEAU, Jcan. Histór Ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia. das Letras, 1989. pp. 15] -203. Curiosamente, este autor nos fala que “a classe perigosa para as autoridades e para todos os possuidores de outrora é. então. à dos mendigos ilinerantes. que. acredita-se, transportam com eles todos os pecados
do mundo. inclusive a heresia, a libertinagem, à peste e a subversão” (p. 201). A idéia de uma
desconfiança geral contra os que circulam sem pouso fixo e que, assim, não compartilham das
raízes sociais comuns, parece sedutora para indicar uma desconfiança ambígua para com os retirantes.
*U BRESCIANI. Mº Stella M. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. 5 ed.
São Paulo: Brasiliense. 1989. p. 110, Cf. também CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Op.
Cit. pp. 20-21.
“1 Cf THOMPSON, Edward P. "A economia moral da multidão inglesa no século XVIII.” Op. Cit. passim.
* Neste trabalho, Canetti procura classificar as formas coletivas de organização popular em “massa”. “turba” e “malta”, generalizando as suas conclusões, através de exemplos, como características das sociedades em geral. apesar de sugerir, pela escolha dos exemplos — quase sempre de sociedades primitivas ou de religiões não cristãs -, que estas formas estão presas a um estágio primitivo da organização social, indicando uma visão evolucionista do processo
histórico. Está claro que esta é uma obra datada e intensamente marcada pelo “terror infundido a Canetti, ainda jovem. nas ruas de Viena e Berlim, pelas primeiras manifestações populares de adesão ao nazi-fascismo”, conforme explica Francisco Foot Hardman na “orelha” do livro. Cf. CANETTI. Elias. Massa e Poder. Op. Cit. pp. 13-200. 3 Isso sem falar no perigo da revolução, que irá se manifestar mais nitidamente na década de
50. O pensamento geral se resume na frase: “a miséria é subversiva”. MENEZES, Djacir. O Outro Nordeste. Op. Cit. p. 187. * ALBUQUERQUEJR, Durval M. “Palavras que calcinam, palavras que dominam: a inven-
ção da seca do Nordeste.” Op. Cit. p. 118.
* Parece correto acreditar que há um ponto de enfraquecimento físico que, se ultrapassado. não permite mais que pessoas subnutridas se revoltem. Cf. THOMPSON, Edward P. “A eco nomia moral revisitada." Op, Cit. p. 206.
104
CAPÍTULO ||
Il. A Multidão Ganha Visibilid ade
Em 1932, o trem já havia se tornado o principal meio de transporte dos reti-
rantes que procuravam abrigo na capital, As estradas de ferro da Rede de Viação
Cearense cobriam boa parte das vias de acesso à capital através dos ramais de
Baturité (sertão central e sul), Sobral (zona norte) e Soure (atualmente Caucaia, cobrindo as áreas próximas da região oeste). Assim, muitos dos conflitos que se seguiram giravam em torno das estradas de ferro, das estações de embarque e,
mais propriamente, do embarque de retirantes em direção à Fortaleza. Com as ferrovias — sustenta o Ministro José Américo de Almeida — evitavase “a extenuação das longas caminhadas, que subtraem aos retirantes a aptidão ao trabalho produtivo”.! A jornada em direção à capital é atenuada, embora não tenha se tornado confortável. O trabalho dos retirantes das secas anteriores — especialmente 1877, quando foi encampada a Estrada de Ferro de Baturité — equipou o Estado com uma malha ferroviária que, se não era exatamente ampla, pelo
menos cobria as principais rotas de comércio e de escoamento da produção agropecuária pelo porto de Fortaleza. Rodolpho Theophilo já havia percebido a importância das estradas de ferro na atenuação do trajeto dos retirantes em busca de socorro, assim como fator econômico de relativa importância. Do ponto de vista humanitário, ressaltava as
diferenças entre os que chegavam à capital em diferentes ocasiões. quando vi- |
nham a pé e quando conseguiam embarcar em algum trem. Observou os retiranni tes de 1915, quando já havia a estrada de ferro de Baturité, e constatou que
bem mostravam ter vinvam gordos, fortes e rosados”; “as crianças, rubicundas,
do dos ares puros e sadios do sertão”; não havia, neles, os “traços ds anistia Orgânica” que costumava encontrar nos corpos dos que negava
A
1877!” Porém, dessa "as secas anteriores — “que diferença das múmias de 105
NEVES FREDERICO DE Castro
convicções acerca das cir. constataçã o tirou conclusões que reforçavam as suas espírito diante deles não me comoveu”, pois
cunstâncias das migrações: “o meu la gente era preguiçosa € havia corrido antes de “fiquei convencido de que aque enfrentar o flagelo”.? Para o higienista, deixar w sertão anitos de amargar a deca. familiares, evitando a longas € penodência das colheitas, a fome e a morte dos l, era sinônimo de pre. sas caminhadas por centenas de quilômetros até a capita guiça. Não alcançava ele a formação de uma nova estrutura de sentimentos, além nses a de mudanças econômicas significativas, que levava os lavradores ceare
or das fazendas é. do não esperarem mais pela assistência paternalista no interi
mesmo tempo, à confiarem mais ainda nas suas capacidades de previsão das se.
com o meio cas. bascadas na experiência de várias gerações de relacionamento ambiente hostil da caatinga. Não era mais necessário, para eles, experimentar os
primeiros sofrimentos para decidir-se pela “retirada”. Eles já sabiam o momento, A seca, de fato, já há muito tempo se havia tornado um objeto de conhecimento para o vaqueiro errante, para o camponês tradicional e para todos os que
transitavam pelas áridas estradas do sertão. Décadas de experiência haviam elaborado um saber que se transformava em resignação diante de seu próprio objeto.
“Se a seca chegasse” — pensou Fabiano, o personagem de Graciliano Ramos 9. em Vidas Secas — “não ficaria planta verde”; “chegaria, naturalmente”, resignava-se, “sempre tinha sido assim, desde que ele se entendera”; “e antes de se entender, antes de nascer, sucedera o mesmo — anos bons misturados com anos ruins”, À trajetória de Fabiano é, em muitos aspectos, semelhante à de Chico Bento, um dos personagens de O Quinze, e pode ilustrar muitas questões relativas ao processo de passagem do vaqueiro ao retirante, suas angústias e sofrimentos, além das relações econômicas, políticas e sociais que o envolvem. O personagem de Graciliano também é vaqueiro e “recebia na partilha a quarta parte dos bezer-
ros € a terça dos cabritos”, conforme a convenção vigente em quase toda a área
do sertão nordestino. No entanto, ao contrário de Chico Bento, que cultivava com a família uma pequena parcela de terra, Fabiano dedicava-se inteiramente à e
a
e “ento não tinha roça e apenas se limitava a semear na vazante uns
im
nd
e ils; comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava
ou assinar a orelha de um cabrito”. Isso tornava-o presa fácil
omércio da cidade e para as espertezas do
patrão: “
do
não
tinha
mais
nada para vender, o sertanejo endivida », : E a a no encalacrado, e na hora das co ag d8, chegar E nd qu sigo mesmo, recla
ntas davam-lhe uma ninharia”, O vaqueiro, só con-
mava, protestava, poisi “tomavya m-lhe o gado quase de graça € 106
A Muztidao E À Hist ória
ainda inventavam juro” e decretava, revolt ado: “o que havia era safadeza”, “ladroeira”. Tudo isso fazia com que à seca se tornasse p; seus olhos, pois desestruturava completame nte este precário ido dide depquendência e sub são, em que O mais mis-
importante era alcanc ; iséri sinal de abastança era poder comprar um a “cama de couro” E ii p Vidr ; sua esposa, eternamente insatisfeita com à desconfortável ama dice
idade; e a vida de retirante — apesar de sua resignação, pois sabia que “matar-se- Ià no serviço e mor aria numa casa alheia, enquanto o deixassem ficar”, e “depois s
airia pelo mundo, iria morrer de fome na
catinga seca” — era frágil como o leito d Os rios no semi-árido, passag eira e hostil. Nem lhe restava o direito de protestar. Baixava a crista. Se não baixasse
desocuparia a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequ enos e os ca-
carecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e os meninos? Tinha nada!
A cidade, portanto, seria o destino possível, nem tanto desejado, pois sabia que “chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela”. O
ciclo da economia tradicional é frágil a ponto de expulsar permanentemente seus integrantes para outro universo ao primeiro sinal de crise: “o sertão continuaria a mandar gente para lá”, “mandaria para a cidade homens fortes, brutos. como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos”. A civilização o assusta, pois representa um novo horizonte de sentidos, onde a linguagem é regida muito mais pelo uso sofisticado da palavra do que pelas convenções da lealdade tradicional, o que para ele significava a possibilidade de ser enganado. O campo,
local onde se cultua uma simplicidade por vezes
identificada à inferioridade étnica, se contrapõe a esse universo novo; como “uma forma natural de vida — de paz, inocência e virtudes simples”, que pode ser também associada negativamente a um “lugar de atraso, ignorância e limitação”, se contrapõe à cidade vista como “a idéia de centro de realizações — de saber, comu-
nicações e luz”, mesmo que também se possa associar a “lugar de barulho,
mundanidade e ambição”.* O contraste entre campo € cidade se RORSREA na vida dos retirantes, como Fabiano, através de uma rede de desconfianças mútuas.
A revolta, porém, permanecia subterrânea em Fabiano, latejando em sua mente como o sol do cerrado de sua vida errante € cheia de incertezas. sa que era A parentemente resignad O, sentia um ódio imenso a qualquer coi s da âo, Os 5 soldados ) e os 3 ag ente
patrã ao mesmo tempo a campina seca, O
107
Freverico DE CAstTrRO Neves
prefeitura. Tudo na verdade era contra ele. Estava acostumado, tinha à Cxé ca muito grossa. mas às vezes se arreliava. Não havia paciência Que sup 1 E tasse tanta coisa. — Um dia um homem faz besteira e se desgraça. Essa revolta poderia emergir em momentos
pouco esperados, INCOnsciente
mente, na bebedeira e no trato com os familiares. como cle dependentes e gd missos: ou, ao contrário. na percepção de uma injustiça evidente, baseada nos paradigmas da tradição e do costume que são, por delinição, justos ou simples. mente resultantes de uma prática que se perde no tempo, aparecendo como nalural para os habitantes do sertão.é Os rumos da revolta também são incertos,
A vida errante dos retirantes tinha na linha férrea. já em 1932, um pontode convergência. que o trabalho dos retirantes das secas anteriores havia tornado pos. sível. Mas. diferentemente de Chico Bento, esta era uma alternativa ausente na trajetória de Fabiano. Ele circula pelos sertões secos, encontra currais abandonados e continua seu destino de retirante. em que o fim se confunde com o começo. Nas cidades do interior. no entanto, com a expansão das linhas, as praças das
estações de trem tornaram-se os principais pontos de encontro dos retirantes que
se convenceram de que o melhor a fazer durante a seca era alcançar a capital do Estado o mais rápido possível. Neste momento crucial, em que o “inverno” de 1931 havia sido fraco, insuficiente para a manutenção das colheitas, a praça da estação ferroviária da pequena cidade de Orós. já naquele dia 11 de janeiro de 1932, encontrava-se ocupada por centenas de retirantes esfomcados, quando apitou o “horário” da Rede de
Viação Cearense trazendo um carregamento de charque para ser distribuído entre outros retirantes, acampados em Jaguaribe Mirim. Orós era o fim da linha do trem; dali em diante os fardos de charque e farinha deveriam ser carregados em “lombo de burro” até seu destino. Em sua grande maioria, eram homens desesperados: as famílias permaneceram na periferia da pequena cidade, esperando uma solução para suas aflições. Eles sabiam que uma demora ou um fracasso poderiam significar a morte; com alguma coisa haveriam de retornar ao acampamento.
Alertados ou não por al-
guns comerciantes, temerosos de serem saqueados, sobre o conteúdo daquela
carga (o que não se conseguiu provar), a multidão já se impacientava quando O trem encostou na estação, fazendo grande estardalhaço € levantando muita poeira. Uma confusão se formou imediatamente, amedrontando os funcionários da
fes Vi oa s
procuravam defender a carga qb sua responsabi-
recebidas.
108
A Muinoão E À História
Contudo, alguém mais afoito, ou mais faminto, ou mais segu pei da justiça de sua atitude, forçou as portas do vagão c os guita nana a grande massa irresistível, 0 seguiram, com o se estivessem áiánas es E ; ordem para o ataque. Num ambiente de gran de tensão e dioiicidad a muldão atacou o carregamento, derrubando violentamente às portas dos vagões e, diante da perplexidadea dos funcionários da estrada de f erro e de alguns poucos : soldados hesitantes, imediatamente levou 48 fardos de charque para longe da praça. para Os “abarracamentos” construídos precariamente com folhas e ou-
tros materiais perecíveis, sob algumas árvores mais frondosas. Lá, os alimentos
foram avidamente consumidos pelos retirantes ce suas famílias famintas, num estranho banquete.
Segundo o jornal O Povo, “não poude haver resistência da parte dos funcionários em vista do número vultuoso de assaltantes”.º A novidade desta ação. que significava a realidade da violência dos retirantes subvertendo a sua tradicional resignação, talvez tenha contribuído para paralisar os agentes da ferrovia e os policiais. O espetáculo, apesar de pressentido, parecia inusitado. A um só tempo, os códigos do paternalismo — delimitando rigidamente o
lugar destinado aos homens pobres do campo no interior da hierarquia de poder — pareciam ter sido quebrados e as regras da política representativa, ainda incipientes, pareciam não ter sido absorvidas. O ataque, porém, pretendia retomar uma or-
dem que, do ponto de vista dos retirantes, parecia ter sido abandonada: a proteção aos pobres em tempos de seca. Todavia. a multidão, estimada à princípio em 300 pessoas, não ficou satisfeita. Os retirantes não estavam seguros a respeito de uma proteção razoável na pequena cidade e sabiam que esta carga não lhes saciaria a fome por mais que algumas horas; decidiram, portanto, entrar no trem e seguir para a capital, onde esperavam obter uma assistência mais duradoura. Pensavam em estar próximos aos centros decisórios, em que a caridade dos habitantes e das autoridades da capital não os deixaria passar por mais privações. Ocuparam os vagões destina-
dos para carga e, apesar do grande desconforto, exigiam a partida para Fortaleza.
Os comerciantes e os curiosos habitantes da pequena cidade, assim como suas autoridades ameaçadas pela transgressão, apesar da perplexidade e de uma
Feticente solidariedade cristã, viam, silenciosamente, com bons olhos a partida da multidão sediciosa, temendo novos acontecimentos. Não lhes agradava ars
la imagem constrangedora de trabalhadores transformados em
ni
famintos,
Pedintes, clamando por piedade, nem muito menos à convivência com tragédias Colidianas de pessoas morrendo de fome nas calçadas. Um confuso sentimento de culpa e de alívio tomava conta daquelas pessoas em vista da partida dos reti109
Neves FreDERICO DE CASTRO
Após uma rápida troca de telegra. rantes. No entanto, os funcionários hesitaram. ciação quase sem palavras com os nego il difíc uma tece acon al, capit a mas com .
s do que argumentos sistemá; amotinados, onde mais valem promessas concreta
is de um outro debate entre cos e coerentes acerca das leis de propriedade. Depo am em voltar às suas barraças funcionários e autoridades, os retirantes concordar
e esperar pela mobilização do comércio.
armazéns organizaram Liderados pela Associação Comercial, os donos dos rapidamente uma coleta de alimentos que mitigou por alguns dias a fome da
suas mercadorias, multidão. Cada comerciante doou uma pequena amostra de temendo perdê-las em sua totalidade. |I. A Lei e a Ordem
Com a multidão “acalmada”, a paz parecia ter retornado à Orós e a ordem natural das coisas parecia ter sido restaurada: os pobres, resignados, esperavam
pelas precárias soluções vindas dos poderosos ou pela definitiva solução vinda de Deus Todo-Poderoso. Uma semana depois deste acontecimento. contudo. quando tudo parecia crer que a situação estava controlada, um destacamento policial chega à Orós e procura por entre aquelas barracas miseráveis os supostos líderes daquele saque, por
ordem direta do Sr. Interventor Federal no Ceará, o Capitão Carneiro de Mendonça. Após uma rápida incursão, três retirantes são presos, identificados numa breve investigação baseada nas muitas testemunhas visuais: José Bento Filho, Leopoldo Bento do Monte e Manoel Leandro. Além destes, considerados “os responsáveis diretos do ataque e assalto” pela Procuradoria, os policiais prendem seis negociantes de alimentos, “acusados de haverem (...) influenciado no animo
dos famintos dali para atacarem a estação ferroviária e retirarem gêneros alimentícios”.? São todos levados para a cadeia pública localizada em Icó, sede da comarca, e depois transferidos para Fortaleza. O Dr. Raimundo Gomes de Matos, conceituado advogado da capital, imedia-
tamente entra com dois pedidos de habeas-corpus, um para os retirantes € outro para os comerciantes. Estes, assim que chegam à Fortaleza, “devidamente escol-
ede
tados por sm tenente da Força Pública do Estado”, são libertados por força de
E
rd
insistentes apelos em
ii
a
a os pobres, ficam presos até o julgamento ar
Fo
io de abril, apestt e a pia RR a indos do interior, recebidos pelo advogado 110
A MutripÃo E A História
divulgados na imprensa da capital, dando conta das “horríveis privações” por
que passam as famílias dos presos, abandonadas à própria sorte .* Uma análise deste processo poderá trazer algumas luzes oba as formas de perceber a multidão por parte das autoridades, neste momento, assim como as formas assumidas pela legislação no que diz respeito aos movimentos “espontãneos” dos retirantes famintos.
Em sua argumentação, o ilustre advogado procura neutralizar as acusaç ões
feitas a seus “pacientes” através de duas idéias básicas: 1º) é impossível imputar a três pessoas um ato cometido por uma multidão, já queos “autores foram em
grande numero, numero mesmo incomputavel”; 2º ) à prisão foi ilegal, pois não
“emanou de qualquer ordem de autoridade constituída, constando. apenas, se
acharem denunciados, além de outros, pelo dr. Procurador da República”?
Este segundo argumento remete às tensões entre o aparato judiciário e as decisões discricionárias dos Interventores Federais no contexto do pós-30. O poder de prender e de sustar os habeas-corpus, concedidos aos Interventores pelo Dec.
nº 19.398 de 11.11.30, deveria se referir somente aos crimes políticos e, através deste poder, os revolucionários talvez pretendessem cercear uma reação oligárquica no âmbito do Judiciário. Assim, ao qualificar os assaltantes do trem de Orós também como “elementos perigosos á ordem pública”, a Interventoria cearense procurava extrapolar em seus poderes e ampliar seu raio de ação reguladora do
social. passando por cima das “velhas” normas jurídicas tradicionais, baseadas no controle pessoal dos coronéis e estabelecidas antes mesmo da chamada República Velha. Assim, o conjunto disponível de leis, sua aplicação e interpretação, parece variar de significado conforme as necessidades de momento, em que alguns delitos precisam ser mais intensamente punidos ou que as disputas entre os magistrados fazem pender a balança da Justiça para um lado ou outro. Além disso, a necessidade de um exemplo, em situações de exceção, parecia motivar ainda
mais a atuação das autoridades e o interesse no caso. No entanto, as divergências entre o Interventor, os juízes e os proprietários não ultrapassariam jamais um nível em que os conflitos de classe se mostrassem transparentes € compreensí-
veis. À defesa da propriedade deveria, de qualquer forma, ser preservada. O Juiz Dr. Luís Moraes Corrêa considera portanto, que aquela qualificação
“não modifica a natureza do delito (crime comum) atribuido aos pacientes” e
concede o habeas-corpus, o que é reafirmado pelo Juiz do STF, Dr. Plínio Casado, que afirma definitivamente: “é patente que se trata de crime comum”. Para além da querela entre magistrados e interventores, O que ainda interessa nesta questão é constatar que não se conseguiu, à partir da legislação em vigor, 111
Neves FreDERICO DE CASTRO
um consistente conteúdo ni sar de tentar Ut: le sa que ae dE cemicã à “tranquilidade pública e a segurança Pg imprimir aque lo ás
Mg e ventái não consegue tornar este atentado em um ato COnscien TR
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ameaça à organizaç
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ataque
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nização social e política. que, portanto, poderia ser absorvid d
bo Porém, um Fouby ontra a propriedade, o roubo. E
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maneira específica.
No contexto do paternalismo olgárg ate
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permanece como aiá rma
sombra pairando sobre todos. especialmente sobre os esposa
Pobres, viven.
da miséria absoluta, à procura de uma precária do permanentemente no limiar deseguilíbrio latente é uma das funções “segurança alimentar” - Gerenciar este s ; alismo, que deve exercê-la socialmente, no inte. hegemônicas centrais do patern em as relações sociais baseadas na “rec. rior do jogo de forças em que se constitu
procidade desigual”. É inerente à dominação paternalista, no entanto, pretender
controlar este jogo completamente no âmbito da esfera privada, o que não se
combina com um julgamento institucional, baseado em leis universais que regem uma esfera pública, seja por parte do governo ou da Justiça. IO Ao mesmo tempo, porém, impõe-se à magistratura uma noção corrente a respeito da pobreza e das
ações motivadas pela fome. inserida num ambiente social que de certa forma as legitima, como derradeiro recurso diante da morte.
Este tipo de roubo já era, de certa forma, esperado e temido pela população e pelas autoridades paternalistas, que imediatamente o recobrem de características especiais que o diferenciam do roubo comum, cometido pelos motivos mais
fúteis. Um levante da multidão de pobres remete imaginariamente aos atos revolucionários e violentos que abalam civilizações inteiras, “que a história tantas
vezes nos fala”.!! Não se trata somente de subtrair a alguém uma parte de sua propriedade inatacável, mas agora é o conjunto do tecido social que está sob
ameaça. Ao mesmo tempo, aquele que comete o delito está submetido a uma pressão última: a fome, O saque, portanto, distancia-se do roubo, tanto na ótica das
autgriciaddes e da população ligadas às práticas paternalistas quanto na ótica dos
próprios camponeses.!? | E conteúdo político deveria corresponder, igualmente, a um sujeito respom
Er
e de a era
tim eo
iguala-se aos animais na luta pela sobre! K
a visão corrente.!º O ato de saciar sua fome fi
ca, Ee assim, f mesmo ss superf ic iciialmente associado a uma subversão gente, não é reconh da ordem Me ecido como u m ato político, em que se exige não “ sm.
I
112
8
A Muztidão E A História um sujeito consciente de sua ação mas uma racionalidade e um projeto global que nega is restabelece a vrdem. Entende-se que a ação da multidão, pelo con-
trário. provem do desespero, que Seguramente nada tem a ver com a política,
Agindo pelo impulso da fome e do instinto de sobrevivência, o homem não pode
ser responsabilizado pelos seus atos, Por outro lado, o primeiro argumento do advogado, de uma certa forma. já
anula o segundo, ao Ana nro saque como inimputável pelo fato de ter sido cometido por um numero
incalculável de pessoas. Esta era uma novidade no campo
das disputas jurídicas, não prevista pelo Código Penal de 1490, que “determina-
va, fregiientemente. confusão prejudicial entre a criminalidade da multidão e a autoria incerta”. !4 Uma ação efetivada por um sujeito coletivo lormado espontancamente não tem como ser criminalizada e isso, apesar das distâncias efetivas entre a cultura popular e a estruturação jurídica, reflete uma posição da sociedade a respeito, argutamente percebida pelo advogado, que se mostrava atento aos debates contemporâncos sobre os direitos sociais e sobre a chamada “questão social”! isto é. sobre a nem sempre desejada intromissão dos pobres na arcna política.
De uma certa forma, sua formação espontânea, sua violência ritual, a fome como sua motivação principal e seu objetivo definido garantem à multidão uma legitimidade social que ultrapassa os princípios básicos do Direito e até mesmo as normas informais consagradas pelo paternalismo. A reciprocidade “submissão
versus proteção” só está garantida em tempos de relativa estabilidade econômica e política, quando é possível a cada um cumprir com suas obrigações. A crise em suas formas mais agudas — a seca, a escassez, a fome — autoriza
uma quebra deste pacto paternalista quando a proteção não é suficiente.! Neste caso, pode-se deduzir que uma ação coletiva, tal como esta, dificilmente pode ser criminalizada quando não se consegue identificar os líderes ou os insufladores. Ao mesmo tempo, a costumeira resignação camponesa autoriza uma desconfiança de que cesta ação teve influência de elementos externos. Daí porque,
junto com as supostas lideranças, a polícia do Interventor Carneiro de Mendonça procurou prender alguns comerciantes, os quais, embora indiciados como ne
A
e)
“insufladores”, são rapidamente libertados por interferência da Justiça.
A multidão. portanto, como um elemento estranho às normas jurídicas que Penalizam o indivíduo, permanece à margem do horizonte de pensamento dos legisladores modernos. O crime é cometido por uma pessoa ou por um “concurso de pessoas” e à participação na “multidão em tumulto” torna-se apenas um cle-
Mento atenuante. Curiosamente, estas noções serão incorporadas ao Direito brasileiro apenas 113
Freverico DE CASTRO NEVES
com o Código Penal de 1940. parcialmente reformado em 1984, e de certa forma
autorizam o surgimento da multidão em situações extraordinárias e de Extrema gravidade, como a relatada aqui.
Por um lado, como já foi ligeiramente mencionado, afirma-se para o agente a circunstância atenuante quando “cometido o crime sob a influência da Multidão
em tumulto, se não o provocou”. Trata-se do “crime multitudinário” — em que não há apenas um agente ou
alguns poucos agentes identificados ou identificáveis mas um número incontáve) e não identificável de agentes — que é “praticado por uma multidão em tumulto, espontancamente organizada no sentido de um comportamento comum contra pessoas ou coisas”.!* Destaca-se, aqui, a concepção de “espontâneo” como um
movimento dirigido para um fim específico c que se desfaz após atingi-lo ou fracassar em seu objetivo, sobre o qual não se consegue discernir uma liderança permanente ou uma entidade organizadora que possam ser responsabilizadas criminalmente. Estão intimamente associados, assim, O adjetivo espontâneo ao subs.
tantivo tumulto, reproduzindo uma visão característica da modernidade política, baseada nas noções integrativas de racionalidade e representatividude. A política representativa busca, através da escolha de representantes — que substituem à coletividade na ação —, evitar a formação de multidões que agem sem um plano definido, irracionalmente, conforme seus instintos e emoções mais imediatas.!º A negociação entre representantes substitui a violência e a irracionalidade das manifestações das multidões “desorganizadas” de pobres e das multidões “organizadas” que são os exércitos. Em contraposição a estas formas “civilizadas” e “racionais” de manifestação política e social, as multidões, ou as turbas, “merecem uma outra atenção: indicam uma aglomeração ocasional e temporária, agres-
siva às instituições sociais” e possuem, portanto, um “poder destruidor da ordem
social”.20 As “massas tumultuárias”, assim, são vistas como um mal que ameaça a civilização; elas “enchem todos os horizontes e invadem a esfera política, pesando nas reformas, superpondo-se ao indivíduo, afogando com a sua mediocridade o fulgor do gênio e as grandes conquistas da humanidade”. A multidão “ulula semelhante à hiena e braveja sequiosa de sangue”. A sugestão que a inflama exerce, às vezes, sobre os indivíduos que a formam uma espécie de fascinação quase irresistível. Exagera o fator antropológico. Exalta o ódio reprimido. Anestesia, instantaneamente, a consciên-
cia e desperta e anima os sentimentos de crueldade que permanecem adormecidos. A sua força é um tufão violento, a cujo sopro não se esquivam
114
A Munição E A História
senão OS temperamentos excepcionais. No seu ímpeto aniquilador, a multidão comumente comete
ia
e derrama sangue inocente. Só após o seu
retorno à calma e ao actos, passada a excitação que a empolgou, é que acorda do pesadelo sofrido aquele que, ao seu contacto, se tornou crimino-
so. Como punir os delitos assim perpetrados??!
As ações que fogem à regra da política representativa, portanto, insistindo
no modelo de ação coleti vao direta, são — e devem ser — imediatamente identificadas com um estágio primitivo € pretensamente superado das relações políticas. E é este tradicionalismo o que atenua o crime, já que praticado no interior de um em alcontexto cultural que, embora seja considerado ultrapassado, permanece
guns setores da sociedade moderna.
A multidão. assim, se contrapõe ao indivíduo, núcleo da sociedade segundo os padrões liberais de concepção do mundo.
Enquanto tal, carrega suas mais
negativas qualidades € é responsabilizada pela decadência e degeneração do “gênio” individual.
Portanto, a multidão somente pode constar nos códigos legais quando “em
tumulto”, o que demonstra a dificuldade de sua criminalização. O indivíduo perde-se no interior da multidão, confunde-se em sua personalidade e em sua identi-
dade, passando a agir conforme os instintos indefinidos e volúveis da multidão
sempre em fúria.?? Por outro lado, o Direito introduz a noção de “estado de necessidade” para incluir “quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua
vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio”.?* Nestas circunstâncias, não há sequer a ilicitude, já que o sujeito não está em condições de não cometer o delito — que, assim, deixa de ser delito. Dentre as situações
características do “estado de necessidade” encontra-se sintomaticamente o “furto famélico”, em que há “subtração de alimentos para salvar alguém de morte por
nanição”.* Assim, o sujeito é considerado inimputável pela lei, pois encontra-se ima situação-limite que o leva a cometer uma ação normalmente considerada criminosa. A legislação, a despeito de suas iniciativas modernizantes no campo das
ao
a
ço e
e políticas, parecia referendar uma prática Hpicamente
patemê-
acolher os que têm fome, perdoar os crimes cometidos panecedniaa
esespero. E, ao mesmo tempo, a caminhada “racionalizadora”
em curso,
Eras das ferrenhas críticas às “oligarquias” é sua política de tipo tradicional a
o
não é regulada por leis universais institucionalmente estabelecidas,
utua ao sabor das relações pessoais baseadas em critérios subjetivos 115
FrevERriCO DE CASTRO NEVES
como honra, dever, lealdade etc =, parecia, paradoxalmente, aprovar uma ação coletiva que se contrapunha aos modelos corporativos altamente hierarquia.
dos e “organizados” que se procurava implantar no pós-30. As iniciativas e
volucionárias” retomaram. assim. aspectos significativos da cultura política da Primeira República, baseados na idéia de reciprocidade, absorvendo q Estado muitas das obrigações antes atribuídas aos próprios proprietários, os “Oligarcas*
e os “coronéis”. Nesta ambigilidade o novo governo se debateu, deixando um, forte herança que permaneceu na cultura política brasileira, sintetizada no “trabalhismo”.?
Mesmo que analfabetos cm sua grande maioria e parcialmente isolados em suas comunidades rurais, portanto, mas como se impulsionados por este estímulo legal, os sertanejos cearenses começaram, à partir deste episódio de 1932, à to.
mar atitudes semelhantes. procurando intervir mais diretamente nas iniciativas assistenciais durante os períodos de secas. De fato, dificilmente poderíamos clas. sificar estas iniciativas como “intervenções planejadas” contra uma política assistencial inexistente, insuficiente ou inadequada. Os retirantes buscavam en.
contrar quem mitigasse a sua fome, quem os ajudasse nos seus momentos de privações e desespero. reatando fios perdidos de laços societários de ajuda múlua
que a dura realidade da seca jogava por terra.
Uma lógica paternalista do “apadrinhamento” é seletivamente reconstruída para dar lugar a ações violentas de amcaça e saque, as quais parecem romper com
esta lógica. mas não conseguem separar-se dela nem fora dela podem ser compreendidas. Porque, na verdade, estas ações demandam a reimposição da ordem paternalista, baseada nas relações costumeiras de “reciprocidade desigual”, em que todos. apesar das diferenças de status, possuem uma obrigação e é este dever
que sustenta a ordem do social. À resignação e a submissão se correspondem, neste sistema, à proteção em tempos difíceis, o que inclui a caridade durante as secas.?6
Ill. Consequências e Desdobramentos Neste mesmo ano, foram mais 12 ações que podem ser incorporadas a este novo modelo que se moldava neste momento. Invasões dos mercados, ameaças de saque às feiras ou apenas a presença desafiadora e incômoda de levas e levas
de gente faminta perambulando pelas ruas das cidades, sem destino nem ocupação, passam a preocupar cada vez mais as autoridades urbanas. As áreas “afeta das” correspondem mais ou menos às áreas de maior irregularidade pluviométrica: 116
A MuitiDÃo E A História
ntral. Centro-Sul e Inhamuns. Em todas clas, a mesma característica de
conões CO idade”, de formação da multidão “em tumulto”, de claros e imediatos oi GU, especialmente, fugacidade.
judo neste novo contexto político do pós-30, de centralização do Esta-
seca de 1932 foi entendida, desde o início, como uma “questão nacional”,
e ç à segurança pública, a ser enfrentada através da conjugação dos vários is ligados à assistência social e pública. A coincidência da seca com
a
sta”, como veremos, foi outro fator que ajudou a criar esta interpre-
e Ao contrário das secas anteriores, Os governos federal (Ministério de Viação e Obras Públicas € Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas — IFOCS) e esta.
a
tã ção.
.
.
-
dual (Departamento das Secas, criado especialmente para esta seca) se articulam planejadamente, pela primeira vez, para evitar as migrações e todas as questões
decorrentes da mobilização dos camponeses.
Tratava-se de uma seca que “surpreendeu a todos, pelo seu raio de ação, sua
extensão e sua devastação"?? c que “alastrou-se por uma área enorme”. As notícias da frustração das lavouras, o mal estado da criação por falta ou deficiência das pastagens nativas começaram a chegar com muita insistên-
cia à Capital. Por isto, bem cedo, foram transmitidas às autoridades fede-
rais aflitivas solicitações de providências imediatas. Assim, logo nos primeiros meses do ano, o Ministro da Viação e Obras Públicas percebeu que “urgia uma vastissima organização do trabalho, para comportar os milhares de homens validos que ainda podiam dar alguma coisa de si,
antes que fossem mais devastados pela fome”?? e, para isso, um grande esforço
deveria ser empreendido pelo governo. Mas essa percepção não foi só elaborada em face da destruição das colheitas ou de um colapso da economia. As pretensões de controle da sociedade e de racionalização das atividades estatais esbarravam numa crua realidade que os
Jormais já percebiam, temiam pelo pior e denunciavam que “o exército sinistro de estomeados marcha pelas estradas em demanda de Fortaleza”3º a ep daquele aque em Orós, Fortaleza já e via, E início de abril, “invarg onda faminta”, e a chegada de um trem mixto fenrga e passageiros), € Senador Pompeu com cerca de 300 retirantes espremidos nos vagões sina eta Eraride sensação: “um dos quadros mais dolorosas, mais
; ao
da atual crise climatérica que assoberba O Estado”, A esta cidade
=
Senador Pompeu localiza-se na microrregião do “Sertão Central” — 117
Freverico DE CAstRO
NEVES
acorriam multidões de famintos na perspectiva da reabertura, pelo Bovema, obra de construção do açude Patú, iniciada em
d,
1923 e que se encontrava Mm
rompida. Aglomeravam-se nas praças € ruas próximas à estação, vivendo da a
mola é do apoio de comerciantes ou do vigário local. Já haviam tentado assaltar “um
trem de passageiros
que
por ali passou,
mas
não conseguiram”.
Um dia
antes, este mesmo trem foi “assaltado por cerca de 80 flagelados que, Pondo dormentes na linha, o obrigaram a deter-se e nele viajaram até Senador Pompeu
O “mixto”, porém. não teve a mesma sorte: “os desgraçados, em grandes grupos,
invadiram os vagons e de lá não saíram, nem deante de ameaças, nem mesmo à força”. Em
Fortaleza. após uma estafante viagem, sem água e sem alimentos, uma importante comitiva foi acionada para receber os retirantes: o Chefe de Po. lícia capitão Falconiére, o prefeito municipal Sr. major Tiburcio Cavalcanti e os delegados de polícia Ubirajara Negreiros e Franklin Monteiro Gondim, acompa-
nhados de uma patrulha de 12 guardas civis. Ficou decidido que os retirantes inam ser desembarcados nas estações de Otavio Bonfim e Central e abrigados nos albergues noturnos da Polícia Marítima e do Otavio Bonfim. Na primeira estação. porém. o trabalho da polícia para organizar a chegada foi dificultado pela “massa popular”, já que “todos avançavam para Os vagons e queriam ver de perto o horrível quadro”. enquanto que “cerca de três centenas de famintos. homens. mulheres e crianças, amontoados nos dois primeiros vagons, uns por cima dos outros, a quererem descer de uma vez, a pedirem comida e água”, tomavam
impossível um desembarque minimamente organizado; afinal, em face da confusão generalizada, todo o desembarque loi transferido para a estação Central, onde se pensava poder organizar melhor a recepção. Logo se percebeu, também, que os albergues seriam pequenos demais para alojar os famintos e o governo, “muito bem inspirado”, segundo o jornal, resolveu construir um alojamento, “no trecho
compreendido entre Pirambu e o Porto”, “com suficiente capacidade para abrigar a multidão de retirantes”.*! Era uma cena impactante, que reacendia os temores ante a multidão de po-
bres famintos e andrajosos e fazia retornar lembranças de episódios de secas anteriores, principalmente porque não se tratava de um episódio isolado. A “onda faminta” se movimentava por todo o Estado.
Ainda em janeiro, o Prefeito de Iguatu envia ao Governo estadual um exaltado telegrama, expondo a situação local. Afirma que sustentou “100 famílias du-
rante quase um mês, distribuindo eguitativamente por meio de trabalho honesto na estrada de rodagem”. No entanto, sua residência é “assediada constantemente
por homens validos, implorando trabalho afim de não perecer de fome”, o que acaba acontecendo com uma “creança de seis anos de idade”; “casos dolorosos
118
A MuripÃo E A HisTÓRIA
como este comovem o coração de quem é pai e cuja repetição ameaça tornar-se frequente”. Denuncia ainda que “espíritos exaltados concitam famintos ao saque
dos armazéns e casas particulares que presumem abastecidas, bem assim á casa do prefeito, a exemplo do que foi feito em Orós”. Os trabalhos que já haviam sido iniciados em Morada Nova não comportaram, por outro lado, o “afluxo de numeroso grupo de flagelados procurando trabalho”, que passaram a andar pelas ruas “implorando a caridade publica, que não póde mais socorrêl-os”, Comerciantes apelam à redação do jornal para obter do
governo “outros serviços urgentes”, a fim de “minorar a sorte de nossos irmãos”. Em fevereiro, Icó teve a mesma sorte; um comerciante foi atacado “a pu-
nhal” por “um grupo de famintos” e, sozinho, reagiu à bala, mas “saiu ilêso”.* Em março. cerca de 500 pessoas tomam de assalto o mercado de Iguatu e levam algumas mercadorias; o “Prefeito, sem recursos, não pode resolver aflitiva situa-
ção” Ao mesmo tempo, retornam as especulações sobre a abertura de um progra-
ma de migrações para a Amazônia. No fim de março, notícias de um agenciador de empregos para uma fábrica de tecidos em Santarém, Pará, agitam algumas áreas de Quixadá, já que “as populações deslocam-se, palmilhando as estradas em busca do litoral” e “o Estado não tem recursos para sustentar essas legiões
famintas que diariamente se multiplicam”.* Em abril, além do caso mencionado, em Afonso Pena, Girau e Senador Pompeu “foi o trem invadido por levas de flagelados que suplicavam passagens para Fortaleza”; “a muito custo puderam os funcionários da R.V.C, dissuadi-los
eg
de seu intento”. Segundo o informante do jornal, “não haverá trabalho oficial capaz de conjurar a situação, pois o numero de famintos é incomputável, em toda parte crescendo diariamente”. Conclui que “o recurso é dar passagem para o norte ou sul”, pois “dentro do Ceará esses milhares de desocupados não podem ficar, sob pena de causarem graves embaraços ao governo”. Complementa seu informe com a notícia de uma “criança morta a beira de um caminho, sendo devorada pelos urubus, enquanto perto do cadaver arquejava uma irmãzinha, que foi salva
n45 E Acid na
ETA 40
eres
Piso
Meca CS irpi SA MERAS ms
da morte certa pela fome”.?6 Em Juazeiro do Norte, os retirantes, “movidos pelo desespero da fome, assaltaram alguns estabelecimentos”, provocando “justificada apreensão tanto no comercio local como á praça de Crato”. A “multidão de famintos”, “insuflados pelos profissionais do crime”, atacou a feira nova de Juazeiro, “cujo comercio alarmado pelas continuas ameaças permanece fechado”. A intervenção do advogado Alfeu Aboim e do Desembargador Olivio Camara, pedindo calma e “pro-
metendo enviar telegrama ao governo expondo a situação”, evita a ampliação do 119
Freverico DE CASTRO NEVES saque. Os telegramas que chegam à redação do jornal — assinados Pelo pPelci
local. pelo Juiz de Direito. pelo Presidente da Associação
Comercial etc
assi
lam a “insegurança” e os “horrores da fome” que reinam na cidade: Esta e
tra-se “despoliciada e repleta de famintos que estão morrendo de fome em
di Plena
rua”. A iminência de uma generalização do saque é vivamente sentida pela, ho.
ridades, que procuram precaver-se através dos recorrentes pedidos de auxílio ay
govemo estadual e federal. No dia 11 de abril, “cerca de cinco mil famintos is
enxadas, pás, mais ferramentas ao hombro, amanheceram em frente á Casa do Prefeito pedindo trabalho”. Os “recursos particulares” estão esgotados: “espera.
mos sejam enviados socorros”.” Ainda em abril. cerca de 600 retirantes tomam uma composição de trem entre Senador Pompeu ce Quixadá. viajando até à capital, onde são alojados his
Matadouro Modelo. No caminho. em Quixadá. “vieram a falecer quatro Crian-
ças”, mortes provocadas “pela debilidade em que se achavam as pequenas víti. mas do flagelo e, também, em consequencia do excessivo calor no trem”. O jor-
nal, diante desta e de outras notícias semelhantes, resolve solicitar da R.V.C. à regularização do tráfego de trens pelo Estado em face das recorrentes invasões dos vagões pelos retirantes. “O governo não deve oferecer resistencia á onda fugitiva que invade os trens”, mas deve estabelecer “trens para a condução de retirantes € trens para os passageiros e transportes comuns”.* De fato, os “trens
são assaltados e agora os chefes de comboios já não impedem a vinda dos flagelados para a capital”,*? afirma em tom de denúncia o jornal católico. De modo geral, estas ações são rápidas e resultam na distribuição de alimen-
tos, passagens e, principalmente, promessas entre os retirantes. Comerciantes, padres, prefeitos e até advogados “negociam” diretamente com a multidão — através de exortações e se utilizando de um profundo conhecimento da realidade dos sertanejos e dos meandros das relações de poder baseadas no paternalismo — procurando oferecer garantias para a abertura de frentes de trabalho ou medidas
assistenciais que amenizem os sofrimentos imediatos daquela população. Assim, a assistência paternalista se combina com a assistência oficial, transformando os
“negociadores” locais em intermediários entre as demandas da multidão e as obras
estatais. Um modelo de campo de forças — de pressões e contra-pressões — que estará mais plenamente desenvolvido na década de 50. A ameaça da multidão
força os limites do paternalismo e o faz ser incorporado aos mecanismos estatais
de assistência pública. Em Iguatu, “o pessoal quis invadir a rua, o Monsenhor saiu com a comissão,
em cada armazém ele pedia uma saca de feijão, uma saca de farinha, uma saca de arroz, rapadura, sabão”. 120
A Muinipão E A História Juntava na casa dele e ele distribua, litro por litro, para o pessoal. Em vez
de tá aglomerado na prefeitura, a prefeitura não tinha iiliçõ es faso tem-
po. aí era o Monsenhor quem distribufa na casa dele. Eu ajudei muito a
medir litro de farinha pra botar para os flagelados.
A presença de pessoas do campo e da periferia da cidade transforma a multidão em algo heterogêneo, que surpreende a população urbana e exige no-
vas formas de relacionamento: “Vinha criança, quem morava aqui pela rua vinha com as crianças, quem morava nos sítios, na zona rural, vinha os pais de família”.
E as autoridades locais eram solicitadas a “negociar” com a multidão em termos que pudessem ser entendidos por todos, o que significava prometer alimentos e trabalho e, efetivamente, providenciar um “fornecimento” imediato:
“Padre era visado nesse tempo de seca, padre, prefeito, as autoridades do lugar”. A proteção anteriormente proporcionada no intcrior das fazendas é definitivamente abandonada pelos proprietários e nem sequer mais esperada — embora com uma certa nostalgia dos tempos passados — pelos retirantes. Tinha patrão que tinha dez moradores mas com esse tempo eles não sustentavam ninguém, que os bancos naquele tempo não emprestava dinheiro pra ninguém, nesse tempo quem emprestava era os coronéis, 1%, 2%... Não
tinha banco. Assim, neste momento, nos primeiros meses de 1932, as migrações já agitavam todo o Estado, desorganizando a produção agrícola já debilitada pela falta
de chuvas. O objetivo destas migrações eram as cidades do litoral, especialmente a capital. e os locais onde o governo implementava ou planejava uma obra de
grande porte, como uma estrada ou um açude. À capital, mais uma vez, tornavase O refúgio principal para a população em fuga: somente em um dia, 1.349 retirantes chegam à Fortaleza, protagonizando “cenas impressionantes” de miséria,
loucura e desespero que abalam a opinião pública local.*! As lembranças de secas anteriores e, especialmente, do Campo de Concentração do Alagadiço de
1915, atemorizavam a população da capital e formava-se rapidamente o consens0 de que “o governo precisa sem demora fixar Os flagelados no interior”, pois “Nada aconselha mantenha o governo em Fortaleza milhares de homens em abar-
Tacamentos, inactivos, augmentando as dificuldades de vida dos aqui já existentes” 42
a
A “afluencia de famintos desnorteava”, portanto, os responsáveis pelas obras. Públicas a cargo do IFOCS, pois “não havia improvização capaz de atender a 121
FreDERiICO DE CAstRO NEvEs
avalanche humana que se precipitava para os logar es onde se iniciava y
ou se supunha iniciar". No final de abril, já eram 30 mil os desalo;; jo seca. somente entre Crato e Senador Pompeu.“ Jados pe la A reação do govemo, portanto. devia ser imediata. No mesmo mês de
a Interventoria do Ceará “tomou urgentes providencias”. promulga ndo mi portantes decretos para organizar a assistência aos retirantes e “evitar o dest im.
mento deveras temivel para a saúde e a tranquilidade publicas das popa sertancjas que emigravam para diversos ponto s. principalmente para a Serie a As ações da multidão se acumulavam nos primeiros meses do ano e €Xxigiam A resposta rápida de um governo que se pretendia forte.
Em primeiro lugar. com o Decreto nº 564, 0 governo “restabelece O comissa.
riado de alimentação pública no Ceará” com o objetivo de “regular as relações comerciais referentes à alimentação pública”, intervindo diretame nte no mercado de alimentos para garantir um abastecimento mínimoe preços razoáveis. Dentre suas atribuições. constavam-se: “verificar semanalmente o estoque de generos alimentícios”,“, “ingu “1 erir do custo de produção desses generos”, “limitar os preços máximos”,”, “assegurar o abastecimento”, “fazer aquisição de generos alimenti-
cios sempre que fôr necessário estabelecer o equilíbrio do consumo”, “requisitar ou desapropriar por necessidade pública toda espécie de genero necessário à ali-
mentação” etc. Ou seja: o governo percebia claramente que o livre fluxo do mercado, num momento de crise, poderia ter graves conseqiiências para o abastecimento e, assim. corroborava as noções populares a respeito da distribuição da riqueza social durante a escassez. O desequilíbrio entre oferta e procura, ocasionando a alta de preços em momento de graves comoções populares, era entendido como uma caso de segurança pública, que requeria uma intervenção rápida €
direta. desprezando os organismos da política representativa e outras intermediações políticas.
Com o Decreto nº 565, em segundo lugar, o governo estadual “abre O credito extraordinário da quantia de 200.000$000, para socorro dos flagelados da crise climatérica que o Estado ora atravessa”, complementando o Decreto nº 21.048 de 16.02.1932, em que o governo federal abria créditos ao Ministério da Viação. “considerando a urgencia em atender a situação dos 'sem trabalho”, nos Estados do nordeste, que ainda perdurará por algum tempo, em consequencia dos efeitos
da crise climaterica que vem assolando aquela região”. qc a Em terceiro lugar, o Decreto nº 566 “crea o Departamento de Secas + siderando que o poder público está na obrigação de socorrer as pia crise climatérica de modo a minorar os seus sofrimentos e amenizar O res de seus efeitos”. O novo órgão procurará “centralizar e uniformizar todos 0º ore
,
-
.
122
.
A
ser-
A MuzridÃo E A História
viçoS relativos é
ams flagelados” e se articulará aos órgãos federais, es-
jalmente O IFOCS, na implementação da política de assistência.
O Ministro José Américo de Almcida, por seu turno, cogita, a princípio, a
implementação definitiva do novo Regulamento do IFOCS, de 1931, que prevê a cinstallação de hospedarias de retirantes, durante as sêcas prolongadas”, por-
vc, assim, “ficarão evitados o extravio das populações sertanejas e a prática humilhante da mendicidade, como único meio de subsistência, na incidência da calamidade”.
Pretendia cle “evitar as grandes agglomerações urbanas”, con-
vencido de que “a história das outras sêcas devia condenar esses ajuntamentos improdutivos. que haviam acarretado os maiores damnos moraes e materiaes”; enfaticamente, “manifestava a mais systematica opposição a esse processo de socorro aos famintos”. No entanto, face ao “cataclysmo que se abateu sobre todo o norte, na sua força destruidora ou nos seus reflexos”, “as circunstâncias
foram mais poderosas do que esse pensamento da experiência de um passado de tantos infortúnios”. São criados, então, vários Campos de Concentração, espalhados pelas várias rotas de migração no sentido do interior para a capital: sul (Crato), centro (Senador Pompeu, Quixeramobim e Cariús) e norte (Ipu). Em Fortaleza, dois pequenos campos foram instalados (Urubu e Tauape). A direção dos campos, segundo determinação do Ministro, ficou a cargo do governo estadual, “que lhe imprimiu um impeccavel regime de disciplina e
moralidade ”.*? A concentração dos retirantes foi facilitada pelo próprio sentido das migrações. orientadas para “onde se iniciava uma obra ou se supunha iniciar”.
A disposição dos campos pelo território do Estado revela uma nítida preocupação estratégica em proteger a capital das invasões dos retirantes. Os campos de pu, ao norte, e Senador Pompeu, Cariús e Quixeramobim, ao centro, cobrem as
linhas das estradas de ferro de Sobral e Baturité, respectivamente, principais veículos de transporte da população sertaneja em direção à Fortaleza. Ao sul, auxi-
liado pelo campo de Cariús, o campo do Burity, localizado na estrada que liga as
Cidades de Crato e Juazeiro do Norte, recebe as migrações que se dirigem às áreas úmidas do vale do Cariri, vindas do Sertão Central cearense e das áreas
“cas de outros Estados. Na capital, os campos foram dispostos nas proximidades das “ações de trem, procurando evitar a passagem dos retirantes pelas áreas Cntrais da cidade.
Em
O lado, na medida do possível, o governo procurou obedecer alguias mendações
ei in
dos higienistas na estruturação dos campos, iocalizando-os
care
mais salubres — como o campo do Urubu, proMinço à praia veitando construções já estabelecidas — como o campo do Patú (Sena123
Freverico DE CASTRO NEVES
dor Pompeu), que ficou instalado n os prédios destinados inicialmente aos operádo Tauape, i rios das obras de construção do açude de mesmo nome, e o campo 8 o localizado na antiga feira do Matadouro Modelo. em Rortaleiaa. Estas disposições geravam novas disciplinas e, como não poderia deixar de ser, novos conflitos e resistências. De um lado, os retirantes — normalmente pe. quenos proprietários e arrendatários que praticavam uma agricultura familiar de subsistência associada (ou não) a uma pecuária rudimentar — travavam contato com uma nova forma de vida em comum. mais coletiva, dividindo barracas, ba-
nheiros. postos de saúde e refeitórios, ao mesmo tempo em que se relacionavam com novas tecnologias de trabalho — a divisão de tarefas e a obediência ao chefe
- e de higiene — do tipo “obturação hidráulica” e “descarga geral” dos banheiros. De outro lado. as pressões sobre os hábitos comuns dos retirantes, especialmente
cade higiene. geravam descontentamentos € revoltas. A vacinação, o corte dos
belos e os exames para detecção de doenças infecciosas provocavam resistências e reclamações. No campo do Ipu, o terror do isolamento fazia com que os doentes frequentemente fugissem em direção aos “logares communs, apesar das energicas medidas empregadas” e “até mesmo as creanças sarapentas eram envolvidas totalmente entre lençoes, dando a impressão de um amontoado de panos
velhos”, para que não se sujeitassem aos exames; assim, “muitos casos positivos [de sarampo] eram escondidos por ocasião das visitas dos médicos e auxiliares”. Um enfermeiro denuncia uma certa “curandeira Raimunda de tal”, “que vem interrompendo os serviços de assistência, prejudicando ainda mais a saúde dos pobres ignorantes que dão creditos a suas bruxarias e beberagens”, e que procura “aconselhar o povo a não aceitar as vacinas”. No campo do Patú, em Senador
Pompeu, os retirantes reclamam dos guardas, “que são grosseiros e intratáveis quando distantes dos superiores”, e dos barbeiros, que transformam “uma medi-
da de higiene numa humilhação injustificavel”.*º Colocam-se em choque, mais uma vez, o saber médico — científico, urbano €
intervencionista - com o saber popular — enraizado na tradição, nos usos das ervas e outros produtos provenientes do meio ambiente conhecido e, especialmente, conectado às expectativas místicas e religiosas dos sertanejos.
A administração deste gigantesco sistema de contenção da população reti-
rante não toi assim tão simples. Os campos deveriam estar conectados a obras em andamento, organizadas pelo IFOCS. Mas “havia falta de tudo”, reclamava O Inspetor deste órgão federal: ferramentas, projetos, pessoal técnico, transportes.
material de construção, água, “só não havia falta de bôa vontade, de dedicação é de patriotismo”. Nestas condições, “aceitava-se como ferramenta tudo que lem-
brasse mesmo de longe um instrumento de trabalho”: “picaretas, enxadas, carri124
A Murião E A História
nhos de mão surgiram de todos os feitios e de todos os materiais, ora reduzidos a uma sombra do que haviam sido, ora caricatura grotesca do instrumento que pro-
curavam imitar”. O trabalho nas obras se desenrol ava improvisadamente, como um grande teatro a entreter o estômago dos retirantes: “os que possuíam esse arremedo de ferramenta eram admitidos imediatamente e iam simu lar nas turmas
um trabalho imaginário cujo efeito se iria evidenciar mais tarde no encarecimen-
to das obras” 5º Para Tomaz Pompeu Sobrinho, no entanto, as dificuldades provinham muito mais da ineficiência e despreparo do IFOCS, Segundo ele, “a Inspetoria, incrivelmente desprevenida, nem mesmo sonhava com a possibilidade de uma sêca”. Desta forma, estranhamente, “a sêca, ainda uma vez, causava surprêsa à Reparti-
ção, a quem cabia prevenir os seus terríveis efeitos!” Os trabalhos, quando chegaram. “nem sempre foram orientados por bons projetos de serviços” e as obras eram “mal distribuídas”. Mesmo assim, “a direção dos serviços foi satisfatória, nada ocorrendo de anormal”.*!
E que “anormalidade” poderia esperar o conceituado estudioso cearense? A grande preocupação das autoridades, como se pode inferir das considera-
ções feitas até aqui, era com a “disciplina e moralidade”, como destacou o Ministro. O aumento da criminalidade, da prostituição e da mendicância eram as principais ameaças que elas percebiam contra a civilização, a ordem e a organização social. Assim como Rodolpho Theophilo — que morreu neste ano de 1932. mas não deixou registradas suas últimas impressões sobre mais esta seca —, viam a chegada dos pobres retirantes, sujos e andrajosos, como a presença de um passa-
do de barbárie que pretendiam sublimar através do apelo civilizatório da ordem e da racionalidade. As ambigiiidades da formação social brasileira mostravam-se expostas cruamente a seus olhos, sem disfarces, na recorrente invasão de ho-
mens, mulheres e crianças destituídos das mais elementares capacidades de subSistir por eles mesmos e, portanto, inteiramente dependentes das autoridades governamentais. Como, então, sustentar a utopia liberal contratualista que se gestava no Brasil desde o final do século XIX e que pressupunha a instituição da socieda-
de através de um pacto entre indivíduos de iguais capacidades de percepção do
real?2 Como, por outro lado, compatibilizar estas desigualdades com os paradigmas do corporativismo que se prenunciara na década de 1920 e que iria se
tornar oficial durante o período getulista?*? Entre estes dois pontos de vista transitavam estes intelectuais que procuravam entender o fenômeno da seca e encontrar soluções para o que consideravam seus efeitos; ao mesmo tempo, entre estes
Pontos de vista organizavam suas formas de pensar a ordem e a desordem no mundo social.
125
Freperico DE Castro NEvEs
O Ministro, assim, só consegue encontrar um exemplo de “anormalidade”:
“nesta promiscuidade, só se verificou um caso de attentado ao nd
por um abastado comerciante que toi. desde logo, preso € processado e.
A concentração compulsória em campos fechados c vigiados. a imposição de normas, regras e valores estranhos ao mundo da economia Aro familiar, as exigências higiênicas aplicadas violentamente sobre uma população que desco-
connhecia seus efeitos e sua cletividade, a manutenção de milhares de pessoas centradas num “estado sanitário lastimável” que “deixa muito à desejar” e que favorece a proliferação de epidemias de “tifo, paratifo € desenteria”, além da “diarréia”. atingindo uma “situação quasi desesperadôra”, além da utilização extensiva do trabalho gratuito de mulheres c crianças: tudo isso era, portanto,
considerado “normal”, indigno de ser anotado pelos criteriosos observadores da
seca. O que os preocupa. com maior Ênfase, é o “attentado ao pudor”... Esta estratégia de controle da movimentação da população rural, contudo, que pretendia “evitar as grandes agglomerações urbanas”, e apesar de sua grandiosidade — quase 90 mil retirantes concentrados em janeiro de 1933 -, não logrou o sucesso esperado: “fixar o homem no campo”, evitar a pressão sobre os
centros urbanos. A partir de 1930. a migração para a capital tornou-a um grande centro populacional, sem estrutura básica e com muitas f avelas.*é Mas uma outra preocupação se incorporava à iniciativa do isolamento dos
retirantes: a conexão com o trabalho em obras públicas — “cada centro de serviço
tinha ao seu lado um outro campo de concentração”.*? O trabalho, neste momen-
ções famintas”.º* Acreditava-se, por fim, que o trabalho intensivo € regular, mesmo que “imaginário”, mas exercido “compulsoriamente”, traria, “ordinariamente, progresso, sobretudo na ordem econômica, política, artística e científica ou técnica”*? Acreditava- se que à experiência nos campos de concentração iria tra126
a ai o a ia
entre “as razões de parcimonia” e “os motivos imediatos de socorro às popula-
e A
nesse mister milhares de operários”. A orientação do trabalho nas obras oscilava
A
de novas máquinas nas obras e na conservação das estradas; até mesmo “o apiloamento da terra nos açudes foi sempre feito manualmente, empregando-se
a
truindo, mas no “aproveitamento do operariado”. Assim, foi suspenso o emprego
o
to, passa a ser visto em seus aspectos pedagógicos. como um antídoto à criminalidade e à mobilização indesejada, e acompanhará, a partir de então, todos os planos de assistência aos migrantes. Mantê-los em atividade física árdua e mal remunerada, na qual novos saberes técnicos são incorporados, aprofundando a divisão do trabalho, levando até estes sertanejos a separação por tarefas e a obediência cega aos chefes, era preocupação que se esboçava neste momento. Não se pensava, em geral, no aproveitamento técnico da obra que se estava cons-
A MuiriDÃo E A História
ver ã0S retirantes — an sua nina agricultores, Cuja vida se Fésume à a “segurança alimentar mínima e cujo trabalho é exercido
msproc
família em pequenas parceias de terr sim condiçõe s de baixo índice heroi
de a
qu vaqueiros, que ne renan atraves da “quarta” às fazendas de criar no seia
quase desabitado BEER
ncorporá-los
capacidade de produção, ou. melhor
dizendo, ir ao imaginário do capitalismo moderno cuja “significação elaei
entral” Se traduz na procura mpesaante de maior Produtividade,ºº o que os qua-
gros da economia “tradicional”
não permitem desenvolver. Por outro lado, “uma
frente de serviço na seca pode representar também uma grande Escola”, as que
ã o “formados” novos pedreiros, oleiros, seleiros, carpinteiros, enfermeiros, fer-
reiros, tratoristas, motoristas, mecânicos, niveladores, topógrafos, enfim, “gente
que ficou servindo ao Nordeste e ao Brasil”.º!
De fato, os campos de concentração foram, desde o início, entendidos como
«órgãos encaminhadôres de operários para as obras de socorro”, mesmo que se tenham transformado “em outros centros de ociosidade que só à custa de grandes
esforços puderam ser extintos”.º2 Para o Ministro, os campos serviam “de entrepostos para os retirantes encaminhados aos serviços publicos” e a questão
que se colocava, fundamentalmente, era a preservação de uma mão-de-obra que se dispersa com a seca: evitar o “extravio das populações sertanejas e a prática humilhante da mendicidade”, preservar “a aptidão ao trabalho produtivo”,** pois "de maneira nenhuma se deveria o governo manter os flagelados concentrados ” 64 sem trabalhar, com isso os pondo em pessimo costume”. Desfazer esta imensa estrutura de socorro e controle da população de reti-
tantes, por outro lado, tornou-se um grande problema operacional e, assim, “muito mais penoso tornou-se o esforço applicado em dissolver a immensa massa
humana incorporada a esses serviços”. O governo, consciente de que “acabar esse modo de auxílio sem proporcionar aos flagellados os meios necessarios ao seu regresso, seria abandonal-os aos azares da sorte, em regiões pouco propicias”,
Procurou os meios necessários para possibilitar o trajeto de retorno dos refugiados aos seus locais de origem. E, assim, “o Ministro José Américo de Almeida e à (..) a quem o Ceará deve a continuidade de sua vida econômica financeira Própria conservação dos nucleos de população sertane ja (...) autorizou à R. V.C.a
passagens precisas ão fomeçer, por intermédio da administração do Estado, as
tansporte dos flagellados aos seus municipios”. Em abril de 1933, restavam àPenas” 3,279 “habitantes” nos quatro campos que ainda estavam alteriii:
significar Para o Inspetor do IFOCS, no entanto, para quem às migrações e , infelizment a = “ausas predominantes do pequeno rendimento do operariado 20 Cessaram os “motivos que mais influenciaram no encarecimento das obras , 127
-
Frecerico DE CAstRO NEVES
s famílias obrigatoriajá que, mesmo com o fim da seca, “permaneceram muita ltura”, mente nas obras federais á falta de acolhimento nos trabalhos da agricu ainda para ele, essa “era a escória da população que o governo por alguns mêses
se veria obrigado a sustentar, até que as condições de vida no sertão melhorassem
do chuvoso, “conA imprensa, por sua vez, denuncia que. já em pleno perío
neste estado” e que, tinuam abarrotados de famintos os Campos de Concentração no a manem vista disso. “permanece ainda como no auge da calamidade o gover ter milhares de braços inactivos em barracas ante-higiênicas, gastando com isso dezenas de contos diarios”.**
De certa forma. os campos estabelecem uma distinção entre pobres € indigentes. entre aqueles que podem “atravessar” uma crise por conta própria e aqueles que necessitam de ajuda do Estado. estigmatizando estes últimos como inca-
pazes e miseráveis. Esta identidade se estabelecerá a partir da intervenção gover-
namental que procura classificar os níveis de pobreza com o objetivo de racionalizar a assistência e, especialmente. definir aqueles que precisam ser assistidos. O
retirante faminto, impotente diante das dificuldades e incapaz de prover o próprio sustento e o de sua família, se vê estigmatizado como indigente, e é colocado sob a proteção das instituições governamentais de assistência pública durante o período de emergência. O estigma dos campos, assim, poderia constituir uma crueldade muito maior, ou mais afixada na memória, do que as próprias condi-
ções “reais” de trabalho e moradia que se estabeleceram nestas áreas delimita-
das. Mesmo assim, apesar de todas as dificuldades, o Ministro podia vangloriarse que. por conta desse auxílio do governo federal, “os nucleos de população se
livraram dos saques das multidões famintas, que já se pronunciavam, aos primeiros rebates da calamidade”. De fato, ele não poderia ser mais claro com relação
às intenções fundamentais do programa de “socorro às vítimas da seca” de 1932... Alguns dos elementos desta nova visão sobre as migrações dos camponeses pobres durante as secas, todavia, mantiveram-se como princípios básicos nas ações governamentais. Os problemas gerados pelas migrações ultrapassaram definiti-
vamente os limites das fazendas e de uma assistência local e primária no âmbito das relações paternalistas e tornaram-se um problema específico a ser resolvido
pelo Estado, que buscará racionalizar sua atuação para permitir uma redução do | impacto migratório sobre as cidades, buscando desesperadamente “fixar o homem no campo”. O contexto político do pós-30, no entanto, iria desembocar em novas alternativas nas relações entre retirantes € autoridades, alterando os limites das ações .128
e -
ua
com as primeiras colheitas”.
A MuzriDÃo E A História
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a
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91-98.
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parte inicial deste processo não foi encontrada.
“Na lógica de uma política moldada pelo mandonismo, imaginar a Justiça como instância imune à força do poder local dos fazendeiros, é sonhar, ou, como afirmava o velho Pule, Senhor da fazenda Albuquerque Né, 'é coisa de doido'.” Para outro coronel sertanejo, Napoleão
Siqueira, “quem vai a Juízo perde o juízo”. SIQUEIRA, Antônio J. “Imaginários da Exclusão." In: MONTEIRO, John e BLAJ, Ilana (orgs.) História e Utopias. Textos apresentados no XVII Simpósio Nacional de História. São Paulo: ANPUH, U Cearense, 25 de outubro de 1877.
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“CF. QUIROGA F. NETO, Ana M. “As Frentes de Emergência e o Movimento dos Saques.”
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Estudos e Pesquisas Josué de Castro, 1985. p. 113. '
Y
À premencia das condições desperta sentimentos atavicos do homem quando se avizi-
nr Do
nltáades
Is
“
.
“
.
SOBRINHO, Thomaz Pompeu. O Problema das Seccas. Op. Cit. p.
ká
,nota
Hu
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1
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cF GOMES, Angela (1917. é
de Castro. Burguesia e Trabalho. Política e legislação social no Brasil
meo Rio de Janeiro: Campus, 1979, pp. 199-236. É conveniente lembrar dos “incríBência no que representavam para a cultura européia e para a sociedade civilizada a emerNia
plena
'S homens pobres na cena política reivindicando pela primeira vez o direito à cidada-
Te “NU - BRESCIANI, Mº S. M. “Carlyle: A Revolução Francesa e Engendramento dos 120 no
odernos.” Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco Zero/ANPUH, vol. 10,
mm Nago 199]. p, 102,
Pequi
es
L)= o
o ua
€
análises sobre e lei e a Justiça parecem ultrapassar os limites de sua
(Cf, Senhores e Caçadores. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, pp. 331-
"vara isso com relação à multidão inglesa do século XVII: “(...) a ética popular 129
FreDERICO DE CAstRO NEVES rest: .1netonavaVad àdao ação direta day multidão. enquanto que os valores de ordem apontad
Sáne
lo
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paternalista
À
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unham cla c: a E E ” « Punham àa cla categoricamente”, THOMPSON,
Edward P Us“APelo Mude.;
oral dad. multidão ão inglesa ineles:; do século gi , só “TA e XVHL Op. Cit. p. 152. Por outro lado há “ONotma a questão dos direitos. A “reciprocidade” a * MA QUE se repor. a ' reciprocidade”, em si : mesma, não garante que a proteção exigida “E assim mesmo no Estado-Assistência, embora se queira fazer pel “O Possa
cidadanizaci , ado , RE 1 are dada cidadanização Com trequência reporta-se ao princípio segundo o qual q Berado Mila. ever de socorrer o pobre. Porém - como bem o esclarece Simmel - e * 80 tem q ste dever nã ' WD a . De ponde,» parau pobre, a nenhum direito de socorro, uma vez que o direito que equivale der er do Estado não é o direito do pobre, mas o direito que tem todo cidadão a que à nar “Quele
buição que paga em forma de impostos seja de tal modo aplicada, que os fins Púbtico e k E A é J ' Cos assistência dos pobres sejam realmente conseguidos, a fim de resguardar a segurança E da cicdade.
Ou seja. a ação social de assistência não tem no pobre o seu fim último. mas o o ”
seto de certos meios objenivos, materiais € administrativos, destinados a suprimir os s danos que que :aquele sigmlic “ a para ari o bem comum,”; ARAÚJO. : Mº Nevá eyára de O, A Miséri
çã osé
Dias. Op. Cit p. 159. o A U 7 Lei nº “o 7209, de 11.07.1984, Ant. 65, HI]. e. Esta lei E é uma reformulação (“reforma penal") do Código Penal de 1940, em que permanecem os elementos ligados à multidão,
FJESUS. Damásio E de. Direito Penal. Vol. 1; Parte Geral. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 1990
p. 186. te
.
É
E
a
“No entanto. a partir de um ponto de vista oposto, pode-se também pensar que os partidos
espinha dorsal da política representativa, são “os próprios instrumentos eficientes através dos quais o poder dy povo é reduzido e controlado”, ARENDT, Hannah. Da Revolução. 2 ed. São Paulo: Ática, 1990. p. 215.
*» BRESCIANI, Mº Stella M. “Da Perplexidade Política à Certeza Científica: Uma História em Quatro Atos.” Revista Brasileira de História, São Paulo: Marco Zero/ANPUH, vol. 12,nº
23/24. set. 91 /ago. 92. pp. 32-33. "OLIVEIRA, Elias. Criminologia das Multidões. Op. Cit. pp. 3, 19 e 87. Este autor - que vê a multidão como o momento em que “os espíritos superiores são superados pelos inferiores” (p. 72) - segue quase literalmente us lições de Gustave Le Bon, para quem, “pelo simples fato de fazer parte de uma multidão, o homem desce, pois, muitos gráus na escala da civilização”.
LE BON, Gustave. Psicologia das Multidões. Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia, 1938. p. Il. Segundo este autor françês, a multidão se forma a partir de três fatores: a força do número, o contágio e a sugestão. Na mesma linha de raciocínio, pode-se pensar também que “a multidão é um terreno em que o micróbio do mal se desenvolve facilmente, ao passo que o micróbio do
bem morre quase sempre, à míngua de encontrar condições de vida”. SIGHELE, Scipio. 4 Multidão Criminosa. Rio de Janeiro: Simões, 1954. p. 58. Como se vê, as metáforas biológica
(“contágio”, “micróbio”) e geológica (“tufão”) e a preocupação com o progresso e a civilização dominam à percepção e a produção de saberes sobre a multidão.
2 De fato, à emergência da multidão como sujeito na cena política, desde a Revolução France-
sa e por todo o século XIX, despertou sempre nos homens cultos e letrados a sensação de qe primitivo, estavam diante da “parte malsã ou pervertida do povo; a multidão é o lado animal,
instintivo, regressivo da humanidade”. COCHART, Dominique. “As Multidões ea Comuna: História. análise dos primeiros escritos sobre Psicologia das Multidões.” Revista Brasileira de São Paulo: Marco Zero/ANPUH, vol. 10, nº 20, mar/ago 1991. p. 123. Bei nº 7.209, de 11.07.1984. Art. 24.
m: Id. Código Penal ga M JESUS, Damásio E. de, Direito Penal. Op. Cit. p. 322. Cf. també CO, Ant tado. São Paulo: Saraiva, 1989. pp. 80 e 425. Para uma jurisprudência, Cf. FRAN 130
i
A Muzridão E A História
gera ;
ai. € digo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 3 ed. São Paulo: Ed. Revista dos “ 1990. p-
“mec
875.
: punto «(7 GOMES. pf E Re do Trabalhismo. Rio de Janeiro: IUPER], O Capitalismo em Const Vargas: Dutra. € . Fedro FONSECA. an. 205-228: 1989. ee aliente, pp. 147-248, ii
an
com à multidão inglesa do século XVII. “These actions were not ss si outras SMA semelhanças attack on estabilished authority. (...) What they expected, what they demanded
ai what they sought to achieve was the reimposition of order, of customary relationship.” LESWORTH, A. and RANDALL, A. “Morals, Markets and the English Crowd in 1766." ini
Present. nº 114,
1987.
Pp. 208.
v ALMEIDA. José Américo de. José Américo de Almeida (depoimento, 1976 ). Rio de Janei-
“o FGVICPDOC - História Oral. 1979. (ela.) p. 52.
x SOBRINHO, Tomás Pompeu. História das Sêcas (século XX), Op. Cit. p. 40. » ALMEIDA. Ministro José Américo de. O Ministério du Viação no Governo Provisório. Op. cit. p. 195. wCorreio do Ceara. 06 de abril de 1932. 10 Povo. 09 de abril de 1932.
“9 Povo, 14 de janeiro de 1932. “9 Povo, 22 de fevereiro de 1932. A reportagem mistura ações de retirantes com assaltos
comuns, em que “mascarados atacaram a residencia do velho Cosme de Tal, que perdeu um filho na luta”.
40 Povo, 09 de março de 1932.
*9 Povo, 30 de março de 1932. *0 Povo, 08 de abril de 1932.
“O Povo. 12 de abril de 1932. O jornal noticia a morte pela fome, no município de Pereiro. de um “velho de cento e dezoito anos de idade”, que “costumava dizer”; “venci as secas de 1845, 1877, 1888. 1898, 1900, 1915 e 1919, mas não sei se vencerei as de 1930 a 1932”. O telegrama que informa esta notícia insinua que “ele já sentia o peso da catástrofe, que estava reservada
não só a ele como para grande parte dos cearenses”. Segundo o Recenseamento Geral de 1940, 0 município de Juazeiro do Norte, incluindo as áreas urbana e rural, contava com 38.145 habitantes (56.146 em 1950); em sua maioria, são habitantes da sede do município (41,999 em
1950), ao contrário da grande maioria dos municípios cearenses neste período, em que a população é eminentemente rural.
Ç: Povo, 13 de abril de 1932.
e Nordeste, 11 de abril de 1932.
; Entrevista com o Sr. Raimundo Gouvêa, de Iguatu-CE.
e O Povo, 16 de abril de 1932.
h Correio do Ceurá, 04 de abril de 1932. Nine: (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas). Relatório dos Trabalhos Realizados
19 rénio 193].33. Apresentado ao Ministro José Américo de Almeida pelo Inspetor Luiz a Busto da Silva Vieira. Fortaleza: Tipografia Minerva, 1934. p. 49.
O Povo, 26 de abril de 1932. Mn DO CEARÁ. Relatório apresentado «o Exmo.
4 E
Presidente da República pelo
“or Federal Cup. Roberto Carneiro de Mendonça. 22 de setembro de 1931 a 05 de
131
FreDeERriICO DE CastRO NEVES
setembro de 1934. Fortaleza: Imprensa Official, 1936. p. 62. Como se vê, a preocupação com as epidemias e com a criminalidade continua presente. Os decretos encontram-se em: Diário
Oficial do Estado do Ceará, 15 de abril de 1932. p. 1. “* LOPES, Americo. Actos do Governo Provisório dos Estados Unidos do Brasil. 61º Parte (1932). Rio de Janeiro: Ed. Livraria Jacyntho. 1932. p. 308. Observe-se que, para os governantes deste momento, “Ilagelados” se identificam a “sem-trabalho”.
4? ALMEIDA, Ministro José Américo Cit. pp. 191-197. As lotações máximas em janeiro de 1933; 31.906 no campo (Senador Pompeu) em maio de 1932;
de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Op. foram as seguintes: 59.863 no campo do Burity (Crato) de Cariús em julho de 1932; 18.811 no campo do Pará 7.266 no campo de Ipu em julho de 1932; 5.399 no
campo do Urubu (Fortaleza) em fevereiro de 1933; e 4.839 no campo de Quixeramobim em
junho de 1932 teste campo só “funcionou” de abril a junho). O campo do Otavio Bonfim foi fechado em outubro de 1932 e sobre ele os dados não são claros. No total, chegaram a ser concentrados. no máximo, 89.431 retirantes em janeiro de 1933. Cf. Tabela II. Por outro lado, o governo. “tendo determinado essa concentração” dos retirantes, “onde lhes será garantido
relativo conforto”. procura proteger o espaço urbano da capital contra a avalanche de mendigos e pedintes e “resolve prohibir aos mesmos esmolarem pelas ruas”, Correio do Ceará, 07 de abril de 1932.
“XÉ possível identificar dois critérios no planejamento dos campos em 1932: de localização e de organização. Cf. NEVES, Frederico de Castro. “Curral dos Bárbaros: Os Campos de Concentração no Ceará (1915 e 1932)." Op, Cit. pp. 108-109.
O Povo. 12 e 16 de abril de 1932; Gazeta de Notícias, 23 de março de 1932; Correio da Semana, 19 de novembro de 1932.
9 FFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas). Relatório dos Trabalhos Realizados no triênio 1931-33. Op. Cit. p. 49.
*! SOBRINHO, Tomás Pompeu. História das Sêcas (século XX). Op. Cit. pp. 42-43. 5º C£ BRESCIANI, Mº Stella M. “Razão e Paixão na Política.” Op. Cit. pp. 20-21, 3 Cf MUNAKATA, Kazumi. A Legislação Trabalhista no Brasil. 2 ed. São Paulo: Brasiliense,
1984. pp. 62-82. * ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Op.
Cit. p. 197. “Será crível?”, duvida Tomás Pompeu Sobrinho. O Povo, 12 de julho de 1932: Correio da Semana, 05 e 19 de novembro de 1932; IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas). Relatório dos Trabalhos Realizados no triênio 1931-33. Op. Cit. pp. 62-63. Numa outra avaliação, o “improviso não pode deixar de ter o seu
preço que foi cobrado nos aspectos sanitários, higiênicos, rendimento de trabalho, moralidade e admissão do número de pessoas que, ultrapassando as expectativas, tornou impraticável 0
funcionamento dos campos de trabalho como se idealizara”. FROTA, Luciara S. de Aragão €. Documentação Oral e a Temática da Seca. Op. Cit. p. 206. * O Ministro José Américo e Tomás Pompeu chegam a falar em 105 mil concentrados, mas esse número não se sustenta em confronto com as outras fontes disponíveis. Para o processo de crescimento de Fortaleza no pós-30, Cf. SILVA, José B. da. Os Incomodados não se Retiram, Fortaleza: Multigraf, 1992. pp. 21-44. “IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas). Relatório dos Trabalhos Realizados no triênio 1931-33. Op. Cit. p. 61. a Id. Ibidem. pp. 61-62 e 64. Segundo um atento observador, que tinha 1] anos em 1932,
muitos daqueles malhos [para o trabalho de “apiloamento”, ou seja, compactação do solo]
132
A MuinicÃo E A História
vam à
pesar 15 quilos e, de acordo com as exigências da administração, tinha que os
chega smos serem elevados até aaltura dos Joelhos, para provocar maior peso e firme compactação”.
gle descreve a construção do açude Lima Campos como “um teatro de misérias, onde protago-
esista era uma multidão faminta, suja, andrajada € submissa, trabalhando como autênticos
ns
pap
s diante de verdadeiros carrascos transformados em feras humanas”. LIMA, Manuel P,
em Fatos € Memórias. Icó-CE: s.ed., 1995, p. 152.
«» SOBRINHO. Tomás Pompeu. História das Sécas (século XX). Op. Cit. pp. 46 € 55. “Cf CASTORIADIS,
Cornelius. A Experiência do Movimento Operário.
São Paulo:
grasiliense, 1986. PP- 40-46; e À Instituição Imaginária da Sociedade. 2 ed. Rio de Janeiro: -418. Paz é Terra, 1986. pp. 399
eza: DNOCS, 1983. p. 25. * GUERRA, Paulo de Brito. Flashes dus Secas. Fortal 2 IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas). Relatório dos Trabalhos Realizados 61. no triênio 1931 «33. Op. Cit. p.
erno Provisório. Op. 63 ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Gov cit. pp. 198 e 191.
& Correio do Ceará, 16 de junho de 1932. s ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Op. Cit. p. 240.
“ESTADO DO CEARÁ. Relatório apresentado ao Exmo. Presidente da República pelo Interventor Federal Cap. Roberto Carneiro de Mendonça. Op. Cit. pp. 65-66.
ST IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas). Relatório dos Trabalhos Realizados no triênio 1931-33. Op. Cit. p. 64. 6 Gazeta de Notícias, 15 de fevereiro de 1933. 9 Esta argumentação se aproxima das análises sobre os reformatórios de indigentes na Inglaterra pré-industrial, onde “ser pobre era respeitável, mas ser indigente era uma desgraça”. HIMMELFARB, Gertrude. La Idea de la Pobreza. Op. Cit. pp. 219-220. A entrevista com o
Sr. Manoel, de Iguatu, demonstrou a dificuldade dos homens do campo em aceitar a lembrança
da proteção assistencial; ele recusou-se a falar sobre sua presença nas obras de construção do
açude Feiticeiro, em 1932, alegando enfaticamente que nunca precisara de ajuda para “atravessar a seca”.
"ALMEIDA, Ministro José Américo de. O Ministério da Viação no Governo Provisório. Op. Cir. p. 244,
133
CAPÍTULO IV
|. O Estado Intervém O contexto político, no sentido oficial e estatal do termo, econômico e insti-
tucional em que se desenrola a seca de 1932 é, em vários aspectos, diferente das seças anteriores.
Em primeiro lugar, as mudanças institucionais decorrentes do movimento
que chegou ao poder em outubro de 1930 se efetivaram nos Estados de maneira
desigual. A “Revolução de 30" no Ceará, tal como ocorreu em outros Estados do Brasil, desaloja do poder as oligarquias mais tradicionais, sendo o espaço
político temporariamente ocupado pelos tenentes revolucionários e as oligarquias dissidentes que assimilaram o ideário político da aliança liberal.!
A fragilidade da estrutura partidária e a crise econômica que se arrasta desde meados do século XIX favorecem
a centralização do poder nas mãos dos
Interventores e permitem a ampliação da ação revolucionária, apesar da “heterogeneidade de intuitos das suas mais fortes correntes formadoras”.? Para o “Norte”, visto de uma forma geral e superficial, o engajamento no Processo revolucionário significava a possibilidade de uma “redenção política e Econômica”, em função da presença marcante, na direção nacional do movimen-
to, de importantes lideranças locais, como Juarez Távora, que poderiam trazer Para a região benefícios que eram negados, segundo os reclamos das elites, pelos
Eovernantes “ol gárquicos” da República Velha. Como se pode observar, tratava%e de uma continuidade política com relação ao paternalismo oligárquico em e que se
mais elementares — a troca de favores, O beneficiantento pesssal — a restaurar num momento de ruptura da me institucional. O tendia com uma “participação mais efetiva na política do País” era a 135
Freverico DE CAsTRO NEVES
proximidade de grupos locais específicos aum E esferas reconhecidas do poder federal. situadas em São Paulo e Rio de Janeiro.
Assim. as possibilidades de uma ação centralizadora das Interventorias se
faziam mais fortes no Ceará que nos Estados do sul do País. Apesar disso, não seria possível aos Interventores desenvolver uma aero de EOveTo, mesmo que prioritariamente apenas para “implementar as medidas administrátivas do Governo Federal”, sem que houvesse um intercâmbio político com as elites dirigen-
locais. tes e. de modo mais amplo. com as classes dominantes
A escolha do primeiro Interventor levou em conta alguns desses critérios,
mas sua ação esbarrou exatamente no seu envolvimento com grupos locais já
estabelecidos com relativo poder de barganha nas relações de poder ao nível estadual. Mesmo sendo irmão de uma das maiores lideranças nacionais do movi-
mento revolucionário. o Interventor Fernandes Távora encontrou desde cedo grandes dificuldades para administrar os conflitos de interesses entre os grupos
oligárquicos mais tradicionais e outros que assumiam uma postura política mais “moderna”, de respeito formal aos princípios da Justiça e da egiiidade moral na
atividade política, além de necessitar atender aos reclamos mais populares da Revolução. O curto período à frente do governo cearense demonstra a dificuldade de compatibilizar esses amplos, complexos e contraditórios interesses e “sua saída se prenderia basicamente às fundas divergências que de logo se estabeleceram entre o tradicional político, de formação civilista e liberal, com o radicalismo dos tenentes, sequiosos de reformas mais profundas”.“ Sua substituição pelo Cap.
Roberto Carneiro de Mendonça vinha contemplar esta preocupação com à centralização e com os destinos do movimento revolucionário, buscando uma maior
autonomia dos Interventores com relação às oligarquias e, assim, possibilitando a“prática de atos isentos de quaisquer paixões ou interesses subalternos” ao “exer-
cer imparcialmente as funções de administrador”. Ao mesmo tempo que “neutro politicamente”, o novo Interventor era “militar” e “estrangeiro”, “critérios que passaram a nortear a escolha dos Interventores nortistas”é
No entanto, após um curto período de conciliação entre oposicionistas (oligarquias “decaídas”) e situacionistas (Ctavorismo”), o novo Interventor passa à
alinhar-se quase ostensivamente ao grupo de oposição. Este malabarismo político, apesar de contrariar as orientações revolucionárias dos tenentes, garante 0
Cap. Mendonça uma grande margem de atuação, especialmente em situações
especiais, como a seca, na qual aspectos técnicos, pouco identificados às ativida-
tido tradicional, podem ser alegados como prioritários. O
136
-
eleicô eleições de 1933, p ara 8 nie, é a vitória da Liga Eleitoral Católica, representante dos
a a becema
alinhamento do Intervent or passa a ser integral após as Assembléia Constitu gral após as
A Munipão E A História
grupos dominantes mais tradicionais. Esta foi uma das razões de sua queda. Seu substituto - Moreira Lima — conseguiu menos ainda. ao alinhar-se ostensivamene dO grupo tavorista, : permaneceu apenas oito meses no cargo. A posterior eleição. pela Assembléia estadual, do Dr. Mencses Pimentel. ligado à LEC, veio
dar maior estabilidade ao governo: permaneceu à frente da administração do Ceará até 1945.4
Em segundo lugar, a crise nacional provocada pela Revolução Constitucionalista de São Paulo coloca em questão a necessidade de uma resolução imediata eg se m conflitos do “problema” da seca. De um lado, a centralização política nos primeiros momentos do período revolucionário favoreciam a tomada de decisões sem a consulta aos grupos locais nem o respeito a trâmites democráticos de participação política. Podiam ser tomadas medidas de assistência à população “flagelada” a partir de ordens direta-
mente emanadas do Ministério da Viação e Obras, via Interventoria, sem neces-
sariamente passar pela intrincada rede de interesses patrimoniais envolvidos nas relações de poder nos sertões. Segundo um membro da “comissão technica constituida para inspeccionar os actuaes trabalhos da Inspetoria das Sêcas”, Sr. Maurício Joppert, essa foi uma das mais fortes razões para o sucesso do “programma desenvolvido pelo Sr. Ministro José Américo”, realizado em um profícuo “ambiente technico e moral elevado” e dentro do “mesmo methodo de trabalho, a mesma uniformidade de commando”.? A “vastíssima organização do
trabalho” pensada pelo Ministro só poderia ser implementada a partir da uniformidade de commando” e de um “ambiente technico” favorável. A zação política se combina com uma visão técnica — ou “tecnificada” — blemas sociais, fortalecendo-se mutuamente, especialmente no momento guerra civil que mobiliza todos os esforços econômicos da Nação e o
“mesma centralidos prode uma governo
federal vê-se na obrigação de estabelecer um regime de “economia de guerra”, a fim de enfrentar os revoltosos do Estado mais rico da federação.
De outro lado. o comprometimento das lideranças cearenses com o movimento de 30 impunha a necessidade de um posicionamento imediato contra as Pretensões paulistas. Esses líderes pretendiam que o alinhamento total com a
“Revolução” garantiria para o “Norte” uma posição favorável no jogo de forças Políticas nacionais, já que a vitória governista ameaçaria, mesmo que superfi-
Cialmente, o predomínio paulista sobre a política e a economia do País, considerado pelas elites locais como o principal fator da sua decadência. O jornal O x 2vo, portanto, imediatamente aprova a criação do “segundo Batalhão provi-
“Orio destinado a colaborar militarmente com as forças federais, em defesa da adura, ou seja, da própria Revolução de 30, ora agredida pelos reacionários 137
FREDERICO DE CASTRO NEvEs
undo ainda o jornal, “traz, em seg , ta” lis Pau ão eli Reb na rtu opo “in paulistas”. A s€ tivesse de ser saciada, seu bojo, uma sede de domínio que,
acarretaria a
paulista sempre foi Funesta aos nos. desgraça do Norte”, já que “a hegemonia sos interesses regionais”. A “Revolução de 30”. ao contrário, veio “criar para o
o, então, hesitar em Norte condições próprias até então desconhecidas”. Com sua defesa?
ta se justificava aos Assim, a atenção dada pelo governo à rebelião paulis necessidade de uma ação olhos da imprensa e das lideranças ecarenses, apesar da imediata em razão da seca.
São Paulo, a atenção do Em outubro, porém, com O fim das hostilidades em
ade. governo pôde ser cobrada com maior intensid
para O sul, Com a rebellião paulista a attenção de nosso povo voltou-se organização de Enquanto se fallava no front, no movimento de tropas e na
batalhões provisórios, enquanto se exaltava O desassombro das forças
dictatoriais e a estratégia do general Klinger, os nossos pobres do Campo
de Concentração eram de algum modo esquecidos.
As queixas apareciam timidamente na imprensa. Os relatórios as desprezam. A assistência aos retirantes da seca cearense ocupou um evidente segundo plano
nas prioridades governamentais daquele momento, o que, em função das razões já mencionadas, não causou o desagrado que se esperaria entre os jornalistas € políticos locais. Do ponto de vista material, porém, a ajuda financeira concedida
pelo Ministério da Viação ao governo do Ceará, destinada à assistência aos retirantes, passou da média de 200:000$000 de abril até agosto de 1932 para
800:000$000 em novembro, chegando a 1.500:000$ em março de 1933.º O fim da guerra civil abre os cofres da Nação e as cobranças podem ganhar maior visibilidade no espaço público. Eh
porem, quando a Pátria Brasileira foi integralisada no regime da or-
em e da paz, chamamos a attenção de nossos leitores, novamente, para O
am ae
mana.
a PAN
Campo de Concentração do Ipú, o qual acabamos de visitar nesta
E pra aos retirantes, intervindo diretamente no mercado Ro deu, temente no âmbito do mercado de trabalho, sicondir x são
de vagas
“artificiais” de trabalho em obras públicas destinadas 138
A MuzridÃo E A História
, “ocupar” uma mão-de-obra desocupada num momento de crise, mas também, de forma incisiva, no mercado de alimentos, regulando os preços e o abastecimento de produtos de primeira necessidade.
O “commissariado de alimentação publica”, restabelecido em abril, já determinava uma intervenção maciça nos preços e nas quantidades de produtos disponíveis no mercado, especialmente de Fortaleza. Tais medidas foram ampliadas pelo Decreto nº 796. de 17 de outubro de 1932, criando a “Commissão de Abastecimento Publico”. “que ficou incumbida da fiscalização de todo territorio do
commissão transcrever na íntegra as “principais funcções da a pen a Vale do”. Esta de abastecimento”. a) - organizar na capital do Estado o cadastro de todos os armazéns, merce-
arias e quaesquer estabelecimentos em que sejam expostos á venda generos de primeira necessidade; b) — proceder ao levantamento do stock de artigos de primeira necessidade existentes naquelles estabelecimentos comerciaes;
c) - manter perfeito serviço de estatística dos generos alimentícios entrados na capital do Estado, por qualquer via; d) - organizar semanalmente e fazer publicar todos os sabhados tabellas de preços maximos para a venda de
generos alimentícios; e) — obter cotações de differentes artigos no interior, na capital e nas demais praças do paiz; f) — solicitar das repartições publicas informações sobre os preços de transportes de mercadorias; e g) — finalmente, exercer rigorosa fiscalização relativamente á execução das tabellas de preços em vigor.
Com a nova comissão, segundo avaliação do Interventor, “todo commerciante ficou impossibilitado de reter generos alimentícios em seus estabelecimentos ou depositos, com o intuito de provocar elevação de preços”. A penalidade aos infratores atingia multas de 500$000 a 1:000$000 “e ao dobro, nas reincidências”. A ação contra os especuladores, objetivando controlar os preços dos alimentos
consumidos especialmente pelos retirantes, abrangia todo o território do Estado e atingiu “commerciantes grossistas”, “retalhistas” e “encarregados de fornecimento nos serviços da Inspectoria Federal de Obras Contra as Secas”, evitando que “os operarios e a população do Estado fossem explorados na compra dos generos de
primeira necessidade”, O Governo Provisório usava toda a sua autoridade, advinda da situação dis-
cricionária daquele momento, para intervir na economia e regulamentar as atividades que pudessem alterar a ordem pública, gerando a insatisfação popular pelo aumento dos preços. O mercado, nesta visão autoritária, tinha uma função na
Segurança pública; regular suas atividades, portanto, era uma atribuição do Esta139
FrevErICO DE CASTRO NEVES
do, tal como o entendiam os principais mentores do novo regime. A visão liberal de igualdade de todos frente ao mercado era progressivamente substituída pel
noção de que “o Estado Nacional erguia-se em função do fundamento da des
gualdade dos homens e das nações e postulava soluções políticas específicas Pára cada povo” e que se tratava. portanto, fundamentalmente, de “buscar os Meios de
tornar à autoridade mais justa e mais eficiente no enfrentamento da questão a cial da necessidade”. O Estado, assim. em contraposição à visão liberal, “não mais devia restringir-sc verdadeiro coordenador perfeitamente ao “ideal cujo “critério de valor”
às suas funções protetoras de polícia, mas atuar como um na distribuição da riqueza nacional”. Isso se combinava de justiça social” preconizado pelos “revolucionários” era exatamente “o ideal de respeito ao trabalho e pis
frutos do trabalho”. !2 A “questão social” que se formulava então relacionava-se, portanto, à idéia de “necessidade”, cujas exigências se combinavam, em parte, com as reivindica. ções da multidão que se apossou das mercadorias em Orós e outras cidades do Ceará. Por vias diversas, o autoritarismo do regime do pós-30 e o comunitarismo
“tradicional” dos retirantes em busca de alimentos percebiam o mercado muito mais pela lente da “moralidade” — daquilo que deve servir ao Estado ou aos pobres em momentos de escassez profunda — do que pela percepção liberal de um automatismo advindo de leis invisíveis que não se pode — ou não se deve — deter ou regular. Por outro lado. a “distribuição da riqueza nacional” também estava atrelada às especificidades de cada momento, de cada situação. A escassez proporcionava ao regime uma rica oportunidade para exercitar essa capacidade de controlar o mercado e de impor uma ampla regulamentação no sentido de garantir “o ideal de respeito ao trabalho e aos frutos do trabalho”. As críticas ao liberalismo, que reifica o mercado, encontram neste momento de crise uma forte justificativa € uma ampla base social no sentido de garantir um apoio geral às intervenções
estatais nas relações econômicas. O regime, assim, tornava público um domínio considerado como pertencente à esfera privada.
Até 1930. as relações entre os governantes € os retirantes haviam sebaseado num terreno movediço mal delimitado, de um lado, pelos costumes tradicionais da vida sertaneja, e, de outro, pelo liberalismo que dominava a esfera do Estado no Brasil, com todas as suas peculiaridades. As demandas colocadas pelos refu-
giados da seca, nesse contexto, eram recebidas pelas autoridades ora com des: dém, confiantes na capacidade do mercado de reequilibrar-se por si mesmo é na secular submissão do homem do campo, ora com temor, diante das possibilidedes de revolta contidas na formação da multidão como agente de organização 140
A MuiriDão E À História
altar, No segundo caso, porém, as interven se no Mer cado de trab ntos SE tornavam Comuns, regulando a ord alho « alié ne
Para que a mi fome não se alastrassem a níveis insuportá séria c S, ndo as redes de sociais € políticas que mantinham — ou pret endi relações am manter — O home «mculos da dependência pessoal, da obediência e da hitacás 15 m preso aos
vista “Jômissão, | Do ponto de E desta des s autoridades, é daí — deste alast gs ramento da fome e do Fisco da mortafidade em mass — que Surg
a
e à reação destruidora
,
mo” de preservação última da vida. Os governantes do regime autoritário do pós- 30 não pensavam difere nte. Entre eles também pre
dominava a “visão espasm Ódica”; mas, ao contrário do que acontecia antes, não hesitavam no momento de intervir na ordem econômica,
pois O desequilíbrio social significava, para eles, ameaça à ordem política, ao nacional regime, à segu
rança
.
Esta intervenção, todavia, por mais que pareça fruto de um plan ejamento
centralizado e racional, portanto moderno, se conectava às expectat ivas construí-
das dentro do “modelo” paternalista de ordenamento das relações sociais. Curio-
samente, mas nem tanto, as perspectivas racionalizadoras do regime “revolucionário” de 30 articulavam-se aos padrões ditos “oligárquicos”, mais uma vez, dando a este momento a característica de complexidade pelo qual é conhecido e estudado.
Nos momentos em que o liberalismo predomina nas esferas de estruturação do Estado, direcionando as políticas sociais, o conflito com os padrões paternalistas se estabelece com maior intensidade; nestes momentos, a resistência “moral” na percepção do mercado em tempos de crise se fortalece e ganha visibilidade em
ações diretas e, muitas vezes, violentas. Il. A Seca Local e a Guerra Mundial
As formas de relacionamento, entre retirantes e autoridades, estabelecidas
Pelo regime do pós-30 permanecem, pelo menos em alguns aspectos, na seca de Cai E 1342, À possibilidade de envolvimento do Brasil na Segunda Errante
fornecer características peculiares “anto, se apresentava como um elemento a
“e momento. Era, mais uma vez, um elemento que agia de modo à ae Uma intervenção direta no mercado de trabalho e alimentos, conforme oco
M 1932. O clima de guerra favorece soluções autoritárias. Os técnicos encarregados de observar e analisar às mer
; climáticas € as o ano de 42
“ras Públicas encaminhadas em função das secas já previam = Cria ser difícil.
;
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141 vs
e
Freverico DE CAsTRO NEVES
rural do NordesO inverno de 1942 encontrou, entretanto, O proletariado anência maior; sem recursos do ano
te enfraquecido para qualquer resist 0 iamente escassas: lutando, desde terior, em que as chuvas foram notor alimentícios de primeira início, contra a carestia exorbitante dos generos
rural que, com necessidade; sem o apoio indispensável do proprietário ção à sua sorte, ou melhor, o entregas a Prote
raras exceções. o abandonou Li a inquictados poderes públicos aos primeiros sinais de mau inverno. dades das precipitações e que culção provocada pelas primeiras irregulari chuvas no equinócio de minou no quasi pânico que se seguiu à falta de
Março.!* O Superintendente identifica, aqui, mais uma vez, à passagem de uma proteção realizada no âmbito da propriedade privada para a proteção “oficial” a cargo do Estado. Por outro lado, a “inquictação” da população rural se verifica em função não só de um “mau inverno” de 1941, mas principalmente de uma
“carestia exorbitante” que a atormenta já no início de 1942, chegando a um “quasi pânico” em março, quando o “mau
inverno” é seguido por outro. O
adjetivo “exorbitante”, utilizado pelo técnico do governo, pode significar, enunciado neste momento do Estado Novo, uma impaciência com relação às forças do mercado de alimentos. que, ao primeiro sinal de seca, se “deseguilibra”, permitindo um aumento desordenado de preços. Isso pode demonstrar o estado
de ânimo dos intelectuais e técnicos — encarregados de interpretar e solucionar os problemas sociais gerados pela “seca” — para com o liberalismo, neste momento em que um processo de centralização política já se efetivara com relativo sucesso no Brasil, na vitória da política trabalhista e corporativista de Getúlio Vargas. Assim, a necessidade de uma rápida e eficiente intervenção gover-
namental no mercado de alimentos e trabalho ganha espaço, mais uma vez, entre as autoridades encarregadas de promover a “proteção dos poderes públicos” ao “proletariado rural”. Em 19 de março de 1942, portanto, dia de São José, a seca é novamente “decretada” no Ceará, com
todos os atributos que já conhecemos.
Os jornais
anunciam que “Fortaleza começa a ser invadida pelos Flagelados da Sêca” e que dificilmente se poderá conter “a avalanche humana que ruma” para as “regiões
menos expostas á séca”. A “visita dos deserdados da sorte”, “andrajosos e famintos”, vem provocando as igualmente conhecidas providências tomadas pelos ófgãos estatais, com vistas a “atenuar o flagelo”.!5
Alguns prefeitos procuram sensibilizar o próprio Presidente Vargas € eh
viam telegramas relatando a situação em seus municípios. De Morada Nova, o prefeito relata a “horrenda situação” de “nossos patrícios 142
A Murnão E À Histór ia
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i d O prefeito, cá segundo “caravanas gm Crateús, implo as públic os, percorrem vias K
ão."
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— O ntaprefeito de Jaguaribe informa que a “população sobretudo rural d há muitos .
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mêses está morrendo inanição” e que estão “esgotad e as
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: “ainda este ano assistamoss mortand: mortandade co Finaliza Ceará”. fome em escala desconhecida dao cad m uma â a angustiada conclusão:
nossas regersias + AFEISCA “é
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o prever que
a calamidade indescritível”. . 16
Vários serviços - pri nes pronasi
dagens” — são imediatamente
construção ou reforma de estradas, as “: ro-
“atacados” pelos órgãos Bovernamentais, “ocupan-
do” os milhares de trabalhadores, cuja “afluência tumultuária”, como afirma o
superintendente do DNOCS, gera graves desequilíbrios no encaminhamento das obras.
Em Aurora, “primeira localidade a ser invadida pelos flagelados”, foram
colocados “1.800 homens no serviço, que já estava em andamento, da rodovia Crato-S. Pedro-Lavras, onde já trabalhavam 4.000 operários”; em Jaguaribe, ou-
tros 1.600 “já estão trabalhando”. O Interventor Meneses Pimentel não perde tempo € imediatamente toma inúmeras providências, principalmente no sentido
de dar “serviço aos necessitados”.!? A “negociação coletiva através da arruaça” já está em andamento e os canteiros de obras transformam-se imediatamente em arenas políticas onde se desenrola um embate estranho, de pressões e contra-pressões, onde mais vale o
envolvimento pessoal que domina os códigos da cultura do que uma racionalidade universal baseada na legalidade ou na capacidade técnica. Os “chefes”, engenheiros que comandam os acampamentos de obras, têm que tentar conciliar a capacidade da obra em receber novos trabalhadores, a necessidade técnica de cada uma delas e o direcionamento dado pelos dirigentes do
órgão. Eles, assim como os policiais, procuram evitar maiores conflitos, mas re-
que a “nheciam a urgência da fome e, assim, aceitavam as bases de legitimação
Própria multidão imprime aos seus movimentos. Quando ocorria algum assalto "O acampamentos e fornecimentos, geralmente o resultado do “roubo” era “mais
“nte distribuído a todos, com advertências”, pela própria polícia.!º
a
À atitude com relação ao saque é ambígua; à polícia suma, mas imediata-
“ente devolve os alimentos aos saqueadores. Mas esta ambiguidade é caracterisdo modelo paternalista, que é assumido pelo Estado, transformando-se em 143
FrevErico DE CAstrO NNEVES
paternalismo oficial. Nas mãos dos chefes e dos responsáveis pelos alistamento, recaía a responsabilidade de negociar com a multidão nas áreas de trabalho, en.
quanto que, nas cidades, esta era tarefa dos padres, prefeitos e outras autoridades locais. Com a “conversa”, o “contato”, a “promessa”, os chefes procuravam “acal.
mar” uma multidão que se impacientava com a falta de medidas ou com a demora nas atitudes práticas de distribuição de alimentos; e precisam, obviamente, co. nhecer em profundidade os padrões culturais e as expectativas sociais dos reti. rantes, associados a uma agricultura de tipo tradicional — a pequena propriedade
(própria ou arrendada) familiar — cujos objetivos econômicos se resumem à ob. tenção de uma precária e provisória “segurança alimentar”. Sem esse conhecimento, ele “estará perdido": a multidão, fora de controle, poderá tomar atitudes imprevisíveis ou, no mínimo, violentas, assumindo com as próprias mãos a tarefa de obter os alimentos tão necessários. O Superintendente do DNOCS. por seu turno, procurando demonstrar ag Ministro a “gravidade real da siluação que se esboçava para as populações rurais
de grande parte do Nordeste”, relata que. em Iguatu, “em cinco dias, haviam sido alistados. para os trabalhos da construção da rodovia Central do Piauí, cerca de 10.000 homens. reduzidos a 7.000 por ocasião da minha primeira visita (17 de
abril) em consegiiência das chuvas recentemente caídas, e que já eram cerca de 8.000 na minha segunda passagem (dia 23), com o retorno de alguns desiludidos ou menos corajosos”.!? De fato, o jornal O Povo, em sua edição de 7 de abril de 1942, informa que “em Iguatu acham-se atualmente mais de 5 mil flagelados e em Jaguaribe e Icó, respectivamente, 2 mil e um milheiro”, e que a “situação assume proporções alarmantes”, apesar da distribuição de feijão e farinha, “adquiridos pelo Governo”. As “proporções alarmantes” da situação podem ser mais ainda inferidas se comparamos os números oferecidos pelo jornal e pelo Superintendente com os dados dos censos populacionais de 1940 e 1950. O município de Iguatu, segundo o Recenseamento Geral de 1940, contava
com uma população total de 34.699 habitantes, acrescida para 41.922 no Recenseamento Geral de 1950. Os habitantes da cidade, a sede do município, no entan-
to, chegavam a apenas 10.063 em 1950! Isso significa que a quantidade de reti-
rantes na cidade em 1942 significava cerca de metade da população urbana. O alistamento realizado pelo DNOCS em março de 42 equivale à totalidade da população urbana de Iguatu, O mesmo acontece com Jaguaribe e Icó. Jaguaribe
contava com 13.331 habitantes em 1940 e 16.971 em 1950; 2.000 retirantes ocupavam a cidade em 1942, quando a população da sede do município chegaria à 2.533 pessoas somente em 1950! Icó, por sua vez, tinha 29.042 habitantes em
144
A MuzriDÃo E A História
e 35.097 em 1950; a sede do município, ocupada por mil pessoas em 1942, hegaria à 3.953 habitantes em 195().20 só € O impacto dessas invasões sobre o comércio, sobre as autoridades locais € é à população urbana paus ser facilmente imaginado, apesar das dificulda-
[940
tes doS observadores em avaliarem
com exatidão estas quantidades e dos inte-
sses dos correspondentes dos jornais em exagerar o evento, além dos limites da »invasão”. Os retirantes procuravam
as áreas centrais das cidades, áreas normal-
mente próximas aOS mercados de alimentos, feiras livres e prédios das prefeitu-
ras. AS áreas residenciais ão eram diretamente afetadas pela presença dos famintos, muito embora eles circulassem pedindo esmolas; mas, como em toda cidade pequena, as notícias correm rápido e a presença de uma multidão como
essa causa curiosidade e espanto.?!
O próprio Interventor, Menezes Pimentel, resolve, em telegrama, alertar o
Presidente da República do perigo das concentrações de retirantes nas cidades cearenses. Para evidenciar agudeza situação, cumpre-me esclarecer V. Ex. que estão
se concentrando milhares famintos numerosos municipios Estado, havendo cerca 6.000 Sobral, 4 a 5.000 Senador Pompeu, 1.000 Jaguaribe, aproximadamente 2.000 Canindé e outros tantos Tauá e muitos outros pontos interior. Nesta Capital existem cerca 5.000 flagelados.
Conclui que “praticamente não há mais zona onde não se manifeste fome, não se concentre população flagelada pedindo trabalho” 22 No entanto, o alistamento de um número exagerado de novos trabalhadores,
praticamente da noite para o dia, provoca distúrbios inesperados na estruturação dos trabalhos, alterando a rotina produtiva e exigindo modificações técnicas. O Superintendente do DNOCS assinala que “a capacidade de absorção de trabalha-
dores dessas obras não é proporcional ao montante das dotações corresponden-
tes”, indicando problemas financeiros. Mas, ao mesmo tempo, ele ressalta que “a
“nstrução mecânica intensiva — que não pode ser alterada de repente, para a manual, sem graves prejuízos — reduz grandemente esta capacidade, e a Inspeto-
Ta terá de examinar cuidadosamente cada caso, para evitar a desorganização dos do Efe
Assim, algumas obras, ou alguns setores no interior a alguma
de e e podem ser modificados imediatamente do modo a permitir Wi emprego ia a escala ss operatindo
não especializado”. Enloemhisses, aqui, em con-
vtamen, racionalidade técnica, voltada para a alta produtividade e melhor aproO dos recursos com menor custo. e uma necessidade de atender à “in145
Freverico DE CastrRO NEVES
epi
dos socorros”, A solução, “verificada a insuficiência desses recur.
sos”. É “atacar novas obras, em pequeno número, e distribuídas de Maneira à rindo razoavelmente às necessidades das diferentes regiões evitando-se uma dispersão de esforços que a experiência de crises anteriores tem mostrado ser,
por todos os motivos. desaconselhável”. Além dessas obras novas, especialmen. te construção de estradas. outras medidas foram sugeridas para fixar os homens
que se deslocam em pontos fixos, fora das cidades, onde causam problemas políticos, sociais e administrativos: “a distribuição de famílias de retirantes pelas vazantes das bacias hidráulicas dos açudes públicos construídos”, “a localiza. ção de famílias retirantes nas áreas irrigadas dos Postos Agrícolas” e “a locali.
zação, ainda em pequenos lotes, de famílias retirantes nas áreas das bacias de irrigação já dominadas pelos canais e ainda não cultivadas pelos respectivos
proprietários”? Do ponto de vista organizacional, portanto, a presença dos retirantes causa
problemas administrativos que devem scr resolvidos dentro dos limites de uma implacável racionalidade técnica, que procura alocar as “peças” disponíveis de
acordo com uma lógica de melhor aproveitamento dos recursos e de menor índice de desperdício. de acordo com uma visão ampla da organização social, vista de cima. como um todo. que despreza as injunções e “interferências” culturais e locais. especialmente se vindas do modelo paternalista das relações sociais. Os retirantes. segundo a visão dos técnicos, deveriam ser distribuídos pelo território, em obras e serviços a serem definidos exclusivamente pelo órgão técnico competente. inseridos em relações de trabalho que não dominam, mas que são as mais adaptadas (tecnicamente falando) às circunstâncias. Esta racionalização dos socorros evitaria a “esmola desmoralizante”, o que é reforçado pelo correspondente de O Povo em Alto Santo, que afirma que “gente pobre aqui não aceita esmola,
pede trabalho”.?* A demanda por trabalho, como se verifica, não especifica a natureza do objeto a ser produzido nem as relações de produção a serem empregadas. Ao mesmo tempo. as poucas chuvas caídas em abril deram a impressão de
que haveria “inverno”, e isso serviu para arrefecer as iniciativas governamentais de socorro aos retirantes. Todavia, a confirmação da seca haveria de trazer de volta as queixas e as mesmas cenas de desespero e infortúnio. Em Canindé, por exemplo, a situação, segundo o jornalista, parece crítica; ele, porém, ao contrário da maioria, deixa escapar alguns indícios a respeito das diferenças de classes e suas relações com a seca, apontando duas cidades distin-
tas, sofrendo de maneiras diferentes o drama da seca. Por um lado, “podemos ver -
outro Canindé neste momento, porém, nas salas dos agraciados pela fortuna”, 146
A MutrtiDÃo E A História
jado, “o Canindé real” localiza-se “nas ruas e nas casas onde o operápor
a reside” = “60 da fome € do desespero”. A resignação popular. ainda
o. 0 Pº ste correspondente, está na relação com o governo, segundo um padrão paternalista, das relações pessoais de reciprocidade: “o povo espera segundo tipicam ue o homem que O governa é o nan que o salvou em 1932”, “daí a espe-
a ainda alimentada pelos pobres”. O governo deve suprir as carências da
aa particular e prover os pobres, no momento de crise, das condições míni-
ca mas de existir.
A caridade particular tem seus limites, determinados pelas suas possibilidades econômicas. Chega onde lhe é possível chegar. Não pode fazer muito, para não passar para o mesmo plano do pedinte. Só temos um remédio,
que é o da caridade dos homens de govêrno! E conclui, resumindo as esperanças de todos os que estão envolvidos por
este manto do paternalismo oficial: “todos esperam nas providências do Dr. Ge-
túlio Vargas!"
A pressão da multidão sobre a caridade local mostra os limites de ação de uma e de outra. Se, por um lado, a caridade “tem limites”, por outro lado a pressão da fome coloca os retirantes em situação de confronto e disputa, em que “o faminto vê, ordinariamente, noutro faminto um rival que, se não existisse, seria um competidor a menos na disputa das migalhas que mal lhe entretêm a vida”.26 Em Orós, o “comércio ficou dando comissão durante muitos dias”.
Se juntavam todos e faziam aquela cota para dar o que comer à pobreza. Senão os cabras comiam, invadiam mesmo, Aí um proprietário deu um boi Para matar, para eles comerem. Pegaram à mão mesmo, mataram esse boi,
sangraram, tiraram o couro lá mesmo na praça, cada um cortou um pedaço. Eu me lembro bem que eu tirei no corredor um saco lá e dei no pé, que se
não corresse os outros tomavam, né???
ie
E migrações, ao mesmo tempo em que algumas cidades se tesmafige
Out cer E de atração para os retirantes, atraindo também as obras públicas,
existindo Pl outrora at
da meio COntra-se pi a
pe
perdem vitalidade e ficam eeonamipamente estagnados, menino
da assistências pública; Aracati. por exemplo,
seia comercial da zona litorânea e que chegou a ser uma das a na seca de STA. recebendo cerca de sEL900 retirantes, en-
da cid ide catia com seu comércio “quasi completamente paralizado”. Apesar “ar “cheia de flagelados, que acorrem de todos os recantos do muni147
FreDERiICO DE CAstTRO NEVES
cipio. em procura de meios de não morrer de fome”. não há atividade econôm: política ou social capaz de absorver de alguma forma esta população — sei ua geração de empregos. seja pela caridade — e “todos esses homens, com su ao
lias, dedicam-se à mendicância. emprestando um aspecto de miséria à Ea
Os transportes coletivos que fazem o trajeto de Aracati para Fortaleza, Conheci. dos popularmente por “sôpas”, “viajam sempre sem nenhum passageiro, o que
vem, de um certo modo, atestar a falta de movimento na vida da cidade”. A situação. ressalta o correspondente, “é das mais críticas imagináveis”,28 As correntes de migração c movimentação dos retirantes, como já era sabi-
do, acompanhavam as obras estabelecidas pelo DNOCS e os técnicos, inteleçtuais e políticos pareciam unânimes em afirmar que “somente os serviços públicos poderiam concorrer ponderâvclmente para minorar a situação, que se agravava progressivamente”, No entanto, apesar dos créditos abertos pelo Governo Fe. deral “para atender ao custeio de diversos serviços a cargo do 1º Distrito da Ins-
petoria de Sêcas”. chegou-se à conclusão de que “a crise não podia ser tão faci]mente superada. como se julgava anteriormente, embora o flagelo fôsse realmen-
te parcial”.?? A solução, mais uma vez, foi a emigração; agora, todavia, dentro de um
novo contexto. em que o “discurso do Poder reduz brasilidade a parâmetros geográficos e econômicos” c que a grande tarefa imposta pelas novas condições da realidade nacional seria “eliminar os *vazios demográficos” e fazer com que “as fronteiras econômicas coincidam com as fronteiras políticas”, conforme discurso do Presidente Vargas em Manaus, em 1940, pregando uma “cruzada” para a
Amazônia nos moldes da “Marcha para o Oeste”, que se efetivava então no Cen-
tro-Sul do País.” O momento favorável permitiu a formação de um “Exército da Borracha”, formado para lutar no front dos seringais amazônicos e arregimentado nas áreas secas do semi-árido nordestino, especialmente do Ceará.
As complicações econômicas decorrentes da Segunda Guerra Mundial colocam para os países aliados o problema do abastecimento de borracha, um elemento importante na fabricação de veículos, pneus e armamentos em geral, tor-
nando a sua obtenção uma questão estratégica muito importante para o esforço de guerra. Assim, os seringais da Amazônia retornam ao centro do comércio internacional da borracha — de onde haviam sido desbancados pela concorrência
asiática — devido à expansão bélica japonesa sobre as áreas de produção na Ásia.
No entanto, “como o problema do povoamento do vale [amazônico] ainda não tinha sido resolvido, organizou-se em caráter emergencial uma nova onda migra
tória para o Norte”, e, para isso, o governo cria, em novembro de 1942, 0 SEMTA
(Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia) com O 148
A MuzriÃo E A História
"objetivo de alistar e recrutar trabalhadores para a “Batalha da Borracha"”.A
especial coincidência de tais efeitos e necessidades da guerra com a eclosão de mais uma seca fez com que a sede do novo órgão fosse — sintomaticamente —
instalada em Fortaleza, onde mais facilmente se poderiam encontrar “flagelados candidatos a seringueiros”. H
Antes mesmo da criação do SEMTA, a emigração para o Norte já havia se iniciado. nos moldes conhecidos das outras secas, sob a coordenação do Consejho de Imigração e Colonização do Brasil em cooperação com a Delegacia Regional do Trabalho. Um esquema de transportes foi montado para receber € transladar os retirantes para Belém e Manaus. O Lloyd Brasileiro colocou um de seus navios à disposição para fazer a linha de Fortaleza a Belém “até que se desafoguem os maiores centros de aglomeração dos flagelados no Ceará”.*2 Os embarques. porém, foram suspensos após “os torpedeamentos dos nossos navios
mercantes em águas da Bahia pelos bandidos fascistas”. Ao mesmo tempo, novos campos de concentração foram organizados na
capital. procurando evitar o trânsito dos retirantes pelas ruas da cidade. Em outubro. os campos foram unificados no campo do Alagadiço, sob a direção das irmãs Marianas, do Dispensário dos Pobres. Uma comissão de senhoras, liderada pela Sr.* Anita Gentil Barbosa, administra o campo. procurando oferecer socorro para as crianças, vestuário e assistência hospitalar; arrecada um “generoso auxílio do comércio” e promete prestar contas do dinheiro arrecadado, “uma vez findos os seus trabalhos”. O campo, também chamado de albergue, no entanto, não era “rigorosamente o que desejavam realizar as autoridades do Ministério do Trabalho”, com 2 mil retirantes se amontoando
“sob a
sombra de árvores frondosas, encontrando-se, por conseguinte, expostos à chu-
va”, em condições higiênicas precárias. Mas, além das providências imediatas, como a construção de calçamento e de banheiros de emergência, o jornal noticia que “já foi iniciada a construção de uma moderna hospedaria, com possibi-
lidade de abrigar 6 mil pessoas”. A campanha realizada pelo SEMTA, contudo, ganha contornos “científicos”, A propaganda passa a ser o principal mecanismo de mobilização dos flagelados e adesão da opinião pública, utilizando intensamente um conjunto de imagens e textos — “um dos recursos largamente utilizados pelos intelectuais do Estado Novo”36— que construíam a idéia de uma Amazônia ideal, terra da “pro-
Missão”, da “fartura” e da “esperança”, que se contrapõe ao Ceará, terra da “seca”.
À genialidade do artista francês Jean Pierre Chabloz vem se somar a estas proPostas, produzindo uma série de pinturas e cartazes em que são veiculadas as
imagens
paradisíacas de uma Amazônia tropical, feliz e próspera, onde todos 149
FreDERICO DE CAsTRO NEVES
encontram trabalho c onde à água é abundante. Ao mesmo tempo, os desfiles dos “soldados da borracha” pelas ruas de Fortaleza, assim como os programas radiofônicos diários, contribuem para a formação de uma adesão em massa à emigração e, por conseguinte, à contribuição brasileira ao esforço de guerra dos aliados. Não é por acaso que os retirantes eram alistados e preparados como sol-
dados que iriam se deparar com uma “batalha” e que estavam envolvidos numa “guerra”. O discurso bélico contribuía fortemente para a imposição de um con-
junto de medidas drásticas que se fazia crer que se contrapunham radicalmente à realidade da seca: o fim da guerra iria demonstrar o contrário: o soldado é esque-
cido e o campo de batalha abandonado.” O “albergue” do Alagadiço torna-se um posto de seleção para os candidatos
a seringuciros, onde o Serviço Especial de Saúde Pública concentra seus esforços para inspecionar aqueles que estão realmente aptos para enfrentar o trabalho na floresta amazônica. Um acordo entre Brasil e EUA garantia remédios, passagens, salários para médicos e enfermeiros, enfim. toda uma infra-estrutura de apoio ao
Serviço. Os médicos. liderados pelo Dr. Albino Figueiredo, trabalham sem parar e chegam a inspecionar 900 pessoas num só dia. “um verdadeiro “record” e uma
prova evidente da eficiência do Serviço Especial de Saúde Pública”.* Também como resultado deste acordo foi instalado em Fortaleza o escritório central da Divisão de Migração, sob a direção do Dr. Charles Wagley, professor de Sociologia da Universidade de Columbia (NY) e um “homem culto e de extraordinária capacidade de trabalho”; segundo O Povo, “o ilustre sociólogo americano vem tendo uma atuação eficiente no desempenho da importante missão que
lhe foi confiada pelo governo daquela nação amiga”.*º Era ele, agora, quem supervisionava todo o trabalho de recolhimento, seleção, assistência médica e embarque dos retirantes que se dirigiam à Amazônia. A necessidade de controle sobre as migrações durante a seca se combinava com a necessidade estratégica de estimular as migrações para a área dos seringais amazônicos. Contudo, apesar destes maciços investimentos, e mesmo em função deles, as estratégias de controle da população retirante refletiam os conflitos, que. por sua vez, não cessavam de acontecer. O Interventor Federal, em seu telegrama à
Vargas. reconhecia que em “vários lugares tem havido tentativas de assaltos, depredação de casas comerciais. obrigando fechamento de estabelecimentos, negocios, repartições arrecadadoras, inclusive da União”. Em Senador Pompeu, por exemplo, o comércio permanecia fechado. Uma
comissão da Associação Comercial denuncia à presença ameaçadora de 2.000 flagelados na cidade e “apela mais uma vez” aos “sentimentos humanitários” do governo para que este interfira junto ao “chefe da Nação” no sentido em que 150
A Muzrisão E A História
a tomadas “medidas suficientes”
se encontra o comércio local.4
Na estação de Arrojado Lisboa assalto O porno da Rey
e
9 propósito de viajar até
Capital cearense”
regularidade do serviço ferroviário ficou comprometida - segundo a notí ci ar Ea 5 conhe dog E as dos flagelados”, «constantes ameaças de assaltos linhas e exigem pela força a entrada nos vagões.“
ntes nas
A chegada de um “inverno” regular em março de 1943 recoloca a necessid
de de encaminhar os retirantes de volta aos seus loca is de moradia no interior do Esta
do. Com O auxílio da Legião Brasilei ra de Assistência e do Governo Esta-
dual, O Dispensário dos Pobres empreende uma campanha de auxílio ao regresso dos retirantes ao interior, com a concessão de passagens de trem, sementes e uma
quantia em dinheiro. O campo de concentração do Alagadiço, sem funç ão, foi
alugado pelo SEMTA para “a formação de um dos seus núcleos de famílias em
Fortaleza”.*
A construção de uma nova hospedaria, no entanto, não foi interrompida e no dia 15 de março de 1943 era inaugurada a Hospedaria Getúlio Vargas, que “pode
ser apontada, hoje, como um modelo de organização”. A cerimônia de inaugura-
ção teve a presença do próprio Ministro do Trabalho, Sr. Marcondes Filho, além do Interventor Menezes Pimentel, do General Gil Castelo Branco e de outras altas autoridades. O discurso oficial da cerimônia ficou a cargo do Delegado Regional do Trabalho, Dr. Raul Domingues Uchôa, que “teceu um hino à fortale-
za do cearense que vai, com energia e patriotismo, desbravar a Amazônia ciclópica”. A nova hospedaria foi programada com uma “capacidade para manter, com relativo conforto, um total de 1.200 pessoas”, em que cada família “participa diariamente de três refeições e aguarda, confiante, o dia do embarque para
9 extremo norte”.4 A presença de altos dignitários do Estado Novo indica a importância dada a esta nova instituição, encravada na encruzilhada de dois pla-
TOS estratégicos do governo brasileiro naquele momento: controlar a mobilidade da População
retirante durante
as secas € participar efetivamente do esforço de
Blerra aliado com a produção da borracha amazônica. Apesar de pretender ser uma instituição permanente, “tinha por finalidade oferecer pouso provisório, ha tTavessia daqui para o Norte, aos flagelados nordestinos que iam mp q exér-
“o da borracha — não por coincidência também O exército da reserv a O encerramento de mais um período de seca traz para as mentes aa
am
de seus ' Uma necessidade de avaliar o sofrimento passado e fazer mo balanço 151
ves FaeDERICO DE CASTRO Ne
o, repistr, E José de Lima, Vigário de Icó, por exempl hor sen Mon O s. tado esul res |t :3. , : de » 194 re o ano sob as rad rgu ama s sõe res suas imp A História do Nordeste deve estar horrendamente Eu
com a nódoa
ia provocada pela séca. E quando indelével que foi hem o rastro da misér to de tudo - dos campos. da se diz Sêca no Ceará já se supõe O estiolamen tudo é gemido e lamento. A cidaalegria, da felicidade e até do espírito — nada se fazendo sob o ponto de se ressente deste estiolamento, pouco ou
A Páscoa deste ano foi apade vista que se chama movimento religioso.
gada.* Ill. O Padrão
Estado Novo
que constitui um No relacionamento entre retirantes das secas € autoridades, Vargas co Estado Novo troudos aspectos centrais de nossa análise, o período de
sivamente. xeram algumas peculiaridades que é preciso explicitar mais conclu
anos de 1877 As estruturas de sentimentos que se constituíram ao longo dos pobreza, da a 1932 apontavam para uma combinação nas formas de percepção da
mendicância e, especialmente, dos mecanismos de assistência aos pobres em — entendimomentos de crise. Há um só tempo, os modelos liberal e paternalista dos como formas ideais de concepção do social — eram colocados em prática por autoridades e reclamados pelos retirantes. dependendo da situação histórica que se
apresentava.
Porém. a princípio, era o modelo liberal que se pensava estar mais de acordo com os padrões de desenvolvimento que se pretendia para o Brasil. Em vista disso, a hesitação em intervir diretamente no mercado de trabalho e de alimentos poderia nos levar a uma dupla e complementar interpretação.
Indicava, por um lado, uma esperança de que o equilíbrio entre oferta € demanda retornasse aos padrões “normais” sem que fosse necessária essa interven-
ção ou, antes. que essa intervenção poderia ser mais um fator a piorar a crise. Os relatórios das autoridades responsáveis pela aplicação de possíveis medidas cof-
retivas — Ministros, Interventores e técnicos do IFOCS/DNOCS — eram claros em condenar as práticas anteriores de concentrar ou “abarracar” os retirantes, criar frentes de trabalho que não fossem adequadas às capacidades técnicas dos órgãos
encarregados pelas obras ou, mais enfaticamente, a simples e “desmoralizante” distribuição de alimentos ou esmolas. Apesar do ambiente político favorável à
rr «à
Li ad nn
princípio, deixar o mercado “livre” para buscar O 152
A Muznoão E A História
equilíbrio que à crise decorrente da seca havi que quaisquer medidas de controle do miéica
seca, poderiam pi aplicadas no momento da
aludiam ao lugar a ser ocupado pelo merc GR
De e
ca
olver situações de conflito; de fato, ado numa sociedade sujeita a crises
periódicas. que. se não são rigorosamente previsíveis, são parte da própria rela
ção estabelecida entre a sociedade, tal como se estruturou no semi-árido, e a natureza.” A hesitação que manifestavam demonstrava que a crítica ao liberalismo efetuada pelos próceres do Estado Novo se resumia, prioritariamente, ao campo político: quanto ao mercado de alimentos, permanecia a crença em uma auto-
regulação espontânea que tende “naturalmente” a encontrar um equilíbrio entre seus componentes
e que a intervenção só deve ser efetivada no caso de uma
situação crítica. A distinção entre liberalismo político e econômico servia para
que se pudesse “negar O primeiro, mas apenas corrigir-se os exageros do segundo”, de modo que o intervencionismo do Estado “não deveria chegar aos exces-
sos totalitários de negação do mercado e do valor econômico de uma liberdade privada do indivíduo”.*º A presença da multidão exigindo proteção, assim, vem
forçar estas autoridades a intervir, já que coloca em questão a “segurança” social e ameaça a ordem instituída. Assim, a regulamentação do mercado proposta imPlicitamente pelos retirantes, através de suas ações “espontâneas” e “tumultuárias”, se contrapunha aos princípios do “livre mercado” defendidos pelo liberalismo econômico em suas várias versões. Se, para este, o mercado segue leis que
€ lhe são inerentes e “naturais”, para a multidão o mercado deve ser dirigido
Tegulamentado em tempos de crise para que não haja fome e sofrimento:
nira,
às leis do mercado se contrapõe a “lei da vida”, evidenciando uma visão rigidaDe mente moralizada que se opõe a uma visão técnica € pretensamente mai fato, ao exigir distribuição de alimentos € abertura de Frentes de pó 9, " ing ni que se da sa "lirantes forçavam um tipo de redistribuição o
ou seja, queEd Pessuposto de que a escassez é socialmente localizada,outra m A enquanto Tação da população é afetada pela “seca”,
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ível distribuir alimentos vmse ; Ífícios ci da produção social. Obviamente, SO é possive práti argumentodote iente P para ser distribuído. aEste suficiente quantid em ade “j àlimentoOs s
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ioo relac '
FreDerico DE CAstRO NEVES
namento das pessoas com o consumo e a produção de alimentos, o que necessa. riamente envolve sistemas de poder, propriedade e direito.” A escassez, portanto, não seria um fato natural, mesmo se relacionada a um fenômeno climático, mas resultado de uma dada forma de relações sociais que perpetuam as desigual.
dades e baseiam-se na produção de conflitos generalizados de interesses. Este debate se reproduz nas interpretações formuladas sobre a seca. Ela pode ser vista, na perspectiva assumida pela grande maioria dos técnicos e autoridades governamentais, como um fenômeno da natureza que provoca uma escassez periódica, que deve ser combatido através do acúmulo de água em reservatórios
cada vez maiores, priorizando “a captação de água e a melhoria e modernização
tecnológicas com vistas ao aumento da produtividade”. A questão social embutida na seca é tratada como uma incompatibilidade entre as possibilidades financeiras do Estado e as soluções técnicas já conhecidas para superar ou neutralizar a ausência ou irregularidade no abastecimento de água. O resultado é um discurso que se lamenta da falta de recursos e, no mesmo movimento, cobra incessantemente do governo federal uma política especial de financiamento para o “Nordeste”. isto é, para a implementação de obras públicas de “combate às secas” ou para o incremento da economia “regional” que ampliaria aquelas possibilidades financeiras. Como se vê, esta perspectiva se inclui perfeitamente na abordagem
liberal citada, assumindo integralmente a teoria do “declínio na disponibilidade de alimentos”. Mas a seca pode ser entendida também a partir da idéia de que a “estrutura fundiária e econômica do Nordeste condena o pequeno produtor a cultivar apenas essas culturas de ciclo curto, sensíveis às variações do tempo e às chuvas irregulares”, que “não se adaptam ao meio físico”. As relações sociais. nesta outra perspectiva, tornam-se o ponto central na distribuição da riqueza social e se relacionam diretamente com a escassez, que, de certa forma, beneficia
aqueles que controlam as linhas de força sobre as quais estas relações são produ-
cus
zidas, através da ampliação dos latifúndios nos momentos de seca e da redução periódica do valor comercial das culturas produzidas pelos pequenos produtores num sistema de agricultura tradicional, onde se objetiva tão-somente obter uma
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precária “segurança alimentar” .Sº
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As ações da multidão estão, portanto, conectadas, mas nem sempre articu-
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ladas, com as disputas teóricas encetadas no âmbito — para ela inacessível — do mundo letrado onde se desenvolvem as políticas do Estado e as teorias econô!
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micas.
Por outro lado, a hesitação das autoridades significava também o receio de
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ent entar e entrar em confronto direto com comerciantes de alimentos e outros
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negociantes ou proprietários de terras que enriqueciam com o aumento de preços
A Muitipão E A História
dos gêneros de primeira necessidade e nados pelos retirantes, mesmo em Des a E usa PE a ne nro fiatado Novo. A agilidade RR dm administrat EAR é iva dem onstrada pelas autoridades em 1932
contrasta en
a hesitação comumente evidenciada em outros momentos. Talvez
isso se deva à presença do paraibano José Américo de Almeida à frente do Minis-
tério da Viação e Obras Públicas num momento em que o Governo Provisório necessitava demonstrar um amplo controle da situação política, especialmente em função da guerra civil em São Paulo. Mas, por outro lado, a relativa independência política do Interventor Carneiro de Mendonça, ainda observada naquele ano, pode ajudar a explicar esta rapidez de movimentos: ele ainda podia ser visto como um “tenente” que pretendia se colocar acima dos conflitos entre grupos
políticos rivais, imagem que se desfez no ano seguinte. Em 1942, ao contrário, a estreita vinculação do Interventor Menezes Pimentel com grupos políticos e econômicos tradicionais impedia a mesma capacidade de intervenção técnica; esta ocorreu mais pela necessidade (externa) de braços para os seringais amazônicos,
no contexto do esforço de guerra dos aliados. De qualquer maneira, em termos gerais. o trabalhismo demonstrou uma sensibilidade muito maior do que os go-
vernos “liberais” para com a chamada “questão social”. O controle estatal dos preços dos alimentos ou a sua distribuição aos retirantes eram atitudes adotadas cm casos extremos, quando a iminência de uma revolta era sentida pelas autoridades, em que a “segurança nacional” estava em jogo.
O açambarcamento e a especulação de preços nas mercadorias fornecidas aos retirantes alistados em obras públicas. porém, eram amplamente conhecidos. As mudanças nas formas de pagamentos dos serviços demonstram esse conhecimento e a dificuldade em superá-lo positivamente: em 1932, quando “já se verificava a inflação nos preços dos gêneros ao dispor dos trabalhadores”, ora “o abastecimento de víveres pela Cruz Vermelha” era abandonado “por implicar maior dispêndio de recursos”, ora “um sistema de fornecimento de víveres local sob a indicação e fiscalização do governo do Estado” E aplicado; mesmo assim, como os “atrasos no pagamento começaram à se intensificar”, o Interventor, “para não perturbar o andamento dos trabalhos e para que os comerciantes particulares não cortassem os suprimentos”, resolve distribuir os gêneros, “evitando dessa
forma a paralisação dos trabalhos”.*! A irregularidade e frouxidão nas regras de abastecimento de víveres aos retirantes concentrados ou incorporados às obras
Públicas, além das dificuldades na fiscalização, favorecia a corrupção e q apro-
veitamento por parte dos pequenos e grandes comerciantes, timidamente denunCiados na imprensa — amarrada por compromissos políticos e econômicos e, mais
do que isso, controlada de perto pelo DIP (Departame nto de Imprensa e Propa155
ro Neves FREDERICO DE Cast
ganda) e pelo po nr:
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das secas apenas agravava a desconfiança 3 tsmc mento em transtormando os locais de fornecimento , em a aiiRi
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população retirante aos cui a hto. De c qualquer maneira, à nt co te en an rm pe de rcado tentador de dezenas, às vezes centenas, de m. do governo formava um pá a verdade. só um consumidor: o Estado - Para os lhares de “consumidores o ps Além de compensar uma discutível queda a fumecimento” abre-a oportunidade de a
negociantes de gêneros Ea
a ncia. “a fundo perdido”, além de manipular o,
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Além dos lucros monetários, uma conexão SBLe Os politicoa e os omni ii garantia lucros políticos significativos para as Neleranças locais; que negacaiA
vagas nos alistamentos e outros benefícios pessietos cum
gaita de véia
pessoas da mesma família, ou de crianças. ou em vários “barracões” ao mesmo o tempo. Assim. a convicção liberal na capacidade do mercado de retomar o equi brio em momentos de crise, apesar das críticas oficiais do regime ao liberalismo político, permanecia influente entre as autoridades encarregadas de implementar as medidas de assistência aos retirantes. Ao tomá-las, OS dirigentes estatais =
estaduais ou federais — sabiam estar indo contra os princípios do mercado: faZiam-no, porém. na defesa da “segurança pública”. Isso poderia explicar a recep-
ção dos primeiros retirantes à For taleza, em 1932, pelas princi pais autoridades locais, especialmente pol
iciais, além da vigilância permanente sobre os campos de concentração e de trabal ho e sob re os passos dos retirantes pelas cidades.
Durante este período ( 1930 a | 345), o padrão de relacionamento entre rel” rantes € autoridades,
apesar das críticas ao liberalismo político efetuadas pe regime e da rapidez e profundidade das intervenções realizadas em 1932 se baseou ainda nos Pressupostos e 14do liberalismo
econômico, da idéia de “merci e da crença nas “leis” do mercado, modelando uma forma de soluciona! os conflitos decorrentes das invasões de do Naa
retirantes que combina elementos do
paternalismo
— a Presença das autoridades do mercado de alimentos direta “críticos”, Ocontrol (em 1932) e a im di nos locais a De dê alimentos € Vagas em obras Públicas, que se assemelh;
em tempos de dificuldades - co
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208 pobres
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A MuiticÃo E A História
a de. retorno g a : um “ponto de mente na esperanç A
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reado
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Referências bibliográficas SOLTA. Simone. “As Interventorias no Ceará (1930-1925). *
»”
História do Ceará. Op. Cit. p. 321.
In: In: SOUZA. Simone (Coord.)
:GIRÃO. Raimundo. Pequena História do Ceará. Op. Cit. p. 207, Este historiada
do movimento de 0 cara aa omlEaS E, nsguento ua visão acerca das ambiguidades adriana: a de seu programa de reforma húsica, sie e queria Amparo e 1924, ao passo que a ala política não se almentara 0s Ansa das intentonas de 1922
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do regime, sem Mera a sair . das simples renovações de métodos da prática va inclinada maiores EXCESSOS
“SOUZA. Simone. “As Interventorias no Ceará (1930-1935).º Op. Cit. p. 323, A expressão
“Norte” ainda não havia sido comumente substituída por “Nordeste” em 1932. Esta última. uma simbólica muito mais expressiva pelo forte apelo à territorialidade, está presa do “Movie os postenores mento Regionalista Tradicionalista” de Recife, liderado por Gilberto Freyre.
desdobramentos da luta pelas definições regionais no Brasil. Cf. FREYRE, Gilberto. Munites-
é espeo Regionalista. 4 ed. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. 1967.:
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1935) Op. Cit. p. 328.
o
“GIRÃO, Raimundo. Pequena História do Ceará. Op. Clt. p- 208.
Provisório. Op O Ministério da Viação no Governo de. Américo José Ministro ALMEIDA,
Cu p. 222.223, x
é Povo. 24 de agosto de
di
ebli
1932.
.
da República P tado ao Exmo. Presidente apresen o Relutóri CEARÁ. di E ADO DO de Mendonça. Op. Cit. p- e ú Ventor Federal Cup. Roberto Carneiro sé uma de foi O pre 4
1932. Esse artigo da Semana, 05 de novembro do deCampo de Concentração Coreia nda n as condições
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Presidente apresentado «o Exmo. “efficiencia dessa : o Relutóri CEARÁ. DO Í er ADO s impostas ao ai Op. né neiro de Mendonraça.a “qua Roberto Carqua alonsCup. qe“dO” éeder ade ntid most que dro da um tra por dem
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ie: pP-xp; E2200-222. Cit. Op. smo. alhi Trab do Ângela M, de Castro. A Invenção es na Ordem a ia Vida
do Estado”
à
GOMES,
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Emília
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V. da. Da
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us Lada
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usados no ano de 1942. São Paulo: DNOCS. 1942.
IO Povoa, 27 de março de 1942. He Anquivo Nacional. Telegramas Recebidos pela Secretaria da Presidência da República, 1942 TO Povo, 28 € MO de março de 1942, Cit. pp. 22-22. INGUERRA., Paulo de Brito. Flashes das Secas. Op.
º DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), Relatório des Trabalhos Rea.
lados no ano de 1942, Op. Cit po 34. 29 Recenseamento Geral de 1940 não discrimina os dados sobre a população urbana e rural NH Você morava em casa e ninguém ia agredir sua casa não. O negócio deles era o comércio
o açougue” Entrevista com o St. Raimundo Gouvea, de Iguatu. D. Laurenice, da mesma cida.
de. porém. diz que “o povo unha medo do movimento de muita gente, da multidão”, is E conclui; ** rica ressaltando também que “eles nunca mexeram nas casas, só no comércio”, a Deus nunca assisti uma cena dessas não”.
2 Arquivo Nacional. Telegramas Recebidos pela Secretaria da Presidência da República, 1943, 2"PNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas). Relatório das Trabalhos Req.
afluência hizados no ano de 1942. Op. Cit. p. 27. O Supermtendente observa ainda que “a tumultuária de trabalhadores às obras cresce de valor como índice do desequilíbrio da vida na região quando se considera o fito iniludível de lutarmos, em regra, com dificuldade de braços
para o andamento normal dos trabalhos da Inspetoria, o que tem condicionado a mecanização
progressiva de nossos serviços” (p. 34). Isto é: em tempos “normais”, há falta de mão-de-obra para as obras do DNOCS, o que é resolvido com a mecanização; no entanto, em tempos de seca, quando há excesso de mão-de-obra, a mecanização impede a absorção de novos trabalhadores não qualificados. O fato de que o Departamento foi criado para buscar alternativas e soluções para os tempos de secas não preocupa o Superintendente.
“4 () Povo, 28 de março de 1942, O Povo, 05 de maio de 1942. Nesta mesma edição, vários comerciantes de Iguatu enviam telegrama ao jornal, pedindo providências do govemo em face da “horrorosa situação” da
cidade que “se encontra superlotada de Nagelados sem pão”, O comércio, obrigado a fechar as portas, encontra-se numa “situação aflitíssima”,
?* SOBRINHO, Tomás Pompeu. História das Sêcas (século XX). Op. Cit. p. 56. 2 Entrevista do Sr. Lauristo André Pinheiro, de Icó. O Sr. Lauristo nasceu e viveu sua juventude em Orós, que, na época, era um distrito pertencente ao município de Icó. “Comissão . OU “fornecimento”, é a parte à ser distribuída a cada retirante, uma “cesta básica” que, normai-
mente, compreendia farinha e rapadura, às vezes feijão e carne de charque.
* O Povo, | de maio de 1942, *” SOBRINHO, Tomás Pompeu. História das Sêcas (século XX). Op. Cit. pp. 49-50. “LENHARO, Alcir. A Sacralização da Política. 2 ed, São Paulo: Papirus. 1986. PP. 56-57.
“VIEIRA. Mº do Socorro G. O “Soldado da Borracha”. Discurso da Emigração numa Eco nomia de Guerra. Monografia de Bacharelado em História apresentada à UFC. Fortalet* 1993. pp. 7-8.
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