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Portuguese Pages 258 Year 2007
Aquilino Ribeiro nasce na Beira Alta, em 1885, e morre em Lisboa em 1963. Deixou uma vasta obra em que cultivou todos os géneros literários, partilhando com Fernando Pessoa, nas palavras de Óscar Lopes, lugar cimeiro nas Letras Portuguesas.
Sócio de número da Academia das Ciências, foi reintegrado após o 25 de Abril, a título póstumo, na Biblioteca Nacional, condecorado com a Ordem da Liberdade e homenageado aquando do seu centenário pelo Ministério da Cultura. Em Setembro de 2007, por votação unânime da Assembleia da República, o seu corpo foi depositado no Panteão Nacional.
Título: A Casa Grande de Romarigães 1.ª edição em papel: Agosto de 2007 Autor: Aquilino Ribeiro Revisão: Carlos Pinheiro
© Bertrand Editora e Herdeiros de Aquilino Ribeiro, 2007
[Todos os direitos para a publicação desta obra em língua portuguesa, excepto Brasil, reservados por Bertrand Editora, Lda.] Bertrand Editora Rua Prof. Jorge da Silva Horta, n.° 1
1500-499 Lisboa
[email protected] Tel. 217 626 000 · Fax 217 626 150
ISBN: 978-972-25-2445-2
Quando se procedeu ao restauro da Casa Grande, que foi solar dos Meneses e Montenegros, houve que demolir paredes de côvado e meio de bitola em que há um século lavrava a ruína, ocasionando-lhes fendas por onde entravam os andorinhões de asas abertas e desníveis com tal bojo que a derrocada parecia por horas. Num armário, não maior que o nicho dum santo, embutido na ombreira da janela, que a portada, em geral aberta, dissimulava atrás de si, encontrou-se uma volumosa rima de papéis velhos. Como Cide Hamete Benengeli, não posso ver um farrapo impresso que não se
me
sobressalte
a
curiosidade.
Com
avidez
fui
tirando
para
fora
cartapácios sem frontispício e sem índice, entre os quais um Mestre da Vida que ostentava uma dactiloscopia densa e salivosa, com os cantos das folhas tenazmente
arrebitados,
avisos
e
recibos
da
contribuição
predial,
uma
resma de bulas da Santa Cruzada de pinto e de doze vinténs, receitas de botica, algumas traindo pelo sebo e a usura terem sido aviadas amiúde, folhinhas de anos sucessivos, e uns cadernos de papel almaço em que me palpitou
matéria
de
bisbilhotice.
Um
deles,
dobrado
longitudinalmente,
teria a sua centena de páginas e envolvia-se numa capa de pergaminho que inculcava
já
uma
respeitável
vetustez.
O
rótulo,
em
largos
caracteres
floreados, tinta cor de ferrugem, advertia, esmaecida mas verbosamente, do teor:
Livro
que
há-de
servir
ao
assentamento
das
coisas
notáveis
que
assucederam na Casa Grande de Romarigães, também chamada Quinta de Nossa Senhora do Emparo. Com um epítome da origem, fundação, sítio e nobilíssima árvore de seus morgados, pelo P.e Sebastião Mendrugo, da Casa da Cachada, e seu capelão. Ano da Graça de 1680. Deitei um olho ocioso ao palimpsesto, depois de tomar conhecimento do título. Por pouco não permiti que as raparigas do caseiro lhe esfarripassem as páginas para envoltório dos fusos, quando fiam na roca. Decifrando aqui uns períodos, além outros duma caligrafia que obedecia a um sentido interior geométrico muito outro dos nossos dias, para mais a esvair-se no papel de trapo, amarelento e manchado, perguntei-me em que nos podia interessar a vida de fidalgos como tantos mais. De facto crónicas deste jaez nem sempre são o mais edificante. Mas era enternecedora a simplicidade com
que
o
historiógrafo
memorava
os
serões
gastos,
até
altas
horas,
espírito tendido sobre a pena de pato como o lavrador sobre a rabiça, olhos
a doerem-lhe da chama reverberada pelo latão no candeeiro de três bicos. Foi este sentido de cortesia, que as pessoas idosas têm por tudo o que ocupa um lugar no mundo e significa acender-se em suas almas a luz da piedade, que o salvou. O relato do reverendo Mendrugo estendia-se por altas e compactas laudas, verdade seja que numa letra encadeada, dentro de
cujos
arabescos
cabiam
períodos
inteiros
de
Lima
Bezerra,
que
discorreu por esta corda, e costumava fazê-los extensos como léguas. O outro manuscrito, em letra especiosamente torneada, chamava-se Vida de
D.
Luís
António
de
Antas
e
Meneses,
sargento-mor
de
Milícias
e
procurador às Cortes de 1828. Ao que se depreendia do estilo, abundante em ciência heráldica e genealógica, era obra dum linhagista do Alto Minho, tão amigo de Deus e do rei como inimigo dos malhados, o senhor Manuel Afonso,
de
Venade.
A
sua
personalidade
de
cronista
meticulosamente
fidedigno, em dia com a pátria e o seu partido, ressaltava do esmero com que arredondava a pança garrafal das letras e lhes projectava as hastes para o zénite. Em suma, na caligrafia, ora direita como lanças, ora cheia e empolada como cabaços, pintava-se o homem como dizem que sucede aos pintores
quando
espapaçada,
fazem
exalava-se
retratos. da
prosa
Uma que
fé, só
ora
a
hirsuta,
copeira
ora
esotérica
serena da
e
Casa
Grande permitira furtar às auras do liberalismo triunfante. O terceiro caderno tinha ares de copiador. Copiador de coisas e loisas, numa escritura igual, muito indolente e de traços farfalhudos como as caneiras de milho desta comarca frumentosa. Era o vasto repositório duma ciscalhada
inominável,
anedotas,
documentos
tabelionares,
censuras
a
livros pelo P.e José Agostinho de Macedo, sinal de que o escriba propendia para literato, e até cartas de amor. Estas estadeavam um título autónomo dentro
do
vasto
armazém
de
ferro-velho:
Cartas
de
dois
amantes
verdadeiros. Quanto aos autores de tal correspondência, por dedução, à vista de certos documentos e papéis, não tive dúvidas de concluir quem fossem. Mercê doutros informes de vária procedência, esclareceu-se finalmente o romance de amor, um romance silencioso e profundo como as águas dos grandes rios, e por isso mesmo cheio de sainete, sem embargo do seu acerbo pecado. De modo que em grande parte deste livro eu não fiz mais que marchar na esteira dos cronistas que tenho por veros, uma vez que não tinham interesse
em ser mentirosos. O padre era-o por natural lisura e dever de ofício. Os outros
que
ganhavam
em
prestar
um
falso
testemunho
quando
os
não
requeriam no pretório? Finalmente, as últimas e extravagantes páginas do livro são de minha lavra. Às outras, sacudi o bolor do tempo e reatei o fio de Ariadna, interrompido aqui e além. É escusado dizer que inutilizei muito material, glosas, apostilas, considerações baratas e vagarosas, todas elas a ressumarem uma filosofia de algibeira, incompatíveis com a era de Einstein e dos aviões de jacto. Os antigos tinham fôlego de baleia e ignoravam o valor monetário do tempo, bem como o valor higiénico da vírgula e do ponto e vírgula. Em matéria de estilo, a minha pena passou por cima como o
ferro
de
engomar
eléctrico
na
camisa
quando
volta
do
estendedoiro.
Vamos com o Seráfico, se algum dia houve escrivão da puridade mais fiel ao assunto e às fontes históricas, que me cortem a mão que atraiçoou. Todavia quero confessar os meus pecados. Um confrade, académico de Argamasilha
ou
lente
de
Coimbra,
já
não
sei
bem,
a
quem
li
alguns
capítulos deste livro, exclamou, mais que judicioso, salomónico de todo: – Mas afinal o que V. fez foi um romance... – Um romance...? Deus me livre! A minha ambição foi bem outra. Isto é monografia, história local, história romanceada, se quiser, agora novela, abrenúncio! Mal de mim se escorreguei para tais enredos e labirintos. No romance, o escritor escolhe os episódios; na história, são os episódios que se lhe vêm oferecer. Estão tabelados, não há que lhes fugir. Ora o que eu tentei foi desempoeirar velhos e particularíssimos sucessos que, de resto, pouco pesaram na marcha do mundo. Romance...!? Se me saiu romance, aconteceu-me a mesma coisa que a um triste e tosco carpinteiro dos meus sítios, de quem toda a gente zombava, decerto por milagre desenfadado do Espírito Santo: estava a fazer um gamelo para o cão e saiu-lhe uma viola. Lisboa, Primavera de 1957.
Aquilino Ribeiro
I
O
vento,
que
é
um
pincha-no-crivo
devasso
e
curioso,
penetrou
na
camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou
molemente.
Voltou
a
soprar.
Buliu-lhe
a
veste,
deu
mesmo
um
estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista! Precipitado tão de alto do pinheiro solitário, balançou-se um instante e ensaiou um voo oblíquo. A meio caminho volteou, rodopiou, viu as nuvens ao largo, a terra em baixo e, saracoteando a fralda, desceu em espiral. Poisou em cima duma fraga, ligeiro como um tira-olhos. Mas novo pé-devento atirou com ele para a banda, quase de escantilhão, e a aleta, tomandose
de
imprevisto
mancheia
de
permaneceu
fôlego,
terra, à
arrebatou-o
removida
espera
que
de
para
fresco
pancada
de
mais
pelos água
longe.
roçadores
ou
Foi do
calcanhar
cair
numa
mato,
de
e
homem
ali o
mergulhasse no solo, dado que um pombo bravo o não avistasse e engolisse. Também ali perto, por uma tarde fosca de Outubro, chegou um gaio, voejando de chaparro em chaparro, a grasnar mal-humorado como é próprio da
raça.
No
saiote
desbotado,
as
duas
pinceladas
de
azul,
azul
retinto,
fulguravam para que se soubesse que um gaio também é gente dos ares. Trazia
no
bico
uma
bolota,
um
pouco
menor
que
o
bolo
que
o
corvo
costumava levar à cova de Daniel, mas para ele mais importante. Dispunhase a comer a merenda bem amargada, quando deu com os olhos no mariola do vizinho com quem bulhara uma Primavera inteira por causa da gaia, depois
sua
mulher.
Já
esse
tal,
rancoroso
e
mau,
dava
jeitos
de
querer
investir, penas riças, garras desembainhadas, a asa possuída de frenesim. Que remédio senão preparar-se para o receber condignamente! E deixou cair a glande. Esta foi bater na face zenital dum velho toro, saltou de ricochete para o lado, e aninhou-se muito aninhada num monte de folhas secas e argalhos. Ninguém a via, nem ela via a mais pequena nesga do mundo. Os dois gaios, depois de trocarem muitos gritos de cólera e darem a sua bicada, mas sem que corresse sangue, despediram. O mais rela e pundonoroso pulou ao
chão
a
procurar
pincharolando
dum
a
lado
sua para
rica o
bolota.
outro
e
Procurou,
tornou
introduzindo
por
a
toda
procurar a
parte,
taladas e covinhas, o olho finório e matuto, mas nada descobriu. Soltou duas ou três vezes a sua voz ralhada a conjurar os deuses daquele desaforo, perdeu a paciência. E saraivando, batendo a asa, ainda meio atrida da rixa, lá foi para outro carvalhal onde havia que pilhar. A bolota taluda ficara ali muito quieta, muito bem refastelada em virtude do próprio peso, enterrada que nem pelouro de batalha depois de passarem carros e carretas. Que fazer senão deitar-se a dormir?! Dormiu uma hora ou uma vida inteira, quem o sabe?! Um laparoto veio lá de cascos de rolha, rapou a terra, fez um toural, aliviou-se, e ela ficou por baixo, sufocada sem poder respirar, em plena escuridão. Estava no fim do fim? Um belisco, e do seu flanco saiu como uma flecha. Era de luz ou de vida? Era uma fonte ou antes um cântico de ave, de água corrente, de vagem a estalar com o sol, dum insecto na sua primeira manhã, música trilada da terra ou das esferas? Era tudo isto, encarnado no fogo incomburente que lhe lavrava no flanco, verbo que acabou por irradiar do próprio mistério do seu ser. Do pinhão, que um pé-de-vento arrancou ao dormitório da pinha-mãe, e da bolota, que a ave deixou cair no solo, repetido o acto mil vezes, gerou-se a floresta. Acudiram os pássaros, os insectos, os roedores de toda a ordem a povoá-la. No seu solo abrigado e gordo nasceram as ervas, cuja semente bóia nos céus ou espera à tez dos pousios a vez de germinar. De permeio desabrocharam cardos, que são a flor da amargura, e a abrótea, a diabelha, o esfondílio, flores humildes, por isso mesmo troféus de vitória. Vieram os lobos, os javalis, os zagais com os gados, a infinita criação rusticana. Faltava o senhor, meio fidalgo, meio patriarca, à moda do tempo. Ora, certa manhã de Outono...
Um homem atravessou por ali, e não foi pequeno o seu pasmo. A água, uma avemaria puríssima, descia dos cerros por muitos regatinhos, brancos, inocentes e tagarelas, que nem que largassem à compita a ver qual deles era o primeiro a chegar ao vale. O solo era negro e dava mostras de fecundo a julgar pelo mato que crescia balofo, alto e tão denso que lhe era difícil romper e a cada passo lhe saltava dos pés um laparoto gordalhudo. Como andava à caça e muito ajoujado dos apetrechos de monteiro, tinha sede, uma sede ardente a que não era estranha a estafa de Rubiães até ali e o lombo de vinha-de-alhos, gostosinho mas sobre o sal, do seu almoço. E, avidamente, debruçou-se no primeiro lugar a jeito a beber da linfa que o P.e Carvalho classifica da mais delgada e fria do mundo. Depois, regalado, puxou do lenço,
grande
como
o
guião
do
Santíssimo,
e
esponjou-se
do
suor.
Relanceando olhos enlevados à roda, deu conta da balsa que as águas, ao confluir, ali faziam, e surpreendeu, fulgurando suas escamas lantejoiladas, duas
boas
trutas
palmeiras.
Libélulas
cruzavam-se
por
cima
numa
contradança versicolor, mas ele não prestou atenção a tais bugiarias da natureza.
Filho
de
camponeses,
porém,
foi
reparando
na
pujança
que
mostrava a erva no prado, embora se metessem de gorra a comer do húmus farto a margaça, a leituga, a beldroega, a azeda, mais sôfregas do que vacas com fome. Confundido
com
os
chaparros,
distinguiu
um
pastor
a
apascentar
o
rebanho, e puxou-o ao cavaco: – Bom dia, amigo. Por aqui há lobos? – Salve-o Deus. Pergunta Vossa Mercê se há lobos? Alcateias, senhor, mais bastas que a sarna. Ainda ontem me pilharam uma borrega. O que vale são os sabujos que os não deixam chegar ao rebanho. O licenciado Gonçalo da Cunha viu dois molossos alentados, protegidos por coleiras de puas, que vinham para si a passo elástico, mal estrangulando na dentuça branca um rosnido ameaçador. – Pára aí, Galizo! Mondego, então?! – falou-lhes o pastor e estacaram de orelha fita, a olhar para ele, estranho na sua indumentária de batedor de montes, mas cara de bicho-homem dos inofensivos. – Pois muito me contas – tornou para o pegureiro, que pouco lhe tinha contado,
sinal
de
que
outra
operação
se
lhe
ia
desenvolvendo
no
entendimento. – Tu donde és? – Sou da Labruja. E Vossa Mercê não é o reverendo abade Gonçalo da Cunha?
– Sou eu mesmo. – Estava a reconhecê-lo. Algumas vezes o tenho visto a celebrar missa em Santa Maria de Rubiães. – E tu és da Labruja e vens cá para tão longe...? – Ao direito, pela Portela, são dois saltos. Mas sabe Vossa Mercê porque gosto de vir para aqui? O gado nestes valeiros farta-se enquanto se abre a mão e se fecha. Ora olhe para a relva...! Repare agora para o mato galego... Hem? Terra que nem unto. –
É
verdade,
é
verdade.
Estes
montes
de
quem
são?
Se
calhar,
do
Bisconde...? – São do Bisconde, pois de quem haviam de ser!? Dizia meu pai, que Deus haja, que nas terras do Bisconde não se chega a pôr o Sol. Nem ele sabe onde começam e onde acabam. Tudo isto é terra de Coura, e também lhe chamam Couto de Fraião. Entretanto vieram ali ter os demais monteiros, que se tinham apartado com a matilha atrás duma lebre que dobrara a lomba para as bandas de Sampaio.
Traziam
um
nebri
e
um
esmerilhão
ensinados
na
caça
de
volataria, mas ainda não houvera ensejo de largá-los. Obra de meia manhã um javali saltara aos alões duma moita de codessos. Mas saltara tão de improviso, que mal o viram relampejar, através do brejo, por uma das suas seitas, e num ápice se punha lá para a Cabração, em cujos tesos, a avaliar pelos latidos espaçados, os cães lhe perderam o rasto. Agora, em despeito da ressega, a cada passo os podengos soltavam sua fanfarra e os gritos dos caçadores: cerca; aboca; aí, cãezinhos duma cana! repercutiam alacremente nas circunvoluções dos oiteiros, debaixo do céu lavado. O tojo, às duas margens do córrego, dava pela cinta dum homem; sobros e carvalhiços anões cresciam em touceiras tão fartas que a caça facilmente se escamugia e tinha bom encosto para alapardar-se. O
licenciado
enfadado
com
a
era
homem
capilota,
corpulento
sobe
e
desce,
e
bem
brenha
nutrido. após
Visivelmente
brenha,
avançou
devagar e soprando para a estrada que levava de Romarigães a Agualonga. Como é próprio do animal que Aristóteles chamava político, isto é, que vai sempre
tratando
de
si,
ruminava
em
coisas
e
loisas.
Ora
lhe
vinha
ao
pensamento o javali que se escapara na fresca da ribeira, e dizia então com os seus botões: «Deixa, há mais marés do que marinheiros. Daqui a dias estou cá botado e vais ver o bonito. Mas é preciso cercar a mata e cortar-te a
retirada pelo lado da serra. Tu voltas, oh se voltas! Na serra de Arga não tens bolota como aqui. A bolota é que te há-de deitar a perder!» E logo a imaginação lhe pulava a outro quadrante: «Que rica fazenda se fazia destes chavascais! Fazenda de leite e mel, como entendiam os antigos. Fazenda, fazendo-a. Era questão de murar e depois virar a leiva.» Ao subir pela vereda que passava a meio monte, um bando de perdizes tocou
os
alegres
tintinábulos.
Despediu-lhe
no
encalço
a
malta
toda,
e
novamente se viu sozinho sob a copa esplêndida do céu, tão estanhada que parecia
tilintar
como
uma
faiança
de
cristal
aos
próprios
latidos
dos
podengos. Voltou-se para o grande baldio, vestido com a serguilha ruça do matiço, frondosa
pespontado mata
a
de
sobros,
sudoeste,
carvalhos
tudo
a
cerquinhos
crescer
à
rédea
e
pinheiros,
solta
da
uma
natureza,
irreprimivelmente, apesar do dente dos reixelos e da podoa dos lenhadores. A água reluzia aqui e além nos algares das chãs e nos estirões rectos das regueiras, perdida e tão mal empregada que era abusar da bondade de Deus não a encaminhar para onde criasse flores e frutos. E o sol, um sol rijo e pesadão, de todo genésico, espojava-se sobre a terra à maneira duma galinha choca sobre os ovos da postura. – Que rica quinta aqui se fazia! – tornou a dizer para consigo, filho revesso de campónios, a quem a patena e o cálice não haviam obliterado o sentido da terra. Ao alto, sobre o caminho, levantava-se com humildade e ternura o nicho de N.ª S.ª do Amparo. Uma vez lá, sentou-se numa pedra à espera dos seus. Dentro da edícula, a Virgem, com o menino aconchegado no regaço, fitava-o como a toda a gente que se lhe dirigia triste ou necessitosa. Embora fosse a mãe solícita dos aflitos e oprimidos, pronta a levar-lhes socorro, havia uma grade de ferro entre ela e os mal-intencionados. Mas na sua rudeza aldeã, capinha azul, chambre escarlate, divisava as pessoas com um olhar claro que, penetrando as almas, parecia inspirar-lhes obras certas e fortaleza. E o licenciado surpreendeu-se a dirigir-lhe uma prece, ele que, ao dizer missa ou ao rezar os responsos, trazia sempre o sentido noutros problemas, noutros assuntos, noutros lugares e do que estava mais longe era da ideia que ia transcorrendo morta e cadavérica nas suas orações. E que prece agora era a sua! – Virgem Nossa Senhora do Amparo, boa mãe, fazei com que esta terra que se estende diante dos meus olhos de nascente a poente e de norte a sul, terra a que assistis com vossa presença inefável, venha a ser minha. Se com
a
vossa
decente
graça e
realizar
airosa,
em
esta que
aspiração, vos
honrem
eu e
vos
prometo
venerem.
uma
capelinha
Imaginai,
Virgem
Santíssima, a glória que vos está reservada, serdes a reginal senhora duma linda
e
lauta
propriedade!
Ouvi-me,
imperatriz
dos
anjos
e
mãe
dos
homens! Quando
chegou
seu
primo
Baltasar
Canedo
de
Fróis,
da
Casa
do
Freixieiro, com uma perdiz suspensa pelo gasnete, não se conteve que não dissesse: – Que rica quinta aqui se fazia, primo Fróis! Tudo o que se avista é do Bisconde... Parece-me bem que é homem para aforar... – Aforar não digo. É contrário lá à sua pragmática. Mas para vender. O primo apresente-se comprador... E se bem o pensou, melhor o decidiu. No dia seguinte botou-se pela serra – cavalgada de três horas – a Vila Nova da Cerveira, onde por aquela altura estanciava o importante senhor. Os seus privilégios de fidalgo de pendão e caldeira eram ilimitados. A casa tinha poder igual ao do rei para nomear oficiais em todo o Couto de Fraião. Um alvará rezava assim: Por se achar vago o lugar de meirinho no meu concelho de Coira, hei por bem fazer mercê do cargo a Alonso Ruiz... Não obstante a extensão latifundiária do domínio, as rendas eram parcas e cobradas tarde e a más horas. Alguns rendeiros tiravam de suas terras mais rasas do que lhe mediam nas tulhas. Quem poderia crer que uns anos por outros não trouxesse dali em rendas, foros e dízimos, contados com a mão esquerda, menos que dois mil alqueires? Tinha porém lá os seus acontiados, gente brava para a guerra, capaz de rilhar uma fraga com os dentes, e apresentava
curas
e
abades
em
quase
todas
as
freguesias,
afora
as
que
revinham aos herdeiros do Dr. Gabriel Pereira de Castro e aos Barbosas de Lima, não incluindo S. Miguel das Porreiras com as duas paróquias que dependiam da vigairaria da Mitra. Na de Romarigães, também, a jurisdição repartia-se entre o abade de S. Paio de Agualonga e o arcediago da Labruja. Era além do mais, por tradição, posses e prestígio, o fidalgo mais temido da comarca de Entre Douro e Minho. A sua vontade sobrepusera-se mais de uma vez à do Monarca, como se viu na temível altercação que sustentou com os vizinhos de Ponte de Lima que não tiveram outro remédio senão aceitá-lo como alcaide. O Bisconde, além de parente do licenciado Gonçalo da Cunha, era seu amigo. Quando soube da requesta, que este amenizara sob color de gostar de
ter coutada própria de caça, o visconde atalhou: – Eu mando coutar para si, reverendo primo. – Podia ser que me tentasse também a arrotear... – observou com timidez. – Se é para isso dou-lhe um conselho: não me peça para aforar aqueles chavascais, compre-mos. Eu vendo. Para o primo vendo de olhos fechados. – Está dito. – Entenda-se com o mordomo. E assim fez. Em boa e devida forma, com a firma do Visconde, adquiriu por tuta-e-meia o grande tracto de terras – com todos os seus outeiros, arroios,
matos
e
arvoredos,
livres
e
alodiais
–
que
iam,
a
nascente,
da
Portela Pequena da Labruja, serra dos Matacões fora, boa parte do ribeiro dos Ermos, até à intersecção, a sul, do vale e do sopé da serra da Cabração no caminho de S. Martinho de Coura pelo norte, todo o arco de montes que se debruçavam sobre a estrada velha que levava de S. Roque a Ponte de Lima e fechavam a poente no reguengo da Freita. – Nem um condado! – diziam-lhe as letras vermelhas do missal, ao ler a epístola, no santo sacrifício do Domingo Terceiro.
II
Os corvos, que naquela manhã cortavam de estafeta da serra da Arga para a Labruja e viram aquela lidairada na veiga de Romarigães, crocitaram: – Teremos outra vez guerra?! Na
mata,
os
picanços
e
rincha-cavalinhos
despediram
para
outras
paragens. Calaram-se as rolas nas corutas dos pinheiros e as poupas ficaram de
sobreaviso,
pentes
ao
alto
como
sevilhanas
em
praça
de
toiros.
Arredaram os pastores com os gados dali para longe, perplexos: – Então havemos de ir embora? Para sempre? – Sim senhor, para sempre, esta terra agora é do Licenciado Rev. Gonçalo da Cunha! De facto, uma turma de homens, munidos de alavancas, pás e picaretas, rompia uma pedreira nos flancos do monte. Outra tratava a sul de abrir os caboucos do muro que havia de cingir a fazenda adquirida no couto do visconde de Vila Nova de Cerveira. Práticos em castrametação agrícola riscaram a linha circundante, bem como
estabeleceram
a
melhor
área
para
o
solar,
quartéis
de
servos
e
estábulos. A tudo presidia o novo proprietário, febril, activo, previdente, não olhando a despesas, tanto mais que acabava de receber em termos de Insalde a herança choruda duma tia, que se dignara fazê-lo legatário universal e entrar
no
paraíso,
lugar
para
onde
não
deixa
de
ir
quem
dá
ao
seu
semelhante um alegrão destes. Por
aquelas
aldeias
fora
havia
fome
e
muita
gente
desocupada.
Ofereciam-se a salário por todo o preço. Os mestres cobravam de jorna 60 réis e os obreiros entre 30 a 45 réis. Os carrejões ganhavam por cada jugo de bois doze vinténs e meio. Os dias contavam de sol a sol.
Tudo corria pois à medida dos seus desejos. Em menos de um ano pôde murar uma vasta área, captar águas perdidas e plantar bacelos com que se propôs
espaldar
de
cordões
e
parreiras
os
socalcos
e
cômoros
da
propriedade. E não se esqueceu de um colmeal nos abrigos soalheiros da mata, que àquela altura do mundo era letra viva o ditado: quem tem abelha, ovelha e moinho no rio, entrará com el-rei ao desafio. As dificuldades que se lhe depararam facilmente as dominou, mormente se diziam respeito a demarcações com proprietários confinantes, que se prevaleciam de direitos remontando
ao
tempo
das
sesmarias
ou
da
Maria
Castanha,
e
tinham
passado em claro ou mal observados nas novas Ordenações do Reino. Ainda esse ano procedeu a algumas das sementeiras de Primavera, e as regadas, para que corriam as nascentes da Portela Pequena e do Monte da Raposa, acima do Meijoeiro, produziram um altívolo e rendoso linhal. Nas várzeas abrigadas,
às
duas
margens
do
corgo
igualmente,
o
milho
revestiu
proporções inéditas, não menos de maravilhar que a réstia de uvas que trouxe Caleb da Terra da Promissão. A
casa
de
torre,
como
incumbia
a
um
homem
de
prol,
ostentava
já
telhados de várias águas e, nos salões e quartos, os mestres de Azurara e de Barcelos deitavam tectos de apainelados e de masseira em castanho e bom carvalho. Já todas as janelas, em que perpassava um arzinho remoto de Renascimento, tinham portadas. À margem do caminho que ligava Sampaio com Romarigães deixara lugar para a capela que prometera a Nossa Senhora do Amparo. Ela que perdoasse não lhe montar primeiro que a ninguém casa que se visse. Boa ou má, por enquanto estava governada e ele não. Não tardou que o licenciado ali tivesse câmara própria para dormir. Os encargos das duas paróquias, em particular o cartório, impediam-no, por ora, de ficar mais tempo que o indispensável na granja. Todas as manhãs, ainda a corcolher tinha o primeiro trilo no papo, saltava da cama. Lavava-se com a mão canhota, à pressa como toda a gente de freima naqueles tempos mal ensaboados. Bebia o seu trago de aguardente – uma bagaceira fina e envolta que não acendia bafo na goela por onde transitava, condição sine qua non a mata-bicho dum sacerdote. O licenciado vigiava os obreiros e, mercê das pernas altas da égua e do seu desembaraço, tanto estava ali como em casa de Anás ou Caifás, dizia o juiz da igreja. Realmente, tão depressa se punha ao pé dos cabaneiros que saibravam terra, como se via a impor disciplina aos trolhas que, rebocando
os telhados, se distraíam a jogar graçolas às cachopas que passavam no caminho. Foi
nas
andanças
entre
S.
Roque
e
Romarigães
que
lhe
aconteceu
encontrar-se com Maria Roriga, moça de Rubiães que ia levar o comer ao pai, mestre carpinteiro na obra, e reparar nela. O
licenciado
vira-a
nascer
e
medrar
e,
talvez
por
isso,
nunca
fizera
atenção à vergôntea que floria. Porque é que só agora reparara nela? Caprichosos nadas da natureza humana, grãos de trigo espiritual que, depois de germinar em segredo na leiva
subterrânea,
desabrocham
em
sentimentos
mais
vermelhos
e
perfumados que rosas de Alexandria. Esse
dia
e
essa
noite
nunca
mais
ela
se
lhe
varreu
do
sentido.
Entroviscado que nem um pego onde se pescassem barbos. Mas, pai da vida, porque só agora dera conta? Durou semanas o enlevo celestial. Um dia, mestre Francisco Rorigo faltou na obra, e a moça por linhas travessas pode adverti-lo que o pai sabia tudo e a quisera matar. Se a deixara, julgava ela, é porque queria matá-lo a ele primeiro. E acrescentava: – Todo o mal que me acontecer está remido pelo bem que lhe quero. Se morrer, morri. Precate-se Vossa Mercê. Em despeito do melodramático, aquele pensamento enterneceu-o e, grato à rapariga, decidiu não deixar ali a aventura. Foi-se acautelando porque o pai passava por vingativo, destes homens de carácter ou de mau génio, de quem se diz: quem lhas faz paga-lhas. De facto, um dia, ao escurecer, que voltava da igreja, ao sair os umbrais do
adro,
um
dardo
passou-lhe
pelos
peitos
fungando.
Correu
sobre
o
agressor, mas ele perdeu-se na quelha, a pés de cavalo. Outra vez, em casa, antes de se deitar, apercebeu-se duma cabeça que, em frente, por detrás do muro, se alteava e escondia a espreitá-lo. Palpitou-lhe que era o Rorigo e, chamando os cães, açulou-os contra o vulto temerário. Ouviu-se grande rebuliço, passos dobrados de quem corre... silêncio, os alões que se detinham havendo provavelmente reconhecido o fugitivo. – O alma do diabo é capaz de me tirar a vida se me apanha a jeito. Não me posso descuidar. E agora, Gonçalo? Meditou levar as coisas com estratagema, sobrepondo-se à situação. Uma tarde que sentiu o Rorigo em casa, entrou-lhe pela porta dentro. Mesmo
assim, foi levando de guarda-costas o criado, que nas jornadas era sempre o seu arrieiro e gozava de fama de teso. – Boa tarde, Francisco. Trabalha-se... Então diz-me cá, porque foi que deixaste a obra? O homem não respondeu, mas pelo ceniscar frequente dos olhos via-se que ruminava maus pensamentos. Estava a consertar um peneiro e, embora os
instrumentos
de
que
se
servia
fossem
inofensivos,
o
licenciado
foi
deixando entre ele e a sua pessoa um espaço respeitável. E, demais disso, conservava-se em guarda como todo o bom cristão que ama a Deus e ao seu pêlo. – Estás desembolsado de três dias... Ora bem: queres que te pague, ou continuas no trabalho e recebes ao fim da semana? – Não me deve nada nem continuo. – Essa agora?! Calaram-se.
Deu
fé
que
o
rancor
refervia
no
peito
daquele
homem
simples, mas com o seu timbre. E Gonçalo da Cunha, homem intrépido e afeito a triunfar nos apuros da vida, jogou a carta perigosa. Voltando-se para o criado, deu-lhe ordens: – Vai lá andando... Deixa-me com o Francisco. O criado não arrancava, pregado de estaca, sem dizer palavra. Repetiu, intimativo: – Não ouviste? Larga-me... Então
o
criado
obedeceu
e
ele,
encarando
no
homem
que
parecia
perplexo, trazido para tão imprevisto terreiro, proferiu em voz pausada e segura: – Já sei porque não vens à obra, mas vai pôr-se tudo em pratos limpos. Disseram-te que abusei da tua filha. Foi ou não foi? Foi. Sei quem é o autor da vilania: nem mais nem menos a criada que pus fora aos pontapés por ladra e desenvergonhada, a Rita Concha. Estou a mentir...?! – Não é uma só voz nem duas a dizê-lo! – tornou o Rorigo em tom rouco e titubeante. –
Pois
é
falso.
Três
vezes
falso.
Juro-te
pela
hóstia
consagrada.
Não
abusei da tua filha. – Da fama já se não livra... – Pois não, e eu de algum modo tive culpa... Gonçalo da Cunha notou que dera um passo temerário. Mas agora não havia
que
vacilar.
Era
preciso
ir
para
a
frente.
E
embrenhou-se
em
explicações tão emaranhadas e confusas que ele próprio se perdeu nelas. «Vira nascer a pequena, vira-a anos a fio na medrança, espigar. Não fora quem
a
baptizara,
não,
mas
era
o
mesmo.
A
seus
olhos
ficara
sempre
criança. Por isso, quando se encontravam, punha-se de reinação com ela. Não negava. Mas se metia palhinha, era sem malícia. A sua alma caísse naquele mesmo instantinho no inferno, se era com malícia! Uma vez, que ela ia tarde para Romarigães com a cestinha aviada do almoço, oferecera-se: eu
levo-te
o
cesto.
Deixa
ver...
Era
algum
crime?
Não
era,
mas
fora
imprudente, reconhecia-o agora. Devia acautelar-se das bocas do mundo, dos mal-intencionados que em tudo deitam veneno.» O licenciado adiantou outras razões, umas a seu favor, outras contra, dobou a meada da inocência o melhor que pôde, afoito e à valentona. O carpinteiro, homem maloio, de poucas palavras, ficava no que lhe parecia, mas nem tudo vinha a retraço. A melhor táctica era semear a confusão, e esse objectivo estava garantido. E concluiu: – Olha, o pouco de culpa que me cabe estou pronto a resgatá-lo... Tudo se resolve neste mundo, é uma questão de boa vontade. Queiras tu. Ora, diz-me cá: conheces o Joaquim Rebocho, da Freita? – O Joaquim Rebocho, que foi seu criado...? Não conheço eu outra coisa! – Pois esse rapaz várias vezes me disse que gostaria de casar com a tua filha. Se tu consentisses e ela anuísse, era negócio feito.
O carpinteiro soltou uma gargalhada meio de dúvida, meio sarcástica, de par
com
uma
casamentão.
carantonha
Farfante,
de
amargura:
bem-relacionado,
com
não
o
havia
dito
rapaz,
segundo
por
era
um
aqueles
sítios. E em vias de governar casa. Vivia com a mãe que, agora na velhice, desandara do extremo oposto para muito composta e santanária. – E ele havia de querer?! Já tem as suas toiras, a sua courela... Está um figurão... O licenciado, vendo-o rendido, pois que não significava outra coisa aquele esgar de céptico em que luzia uma esperança muito ténue, comoveu-se, no fundo bom-serás e não podendo ver sofrer. E teve vontade de arguir o seu
coração doido, abraçar-se ao homem, maldizer com ele aquela fatalidade da carne pecadora, e dar-lhe a reparação que estava em seu poder e mais lhe sorria: fazê-la sua ama. Mas, à beira do cairel, deteve-se. Aceitaria ele? E a voz pública? E foi moderado para a ternura que lhe cachoava no peito: – Tem as suas toiras e eu compro-lhe outras. Compro-lhe o que for preciso. Deixa-o comigo. Francisco licenciado
Rorigo
bem
não
notou
proferiu
que
uma
estava
palavra
quebrado.
de
Não
aquiescência, era
preciso
ser
mas
o
muito
esperto para se aperceber que o homem não acreditava nada de nada do que protestara quanto à conduta com Maria. Mas, na mesma ordem de ludíbrios, também era levado a reconhecer que a denegação lhe fora grata. Não era melhor assim do que discutir com ele à carga cerrada, pondo as cartas na mesa? Como o que não tem remédio remediado está e o mal estava feito, contou com
o
bom
amadurassem
senso no
do
homem.
entendimento,
As
suas
mais
razões,
ganhavam
quanto em
mais
força
tempo
suasória.
lhe O
melhor, no entretanto, era não atiçar mais o brasido. Despediu-se: – Olha, Francisco, pensa no que te proponho e decide. Consulta o travesseiro. Só quero o teu bem, palavra de honra! Se aprovares – e, é claro, a tua filha também – amanhã vem-mo dizer. Ou então manda-me recado. Boa tarde! – Boa tarde! – resmoneou o homem. Saudação tornada era indício de que a medicina influía no espírito do carpinteiro do modo mais favorável. No dia seguinte, que para ele desde a alba foi transcorrendo moroso e soturno, batendo o passado, roendo as unhas, impaciente a espreitar a rua, deu conta que a mocinha saía de casa. Vinha para ali, minha Nossa Senhora? Duas coroas rezadas de joelhos, se viesse. Olé, se vinha. Nada mais que o íman do seu desejo possuía força de sobra para a puxar. Correu a impor a velha Ludovina para longe com um mandalete. Depois da possessão, aceite e correspondida, onde está a mulher que não abdique? Agar saiu destas horas de humildade e ditoso reconhecimento ao tirano repleto. Maria, embora chorasse e soluçasse ao ouvir-lhe as razões lógicas, estava conquistada: – Tu casas, Mariazinha, casas com o Joaquim Rebocho, que nunca te toca, sabes tu? E não te toca, primeiro, porque eu não quero; segundo, porque tu não deixas. Estás a perceber? Entre nós continua tudo como dantes. O Joaquim Rebocho mete a mão no lume se eu
lhe mandar. Está rico e eu fá-lo-ei ainda mais rico. É a solução, Mariazinha adorada. Ele não te toca com um dedo molhado. A moça ouvia cabisbaixa, enquanto reapertava o colete de atacadores, esforçando-se por estrangular um arquejo na garganta. Gonçalo da Cunha passeava no aposento, de olhos no chão, ora em silêncio, ora falando por borbotões. –
E
a
suspeita
que
tiveste,
sempre
é
certo?
–
emitiu
estacando
subitamente diante dela. – Ai sim, pois mais uma razão!? Casas e vais para longe. Eu me encarrego da criança. O Rebocho aceita tudo; o que ele quer é baguinho. Mas dá-se-lhe... dá-se-lhe... Meto-lhe dobrões de oiro pela boca abaixo até o fartar. Ah, é que tu não sabes; está-me nas mãos... cá por coisas... contas muito sérias com a justiça. Estamos então entendidos, não é verdade, minha alma? A Maria Roriga casou dali a dois domingos com o Joaquim Rebocho, da Freita.
Tocaram
os
bombos
e
os
ferrinhos
de
Romarigães,
Cabração,
Labruja e de muitos mais lugares, por onde se estendia a parentela dos desposados. Tiveram também um pratinho saboroso as bocas do mundo. Mas as vozes ainda caem mais depressa no esquecimento que as águas dos rios no mar. Em menos de cinco anos estava acabada a Casa Grande, prédio de torre, com largos salões e muitos cómodos, no flanco, a capela de N.ª S.ª do Amparo, e uma cozinha de lajedo e chaminé de barretina, compreendendo lareira,
armários,
comunidades gorgolejava
dois
fornos
conventuais,
por
uma
um
bocarra,
em boi na
que no
sua
se
podia
espeto. carranca
A
assar,
fonte,
de
ao
perto
Medusa,
estilo do
das
corgo,
abundante
e
fresca água. E o bastio de pinheiros e carvalhiços cobria já o cerro em frente, unido à velha mata e populosa cidade dos pássaros. À tarde a brisa, que subia desde a costa pelo estuário do Coura, arrepiava-lhe brandamente as corutas e uma onda balsâmica e elísia varria a Casa Grande. Os prados estavam a produzir em pleno rendimento, e ano por ano já não havia tonéis e cubas bastantes para a vinha de espaldeira e enforcado que guarnecia
os
contornos
do
regadio.
De
manhã
a
sol-pôr
era
ali
uma
alfândega de gente. Vinham os taverneiros de Cristelo e do Bico encher os seus odres, e os almocreves de Guimarães com vistosas rédeas de azémolas,
ajoujadas
de
campainhas
castelhanas,
tirar
cargas
e
cargas
de
milho.
Manadas de vacas, de úberos retesos, mugindo amaviosas quando mamãs recentes, de galhaduras em lira, mais esbeltas que duas estrofes de Diogo Bernardes, vizinho das terras do Lima, davam amenidade bíblica ao verde anojadiço das veigas. As ovelhas baliam nos rossios, e era patusco ver os poldros novos despedir em carreiras vertiginosas pelos cerros e estacar cerce como o cavalo de Fuas Roupinho nas arribas da Nazaré. No Inverno abrigavam-se na propriedade as aves indígenas, rudes mas pouco aventureiras, como o gaio, o melro e o picanço. Certos bichos do monte, entre os quais a raposa, a fuinha, e o gato bravo, elegiam também a mata velha para sede de suas tocas e madrigueiras. De coelhos, os tojais eram um prodigioso inçadoiro. Sol posto, investiam através das regadas de sanfeno até a horta, à beira mesmo da casa. Primeiro que ninguém haviam eles de provar a couve troncha e a folha da luzerna adstringente. Mas o abegão
conhecia
todo
o
género
de
armadilhas,
desde
o
laço
de
arame
corredio aos ferros de serrilhas que se armam nos tourais, onde eles vêm fazer suas necessidades depois da sua hora de amor e de comezaina, e não lhes perdoava. Todas as noites os ia armar, para os erguer com a alba. E, ainda
como
barreira
às
suas
investidas
danosas,
semeava
à
borda
dos
quartéis um cordão de feijão negrinho, sorte de feitiço com que dão o cavaco e tem a propriedade de os afugentar para onde não fazem mal. Nas noites de luar nada mais engraçado que vê-los em corrimaças, devaneios e nas batalhas por sua dama ou seus caprichos, ora orelhas fitas, aptas a recolher os sussurros mais subtis, botando o seu trote e acaçapando-se, ora à desfilada,
mandando
mil
pernas
maratónicas.
E
quando
avançavam
aos
saltinhos para as fêmeas, dando a sua sapatada a meter medo aos rivais, eram mais cómicos que cupidos a lançar a frecha. Umas vezes por outras, a zorra, que tivera a paciência de se manter horas e horas de focinho afiado entre as sarças a espiar, dava pulo no meio dos fragalhoteiros. E era um trágico e fulgurante salve-se quem puder. Também os lobos desciam de seus fojos da serra da Arga, chamados pelo bodum dos currais. Mas vinham esbarrar nos muros altos, que contornavam um momento por descargo de consciência, e iam uivar para os outeirinhos do Meijoeiro. Já aos javalis nada os detinha, quando a bolota começava a soltar-se do ramos das azinheiras. Por onde entravam e saíam não se sabe.
Os pastores topavam o estrabo nas veredas da mata e rompiam em alta e desabalada grita: – Aqui andou porco montês! Acudiam os servos, armados de dardos e foices, açulando alões e sabujos. Não raro vinha no tropel o senhor licenciado e o menino Dominguinhos. Javali onde ia ele?! Na Primavera, a quinta tornava-se céu aberto. Regressavam de longe as aves migradoras, transmarinas, que consideravam a mata natal a sua cidade santa. Recreavam-se as corutas dos pinheiros com rolas e cucos, mestres de solta. Uma poupa todos os anos vinha fazer o ninho debaixo duma telha no estábulo das vacas. E ali estava ela a toda a hora: Oupa! Oupa! Por vezes tomava-se
de
frenesim
e
as
notas
saíam-lhe
em
colcheia,
guturais
e
atropeladas. Então o filho do cabreiro – que também já havia disso na Quinta de N.ª S.ª do Amparo – arremedava: – Poupa o pão! Poupa o pão! Por isso mesmo Gonçalo da Cunha gizou um espigueiro, maravilha de quem o via, assente sobre pedra, todo em boas fasquias de castanho e caibradura de carvalho, bonito que nem um templo grego. Em vastidão não era menos singular: vinte e sete metros de comprimento com a largura e altura da lei. Os aganões não entravam lá com duas razões. Podia chover, que
também
não
embolorecia
a
espiga.
Daquele
jeito,
o
grão
chegava
avantajado à rasa, durante bons meses a dormir e a comer do arolo. Também não eram poucas as fruteiras, tanto de caroço como de grainha, medradas que era um louvar a Deus, e enfeitavam lindamente a fazenda. Propriedade sem árvores é como uma mulher sem cabeleira. O licenciado apreciava todas as luxúrias, a começar pela frondosidade na fêmea e nas plantas. Certo
Inverno,
as
trutas
deixaram-se
lograr
pelo
rego
de
água
que
transvazou da levada e foram por ele fora até ficar a seco na terra de regadio. O vaqueiro pescou-as a bragas enxutas, mas quem as cometeu foram os patrões. Tudo
isto,
este
badanau,
este
rebuliço
agrícola
e
este
repululamento
animal completavam a fazenda em sua essência e fisionomia. Nestes termos, com os seus cômoros e chãs, suas águas e bosques, suas fruteiras e flores, seus pássaros e animais montesinhos, o seu clima e o próprio panorama, constituía uma madre que não pouco colaborava em moldar o homem – o bicho que tivera por condão ali nascer e viver. Ora, se não nasceu na Casa Grande, para ali veio de tenra idade o filho de Gonçalo da Cunha e de Maria Roriga. Era ele o traquinas que montava nos
aríetes quando o zagal vinha abrir ao rebanho e conduzi-lo ao pasto; que se agarrava ao pescoço dos poldros que largavam com ele aos alcricotes; que apanhou um senhor coice duma mãe égua que o teve em lençóis de vinho; que chapinhava no rio, era em suma o deus e o diabo do lugar. Chamava-se Domingos, e bem lhe acertava o nome por ser filho único e rico de domingo, se bem que o herdasse de um seu avô. Que tinha mais irmãos, uns quatro ou cinco, todos eles garotos vivos, criados à rédea solta, dos quais se não sabia quem era o vero progenitor, pois que o Rebocho e Gonçalo da Cunha, afinal de contas, mergulhavam ambos na mesma gamela, não lhe importava! Ele era o fidalguinho para quem nascia o Sol e à volta de quem giravam o mesmo Sol, o licenciado, os criados, os amigos do licenciado, próximos e ausentes, o mundo em suma que contava. E como não, se o pai lhe vinculara a Quinta de N.ª S.ª do Amparo e o que tinha e viria a ter e a herdar, particularmente ali e em Agualonga!? Aos vinte anos não havia menina no velho
Couto
de
Fraião
que
não
suspirasse
por
ele,
lesto,
bonito
e
desembaraçado moço, nem pai das mesmas que o não cobiçasse para genro, na qualidade do morgado mais rico dentre Minho e Lima. A este ajudara-o a fazer
e
conformara-o
Romarigães.
com
seus
enfaixes
invisíveis
a
Casa
Grande
de
III
Afinal,
Domingos
da
Cunha
casou
ao
pé
da
porta,
em
S.
Paio
de
Agualonga, com D. Francisca de Antas, sua prima carnal, filha do capitãomor Manuel de Antas, representante dos Antas de Fraião e Bustaranga, da melhor nobreza minhota. Rica, bonita, prendada e virtuosa, até sabia cortar letra redonda e era capaz de escrever uma carta com menos erros do que a duquesa de Olivares se lha ditassem com voz pausada e articulando bem as sílabas. Ainda nisto o favoreceu a boa estrela. Aos
quarenta
anos,
opulento,
querido
da
fidalguia
de
Entre
Douro
e
Minho, mais inextricável que no subsolo o raizame duma moita velha de carvalhos, encontrou-se com cinco filhos, Luís, o primogénito, de dez anos, os outros dali para baixo como a gaitinha dos capadores. Tudo lhe corria bem, mas o futuro daqueles cinco cachorros – como costumava dizer – era a sua danação. Bem sabia ele, mitrado como era na escola do pai, que três carreiras se abriam para um filho de boa mãe: as armas, as letras e o Paço. Cincavam as duas primeiras por muito sujeitas ao corrume do tempo e da fortuna. Ainda quanto a essas, a melhor maneira de vencer seria à volta do Paço,
mesmo
que
fosse
preciso
entrar
pela
porta
do
cavalo.
«Por
conseguinte, vamos pelo Paço» – cogitou consigo ao arquitectar o futuro do primogénito, e disse-o depois, travesseiro com travesseiro, a D. Francisca, sua prima e esposa. – O primo Troilo, de Sotomaior, tu cá, tu lá com o Olivares, pode muito bem dar a mão ao parente de Portugal. Deitou
contas
a
teres
e
rendimentos.
Julgou-se
assaz
abastado
para
custear aposentadoria em qualquer cidade dos dois reinos e ocorrer com largueza às despesas de sumptuária, que exige homem nobre. Pois não era a sua casa de molde a medir-se com a Casa de Pentieiros, dos Meneses, ou a
de Freixomil, dos Matagansos, que ocupavam tão bom lugar no armorial como na opulência?! Decerto que sim, e foi neste ambicioso propósito que chamou mestres de letras e artes para casa, que pouco menos baratos lhe ficavam que o barbeiro e o sangrador. Não que valesse a pena blasonar conhecimentos, que só valiam no campo da vaidade, mas saber não ocupa lugar. Em seu juízo, o supersumo da boa criação estava em jogar as armas a primor
e
domar
com
duas
gaitadas
dos
esporins
um
poldro
bravo,
obrigando-o a bater o trote e a entrar no passo. Proporcionou-se-lhe, para tanto, aproveitar-se das boas prendas dum primo que viera encalhar em terras do Coura, D. Florêncio da Cunha Beça. Enjeitado de Ribeira do Cávado, gotoso, pobre e sempre delirante, mas homem rompido em vaivéns e douto em etiquetas, deixou, nas casas onde assistiu, os moços morgados, lerdos do natural fragueiro e do fartum, urbanos como alfenins. Contratou entre os párocos aposentados, para ser menor a despesa, um padre-mestre, que era um poço no latinório e no esturrinho. Vinha a ponto para ensinar aos três filhos gramática e retórica, de modo à altura própria meterem dente no Genuense aqueles que se destinavam a abrir coroa. Com o mais velho, Luís, a sementeira anunciou-se desde logo safra, pouco faltando para a ciência do silogismo lhe pôr os miolos n’água. O seu regalo era a esgrima e bater o monte com os couteiros da casa. À espada-preta aplicava já um revés com tanta propriedade e destreza que passava as lampas ao pai, um barra em tais
áfricas.
Não
assim
os
manos,
por
ordem
de
idade,
Alexandre,
Agostinho, Carlos, finos como o azebre. O primeiro denotava tal queda para beneficiado que começou desde logo, decerto mais por mania do que por outra coisa, a usar óculos. Uns óculos grandes, que assim era de moda na corte de S. Isidro, muito sapienciais e circunspectos. O segundo também lá ia,
tem-te-não
caias,
marrando
no
hora,
horae
e
trauteando
nos
seus
calçotes de marau: filia agricolae pulchra est. O terceiro ainda não deitara bem as unhas de fora, para que se soubesse se era colhereiro ou gavião. O último rebento da prole era uma menina, Cristina, e pelos seus cabelos de oiro, os seus pulos e gorjeios através da quinta, bem se via a arvéloa que ali estava. Cinco
diabretes,
onde
arrumá-los,
fechado
naquela
portela
de
brutas
serranias, por um lado a Arga alpestre, monte Calvário que problemáticos anacoretas deixaram a lobos garantidos, por outro a Labruja de soga e bronca, mais acima os penhascos de Rubiães!? Não bastava subir por oiro
para a cama, como lhe assacavam com evidente prosopopeia os primos morgados, que dormiam em catre de tábuas e não tinham outro passadio que não fossem as papas de milho e o marrano assado no espeto em dias de festa, espécie de duelos y quebrantos do engenhoso fidalgo D. Quijote de la Mancha. Era preciso que esses quatro perdigotos não ficassem às sopas magras ou gordas, bem embora, do irmão morgado. E Domingos da Cunha, fiado no valimento do primo Troilo, meditou um grande golpe: nem mais nem menos do que transferir a residência não para a Corte de Lisboa, subalternizada com os Filipes, mas para a Corte de Madrid. Uma bela manhã de Dezembro, branca mas desnevada, quando já tinha, pode-se dizer, as pistolas nos coldres e os carolos de cruzados e dobrões recolhidos em baús de chapa, belos baús de viagem reforçados por precintas de ferro, estalou a nova apocalíptica: Lisboa sacudira o jugo de Castela. O rastilho ia ardendo por cidades e vilas. Havia monarca próprio, esse de quem escreveu Frei Luís de Sousa: nome fermoso é rey natural. Domingos da Cunha mordeu os beiços: – E agora que fazer, tolo dos tolos? Não
perdeu
tempo
a
coçar
a
cabeça
como
qualquer
enjalgado
do
entendimento. Deitou inculcas aqui e além, tanto na terra portuguesa como na galega. Fora sempre bom calculador. Mostraram-lhe Castela assoberbada de inimigos, não sabendo para qual se voltar, como uma javarda com muitos podengos apostos e pular-lhe ao samarro. Confirmaram-lhe os parentes da Corte filipina que os negócios públicos ali corriam mal, mercê da torpeza e relaxidão dos homens. Muito do património imperial tinha ido pela água abaixo. Tudo maus prenúncios. A hesitação não é própria dos jogadores de mão-cheia. Assentou apontar na carta do Bragança, o sol nascente. Quando
uma
dessas
noites,
nas
tais
conferências
de
travesseiro
com
travesseiro, se abriu para D. Francisca, já estava mais que resoluto: – Chut, prima, o que lá vai, lá vai. Foi sonho. Ao
comunicar
tal
decisão
aos
seus,
fê-lo
como
se
desse
um
recado.
Semelhante despacho tiveram-lho todos aqueles a quem alvoroçava o rumor da Independência como o generoso impulso dum patriota de gema. Quando D. Diogo de Lima, o Bisconde de Vila Nova de Cerveira, como o nomeavam por toda a terra minhota, governador das armas de Entre Douro e Minho, convocou a gente que lhe era obrigada por feudo, doação de couto, menagem à Honra, a primeira coorte a bater o sambarco no pátio do solar
foi a de Domingos da Cunha. Trazia-lhe vinte homens de cavalo e outros tantos de pé, equipados como Deus era servido, mas aptos a partir com a rija dentuça uma fraga em terra castelhana. Dado o exemplo, os voluntários começaram a afluir. Embora sem entusiasmo, lá obedeciam à voz ancestral do suserano. O recrutamento por seu turno também ia engrossando a hoste, ainda
que
primeiro,
o
patriotismo
Alcácer
batalhador.
Por
Quibir,
aquela
marcasse depois,
altura,
no
temperaturas tinham entanto,
muito
desfibrado os
baixas.
A
Índia,
nervo
do
velho
o
morgados
do
Alto
Minho
sabiam ainda montar à estardiota e flostriar nos arraiais, uma vez que as cabeças que apareciam rachadas entre Viana e Esposende acusavam marca de varapau e não apenas trambolhões com a bebedeira. A campanha na raia do Norte rompeu por uma conversa fiada, descargas de arcabuz e contradescargas de margem para margem. E assim levou os primeiros anos a milícia do Minho em guerrilha com a milícia galega, comandada já pelo conde de San Esteban, já por D. Baltasar de Pantoja, num
tiroteio
teatral,
sem
que
alguma
vez
se
tingissem
com
o
sangue
derramado as águas do rio. Depois, quando os portugueses lançaram pé em Salvatierra, os espanhóis lançaram-no em Monção. Domingos da Cunha, capitão de ginetes, andou neste vaganau anos sobre anos até se lhe moer a paciência. Certas temporadas, chegava à Casa Grande sozinho ou com o impedido. Depois de beijar os seus cachorros, encher a búzera, e bocejar, deitava-se a dormir e dormia oito dias a fio. Embora parecesse andar em bolandas, o migalho que se dava de burzunda e a ociosidade crónica em que combaliam os combatentes, ociosidade de criar piolho, enfadavam-no mais que andar a pegar touros. Só saía da cama para ouvir missa. Ora certo dia de tais semanadas, entretecidas de orelheira de porco com feijão burro e vinho de Santo Tirso, que ouvia divertido as anedotas do primo Florêncio e as queixas do padre-mestre Mendrugo contra os meninos, tão cábulas como malcriados, vieram-lhe dizer que os portugueses haviam sido destroçados. – Destroçados quê, alma do diabo? – Destroçados, sim senhor, em Lapela. Parece que os nossos largaram que nem um raio os agarrava! – Pois se largaram não se perdeu tudo. O que é, temos os safados dos galegos na tulha. Vá já um portador averiguar o que se passa. Chamem-me o comandante, o Castelo Melhor, para minha casa. Ofereço-lhe cama e mesa.
Se for muito afogadiço, mulher também se arranja. Quem estiver pronto para marchar, marche! – Se o pai dá licença, vou eu... Era seu filho Luís que se propunha para tal missão. Aceite. O pai deitoulhe a bênção e logo o moço mandou selar o melhor cavalo. Com dois criados à cernelha, despediu como uma flecha. Atravessou S. Roque e S. Bento da Porta Aberta duma galopada, e foi ainda com sol surpreender a ressaca da hoste portuguesa por alturas do Cerdal, ao tempo que tomava boleto em casa de lavradores e cabaneiros. Luís Antas fez parte do pelotão dos trinta homens que, atravessando o Minho a nado para Goyán com armas às costas, surpreenderam as sentinelas espanholas na modorra da alba e se apossaram do baluarte principal. Mas, dado o alarme, a posição era-lhes insustentável se o sargento-mor Soares Pereira não montasse, de golpe, uma ponte de barcas por onde afluíram os reforços. Deste jeito a guarnição, que era composta de 200 soldados velhos com 5 peças de artilharia, foi jugulada e feita prisioneira enquanto o diabo dá um espirro. Domingos da Cunha podia gloriar-se de ter dado homem por si, aquele rijo e valoroso moço, que era a luz dos seus olhos. Bem lhe era preciso. Os nove anos de campanha, às vezes metido no lodo do rio até a cinta, com escaramuças, correrias frenéticas de vila para vila, emboscadas ao espanhol, tinham-no pouco menos que percluso do reumatismo. Com
a
tomada
de
Goyán,
franqueara-se
às
tropas
portuguesas
uma
avenida à beira do Minho, que por um lado levava a Tuy, por outro a Val del Rosal. Para os espanhóis era o resvaladoiro. Por isso, D. Baltasar de Pantoja acudiu com grande rompante, pum-catapum, pós-catrapós, por ali abaixo, à frente
das
tropas
retiradas
de
Orense,
formidolosas
em
pelouros
e
arcabuzaria, convicto que os portugueses, à sua aproximação, abandonavam o castelo chamando-se às de vila-diogo. Mas os portugueses fizeram-lhe a pirraça de se agarrar às romeiras e recebê-lo à bala: pega que te dou eu! E havendo-se tiroteio
estabelecido
tornou-se
o
normal,
duelo à
de
artilharia,
semelhança
da
em
água
menos
de
semana
o
corrente
do
rio
a
que
aragem da Primavera arrepiava como a gaze muito fina. Nas várzeas os lavradorzinhos aravam os campos, os pescadores no rio lançavam as redes, e
só as gaivotas vinham curiosas, em voo pairado por cima do Monte de Santa Tecla, espreitar o babaréu. Pantoja fartou-se de gastar pólvora e pelouro e não conseguiu expugnar o bastião. Mas para um castelhano de calibre tudo tem
remédio:
mandou
erguer,
o
mais
cerca
que
pôde,
um
fortim
que
trancasse para o inimigo as avenidas galicianas. E por algum tempo os portugueses
não
deram
mais
passo.
Essa
obra
de
engenharia
barata
se
chamou dos Medos, e bem lhe ia pois que o seu papel era igual à de um espantalho no meio dos campos contra os pássaros. O Prado, que sucedeu no comando a Castelo Melhor, falecido em Ponte de Lima, meditava, vendo-se encurralado em Goyán, na maneira de romper o
acincho
e
entrar
pela
farta
Galiza
dentro.
Aníbal
face
à
Campânia
tentadora. Os soldados pediam por todos os foles broa, vinho de Rivero e chitas. Por outro lado, ao quartel-general eram indispensáveis fortes acções diversivas na raia norte. Mas faltava gente e tão-pouco eram sobejas as munições. Em
conformidade
homens-bons
da
foram
vasta
convocados
comarca.
Para
os
o
vassalos,
concelho
cavaleiros
de
Coura,
vilões
e
mandaram
recado a Domingos da Cunha, sempre testo e pronto para a causa real, e, como não, se não perdia de vista que tinha cinco filhos, quatro deles a pedir conezia! Além dos muitos servos e arrendatários que a casa do Amparo tinha em Romarigães e terras vizinhas, desfrutava, pelas suas relações de parentesco, de grande influência na fidalguia do Alto Minho. Por sua vez, passou palavra aos Melos, de S. Pedro da Castanheira; aos Coutinhos, de Pico de Regalados; aos Araújos, de Couto de Sabariz; aos Castros, de S. Martinho de Vascões e Insalde; aos Barbosas de Lima, de S. Miguel de Porreiras;
aos
Antas,
de
Rubiães
e
de
Santa
Maria
de
Agualonga;
aos
Sotomaiores e Gamas, de Infesta; aos Liras, de S. Mamede de Ferreira, e aos Pereiras da Silva, de Santa Maria da Cunha. Por montes e vales, onde havia
almuinha
ou
casal,
os
porteiros
bateram
nos
tambores
o
rufo
de
guerra. Romarigães foi designada para local de concentração. Dia a dia chegavam recrutas de todas as partes, desde Fontoura, a escorregar para o rio Minho, a Corno de Bico, a olhar os Arcos. Gondalim mandou uma bela maltesia de tombadores de lobo, e Pardelhas e Covas mocetões feitos nas cavas e estorgadas. A certa altura, o pátio parecia uma feira. Nas estrebarias não restava baia devoluta para um cavalo. Forçoso se tornou prendê-los pelos abrigos e côncavos da mata e até pelos campos de milho. Quando
chegaram as colunas de Vez e da Ribeira-Lima, houve que aboletá-las nos templos e na própria capela de N.ª S.ª do Amparo. Alimentar tal mó de gente acarretava grande ónus e trabalho. O abastecimento pela manutenção militar era precário, mas a quinta estava bem provida e mimosinha de tudo. As tulhas ficaram repletas no são-miguel e na adega não havia pipa nem pipo que tocasse a vazio. Por outro lado, os almargeais produziam erva tão balofa
e
crescida
que
os
cavalos
cada
dia
se
tornavam
mais
nédios
e
reforçados. Na cozinha, uma dúzia de mulheraças não tinham mãos a medir. Os filhos de algo dormiam em enxergas, debaixo da telha; a rabusanada onde calhava, barracas improvisadas, alpendres e até ao sereno, cobertos pelo lençol frio das três Marias. De sol-nado a sol-pôr era ali um inferno. Fugiram os pássaros da mata, e não mais se ouviu noite alta e nos alvores do dia o alegre esporteirar dos galos, que todos eles, frangos, pitas velhas, pitas poedeiras, pombos e peruzada, tinham passado ao estreito dos milicianos. A quinta tornara-se um lugar de ruído e confusão, paredes em terra, árvores sem casca e de ramos espinocados, e nos alegretes não luzia uma rosa que se pudesse pôr aos pés de Nossa Senhora. Decorreram
semanas
na
concentração
das
milícias,
depois
outras
a
aprender o manejo das armas. Domingos da Cunha, quando viu o canastro sem um só grão de milho para os camondongos, a erva nas veigas comida ou calcada, o tojo e a sarça murchos e sem brotos, as salgadeiras com o último pespé de cerdo, disse para os seus botões: Isto assim não pode continuar. Fica-me a Quinta do Desamparo. E advertiu o conde: – Se Vossa Senhoria não leva esta gente a pilhar a Galiza, ou nos comem como na nau Catrineta, ou esticamos aqui todos à fome. Romarigães é o pano de amostra. A província está esburgada até o sabugo. Se quiserem ferrar o dente, não topam mais que cascas de carvalho.
IV
O exército do conde do Prado, forte de 12 000 infantes e 2500 ginetes, atravessou o Minho ao abrigo dos canhões de Goyán, depois de meter medo ao forte dos Medos, mandando-lhe para lá dois balázios. E tomou a estrada de La Guardia, para erguer bivaque em Tabajón, o primeiro povo saqueado e a que por ordem expressa do comando se não fez dano de maior. Na manhã seguinte, a caminho de Salcidos, trocaram os primeiros tiros com a força de reconhecimento destacada pelo condestável de Castela. Ao outro dia, os portugueses entravam de roldão em La Guardia. As ruas bem como as casas estavam desertas. Apenas tinha ficado um pequeno número de feridos por evacuar no hospital de sangue. A excepção duns velhos e dumas mulheres, que saíam às portas, de mãos erguidas, a pedir misericórdia, os moradores corriam estramontados por campos e matas. Só as
freiras
beneditinas
esperavam
a
pé
firme
o
corisco
exterminador,
transidas nas espiras do susto, rezando e cantando hinos. Na sofreguidão da pilhagem a soldadesca dispersou-se pelas casas de moradia e lojecas do comércio. Como em Tabajón, tinha sido dada carta branca, menos para assassinar e pôr o fogo. Mas La Guardia era um lugar pobre de pescadores, no geral pataqueiro, e os campónios do Minho e Trásos-Montes,
que
estavam
cheios
de
fome,
satisfaziam-se
com
matá-la.
Mesmo isso ali não era coisa fácil, e derramaram-se como um açude pelo Val del Rosal, pequena mas rica e suculenta comarca, bastava olhar para os seus muitos e bonitos canastros por eiras e pátios. Mas prevaleceu a cordura. Os vizinhos acabaram por afoitar-se a sair à praça, e receberam-nos tão bem,
pondo-lhes
à
disposição
suas
uchas
e
panais,
que
eles
próprios
resvalaram automaticamente à condição de hóspedes que não de inimigos.
De modo que a devastação da Galiza, decretada por Schomberg e Marialva, reduziu-se a cama, mesa e roupa lavada, grato Deo, verdadeiro trato de regalões. Uma Cápua acabada aquele Val del Rosal ou Ilha dos Amores com ninfas verdadeiras de mantelos de seriguilha e saiote. No pequeno burgo marítimo, os oficiais não encontraram outra recreação que não fosse a pesca ou entreterem-se às grades do convento, onde havia educandas e noviças, bonita e faceira uma ou outra, que estavam ali pelos cabelos,
coactas
tantas
vezes
a
eleger
Cristo
por
esposo
em
nome
de
interesses inconfessáveis. Não faltavam até portuguesas, pois que a guerra não representara um corte absoluto de relações com a Galiza, mormente pelo que respeita aos velhos e tradicionais laços das famílias com prosápia comum aquém e além-Minho. Uma delas chamava-se Joana de Azevedo e pertencia à casa de Azevedo, de Portela das Cabras, termo de Barcelos, filha de Simão de Vilas Boas, senhor do morgadio, e de sua primeira mulher, D. Ana de Barros Rego. Era prima em terceiro grau de Luís Antas, a mãe dela e a mãe dele entroncando numa bisavó da casa de Bustaranga. Mercê desse parentesco e no intuito de tranquilizar
e
oferecer
os
seus
préstimos
à
prima,
se
fez
anunciar
ao
locutório. Esperava encontrar pouco mais que uma criança e deparou-se-lhe uma flor na radiosa luz do amanhecer. Ficou deslumbrado. O olhar que se cruzaram foi o raio fulminador da graça. De parte a parte um instinto forte e brando ao mesmo tempo, doloroso e alegre, os atraiu e intimidou. Joana era a primogénita. A favor porém do irmão e para não lhe causar nenhuma espécie de estorvo na sucessão ao vínculo e doações possíveis de velhas parentas ricas, solteironas e atulhadas de anos e de preconceitos, acedera a sequestrar-se do mundo, disposta mesmo a professar. Uma vez contraídos os votos, o morgadio, que não era avultado, processava-se na linha varonil, representada pelo irmão, Gualter de Vilas Boas, filho da segunda mulher. Sacrificando-se, era um preito que rendia à fidalguia dos Azevedos, tanto mais estrénuo que representava o recalcamento da sua jucunda mocidade. Luís Antas compreendeu o que significava o acto abnegado. Por linhas travessas penetrara o segredo daquela vocação, cultivada desde menina e imposta
em
benefício
dum
nome
tão
orgulhoso
dos
pergaminhos
como
escasso de bens. E quando Joana se abriu com ele, porque suas almas falassem por cima de cálculos e convenções, viu-lhe os olhos marejados de lágrimas e avaliou bem dos limites em que se confinava o drama de seu
holocausto à vesânia senhorial duma família, que se orgulhava de remontar a Quilderico por um filho engendrado detrás da porta. Luís Antas levava-lhe alguns anos a mais. Precisamente esses anos de diferença representavam para ela uma garantia, espécie de seguro do seu coração e boa fé. Dizia-lhe a voz de dentro que não lhe era preciso outro termo de responsabilidade além daquele lavrado pela própria natureza. Sem falar do que psicologicamente envolvia de confiança, implicava não menos a certeza dum apoio paternal, doce e autoritário ao mesmo tempo, que a mulher gosta de sentir no homem a que se votou. Joana, segundo o painel existente na galeria dos retratos da Casa Grande, não
era
formosa,
mas
extremamente
sedutora.
As
mulheres
porém
não
precisam de ser bonitas para serem amadas até a idolatria. Basta-lhes que possuam o quid magnético que chama o pirilampo para a pirilampa através do escuro incomensurável. Era mediana de corpo, enxuta de carnes, dentes muito brancos e regulares, olhos pretos de que se não via o fundo, e um sorriso
brando,
destes
que,
sem
jamais
se
descomporem,
variam
de
suavidade como os dos felinos que reflectem nas pupilas os cambiantes da luz. Da cinta era fina e, no andar, um tudo-nada flexuoso, punha um dengue tão
involuntário
que
se
quedava
em
requebro
natural,
promissor
de
temperamento. Pertencia em suma à classe de mulheres que, a começar pelo corpo e acabar pela alma, se tornam amantes perfeitas. Lianças com elas jamais se rompem. Quem as ama, ama-as até a morte. Quando desaparecem, deixam inextinguível braseiro. É que deram com a sua carne a beber o filtro que
não
perdoa,
onde
se
concentraram
meiguice
e
enliçamento
animal,
princípios sumos da voluptuosidade criadora. Luís Antas amou desde o primeiro dia a sua prima, mas não tinha a certeza de ser amado. Todos os dias, todas as horas que a implacável regra do claustro não detinha Joana, ali estavam os dois, à flor dos mundos, superiores às contingências da guerra e da paz. Mas de parte dela não seria mais que galantaria, brinco de alma caprichosa? No entrementes, D. Inigo de Velasco, que dirigia as operações na raia seca de Trás-os-Montes, e passava por agitado e rebentio de génio, desceu a marchas
forçadas
para
o
extremo
sul
da
província
de
Pontevedra.
Era
oportuno. Os portugueses, cedendo a instâncias do alto comando, tinham passado a devastar sistematicamente a Galiza.
Semelhantes notícias semearam a maior confusão no espírito dos dois. Dado que a fortuna é volúvel, muito mais a da guerra, podia acontecer que fossem
forçados
a
separar-se,
sabe
Deus
por
quanto
tempo.
O
coração
ditava-lhes pois que tomassem partido contra ventos e marés. Ao cabo de dias de reticência, de pausas cheias de inquietação, de olhares carregados de perguntas, foi a própria Joana que teve a coragem de formular a única e segura saída: – Porque me não leva daqui, primo? Esse remédio ele o entrevira desde logo, mas queria à sua prima com muita discrição e delicadeza para que se decidisse a inculcá-lo. Mas pois que ela assim o entendia e confiava nele, mil graças à boa Nossa Senhora do Amparo, sua madrinha e padroeira da casa. E trataram desde logo de dar despacho a semelhante resolução. Essa noite, Joana, depois de entrouxar muito à socapa os seus parcos haveres, quando nas celas reinava silêncio absoluto, abriu a porta para o corredor. Apurou o ouvido. Não se ouvia bafo humano, nem outro rumor além
da
martelada
das
ondas,
lá
fora,
contra
os
cachopos.
Como
uma
sombra, às apalpadelas, desceu ao primeiro piso e daí, por um janelo baixo mal trancado, escapuliu-se para o claustro. No ângulo da galeria sul, abriu a porta que dava para a cerca e era a de serviço. Subitamente achou-se, em plena noite, centro abissal da abóbada celeste, tão cravejada de estrelas, tão semiopaca e veludosa rente à terra, que ficou siderada. Havia muito que não contemplava, extensão
de
olhos
infinita,
consoante.
E
naturalmente
recalcadora
escuro,
languidez
ou
erguidos
ao
exalçadora
atmosférica,
céu, da
hálito
o
espectáculo
pequenez marinho
da
humana,
tornaram-se
beberagem que a inebriava. Na sua natureza difundia-se não saberia dizer que tóxico que a medusava à beira do tempo. Nesse nirvana, alheamento de si, anulação física, a imensidade oferecia-se-lhe então como um todo de bronze, impenetrável, em que não julgava poder romper caminho. E ali estava sem forças, perplexa, com vontade de morrer, entregue à certeza de não
chegar
a
bom
termo.
Mil
lanças
lhe
atravessavam
o
coração
e
se
arrancavam dele sem causar dor nem fazer sangue. Pensou voltar para a cela.
Mas
chamou-se
a
Nossa
Senhora
do
Amparo,
essa
que
Luís
lhe
apresentara como sua madrinha, com todo o fervor, com todo o desespero, e varreu de si o espanto. Segundo a planta que Luís lhe fizera da casa e a sua estimativa, correu para a porta que deitava para a ruela e servia de acesso aos jornaleiros que
vinham amanhar a cerca. Essa ruela por um lado conduzia aos pontos altos da povoação, por outro ia desembocar na praia. Mas, Jesus Maria, a porta estava fechada à chave e esta não se encontrava na fechadura, ao contrário do que lhe fora anunciado! Da parte de fora sentiu Luís e isso lhe deu ânimo. Trocaram explicações quanto ao acidente imprevisto. – A chave está lá com certeza. Procure-a, prima... Por mais que procurasse a chave, não a achou e, por mais que tentasse com suas mãos frágeis e imperitas abrir a porta, também não teve meio de o conseguir. Desatou a chorar, ao passo que soltava vozes de desespero: – Váse embora, primo! Só lhe posso dar má sorte. Deixe-me, nasci para ser infeliz! Luís Antas por sua vez blasfemava e dizia também mal da sua estrela. Lembrou-se de chamar o impedido, um lascarinho das bandas de Rendufe, que vigiava passos acima, não surgisse brequefesta inesperado. – Não se aflija, meu tenente. Arromba-se a porta! Vai ver... É um rufo! Foi-se o soldado a um monte de pedras e, empunhando um matacão que pesava muitos quilos, balanceou-o ao alto nas duas mãos e arremessou-o contra a porta. Esta rangeu, mas aguentou o golpe. Embora de cerca, era uma
porta
conventual,
reforçada,
como
todas
as
portas
conventuais,
de
molde a resistir aos três inimigos temíveis: mundo, diabo e carne. O soldado pegou dum pedregulho ainda maior. Jogou-o de novo contra a porta, depois de dizer para a pessoa que supunha ser uma freira: – A Madre tire-se lá para longe que a porta vai ou acaba-se aqui o mundo. E a porta soltou um estampido de canhão e abriu fenda. Mais duas, três pelouradas, estilhas.
e
descoseu
Acudiram
ao
dos
gonzos,
estardalhaço
fecho caras
de
fora
e
com
estrenoitadas.
o
Luís
batente da
em
Cunha,
atemorizado com a própria audácia, viu-lhes fazer festos de espanto e figas ao
Canhoto
nos
umbrais
laivados
da
luz
sidérea.
O
impedido,
que
era
espírito forte, porque lhe cheirasse mal o desafogo, pegou dum calhau e atirou-o pela congosta acima, de raspão pelos casebres. Logo as cabeças refugiram para dentro e se cisparam os cancelos. O pior é que no mosteiro começava
a
lavrar
o
alarme,
o
que
inferiram
pela
claridade
que
ia
perpassando fugaz e sucessivamente nas janelas entenebrecidas. Luís Antas subiu para o cavalo, o ordenança ofereceu o joelho a Joana, que, de um salto, se sentou de amazona à garupa, e abalaram. Ele apenas lhe disse: – Não tenha susto, prima. Faça de conta que está na sua terra.
– Com o primo nada me assusta. – Eu cá levo as pistolas nos coldres bem escorvadas. Não tenham medo! – e, isto dizendo, o impedido saltou sobre a sela do seu cavalo, preso na sombra um pouco acima. Atravessaram La Guardia petrificada na noite e, havendo dado o santo-esenha às portas, meteram pelo caminho que ladeava o rio, direito a Goyán. Iam silenciosos e ufanos de si próprios. A aventura lhes daria asas, se outras não levassem nervadas como as dos querubins. À sombra dos canhões do forte, que continuava em posse dos portugueses, Luís Antas entregou o cavalo ao impedido, que, montado no seu e com aquele à rédea, arrepiou caminho para La Guardia. Luís Antas e Joana entraram para a barca, que ali estava aparelhada, com os remadores sentados nos bordos, mãos nos remos, pronta a despedir.
Faltaria ainda uma boa hora até romper a manhã, mas do céu, escampo de nuvens, irradiava uma lactescência luminosa que deixava enxergar as coisas, deformando-as, mas sem as diluir na penumbra. Era nos fins do Inverno e o Minho ia montuoso, rolando barrento e grosso caudal. Uns segundos hesitou Luís Antas em face da massa líquida que lhe pareceu deslocar-se com fundo e
fero
arremesso.
Os
dois
remadores,
além
de
mostrarem
bons
pulsos,
davam uma impressão de serenidade que o tranquilizou. De facto, a barca entrou a romper a corrente com denodo, a quilha pulando sobre o cachão como
uma
toninha
sobre
as
ondas.
E
ainda
que
derivasse,
visto
que
a
margem portuguesa era baixa numa extensão de quilómetros, a menos que
fossem varar em algum junçal alagadiço, o risco não era de maior. Joana, decerto tomada de pavidez, um pouco a pavidez instintiva do animal que perdeu todo o arbítrio, tinha-se enroscado a Luís Antas, cabeça no ombro, braços à volta do pescoço. Olhos semicerrados, não queria ver a água que ia chuchurreando batida pelos remos e que, atalhada de correr, fazia requifes de espuma à passagem da barca. E divagava dentro de si pelas avenidas presentes e remotas da aventura. À medida que avançavam para o meio do rio,
a
torrente
recrescia
de
ímpeto.
Em
torno
do
esquife,
via-se
o
seu
cingidoiro baço, com reflexos de neve, revolver-se numa sorte de imbricação de escamas torvas ou mal distintas. Remoinhava, dava mesmo ideia de ir coleando, sem que acabasse de desenrolar-se tal uma infinda e teimosa cobra. Luís Antas olhava para a água, de olhos fascinados, meio lôbrega e com seus reflexos argênteos de permeio, bonita e voraz ao mesmo tempo. – Minha Nossa Senhora – acabou por pronunciar no fundo da sua alma – em que trabalhos meti eu esta rapariga!? A
umas
boas
braças
da
margem
galega,
não
obstante
o
esforço
dos
barqueiros, a pequena nave começou a derivar. A flux era bem a mais forte, passando-se
assim
imprevisíveis.
As
da
tabela
ilhotas
à
dos
riscos
frente
de
sem
gravidade
Caminha
estariam
para
os
riscos
provavelmente
alagadas. Chocar-se com elas era soçobrar. – Aguenta a barca! – exclamou para os remadores. – Para que quereis as unhas?! Os homens não responderam e afincaram os remos com desespero. A barca continuava a derivar perigosamente. Derivara primeiro com mansa inclinação a bombordo, depois com acentuada impressão de desgarre. Mas obliquando, o mal por então não parecia grande. Luís, que tantas vezes atravessara o rio, por ele considerado como o corgo familiar, teve novo rebate de que cometera uma grave imprudência empreendendo a travessia naquelas condições e sem observar as cautelas requeridas. Mas era tarde para emendar a mão. A noite, com o quarto minguante a erguer-se por trás do monte do Facho, álgida e cheia de cintilações celestes, não deixava ver das margens mais que informes
barreiras
em
que
apenas
pela
condensação
da
negrura
se
adivinhavam os vultos do forte e do arvoredo. No dorso do rio faiscavam de tempos
a
tempos
saltava,
ou
veio
laminações
de
água
estranhas
batida
pela
e
imprevistas,
réstia
da
luz
fosse
segundo
peixe
que
caprichosa
projecção do olhar. Acima do chape-chape estreloiçado dos remos, ouvia um marulho surdo, que não saberia dizer se era o córrego da superfície arrepelando as camadas mais fundas e lentas do caudal e repercutindo na margem. De vez em quando um galo lá para Gondarém ou Figueiró da Galiza atirava aos espaços ensonados um cocoricó vibrante a chamar a alba que ainda vinha longe da casa de Pilatos. A barca continuava levada ao sabor da corrente, e o pior de tudo é que metia água. Luís Antas julgou que Joana, arroubada no seu êxtase, não daria conta. Mas dali a pouco foi preciso que levantasse os pés e apanhasse o vestido para não ficar encharcada. Luís não proferia palavra para a não espavorir.
Mas
começou
a
encarar
o
lance
sob
as
mais
apreensivas
hipóteses. À medida que dobrava suas reflexões, ia-se possuindo de espanto. Levou a mão à fronte e retirou-a inundada de suor. Depois, trespassado de angústia, esse suor caiu-lhe em grossas bagadas pelo rosto em despeito de a noite estar fria. Com olhos alucinados, via a corrente rolar com rompante cada
vez
maior
e
a
água
subir
dentro
da
barca.
E
surpreendeu-se,
brutalmente, a dizer aos homens: – Vocês não vêem? Não vêem? Trazem ao menos uma vasilha? Se trazem, haja um que tire a água, senão vamos ao fundo. Despachem-se! Eu pego do remo... Um dos remadores lá desencantou uma gamela e, mais que pressurosa, aflitivamente, chamando-se em voz alta a todos os santos e santas da corte celestial, os dentes a bater como matracas, rompeu a despejar a água para o rio. Luís havia-se desencostado de Joana para empunhar o remo. Mas ela quisera ficar a seu lado. E, de pé, dava-lhe a beber como um bálsamo o hálito morno de sua boca ansiada. Em poucas remadas a barca endireitou o rumo, em linha recta para a margem. Que energia acordara dentro de Luís, para que o remo vergasse na sua mão e não cedesse à violência do monstro? Dobrado para a proa, olhos fitos no fluxo da água, via-a murmurar, num murmúrio quase animal, de choro, de raiva, espadeirada, desviada, cortada do seu caminho à fina força. O outro remador secundava Luís Antas com alma, embora impando. E a barca penetrou como uma flecha na terra impaludada de Portugal. Luís levou Joana nos braços para a terra firme, um bosque de carvalhos e amieiros onde não chegara a babugem fluvial e não longe do ponto em que os criados aguardariam com duas montadas. Depô-la na relva, semimorta pela emoção. Tanto um como outro tinham sentido soprar em suas almas o
vento
infrene
exultava.
que
Quando
sopra ela
das
fronteiras
derregelou
do
da
vida
colapso,
e
da
morte.
sobrepondo-se
Luís a
agora
todas
as
limitações, testemunhados pelas estrelas, que bem elas os miravam, com um ralo,
ao
cabo
do
almargeal,
a
entoar
a
flébil
cantiguinha
e
que
não
interrompeu para não ouvir e ter de contar, mataram sua sede de amor. Dali até Romarigães, por Cerveira, serra de Ovas, Ponte, ora a chouto, ora a
galope,
foi
uma
passeata
embevecida.
O
padre-mestre,
reverendo
Sebastião Mendrugo, deitou-lhes a bênção na capelinha da casa, consagrada a Nossa Senhora do Amparo. Pequena resistência teve a vencer de parte do pai, Domingos da Cunha, tão correntão e desenganado em aparência, no fundo o mais atrido dos homens, e igualmente da terna e lacrimosa mamã. O padre incorria na pena de anátema substituindo-se ao pároco próprio, sem estar
habilitado
com
licença
da
Câmara
Eclesiástica
a
ministrar-lhes
a
bênção nupcial, e o casamento era nulo segundo um rescrito do Concílio Tridentino.
Mas
que
se
importava
ele
com
as
consequências
dum
acto
praticado à sombra do todo-poderoso Domingos da Cunha e que estivesse válido ou nulo? Dos irmãos de Luís Antas, apenas Cristina se achava na Casa Grande. O beneficiado exercia funções junto da Mitra e para lá vivia; os outros dois irmãos
tinham-se
alistado
nos
ginetes
do
marquês
de
Marialva
em
operações para o Alentejo. Cristina era amada por um moço de Ganfei. Nele não concorria porém a prosápia do sangue com a do espírito, e que mais não fosse, no intuito de se forjar uma aliada, acolheu Joana, como a maninha preciosa, leal e verdadeira. Essa mesma tarde que ela chegou à varanda, curiosa de conhecer os lugares onde estava, Luís veio de seguida, não menos curioso também de receber a sua impressão. – Como é bonito! Na mata verde erguiam-se os gigantescos carvalhos e pinheiros, acima do matiço tentacular, sarapintado do amarelo dos tojais. Os olhos, salvando o talude de verde-bronze, topavam no cabo do horizonte com os cumes da serra da Arga e do Formigoso, para onde o solo ia trepando em veludosas e ondulantes bancadas de floresta e rossio. Debaixo da luz violeta do ocaso, os cumes
pareciam
toucar-se
dum
halo
vaporoso
e
triste,
sorte
de
espiritualidade exsudante, que sobrenadasse acima da terra e do tempo, dos
antigos cenóbios e ainda daquele lendário Mosteiro Máximo sepultado até na memória dos homens. – Que bonito! – tornou ela como um gorjeio. – O que é a vida! – disse-lhe Luís. – Ainda ontem nos encontrávamos às portas da morte. Não calculas a minha aflição ao atravessar o Minho! Tu não
deste
conta...
Eu
sou
bom
nadador,
mas
contigo
e
uma
corrente
daquelas, o perigo foi sério... – Dei conta de tudo muito bem. Não sei se reparaste que me cheguei muito para ti. Só queria morrer nos teus braços. – Pois eu te digo, a minha aflição foi tão grande que prometi a Nossa Senhora do Amparo, que é minha madrinha e foi quem nos valeu, podes estar
certa,
confrange.
uma Assim
residência mesmo,
real.
A
representa
capelinha um
voto
actual, de
de
meu
pobre,
avô
até
Gonçalo
me da
Cunha, que fez esta fazenda pedra por pedra. A terra lhe seja leve, foi um grande homem, não obstante ser clérigo de ordens e gostar de mulheres como um turco. Uma vez que passou por aqui à caça, namorou-se do lugar. Viu Nossa Senhora do Amparo num nicho à beira do caminho e chamou-se a ela: se viesse a adquirir estes terrenos havia de lhe construir casa própria em que fosse venerada. Como os adquiriu, e em boas condições, ao que parece, levantou a capelinha, que viste, humilde e acanhadíssima. Meu avô era dos tais que consideram que Deus e as divinas pessoas tão bem se adoram numa corte de gado como no palácio dum rei. Eu, não, sou pela pompa. Sou católico romano, pontificalmente romano. Nossa Senhora do Amparo anda, como já avaliaste, associada às vicissitudes da família, na qualidade de padroeira e madrinha. No dia em que cair o telhado em cima dela, acabou-se a raça dos Cunhas de Antas. Por isto tudo, eu lhe prometi o mais lindo templo que haja entre Douro e Minho se se dignasse socorrer-nos ao passar o rio e chegássemos com vida à terra portuguesa. Aqui está, mas por ora não digas nada a meu pai que professa a respeito da reverência que devemos tributar à Divindade uma ideia muito diferente da minha, análoga à de meu avô. O que não sofre dúvida é que foi Nossa Senhora do Amparo, a nossa Senhora da Casa Grande, que me insuflou alma e nos valeu quando estávamos à beira de morrer afogados. Por isso Nossa Senhora merece e háde ter a ermida mais formosa e mais rara que olhos mortais viram e verão, ouso dizer, na terra minhota.
V
Florêncio da Cunha Beça, fidalgo espúrio da Ribeira do Cávado, homem batido dos vaivéns e destro em etiqueta, foi enviado de plenipotenciário a Simão de Vilas Boas e Azevedo, senhor da Portela das Cabras. Viera ali encalhar com sua podraga e a sua penúria, mas bem-vindo em toda a parte com o repertório inesgotável de anedotas e sucessos, sem ninguém que o igualasse a destorcer o armorial intrincadíssimo da nobreza de Entre Douro e Minho. Precisamente era dos senhores do Couto e Casa de Azevedo e Castro e das Terras do Bouro que ele se queixava, esbulhado pelo primeiro morgado, Lopo Dias de Azevedo, dos senhorios do concelho de S. João de Rei, da Casa de Cabreira e Ribeira, de que era titular seu tetravô, João Afonso de Beça, sob o pretexto, vero ou falso, de que a soldo de Castela pretendera atentar contra a vida do Mestre de Avis. O certo é que este, depois de o armar cavaleiro em Aljubarrota por sua mão, o investira na posse
daqueles
vínculos
e
coutos,
acrescentando-lhos
ainda
com
os
senhorios de Aguiar de Pena e Jales em Trás-os-Montes, e com os direitos reais da Honra de Frazão, no termo do Porto, e outras pertenças. Do semel de Lopo proveio João, que engendrou Diogo, e Diogo a outro Diogo, o qual veio a casar-se com D. Maria Coutinho da Cunha, filha de Fernão Coutinho da Silva e de sua mulher D. Maria da Cunha, senhores de Celorico de Basto. De tal matrimónio descendia, por linha varonil, além de Vasco, que herdara o domínio minguado, tanto que, por servir em Mazagão e nas armadas, lhe deram com o hábito de Cristo uma tença de sessenta mil réis, Rogério, que fora casar em Barcelos e tivera este Simão de Vilas Boas e Azevedo, e dois bastardos numa mulher de Santa Maria de Rendulfinho, os quais eram: António, que fora adail em Marrocos, e Carlos, monteiro-mor do conde de
Cantanhede.
Fora
com
este
que
Florêncio
passara
largos
dias
dos
bons
velhos tempos em montaria às cabras do Gerês. Para
o
mestre
do
brasonário,
os
tombos
genealógicos
dos
Azevedos,
entrançados com os Cunhas, não tinham mistérios. Ao que referia, Joana vinha a ser sua sexta prima pela linha materna. Em grande estadão, sege, pajem, indumentados os lacaios com pomposas librés e do melhor pano, ao estilo das embaixadas de truz, bateu à porta do senhor de Portela das Cabras. A deprecada parecia simples e nada mais melindroso com o homem de prol, orgulhoso, pobre e catolicão, para o caso três dragões temíveis: o casamento da filha com o morgado de Romarigães, o que, in lato sensu, equivalia a subverter os planos de sucessão na família Azevedo. Para amenizar, levava-lhe de presente um gomil e bacia de prata de especioso lavor, carrancas e boca dourada, que pesavam quinze marcos e três onças, e seu prato de água, com jogo completo de lavatório, incluindo toalhas de tela finíssima, orladas a rendas de bilros, e um Agnus Dei romano para o oratório particular de D. Floribela, de grande antiguidade. Com
engulho
acedeu
o
senhor
da
Portela
das
Cabras
em
ouvir
o
emissário. E fazendo-lhe notar que, por ser quem era, primo e, pode dizerse, criado ao mesmo leite da loba, o recebia, mandou que entrasse para a antecâmara com tanta solenidade como se, baixando a ponte levadiça do castelo, fosse um barão de visita a outro barão. De salto percebeu Florêncio que já chegara ali notícia do que sucedera em La Guardia. A antecipação com que era recebido fê-lo suspeitar ainda que Simão podia muito bem aquilatar do propósito que o trazia. De facto, logo às primeiras palavras o fidalgo torceu os lábios num esgar que lhe punha à mostra as grandes e descarnadas arnelas da ávida dentuça: – O senhor Domingos da Cunha não me dá honra nenhuma solicitando para o seu morgado a mão de minha filha. Eu conheço-lhe a prosápia de ginjeira. Não é ele o neto do abade de S. Paio de Agualonga e de S. Tiago de Romarigães e duma manceba Maria Roriga, de Rubiães, arrancada à padiola do estrume e ao molho da erva de casa do pai, cultivador e nas horas vagas carpinteiro? Ao primo parece-lhe bem um Azevedo admitir na linhagem gente de tal costado? D. Florêncio redarguiu que o que fazia a fidalguia não só em terras do Minho como no resto de Portugal era o varão. Assim o entendiam os reis de armas e com eles os príncipes e senhores. Olha-se para quem é o pai. A mãe
basta que seja formosa e honesta, vaso de eleição na pessoa e não no sangue. E lá quanto à cepa ser eclesiástica, muito menos era isso caso de prevenção. O grande Dr. Francisco Sá de Miranda, ali da vizinha Quinta da Tapada, não era filho dum clérigo? E, visse o primo, na família dos Azevedos, ninguém, decerto a começar por ele, lídimo representante da estirpe, se envergonhava de Bento de Azevedo, o morgado aliás mais taful e estimado dentre Cávado e Homem, filho do P.e
Sebastião de Azevedo, abade de
Galegos por apresentação da casa de Moure, e duma mocinha de Chamoim. E não era também seu parente chegado o reverendo Olegário da Cunha, abade de Santa Maria da Cunha, Resende e Mentrestido, pais de sete filhos e tronco de sete ramos: Casa da Rapadoura, da Igreja e dos Indianos, em Infesta; dos Lisouros, na Cunha; da Amieira, em Resende; da Gorda, em Agualonga? O Caldas da Honra e Beetria de Ovelha e Couto de Tabuado, que era tu cá, tu lá com o Bisconde, não viera a receber D. Juliana? Acaso se menosprezava do cálice e manípulo que lhe caíram no parentesco?! – Assim será, mas em matéria de melindres de sangue, cada um manda na sua prole. Na minha mando eu e é assim: Joana está riscada do livro dos Azevedos... e a justiça o confirmará, se Deus quiser. – A justiça? – A queixa já transitou par a Mesa da Conciência. Tenho testemunhas idóneas. E logo que se faça a paz – e não pode tardar, ao que ouço dizer – o tribunal do Santo Ofício, em Coimbra, terá a última palavra. A Inquisição de Espanha está a organizar o processo. De vizinhos de La Guardia foram já ouvidas umas doze pessoas, entre burgueses e vilões... – Não percebo onde o primo quer chegar... – Não percebe? Pois é fácil de perceber. Esse tal capitão de cavalos ou que é não cometeu um horrendo sacrilégio, assaltando e arrombando um claustro com o fim de raptar uma noviça e cevar nela a sua luxúria?! Não é dos crimes taxativamente relegados a tal alçada? Ainda lhe digo mais, primo Beça: os Azevedos e Vilas Boas só ficarão limpos quando os dois subirem, de sambenito e carocha na cabeça, o patíbulo da Praça da Lã. Florêncio riu-se, mas de salto mediu com terror o tremedal em que se havia precipitado o imprudente moço. – Senhor Simão de Vilas Boas, nosso primo Luís Antas é um militar destemido e deu provas de denodado patriota. Na sua vida particular nada há a apontar-lhe em menoscabo. Além disso é rico, cabeça dum morgadio
como não há segundo entre Minho e Lima. Muitas famílias se honrariam de contá-lo na progénie. O senhor da Portela das Cabras tem o seu brio, a sua maneira de pensar, belo. Deixe que um homem que correu muito mundo, conhece ainda melhor o avesso que o direito da vida, lhe peça que não contrarie uma ligação para que concorreu apenas a vontade dos dois. – Disse, disse, senhor! – Estou autorizado a propor-lhe – continuou Florêncio como se aquela palavra peremptória não houvesse sido proferida – a renúncia por parte da senhora D. Joana e de seu marido aos direitos de primogenitura em seu irmão Gualter... – O primo Beça engana-se – interpôs o mencionado Gualter acudindo à referta – se julga que nesta casa se norteiam pelo vil interesse. Minha mana desde
menina
que
sonhava
ser
religiosa.
Ninguém
a
empurrou
para
o
convento. Se fui criado na ideia de que ao meu nome revinha o vínculo da casa, por vontade sua foi. Era mocete baixo, pançudo, de bigodinho retorcido em dois caracóis com muita
arte,
cabelo
anediado
nas
têmporas
por
cosméticos
franceses.
Florêncio mediu-o dos pés à cabeça, sem ele se aperceber. Em tudo o nobre sarrafaçal. –
Minha
enteada
–
acudiu
em
reforço
do
seu
rebento
D.
Floribela
Anastácia Ramundes e Cresconha, mulher do Vilas Boas, senhora baixinha, magra e mais seca que a vagem da ervilhaca, com uma grande cabeleira cor de azeviche e uma vozinha em falsete, bem modulada – queria ser santa. Muitas
vezes
lhe
ouvi
dizer:
falta
um
santinho
na
nossa
casa.
Temos
navegadores, poetas, generais, um bispo, um trinchante, até um inquisidor. Mas não há uma açucena. Ah, se eu a pudesse ser, mãezinha?! –
Não
seria
o
eco
do
vosso
desejo
o
que
essa
menina
exprimia?
–
permitiu-se observar Florêncio. – Não, a minha Joana pensava por sua cabeça. Nesta casa todos pensam por
sua
cabeça
–
retorquiu
Simão
Vilas
Boas
em
tom
áspero.
–
Foi
o
demónio que a tentou na pessoa do bigorrilhas. – Seria, mas o processo ainda de arrancar-lhe a presa é santificar o seu acto. – Não se canse – emitiu Gualter. – Seu primo, o senhor Domingos da Cunha, manda-lhe uma lembrança para prova da estima que lhe merece. Ainda se não esqueceu das boas e
descuidadas horas que passaram juntos em caçadas e festas em casa de amigos e próximos... – Nem que me trouxesse todo o oiro de Mato Grosso eu aceitaria dádiva de
tal
procedência!
Não
sei
o
que
me
traz.
Mas
seja
o
que
for,
até
a
salvação, eu rejeito sem lhe dizer bem-haja. – Está a minha missão concluída – proferiu Florêncio abrindo os braços em ademanes de orate frates. – Eu vim para lhes dizer: deixe a sua filha ser feliz; deixe aquele moço e valente soldado ser feliz, que não quer nada nem precisa do que há nesta casa. Responde-me com duas pedras na mão e ameaças. Saiba, senhor Simão de Vilas Boas, que tanto o senhor Domingos da Cunha como o seu filho e meu mandatário têm amigos poderosos não só nesta comarca como na Corte... – Pois terá. Que se lhes agarre às abas do casaco antes de o nó se lhe apertar na garganta – terminou escarninho. – Ainda há justiça em Portugal, senhor primo – pronunciou Gualter. – Se os magistrados a não ministrassem, fazíamo-la nós. – Meus primos e senhores, se me dão licença retiro-me que já aqui nada tenho a fazer. Vejo que estão sob o acicate da paixão, que é má inspiradora. Florêncio curvou-se numa grande mesura, cortesia significativa de quem se despede. Simão atalhou: – Mas o primo vai mal obsequiado. Não há-de jantar connosco?... – Comprometi-me com D. Diogo de Lima, o nosso Bisconde, que agora está na casa da Ponte e me espera. Infinitas graças. Dispuseram-se
a
acompanhá-lo,
pátio
fora,
até
a
imaginária
ponte
levadiça do castelo. D. Floribela Anastácia, ao despedir, tornou tal uma velha catatua: – Para uma coisa destas, não tínhamos o direito de nos opor, pois não é verdade? Ela é que queria. Ter uma santa na geração era uma grande honra, o primo não acha?! Domingos da Cunha mandou trazer para o pátio a sege que em hora iludida destinara a brilhar na capital de Espanha. Fez lubrificar os eixos; verificar engates e tirantes; polir os metais. E, dobrando o penso de cevada às mulas, uma bela manhã, na companhia de Florêncio e padre-mestre, abalou para Lisboa. O rebate da sua viagem tinha voado, de modo que se
ajuntou grande turba entre próximos e aderentes, do termo de Coura e de Ponte de Lima, ao bota-fora. O pessoal da quinta, servos e jornaleiros, formou no pátio à voz do feitor, a
despedir-se
do
amo.
Encontrando-se
perfilados
e
graves
como
num
enterro, deu-lhe o coração um baque e ficou apreensivo. Não era a primeira vez nem duas que se tinha ausentado da Casa Grande, para o Porto, para Espanha a comprar cavalos, para Lisboa a adquirir escravos, e só daquela feita
se
apresentavam
naquele
aparatoso
cerimonial!
Em
despeito
de
revolver-se-lhe o seu jazigo de superstições, abraçou a uns, deu o seu aperto de mão a outros, admoestou patriarcalmente tais e tais, e subiu para sege, onde
o
reverendo
Mendrugo,
de
nariz
rubicundo,
e
Florêncio,
muito
espartilhado no seu gibão, já o esperavam. O postilhão lançou a chicotada ao largo por cima do dorso das mulas. A tira de coiro, vibrátil como a língua duma cobra, fulgurou, estorceu-se, retiniu. Tornou a arremessá-la com mais alegro, e, desdobrando-se, de novo estalou. As mulas, que eram ardegas, arrancaram a galope. A paz com Espanha acabava de ser assinada, radicando-se deste modo a fortuna política de Luís de Vasconcelos e Sousa, conde de Castelo Melhor, escrivão da puridade, e filho do antigo hóspede da Casa Grande. Era a altura de parar o golpe, ervado de fanatismo espanhol, que anunciava por feiras e conventículos Simão de Vilas Boas contra o herdeiro da Quinta do Amparo, batendo-lhe ao ferrolho. Desceram a Labruja em silêncio. Domingos da Cunha, que não era peco da fibra, ia medindo pelo andar e os lombos reforçados dos quatro criados as possibilidades ofensivas da jolda. Levava-os de guarda-costas, como todo o viajante que, tendo amor ao pêlo e à bolsa, naquela conjuntura dos tempos não se dedignava de fazer. Cabecilha era o Joaquim de Rendufe que fora ordenança de Luís na campanha da Independência. Rijo e sem medo, capaz de
meter
as
mãos
no
lume
se
lhe
mandassem,
nas
suas
horas
era
um
corredor de servilhetas e loireiras, doido de todo. Mas no principal, braços e pernas de ferro, não tinha parelha. Além de tais verdugos, postilhão e boleeiro valiam cada qual um homem. Armados como iam até os dentes, incluso o padre-mestre, que não era para cócegas, e ele que fazia a sua perna, segundo o calão dos compadres ao improvisar uma bisquinha, os ladrões famigerados da Falperra e, antes da Falperra, da própria Labruja, se se tomassem da veleidade de experimentar
o quilate dos viajantes, arriscavam-se a dar com as trombas num sedeiro. Mas assim era forçoso, que os caminhos, com o desmanchar da guerra, andavam
mais
precisamente
infestados
os
mais
do
que
perigosos
nunca
eram
de
pilhos
aqueles
que
e
salteadores.
ofereciam
vau
E a
carruagem ou liteira com pessoas de qualidade. Já im tocados para lá de Rebordões quando, numa encruzilhada escura de caminhos,
um
homem
de
barba
turca,
muito
cerrada,
apertado
num
gabinardo de montanhaque, lhes saltou à frente bradando: – Façam alto! Quem vive? Respondeu-lhe o padre-mestre, apartando as cortinas para que lhe vissem o cabeção de sacerdote, em voz tão poderosa como conciliadora: – Gente de paz. Vamos do concelho de Coura de jornada para o Sul... Quer saber mais? – Sim, senhor. Gostaria de saber que caminho tomam... – O caminho que havemos de tomar, amanhã lho direi. Sabe-nos o senhor dizer se o rio Neiva é vadeável por esta altura do ano? – No rio Neiva por esta altura não há pontões, nem alpoldras à tona de água. Se querem marchar pelo seguro e é certo que vão para o Sul, metam a Vila Verde pelo Rio Mau, que não vão errados. O Cávado passa-se a pés enxutos... – O nosso itinerário é pela direita, obrigado. – Vejam lá! O melhor caminho é por Nevogilde. Não é verdade que vão para Braga? – Para onde vamos, ainda o não dissemos. Por acaso para Braga é que nós não
vamos.
Vamos
para
onde
vamos.
Que
tem
o
amigo
com
isso?
–
formulou Florêncio. – Saibam que sou monteiro-mor em terras do Geraz e quem manda aqui sou eu. Cá tenho as minhas razões. Os senhores vão pelo Rio Mau... – Postilhão! – gritou Domingos da Cunha, impacientado. – Rompe à frente...! No mesmo instante o homem, metendo dois dedos na boca, soltou um silvo agudo, e duma bouça saíram cinco homens negros, de má catadura, e de bacamarte aperrado. Domingos da Cunha, capitão de cavalos, habituado a matar, ergueu a pistola à altura dos olhos e disparou. O homem da barba preta caiu com o peito varado por uma bala que lhe entrou pelo pulmão e saiu pelas costas. Os cinco quando viram o homem em terra titubearam.
– Fogo, rapazes, fogo neles que vêm para nos assassinar! – comandou Domingos da Cunha. Os quatro bravos da escolta dispararam os mosquetes sobre os homens que haviam estacado à saída do pinhal. Foi uma salva uníssona. Largaram a fugir, mas um chegou adiante e caiu. Saltaram-lhe na cernelha... – Ah! cachorro! – buzinou o Quim de Rendufe, como o visse em jeito de apontar. – Se disparas, não comes mais pão... – Não disparo, mas não me matem. Não me matem. Por alma de quem lá têm! – Larga a arma!... Bom. Não te matamos, mas hás-de dizer: que nos queriam? A que vínheis?... Sabíeis quem vai aí? – Oh se sabíamos! Quem vocês deitaram abaixo é o Freitas, da Portela. Foi o Senhor Simão que nos peitou para lhes sairmos a caminho. – Já reconheci o mariola – confirmou Domingos. – Era o seu sicário a soldo, pau para toda a colher. Mas como diabo souberam que havíamos de passar por aqui? Calaram-se
a
procurar
uma
resposta.
Florêncio
explicou:
–
Lá
teria
lançado espias e vieram-lhe com a parte. Simão de Vilas Boas é homem de emboscadas e traições e na Labruja não falta quem se preste a esses fretes. – Mas em que cálculo ia ele levado? – Queria que os aqueibássemos pelo rio Cávado, que vai de monte a monte e onde é difícil achar um vau. Aí, com o pretexto de os ajudar a passar, atirávamo-los ao pego. Aqui tem! O Freitas armou a esparrela como vomecês viram... – Estragou o arranjinho ao patrão. Pois acudam-lhe ou rezem-lhe por alma.
Pelo
serviço
que
nos
prestou,
o
padre-mestre
não
lhe
vai
dar
a
absolvição...? – Não. Deixem-no ir para o inferno, que já lá está o diabo à espera dele com a cama feita e de lençóis lavados... Domingos da Cunha, tão expedito como homem de vontade, ordenou que largassem
o
malandro,
quando
os
quatro
se
consultavam
com
os
olhos
quanto à forma de lhe dar despacho. Já levava que contar. Pelo que dizia respeito ao ferido ou morto, era lá com eles. Puseram-se em marcha. Dali até Barcelos, temendo segunda espera, os homens iam de dedo no gatilho, bem como o boleeiro. Domingos da Cunha sossegou-os: – Não há-de haver novidade. Atravessávamos as terras dum
bandido e não tínhamos pago portagem. Agora que nos atire às canelas com os
quadrilheiros!
Mas
de
que
raça
ele
é,
este
Simão
de
Vilas
Boas
e
Azevedo, neto de Quilderico! A
primeira
carta
de
Domingos
da
Cunha,
portadora
de
boas
novas,
chegou a Romarigães quando Luís Antas, com Joaninha, sua mulher, e D. Francisca, sua mãe, tratava de cumprir a promessa à Virgem do Amparo. Sem dúvida que o intrépido e influentíssimo pai afastaria de suas cabeças a vara de Drácon. Podia entregar-se pois, com toda a pausa e sossego de alma, ao
seu
sonho.
A
primeira
coisa
que
fez
foi
mandar
saber
se
lá
por
Pontevedra, terra das lindas igrejas, não haveria um mestre arquitecto e alvenéis disponíveis. Arquitecto encontraram-lhe um em Valadares, com uma grande cabeleira nazarena, alma de poeta, bastante aéreo e grande desprendimento do vil metal. Demais de tão raras virtudes, era homem para tanto dar o risco como esculpir a pedra. Chamava-se Cebreiro e quem uma vez lidasse com ele ficaria preso da sua humanidade, uma humanidade que não era como a de toda a gente. Mas foi preciso atraí-lo à traição, aliando imperiosidade à blandícia, pessoa em si, não desleixada nem tão-pouco desdenhosa, mas indiferente ao comum, tanto se lhe dando que as águas dos rios corressem por cima como por debaixo das pontes. Lá conseguiram apanhá-lo. E ele pôs-se a ouvir uns e outros, Luís Antas, Joaninha,
D.
Francisca,
os
escravos,
os
camponeses,
particularmente
as
causas do voto, anseios e vozes secretas da consciência que dirigem estes impérios da vontade. Ao cabo de muita vagabundagem pela quinta e pela mata, depois de encher os olhos com o panorama, de escutar a cantilena das águas, as tais «frias e delgadas» águas, que têm ali como em nenhuma parte um timbre especial, de cismar com os montes e a sombra que projectam na vida interior dos homens, depois de muitos riscos e rabiscos, saiu-se com aquela planta. Que tivesse acertado ou não com o quid psíquico do lugar, a verdade é que suscitou o aplauso imediato dos senhores da Casa Grande. Mas ao artista nada foi mais grato que o ah! entusiástico que se soltou dos lábios rúbidos de Joaninha. E, pois que assim era, enquanto não chegavam os
hábeis
alvenéis
que
ele
próprio
mandou
vir
de
Marin
e
Cambados,
trolhas do sítio demoliram a velha capela, que pouco mais era que um tosco humilladero. Lançada
a
primeira
pedra
com
a
bênção
do
arcipreste
da
Labruja,
acolitado de todos os padres da terra de Coura, a obra não teve um só dia de
quebranto, obedecendo rigorosamente à traça maravilhosa. Nossa Senhora do Amparo ocuparia, entre S. Pedro e S. Paulo, cada um em seu absidíolo, o lugar de honra, próprio da sua excelsitude. E seria o seu uma
espécie
de
retábulo
delicioso
com
suas
colunas
historiadas
e
entablamento, que suspendiam ao alto duas figurinhas celestiais, a que só faltavam asas para serafins. Mas infantes rechonchudinhos que fossem, na aparência
pelo
menos,
firmes
sobre
seus
engraçados
supedâneos,
estatuariamente não havia nada mais mimoso. Acima desses absidíolos e retábulo, a fachada recrescia ainda em especiosidade, alto plateresco com dois escudetes que haviam de servir como lousas epigráficas, e por baixo da cornija, ao centro, uma rosácea de bela moldura, a cujo oval se perfilavam como passavantes dois meninos de torso requebrado e franzino. E encimado pela sineira rectangular, de cruz ao alto, e por quatro pirâmides em cada ângulo, de esbeltíssimo desenho, o todo exuberava uma fecúndia tropical, a que não andava estranha, dir-se-ia, a inspiração luxuriosa, tipo indiático, dos templos
consagrados
a
deusas
que
tinham
infinitos
braços
para
abraçar
voluptuosamente o mundo e infinitas tetas para lhe darem a mamar o leite da paz e conformidade. Tudo dum barroquismo cheio de alor e pulcritude. Em toda a fachada, salvo o pano ínfero com a porta singela, mesmo assim de ombreiras rematadas por florões em guisa de capitéis, e duas janelas de grades, a puxar para o Renascimento na sua estrutura linear, não havia uma pedra que não fosse obra antes de ourives que de escultor. A sua polimorfia era
mais
rica
que
a
fachada
dum
livro
setecentista.
E
com
os
quatro
pináculos, saintes em seu fundo bulboso duma pilastra quadrada, e a sineira no
género
de
quiosque,
lembrava
de
facto
um
pagode,
de
agulhas
e
coruchéus em simetria com as corutas dos pinheiros e dos olmos, erguidos na mata, mais longe, à luz efusiva dos céus.
VI
Na capital, Domingos da Cunha empenhou-se a fundo em talhar o mal pela raiz. Seu filho Alexandre, cónego da Sé de Braga, advertira-o que se conjuravam contra o morgado os amigos de Simão de Vilas Boas, gente toda ela parcial do infante e da rainha. Mas ele tinha por si, de certa certeza, Castelo Melhor, e o Bisconde prometera-lhe o mais decidido apoio. Estes seriam
o
bastante
para
fazer
pender
a
balança
da
justiça
a
seu
favor.
Informava ainda o beneficiado, sob reserva, que um dos seus inimigos, e sem
dúvida
perigoso
pelas
ligações
com
o
Santo
Ofício,
era
o
próprio
arcebispo de Braga, D. Francisco de Sotomaior. Sabia-se que o senhor da Portela das Cabras batera a todas as portas susceptíveis de se lhe abrirem, ai tio,
ai
tio.
As
lampreias
e
salmões
do
Cávado
choveram
na
copa
dos
magnates lisboetas, não falando em peitas de tomo, pratas lavradas, louça da China e alfaias dum solar antigo cujos próceres haviam saqueado a Ásia. O Bisconde ouviu a história do seu desatinado primo, contada de ponta a ponta com lisura e franqueza. – Eu amanhã lhe dou a resposta – disse ele. – Deixe-me falar com o meu capelão que é muito lido em Maquiavel. No dia seguinte quando Domingos da Cunha se apresentou em palácio, a pé e de balona chã, para se pôr em regra com a pragmática acabada de decretar quanto ao trajo e equipagem dos fidalgos, jogou-lhe de chofre o senhor de Ponte de Lima: – Temos de fazer o rapaz familiar do Santo Ofício... – Que rapaz? – Que rapaz? Seu filho, primo Domingos. Pois não é rapaz comparado com os nossos cabelos brancos? Não é rapaz quem procede com esse ímpeto
todo? Domingos
da
Cunha
sorriu
ante
a
voz
amicalmente
ralhada
e
pediu
perdão pela sua pouca esperteza. – Tudo o mais é precário. O partido da rainha cresce na sombra dia a dia. Nem eu sei o que vai ser de mim. O mais barato é meter-me nas minhas terras a cultivar os calondros. Uma vez que o Luís seja familiar do Santo Ofício, está conjurada a trabuzana do horizonte perigoso. Existe um alvará, promulgado por D. Sebastião, e ainda em vigor, que à primeira vista parece anular o recurso que lhes aconselho. Reza ele, se bem me lembram as palavras do meu capelão, que «em caso de aleive, força de mulher ou roubo dela,
de
latrocínio
público,
quebrantamento
de
casa,
de
igreja
ou
de
mosteiro», e é o nosso axe, são as justiças seculares que julgam o familiar do Santo Ofício. Pois se são as justiças seculares que o julgam, ipso facto está escapo à alçada do tribunal da fé, alçada que seria uma dos diabos. Objectar-se-á
que
a
lei
não
tem
efeitos
retroactivos...
Aqui,
e
bem
imprevistamente, não pode deixar de ter. O que está feito está feito. Uma vez Luís da Cunha Antas nomeado familiar do Santo Ofício, não cabe a este tribunal pedir-lhe contas por um acto que foge à sua jurisdição. Está a perceber? Com a Mesa do Desembargo, bem me avenho eu. Conservo lá bons amigos e, que não conservasse, a carta de familiar não deixaria de conferir a Luís um prestígio, digamos, uma imunidade moral de primeira importância naquele pretório. – Se bem compreendo, trata-se de neutralizar o Santo Ofício... – Nem mais. O resto é uma santa cantiga. E despache-se, primo! Se a Inquisição de Espanha aí mete a unha, aquela unha suavíssima de Cisneros, temos o caldo entornado. A devassa pode levar anos, mas nunca mais pára. Os espanhóis têm conta aberta com Deus por toda a eternidade. O processo duma alma pode durar de Fruela a D. Luís de Haro, mas não dá pedra nem pedregulho que o faça deter. É pior que os incêndios nas minas de carvão... Quanto ao rapto em si da criaturinha, o caso tem pouca importância uma vez que ela era maior e se fez com o seu pleno consentimento. – Como era noviça num mosteiro... –
Pois
isso
é
que
é
grave.
Se
a
leva
duma
casa
qualquer
não
tinha
importância. Agora digo-lhe mais, se a história se tivesse passado em tempo de paz, o primo Luís era um homem ao mar. Nem o rei lhe valia. Mas este rapto, dadas as circunstâncias em que se deu, em plena guerra e com a
soldadesca à rédea solta, podemos considerá-lo como uma precaução havida para com a pessoa pretendidamente raptada. Se a queixa for recebida pela justiça real, é deste modo que a defesa tem de se togar. Urge que a porta que o Luís arrombou não apareça nos autos às escâncaras perante Deus e o mundo, e que por via travessa a Inquisição aí não meta prego nem estopa. Sobretudo estopa. – Precisamente é isso que me atemoriza... – Requeira carta de familiar para o Luís. Ao distrito de Viana competem vinte
familiares.
A
Coura
dois.
Há
vacaturas
neste
momento.
Requeira,
requeira. Se não houve escândalo público, se a aventura passou de envolta com a poeirada que alevantou a guerra, não há-de ser difícil obtê-la. Uma vez munido desse viático, estão limados os dentes ao Santo Ofício. O tal Simão da Portela das Cabras pode estrebuchar que nada consegue. –
A
queixa
por
ora,
ao
que
me
dizem,
não
passou
da
Mesa
da
Consciência. –
Toca
desde
já
a
requerer
a
carta.
Eu
faço-me
encontrado
com
o
inquisidor-geral e recomendo-lhe o caso com a maior instância. A
boa
Ofício,
jogada
era
instituição
membros,
colocado
pois
de
aquela
poderes
perante
que
preconizava
absolutos
um
deles,
e
o
ciosa
Bisconde.
da
reconhecido
pureza
como
O
Santo
dos
seus
gangrenado,
lavaria as mãos à maneira de Pilatos, ou quando muito lançá-lo-ia de si. Mas era natural que não se chegasse a essa extremidade. À parte isso, a carta de familiar poderia agir como alexifármaco contra qualquer acção em juízo. E estava o negócio no chafurdo. Como
era
deferimento.
de Um
prever,
a
petição
próprio
partiu
foi
desde
bem logo
recebida
para
a
e
teve
diocese
de
imediato Braga
a
proceder às inquirições quanto a vita et moribus do proponente. Soube-se mais tarde que o deputado estanciou em Braga, depois em Paredes e ainda em Ponte de Lima, onde ouviu muita gente e lavrou os respectivos autos com vista à habilitação. Não teria deixado de ouvir o arcebispo primaz, que lhe teria insuflado com sapiente ronha a sua animadversão contra Luís da Cunha. Por outro lado, as altas estâncias da Inquisição eram-lhe favoráveis. O protonotário, que passava por hábil e discreto, devia andar neste negócio com a maromba na mão: nem à terra, nem ao mar. Havia de querer inculcarse
como
satisfação
imparcial a
D.
e,
sem
Francisco
incorrer de
no
desagrado
Sotomaior
que,
dos
além
inquisidores,
de
grande
dar
trunfo,
conseguira
captá-lo
a
poder
de
blandícias.
A
balança
nas
mãos
duma
personagem destas é um instrumento altamente delicado e duma subtileza incalculável. Quando Domingos da Cunha soube que o mensageiro tinha chegado, bateu-lhe à porta com uma peita de truz, em que não faltava uma perna de javali, a bem do temporal, e um crucifixo de marfim, com Cristo abrolhado de safiras, sobre supedâneo de prata, a bem do temporal e do eterno. O sujeito arrecadou o convite com muitos bem-hajas, acrescentando que
para
outra
vez
e
na
hipótese
de
lhe
ser
remetido
o
processo
para
qualquer aditamento, podia contar. Mas não tivesse medo. Assim ele tivesse certa a salvação, como lhe estava assegurada a carta de familiar! A Mesa compulsou o volumoso processo. Os testemunhos recolhidos foram unânimes em considerar como limpo de sangue, sem raça de mouro, judeu ou gente novamente convertida à Santa Fé, e sem fama em contrário, a Luís da Cunha Antas. Quanto a ter ou não incorrido em infâmia pública de feito ou de direito, nada havia que dizer, à parte pecadilhos da mocidade. O mesmo não aconteceria na sua ascendência, porquanto era público e notório ser neto do licenciado Gonçalo da Cunha, abade de S. Tiago de Romarigães e de S. Paio de Agualonga, clérigo de teres e haveres que trouxe para as suas abadias uma moça de Rubiães chamada Maria Roriga (depois conhecida
pelo
nome
de
Maria
da
Cunha)
e
fez
em
ela
um
filho
que
reconheceu de resto e veio a chamar-se Domingos da Cunha, e era nem mais nem menos o pai do impetrante, Luís da Cunha de Antas. Mais era notório e mesmo voz corrente que o dito licenciado, porque se fartasse da manceba ou quisesse coonestar o seu acto, a casou com um apaniguado, natural da Freira, da mesma freguesia de Romarigães, continuando ambos a manter trato carnal, porquanto viram-na entrar muitas vezes para a mata da Casa Grande, onde ele a esperava, alegando ela que fora ora às pinhas, ora aos míscaros, a pessoas que lhe verberaram o procedimento. Cinco filhos tinham nascido no cortelho, sem se saber qual dos dois era o pai carnal deste ou daquele, dada a comparticipação amistosa e alvar que tinham da referida fulana.
Remetido à Mesa o processo da devassa, em despeito das razões instantes do advogado de Luís Antas, lhe foi denegada carta de familiar. Domingos da Cunha apelou para o filho do seu grande amigo, o conde de Castelo Melhor. E
não
bateu
em
vão.
Perguntou
o
todo-poderoso
ministro
se
Luís
não
preferia receber um título, visconde, conde ou marquês. A pergunta era feita tão afectuosamente que o velho se enterneceu. Mas quanto maior é a nau, maior é a tormenta. Chegava-lhe por agora aquela dignidade para quebrar os dentes à canalha e torcer o braço dos Azevedos. A carta com efeito não era papel que andasse aos pontapés. Era sobretudo uma salvaguarda.
O ministro mandou chamar o inquisidor-geral D. Pedro de Lencastre. E pôs-lhe o caso a despachar como faca ao peito. – Vossa Reverendíssima vai-me fazer uma grande fineza. E emprestar-me com que pague uma dívida que me apoquenta... – Não ando abonado, mas Vossa Mercê dirá... –
Vossa
Reverendíssima
pega
na
pena,
fecha
os
olhos
e,
sem
me
perguntar nada de nada, assina aqui o seu nome... – Antes não posso saber o que assino... – Não pode. Mas descanse que o não deito a perder. O inquisidor pegou na pena de pato com um sorriso amarelo, pronto a lançar
o
seu
nome
onde
o
ministro
lhe
apontava.
Este,
quando
o
viu
resignado como Abraão depois de ter encarecido o sacrifício que lhe pedia, causou-lhe um grande desafogo ao colocá-lo perante a pequena e barata realidade. Não conseguindo reprimir um suspiro de alívio, já sorridente, traçou o seu nome com as mais bonitas e legíveis letras garrafais como há muito lhe não saíam da mão meio perra com a gota. No dia seguinte, sem outra fórmula de processo, estava o morgado de Romarigães nomeado familiar do Santo Ofício. Ainda com essa carta, como galardão aos feitos de soldado, recebia carta de moço fidalgo da Casa Real e o título de dom. Domingos da Cunha regressou a marchas forçadas à sua casa do Alto Minho. Ia contente como se pode imaginar, mas farto de antecâmaras até aos olhos. Fizera uma estadia de oito meses em Lisboa, onde lhe arderam 2700 cruzados. Chorava o seu rico dinheirinho, mas, ora, levava ganho completo de causa, cancelado o processo contra o filho, além do rei na barriga. Quando Luís Antas se viu provido de pavorosa dignidade, o seu primeiro movimento
foi
rejeitá-la.
Mas
as
lágrimas
da
mãe
e
as
injunções
de
Florêncio levaram a melhor. Que diabo, era uma espada que deixaria sempre na bainha! – Não vai mal para espada! – comentou ele com sarcasmo. – Homem, suponha então que é um frasco de veneno. Não destape; não precisa de respirá-lo. Submeteu-se. O récipe estava aviado. A capelinha subia ao sol radioso de Deus e isso o absorvia todo e dealbava de nuvens o firmamento estrelado por cima da sua cabeça. Seu pai, que era dos homens que não olhavam ao quilate
das
palavras,
mandou
recado
para
Simão
de
Vilas
Boas:
–
Seu
selvagem da Portela das Cabras, não quis beber o soro da queijeira pelo gomil que lhe mandei, hei-de fazer-lho beber por um penico, que lho digo eu! Luís da Cunha de Antas e Joana de Azevedo Vilas Boas, nada mais que D. Joaninha para a roda fidalga de Couto de Fraião, viviam felizes e gratos ao Senhor quando lhes nasceu o primeiro filho. Dizia o P.e Mendrugo, muito trémulo com os anos e de venta sempre atochada de rapé, o seu último vício, que era para prova de consciência cristã que viera ao mundo aquele menino triste e enfezadinho. Aos oito anos Plácido, que assim o baptizaram, dava ideia com suas gelhas, sua tez exangue, seu raquitismo, dum velho anão desensopado dum bocal. Vinga não vinga, foi arriba que lá estava N.ª S.ª do Amparo a velar pela conservação e continuidade do vínculo na linha varonil dos Antas. A graça de Deus, àquela altura da cristandade lusitana, era
também
próvida
e
vigilante
para
com
os
filhos
dos
morgados,
naturalmente apostados a formar na sua grei. Começava a gatinhar, teve porém o primeiro insulto que o deixou como morto. É o mal de Santa Quitéria, e levaram-no a quantos bruxos e benzedeiras havia, não deixando por escrúpulo de consciência de bater à porta de médicos de nomeada. Foi crescendo e, ao invés do que era de supor, o seu entendimento mostrou-se tão lúcido como pronto no raciocínio e na elocução. Aos dez anos fazia num rufo, sem jamais errar, as quatro operações e cortava toda a espécie de letra, tanto de forma como paleográfica. Este acréscimo de espiritual vingá-lo-ia da natureza ingrata, se esta, com a idade, não revelasse tendências a corrigirse
exornando-o
duma
fisionomia
simpática,
em
cujos
olhos
pretos,
luminosos e pestanudos, pareciam concentrar-se o bulício e formosura das belas coisas da terra. A pior pecha era a melancolia. Dava-lhe para a contemplação e passaria horas, sozinho, a olhar para uma bagatela do mundo, outras vezes para bagatela
nenhuma,
perdido
nos
meandros
interiores,
tão
complexos
e
emaranhados que nem ele saberia dizer por onde lhe vadiara o juízo. Fora disto,
revelava
a
mais
completa
indiferença
pelas
coisas
do
morgadio.
Embora se soubesse o primogénito, os negócios da Casa Grande não lhe acarretavam a mais leve dor de cabeça. Pessoalmente, também pouco lhe
importava andar roto ou bem vestido, comer do bom e do melhor, ou jejuar a pão e água. – Está talhado para santo – dizia D. Ausenda, do Couto de Sabariz, tetraneta de D. Ourique Velho, fidalgo da torre e castelo da Nóbriga, por Troilos de Araújo, senhor de Mil manda, Louvil e S. Paio, na Galiza, e, em Portugal,
dos
direitos
reais
de
Monção.
–
Eu,
no
lugar
dos
primos,
consagrava-o a N.ª S.ª a Branca para que lhe desse o rumo que tivesse na sua divina vontade. Tanto para o Convento da Carreira como de S. Francisco do Monte, não pode ir melhor. E chamava o cadete ao morgadio... – Qual! – exclamava a mãe. – O meu Plácido aborrece a sotaina. Não põe os pés na capela. Confessa-se, sim, só para nos ser agradável. – Então é o diabo que lhe está metido no corpo – tornava a piedosíssima dama. D. Joaninha sorria. Se por detrás da cruz espreita tantas vezes o Diabo, por detrás daquela alma, exaustinada ao serviço de Deus, espreitava de certa certeza o bom cura de S. Paio de Capareiros, também frade seráfico de cordão e hábito. Afiançavam as bocas do mundo que teria sido seu confessor nas
festas
da
Agonia
e
depois
cicerone
espiritual
numa
peregrinação
a
Compostela. De regresso, em Porriño, com o calor tórrido que fazia, D. Ausenda, que era sanguínea e afogadiça, sofrera um derrame, que a ia mandando desta para melhor. Valeu-lhe o cura de Capareiros que partiu para a lagoa dos Medros a buscar as afamadas bichas e fez mais de quinze léguas a mata-cavalo. É verdade! Mas bichas foram elas, tão providenciais que a morgada deu um senhor pontapé na morte. Foi então que, em prova de reconhecimento, lhe veio a confiar os cuidados do corpo e da alma, com o havido e por haver a favor de S. Francisco do Monte. Luís Antas tinha grande desgosto ao entrever em que mãos ia parar a sucessão da casa, desmazeladas e imperitas de todo. Discorriam os parentes e próximos – no fundo, julgava ele, regozijados com a sua pouca sorte – que o mal todo provinha de ser filósofo. Lá estava o tempo para o curar. Mágicos daqueles havia muitos pelo mundo. – Homem, não era gastador, não era beberrão, não era batoteiro, não andava a bater com a cabeça pelas paredes, que mais queria? Deixasse-o lá com as cismas, que por aí não deitava ele a casa a perder. Luís Antas abanava a cabeça e, no fundo da consciência, dizia-se, numa linguagem pitoresca que merecia vir registada nos tratados de psiquiatria: O
meu filho tem macaquinhos no sótão. – E acrescentava amargurado: – Que mal fiz eu a Deus para assim me castigar?! Não era raro a boa mamã ir encontrar o filho lavado em lágrimas. Fugialhe o sangue das veias: – Porque choras assim, meu filho? Que mal é o teu? Falta-te alguma coisa...? – Não me falta nada. – Então porque choras? Ficava calado, olhos fitos no chão. Uma dessas vezes animou-se: – Choro por
me
sentir
um
inútil,
mãezinha.
Não
presto
para
nada.
O
pai
anda
desconsolado ao ver que não correspondo ao que esperava de mim. Porque não há-de ser o mano Fernando que herde o morgadio? – Nunca, meu filho. A ti é que te compete a sucessão. Seria faltar aos deveres para com teu avô e para com Deus desviá-lo do seu destino. Teu irmão será eclesiástico, cónego, chantre, bispo, sabe-se lá, e não terá razão de queixa. Ele aquietava-se, no fundo benquisto ao rigor da mãe extremosa e à mão que
lhe
anediara
o
egoísmo,
tão
cativo,
tão
calado,
mas
mesmo
assim
grunhindo no recesso da sua alma doente. A mãe gostava menos do segundo filho, que achava sorna, trapaceiro e um
glutão
de
marca.
Pelo
contrário,
desfazia-se
em
ternura
pelo
primogénito, um paz-d’alma, meio poeta ou lunático, incapaz de fazer mal a uma mosca. Por ele ser assim um nem-lá-vou-nem-faço-míngua, lhe lançava o marido as culpas. Culpas de geratriz. Aquilo vinha de raça. Os pecados dos nossos avós fizeram-nos eles e pagamo-los nós. Não tinham os Vilas Boas da Portela das Cabras na próxima ascendência um Bartolomeu Vilas Boas Reimonde que era o gato-sapato dos garotos de Viana? Olha, olha! Não corria as ruas a fazer partes-gagas e, volta e meia, embora não lhe faltasse nada
em
casa,
não
abalava
pelas
aldeias
no
peditório?!
Algumas
vezes
botara até a Casa Grande de alforje às costas. Ela rompia a chorar, sem lhe tornar palavra. Luís Antas era injusto e dava conta disso. A pobre podia ser responsável por mazelas ancestrais a jusante até da sua geração?! De resto, a natureza mórbida desse parente reflectia-se na índole do seu filho de maneira mais longínqua que num lago a face da Lua.
Em
que
se
parecia
Plácido
com
o
doido
varrido?
É
próprio
dos
descontentes procurar um bode expiatório, e Luís Antas, além de sentir-se a
tal acicate, vingava-se na mulher dos desdéns e vexames que lhe haviam infligido os senhores da Portela das Cabras. Fosse como fosse, a natureza e temperamento do rapaz vieram-lhe azedar a vida de feliz felizardo. Não esperava aquela unhada da fortuna. Depois, como as cerejas que se prendem umas às outras, os dissabores encadearamse. Fugiram-lhe uns escravos para Espanha e deu tal peste no gado que não lhe ficou uma bezerra nos estábulos. Entrou a entenebrecer. Fez-se mau. Não chegaram a acusá-lo alto e feio de ser a alma danada, em tanto que familiar do Santo Ofício com mira nas alcavalas, da denúncia no processo que a Inquisição moveu a um honrado comerciante de Ponte de Lima, sob suspeitas de judaizante?! Verdade ou mentira, da fama não se livrava. A vítima era homem pessoalmente estimável, e não pouco odioso chapinhou sobre o Antas. Admitia-se lá – propunham os zoilos com ar de ingénuos – que um homem, que ficara sentido quando o pai lhe apresentara o terrível alvará, usasse dele de modo tão pérfido?! Convinham pessoas dignas de crédito, tanto em Coura como em Ponte de Lima, que sim, usara e abusara. O tempo, os azares, as honras, vão degradando o metal humano. Neste negócio da fé, argumentavam os parciais que o homem precisasse de dar alguma vez provas de zelo. Tendo ensejo de ser chamado a intervir naquela tremebunda devassa, coubera-lhe coligir todos os testemunhos, anónimos ou não, vozes fidedignas à mistura com vozes caluniosas, que à boca pequena os inimigos soltariam contra o infeliz. Antas sofreu com inalterável humor o vitupério tácito e desbocado da opinião pública. Cheio de desdém pelo próximo, concentrou-se no governo da fazenda. Mercê de labuta e muita parcimónia, pôde recuperar as perdas sofridas, e breve a fazenda atingiu um grau subido de prosperidade. Não havia palmo de terra que não produzisse como solo de Mesopotâmia. Do lado de S. Martinho de Covas teve azo a adquirir bons e largos terrenos que vinculou igualmente ao património, e desse acto, precipitado, se arrependeu mil vezes, mas fora de tempo. Os mateiros e ladrões do alheio eram daquela banda sobejos e audazes como lobos. O seu feitor varou com o dardo a perna dum destes meliantes, que lhe saiu cara e trabalhosa. De barbeiro em barbeiro
acabaram
por
lha
amputar
quando
começava
a
entreluzir
o
estiómeno. O ladrão onde ia, tavernas, feiras e arraiais, berrava contra o fidalgo com os mais possantes e desenvergonhados foles deste mundo. Teve de lhe fazer uma tença vitalícia para lhe calar a caixa.
Devido ao estigma que pesava sobre o filho primogénito, passou Luís da Cunha de Antas a desvelar-se com o segundo, Fernando Luís, que assinava Fernando de Mendonça por sua mãe, no palpite instintivo de que o mundo dá muita volta e poderia vir a ser o sucessor. Ao contrário do irmão, para o seu génio um descompassado pele-de-asno, deparava-se-lhe atiladíssimo, ágil e dotado do mais rotundo bom senso. Tendo começado por cursar humanidades
em
Braga
com
um
padre-mestre,
aos
vinte
anos
estava
matriculado em Cânones na Universidade de Coimbra. O pai, propinandolhe aquela carreira, era dos tais que liam pela cartilha da velha: ovelha, abelha e pena detrás da orelha, ou posta na Igreja cobiça para seu filho Tareja. Assim que se apanhasse beneficiado como o tio Alexandre, um dos grandes mandões do arcebispado, que mais não fosse, estaria vingado da deserança que lhe vinha com ser filho segundo. Quanto à menina Joana Luísa, procurou o pai educá-la o melhor que pôde. Era galantinha, às duas por três vinha um rabaceiro de saias que lhe pegava. Mal pago se havia de lhe suceder como à tia Cristina que ali estava, seca, agreste, riça, durázia, ministra da criação e da queijeira. Quando Luís Antas deu a alma ao Criador, requerido da sua luz perpétua na igreja de Rubiães pelas antífonas de vinte e tantos padres à volta dum catafalco sumptuoso, os negócios da casa não podiam estar melhor parados. Não
devia
um
ceitil.
Encontravam-se
o
sequeiro
e
tulhas
repletos.
Nos
prados pastava uma vacada de mais de vinte cabeças, de boa estampa e da melhor raça. Tinham recebido de Boticas um touro reprodutor, de forma que as novilhas punham o ramo nas feiras. O mesmo sucedia com os cavalos. À beira do corgo saltaricava uma dúzia de poldros tão bonitos e rufões que toda a gente parava a admirar-lhes as corrimaças e flostrias. Plácido herdou o vasto património, nada tendo a objectar aos encargos certos e a outros, é provável que recrescidos com a transmissão de poderes. Assim deparou-se-lhe engrossado o quantitativo que seu irmão costumava perceber de mesada, mas fechou os olhos. Andava ali o dedo da tia Cristina, muito liberal com o pão do açafate, quando a fatia havia de ir ter às mãos de Fernando, seu ai-jesus. Igualmente a aia de Joana Luísa, sua irmã, passou a cobrar honorários melhorados. Persistiu na norma: não dar alarde. O pior do pior é que rendeiros e servos romperam logo a abusar de tão manifesta indulgência, que tomaram como desmazelo, ou curteza mental. Assim um deles travou-se de razões com um vizinho de Moldes, devido a
umas águas que nasciam no Rossio da Raposa e o outro desviava, com direito ou sem ele, para as suas propriedades. E geresceu-se daí uma querela peçonhenta e sem fim, que tocou as auditorias de Braga e Viana, e custou os olhos da cara, para afinal lhe ser a sentença desfavorável. Depois, atrás desta demanda, foi arrastado a outra, desta vez com os parentes de Rubiães, por mor dumas terras que imbricavam nas suas e cujos limites se prestavam a equívocos e eram causa de rixas entre os roçadores do mato. Esta, em despeito
do
seu
espírito
de
contemporização,
mobilizou
quantos
jurisconsultos havia em Entre Douro e Minho, consumindo-lhe avultados capitais e tempo. Embora parecesse resvalarem estes desaires no seu ânimo, despegado das coisas em sua forma interesseira e imediata, não deixavam de lhe doer. Os acidentes sobrevieram-lhe mais amiudadamente. Também se lhe acentuara o gosto pelo isolamento e a contemplação. A misantropia parecia empolgá-lo com a viscosidade dum tremedal. O seu passatempo predilecto eram a caça e a pesca. Abalava com um criado para o Gerês, às cabras, pelo Coura abaixo, às trutas, não raro para só voltar ao fim duma semana. Era nessas ocasiões – veio a apurar-se mais tarde – que a tia Cristina fazia mão baixa no espigueiro, mandando malhar antes de tempo e, nas adegas, sangrando aos tonéis pelo batoque com uma cana recurva. Se Fernando estava, ele era a mão activa da candonga. De contrário, procedia ela por sua alta recreação. Aconteceu ainda vir expressamente Fernando Mendonça de Coimbra fazer a pilhagem. Contas de saco, que tal era o regime adoptado na casa, fosse lá descobrir-se onde ia a marosca! Na
quinta
as
coisas
desataram
a
correr
cada
vez
mais
ao
deus-dará.
Fugiram de novo uns escravos e os outros, dois negros da Costa da Guiné, um malgaxe e uma tangerina, não pagavam a trincadeira. Deviam-se muitas jornas
aos
trabalhadores
de
Romarigães
e
no
fim
do
mês
era
preciso
vasculhar nas gavetas para mandar a mesada a Fernando. – O mano que espere uns dias – disse certa ocasião para a tia Cristina. – Tudo, menos isso, sobrinho. Podia lá esperar?! Era uma vergonha, além dos contratempos que lhe causava. Cristina ora e sempre era a procuradora vigilante de Fernando. De tal modo,
que
houve
–
arrenego!
–
quem
cominasse
aquelas
relações
de
pecaminosas. O certo é que ao estudante de Cânones não faltava nada. Depois de ter devorado as economias à tia, ela pela porta travessa sabia ir
usurpar
às
tulhas,
às
gavetas,
aos
réditos
da
propriedade,
a
maquia
necessária para o ordenando de Coimbra ser considerado o menino de oiro. O efeito, não previsto pela pobre senhora, foi que o estudante passou a entregar-se à estúrdia, bebedeiras, arruaças, e mandou ao diabo o direito canónico e a teologia moral. Plácido continuava a não dar conta ou a fazer vista grossa. Persuadiramno de que a propriedade rústica no Minho era sujeita a tais vicissitudes. Ano safro,
a
economia
estava
em
terra;
ano
de
boa
colheita,
a
economia
remontava. Destes altibaixos aproveitavam-se os caloios e os escrivães. Não havia que admirar. Mas quando bateu outra vez a data de prover à pensão de Fernando e não se encontrou em caixa com que mandar cantar um cego, ficou
alarmado.
Cristina,
que
a
governar
só
pensava
na
hora
presente,
alvitrou: – Vendem-se os poldros. Está aí a feira grande de Ponte de Lima. Leva-os lá que melhor ocasião não vem tão cedo... E de facto venderam-se os cavalinhos. Plácido que, ao muito que sempre gostou de bichos, todo se deliciava em vê-los e observá-los em sua livre expansão, viveu dias macambúzios quando os campos perderam a alegria que lhes dava sua turbulenta mobilidade.
VII
Um dia, escasseou nas tulhas cereal com que aviar o fole para o moinho. Cristina com a mão canhota tivera artes de medir aos almocreves de Pico de Regalados, hoje uma carga, amanhã duas, nada menos de dois moios, tirante o
que
ia
à
masseira
da
casa
para
gastos
do
pessoal.
O
sorvedoiro
era
Coimbra. Plácido, perante a imprevisível penúria, exclamou: – Mas para onde foi tanto pão? – O pão gastou-se. Escravos e gente de roga comem como frieiras – respondeu Cristina. – Sabes, eu no teu lugar arrendava as terras. E vendiamse os escravos. Só têm morca. – Vendiam-se os escravos... Coitados, quem dá dez réis por eles?! O Mafamede está uma carcaça; o Pero Alvarez é um maroto de primeira e basta olhar para ele para ninguém o querer. Boa é a moirisca, mas está baptizada, e tenho pena. Trouxe-me ao colo. Disseram-me que anda outra vez grávida... – Parece que anda. Desta feita é do vaqueiro, que se meteu com ela na festa da S.ª do Rosário. Anunciaram-se
os
três
escravos
à
venda.
Cristina
tinha
particular
embirração pelo Pero Alvarez, a quem não perdoava os sorrisos lascarinhos da sua dentuça branca de preto da Guiné e certos dixe-me-dixes que a não remetiam,
para
quando
morresse,
à
constelação
das
Onze
Mil
Virgens.
Vieram traficantes e negreiros de várias partes. Lá os arrematou um Hilário Folhadela,
de
Famalicão.
Mas
houve
que
lavrar
escritura
no
notário
e
garanti-los «sãos dos pés e das mãos, das vistas, do demonho e doutras mazelas encobertas». A moura ia deitando a casa abaixo com o berreiro. Foi preciso levá-la de rastos.
Depois dos escravos venderam-se as touras do ano anterior. Mal chegou para tapar os alçapões do orçamento. Desbastaram
a
vacada;
venderam
algumas
das
éguas
criadeiras
que
fariam a glória duma coudelaria. Plácido desfez-se em Braga de algumas jóias da mãe. E o boqueirão continuava escancarado. Uma noite: – Olha, sobrinho, havia um bom remédio para todos estes apertos. Era casares com uma herdeira rica... – Já pensei nisso – respondeu ele a rir. – Mas quem me quer?! A tia conhece uma menina honesta e de boa família que traga algo mais que a camisa? – Conheço, algumas conheço. Doutras tenho ouvido falar. Não faltam meninas casadoiras e prendadas por esses solares minhotos. Quando não são da primeira fidalguia, têm o cabedal que tudo doura. Negro é o carvoeiro, branco é o seu dinheiro. Alarga a vista... – Por onde, tia? Diga lá... – Olha, tens em S. Emilião de Mariz, Couto de Fragoso, na Casa dos Aires Ferreiras, uma moça de truz, Genebra Pereira. Nem sabe o que tem de seu e é morgada. – Bem sei. Dizem que é judia, das de rabo. O pai empresta milho a quarta e dinheiro a vinte por cento. Aí nas gavetas anda uma cédula do Santo Oficio a pedir informes do avô, um tal Gontrão Ferreira... – Em S. Martinho de Cavalões, no julgado de Vermoim, há uma Ana Dórdia Pinta que chamam a burra dos pintos... Está a passar dos inta para os enta, e se não se casa rebenta. Que é atoleimada... Ora, tem pregos de oiro pelas paredes. – Atoleimada? Ali, pelos vistos, tudo é quadrupedal. A tia não conhece as anedotas que se contam dela!? Ora ouça: Foi a S. Julião do Calendário ser madrinha duma menina da Casa de Fralães. – « Que nome se lhe há-de pôr?» – perguntou o padre. – «Prante-lhe Ana». – «Prantelhana?»... – repetiu consonantemente o abade. – Não conheço. – «Prantelho meu». – «Prantelhomeu?» – Coitadinha, não é tão cómico como isso. – Vai ouvir... Estava o pai nas vascas duma bebedeira, que pareciam o estertor
da
morte.
Veio
o
cura
com
o
viático
debaixo
da
umbela.
Reconhecendo que o caso não era de sacramentos, mas dum emético, disse
para a filha: «– Não está nos casos de se lhe ministrar a Extrema-Unção.» – «Ora essa!». – Lá disputaram e rematou ela: – «Pelo sim, pelo não, ponhalhe o chapelão». Aqui tem a sua ninfa. Ouvi estas histórias ao abade de Ruivães. – Se te não agradam gatas-borralheiras, eu te digo onde encontras uma que veio da Corte, tão sécia ou tão pouco que não arrisca pé na rua que não seja em saia de balão e de arrebiques no rosto. É em S. Silvestre de Requião, uma
viúva
muito
falada,
Estevaninha
Gonçalves.
Herdou
uma
casa
de
arregalar o olho e não tem filhos. Todos os domingos vinham a cavalo de Vermoim,
Santiago
de
Piscos,
Ponte
do
Louro,
muitos
faias
à
missa
conventual fazer-lhe a corte. Chegavam, prendiam as bestas à parede do adro,
da
parte
de
fora.
Entravam
para
a
igreja
com
grandes
rapapés
e
mesuras uns aos outros, como se se tratasse dum torneio. Finda a missa, montavam outra vez a cavalo e, depois de novas zumbaias: viva lá! viva também o senhor!, iam-lhe passar debaixo da janela a bater o trote. De que se havia de lembrar um sacripanta da Lagoa, é provável um dos preteridos!? Enquanto eles estavam na igreja foi meter um fachoquinho de tojo debaixo do
rabo
dos
cavalos.
De
princípio,
quedos
como
estavam,
não
houve
novidade. Assim que os donos montaram e lhes chegaram a espora no propósito
de
florear,
os
bichos
sentiram-se
e
romperam
aos
pinotes
e
corcovos. Poucos foram os cavaleiros que não deram com as costas em terra. Rompeu ali tão grande assuada, que desampararam o campo. A viuvinha destá devoluta... O abade de Requião ainda é nosso parente... – E é essa viúva de entremez que a tia me propõe? – tornou ele entre os frouxos de riso que lhe provocara a anedota. – De resto, tenho medo de viúvas que me pelo. Sabe-se lá as manhas que trazem! Já tenho ouvido falar nessa Estevaninha. Que é cascaroleta parece não serem só dois a dizê-lo. Há até quem murmure que o feitor, um rapaz abonitado, se vai gozando dela. Pode ser calúnia. Adiante. – No paço de Jozim, sabes, lá para o Couto de Gondufe, tens uma prima, Susana Antas, ainda mocinha, que não estava fora de conta. Quisessem os pais... Faz catorze anos para o S. João. – Não estou para desmamar crianças. – Em S. Salvador de Bertiandos, também me contaram que vivem umas meninas casadoiras, dotadas pelos tios, muito apresentáveis. Uma, que se
chama Mécia, é dos Ferreiras de Cavaleiros, a outra, Brites, é da Casa de Mazareses... – Mocinhas, nessas condições, tia, têm prós e contras. O diabo é que os contras são mais importantes que os prós. A tia vá, vá tirando inculcas e falaremos. Deixe-me dizer-lhe: eu já andei a ver... a cheirar. Não descobri nada cá a meu jeito... Agora esposar meninas a quem os tios hão-de fazer o dote, arreda! Quem corre atrás de sapatos de defunto?! Os tios do Minho saem sempre personagens de novela. Em geral, mudam seis vezes de parecer antes da hora da morte. Gastam papel selado e acabou-se. Casam as mais das vezes com as sobrinhas, mesmo que sejam velhos e decepados. Aqui para
nós
que
ninguém
consanguinidade
estão
nos
muito
ouve, perto
estes do
nossos
dia
em
sítios que
em
nossos
matéria pais
de
foram
expulsos do Paraíso. – O colóquio com a tia deixava supor, ainda nos borbotões da facécia, que Plácido batia monte. Onde encontrar a garça de plumagem branca que lhe trouxesse no bico mais que o bolo de Daniel? – Em Chamosinhos – tornava Cristina – ouvi dizer à prima Júlia, de Covas, que há uma herdeira muito rica, da família dos Guterres da Silva, senhores da Torre e solar da Silva, bisneta do adiantado Sueiro de Barbudo, dos Pires de Belmir, tão séria como bonitota. O que me dizem é que os frades de Oya a guardam como dragões! – Ui, ui, ui! Há-de ser muito mirrado quem a leve. Ná, para aí não! Com frades, e demais a mais galegos, nem para o Céu. Sempre me hei-de lembrar o que custou a aventura do convento de La Guardia a meu pai. – Em Pico de Regalados há herdeiras a dar com um pau. De olhos fechados estende-se o braço e apanha-se lampreia fina... – Filhas de troquilhas e almocreves? Hem? Queria cá uma fraldiqueira de faca na liga...! – O dinheiro faz o conde e o seu brasão. De resto, por essa província além, há de tudo como na botica. As Coutinhos da Câmara não te serviam? Olha que os Coutinhos da Câmara são da melhor nobreza do reino. Gastão José da Câmara Coutinho, senhor da Casa da Taipa, pelo matrimónio com uma Assumar, deixou uma filharada basta como tortulhos. Moure ainda hoje é um viveiro de meninas ricas. São às pinhocas. Davam para repovoar Entre Douro e Minho de fidalgaria de pendão e caldeira. Consta-me que há livre... uma grosa delas... Uma grosa delas, pelo menos.
– Já uma vez me quiseram levar a S. Martinho de Babó, onde haveria uma filha única, rica como terra, e para mais uma açucena da Honra das Fogaças. Irra, lá no calcanhar do mundo!... Saiu-me uma desfaçada que dava trela alternadamente, e há quem diga a palheira, a um fidalgote de Landim e ao morgado de S. Pedro de Esqueiros. – Diz-me cá: gostas de pesca, pois não gostas? Tens uma herdeira em S. Lourenço do Cabrão, onde há uma ribeira que é a mãe das trutas. Casou ali um sujeito de S. Paio de Jolda com a filha dum barqueiro e está rico. Rico como
porco.
Afirmaram-me
que
a
filha
terá
de
dote
os
seus
vinte
mil
cruzados... – Nem que tivesse cem mil. Sei muito bem quem é o tal catraeiro do Lima, um malandrão que acusam à boca cheia de ter afogado um marchante da Correlhã para lhe ficar com a bolsa. Nada Plácido achava a seu gosto, nem via bom. Ao dobrar os trinta, ainda não tinha elegido noiva, em despeito dos rogos reiterados da tia Cristina, que se tornara sua tutora e almoxarife da casa, maneira infalível de tudo ir por
água
abaixo.
As
coisas,
menos
susceptíveis
de
quebra,
corriam
à
matroca. Já nem os próprios jornaleiros mereciam a côdea quanto mais o salário.
Calaceavam
de
sol
a
sol.
E
era
tudo
assim.
Estreitou-se,
que
remédio! o passadio e gastos da Quinta do Amparo. A irmã aceitou o convite dum casal de velhos parentes que se viam solitários, sem filhos, e abalou para a sua companhia; o bacharel, estudante crónico de Cânones, embora tomasse a primeira tonsura, arrastava a capa preta de casa em casa, próximos,
amigos,
colegas,
gracioso
e
sempre
príncipe.
Não
havia
um
cruzado nas gavetas. Foi preciso pedir emprestado, a juros altos, ao usurário de Valença, o Cinco-segundos, com que pagar a décima. Cristina, que era por muito a culpada do naufrágio, olhava para todos os horizontes à espreita do recurso salvador. Plácido, relaxado
fora
de
queria.
Mas
parece,
não
das
natural
suas que
Cristina existe
horas
de
chegou
a
objectava-lhe: segundo
misantropia, convencer-se –
Qual
morgadio
via-se que
quê!
entre
tão
canhestro
nenhuma
Meio Lima
mulher
derrotado e
Minho.
e o
como Não
desesperemos. Há mais marés que marinheiros. Na casa do Outeiro Meão, em Calheiros, havia duas moças ricas, fartas, e consideradas exemplares debaixo do bom ponto de vista da modéstia e do recato. Sabia-se isso tudo e muito mais na Casa Grande por Fernando Luís,
que era colega do irmão delas em Coimbra, e ainda pelo próprio que vinha ali às temporadas, arvorado em bizarríssimo senhor, com o cavalo e pajem, recebendo muitas vezes para si e para as manas, a título de primícias, o que produzia de mimoso a Quinta do Amparo. Assim, uma vez que na mata foi caçado um javali, os coixões seguiram logo para lá e, por vontade da tia Cristina, teria ido o bicho todo, se tal liberalidade não parecesse excessiva aos
monteiros
que
o
haviam
caçado,
pessoas
de
opinião.
Mas,
dado
o
vaivém, estabeleceram-se, em despeito da distância, relações regulares e contínuas, que acabaram por revestir certo carácter de intimidade. Um dia, a pretexto de regularizar as demarcações duns terrenos que confinavam com os da Casa no termo da Labruja, Cristina conseguiu arrastar Plácido até Outeiro Meão. As moças eram faceiras e apetitosas. Demais, na boa olha da sua formosura transluziam suculentíssimas virtudes. A mais velha chamavase Joana Angélica do Amaral Marinho e passava por exímia dona de casa. Não tinha pejo de acender o ferro de engomar e passar uma camisa. As visitas iam surpreendê-la acocorada por terra, na esteira de junça, a fazer o queijo em acinchos de lata. Laboriosa e previdente matrona, com ela a casa de lavoura não sofria contratempos, como a sala não acusava desalinhos. Cristina pedreses
e
soube
inculcar-se-lhe
pretas
de
raça
no
espanhola,
espírito bonitas
gabando-lhe com
a
crista
as
galinhas
denteada
e
orelhões tão brancos, que davam a impressão de se estarem a rir, depois as variadíssimas
marmeladas,
e
ainda
as
rendas
que
fazia
de
bilros
e
de
frioleiras. E vá de convidar as duas manas a irem passar uns dias à Casa Grande, bem como o irmão, que teria Fernando de camarada. Aceitaram e foi a comitiva toda. Para recebê-la, Cristina viu-se e desejou-se, mas soube com mão arteira esconder as pequenas misérias que iam na herdade e dar relevo às suas excelências que aliás sobrepujavam aquelas. A ruína por enquanto lavrava à superfície, onde era barata coisa estender o véu. Não obstante os descalabros, a Quinta do Amparo pouco se desvaliara. Cristina soube mostrar-lhe os prados fecundos, bem como abegoarias, o colmeal, o vergel e matas com o passaredo que é de toda a gente, mas primeiramente dos lugares em que pousa e das pessoas que encanta. Fácil foi despertar-lhes a cobiça, que coexiste sempre na alma duma minhota, amiga
de
ter
onde
mandar
e
lavradeira
por
atavismo.
Ficaram
a
Joana
Angélica os olhos nos prados, na mata de troncos seculares, nas águas que corriam à porfia, em maratona, para o vale, tagarelavam aqui, esmaltavam
além os regos das sementeiras, e no corgo iam rolando ora mansas, ora buliçosas, tão finas que as trutas inçavam pegos e charcos, atentas à voz da multiplicação.
Para
chegar
à
quinta
era
preciso
conquistar
Plácido.
Concertaram o casamento. A Primavera decorria serôdia e com todos os imprevistos das estações tropicais.
Desconhecida
na
Quinta
do
Amparo,
não
se
mostrava
menos
interessante que a clássica, essa que obedecia às leis da Folhinha. Assim, se lá para o pinhal o cuco, a rola e a poupa lançavam as suas árias como um terceto
de
discorria
aldeia
como
tocando
uma
a
pé
firme
nos
esquentadíssima
roda
termos pelo
do
contrato,
firmamento,
e a
o
Sol
súbitas
desabava um aguaceiro do tempo de Noé, e só se ouviam as grossas cordas líquidas a fustigar a terra. Calavam o bico os cantores das ramarias; ao Sol tapava-o o coca duma grossa nuvem negra, um desses cúmulos a que os poetas
do
velho
Lácio
chamavam
odres
pelo
que
têm
de
oblongos,
emborrachados e desventráveis. As regueiras num abrir e fechar de mão rompiam-se ou transbordavam; inchavam os corgos para logo desinchar. A seara, que estava balofa de seiva, pendia sob o açoite da chuvada. Pelos campos – pois que corria à lufa-lufa a faina das sementeiras – os homens punham véstias e burjacas e deitavam a correr para se abrigar no primeiro recosto, penedo ou árvore providencial. Durante minutos, às vezes um quarto de hora, caía água se Deus a dava, toda a natureza tomada de colapso. E repentinamente as nuvens, depois de descarregar, inverosímeis,
lá
iam, num
a
desfazerem-se
movimento
doce,
os
seus
flancos
maneirinho,
de
em
filamentos
velhas
urcas
desmastreadas pelo vendaval. O Sol reaparecia fulvo, bonito e impetuoso como um jovem touro reprodutor. Que vinha fazer senão esposar a terra?! De facto, sentia-se a vará-la com a sua estocada genésica, leivas e alqueives penetrados do espasmo supremo. No ar translúcido subia um hausto salobre de fecundidade. Endireitavam-se as guias dos pinheiros e os ramos dos carvalhos tornavam a ser coretos das aves, rola, cuco, poupa, a que às vezes vinha associar-se o melro ou o tentilhão. Cantavam e recantavam solfas sem fim para recuperar o tempo perdido. Do espesso das ramalheiras faziam coro com elas estes passarinhos moradores da mata que, à semelhança das rosas de todo o ano, têm sempre um cântico a dar ao mundo – e era uma sinfonia
pegada. Sobre a tarde cantava o rouxinol. Dizia o Ritão das cabras, quando se começou a ouvir, que andava a aprender o repertório. Realmente as suas volatas eram breves e pobre a tessitura melódica. Ainda não acasalara, e podia considerar-se um poeta vadio e bisonho em cata de musa. Foi no meio de tanta exuberância terrestre que se marcou o dia para os esponsais. E desde logo infinitos estafetas largaram de batida por vilas e aldeias levar o convite a parentes e próximos. E como eles, abrangendo dos mais contíguos aos mais afastados, inçavam a província de Entre Douro e Minho, rompeu desde logo por toda a parte grande azáfama em alfaiates e segeiros. A ondulação de tal maremoto ultrapassou Braga e Viana até ir morrer ao Porto nas casas de moda, chegada de Paris com atraso de seis anos. Plácido
renovou
a
equipagem
com
uma
liteira
de
machos
que
encomendou para Guimarães, rebocou as paredes e tectos, alcatifou as salas, depois de consertar os soalhos. E deu-se a cuidar do seu amanho, renovando bragal e guarda-roupa e ajustando com o barbeiro de S. Roque vir tosquiá-lo e barbeá-lo todas as manhãs de sábado. O mais curioso é que, tendo posto de
lado
a
terapêutica
bezoártica,
que
lhe
prescreveram
os
facultativos,
deixaram de lhe dar os ataques, ditoso e rejuvenescido. Amava a Joana Angélica? No pessoal da casa que lhe era mais chegado houve quem jurasse tê-lo visto ficar em grande sobressalto até que voltassem de Calheiros os portadores que aviava, ora com presentes, ora com simples bons-dias. Era amado por Joana Angélica? Os mesmos alvissareiros contavam que mais de uma
vez
foram
encontrar
esta
senhora
a
chorar,
ou
de
olhos
roxos,
de
passeio pela cerca com Fernando Luís, agora mais que nunca hóspede certo de Outeiro Meão e muito colaço do Marinho, estudante de leis. O pessoal da Casa Grande, sob o novo signo, passou a gozar de melhor trato e em conformidade a produzir honradamente. Havia muitas ruínas a reparar
e
muito
rego
a
abrir
até
a
quinta
volver
à
prosperidade
antiga.
Tomaram-se novos escravos, e mercê de empréstimos, contraídos à custa da mais desaforada onzena, segundo se rumorejou, repovoaram-se estábulos e currais. O pátio, que era um cabeço xistoso aplanou-se; já se lá podia dançar. Para isso se rogaram quantos gaiteiros e cantadores havia de fama, sem faltar os da Lixa com a chula. Na capela de Nossa Senhora do Amparo, padroeira
da
Casa
Grande,
viram
barrela
pela
primeira
vez
toalhas
e
frontais. Chamaram-se douradores, e os altares foram restituídos ao oiro fúlgido da primitiva. Ora uma tarde, mansa e activíssima tarde de Primavera, um dos moços, que tinha ido à Codesseira e seguira o atalho que, em boa parte do trajecto, costeia o corgo, voltou ofegante e em alta grita: – Acudam que se afogou o senhor D. Plácido! Afogou-se no chafurdo do Moinho, abaixo do Poço! Alvoroçou-se a Quinta do Amparo, Moldes e Casais, e uma grande mó de gente disparou para o local. O corpo do fidalgo jazia imerso no pego que faz ali
o
riacho
profundidade
e e
é,
a
declinar
batedoiro
da
para água
a
margem
oposta
espadanada
pelo
à
azenha,
rodízio,
devido
um
à
viveiro
afamado de trutas. Meio de borco, sem desmancho notório, só a perna direita engatilhada sobre a esquerda, apercebia-se-lhe uma grande brecha na testa, de que manava mansa e languinhenta, a esfiapar-se em contacto com a massa líquida, uma sangueira rósea. Um dos braços estava projectado para a frente, no gesto instintivo, dir-se-ia, de parar-se de golpe ou trambolhão. A cana de pesca – dava-se bem conta – escapara-lhe do punho, para ficar metade em terra e a outra metade cair obliquamente no fundo do pego, segundo a propensão da linha lançada ao veio de água. Levantaram o corpo da balsa e logo correu e engrossou a versão de que o fidalgo estava a pescar quando lhe deram os acidentes, a que era atreito, indo bater com a cabeça na aresta da pedra que fazia amparo à mota. Os caseiros da Seara, campo que também pertencia à Casa Grande, tinham-no visto passar de cana ao alto, bem disposto, a assobiar, e haviam mesmo trocado com ele a salvação. Apenas uma zagala trouxe um instante, nada mais que um instante, de perplexidade. Dizia e jurava pelas Cinco Chagas ter visto, com aqueles que a terra havia de comer, um vulto a esgueirar-se muito agachadinho por detrás do salgueiral. Mas um vulto, que ninguém mais lobrigara, de quem podia ser? Um dos garotos do lugarejo do Poço, que andasse aos ninhos, podia dar-lhe aquela impressão enganosa, se é que não fora o próprio D. Plácido que se houvesse debruçado a procurar pelo chão isca para o anzol. – Nessa altura, ò senhor D. Plácido tu via-lo? – inquiriu um dos Salomões da Freira. – Não, senhor, não via. – Aí está! Era ele, dobrado, a procurar minhocas para o anzol.
Fora, portanto, ataque que lhe dera. Tinha jeitos de haver tombado para a frente e ir chocar na rocha, a que se encostava o paredão do açude, meia à flor da água. O facultativo da vila pronunciou um diagnóstico decidido: o derrame encefálico seria o bastante para provocar a morte, admitindo que não houvesse asfixia. – Mal empregado homem! – clamavam as bocas do mundo. – Agora que ia casar com a herdeira mais rica daquelas redondezas e a vida lhe sorria, veio Deus e levou-o! Estava escrito. Quem tinha tudo a ganhar era o irmão, que já recebera a prima tonsura e por modos andava pelos cabelos nos estudos teológicos. Como alevante Martinho
recebera quando de
ele
a
notícia?
regressava,
Covas.
por
Noutros
Ora, um
tempos
coitado,
caminho
fora
surpreendido
paralelo
enchiam-se
de
ao
turrar
corgo, e
pelo de
quase
S.
não
trocavam outras palavras que não fosse: bom dia, boa noite. Ultimamente eram muito amigos e dados um com o outro. Viam-nos por toda a parte juntos a dirigir ou a riscar. Plácido aceitava-lhe sempre os conselhos, e punha em andamento o que lhe ditava como se em realidade fosse ele o dono do Amparo. Tinham-se reconciliado sob os auspícios da vida nova que empolgara a Casa Grande e tudo corria a favor de seus corações fraternos. Imagine-se agora a comoção que Fernando Luís sentiu quando o levaram perante o cadáver do irmão! Tão violenta ela foi que, se não o amparam, ia a terra. Carregou-se de luto e, aqueles dias do mortório, a toda a gente que bateu
à
porta
se
negou,
dorido
e
conturbado.
Tão-pouco
o
acerbo
sentimento lhe permitiu que assistisse à missa de réquiem e aos ofícios de corpo presente que os sacerdotes de três arciprestados, sob a presidência de Monsenhor Alexandre, deão da Sé de Braga e tio do defunto, gargantearam na igreja de Rubiães, consoante o cerimonial faustoso da Casa Grande. Perdoassem-lhe, mas não tinha ânimo para tanto. Ficaria no Amparo a rezar de joelhos por alma de seu irmão, para que Deus o recebesse à sua mão direita, que bem o merecia por justo e seu adorador. Não insistiram mais com ele. Quem nos próximos dias o via esgrouviado, branco e funéreo, tinha pena dele, minado pela paixão solapada que lhe causara o fim trágico do mano. Na Casa Grande fecharam-se todas as portadas, e crepes frescos vieram substituir no escudo de armas dos Cunhas de Antas os crepes desbotados e
rotos, com as pontas a fraldejar ao vento, tomados por morte de Joana de Azevedo e Mendonça, mãe dos actuais fidalgos. Afinal esteve a Casa Grande em suspensão, estática, com seu nojo, à margem do rio do tempo, que lá ia levando bem e mal, amores e ódios, em seu inexorável fluxo. As enxadas e charruas, essas, é que continuaram a cortar a terra, que havia na quinta muita boca a manter: escravos, servos novos e filhos nascidos dos acasalamentos. E as estações não pararam na sua dobadoira. Vieram as rolas e o cuco, e tornaram a ir-se embora. Uma texuga pariu na mata e um dos abegões tirou os cachorrinhos e foi com eles pedir
pelas
portas.
Em
ovos
juntou
passar
de
um
cento.
Os
pinheiros
deitaram mais uma pôla, e as trutas de mão travessa passaram a palmeiras, que não havia ninguém que as pescasse. Na Páscoa seguinte, aleluia, duas vezes aleluia, a sineta do Amparo tocou para o casamento de Fernando com a noiva do defunto. Não havia que estranhar: era o modo de não ficarem goras as grandes despesas feitas e, ainda, de não sofrer cruel decepção aquela menina modesta e recolhida, que dera todas as velas aos sonhos de noiva, D. Joana Angélica do Amaral Marinho. Fernando, em comparação com o mano, era um bonito homem. Elegante,
desempenado,
bom
conversador,
afável
em
despeito
do
temperamento frio e das reservas, deitara com despacho a sotaina às urtigas. Da prima tonsura apenas se lhe conhecia na cabeça uma roda mais baixa, que perdurava a todas as tosquias do cabelo. Joana Angélica só tivera a ganhar. A queda para a estroinice e hábitos de vagabundagem e parasitismo de que à boca grande acoimavam Fernando, atribuíam-nos agora os parentes benévolos à condição de filho segundo, tara constitucional em tais casos. Tudo
na
terra
e
céu
escandalosa felicidade.
augurava
que
haviam
de
ser
bafejados
pela
mais
VIII
Fernando de Mendonça – assim veio a chamar-se este herdeiro casual do vínculo, que desde menino adoptara o nome da mãe no intuito, porventura, de
esconder
a
sua
posição
de
filho
segundo,
se
não
por
assomo
de
independência – e a mulher começaram a viver vida larga e desenfadada, queridos do rico e do pobre, as salas sempre cheias com a melhor fidalgaria do Alto Minho. Caleches e estufins a cada momento despejavam visitas no pátio, sob o ar acolhedor de Nossa Senhora, ladeada de S. Pedro e S. Paulo, arautos da sua pureza. Vinham de longe, até de Amarante e Penafiel, que a Casa Grande tornara-se lugar aprazível de encontro do que havia de mais aristocrático
e
notável
na
região.
D.
Joana
Angélica
pôs
de
parte
as
marmeladas e passou a fazer versos, dizia-se que bons versos à força de martelar as sílabas pelos dedos. Certos poetas da Ribeira-Lima celebraramna em infinitos acrósticos e endechas que ainda hoje se encontram nas colectâneas manuscritas, que por milagre não esfarrapou para embrulhos de chouriços ou buchas de reiunas o torpe prosaísmo dos tempos. A Casa Grande, com as achegas procedentes da Casa do Outeiro Meão, viu-se livre a breve termo das dívidas e hipotecas que a oneravam. E novamente grandes manadas de vacas e cavalos recrearam com seus ripanços e tropelias as encostas regadas pelo sol doce das tardes estivais ou frescas ainda do rocio das manhãs. Na capela celebraram-se por alvedrio de P.e Hipácio Leborinho, boas e redolentes festas, em que nunca os senhores da Casa Grande deixavam de dealbar as almas e que acabavam sempre por um festim esplêndido, a que não era raro amesendarem o arcebispo primaz e o governador de armas.
Felizes, felizardos, julgava toda agente, um espinho manifestamente os pungia: não ter filhos. D. Joana Angélica tomava quantos chás de ervas miraculosas santos
e
lhe
santas
aconselhavam da
corte
as
mezinheiras,
celestial,
mas
as
bem
suas
como
fazia
entranhas
votos
a
continuavam
estéreis como a pedra dura. Dar-se-ia o milagre de Rebeca, pelo tarde, no dobar melancólico da sua juventude, quando menos o esperasse? Um dia foi consultar a benta de Padornelo, por uns tida como mulher de virtude, por outros como bruxa e baldorneira de baixo coturno. Fosse em respeito
à
grande
dama
que
incutia,
a
criatura
mostrou-se
prudente
e
discreta, embora a tratasse por tu a bem da transcendência hermética do seu ministério: – Bota-te, minha rosa, a Santa Justa de S. Pedro dos Arcos. A romaria cai no princípio de Verão, quando os maracotões começam a apojar nos pessegueiros. Passaram os calores no homem e nos animais. As pitas que tinham a chocar já chocaram. Só o mato guarda amavios. Vai-se pelo meio dum urgueiral ou dum giestal fora, e nunca uma mulher terá mais apetite de homem. Ora tu hás-de ir à festa com teu esposo e dormir com ele debaixo duma giesteira que esteja ainda a deitar flor. Bem me entendes, ham?
Na
véspera
à
noite,
dá-lhe
no
empadão
ou
no
caldo
nozes
de
jaçapucaio. Vendem-se na botica. Se a culpa não é dele, lá é que hás-de gerar o herdeiro por que esperas. Não te espantes do que vires ou ouvires à tua volta. Olha que vai lá muita gente para o mesmo fim. D. Joana teve ainda nos lábios a pergunta comprometedora: – e se a culpa é dele? – mas dominou-se, sabendo por uma prima que a resposta era invariável, consigo baldada em parte pela própria natureza das coisas: – Se não é capadócio, julgas que seja maninho? E diz-me cá: não tens um primo? Um criado fiel e limpo? Ajeita-te com ele... D. Joana Angélica, depois de prometer cumprir à risca as indicações da mulherzinha, a puxar já do escote com que retribuir a consulta, ouviu-lhe que dizia: – Não deixes de oferecer à virgem miraculosa Santa Justa um casal de frangos brancos. Mas olha que tanto o galispo como a franga não hão-de ter conhecido galadura. Só assim a milagrosa virgem te aceita o voto. D. Joana, de regresso à Casa Grande, deu parte ao marido da receita que haveria de aviar, segundo a bruxa de Padornelo, para terem um sucessor. –
Se
o
remédio
é
esse
–
pronunciou
Fernando
de
Mendonça,
condescendente – filho tem a prima. Não deixaremos de ir à romaria de
Santa Justa a S. Pedro dos Arcos, vá contando. Dobou
Abril,
dobou
Maio,
um
Maio
frescal
e
serôdio,
a
custo
desembaraçado das envoltas do Inverno. Nos bosques, o povo das aves mal dava
sinal
de
vida,
e
nas
uveiras
os
gomos
inchavam,
muito
gordos
e
apoplécticos, cor-de-rosa, mas de pâmpanos só as cepas de bastardinho, ao abrigo da casa, mostravam penachos envergonhados. A flor da tojeira, planta que se ri das estações, essa, sim, iluminava com o seu ouro os taludes da mata. Apenas quando chegou Julho se sentiu que a terra estava fecundada em suas ervas e plantas, em suas aves e animais do monte e outras infinitas criaturas de Deus. Os perdigões cantavam em cima das paredes e as coelhas arrancavam o pêlo de soventre no fundo das luras para fazer a cama dos caçapos. – Então vamos a Santa Justa? – perguntou uma manhã Joana Angélica a seu marido. – Vamos, porque não havemos de ir? Não entende que é necessário...? – respondeu Fernando. Quando constou que os fidalgos iam ao arraial famoso, o pessoal da casa ficou no ar. As raparigas casadoiras, mormente, que conheciam o poder casamenteiro da santa, prepararam seus luxos e merendeiros. Santo António era de Lisboa, velho, casmurro, caído em desgraça, e nem sempre estava de orelha
feita
para
as
ouvir.
A
Senhora
da
Arga
também
fazia
milagres
daquela espécie, mas como a Santa Justa dos Arcos não havia no mundo todo. Por uma tarde de sol subiu o Meijoeiro a bizarra comitiva. Leva que leva, na tepidez amena, as raparigas deixavam voar o lenço para os ombros e saltavam com jarretes de cabra ao som dos adufes. Um rapazote de Moldes, ruivo, olhos glaucos, rufava um tambor endiabrado, que apoiava sobre o abdómen,
jogando
a
maçaneta
ao
ar
e
apanhando-a
com
desenvolta
agilidade. Iam andando e dançando, detendo-se apenas para empinar as borrachas, descansos que os moços aproveitavam para palpar o amojo às raparigas, à socapa e mesmo à vista de todos, ainda do senhor P.e Hipácio Leborinho, capelão. Montado numa das éguas criadeiras da quinta, uma égua rabona, matriarca pelo corpulento e sisudez, nem voltava os olhos para não ver ou fingir, como manda a boa educação eclesiástica. E quando se aproximaram
da
ermida,
pelos
caminhos
de
carro
e
pé
posto,
que
dos
montes ali vinham desatar tortuosos e estreitos como barbantes, desciam
mais
ranchadas,
todas
animadas
de
fôlego
bailão,
com
seus
abades
e
homens principais a cavalo, a plebe à pata, tangendo gaitas e batendo o saricoté. De permeio, os mordomos, de patilhas até o colarinho, traziam atravessadas à frente dos albardões as cruzes e lanternas, que a maior parte dos
povos
da
Ribeira-Lima,
das
terras
de
Coura
e
de
Vez
ali
vinham
cumprir um voto, que remontava a tempos imemoriais, com seus clamores e ladainhas. Quando avistavam os Arcos, declinava o Sol. A tardinha decorrera breve e morna no céu muito lavado pela brisa dos montes, com o quarto crescente por cima da Arga a lembrar uma caravela que vai entrar num porto. Mas sapos, grilos, ralos continuavam calados pelos almargeais, bem como lá em baixo no rio as rãs, à espera que a batuta, que só eles vêem, desse sinal para romperem a um tempo na zanguizarra. À volta da capelinha que reluzia no cerro, a meio do adro com a parede caiada de fresco a cinturá-la de branco, o sino a desbordar da ventana, lembrando
saia
enfunada
nas
voltas
do
vira,
andavam
os
descantes
peripatéticos. Os outros estacionavam nas chapadas e escalões da colina e aí, encobertos ou mal visíveis, botavam suas cantorias, meio litúrgicas, meio pagãs, em louvor de Santa Justa. Pelo outeiro galopavam, trupe que trupe, nos garranos de franjas nas cabeçadas, gualdrapa de vitela com os pernis a batucar, os pimpões das aldeias, lódão entalado debaixo da coxa, chapéu de aba ancha, soberbos que nem rajás. Havia cavalgaduras em barda pelo mato, tantas que davam ideia de feira de ano que extravasa pelos campos à roda. Burros soltos ou arrastando a rédea tosavam as sarças e os codessos, outros, amarrados aos chaparros, filosofavam ou ouviam a música das esferas, as longas orelhas de antena para o longe, os pastos, as vozes crepusculares do recolher, uma burrica entrevista alguma hora, ou se torciam em serpe na ânsia de ripar as fêveras de erva que rebrilhavam, provocantemente verdes verdinhas, a meio palmo da dentuça. Aqui e além os cavalos escarvavam o chão e nitriam a chamar pelos donos. Num magote deles, por causa duma égua aluada, despediam o seu coice e arrifavam. Outros, isolados, batiam o rabo pendularmente, a enxotar a mosca, ou, o que era mais comum e a sua atitude de compostura parecia justificar, rezavam, no dizer dos almocreves. Também velhos jumentos, gordos e sem vaidades, pareciam meditar de olhos na aréola luzente das ferraduras. À sua beira, os donos, depois de os
despojarem
dos
alforjes
com
os
farnéis,
tasquinhavam
e
erguiam
gaudientemente suas libações a Santa Justa. Estrugiam os atabales, e as pandeiretas soltavam a sua gralhada flamenca. E tum-tum-tum, tum, tum, dos passos ritmados dos batedores da chula, das vozes esganiçadas das raparigas dirigidas para a capelinha como flechas, de zurros, gritaria e falatório avulso, escorria pelo outeiro a mais patusca, universal e incongruente algazarra. Os
senhores
da
Casa
Grande
foram
subindo
a
vereda
tortuosa
e
atravancada de romeiros que levava ao santuário. Imprevistamente, dum tufo de giestas, saiu-lhes o morgado de Lisouros com o seu pingalim de gomalaca, o chapelinho a tombar para a orelha, muito almiscarado, a desfazer-se em rapapés. Cortejara in illo tempore Joana Angélica e ficara-lhe o hábito dos olhares langorosos e do derrete quando a via. Ela folgava com a sua presença, e como não se, além do mais, passava pelo homem mais chistoso da terra de Fraião, se bem que pé-leve em matéria de respeitos humanos e bastante fátuo da sua pessoa?! Fernando Luís tolerava-o com mal recalcado engulho e não pouca paciência. O morgado colou-se à ilharga de Joana Angélica e nunca mais despegou. Atravessavam agora por meio de ranchos de romeiros em direcção à capelinha. Com seu telhado moirisco em cutelo, a sineira de escancha-perna sobre o encume, as juntas dos silhares a luzir a cal nova, lucilava por detrás dos estandartes e dos arcos com festões muito parranas, mas sumptuosos, que tinham erguido no adro. Naquele instante, as procissões do arciprestado davam as voltas do ritual. Pela porta escancarada entrevia-se o altar e a santa a meio das velas acesas, acima de braçadas de rosas e ramos floridos, num peplo vermelho recamado de oiro. Umas após outras,
desfilaram
Cristelo,
Cabração,
e
desarmaram
cruzes
de
as
prata
e
procissões lanternas
de
Rendufe,
multicores,
Labrujó,
bandeiras
e
lábaros, opas escarlates e dalmáticas a resplandecer ao Sol poente. Joana Angélica, apoiada ao braço do marido, possuída da exaltação que se filtrava do hausto da turbamulta, dirigiu-se, sorrindo, ao morgado de Lisouros: – Que me diz, primo?! Santa Justa é uma santa cristã e tem um culto à primeira vista tão pagão? – O reverendo Hipácio Leborinho que lhe explique, D. Joaninha. Onde ficou ele? Está lá atrás... – Conte lá, primo...
– Foi arte que nunca cheguei a aprender, contar uma história ou mesmo uma anedota. Sou um podão. – Conte mesmo assim. O morgado de Lisouros olhou para Fernando de Mendonça e, como o visse embezerrado, para maior pirraça pôs-se a desfiar a história cediça de Santa Justa: – Se bem me lembra, como ouvi ler ao meu padre capelão, era uma vez duas irmãs, Justa e Rufina, louceiras em Sevilha, isto é, vendiam moringues, cantarinhas, púcaros, tudo o que há de mais quebradiço e frágil. Em género de mercadoria, nada mais comparável... digamos, às raparigas. As
bilhas,
uma
vez
quebradas,
deitam-se-lhes
gatos,
mas
sempre
ficam
rachadas. Assim... – reparando no morgado que afivelara um ar severo, ar de prefeito de seminário, afoitou-se a rematar pondo toda a malícia na voz e no gesto: – assim, aquilo... aquilo que nós sabemos... D.
Joana
não
se
permitiu
responder
a
um
raciocínio
tão
reticente
e
escorregadio, mas foi castanhetando os seus risinhos satisfeitos. –
É
Leonel
uma
explicação
Bacelar
–
só
aceitável
interveio
o
com
padre,
muito
que
boa
tinha
vontade,
boa
orelha
senhor e
se
D.
viera
acercando. – Mas já agora, D. Joaninha, ouça o resto... – tornou o morgado de Lisouros sem se prender com a observação. – Andavam umas devotas de Vénus a pedir com a imagem da deusa, a pedir como naturalmente hoje se pede na nossa religião para os santos ou para as almas. Dirigiram-se às louceiras: são servidas dar a a esmolinha em honra e louvor da nossa padroeira...?
Elas
ficaram
todas
escandalizadas.
Que
desaforo,
vir-lhes
pedir a elas, cristãs de gema, esmola para uma deusa do paganismo! Ainda mais para aquela, a deusa do impudor! E, zás, foram-se a Vénus e fizeramna em cacos. Resultado: os pagãos levaram-nas presas e deram-lhes maus tratos, todos os maus tratos de que aqueles patifes eram capazes, reza o Flos Sanctorum e eu não duvido. Acredito em tudo. Acredito que a história tem alguns ou todos os lances certos, mas é também provável que tenha alguns omissos. Um desses seria a violentação das duas virgens louceiras, levada a cabo pelos agentes da ordem, gabirus como hoje, obrigando-as deste jeito a sacrificar a Vénus. –
Passou-se
essa
pouca-vergonha
Mendonça, fazendo um esgar.
onde?
–
perguntou
Fernando
de
– Passou-se essa pouca-vergonha em Sevilha, primo – tornou o morgado – terra cálida e propícia ao amor, não se sabe a que alturas do século III, o século, aqui para nós, perdoe o P.e Leborinho, das galgas veneráveis em nome de Deus. Mas que careta está a fazer, meu reverendo!? O dito não é meu. Ouvi-o a um lente de Salamanca, um grande mestraço! Até tomava simonte! E ouvi-lhe mais: Isto de mitos só no que se não parecem uns com os outros é na roupagem. – O primo esquece que está a falar diante de um familiar do Santo Ofício – advertiu Joana em tom de gracejo. –
E
para
que
saibam
que
compreendi
bem
os
intuitos
de
meu
tio
Domingos da Cunha de Antas – respondeu, sorrindo também. Joana voltou a cara para o lado no jeito furtivo de rir com prazer e sem alarde, conhecedora do espírito do primo de Lisouros, a puxar ora e sempre para o faceto, e o do marido, reservado e obsessivo. Nas procissões, logo atrás do pálio, seguiam endiabradas danças à rei David. Raparigas faceiras e homens de ar embesoirado iam de braços ao alto tangendo castanholas e descrevendo umas com outros, ao passo que avançavam, um animado sarambeque. – Só queria que me dissessem como é que Santa Justa, arvorando-se em inimiga de Vénus, se tornou padroeira duma coisa tão contrária ao seu génio? – volveu dali a pouco Joana Angélica dirigindo-se ao primo de Lisouros. –
Não
lhe
sei
dizer,
prima
Joaninha
–
respondeu
ele
num
grande
salamaleque. Todavia foi esboçando a sua tese erótica. Era provável que os cristãos passassem a ver, desde que se condensou a legenda, em Santa Justa a mártir de Vénus. Vénus era a deusa do amor e da procriação. Porque não havia a boa da louceira de ficar a exercer a sua jurisprudência numa causa tão transcendente?
Era
absurdo,
como
que
uma
reversão
do
espírito,
sim
senhores, mas isso que tinha para o sentimento das pessoas precisas de remédio e de esperança em tão augusta alçada?! Daí o símbolo. A quem se haviam de agarrar as pobres esposas privadas da sorte de serem mamãs? Pois a Santa Justa e a Santa Rufina, ou só a Santa Justa, que passara o pé à mana, não se sabia por que carga de água. Joana Angélica achou-lhe graça se bem que a história lhe parecesse tão inverosímil como fabulosa. Deus escreve direito por linhas tortas, é certo,
mas uma escritura daquelas não assinava Ele com o seu nome. Fernando de Mendonça várias vezes cuspinhou para o lado, do que o fidalgo de Lisouros fingiu não se aperceber. – E porque não há-de ser uma sobrevivência do culto pagão? – formulou o P.e Hipácio Leborinho, depois duma grande pausa, que manifestamente ocupou a consultar os botões teológicos da garnacha. – Assim ou assado, todos os caminhos levam a Roma – proferiu com certa ênfase e em tom de remate o morgado de Lisouros. Passaram
por
eles
uns
homens
que
traziam
grandes
camândulas
ao
pescoço e bordões ferrados. Às vezes, jogavam-nos ao ar com estranha destreza e traulitavam uns nos outros, soltando urros do tempo das cavernas. Um padre, de tricórnio e roquete, à testa da chusma processional, entoava por um velho ripanço a ladainha de Santa Justa, cuja lição, provavelmente de cunho ariano, sobrevivera aos ritos visigóticos e moçárabes: – Inupta puela suavíssima... – Ora pro nobis! – Tenera caro rastro illibata... – Ora pro nobis! – Rudis et tenuis carina... – Ora pro nobis! – Excelsa unda voluptatis... – Ora pro nobis! – Sinus sanctus dealbatus... – Ora pro nobis! – Columba sine labe peracta... – Ora pro nobis! – Hoedula moris emendatissima... – Ora pro nobis! – Ineluctabilis delectatio... – Ora pro nobis! – Coeli gaudia dierumque laetitia... – Ora pro nobis! – Oculorum et tactus jucunditas... – Ora pro nobis! – Dulcedinis profundum mare... – Ora pro nobis!
– Vitae et mortis amenitas... – Ora pro nobis! Desarmou a procissão arcaica e homens e mulheres embrenharam-se aos pares pelo giestal em flor. Os fidalgos da Casa Grande meteram para o templozinho a depor aos pés da virgem santa o casal de frangos brancos que uma escrava trazia num açafate, atados de pernas e asas com uma fita de seda também branca para não quebrar a alvura litúrgica. A avaliar pelo penujal que havia no chão, muitos teriam sido os votos não só de galináceos como de pombas. A ermitoa despachara tudo para a sacristia. Ouviam-selhes os cocoricós petulantes de galispos e o falsete juvenil de seus cacarejos ao desafio uns com os outros.
Joana
Angélica
prostrou-se
diante
da
santinha
de
rosto
afável
e
ameninado. E, fervidamente, lhe rogou que se dignasse ser medianeira junto de Deus para que houvesse um filho. Mais que o sucessor, seria o anjo que viria libertá-la das galés da melancolia e amargura a que fora condenada. Oh, só ela e mais ninguém sabia que galés eram as suas! Fernando de Mendonça viu-lhe os olhos rasos de lágrimas e, enfadado, bateu-lhe no ombro. No adro, o morgado de Lisouros, sempre galante e discreto, despediu-se. E eles entraram para o bosque sagrado, procedidos do guia que tinha por missão levá-los ao sítio onde as escravas lhes haviam feito a cama. Baixara de todo a noite, mas ao clarão das estrelas e do quarto
crescente lobrigavam-se a cada passo casais tomados de delírio amoroso. A penumbra coalhava-se de suspiros e gemidos de inaudita musicalidade. Uma mulher chiava como pucarinha cheia de água quando começa a aquecer ao lume. D. Joana fechava os olhos e tapava os ouvidos. Mas não a prevenira a benta de Padornelo que era preciso cumprir o voto com os sentidos bem despertos? Deitaram-se debaixo duma gigantesca giesteira amarela. As maias caíamlhes por cima em bátegas mansas, túrgidas de rescendores acres, agitadas pelo
ritmo
delicioso
do
enlace.
Bendito
e
louvado
fosse
Deus,
não
se
acabava o mundo! Dobaram os dias, os meses, a japoneira da fonte tornou-se mais bonita que um firmamento constelado, mas o menino a quem destinavam o nome de Lisuarte, na qualidade de infante de maravilha, não lho trouxeram as cegonhas.
IX
Os fidalgos da Casa Grande, pois que Deus não fora servido dar-lhes o filho
cobiçado,
lançaram-se
no
torvelinho
dos
gozos
mundanais,
com
pródigo desbarato da fazenda. Que lhes importava o dia de amanhã se não tinham responsabilidades com o nome hereditário?! Fartaram-se de correr as estradas, ora de sege, ora de cadeirinha, vistos e achados em arraial ou romaria, festa de sociedade e ainda de igreja, tantas quantas houvesse naquelas cinco léguas em redondo. Em Braga, mormente, punha o ramo o morgado de Romarigães, com os seus criados de libré, debruns e galões cor de laranja em picotilho verde-mar, e os batedores armados de facas de mato nos cinturões de anta e trabucos de pederneira ao ombro. Na capital, onde botaram dois invernos seguidos, é que não lhes foram proporcionados os afagos e honrarias a que se julgavam com direito os seus pergaminhos. No terceiro Inverno Lisboa estava em terra, derribada pelo
terramoto.
Correio-Mor
Deram
que,
graças
a
havendo-lhes
Deus
e
aos
extorquido
estalajadeiros
até
o
último
da
Rua
do
cruzado,
os
radicaram no propósito de não voltar a pôr os pés na cidade de mármore e granito, enquanto não fosse reservado outro tratamento aos fidalgos de Entre Douro e Minho. – Arre, com a ladroeira! – ouvia-se-lhes exclamar, frase esta de que Fernando de Mendonça fazia estrambote ao referir as impressões que lhe deixara a cidade dos fadistas e das pretas do burrié. No fundo era tudo revindicta contra a urbe e a sua gentalha que se não prestava já a render homenagem aos ricos-homens que estadeavam em seus brasões as siglas dos Fruelas e Vitizas.
Com vida tão dispersiva e fugida a contas, os negócios do património andavam ao deus-dará. Chovia em casa como na rua, e não havia quem subisse ao telhado. Aqui, além, os muros da cerca estavam esbarrondados, e tão-pouco nenhum criado ou caseiro tomava a iniciativa de erguer uma pedra. Os caçadores furtivos vinham armar na mata os ferros aos coelhos e assaltavam ao mesmo tempo a capoeira e a horta. Não contentes de lhe roubar as lenhas e extrair a cortiça dos sobros pela calada da noite, os mateiros
segotavam
as
árvores
novas.
E
uns
vizinhos,
mais
descarados,
levaram o atrevimento a desviar-lhe da propriedade o curso da água de lima, e
outros
a
mudar-lhe
os
marcos
nos
rossios.
Entre
servos
e
escravos,
campeava o desmazelo mais sórdido. O gado andava magro, escanzelado, tinhoso, e já duas éguas tinham deitado a barriga, por falta de cuidados elementares. – Quinta da Senhora do Amparo, quem te viu e quem te vê! – gemia Fernando
Luís
compenetrando
nas da
horas
em
carcoma
que, que
à
varanda,
lavrava
em
olhos tudo,
de
lés
desde
a as
lés,
se
ia
nascentes
entupidas aos chaparros esfolapados. Para ocorrer às despesas suplementares romperam a alienar, no casal de Calheiros, hoje uma courela, amanhã uma bouça, depois de amanhã um montado. De que lhe serviam bens lá longe e mal dirigidos? Vendiam na boca do lobo, razão por que vendiam mal, mas era o processo, sem deitar vozes
a
gaiteiros,
de
irem
calafetando
as
brechas
do
orçamento.
Quem
lucrava era o seu cunhado e antigo colega de boémia, Dr. Lourenço Joaquim Marinho, que, deste modo, pouco a pouco, teve artes de refazer a casa do Outeiro Meão, a que o dote de Joana causara um rombo substancial. Gastos próprios, anormais, e outros emergentes com o salafrário dum sobrinho, filho de Constantino, que cometera o abuso de confiança de sete mil cruzados e iria parar às Pedras Negras se não indemnizasse a vítima, tornaram mais precária ainda a situação financeira da Casa Grande. – Mas que tenho eu com o mequetrefe? – disse, espinoteando, para o P.e Hipácio Leborinho que viera com a requesta. – Tem muito, senhor D. Fernando, é seu sobrinho. É seu sobrinho e o herdeiro do vínculo, se Deus Nosso Senhor não lhe der filhos. Para mais, tem até o nome do seu excelentíssimo pai, o Sr. D. Luís da Cunha Antas de Azevedo,
embora
assine
Luís
de
Azevedo
por
sua
avó,
Azevedo. Como vê, é o nome dos Antas que está na berlinda.
D.
Joana
de
– Cada um responde por si. Não tenho que responder por semelhante piranga. Eu mal o conheço. – É o mesmo. Se o senhor D. Fernando não fosse o morgado e senhor do vínculo dos Cunhas de Antas, nada tinha que ver. Mas não está no portão o seu orgulhoso escudo de armas? Está e como está, não permite que se passe em claro qualquer enxovalho ao nome. – Tretas, tretas, padre Hipácio. Mas diga-me lá: como é que esse mariola – Fernando Luís aprazia-se em esgotar o onomástico todo dos impropérios com o sobrinho – gastou tanto dinheiro e dinheiro que não era dele? – Como gastou? Como o gastam rapazes estouvados e de sangue na guelra. Com mulheres e no jogo. – Pois nem um chavo, meu reverendo. Nem um chavo. – Lá fará, senhor. Sempre ouvi dizer: a quem Deus não dá filhos, dá o Diabo sobrinhos. Afinal pagou por honra do convento, mas deu pulo de corça. Vendeu as melhores
várzeas
de
Calheiros.
Dispêndios
assim
imprevisíveis
tiveram
segundo efeito: apertar a tarraxa a caseiros e arrendatários dos bens do morgadio.
Nunca,
desde
o
licenciado
Gonçalo
da
Cunha,
fundador
do
vínculo, os senhores da Casa Grande tinham sido tão esganados. Com os retardatários e relapsos passou Fernando de Mendonça a ser inexorável: se não cumpriam no prazo fixo eram expulsos judicialmente das terras, que sempre os beleguins da lei prestaram mão forte aos ricos para acalcanhar os pobres. Uma forma de protesto começou a correr: – Quer-nos arrancar o coiro, depois de nos despir a camisa. À primeira fase, toda de dissipação e bota-adiante, sucedia agora a da cainhez e isolamento. Não falavam para ninguém. Fechavam-se dentro de casa e era raro aparecerem. Apenas aos domingos lhes viam o nariz à missa da casa, mas apenas o nariz, pois que se dirigiam ao coro da capela pelo passadiço que ligava com o solar. A fidalga parecia triste, pálida, olhos pisados ou ainda com vestígios de lágrimas, se bem
que
sempre
bonita;
ele
avelhentado,
ar
macambúzio
e
rebarbativo.
Corria o rumor de que se detestavam cordialmente e, duma das vezes que se travaram de razões, D. Joana, que tinha alma até Almeida, correu atrás dele de trinchante em punho. Valera ao marido ser mais ágil ou mais cobarde, que desatou às voltas em torno da mesa da sala de jantar até ela ficar estafada. Dizia-se mais à boca pequena que o fidalgo surpreendera uma madrugada o morgado de Lisouros a saltar da janela. Foi a correr pelo
bacamarte mas, quando pôde disparar, já o vulto se esfumava na escuridade ao transmontar o terrado da Quinta do Espinheiro. Verdade ou mentira, o certo é que Leonel Bacelar nunca mais figurou entre as visitas, não obstante a Casa Grande continuar a ser, embora em menor grau, o caravanserá da fidalguia que transitava do vale do Minho para o Sul na estrada de longo curso da Labruja e Pedras Finas. O escândalo, se o houve, fez ainda menos ruído que vidro duma vidraça que cai ao chão e se quebra. Ficou de portas adentro. O número do antigo repertório, a que se mostraram fiéis, dizia respeito ao devocional. Celebravam muitas festas, santanários como nunca. Quem os procurasse, o mais certo era encontrá-los de terço em punho a rezar a todos os santos e santas da corte celestial, no que levavam horas a dar-lhes volta, ou em novenas e celebrando, quando mandava a folhinha, os meses de especial consagração, S. José, Maria, Almas. O padre capelão com tanto esforço mal tinha tempo de pôr o pé fora do solar, o que o impedia de tomar parte em solenidades extra, ou de altar aleatório. Donde resultou pedir um acréscimo de emolumentos: 3500 réis mensais, quando o seu ordenado era de 3000 réis, e que as missas, rezadas pela intenção particular dos fidalgos, lhe fossem pagas a seis vinténs, quando até ali eram a tostão. Exigiu mais duas camisas de linho e umas galochas. Fernando de Mendoça recalcitrou. Então a palavra de Deus era negócio de marchandaria como os géneros da tenda? Não tinha mesa farta, barbela sempre untada, a caneca do verde sempre às ordens, além de boa cama, lume
na
lareira,
e
ripanço
que
daria
para
uma
comunidade
inteira
de
frades?! O
reverendo
Hipácio
Leborinho
especou
e
dali
não
saiu.
Houve
que
ceder. Mas castigaram-no requerendo-o todas as noites para rezar o rosário com a criadagem, o que ele fazia de mau humor e engrolando as orações. E, mais de uma vez na ronda por santos e santas, virgens e potestades, teve de lhe ir à mão: – Ó P.e Hipácio, o senhor saltou a Senhora da Luz. Volte atrás. Há lá nada mais preciso que a claridade no corpo e na alma? –
Tínhamos
rezado
à
Senhora
das
Candeias,
e
é
quanto
basta
–
resmoneava o capelão. – Não basta. As candeias é para alumiarem nos caminhos e nos andanhos da existência; a luz da Senhora da Luz é para alumiar a casa interior de cada um.
O antigo canonista dava-lhe uma lição de teologia mística, e o padre não tinha remédio senão fazer a invocatória: – Senhora da Luz que nos alumie no corpo e na alma, avemaria... Outras vezes era um santo insignificante da folhinha que escapava por entre os dentes do ritualista. – Santo Elesbão?... O senhor mascou o nome! – dizia ele. – Olhe que é dos santos que no céu gozam de mais virtude. Queira ele e faz-se, que Deus nada lhe nega. Veja lá, padre, se está com sono, esfregue os olhos! Quer que mande vir um casco de cebola... Estava assim irritante e exaustinado. A mais pequena arrelia punha-o fora dos eixos. Gritava tão alto que se ouvia no Casal. A sua voz tinha as inflexões
dum
possesso
a
esbravejar,
rebatidas
do
tom
acerbo,
espanta-
pardais, duma tábua atirada sobre outra tábua. – Lá está aquele rela – dizia o
padre
quando
ele
desatava
nas
objurgatórias,
reduzindo
a
impressão
acústica à maior suavidade que poderia achar na gama vocal respectiva. Um dia foram surpreendê-lo a arrastar pelos cabelos a escrava preta, Maria Quilomba, porque se esqueceu de pregar-lhe um colchete na gola do gabão. Outra vez atirou com o rasoiro da tulha à cabeça do feitor, que a desviou a tempo. Mas foi bater na perna dum rapazinho, filho do vaqueiro, e partiulha. Depois, ante o mal feito, fartou-se de carpir e arrepelar os cabelos, e foi ele que levou o menino ao algebrista de Valença que lhe endireitou a perna e lha meteu em talas reforçadas de pez. Andava pelos caminhos, falazando consigo em alto e pegado solilóquio, a ponto que toda a gente julgava que eram várias pessoas de longada par a par. Outras vezes, alapardava-se num cômoro da quinta e ali se esquecia de si e das realidades à volta. Passavam as horas, voavam os pássaros por cima dele, e vinham, curiosos, fairá-lo os poldros e burriquinhos, trazidos de seu movimento natural, pasta-pastando, até o vulto estatuificado. Desciam como grandes panos dum catafalco as sombras da noite sobre a terra. Só quando o verrumava o frio ou chamavam por ele, se evadia daquele êxtase à S. Simão Estilista, como lhe chamava por entre dentes o P.e Hipácio Leborinho. – A cabeça já lhe não governa – diziam os parentes fidalgos quando acontecia falarem dele para outros netos de Leovigildo. Sim, não governava como no geral das gentes. Mas era o bom senso comum quanto ao recebimento das rendas e cobrança dos foros. Quem não fosse exacto cumpridor com ele contasse com o meirinho à perna. Lá no
estarrecer a céu aberto, na risa e na chora, no fugir das órbitas morais costumadas, é que se não parecia com mais ninguém. D. Joana Angélica tinha medo dele e vigiava-o de soslaio, tão suspicaz como cautelosa. O padre
fazia-lhe
ambicionava-lhe
figas um
por
baixo
enterro
de
da
sobrepeliz
primeira
quando
classe
com
lhe
uma
falava
centena
e de
colegas, de bons bofes, a entoarem-lhe o De profundis. Uma noite, andava o fidalgo mais misantropo do que nunca, queixoso disto, queixoso daquilo, sem que os médicos o entendessem, resmungando sempre a propósito de tudo e de nada, estavam eles nas rezas: – Por alma de D. Plácido, para que Deus o tenha à sua mão direita, p. n. e a. m. – ouviu um ai que encheu a casa toda. Que ai era aquele que não vinha de direcção determinada, embora lhe parecesse sair dos pés, mesmo debaixo da terra que pisava? – Não ouviram? – perguntou ele interrompendo as rezas. – Ouviram o quê? – interrogou D. Joana Angélica. – Um ai. – Não ouvi. Deve ser o vento, para a mata, nas ramalheiras... – Morreram quantos escrivães há em Portugal – acrescentou a criada de dentro, que não sabia dizer palavra fora do lugar-comum. – Por lá algum mocho – emitiu o padre. – Ou animal de cobrição – opinou o mordomo. Continuaram com as rezas: – S. João guarde as nossas searas... p. n. e a. m. Repercutiu outra vez o ai aos ouvidos do fidalgo. Não o disse, mas pelo movimento dos olhos, o ar de espanto, o hiato pavoroso de que se lhe tomou a boca, que principiava a desdentar, bem se viu que o gemido lhe ecoara no mais
profundo
das
entranhas
para
o
abalar
de
modo
tão
acerbamente
dramático. – Que tem, senhor D. Fernando? – proferiu o padre capelão. – Vossa Senhoria está doente. Vá-se deitar... – Não ouviram? – O quê? – O ai... – Ninguém ouviu. – Pois ouvi-o eu distintamente. Ouvi-o como estou a ouvi-lo ao senhor. Eu o que não sou é surdo. Têm de levar os ouvidos ao ferreiro...
– Pode ser uma alucinação – disse a mulher. – O primo todos estes dias não tem andado bem... A conselho unânime foi-se deitar. Alta noite acordou sobressaltado. A esposa dormia no quarto vizinho com o gato aos pés e foi acordá-la. A luz da veladora deixou-lhe ver o bicho desenrolar-se da bola que fazia, e erguer a garra desembainhada e espreguiçar-se. – Não ouve, Joana? – Ouço o quê? – Os ais... Pôs-se à escuta: – Não ouço ais nenhuns. – Essa agora! Pois eles repetem-se. Parecem, na regularidade com que soam, as pancadas dum relógio. Jesus! Jesus! Abrenúncio! Abrenúncio! A voz do fidalgo era tão pavorosa que ela cobrou medo. Acendeu o castiçal. Que face tétrica a do homem! Olhos desvairados, boca hiante, repetia: – Não ouve?! Pois não ouve?!... Seguiu-lhe a direcção do dedo, que se virava para o chão, e a pobre senhora ouviu. Ouviu um ai apagado, pouco mais alto que um suspiro, mas trémulo e errático, como uma centopeia a procurar as frinchas do soalho. – Sim – disse ela com voz ofegante. – Ouvi... pareceu-me ouvir... – Torne a escutar... E ela tornou a ouvir, não saberia dizer se dentro das paredes, se no ar, se nas próprias entranhas, um ai cavernoso, peneirado, batendo como que asas, sinistro de todo. – Chama-se o padre Hipácio... não é melhor? Eu chamo. Padre Hipácio!... Ó padre Hipácio, Padre Hipácio!!! O grito reboou pelos longos corredores, deu a volta à casa, espavoriu as criadas no sótão, fez tal rebuliço que o gato pulou do leito e fugiu. Dali a pouco
chegava
P.e
Leborinho,
embrulhado
na
garnacha,
por
debaixo,
à
espreita, as ceroilas de estopa com um nastro solto, outro mal atado ao jarrete, e pés nus dentro duns chinelos velhos de trança. – Que tem, senhor D. Fernando, que tem? – Vá-me buscar a caldeirinha de água benta e esconjure-me o quarto. Anda aqui o Diabo. Tornei a ouvir o ai. – Minhocas, senhor D. Fernando, só Vossa Senhoria é que ouve tais coisas.
– Qual o quê!? Também o ouviu a senhora. Ouviu ou não ouviu, prima? – Pareceu-me ouvir. – Pareceu-lhe ouvir... é diferente. – Mexa-se! Ponha a sobrepeliz e esconjure-me a casa. Quem manda sou eu. O padre, irado, rabujando por todos os foles: diabo leve o doido! raios partam o ladrão! – foi à capela pela vestimenta e, ajudado pelo moço dos recados,
o
Larica,
procedeu
ao
esconjuro.
Estava
no
fim
da
cerimónia,
rompeu o fidalgo em grandes gritos, o rosto demudado. – Não ouvem? Caramba, não ouvem? Nem o toque do sino...! E o padre capelão ouviu também o ai, ia jurar que o ouviu. Ouviram-no depois as servas, a criada de dentro da senhora, a mulher do vaqueiro, as mulheres da cozinha, o Larica dos mandaletes. E ficaram todos a tremer e sem pinga de sangue. Todos ouviam aqueles ais, de que não enxergavam lugar provável de nascimento, nem órgão de percussão, e que ecoavam pela casa
toda,
enchiam
o
ar,
evaporavam-se
como
luz
intermitente
para
o
imenso céu. D. Fernando tapava os ouvidos e continuava a ouvi-los. D. Joana ouvia-os agora distintamente. O capelão franzia os lábios: ora os ouvia, ora os não ouvia. Devia ser endrómina do Mafarrico. D. Joana, numa destas horas de ressoação, disse ao marido: – Reconhecilhe agora o tom da voz. É a voz do defunto Plácido... – Também já me tinha querido parecer – disse ele, e ficou a olhar para ela do fundo da consciência, uma consciência agachada por trás de montes e vales de terror e iniquidade. – É a alma dele que anda a monte... – Será, será para castigo dos meus pecados. Ah, irmão, que Deus te receba, te guarde, e perdoa, que eu vou andar toda a vida de joelhos, para que Ele também me perdoe. Perdoa, perdoa, perdoa. Ah! ah! – e chorava e esmoncava-se com todas as imundícies da natureza desmanchada. –
Quer
mais
missas...
–
proferiu
Maria
Angélica
numa
voz
flébil
de
criança, que a ela própria enterneceu pela brandura e piedade de que vinha modulada. – Põem-se todos os padres do Minho a rezar missas por alma dele. Se ele é isso, bem vai. Mas há-de ser isso. Quer mais missas, tem-nas. A mulher não tornou resposta e ele, vendo-lhe os pensamentos decorrer no cérebro gordos e lentos como os bichos da farinha, proferiu: – A prima
está de acordo, pois não está? Vou gastar tudo quanto tenho pelo descanso da sua alma. – Uf? – pronunciou ela. – O ano passado com ofícios, missas, responsos, não chegaram as rendas da quinta. Pois gaste-se o que se puder em missas. Mas não quer acudir outra vez ao sobrinho? Olhe que vai para a cadeia!... – Deixá-lo ir. A esse cachorro não quero acudir, não senhora. Pudesse eu e empurrava-o para o boqueirão do inferno. O que me interessa agora é a alma do meu pobre mano. O traste do sobrinho que se trabalhe! Quem as arma, que as desarme. Vou gastar quanto tenho com a alma do meu mano. Não me diga que não, prima, não diga! Olhe, quem cá fica, cá fica. Estamos velhos. Salve-se a gente das penas do inferno! Ela torceu os lábios num esgar. Apesar do transe que o varava, bem percebeu o que ela queria dizer e não dizia porque tinha medo que ele a esganasse, e tinha razões de sobejo para isso. Queria dizer: – Velho está ele e Satanás, que, esse, há-de trazê-lo a cavalo! Eu não estou velha, não senhor. Lá se vê se o morgado de Lisouros se não dana por mim! Grande vaca!!! Calaram-se, odiando-se de parte a parte. Mas ele levou a sua avante. No dia seguinte, encomendava inúmeros trintários de missas aos abades de S. Paio de Agualonga, de Santa Marinha de Linhares, que era um grande rezador, de S. Mamede de Ferreira, que pronunciava o latim tão bem que parecia a linfa do português, de Salvador de Resende, homem perfeitaço, indigitado para arcipreste. Toda a gente na casa ouvia os ais, e ais eram eles tão atridos, tão do outro mundo, que ninguém de fora quis voltar a trabalhar na quinta. E pouco a pouco,
impelidos
por
um
poder
que
não
tinha
nome,
que
não
tinha
explicação, mas era real e efectivo, foram-se embora os serviçais, despediuse
primeiro
a
cozinheira,
depois
a
criada
de
dentro;
despediram-se
em
seguida os vaqueiros e eguariços. O mordomo pediu que lhe fizessem as contas, e, por uma manhã de frio e névoa, a mãe do Larica, que era de Venade, veio buscar o rapaz. – Vou para a minha mãe – meditou Joana Angélica, olhando à roda e penetrando-se do medo daquele vácuo. Se bem o empreendeu, melhor o fez. Sem dizer nada a ninguém, ela própria aparelhou a égua pigarça e abalou para Calheiros, pouco depois do lusco-fusco da alba, sozinha como uma amazona desenganada.
Quando o fidalgo acordou, na meia manhã, duma hora de sono, estes sonos recorridos de espasmos aziagos, roubados ao Inferno por milagre das forças inextintas da vida, achou-se ao desamparo e mediu o abismo da sua solidão e macaca. – Aqui só, não – disse consigo. – A grande cróia quer-se ver livre de mim. Tem na ideia o morgado de Lisouros. Safada! Correu à cavalariça e selou um cavalo. Dali a pouco galopava no encalço da mulher. Mas ela botava já longe, ou dir-se-ia que era mais veloz que o vento. Quando chegou a Calheiros, informaram-no que D. Joana Angélica tinha seguido ao direito para Vez, onde estavam mãe e irmã. Pediu para lhe abrirem a casa, que se sentia exausto. A velha ama de Joana abriu-lhe a porta, e entrou de rópia pela sala apetrechada com tudo o que diz respeito à lavoura, sacos de feijão, alqueire com rabos de milho, achamboaria, toda a mascambilha agrícola. – Há-de estar com fome – disse a mulher. – Eu vou buscar que comer. Faço-lhe uns ovos com fatias de cobro, quer? Cozeu-se ontem o pão. Vinho, mando por ele à taberna... – Faça lá! Mas, olhe, ande-me depressa... Rodou a mulher. Viu a um canto a corda de encarrar. Esteve um momento cisma que cisma. Pegou dela, meio sorridente; fez um laço; atirou-a à trave e subiu para uma arca. A velha veio encontrar um espantalho com a língua de fora, as pernas a bater ainda uma na outra, como duas baquetas monstruosas no repelão da própria pancada.
X
Foi
Luís
de
Azevedo,
«o
sobrinho
mariola,
o
sobrinho
cachorro»,
empossado na Casa Grande por morte de Fernando de Mendonça. Ia fazer quarenta anos e era um homem vivido. Vivido e para viver. Atarracado, grosso de cinta, grosso de pescoço, orelhas bem pegadas aos temporais, cara cerdosa que amiúde corrigia pelo sorriso, à maneira da onda de sol que, passando sobre o alqueive de Inverno, o ilumina e humaniza, para regressar, desde logo, à catadura álgida que afivelou sua natureza. Nas comissuras, na própria face, havia entalhes ásperos em que se lia claramente a acta duma vida para a qual o mais blandicioso seriam talvez as febres do jogo e os muitos dias de ventre a dar horas. Apesar destes traços depressores e dos possíveis achaques ocasionais, sentia-se nele o homem de vontade, com estrutura de aço, para bater durante bons e rijos anos. A impressão geral, quando se observava de face e se colhia despreocupado do seu natural, era que se estava perante um teso reitre ou, melhor, um capitão de piratas ainda ao corso. Todas estas circunstâncias induziriam, como não, Luís de Azevedo a considerar Romarigães como terra de Canaã. A Casa Grande revinha-lhe de direito, mas um direito torcido a seu favor pelo melhor dos fados. Em consequência tratou de cortar a talante. Sua tia D. Joana Angélica não quisera volver à casa onde não fora feliz e espectros amalandrados lhe enlutavam Calheiros entrada
agora como
nos
o uma
anos,
nenhum especial.
panorama penitente.
murcha
para
dos
dias
Nunca as
prósperos.
ninguém
vaidades
do
Emparedou-se
mais
a
mundo,
viu. não
Estava
fazia
em já
favor
Luís de Azevedo, a primeira vez que dormiu no quarto do solar em que tinham nascido e morrido três ou quatro gerações de Cunhas de Antas, não encontrou fantasmas. Pelo contrário, os olhos alongaram-se-lhe menos pelo panorama da vida vivida do que da vida a viver. Para certa classe de gente, a consciência é uma gaveta fechada de que se perdeu a chave. De modo geral o que lá está dentro não tem utilidade prática. Por isso, a Luís de Azevedo, um pouco desprecatado contra o frescor daquelas paredes de granito, duma grossura
de
fortaleza,
com
o
tecto
em
masseira
e
artesões
de
carvalho
medrado já na mata, a vida se pospunha como lousa de operações. Devia as orelhas
e
era
forçoso
pagar.
Alçapremado
na
herança
do
morgadio,
desbaratara com a largueza de quem se não atemoriza perante nenhuma forma de liquidação. Com picadores e cómicas, ora em Lisboa, ora em Sevilha, e por toda a parte onde lhe acenava o fraldil da estúrdia, ganhara fama de pródigo, algibeira sempre recheada. Agora a matilha dos credores estava a chegar, e já ouvia os ladridos dos galgos mais adiantados. Como calar-lhes a boca? Não lhe sendo possível gravar de mais hipotecas as terras do vínculo, restava-lhe pôr com dono as alodiais, que eram poucas. Mas morgadio como o seu podia comparar-se a velha barcaça que meteria água se lhe bulissem nas cavernas. Desfalcá-lo tornava-se arriscado. Então como, santo
Deus?
estranha, paredes,
Voltando-se
aconchegando à
inspiração
força
de
exequível.
e
os
tornando-se cobertores
consultar Em
o
Bravães
a
voltar
contra
o
na frio
cama que
que
lhe
porejavam
travesseiro,
acabou
por
havia
senhora
solteirona,
uma
era
receber
as
uma
pouco
menos que durázia, tão rica que não sabia o que tinha de seu. Falava-se da Casa de Violeiros como do castelo da Triste-Feia. Poucos se gabavam de que
descesse,
para
eles
atravessarem,
a
ponte
levadiça.
E
esses
poucos
vieram dizer, fosse embora aziúme de despeitados, que a fidalga tomava rapé como um cónego de Braga e todas as manhãs, ao levantar, matava o bicho a cálices de cachaça como qualquer lapuz de bofes incombustíveis. A essa
hora
a
sua
boca,
por
sinal
com
a
melhor
dentadura
deste
mundo,
exalava baforada que ardia como o gás das minas, se lhe chegassem um lume-pronto. E havia mais. Tomada de fúria, a que parecia atreita no auge da carraspana, pegava dum estadulho e varria uma eira de malhões ou uma turma de cavadores se lhe refilassem. Quem houvesse de cometê-la para casamento, teria primeiro que passar por uma prova de força e derrotá-la. Qual ela fosse, dependia do seu capricho ou da maré. Mas em geral, era à
luta
romana
que
experimentava
os
pretendentes.
Neste
certame
havia
qualquer coisa de mítico e legendário, entre barraca de feira e castelo da Madorna, que arrefecia os mancebos tentados pela presença da solteirona, que era deleitável, e então com um dote de arregalar. Entortavam todos o nariz. Quem a levasse já sabia o que tinha pela proa: em casa de Gonçalo mais pode a galinha que o galo, ou triste da casa onde a galinha canta e cala o galo. – Hão-de ser mais as vozes que as nozes – disse para os seus botões, sempre aforismáticos e reflexivos. A verdade é que acordou tentado pela aventura. E um daqueles dias, paramentado de calção de veludo, a casaca do tio, depois de adaptada ao seu cadáver pelo alfaiate de Insalde, verde-mar com botões amarelos, camisa de tufos,
cabelo
encalamistrado,
avançou
afoitamente
para
a
virago
de
Violeiros, de seu nome Silvana Sousa de Meneses, como Édipo para a esfinge. Não eram primos? Que mais não fosse, havia coisa mais curial que render-lhe homenagem e reatar as relações de boa vizinhança que vinham do licenciado Gonçalo da Cunha? D. Silvana andava para a eira no enceleiramento do milho de sequeiro. Na altura
estavam
a
erguê-lo.
Uma
serva
largava-o
ao
sabor
da
aragem,
peneirado duma cesta, às duas mãos acima da cabeça. E o milho caía para o monte, num jorro manso de cascatas, acogulando-se e tilitando. D. Silvana, de
cócoras,
chamiça
de
giesta
em
punho,
coanhava,
apartando
do
grão
reluzente o cisco envolto da debulha. Luís de Azevedo parou à entrada da cancela. Silvana tinha moinha nas sobrancelhas e nos cabelos. Estava em trajo de cote, chambre de chita de ramagens, lenço para os ombros e botas brancas de bezerra. Em despeito da paisanaria, descerrava um ar capitoso e luculento de deusa Ceres, nada temível quanto a objecto de adoração. – Quem procura Vossa Mercê? – proferiu voltando-se sobre a ilharga e encarando-o. – Procuro a senhora D. Silvana – respondeu ele, não fosse por lá enganarse de pessoa. – Sou eu. Já o atendo. Tem de esperar um bocadinho que se acabe de erguer o milho e se recolha. Vejo além umas carantonhas de nuvens e estou com medo que se ferre a chover.
Luís de Azevedo acedeu com a vénia mais prazenteira deste mundo, mas para consigo dizia na linguagem que lhe era peculiar: É-te bem feita, Luís! Tens para pêras. A ninfa é que não parece tão peca como dizem. E que rico enxergão! Pois que tinha que matar o tempo, foi-se adiantando, plantando-se com a sua calça de casimira, o seu sapato de fivela, certo descaro mesmo à espalda da criatura. Ela prosseguiu na tarefa, sem ter ares de dar pela sua pessoa, limpando do cisco teimoso do arolo e de toda a argalha que não voara com a erguedura o gordo e amarelinho grão. No pequeno intervalo, enquanto a serva ia ao primeiro monte encher a teiga e voltava para o cirandar, deixando-o cair bem de alto, virou para ele olhos
espantadiços,
figuravam
de
deusas
tão
grandes
nas
que
religiões
pareciam
os
mediterrâneas,
olhos
das
acentuados
vacas ainda
que pelo
silveiral denso das sobrancelhas, recheias de alimpadura. E carregando a fronte, o que a tornava de Ceres em Palas, lançou a frase que exprimia a sua importunidade: – Mas, afinal, que me quer Vossa Mercê? – Venho cumprimentá-la, senhora minha. Somos ainda primos. Eu sou o morgado da Casa Grande de Romarigães, e tomei agora posse do senhorio. Disse para mim que me ficava mal entrar em minhas terras e lavranças e não vir oferecer a casa e os meus fracos préstimos aos nobres parentes que moram na região. Vossa Mercê, senhora D. Silvana, está à cabeça do rol. Vossa
Mercê
é
minha
quarta
prima,
e
por
minha
avó
D.
Joana
de
Azevedo, filha do morgado da Portela das Cabras e de D. Mécia de Sousa Arantes Padornilha de Castro Rocheta da Nóbrega Gojim de Sousa, senhora do
Couto
de
Gondufe
e
Pico
de
Regalados,
encontramo-nos
em
D.
Sigismunda da Silva Silveira de Sousa, dona do Castelo de Bouro e Honra de Sabariz, que era tia dele e vinha a ser a sua excelentíssima bisavó. – Só sei que meu pai era o morgado de Bravães e minha mãe filha de D. Francisco Teive Meneses de Soás, senhor da Honra de Arentim de Santo Estêvão da Faixa. Mas Vossa Mercê que o diz é porque o sabe. Somos então primos em quarto grau, o mesmo é que uma pitada de azul num rio a correr. Pois viva lá o senhor primo. É então filho daquele perdido homem que se enforcou em Calheiros? Para que lhe havia de dar a tonteira?! – Não senhora, não senhora, era meu tio. – Ah, era seu tio! Eu conheci a senhora sua tia D. Joana Angélica. Deume um livro que andou aí muito tempo por cima das arcas até que as criadas
acabaram de o esfarrapar para comecilho dos novelos ou os ratos de o roer, não sei bem: o Lima, dum poeta – como se chamava ele... Bernardo... Amanhã o direi... – Diogo Bernardes... –
Isso,
isso,
Diogo
Bernardes.
Cantava
as
terras
e
coisas
da
nossa
província. O padre capelão sabia-o de cor e salteado e ainda me lembro dos versos que repetia a propósito de tudo e de nada: Quantos
montes
tu
vês,
tantos
corri,
De
vale
em
vale
andei, de mato em mato, Em busca de um bezerro, que perdi. Junto do Lima, claro e fresco rio, Que Letes se chamou antigamente... Palavra puxa palavra, a rapariga foi peneirando o grão, ela varrendo as zarandalhas com mão automática, e a manhã a rodar veloz e opaca para o meio-dia. No entretanto subiram a carreira duas mulheres de chapelão de palha na cabeça, pé descalço, perna rúbida à mostra, a rebolar a nádega farta por debaixo da saia rota. Traziam sacos, um alqueire, e romperam logo a medir e a ensacar o milho, enquanto D. Silvana e a serva continuavam a erguer. E pouco a pouco os sacos altos e redondos foram alinhando à volta. Grossas nuvens oscilavam mansamente no longínquo horizonte, a modo de grandes caravelões negros, com ameaça de borraceiro. Tilintante, apareceu num cotovelo do caminho, em baixo, o carro da lavoira, puxado por duas bonitas vacas de galhadura erguida, muito dóceis e patudas, decerto para transportar o grão. De facto, Chacim, o abegão, chegou, e olhando para a colunata de sacos proferiu: – Não vão todos de uma vez. Era um homenzinho de meia-idade, também meão de corpo, o rosto picado das bexigas, olhos tão saídos das órbitas e rentes ao nariz que havia neles uma expressão patusca de coleóptero. Despiu a burjaca e pôs-se a atar os sacos. Atou um, atou segundo, e deu conta que eram pesados de mais para as suas forças. – E quem me chega uns demonhões destes ao carro?! – proferiu em voz tartamuda. – Encheram-nos muito! Quero saber onde está o cristão que se avém com eles...! Eu ando derreado das cruzes, não posso. Tentaram as duas mulheres pôr os sacos no carro. Sopesaram o primeiro e olharam uma para a outra. D. Silvana fez sinal à que lhe pareceu mais
robusta: – Anda cá, Rosa! – e, dando-se a mão, deitaram o saco sobre o braço e, amparado de ombro para ombro, foram-no depor na chedeira do carro, onde o Chacim o ajeitou à frente sobre o cabeçalho. Levaram um segundo e um terceiro. D. Silvana portava-se como uma amazona que era, mas
a
mulher
ao
quarto
saco
fraquejou
e
deixou-o
cair.
Desataram
às
risadas. – Tira-se-lhe um alqueire e já vai bem – disse Rosa. – Não se tira alqueire nenhum – proferiu Luís de Azevedo. – Se a senhora prima dá licença, eu ofereço-me para fazer uma perna... Arrependeu-se de frase tão pouco galante, mas homem de coração ao largo pensou que o que estava dito dito estava e por ali não vinha o fim do mundo. Tratou de tirar a bela casaca azul e depô-la em cima da parede, dobrada em três. Silvana olhava para ele com amena fisionomia. Apenas lhe disse e pro forma: – Olhe que se suja... – Não tem mal! Deram-se experiente veludosa,
a
em e
os
mão...
Ele
anatomia dedos
sentiu,
feminina,
direitos
e
com na
bem
a
sua
voluptuosidade mão
torneados.
a
mão
de
dela,
Mediante
um
homem quente
e
pequeno
impulso projectaram o saco sobre o braço. E agilmente, como quando eram crianças e conduziam os companheiros em pulins, chegaram de rópia, um após outro, os sacos ao abegão.
D.
Silvana
suspicácia
ficou
risonha.
a
olhar
Era
o
para
homem
ele
com
forçudo
respeito, que
não
destituído
inculcava?
E,
sem
de ter
coragem de o fitar de frente, foi-lhe dizendo: – Sim, senhor, o primo tem nervo! Nervo duma cana! Sempre lhe digo, não havia muitos capazes de tal áfrica! – África?! Então fê-la a senhora prima, não a havia de fazer eu?... – É diferente. O senhor, como fidalgo, está habituado a andar de costa direita, e eu não faço outra vida. Por gosto, graças a Deus, por gosto! Mas, sim senhor, poucos homens tenho visto assim lépidos com um tal carrego. O
ano passado tive a visita do Ermígio Alencastre, de S. João de Rei, da casa de Verim. –
É
parente...
afastado.
O
nosso
bisavô,
que
morreu
na
batalha
de
Alfarrobeira, casou com uma Alencastre, Aldegundes Restituta de Frejos, e houveram um Sousa Alencastre que combateu em Mazagão e veio a casar com uma Meneses no Couto de Luzio. Chamavam-lhe o Espadagão. Daqui vem o parentesco. – Não sei. Ermígio Alencastre é aquele sujeito que se atirou da ponte de Negrelos abaixo a fugir a um toiro. Veio na ocasião da malhada e quis-me ajudar... Ora, escorregou com o saco e torceu um pé. Esteve para aí uma semana sem se mexer. Quando se apanhou bom, à d’el-rei que foi desastre, a culpa tinha sido toda minha. – Sempre queria ver quem tem mais sustância. – Não, primo Ermígio, comigo aos sacos, não pega Vossa Mercê mais. Para ser eu de novo a causa de estar outra semana paralítico?! Ná! – Então às lutas?... – Às lutas, não é bonito. Olhe, sabe que mais: guarde lá a sua força que eu guardo a minha. – Aposto uma vitela a desmamar se a Silvaninha levar a melhor... – Não aposte que perde... – Aposto e ganho. – Sem botar mais palavra, nem eu, a bem dizer, dar-lhe licença, agarrou-se a mim braço a braço. Em menos de tempo que se leva a fazer o sinal da cruz estava em terra. – Bem se vê, a prima Silvana é uma senhora rija e bem musculada. Eu no lugar do Alencastre apostaria, sim, apostaria, mas sem petulância... – Apostava? Ora essa! Olhe que ainda ninguém me venceu! – Apostava para me deixar vencer... – Assim não era de valha. – Bem, apostava para ter o grande prazer de medir as minhas forças com as da prima. Como manda a lisura. Ela ficou a olhar para ele, a medi-lo, ele a olhar para ela, calado, a tentála.
E
vai,
sem
tir-te
nem
guar-te,
cinturou-o.
Ele
cingiu-se
com
ela
e
apertou-a por sua vez nos braços. Era uma mulher ou uma torre? Uma bela fêmea de carnação indeformável, contra a qual se fundia, sem a penetrar, a rija musculatura dos seus quarenta anos. Arcou com ela e neutralizou-lhe o primeiro arranco, que foi violento, encabritando os tendões e chamando certas energias, não todas, em socorro. Depois, ela meteu-lhe a perna por detrás, e tão-pouco o cambapé lhe deu resultado. Atirou-o para a direita
com
quanto
permaneceu
poder firme
tinha; como
em um
seguida, roble.
atirou-o
Silvana
para
esteve
a
um
esquerda, momento
e
ele
quieta,
como suspensa, a tomar fôlego. E de repente, supremo golpe, embicou-lhe o queixo ao tórax, e ele teve a impressão de que era a carena dum barco que o premia. Estreitou-o, caindo ao mesmo tempo com a fortaleza toda do torso sobre ele. Luís de Azevedo vacilou, começou a vergar, mas uma retorção violenta restituiu-o à vertical. A amazona tinha esgotado os seus golpes particulares. Sorridente, corada do esforço, deu-lhe mais um empuxão, nada parecido com as outras arrancadas. Já não era tal giganta que o deitaria abaixo.
Viu-se-lhe
nos
olhos
que
ela
própria
o
reconhecera.
Ele
então,
cavalheirescamente, dobrou o corpo e deu em terra, arrastando-a consigo. Silvana ergueu-se de um salto e soltou uma boa e estridente gargalhada. De
olhos
no
chão,
pôs-se
depois
a
ajeitar
os
cabelos
às
mãos
ambas.
Arranjou a saia descomposta e sacudiu os coscos da eira. Em volta, as criadas riam a bandeiras despregadas. O abegão acabara de passar a corda pelos estadulhos e, boquiaberto, olharapo de todo, sorria para o fidalgo. D. Silvana murmurou sem malícia: – Sim senhor, o primo é homem para mim. – Assim a senhora prima o queira – murmurou em voz surda, com entono de subentendido. Ela olhou para ele um instante, mas não proferiu palavra. O carro rodou, enquanto as mulheres ficavam a varrer a eira. Silvana disselhe: – Venha daí, senhor primo! Eram horas de jantar e sentaram-se à mesa: caldo de leite com abóbora e feijão vermelho temperado a orelheira de porco e salpicão. Vinho, o palhete alegre e espirrador das suas parreiras e enforcados. D. Silvana comia em silêncio, além do mais porque era mulher de poucas falas, o que acrescia as suas prendas de querubim. Mas sabia escutar com obséquio e rir a propósito, mormente nas passagens em que as anedotas, que Luís
de
Azevedo
contava,
o
requeriam
pelo
chiste
ou
o
salero.
Foram
percorrer a quinta. Luís de Azevedo era menos prático que ela em coisas da horta e ignorava quais eram as espécies de bacelo e sua índole. Mas, em compensação, conhecia as dez receitas de preparar trutas e não se fala de gulosaria doméstica, aprendida, ao que constava, com as freiras bentas de Salvador de Vairão, obrigadas a ovos e baunilha. Também, para a espinhela caída, ela só conhecia unto de cobra, aplicado in loco por fricção. Luís de Azevedo receitou-lhe de sua farmacopeia pessoal unguento de condessa, com base no alambre, como de veado queimado e óleo de raposa velha, tudo
bem condimentado com salsa e alecrim, e ela enterneceu-se. Reparou o astuto gerifalte que a fortaleza estava abalada e prosseguiu no teimoso e doce assédio. Dali em diante na Casa de Violeiros não faltaram mais as perdizes, os juncos das trutas, a perna de javardo. Eram o viático infalível do derrete. Ela mandava-lhe tigelinhas de marmelada ou de doce de chila e boiões de mel, o mel fabricado com flor da borragem e da esteva. Mais umas visitas, uma troca de panelas de azeite e rasas de azeitonas, e as portas da igreja de Romarigães e de S. Salvador de Bravães embandeiraram com os aristocráticos proclamas. Foi um dia de glória na capela de N.ª S.ª do Amparo, esse em que o P.e José Mourinha, pároco aposentado da Cunha que sucedera na casa ao P.e Hipácio Leborinho – o melhor dos capelães se não fora as almorreimas e uma figadeira impossível que lhe azedava os dias – celebrou o auspicioso matrimónio. O digno homem morrera dobrado sobre o papel a aparar a pena de pato para uma homilia. Paz à sua alma de levita, para quem o supremo gozo era um prato de sardinhas assadas com uma litraça de verde! Vieram os zés-pereiras de todo o Alto Minho e quantos ranchos ramalhudos de lavradeiras batiam o saricoté na beira-mar. Comeram-se duas fornadas de pão, os presuntos e chouriços de três cerdos, e beberam-se mais de vinte almudes. O boticário de Paredes gastou quanta arnica tinha nos boiões a consertar as cabeças rachadas no varrer do bródio. Dois abades estiveram às portas da morte, fulminados de congestão. O P.e Mourinha desforrou-se nas almôndegas da dieta hídrica que aguentara no Seminário de Braga, dieta essa que contribuíra para lhe escangalhar a máquina, de colaboração com as rijas pançadas de broa rural rilhadas a paroquiar Corno de Bico. Luís de Azevedo conseguira um empréstimo de certa monta; a consorte afluiu com avultadíssimos cabedais e não se olhou a gastar. A
Casa
hipotecas;
Grande
em
recuperadas
poucas as
semanas
terras,
que,
estava
embora
expurgada anexas
ao
de
dívidas
morgadio,
e
não
faziam parte do vínculo. Ao mesmo tempo renovou os soalhos do solar; ergueu os muros caídos ou desmantelados; captou águas extraviadas; fez, em demais, nas duas Portelas, a aquisição de uns rossios encravados nos da Casa. Uma década decorrida, Luís de Azevedo, para empregar a palavra dum rendeiro, fizera da Casa Grande um brinquinho. Podia, ao mesmo tempo, subir por oiro para a cama. Para cúmulo, sua mulher D. Silvana saíra meiga e macia como o veludo. Em agradecimento a Deus e modo de lhe
exprimir a sua devoção, levou-a a Guadalupe. Era lá no cabo do mundo, e depois de voltas e reviravoltas, seges, estalagens, comidas sápidas, mas que não iam ao seu paladar, regressou a casa radiante e exalçada como fada ao seu bosque. Havia lá alguma coisa que valesse o remanso da Quinta do Amparo?! Aconteceu no entretanto que uma novilha parisse pela primeira vez e com os amavios não deixasse entrar ninguém no estábulo. Era uma linda estampa de vaca, comprada a peso de oiro na feira de Paredes, e tinham a cria em grande estimação. – Ninguém lá vai, é boa! – exclamou D. Silvana. Têm medo...? Vou lá eu... Se bem o disse melhor o fez. O senhor estava para Bravães. Vai, entrou a porta
para
dentro
e
foi
avançando
na
loja
e
chamando
por
ela
que
a
conhecia: – Galante!... Galante!... A vaca deixou-a aproximar-se, muito quieta, olhos fitos, e senão quando – até
pareceu
obra
do
Diabo!
–
ergueu-se
da
cama
onde
estava
com
o
bezerrinho e precipitou-se de ímpeto sobre a boa senhora. Jesus Maria, as pontas da galhadura, que eram afiadas, espetaram-se-lhe na barriga como estoques. Era mulher alta, encorpada, foram logo as duas. Só Nossa Senhora do
Amparo
lhe
podia
valer,
mais
ninguém
na
terra!
Quando
Luís
de
Azevedo volveu da jornada, chorou lágrimas de sangue. E disse: – Matemme aquela vaca traiçoeira! Vamos, dêem-lhe com uma machada entre os cornos... – É mal empregada! – Qual é mal empregada!? Há-de pagar o que fez... Abateram o animal. – E a carne, senhor meu amo? – A carne enterrem-na. O Chico Pelaio, que era um marau de primeira, fez menção de enterrá-la e pela calada da noite foi vendê-la em bufarinha a Valença e à Torre. O trágico é que a finada lhe deixava dois filhos, um rapaz, tenro nos anos, que era o seu retrato, e Mécia, uma menina meio gaga, arreganhadinha e melancólica.
XI
Com a paixão a que o moveu o imprevisto desenlace, ou porque isso estivesse no corrume das coisas, tornou-se intratável e assomadiço. Um amigo que o foi ver e era médico disse-lhe: – Tudo isso é atrabílis. O amigo Azevedo precisa de tratar da figadeira. Vá até Bravães para mudar de ares; coma-lhe legumes frescos da horta e deixe correr o marfim. Andou dias e dias de fronte dobrada, cismático, momento a momento a deitar
a
língua
de
fora
ao
espelho:
Morro
desta?
Não
morro?
Os
mezinheiros asseguravam-lhe que era mal que lhe haviam rogado. Resolveuse a ouvir a opinião dos facultativos, além do amigo. Entre vários, todos discordes e conspícuos, os que lhe pareceram merecer certa audiência, é provável que por falarem mais a seu gosto, receitaram-lhe banhos de mar. Um récipe destes, para quem habita no sertão, não é tão fácil de aviar como parece à primeira vista. Os bezoárticos mais raros não seriam mais caros. O governo
de
casa
repousava
todo
sobre
os
seus
ombros,
não
falando
no
processo do inventário, ainda pendente nos tribunais, que reclamava uma atenção constante. Mas houve que decidir-se. Pois que no problema da sua saúde estava implícito o futuro da casa e o dos seus, tanto mais que o rapazola
dava
indícios
exuberantes
de
cabeça
no
ar,
gastador,
nada
circunspecto e pouco amigo do trabalho, tratou de cuidar do rico corpinho. A Primavera encontrou-o não apenas carregado de boas disposições como em transe de lhes dar provimento. Arranjou uma governanta para casa, mulher dos seus trinta e cinco anos, galega pelo sangue, batida do mundo, mas senhora de reais qualidades, que ficara na rua por morte do padre de Mozelos, de quem fora ama durante uns dez anos. Ao passo que mandava trastejar casa em Moledo, ia ordenando os
quindins da vida agrícola – lavras, tulhas, haveres, gados, caseiros – de modo a escusarem o mais possível a mão reguladora do dono. Nada omitiu, cravelhos nas cortes, toros nos serradoiros, plantio de árvores, pingas tiradas nos telhados. Emprestou dinheiros com boa fiança e tratou de aferrolhar o remanescente – era um fortunão – bem aferrolhado. Uma noite foi-se à capela e levantou a pedra de ara do altar. Por baixo, na cavidade que seu avô mandara agenciar secretamente – como os faraós faziam com os sepulcros – quando
na
guerra
da
Independência
quis
pôr
os
capitais
a
recato
dos
espanhóis, gente de olho vê, pé vai e mão pilha, amochilou a sua taleiga de dobrões e mais de uma rasa de pintos. Fora deixava apenas com que custear à beira-mar o passadio de morgado que se preza, e ocorrer às despesas do rapazote,
que
no
Porto
pagava
boa
propina
a
vários
padres-mestres
e
doutores da mula-ruça, embora o que ele cursava a valer, segundo dizia o correspondente, era moina e bargantaria. Uma bela manhã, com a filha, mais
D.
Maria
englobavam
Carantonha
várias
funções,
de
Montenegro,
cônjuge,
a
governanta,
cozinheira,
aia
de
em
quem
Mécia,
mais
se o
capelão, meteu-se por Covas e Caminha para a praia salvadora. Levava os dois servos fiéis, tão fixes como resolutos, de trabucos aperrados, que o itinerário era lôbrego e, ao que corria, infestado de bandoleiros. Mercê da escolta ou do santíssimo Anjo da Guarda, que noutros tempos costumava acompanhar os morgados para onde fossem, e tanto mais que levava ali à ilharga o representante de Deus na terra, o capelão P.e José Mourinha, homem duma cana para a bisca samarreira e as procissões da alma, deitou sem novidade a Seixas, donde em menos de uma hora atingiu a casa que olhava o mar das alfombras da floresta, crescida no areal. No dia seguinte os servos repartiram para Romarigães com os alforjes vazios e trabucos ao ombro,
que
Moledo
defendia-se
por
si
sobre
a
estrada
de
longo
curso,
patrulhada pela milícia. Todas as semanas os abegões vinham da quinta farta com produtos da horta
e
da
salgadeira,
bem
assim
com
a
broa
cozida,
que
o
morgado
desdenhava de pão que não saísse do seu forno, com o cabrito e o leitão já assados, quando não era a perna de vitela, se matavam na vila de Paredes, ou de javali, caçado na mata. Deste modo se aligeiravam as despesas de hospedagem à beira-mar. Ora um sábado os estafetas do abastecimento faltaram.
–
Homem
esta,
alguma
assucedeu!
–
andou
toda
a
santa
manhã
a
exclamar, e, cada vez, mais desassossegado, esse dia nem dormiu a sesta. Impaciente, teve que mandar pedir meia broa emprestada ao vizinho, o Licínio Lanhelas, seu companheiro de ócios, se quis migar a tigela do caldo verde. No domingo, moita igualmente. Cresceu o seu espanto. Volta e meia ia espreitar
das
dunas
se
não
se
avistavam
pelo
caminho
de
Covas
os
andarilhos providenciais. – Não há dúvida, alguma assucedeu. Os meus criados são exactos. As pontes não caíram... Só se os matassem!... Quem sabe lá, numa hora ardeu Tróia. Afinal
na
segunda-feira,
a
hora
já
adiantada,
apareceu
Manuel,
o
vaqueiro, a dizer que os ladrões, alcovitados pelo Luís Montesinhos, um escravo que lhe dera na feira grande de Famalicão, à conta do que lhe devia, um tal Veloso Marujo, negreiro e chatim de sinistra fama, tinham assaltado a Casa Grande e feito mão baixa sobre tudo que pilharam ao alcance dos cinco
mandamentos.
Como
fora?
A
horas
de
ceia,
já
tinham
batido
as
Trindades, vieram os almas do Diabo, encostados às paredes, uns agora, logo outros, e subiram à torre de S. Tiago. E, pronto, os sinos, assim, nem sinal puderam dar, quanto mais tocar a rebate! Fizeram o mesmo com a sineta de N.ª S.ª do Amparo. Vai, ao depois, uns quantos, para lá de vinte, entraram de rompante pelas salas dentro. Viraram tudo com o de baixo para cima. Vasculharam nos quartos, nas lojas, na cozinha, e foram tirando para o pátio roupas, ferramentas, apeiros, quanto milho havia nas tulhas, e a égua. O fidalgo escutava pálido e ansioso. – E à capela foram...? Levaram alguma coisa...? – Saiba Vossoria que sim. Levaram... – Meu Deus! Que levaram! – murmurou em voz desfalecida. – Levaram as galhetas. – Ah, as galhetas! Ah, as galhetas deixá-las ir, com os diabos! Só...? – O cálice tinha-o a Paulina Mamuda escondido na corte das vacas, debaixo do palhuço... – ... debaixo do palhuço...?! Finória!... ah!... E que mais? – Da capela levaram a mais das galhetas, sim senhor, levaram o prato das galhetas.
Agora
saiba
também
que
o
Chico
Caramelo
está
a
morrer.
Pilharam-no a entrar para a cardenha, desprevenido de todo. Queriam à fina
força que lhes dissesse onde estava o dinheiro. Sabia-o ele? Tanto como eu! Pois prantaram-no dobrado de costas para o chão, patas ao ar, e picaram-lhe as solas dos pés à navalha,
como
quem pica
cebola.
Não dizes?
Pega!
Depois picaram-lhe a bandoga. Nem o cepo dum carniceiro. Tais feitios lhe fizeram que está a dar as últimas. Levaram-lhe ontem a Extrema-Unção... – E o Luís Montesinhos, esse cachorro? – O patrão nem acredita! Foi-se aos cabides e vestiu a niza do tio de Vossoria, que Deus tenha. Selou depois a pigarça e quando se viu no pátio, já a amanhecer, atirou-lhe duas gaitadas que a bicha até voava... – Gado? Roubaram muito? – Não, gado não roubaram. Não tiveram tempo. Enquanto procuravam e não procuravam o dinheiro e faziam aqueles tratos ao Caramelo, clareou o dia. Lá lhes deu baque e, antes do sol-nado, estavam ao largo. – Não se sabe donde eram? – Supõe-se que é a quadrilha do Sete Facadas. O alma de cão traz assoldadados quantos malandros como ele há no Cerdal e Labruja, mas ninguém o diz em voz alta. Têm medo que se pelam. Mas há pior, fidalgo, há pior... O homem coçava a cabeça e punha os olhos no chão, sinal de interdito. Bem se via que tinha coisa para dizer, mas hesitava. Que poderia estar por detrás daqueles engulhos e medo atávico de vilão? – Há pior, quê? Desembucha, homem, ninguém nos ouve... – Um dos ladrões trazia venda nos olhos. Era um homem alto, grosso... e parecia conhecer a casa, por dentro e por fora, como às suas mãos. – Não disseste que o Montesinhos é que dirigia o assalto?... – Hum, se fosse só esse...! – Então? – Saiba Vossa Senhoria que se rosna que foi o sobrinho de Vossoria, o senhor Mem de Mendonça, que trouxe o Sete Facadas... Sem Judas na quinta, ninguém lá entrava! Luís de Azevedo calou-se, mas em seu íntimo aquele encoime condizia com
o
que
rezavam
do
sobrinho:
um
valdevinos
capaz
de
todas
as
torpidades. Não valia a pena por agora deitar vozes a gaiteiros. E limitou-se a dizer com refincado mau humor: – Há-de-se apurar. E tu onde é que estavas, meu pedaço de asno?
– Onde é que eu estava? Onde queria o meu amo que estivesse! Os ladrões eram mais que as mães. Contei passante de cinquenta. Que havia eu de fazer? Eu não lhe dizia: O fidalgo arranje trabucos para a quinta. Olhe que duma hora para a outra, quando menos se precata, tem o Sete Facadas à porta...
Deu-me
ouvidos?...
Lembra-se
do
que
me
respondeu?
O
Sete
Facadas é do meu partido. Comigo não se atreve. – Bem te percebo, poltrão! Meteste-te em copas... – Meti-me em copas... Meti-me, sim senhor. Meti-me no Olho Marinho, ao fundo da mata. Queria que lhes saltasse à frente para hoje já não comer pão?! De lá tosquei tudo e ninguém me toscou. Luís
de
Azevedo,
à
força
de
perguntas
e
respostas,
pôde
avaliar
do
montante do roubo. Dez mil cruzados não pagariam o dano. Vamos com a caipora, o principal tinha escapado às unhas excomungadas! Foi por isso mesmo que o viram tomar as suas disposições a sangue-frio, quase de cara alegre. Despachou o padre Mourinha, depois de instruído do que havia de fazer: medir dois alqueires, do milho que estava no espigueiro, à mulher do Caramelo; uma quarta à Paulina Mamuda, e dar parte à justiça. Estava no Desembargo um seu parente; era preciso ir na peugada do Montesinhos. Por ele é que se podia pôr mão na quadrilha. Não havia tempo a perder. Partiu o mensageiro e, como do mal o menos e em primeiro a saudinha, prosseguiu Luís de Azevedo nos banhos do mar. Ia no vigésimo primeiro, quando correu a notícia pavorosa: os franceses tinham entrado por Almeida e
desciam
a
marchas
forçadas
para
Lisboa.
Por
ali
fora,
nem
faca
em
toucinho. E agora que fazes, que hás-de fazer, Luís? Não levou grande tempo em consultas. O Licínio disse-lhe à puridade, chamando-o para fora do grande babaréu que ia à beira do Camarido: – Homem, vá depressa vender o gado e os cereais. Desfaça-se disso! Tudo a que aqueles demónios possam
deitar
os
galfarros
está
em
perigo.
Eu
nem
um
bispote
quero
conservar de meu. Vendi umas coisas, enterrei outras... vou passar o resto! Luís de Azevedo entroixou a roupa, dispôs em canastras os trastes da copa e cozinha, e não aguardou que viessem buscá-lo os seus carreiros de Romarigães. Contratou uma sege e despediu. Calculava o Licínio, que sabia a cartilha de todas as tranquibérnias e maroscas de cor e salteada, que o dente do invasor levaria tudo raso e que onde pisassem não ficava palha que desse grão.
Assim que Luís de Azevedo se viu no Amparo, à socapa foi desfazendose de tudo aquilo a que eles se pudessem agarrar, famintos, ou destruir, raivosos. Primeiro do gado cavalar, embora a preço muito arrastado, que os chalantes pressentiam já o descalabro do negócio; a seguir, do cingel das vacas; da vara dos cevados; depois dos cevados, do milho e do verdeal. Perdeu meio por meio, mas ainda foi sorte. Em seguida procedeu a igual operação em Bravães, onde tinha a legítima da esposa. Isto feito, tomou-se do susto de desamparar a quinta, sabendo que os franceses, onde encontrassem o vácuo, tinham-no por acinte, e os bens do paroquiano
pagavam
as
favas.
Onde
não
havia
que
roubar,
estragavam,
derretiam, punham o lume. Por outro lado, as vidas humanas para eles valiam menos que os bochechos de água que apanhavam para o cantil nas fontes
das
ribanceiras.
Abalar
estava
bem,
mas
para
onde,
santo
Deus?
Pensou em refugiar-se na Cabração, que fica lá no sovaco da serra da Arga, onde só o fumo das lareiras indica que há povo, e os lobos andam de roldão com
a
gente.
franceses,
Mas
era
acossados
seguro?
pelos
Em
Bravães
habitantes,
ou
tão-pouco.
Essa
espraiando-se
sarna
pelo
dos
mundo
à
Braga,
a
maneira das epidemias, não deitariam até os altos? À
força
de
procurar
arquiepiscopal.
Era,
assistia
de
dentro
um
além
portas.
valhacouto, disso, A
a
cada
não
cidade passo
achou
melhor
primaz os
sinos,
das as
que
Espanhas.
Deus
campainhas
das
irmandades, as goelas dos chantres e dos meninos do coro nas igrejas, as procissões pelas ruas, chamavam por ele. Muito pegado havia de ele estar no sono, para não ouvir os aflitos. Depois, se os franceses quisessem derramar sangue, a gente era tanta que alguém havia de escapar. Era mesmo possível que eles próprios se cansassem; o número era uma defesa; a pluralidade das coisas, barreiras dumas para as outras. Em emergências daquelas valia mais estar no meio da multidão do que isolado no matagal. Assim meditou, e decidiu transportar-se com Maria Carantonha e a filha para Braga. Os seus dinheiros, que eram caudalosos depois de acrescidos das últimas vendas, onde escondê-los porém? Não teve coragem de ir enterrá-los no meio da mata, ao toro dum sobreiro, nem de metê-los numa parede, porque podia perder-lhes o sítio. Podia também vir um mateiro e dar-lhe na cabeça – embora a hipótese ocupasse no cálculo de probabilidades o lugar ínfimo da escala – para cavar. Sabe-se lá! Podia, quanto à parede, esborralhá-la um terramoto
e
fazer
o
mesmo
um
caçador
para
tirar
um
coelho.
Não
era
seguro.
Acabou-se,
deixou-o
debaixo
da
pedra
de
ara,
lá
no
fundo
do
buraco, recoberto de cascalho e de argamassa, à protecção de Deus. Decerto o Diabo não ia dar ali com ele. Não escapara ao olho vivo dos quadrilheiros do Cerdal!? Se esses, que estavam ao corrente das tramóias e hábitos dos patrícios, não haviam fairado o esconderijo, teriam os franceses melhores ventos? Partiu, se não tranquilo de todo, quite com os escrúpulos da consciência quanto a escolher paradeiro idóneo para o seu numerário. Em Braga, viveu durante algum tempo com relativa quietude. Não saía de casa, obrigado pela gravidez da governanta, a que era preciso providenciar a horas. Bem andou porque, mal nasceu um menino, pôde sem tir-te nem guar-te ir depositá-lo à roda. Era o segundo daquele conúbio com Maria Carantonha. Bem lhe clamara
a
pobre
mulher,
filha
do
nobre
galego
D.
Telmo
Iraizoz
de
Montenegro que se homiziara em Portugal por ter morto um padre. – Deixe-me este filhinho, Luís da minha alma! Não mo roube, e passo a vida a adorá-lo de joelhos!... – Fizeste a mesma choradeira com o padre de Mozelos? Hum? – Juro-lhe que o senhor padre de Mozelos nunca praticou actos desses. Um menino que tive dele nasceu morto. Toda a gente o sabe! Qual, teve de fechar o coração a tais brados, que a voz da fidalguia, os interesses do morgadio e a sua comodidade pessoal falaram mais alto. Para que se tinha inventado, se não para acudir a estes percalços dos morgados e da gente honrada, aquela tramóia caridosa da roda?! Soube depois que levara o crianço um cirieiro da Rua de Trás da Sé, gente de alguns teres, mesteiral, que lá ia governando a vidinha como Deus quer. Menos de ano andado, o estado de enervamento em que o precipitou uma série de coisas fora do normal induziu-o a bandear-se com os fanáticos das assuadas. Atrás dum energúmeno, de Cristo alçado, clero, nobreza e povo clamavam contra os maçónicos e pedreiros-livres que haviam vendido a nação aos franceses. Depois, teve medo e ninguém mais o viu. A insurreição séria lavrava porém de Norte a Sul e propagava-se às aldeias desde a Póvoa a Melgaço. Entretanto
anunciaram-se
os
franceses
de
rota
batida
para
a
Roma
portuguesa. Na rua volveu a uivar mais desesperada a multidão indómita, enquanto nos templos, círios e velas acesas, se bradava misericórdia e se pedia a intervenção do Senhor. E aconteceu o milagre: a fera derrancada, a
besta do Apocalipse do Loison, o maneta infernal, alcançara Mesão Frio, mas voltou para trás, não se arriscando a subir até Quintela pela velha estrada do vinho do Porto. A acalmia porém teve pouca dura. Com o ano de 1809 reapareceram os franceses. Desta feita vindos pela Galiza, chegavam já os cavalos a beber a água do Minho quando as milícias abriram sobre eles um fogo desabalado: pancadaria do medo a torto e direito. Então, contornando a província por Leste, baixaram das portelas transmontanas em direcção ao Porto. Soult era, por temperamento ou cálculo, mais moderado que os outros marechais
de
França
que
comandaram
as
tropas
de
invasão
e
procurou
reprimir as suas feras. Chegou mesmo, à semelhança das abelhas que batem as asas à porta do apiário,
a
dar
lugar
com
suas
anaçadas
atitudes
a
que
um
hausto
de
refrigério aliviasse em seus transes a terra acalcanhada. Dado o seu génio clemente e generoso, o melhor era a gente entregar-lhe corpos e almas. E uma
embaixada
dos
36
maiores
do
Distrito,
tonsurados
e
bacharéis,
banqueiros e industriais, foi ao Porto dizer-lhe: – O nosso rei fugiu para o Brasil e é um covarde, um traste, um biltre indignamente ungido de Deus; é provável que nas âmbulas só houvesse azeite rançoso. Ninguém lhe tinha respeito,
a
mulher
fartou-se
de
lhe
sujar
as
barbas.
Arranje-nos
outro,
Mossiú, que nós aceitamo-lo. Mas arranje-no-lo depressa, que isto de povo sem um reizinho é como cego sem bordão. E aqui para nós: bem empregado pontapé que Mossiú Junot lhe deu na bunda! Agora diga-nos: Quando é que nos arranja um sucessor...?! Nós não podemos passar sem rei, não podemos, venha ele donde vier, de casa ou de fora, feito ao torno ou filho duma saca de maganas. Tome nota, Mossiú... O duque da Dalmácia viu-lhes os rostos contorcionados pela angústia e o olhar dúbio; ouviu suas palavras pressurosas a jurar pelo pai, pela mãe, por Cristo – e avaliou à justa do que valia aquela delegação de carneiros. Teve dó, teve nojo?! Limitou-se a despedi-los com irónica amenidade e duas palavras de falso agradecimento, em nome do Imperador. Entretanto a revolta, que vinha lavrando por todo o País, alcançou as regiões pusilânimes, dispostas a todas as transigências. Luís de Azevedo disse
mal
da
sua
sorte.
Por
onde
os
franceses
passassem
ficava
terra
queimada, ensopada do sangue e baba da fera. Maldito fosse o suevo ou o neto de Pelágio que riscou pelas faldas da serra da Arga e à banda da
Labruja aquele caminho das Pedras Finas para cabras e montanheses, e se tornara o mais calcado de todos entre os vales minhotos e limiense! A céu aberto, entretanto, Loison estripava os cónegos bracarenses e as amas dos cónegos; as beatas e as regateiras da praça; merceeiros e operários; lançava contribuições de guerra e tomava reféns. No Bom Jesus, os soldados o menos que faziam era esborrachar o nariz às personagens da via-sacra ou jogar a péla com as suas cabeças. Iam-se pelos solares da cidade e seu termo e,
depois
de
esvaziar
as
salas,
as
tulhas
e
adegas
do
que
tinham
de
aproveitável, deitavam-lhes o fogo. Ardiam, democraticamente unidos no fadário, como
palácios
lhes
e
casebres.
marchavam
no
O
propósito
encalço,
mal
era
fazer
tinham
deserto.
tempo
Felizmente,
para
deglutir
e
devastar. E, não vendo subterfúgio, Loison pôs-se a espicaçar para a frente a sua horda de diabos, acossados de uma banda por Silveira, da outra por Wellesley. A Espanha era o fojo de abrigo e corria para lá, esfandegando sempre. Labruja ardeu como um archote; Romarigães foi pilhado, e na Casa Grande um pelotão da coluna em fuga procurou dormida por uma noite. Na manhã, quando os clarins tocaram a reunir, andava a soldadesca a procurar pelos cantos e recantos do solar coisa em que cevar o dente. Arrombaram arcas e arcazes; destroçaram os poleiros e, em grande escarcéu, divertiramse a matar a bala uma ou outra galinha desgarrada; nas cortes não deixaram uma ovelha tinhosa. Saquearam a capela e, como nada se lhes afigurasse digno
de
jogando-a
tomadia, como
escaqueiraram
malha
de
as
imagens;
chinquilho;
subiram
partiram ao
a
púlpito
pedra e
um
de
ara
deles,
quando se cansou de parodiar um padre a pregar o sermão, atirou com as guardas a terra. Chegou entretanto um veterano da primeira invasão e, mais sabido da índole peninsular ou mais psicólogo, disse para os camaradas: – Este raio de fidalgos são católicos até os dentes e estão persuadidos de que há uma Providência que vela por eles mais que a mãe que os pariu. Vejam bem. Aqui na capela, em sítio onde menos se pensa, no confessionário, pia da água benta, debaixo da escada, no coro, por detrás do altar, é que eles são capazes de esconder o pognon. Desataram a demolir o que dentro da capela era fácil de abater e pudesse servir de esconderijo. E um deles foi desanichar por debaixo da pedra de ara, brita solta e caliça, o tesoiro de Luís de Azeedo. Um hurra homérico, maior que todas as vozes juntas de oradores, de salmistas, de celebrantes, canto gregoriano ou música coral, que ali ressoavam desde 1618, quando foi
sagrada a capela, estrugiu no recinto, fazendo tremer em seus nichos S. Pedro, S. Paulo e Nossa Senhora do Amparo, padroeiros da Casa Grande.
XII
O primogénito de Luís de Azevedo morreu afogado no Douro quando a ponte
de
barcas
Igualmente naqueles
não
se
rompeu
resistiu
tempos
de
aos
ao
peso
baldões
peste,
fome
da a e
gente
que
a
que
fugia
família
guerra,
a
dos
andou
menina
franceses.
condenada, raquítica
e
arreganhadinha. Luís de Azevedo, quando trouxeram a notícia de que o corpo do filho fora revessado por uma onda aos areais de Matosinhos, dobrou
a
cabeça
e
chorou.
Chorou
atrido
e
amargurado.
Deus
tinha-o
punido implacavelmente em seus infinitos pecados. Infinitos, sim, mas não contra ele e a sua Igreja. Tudo estouvamentos da juventude. Jurara alguma vez o seu nome em vão? Não cumpria as práticas que ordena a Santa Madre Igreja a todo o fiel católico: munir-se no tempo santo da Bula da Santíssima Cruzada; confessar-se e comungar pela Páscoa da Ressurreição; aborrecer e odiar os inimigos do seu credo e negadores da verdade inteira, revelada, judeus, Ingleses, Tudescos? A morte do filho era um duro golpe em sua prosápia e cálculos de vida futura. Já o passamento da menina fora um alívio para ela e para o mundo. Bem fizera Deus em chamá-la, ao Céu, onde ficaria a rogar por ele. Mas, habituado àqueles cinco-reisinhos de carne flácida e invertebrada, deixara em sua vida o perfume inesvanecente duma haste
de
lúcia-lima
que
tisnasse
com
o
muito
sol.
E
longas
semanas
respirou, condensado na atmosfera da Rua de S. Geraldo, onde trastejara moradia, um hausto afogadiço de morte. E agora? O morgado, segundo a lei da sucessão, ia parar às mãos daquele seu sobrinho, Mem de Mendonça Soares, por alcunha o Mãe da Onça, tal como o apodo deixava prever, bicho traiçoeiro,
pandilha
emérito
e
poço
de
vícios
no
quinto
grau.
Era
este
mesmo sobre quem pesava a suspeita de ter guiado para a Casa Grande a
quadrilha do Sete Facadas, que, além de dar a morte ao vaqueiro, fizera mão baixa sobre quantos géneros havia nas tulhas, pratas e roupas nos arcazes e armários. – Melhor não a armava o Diabo! – matutou com os seus botões. – É verdade que a história se repete? Eu também me fartei de dar cabeçadas, mas a tanto não desci. Emendei-me a tempo. Este há-de acabar a pernear na forca. Gozar-se do morgadio, nem que eu venda a alma a Satanás! Tinha enjeitado dois filhos, um menino e uma menina, ambos filhos de Maria Carantonha de Montenegro, e entreviu a salvação por ali. Na manhã da noite em que depositara na roda do Convento de Nossa Senhora da Conceição
o
rapazinho,
pôde
informar-se
de
quem
o
fora
buscar:
um
honrado e conhecido cirieiro que tinha loja a quatro passos da igreja de Nossa Senhora a Branca. Esta tabuleta o proclamava: Velas, círios, pés, mãozinhas, e mais anatomias de cera. Aniceto do Bento Lado. De tempos a tempos, ia em exploração pelo sítio e lá via o miúdo. Não que o chamasse, solicitada a voz do sangue ou nutrisse preocupações do seu destino. Interessava-lhe tanto como unha negra a que empurrasse do dedo para fora a unha nova. Curiosidade, sim. O crianço ia medrando a bom medrar, muito vivo e esperto, os olhos pretos e grandes da mãe, olhos que nem estorninhos às cerejas, de seu talvez o cabelo sobre o ruivo e o queixo voluntarioso. Vira-o a primeira vez a burrinhar com a chucha na boca, e o ranho
como
um
pavio
pendente,
por
entre
as
pernas
dos
fregueses,
e
causara-lhe nojo. Em Braga, no Inverno, com tanta água pelos taludes, sem falar na das pias bentas, o ar mefítico e salitroso dos claustros e igrejas, nevoeiros
de
incenso,
geravam-se
epidemias
de
mormo,
um
mormo
contumaz e ecuménico, que resistia aos chás mais carregados de salsaparrilha e electuários do Curvo Semedo. O menino devia estar sob o cutelo desta epidemia, donde o monco amarelo que lhe escorria pelo queixo e o fez desgostar da paternidade. A segunda vez foi encontrá-lo com uma tarasca na mão, fazendo um ruído ensurdecedor, já limpo e muito gordinho. O cirieiro, dobrado sobre o balcão, com mãos para a frente tais as mandíbulas da vacaloira, e uma mulheraça ao lado, que devia ser a esposa do dito, olhavam para ele de ar enlevado e ditoso. Nem beatas diante do Menino Jesus. Tivera sorte o catraio, e nisso via um sinal da bondade de Deus para consigo e a honra do seu nome.
A questão agora era que lho restituíssem. Tinha-lhe posto sinais, mercê do que esperava que o cirieiro, que devia ser homem prático e afeito às realidades
do
vale
de
lágrimas,
se
não
mostrasse
relho
nem
difícil.
Satisfaziam-se as despesas com a criação, tinham-se em boa nota todas as suas exigências, remunerava-se em suma, condignamente. A operação, mesmo assim, revestia-se de certo melindre porque embora fosse corrente porem-se os filhos ilegítimos na roda, com o que se poupava o escândalo no seio das famílias cristãs – o escândalo, mais nocivo que o próprio pecado que a Igreja tratava como o escalracho – o facto não deixava de envolver um certo vitupério para com os enjeitadores. Coonestado, sem dúvida, in jure, continuava a repugnar às leis da consciência. Fazer filhos e criá-los implicava, além do respeito pela reprodução humana, o respeito pela mulher e por si próprio. Enjeitá-los era fugir à responsabilidade de manda tão supremo, fora portanto da moral a que são obrigados todos os indivíduos.
Implicava
além
disso
uma
história
pregressa
abominável
de
gozador, escravo das paixões e fornicário. Demais deste óbice, todo de dignidade pessoal, o cirieiro podia negar-se a entregar-lhe
o
menino.
Nada
mais
humano
que
o
digno
casal
haver-se
tomado por ele de verdadeiro amor paterno. Estas paixões não estão fora da lógica do coração. A voz do sangue? Acaso não se tratava antes duma entidade muda, incógnita, incapaz por isso mesmo de ter eco verdadeiro? Mas se o lojista se deixara tomar de amor pelo pequeno, implicitamente havia de querer a sua felicidade. E a felicidade dele não estava em ser restituído
ao
autêntico
pai,
rico,
nobre,
homem
de
peso,
amanhã
seu
sucessor no morgado e nas honras? Não valia mais que ficar amarrado ao cirieiro mais pintado deste mundo, embora ele lhe deixasse toda a receita pingada em dezenas de anos do bolsinho dos devotos e fiéis? Portanto, o bom senso mandava-lhe que fizesse o sacrifício do seu egoísmo, se tal sentimento existisse. O cargo que agora ocupava na comarca de Braga, ouvidor dos contos de Entre Douro e Minho, obtido de S. M. no regresso do Brasil, a título de indemnização pelo que sofrera em seus bens com a invasão – a embaixada ao duque de Dalmácia, de que fizera parte, havendo passado em julgado – permitia-lhe breve ressarcir-se do descalabro a que chegara a Casa Grande com o roubo praticado pelo Sete Facadas e o saque dos franceses. Tinha esperanças
que,
mercê
dos
réditos
da
função,
que
eram
pingues,
o
seu
herdeiro havia de encontrar o vínculo na devida forma. E o herdeiro era aquele menino e não outro, filho de Maria Carantonha de Montenegro, uma vez recebida por legítima esposa, e declarado como nascido no período anteconjugal. Legalizado o consórcio, verificava-se no descendente legítimo, por falecimento dos filhos da primeira mulher, a sucessão ao vínculo. O cirieiro seria homem para opor-se pois ao corrume natural das coisas, donde derivaria a felicidade do menino e, com ela, o sossego dos pais?! Quanto a receber a Maria Carantonha de Montenegro por mulher, era coisa assente em seu foro. Havia seis anos que vivia com ela, não poderia apresentar uma razão de queixa justificada. Não lhe trouxera primícias de nenhuma espécie, mas era uma excelente mulher. Fartara-se de dar tombos, havendo, estava em dizer, nascido com má estrela. Quando seu pai e mãe, homiziados em aldeolas de Trás-os-Montes, não tinham uma fatia de pão para comer, ela prestara-se
a
servir
com
os
fidalgos
da
Murça
de
Panóia.
Mocinha
inexperiente da vida não admitia que abusassem dela. Desenganada com um desses valdevinos e sempre debaixo do aguilhão de prover aos pais, passou para as mãos do abade de Mozelos, sempre velho frascário ainda que meio arrebentado do vício e comezaina, que a elevou à categoria de ama. Da mancebia com o padre pouco se apurava, a não ser que ela continuou a ser a mesma
e
solícita
filha,
remetendo-lhes
quase
todas
as
suas
soldadas
e,
fazendo-lhes, com o consentimento do abade, todo o bem que era possível. Por seu alvedrio e ajuda se instalaram em Valadares, a dois passos, onde o velho Montenegro, sempre com os olhos na querida Galiza, cuidava do andamento do processo em que estava envolvido em Salvatierra. Bateu a hora em que foi chamado à Divina Presença o dito abade de Mozelos, depois
dum
ceote
de
lampreia,
regado
a
vinho
dos
Arcos,
na
tasca
do
Chacim em Infesta. Maria Carantonha viu-se outra vez no descampado. Foi então que, por indicação dos parentes de Ferreira, Azevedo se decidiu a torná-la para governanta e aia de seus filhos. Ia ao tempo nos trinta e cinco anos e, em despeito dos baldões, estava ainda fresca e os bonitos olhos e a brandura do gesto cativavam quem a via. Servir em casa de homem só, no equador da vida, bem sabia a pobre o que significava. O seu leito seria o leito ocasional do senhor. Não resistiu sequer, nem se fez de novas ou rogos. Considerou
aquela
função
inerente
à
outra.
A
hora
crucial
de
tal
conformação foi quando houve, a bem da honra do nome e interesses dos sucessores
do
vínculo,
que
enjeitar
os
filhos.
Tanto
chorou
que
se
lhe
secaram os olhos. A sua existência era um rosário de resignações e aquela fora mais uma. Luís de Azevedo, não obstante os bons argumentos que militavam para que o pequeno lhe fosse entregue sem grandes complicações, temia-se e decidiu cometer o negócio por largo, insinuando-se na praça. Apresentou-se ao cirieiro na qualidade de freguês: – Desejava para a minha capela de Romarigães velas de altar – disse ele. – Velas com que se celebre o santo sacrifício da missa... – Temos de cera pura... e com sebo de primeira. Qual deseja Vossa Mercê? Se a capela em questão, que ainda não tivemos a honra de fornecer, é templo para muita solenidade, talvez lhe convenha mais de cera pura. E o que gasta S. R. o Senhor Arcebispo Primaz, D. Frei Miguel da Madre de Deus... – Pois dê-me também de cera pura. Aí uma meia dúzia de velas. Os castiçais ainda não estão todos desprovidos. Então o senhor... como é a sua graça...? – Aniceto do Bento Lado, seu criado. – O senhor Aniceto do Bento Lado não conhece, pelo que me diz, a capela de N.ª S.ª do Amparo em Romarigães...? Umas três léguas acima de Ponte de Lima? Não conhece? É boa... Pois em todo o Minho não há no género templo mais bonito. O cirieiro confessou com humildade a sua indesculpável ignorância. No caminho de Braga para Valença, passara pouco além de Ponte de Lima. Fora um dia à serra da Arga, com sua mulher, à festa de Santa Justa, que ali tem ermida. Fica lá nos corutos, para cima dumas ruínas que dizem ser do castelo da Formiga. A milagrosa Santa justa era advogada das mulheres que são maninhas. – Cuidei que a Santa justa, advogada das mulheres estéreis, era em S. Pedro dos Arcos? – Há lá nos Arcos uma Santa justa de muita virtude para cais casos. Mas parece que a Santa da Arga lhe ganha aos pontos. Por essa cristandade fora não rareiam tais padroeiras. – Pois, senhor Bento Lado, se algum dia os passos o levarem para ali, bata ao ferrolho que vê um templo que faria honra aqui ao Campo de Santa Ana. Sempre há uma pinga para os amigos...
O honrado comerciante agradeceu. Mas não pôde ir mais longe nas suas efusões distraído por uma freguesa que vinha medir o filho para pagar a promessa que fizera ao Bom Jesus de lhe levar um círio da sua altura se escapasse às bexigas. E ele retirou-se depois de saldar a encomenda sem uma palavra de regateio, o que era caso. Voltou dali a dias, tendo espreitado a hora em que o menino andava a saltaricar pela loja: – Ora salve-o Deus, senhor Aniceto do Bento Lado. Digo bem: Bento Lado, ou Lado Bento? – E mais a quem vem. Não se enganou, Vossa Mercê, Bento Lado é como meu padrinho, que era cónego, entendeu que eu me devia chamar. É um nome como outro qualquer. Mas Vossa Mercê que manda? – Hoje hei-de querer velas para uso doméstico. Tem, já se vê, por onde escolher...? – Temos, sim senhor, temos muito sortido... Enquanto o cirieiro ia pela fazenda, Luís de Azevedo pôs-se a fazer festas ao rapazinho que andava aos pulins pela loja. Ia nos quatro anos, mas incutia mais idade ao que estava de forte. A mãe cirieira trazia-o muito limpinho e asseado. Justilho de veludilho por cima do calçonico de flanela, rachado no traseiro, por onde espreitava a carne muito rubra e fina. Calçava uma soquinhas de sola de pau com que fazia uma trabucada heróica. O cabelo despenhava-se-lhe em caracóis pelos ombros à S. João Baptista, como era então muito de moda na Roma portuguesa. Os olhos de Luís de Azevedo todos se riam na contemplação do pequerrucho, em cujos traços procurava a mãe Maria Carantonha e a si próprio: boca severa, malares escorridos, tez sobre o ruivaço, e aqueles olhos negros da mãe galega com avoengos na Andaluzia moirisca, de horizontes improfundados. Luís de Azevedo pôs-se a fazer-lhe festas no queixo, que ele recebeu com ar de poucos amigos. Via-se que era o seu tanto arisco, sinal do recato e solicitude com que era tratado. O cirieiro presenciava com manifesto agrado a blandícia que fazia ao menino aquele grave senhor e um luaceiro de satisfação paterna banhava-lhe o rosto, todo escanhoado à maneira eclesiástica. – É seu filho, senhor Aniceto? – perguntou Luís de Azevedo, pondo de remissa
o
Bento
Lado,
onomástico
que
pressentira
ser
o
calcanhar
de
Aquiles do cirieiro. – Hum!... Dá as mesmas voltas – e fazia-lhe sinal em como não queria ir mais longe em explicações diante do menino.
– Sim, senhor, sim, senhor! – respondeu Luís de Azevedo, com o que significava ao cirieiro que compreendia a sua reserva e media até onde chegava a sua explicação. – Vossoria quer então velas para se alumiar em casa, não é verdade? S. R. o Senhor Arcebispo Primaz prefere dumas que eu lhe vou mostrar. Não fazem raça de fumo e nunca mais se gastam, que o pavio está muito bem orçado... – Toda esta cera é obrada em sua casa? – Saiba Vossa Mercê que sim. Temos oficina própria... – e com um gesto da mão – lá, nos fundos da loja. Emprego quatro homens e duas mulheres. Vossa Mercê não é de Braga? Estou a ver que não é. Pois este negócio faz-se aqui desde longa data. Meu avô foi cirieiro do S. R. o Senhor Arcebispo Primaz D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Meu pai foi-o igualmente de D. Frei Caetano. Duas glórias da Igreja bracarense. Eu sou-o do actual D. Frei Miguel da Madre de Deus, que viva por muitos anos e bons. Pois se fosse de Braga, Vossa Mercê saberia que se lavra aqui cera desde tempos imemoriais e que no Minho todo é falada a minha casa como oferecendo as melhores condições de preço e seriedade. Neste meio tempo aparecera uma mulherzinha que pedia um rolo de pavios. O cirieiro deixou-a diante do balcão, enquanto perorava, e levava jeito de se esquecer se ela em voz quezilada lhe não dissesse: – Faça favor de me aviar, senhor Aniceto, que a minha senhora precisa dos pavios para ir ao terço... O cirieiro foi aviá-la e Luís de Azevedo volveu a acariciar o menino. À maneira do gato, que vai com a pata, rápida e fugaz, dá a sapatada, e a recolhe
instantaneamente,
assim
ele
fazia
uma
fosquinha
no
toutiço
do
pequeno e fingia-se indiferente, como se não fosse o autor da travessura. Tentou a mogiganga duas, três vezes, mas o pequeno, embora desse sinal de perceber, não se deixou tentar pelo divertimento. À quarta vez, olhou para ele com olhos rabiosos e directos, como se dissesse: «Você vá lá fazer festinhas a seus filhos, que eu passo muito bem sem elas, feitas pelo senhor que eu não conheço nem quero conhecer!» E muito sério, como se lhe quisesse expressar que com ele não tirava palhinha, enfiou por baixo do balcão
e
senhorilmente
desapareceu
entreaberta que dava para os fundos.
no
interior
da
casa
pela
porta
O cirieiro, a quem não escapou o manejo do rapazinho, deitou às risadas. Luís de Azevedo, com pouca vontade de sorrir, sorriu também. – É muito selvagem – disse o cirieiro. – Há pouco perguntou-me Vossoria se era meu filho. Se quer que lhe diga, não é, mas é como se fosse. Agora eu não queria dizê-lo diante do menino, que é muito sentido e percebe tudo à légua. Não imagina Vossoria que finório ele é. Criança assim até causa espanto. – Então não é seu filho? –
Não
é,
mas
dá
as
mesmas
voltas.
Tanto
eu
como
minha
mulher
queremos-lhe de morte. Fui buscá-lo à roda do Convento de N.ª S.ª da Conceição, por uma manhã de taró, santo Deus, que até as pedras estalavam com o gelo. Trouxe-o embrulhado no gabinardo, ao calor do peito e debaixo do bafo, para não arrefecer. Coitadinho, era um torrãozinho de carne. A minha Felismina não lhe dera Deus a fortuna de ter filhos, e fazia anos naquele dia: quarenta e cinco, que ainda hoje parecem trinta. Dissera-me a chorar: Para que te fartas de trabalhar, homem da minha alma, se não tens filhos a quem o deixes? E se tu fosses à roda buscar-me um menino? Fiz-lhe a vontade, embora contrariado porque estas coisas às vezes desatam em sarilhos. Não é tanto o embeleco que trazem. Suponha o meu rico senhor que a certa altura o desalmado dum pai, que não teve honra nem vergonha nem consciência quando atirou com o filho para as ervas, nos salta ao caminho a dizer: – Largue lá o crianço que é meu! Felizmente não houve até a data, nem haverá, espero em Deus e em minha Nossa Senhora a Branca, que me tocou na pia baptismal com a benta coroa, o mínimo rumor. Isto era menino de fidalgos que cometeram a proeza e a sepultaram para todo o sempre. Luís de Azevedo esteve vai e não vai para desatar o saco, mas acobardouse. Entretanto entrou um cónego, alta potência da cidade metropolitana, e lá se perdeu o fio da conversa. Maria Carantonha de Montenegro, assim que Luís de Azevedo a pôs ao corrente do que meditava quanto ao filho e do plano que empreendera, agarrou-se-lhe ao pescoço a rir e a chorar, tão louca e despropositada, que teve de a sacudir para fora de si senão esganava-o: – Tem juízo, mulher! Já estou arrependido de me abrir contigo. – Ai, filho da minha alma! E o senhor D. Luisinho que me não dizia nada! Porque não mo dizia!? Sabe então onde está o meu menino?! Deixa-
me ir vê-lo, deixa? Mostre-mo de longe. Eu não digo quem sou, nem chus nem bus, juro-lho! Faço de conta que me não pertence. É só pôr-lhe os olhos em cima, como quem vai de passagem! – Tudo se fará a seu tempo! Por agora, mulher, calma! Calma! – Mas que mal tinha? Eu não proferia nem uma palavrinha! Já deve estar muito crescido, pois não deve? Está a fazer quatro anos. Nasceu, lembra-se? – no sábado anterior ao Natal, que esse ano caiu a uma quarta-feira. Estava a nevar. E olhe lá, meu senhor, da menina não há notícias? Não há. E então porque não há-de procurá-la? Diga lá? O meu Telmo é bonito? Oh, deve ser muito bonito. Mas deixe-me ir vê-lo, por Deus lhe peço... por alma de seu pai...! Deitou-se de joelhos, rojou-se, tornou-se a rojar. Luís de Azevedo acabou por
aborrecer-se
entrou
em
si
e,
e
dar-lhe
um
cabisbaixa,
empurrão,
lenta,
com
o
movimentos
que
Maria
solenes,
Carantonha
se
acolheu
ao
cubículo onde dormia. Luís de Azevedo apresentou-se uma bela manhã de Primavera na loja do Aniceto. Acabava o cirieiro de destrancar as portas. As beatas saíam da igreja
de
Nossa
Senhora
a
Branca
isoladas
e
aos
magotes,
rosário
ao
pendurão, de nariz no ar, investigando do que teria acontecido na praça enquanto elas encomendavam a alma e o mundo a Deus Nosso Senhor. Algumas vinham ainda a amortiçar os pavios no folhareco de couve, depois de
o
acenderem
à
missa
por
uma
intenção
particular.
O
largo
estava
inundado de sol. Uns pobres pirangas, descalços, rotos, peito felpudo à mostra, dois deles com barretina de tropa na cabeça, encostavam-se ao muro voltado
a
nascente
e
ali
se
aqueciam,
regaladamente,
da
sua
miséria
cancerosa. Eram os pedintes daquela igreja. Mas a quentura solar valia a côdea de pão, a maçã-costa e as duas castanhas piladas que as devotas sacavam da patrona de permeio com algum queixal, desprendido a roer a broa, às vezes uma cabeça de víbora, prodigioso amuleto, ou os cincoreisinhos, que, partidos em quatro, abichavam lá de quando em quando. E elas
passavam
sem
eles
as
acometerem
com
a
mão
estendida.
Tentado
também pelo soalheiro, um cão vadio veio deitar-se-lhes ao pé, mas de focinho em riste e olho gázeo, que a lapada da mão do pobre, nas horas de
desenfado, não é menos alceira do que a da gente que anda satisfeita consigo e com Deus. Luís de Azevedo, ao passo que depunha em cima do balcão os pacotes que trazia debaixo do braço, salvava: – Benza-o Deus, amigo e senhor Aniceto. Rijinho? – E mais a quem vem. De saúde, vai-se andando, vai-se andando. Vossa Mercê fero como um carvalho lá da quinta onde tem a capela bonita? – Olhe que nem por isso. A hemorroidal não me larga. É achaque de família. – Porque não vai às Caldas Santas? – E as ocupações? Quem é capaz de me substituir?! Pudesse eu! Ainda ontem vieram ter comigo para deitar fala nas festas que a cidade vai fazer em homenagem à Monarquia Absoluta restaurada. D. Miguel, até que enfim, é rei de Portugal, rei dos corpos e rei das almas. Custou, mas o direito, senhor
Aniceto,
tem
muita
força.
Muita
força!
Os
pedreiros-livres
e
malhados andam todos de monca caída. – Agora é que era acabar-lhes com a raça! – Deixe lá que já apanharam para a caixa! Nem tugem. Mas, como ia dizendo ao amigo Aniceto, vão-se fazer grandes festas... Tanto profanas como de igreja... – Deus o ouça! Há muito que se não celebra na nossa Sé um lausperene, ou um tantum ergo, dignos de Braga. – Dignos de Bracara Augusta, sim senhor. Mas agora vai havê-las de arromba. É o que lhe digo. Prepare a cera... – Venham elas que cera não há-de faltar. – E quer saber: além de me pedirem para botar discurso – continuou Luís de Azevedo depois duma pausa, ocupada em intuspecção toda gozosa – querem-me para representante às Cortes. Bem vê, é nesta altura que se hãode escolher os representantes... Não me largam... querem que eu vá... são mesmo carraças! – Vá, senhor, vá! Honras dessas, sim, vale a pena. Honras e proveito. Eu cá dizia logo: presente! Entrou
uma
freguesa,
a
Deolindinha
do
Pópulo,
e
Luís
de
Azevedo
proferiu, ao tempo que deitava mãos aos embrulhos: – Então o menino? O
cirieiro
compreendeu
o
alcance
daquele
gesto,
aliás
bem
intuitivo,
combinado com o olhar afectuoso, e respondeu: – O menino está a fazer oó.
– A esta hora? – Admira-se! Acorda mal luz a telha, e põe-se com um gazeado que nem o gorjeio dum passarinho. Levantamo-lo às sete... Sete é a nossa hora, a hora das primeiras missinhas. Traquina a manhã toda... e às dez já está com o galhinho ferrado. – Pois deixe-o dormir à vontade. Enquanto dorme, está a crescer. Eu tenho tempo. Olhe, trago-lhe aqui uma lembrança... Gosto muito dele... Trago-lhe aqui um carapucinho de lã de camelo, uma cometa de barro de Barcelos e dois burrinhos. Também são de louça os burrinhos. Mas deixe-o dormir, eu espero... – e ia desembrulhando os pacotes. O cirieiro pôs-se a olhar muito atento para ele, convencido de que não o notava, e volveu a dizer: – O meu menino a dormir é um barra. Quando lhe dá o João-Pestana, leva horas a fio na soneca. Sabe-se lá quando acorda!? Não se sabe e não vale a pena Vossoria esperar. Traz-lhe uma corneta e uns burros...? Bem haja, bem haja! Olhe que ele escavaca tudo numa volta de mão. – Para escavacar é que eles foram feitos. – Pois sim, sim, mas não se incomode. Bem haja! Graças a Deus não lhe faltam brinquedos. E Vossa Mercê, não há-de precisar de nada cá da casa? – Ainda estão inteirinhas as velas que levei... Ele a proferir estas palavras e o pequerrucho a romper pela porta do fundo e a encostar-se ao balcão da parte de dentro, batendo o chinelo e risoteiro ao dar de cara com os burrinhos. Luís de Azevedo, assim que o viu, agarrou-o pelo bibe. O menino puxou e deu um trambolhão. E logo o Aniceto, que de princípio parecera encavacado, correu a erguê-lo sem que o fidalgo o largasse. – Deixe o menino, olhe que lhe pode arrancar o bracinho... – murmurou o cirieiro para Luís de Azevedo. O menino, ou porque a mão de Luís de Azevedo lhe pesasse, ou porque não lhe fosse simpática aquela preensão, desdenhando da oferta, rompeu a fazer beicinho. Dali a pouco estava num berreiro pegado que, sacudindo a senhora Felismina na oficina, onde dirigia o pessoal, a projectou ali em péde-vento. Era uma mulher alta, de fortes encontros, que não devia ter sido desengraçada na juventude, as tranças dos cabelos ordenadas em almofada sobre a nuca, o peito, mais sobre o esfalcado que cheio, apertado num colete
de atacadores de muitas ramagens, o que contrastava com as mangas da camisa, de linho caseiro, em sua branquidão. –
Então,
meu
filho,
então,
ninguém
te
faz
mal!
–
exclamou
ela
estendendo-lhe os braços. – Este senhor não é a coca. Olha... olha... este senhor traz-te aqui uns burrinhos... O pequeno continuava a chorar desabaladamente e o cirieiro disse para a mulher: – Tira-o lá para dentro. – Não, não tire o menino lá para dentro. Deixe-o aqui... Pronunciou estas palavras com voz a tal ponto alterada que o cirieiro retorquiu: – Deixe-o aqui... Para quê, se não queda mal o perguntar!? – O menino é meu. É meu e quero levá-lo comigo... A mulher, sem dizer palavra, arrancou do menino e, ao safar-se com ele para
o
interior
da
casa,
suspendeu-se
no
traço
da
porta,
que
mantinha
entreaberta, meio corpo dentro, meio corpo fora. Luís de Azevedo viu-lhe os olhos fuzilar ódio mortal, ao passo que o pequeno se agarrava muito a ela, os bracinhos em volta do pescoço, a cabecita reclinada ao seio. O cirieiro fizera-se branco como a cal da parede e, ao cabo duma boa pausa, emergindo do rio tempestuoso dos pensamentos e saltando no espaço para o mais perto que se lhe entreluzia da realidade, balbuciou: – O menino é seu?! Ah! ah, deixa-me rir. O menino é nosso, meu e de minha mulher, trinta vezes nosso. Quem o salvou de morrer naquela manhã de geada, porque afinal na roda poucos são os que escapam?! Quem foi?! Quem o acalentou?! Quem o vestiu?! Quem o traz medrado e limpo?! Olhe que até uma cabra comprámos para lhe dar leite. Queria então tirar-nos o menino, hem? Não queria mais nada?! Com que direitos, seu homem?! – O menino é meu e vou-lhe dar os sinais com que foi depositado na roda. Trazia ao pescoço uma bolsinha de seda azul com o nome: Telmo, escrito num pedaço de pergaminho. Diga lá: não é assim que se chama? – Chama-se Telmo, chama, e que prova lá isso!? Vossa Mercê está farto de mo ouvir nomear...
– Na mesma bolsinha trazia também um dobrão de oiro embrulhado num papel. O papel dizia: Para as primeiras despesas. O mais virá depois. É assim ou não é assim? – Não encontrámos lá nada, assim Deus nos salve. O que lá trazia era um dente
de
alho
e
cinco
pedras
de
sal.
Sim,
senhor!
Trazem-no
todos
os
enjeitadinhos – exclamou de lá a mulher em voz traindo uma reticente surpresa, entremeada de notas altas de indignação... – Os cueirinhos eram de cambraia com debrum azul... – Qual cambraia nem meio cambraia! Vinha embrulhado em estopa, uma toalha grossa de estopa, que ainda para aí anda. Tanto assim que o corpo
dele era uma chostra. – Então é porque na roda roubaram o exposto... – Roubaram quê, não roubaram nada! As freirinhas eram incapazes dessa má acção. Ainda mais com aquela que então era madre-rodeira, e ainda é, no Convento de N.ª S.ª da Conceição! Toda a gente diz que em Braga não há maior santa. – E quem me garante que a madre-rodeira estava no acto? Pode ser que fossem as criadas que roubaram o exposto... – Roubar-nos queria agora o senhor, mas engana-se – regougou a cirieira. – Nem que viesse o senhor alcaide-mor com os quadrilheiros todos que há em Braga. Então não queria lá ver, uma pessoa toma-se de amizade por uma criaturinha destas, apaparica-o, tudo é meu santo-antoninho onde te porei, e às duas por três rompe um figurão e diz: Dê-me o menino que é meu! Doulhe mas é uma grande cachaporra. Com que direito? Diga lá...?! – Senhor Aniceto do Bento Lado e mais senhora, estou disposto a pagarlhes sem regatear as despesas que fizeram com o menino e a recompensá-los ainda, com a maior largueza, pela ternura e amor que lhes mereceu. Mas tenho de o levar, custe o que custar. O processo está em andamento no Juízo dos Órfãos. Vale mais darem-mo ao bem... – O menino é nosso, muito nosso! – exclamou Felismina, olhos acessos em ira. – Fique sabendo duma vez para sempre que o não leva. Nem que tivesse
de
atirá-lo
a
uma
fogueira.
Ouviu
bem?
Hem,
achou-o
bonito,
queria-o, lá sabe Deus para quê! Não será Vossa Mercê daqueles que fazem óleo bento com os meninos?! Não foi por lá algum mezinheiro do Diabo que lhe deu essa receita para se curar do gálico ou de qualquer mazela igual?... Luís de Azevedo viu que perdia o tempo a discutir com gente a tal ponto obsessionada. O primeiro passo mesmo assim estava dado. O tribunal faria o resto. – Eu é que fui um asno chapado em dizer que o menino tinha sido exposto. Quem me mandou a mim ser sendeiro?! – murmurava o senhor Aniceto com desespero. – Oh, homem, não te consumas, o menino é nosso, muito nosso. Este indivíduo deu já sinal algum certo de como é dele?... – No ombro deve ter um oval preto. Ora verifique... – Surriada – exclamou a mulher – não tem lá nada! Mas nadinha. O corpinho dele é liso e branco como um mármore. Quer ver?
Puxou do casibeque do menino para lho desvestir. Nesta altura Luís de Azevedo acercou-se no intuito de se certificar por seus olhos. Mas logo o menino
rompeu
num
choro
tão
destemperado,
tão
lancinante,
que
se
suspendeu a verificação. Sem embargo, Luís de Azevedo deitou-lhe a mão ao
pulsinho,
dizendo
com
voz
entrecortada:
–
Peça
por
boca,
senhora
Felismina, e deixe-me levar o menino. Peça por boca... – Qual peça por boca! Num safanão arrancou o pequeno do colo e empurrou-o para dentro de casa. Fechou-lhe a porta em cima e cresceu para Luís de Azevedo. Tudo isto foi feito em menos tempo do que se leva a dizer. Em cima do balcão estava o côvado com que Aniceto estabelecia a altura das tochas, erguendo-o a prumo contra o costado dos penitentes. Com ele em riste caiu sobre o fidalgo, em recta como um nebri sobre a presa. A cólera porém cegou-a e o primeiro golpe bateu em falso. Luís de Azevedo não esperou o segundo, e aos
reculões,
braços
como
as
asas
dum
moinho,
foi
evacuando
o
estabelecimento. Quando se apanhou na rua, largou a passo estugado, olhos pávidos à retaguarda, não corresse o dragão atrás dele. Ela a atingir o traço da porta, e já ele ia largo fora a grandes pernadas. Felismina limitou-se a fazer-lhe uma figa, a modo de quem esconjura o Tentador, uma das grandes e permanentes personagens do seu tavelado como de todo o braguês que se preza.
XIII
Nos meados de Abril de 1828, por um destes dias de Primavera tão amenos que nada compensa a um sujeito deixar a sua casa e a sua horta, nem mesmo para dar entrada no Paraíso, entre coros de anjos, a derreteremse em musicatas, e virgens, em bandos, a sorrir por detrás de seus leques, partiu D. Luís de Azevedo para a capital. Ia representar na feliz aclamação de D. Miguel, rei absoluto, o braço do povo da velha terra de Coura. De
sege
nova,
com
o
seu
capelão,
o
P.e
Tirteu
dos
Santos,
não
o
escoltavam mais que dois homens a cavalo, pois que em Ponte de Lima se ajuntaria à comitiva dos procuradores locais, Alexandre Malheiro de Sousa e Meneses e João de Calheiros e Meneses. Ambos eles eram seus parentes na quarta avó materna D. Briolanja Aiala de Pina Fajardo e Meneses. E, léguas adiante, estava determinado agregar-se-lhes ainda a representação de Barcelos. Compunha-se do capitão-mor António de Matos Faria Barbosa e Joaquim de Magalhães e Meneses, também seus vigésimos sextos primos, um
na
linha
varonil
pelo
morgado
da
Portela
das
Cabras,
o
outro
na
feminina por aquela malfadada dama que no tarde se deixara engodar pelo D. Juan sertanejo, senhor de Lisouros, dama essa da estirpe dos Meneses de Cantanhede de que derivava a Casa do Outeiro Meão. Portanto, tudo gente de velha cepa sueva e parentela interfluminense, capazes de se fazerem costas, bolsa e mesa comuns na algarada sobre Lisboa. O fidalgo partira radiante consigo e com o mundo, circunstância de todo o relevo pelo que transluz de tranquilidade e saúde do corpo e alma. Deixara os negócios bem parados e desafrontada de demandas e nuvens a atmosfera da Casa Grande. Mercê dos bons ofícios de seu tio, Monsenhor Alexandre da Cunha, arcediago da Labruja na Sé Metropolitana de Braga, com muito
crédito no foro eclesiástico em despeito dos seus oitenta e cinco janeiros, pudera ainda conduzir a bom termo a legalização de seu filho Telmo. Mas o caso dera muitas voltas e reviravoltas, com infinitas peripécias, enfadonhas umas, deliciosas outras. A primeira vez que Luís de Azevedo recorreu à alçada do tio, sempre na sua poltrona de braços, a espinha em arco de volta abatida não menos pronunciada que o arco da Porta Nova, disse-lhe ele: – Com quem estás metido, homem de Deus!? Com o Bento Ladro! Mais te valia teres dares e tomares com uma quadrilha da Falperra. – Não me diga isso, reverendíssimo tio. Considero o Aniceto do Bento Lado um homem de carácter. A maneira como tem tratado o menino, como lhe tomou amor, como pretende obstar a que lho leve, tudo isso não são senão indícios de bons sentimentos. – Ah, ah! Isso não quita, sobrinho. Isso não quita. Por Bento Ladro o conhecem eclesiásticos e leigos, curas e fregueses. Está podre de rico a vender cera. Vê lá tu, sobrinho, a vender cera, uma coisa de nada, que se desvanece em fumo! Ouvi dizer que usa de artes subtis no negócio, quer a pesar as velas e mais produtos, quer a temperar a verdadeira cera, a cera das abelhas, que apenas essa é digna de alumiar a Deus e aos santos, com sebo de carneiro e de cabra, que se vende nos açougues por uma tuta-e-meia. – Custa-me a crer... – Eu te digo... Uma coisa é o lojista no seu comércio, outra esse lojista na vida ordinária. O Aniceto pode ser ladro nos pesos e homem honrado fora do balcão. Estas ambiguidades são próprias do bicho homem, muito mais nesta nossa grande Braga, onde mal Deus aparece à direita, salta logo o Diabo à esquerda. Está um, pergunte-se onde ficou o outro. Para o cirieiro ser o pai putativo que tu admiras, forçoso é que meta a unha na minha algibeira, na dos meus colegas, na das beatas e dos devotos em geral. Deus lhe perdoará, que é pai. Mas vamos lá ao que interessa. Que deseja então o meu ilustre sobrinho? – O tio dá-se com o P.e Urbano? Dá, que não há ninguém na cidade que não
tenha
vindo
ao
seu
beija-mão.
O
padre
Urbano
é
o
confessor
da
Felismina do Bento Lado. Esta é que é a giganta que guarda o pequeno no castelo. – Não sei se ela dará muitos ouvidos ao Urbano. Em todo o caso, o Urbano tem ronha por sete. E que havia ele de fazer?
– O que havia de fazer? Persuadir a criatura a entregar-me o menino. Às boas, que à má cara sei eu que lho tiro mais tarde ou mais cedo. Falta ouvir umas duas ou três testemunhas, e pode ter-se o processo por concluso. Não temo o desfecho. Nada mais que o depoimento das freiras franciscanas é o bastante para determinar no Juízo dos órfãos uma sentença a meu favor. Mas eu não queria ir para aí. Só em último recurso. Além de que me repugna tratar o caso de arrepia-cabelos, tenho pressa em decidir. Uma sentença percorrer?
tem O
sempre cirieiro
apelo.
já
me
Depois,
mandou
quantas
advertir
alçadas
que
tem
não
muito
haveria
a
dinheiro
a
queimar. Pois eu não o tenho. Não o tenho, e, que o tivesse, não era para o gastar em demandas, com meirinhos e escrivães. – De modo que...? – De modo que o meu fito é entrar em composição com o homem. Eu pago, sem olhar, a conta que houver por bem pedir-me. O menino fica, como hei-de
dizer,
fica
metade
deles,
metade
meu.
Têm-no
um
dia
ou
uma
semana, eu tenho-o outro dia e outra semana. Além disso, a minha casa élhes
franqueada
com
cama
sempre
pronta
para
eles
dormirem
e
mesa
sempre posta. A Casa Grande de Romarigães está-lhes igualmente às ordens para lá se instalarem às temporadas ou de modo definitivo. Percebe o tio? Eu dou tudo, faço tudo, presto-me a todos os arranjos que me não estorvem de reconhecer o pequeno como meu filho e, por conseguinte, meu herdeiro. Deixar ir o vínculo para o Mãe da Onça, que induziu a quadrilha do Sete Facadas a assaltar-me a casa e a matar-me um homem, por nada deste mundo! – Tens carradas de razão, embora me doa ver a lanceta a escarnificar em gente do meu sangue. Esse Mendonça é a nossa vergonha. Uma nódoa no melhor pano cai. Vieram-me dizer que está regenerado, ou, por outra, que é o cabecilha dum bando de absolutistas que tem amolgado as costelas a muito malhado... – Se assim é, nunca as mãos lhe doam! – Sim, mas há que desconfiar do zelo de mercenários. No caso, se os malhados cobrirem o lanço, passa-se para eles. Mas voltando à vaca-fria: há então que catequizar o Bento Ladro. Sim, sim, pode ser que pegue. O Bom Ladrão também veio ao relho. Em mando chamar o P.e Urbano. Mas tens que untar-lhe a pata, sobrinho... – Ora essa, untam-se-lhe duas patas...
– Presente de comes e bebes. Tens mel na quinta? Pois se tens, manda-lhe uma quarta de mel. O mel pelos beiços sempre deu o seu resultado. Muito mais cá com a gente que usa saias, naturalmente lambareira. E ele passa por um guloso de marca. Monsenhor largou o seu sorriso casquinado, miudinho, levemente cínico, filho directo da libertinagem que Voltaire pusera a correr umas dezenas de anos antes, espuma tão fugaz do entendimento que quase se tornara uma das muitas boas maneiras de sociedade, clero compreendido: – Se queres estar seguro do despacho, junta-lhe uma quarta de azeite e dois centos de ovos. Os
ovos
continuam
a
ser
–
depois
que
o
bem-aventurado
S.
Bento
é
comanditário do pasteleiro em face, tanto para ovos chocos como para ovos frescos – moeda de todas as transacções da nossa igreja primaz. – Pois terá isso tudo. Já? – Não, não, depois. Eu vou mandar chamar o Urbano. Capacito-me que, postas as coisas nesse pé, o cirieiro não hesite: dum lado meio menino, do outro menino nenhum. A coisa arruma-se. E arrumou-se. Arrumou-se a contento de todos. E, contra o negro juízo ou
juízo
Labruja
tendencioso e
má-língua
de
Monsenhor
número
um
da
Alexandre cidade
da
dos
Cunha,
arcediago
arcebispos,
da
Aniceto
do
Bento Lado recusou-se aceitar qualquer soma à conta das despesas que fizera
com
o
pequeno.
Mas
lá
a
abrir
mão
dele
noite
e
dia,
nem
um
momentinho. O menino era seu e de sua mulher Felismina vinte e quatro horas por dia. De D. Maria Carantonha de Montenegro da Cunha de Antas e Azevedo, arvorar
esposa
o
dom
extratemporal
agora
com
ou
legítima
mais
de
direito,
intemporal
Luís
de
menos
outras
Azevedo,
direito,
horas
no
o
dia,
que
acabara
menino e
com
por
era
o
filho
isso
a
mãe
verdadeira se contentava. O ajuste celebrou-se, de parte a parte, de lágrimas nos
olhos.
Aniceto
e
sua
digna
esposa
subscreveram
o
modus
vivendi,
mesmo assim, de coração lacerado. Bem sabiam eles, que lidavam com cera, onde iam desaguar estas concessões. Pois a alma do menino que era senão cera tenra? Tanto cedia à dedada como se tomava do molde. Não era ela que esculpia o seu mundo; era o mundo, uma forma de mundo, coexistente no espaço, na família, nas coisas, no tempo, que se imprensava nela. Mas que outro meio havia de se eximir à inelutável fatalidade? Tais
razões
decorriam,
informuladas,
no
entendimento
de
Aniceto
e
Felismina. Donde, de par com o conceito que resulta dos demais factos reais
desta verídica história, como diria Cide Hamete Benengeli, se conclui pela compatibilidade na boa terra de Braga de um cirieiro poder roubar as beatas e os cónegos no peso e na qualidade da cera que iam comprar à sua tenda – porventura por ser artigo destinado a esvair-se em fumo à glória de Deus, assim ou assado sempre fumo – com um coração de oiro, sacrário de altas e afervoradas virtudes humanas. Quanto a mim, estas naturezas proteicas e dobles não são apenas da Bracara Augusta, mas do universal orbe. Aniceto é apenas um exemplar da tão vastíssima clave. Tanto se congraçaram gregos e troianos que, no alto do Meijoeiro, à despedida
do
fidalgo,
lá
estavam
Aniceto
do
Bento
Lado
e
sua
esposa
Felismina de Jesus do Bento Lado com o Telminho ao colo, bem assim os avós
galegos,
Sottomayor
chamados
de
para
Montenegro
a
Casa
e
Grande:
Francisca
D.
Telmo
Emerenciana
Diego de
Iraizoz
Valadares
Montenegro, senhores de Salvatierra y Moz. A feliz felizarda D. Maria Carantonha não acompanhava o esposo, dependente a sua ida de ulterior resolução e esta de se saber em que paravam as modas quanto à política nacional. Mas, ipso facto, o fidalgo galego homiziado era investido nas funções de administrador da Quinta do Amparo. Ficava não em uma, mas nas suas sete quintas. Dois soluços, sentidíssimos emboras: Parabéns ao nosso reizinho! Se va en hora buena! Não se esqueça dos semicúpios, Luís! Adeus, mais adeus! – e o postilhão deu com o chicote também novo os estalos da lei. Estanciaram no cerro a vê-lo ir. Ele, só ao descer a lomba da Portela Grande, é que voltou para trás os olhos marejados e pesarosos, e já os não viu. Em
Ponte
de
Lima
aguardavam-no
com
justificada
impaciência
os
procuradores Alexandre Malheiro de Sousa e Meneses e João Lopes de Calheiros
e
Meneses,
além
de
primos
e
amigos,
igualmente
defensores
acérrimos do rei absoluto. O breve tempo que parlamentaram debaixo de telha disse respeito ao itinerário que levariam para Lisboa. Oferecia-se um, seguro, que era por mar, embarcando em Viana. Haveria barca, não haveria? O mais rápido passava por Braga, Famalicão, Ermesinde. Fosse o que Deus quisesse.
Tomariam
aquele
que
aconselhassem
as
circunstâncias
e
a
oportunidade. Todos os caminhos iam dar a Roma, à parte a questão de tempo e baguinho. Por agora, o melhor era supor que seguiam o trajecto ordinário. Em conformidade, toca a partir sem perda de um minuto, de modo a botar com ar de dia a Santiago da Cruz, onde na casa assolarengada
dos Meios, protegida por,seteiras e bombardas, podiam dormir a sono solto. Os malhados, que voltavam a inçar os caminhos, ali esmurravam o dente. Já na desgraçada comarca do Porto quem dava leis eram eles. Por isso tudo, Luís de Azevedo a chegar, e, depois dos dois dedos de conferência, mal lhe deram
tempo
morrones
de
por
D.
beber
um
Telmo,
copo
lhe
de
água,
deixara
as
que
o
almoço,
entranhas
em
temperado
brasa.
a
Chegaram
esporas às mulas, e o comboio abalou a galope através de poviléus, cujos indígenas acudiam às portas, alarmados. E no Prado, sem esperarem os procuradores de Vila Nova da Cerveira e de Caminha, meteram rápidos pela estrada de Guimarães. Chegaram
à
cidade
com
o
lusco-fusco,
batiam
Trindades
em
Nossa
Senhora da Oliveira. A estalagem da Joaninha estava repleta como um ovo, requisitada pelo capitão-mor de Cabeceiras para a sua gente, e tão-pouco havia na estrebaria manjedoira para as bestas. Dirigiram-se ao primeiro alquilador que abriu os braços: – Meus santos, se encontrarem uma argola livre nas cavalariças, prendam o gado. – Por que diabo desabara tanta gente sobre Guimarães e de uma assentada? – Era o Porto que se estava a despejar – explicaram. – Nem um açude. Os caminhos iam negros de fugitivos. Por outro lado, as milícias encaminhavam-se para ali dos quatro pontos... Meteram para o Rafael, almocreve de muita nomeada no negócio de recova e que tinha casa com muita largueza e cómodos para gente e animais. Cheia a abarrotar. E estavam à porta, altercando em tom animado, quando um
homem,
que
ia
de
seu
caminho,
se
suspendeu,
manifestamente
a
afirmar-se nos viajantes, depois a ouvir. – Não se cansem a procurar – proferiu avançando para eles em tom deliberado. – Estão presos e vêm comigo... Naquela altura, estar preso ou estar solto eram termos bem próximos, pelo que se dispunham, sem grande sobressalto, mas resolutos para o que desse
e
viesse,
quando
João
Lopes
de
Calheiros
encarou
nele:
capa
espanhola pelos ombros, alamares de prata à dependura, chapéu de castor, que
lhe
sombreava
os
olhos
com
a
grande
aba,
nos
lábios
um
sorriso
sacripanta, mas amigo. – Raios te partam, Pedro José de Tresmonde, que me meteste medo! O recém-vindo soltou uma sonora gargalhada ao passo que lhe abria os braços: – A cama está feita e a ceia vai-se fazer.
Seguiram Pedro José Alvim de Tresmonde ao Largo do Toural, onde tinha casa, ao passo que o inteiravam das razões que os traziam. – Não os aconselho a seguirem a estrada de Famalicão. É um rio a monte. Na enxurrada vem de tudo, o fiel patife, o ladrão, o guerrilheiro, o malhado que se vê perdido. Querem ir seguros – seguros é um modo de dizer que a cada passo nos salta à frente um mariola – mas o mais seguro que é possível nestes tempos desgraçados? Metem pela Lixa, Marco, Mesão Frio, descem ao Douro e tomam a barca do Bernardo para a outra margem. Em menos de duas horas, a pequeno chouto, estão em Lamego, e daí em diante vão na graça de Deus. – É uma volta muito grande... – objectou Malheiro. – Grande, grande não é. O caminho é pior sem dúvida. Mas estamos no Verão, nas estradas não há lama, os rios, passante o Douro, não levam água que cubra as alpoldras... – E de Lamego em diante, que tal? – De Lamego em diante também passam. Onde há povos, há caminhos bons ou maus. Eu há muito que não saio de minha casa e não posso dizer qual lhes convenha mais, mas vocês batem à porta do Hilário de Castro, da Casa das Brolhas, que ele dá-lhes um homem que os leva direitos como uma bala. Ouvi dizer que há um caminho rápido e seguríssimo, pela serra da Lapa, Outeiro de Ferreira, Cavernães, óptimo para o Verão. Venham daí. Até Mesão Frio, se se decidirem por esse trajecto, dou-lhes eu guia à altura. Foram
gasalhados
bizarramente,
como
era
próprio
do
morgado
de
Tresmonde, onde a fartura era proverbial e a criadagem solerte e dedicada. A cama é que se não podia chamar um modelo de flacidez, mas Luís de Azevedo teria dormido a noite de um sono se não fora os percevejos. É certo que os percevejos numa casa nobre, do tempo de D. Tareja, são tão infalíveis e decorativos como as adagas numa panóplia. Fazem parte da tradição. Andam ligados às vicissitudes da progénie e pode riam testemunhar dos brincos de alcova. À sua hora eles lá vêm capciosos e sorrateiros com todas as ventosas prontas a chupar o sangue visigótico. Se topam com um vilão, frigem-no.
Aqueles
da
linhagem
dos
Tresmondes
eram
particularmente
densos e carnífices. Lançaram-se sobre Luís de Azevedo por miríades, e quando se apercebeu estava submerso, mais cravejado de assaltantes que de estrelas a Via Láctea. Deu um pulo fora do leito, rolando uma praga soez. Mesmo assim, temia-se de fazer escândalo. Não teve porém remédio, e foi-
se armando duma mentira diplomática para o caso em que lhe viessem perguntar porque trocava os lençóis de holanda pelo deambuleio inalterável e sem fim, de cá para lá e de lá para cá, no velho sobrado de castanho: o ser atreito a insónias. Mas tanto a gente da casa como os dois procuradores de Ponte de Lima dormiam a sono solto, galho ferrado ditosa e profundamente. No soalho rangiam as largas tábuas cortadas nos soutos de Mumadona, deixá-las ranger! Podiam passar por cima deles carros e carretas, as milícias do
Saldanha,
tremebunda.
e
a
trombeta
Foram
decerto
do
Vale
atacados
de por
Josafat hordas
soar de
a
sua
insectos
alvorada
iguais
em
ferocidade àqueles que lhe fizeram passar a noite em claro. Mas que viessem quantos ali se haviam multiplicado desde o fundo dos tempos, desde o Condado galego, e propagado famélicos e tísicos de todo, sujeitos à dieta hídrica dos fidalgos dessorados, morgados de Reçozinhos e Terroso, de Airão e Figueiroas, Sezim e Aldão, que lá de raro em raro caíam naquelas camas de pau-santo – apostava que não despertariam. Com o repique da alvorada largaram depois de se abraçarem ao morgado de Tresmonde que teimava vir à despedida e dar instruções ao guia, o Daniel dos Cardais. Era este um homem atarracado, cara de poucos amigos, pescoço
de
toiro,
cabeça
com
uma
grossa
trunfa
preta.
Quando
ele
se
equipava na casamata do solar que ficava nos baixos, contígua ao quarto infestado
de
percevejos,
Luís
de
Azevedo
seguiu-lhe
a
manobra,
visivelmente interessado. Sobre a nádega esquerda, na respectiva bainha de coiro,
meteu
o
punhal.
Punhal?
Antes
faca
de
mato
afiada
como
uma
lanceta. Revisou as pistolas dos coldres que amarrou cuidadosamente ao arção. Pegou no bacamarte, desceu uma e duas vezes o cão, espreitou-lhe a escorva, e pô-lo a tiracolo pela bandoleira. Depois, certo de que estava a ser admirado, disse com certa ênfase: – Podem vir. Bailava um sorriso meio sacripanta nos lábios de Luís de Azevedo e o Tresmonde, apercebendo-se, veio-lhe dizer num simulacro de confidência: – Este já lá tem uns cinco... – Cinco? – Cinco malhados – e com a mão fez um gesto sinuoso de estripador. Luís de Azevedo abanou a cabeça em sinal de capacitado. O Tresmonde julgou-se obrigado a dizer uma palavra ao seu homem-lige: – Daniel, tu vais com estes senhores, mas fazes de conta que o viajante sou eu... ou o senhor D. Miguel...
– Esteja descansado, patrão, que hão-de chegar a Mesão Frio ou eu não torne a comer mais pão. Leva que leva, chegaram à Lixa com o sol a pino, um sol temporão, jovem e desbragado de todo. Pungia-os um apetite homérico e arriaram na primeira estalagem. A freima com que se puseram a abrir os merendeiros não lhes permitiu prestar atenções a uns homens que estavam perto dali no ferrador a ferrar um macho e que, mal eles chegaram, não mais os perderam de olho. O facto só não escapou ao P.e Tirteu, a quem não passava o ver pelo ouvir. Pareciam viajantes de certa condição, pois nas coronhas das pistolas, que emergiam dos estojos, reluziam chapeados de prata. Aconselharam-se os procuradores com o locandeiro que lhes disse: – Os meus fidalgos querem meter pelo Marco? Olhem que o Marco não é o caminho mais recomendável. Anda para lá a guerrilha dum tal Serafim de Anreade que fez gato-sapato da tropa do general Silveira, que Deus guarde. Têm-lhe dado batidas, mas ele torce-lhes as voltas, atravessa o Douro a nado,
e
esgueira-se
para
Montemuro,
onde
são
seus
valhacoutos.
Pela
Teixeira, se levam rumo ao Sul, não seria mais desacertado ir... – Pela Teixeira, não é subir à espalda do Marão?! E não andam por lá as guerrilhas? Que não andem, a subida é tão a pique que até é uma dor de alma meter por aí os cavalos. Passei lá uma vez, jurei nunca mais – disse João de Calheiros. – Passam por lá todos os dias seges e carros de bois. O piso foi arranjado. Não lhe chamam a estrada do vinho do Porto? – Pois chamam, mas foi feita para os senhores das quintas do Douro irem e virem de liteira. As pipas seguem rio abaixo – redarguiu Malheiro. – Lá farão. O Marão não dá palha nem grão, mas também não traz surpresas – proferiu, afastando-se a atender um viajante. Ficaram
perplexos,
arrotando,
merendeiros
abertos,
barba
untada,
satisfeita. Luís de Azevedo opinava pelo Marco, com Calheiros; Malheiro pelo
Marão.
Chamaram
o
Daniel
dos
Cardais:
–
Amigo,
conheces
o
caminho pelos dois lados, ora se conheces...? Qual é preferível? – Olhem, meus senhores, pelo Marco, o caminho é melhor, não há dúvida que é bem melhor. Mas por aí contem bem contadas mais cinco horas. Pelo Marão, de Amarante para lá, é a trepar, sempre a trepar, mas assim que um pândego se apanha em Quintela, está botado a Mesão Frio. Vai-se a rebolar. – Sim, senhor. E qual é o trajecto mais seguro?
– Tão seguro é o Marão como o de Quintela. Os ladrões são mais que o cisco e há-os em toda a parte. De malhados, chamorros ou lá o que é, direi o mesmo. Tanto vale correr como saltar. E digam-me cá: para que levam uma escolta de sete homens armados até aos dentes? – Tens razão – diseram a um tempo Calheiros, que era pimponaço, e Alexandre Malheiro, que por nada deste mundo queria passar por medroso e envergonhar as cinzas dos Meneses. Optaram pois os dois procuradores de Ponte de Lima pelo Marão. Mas nesta altura deu na veneta a Luís de Azevedo, secundado pelo P.e Tirteu, para ser pirrónico. Até se decidirem, depois de deitarem votos, levou o seu tempo.
A
comida
à
tripa-forra
dera-lhes
na
fraqueza.
Entraram
em
confidências, e cada um a blasonar do que era ou presumia. Tinha tantos moios de renda, tantos criados, tantos cavalos, tantos cães e tantas amigas. O Calheiros evocou os amores, salgados de picaresco, com a mulher do seu alfaiate;
o
Alexandre
descreveu
como
violara
a
filha
duma
caseira
que
trouxera ao engano. E acabaram a celebrar os actos de sacrifício em prol do arcanjo D. Miguel. Aquela jornada a Lisboa ia-lhes sair cara. Nada mais que a
viagem,
com
os
sete
homens
da
escolta
a
comer,
não
falando
no
estipêndio, ficava por um dinheirão. O Calheiros levava três por sua conta; o Alexandre
dois;
o
primo
Luís
outros
dois.
Mas
eram
sete
estacas
de
respeito, que se podiam apresentar, para meter os tampos dentro ao Anreade e quantos Anreades militavam no campo do Pedro. O José Barba de Aço chamava-se um valente, capaz de partir uma moeda de pataco nos dedos. Quantos tinha mandado para o Maneta? Lembraram-se de o chamar: – Quantos chamorros já lá tens, ó Barba de Aço? O homem recusou-se a dizer o número, se bem que pelo sorriso desse a entender que não poucos tinham pateado. – Dois, três? Mais...? – tornou o Malheiro. O Barba de Aço sorriu segunda vez com enigmática inteligência. – O Daniel dos Cardais já despachou cinco – disse o Luís de Azevedo. Então o Barba de Aço franziu os lábios num gesto de desdém e, como se cuspisse fora, declarou: – Se soubessem quantos já mandei para o Inferno, até os senhores tinham medo de mim! – É um tesuras autêntico – ficaram os três procuradores a considerar. – Mas olhem que os outros não lhe são menos. E os seus homens, D. Luís?
Luís
de
Azevedo
no
fundo
estava
possuído
de
fastio
ante
aquelas
fanfarronadas, em que não acreditava meio por meio. – Os meus são bons para roer broa e nada mais. Só dão coice se os coçam na barriga. Era tempo de se porem a caminho. A poder de empinarem as borrachas, de repartirem os bolinhos de bacalhau, as asas de galinha, e as talhadas de salpicão,
de
pensarem
as
bestas,
de
beberricarem
em
boa
irmandade,
homens da escolta, postilhões, e fidalgos, reservando-se apenas estes beber pelo canjirão, porque na estalagem não havia gomis, o tempo foi decorrendo e não o viram passar. Ao chegarem a Amarante, o último raio de sol pintava o Tâmega que nem um esmalte de Limoges. Iam a atravessar a ponte de S. Gonçalo quando mesmo na frontaria do convento, resplendente de luzes com a Semana Santa, Calheiros, que era homem falado em vila e termo, deu com um rosto conhecido. Um grande fidalgo de Entre Douro e Minho tem amigos até no Inferno. João Lopes de Calheiros e Meneses era um grande nome do armorial interamnense, de maneira que não foi de admirar que ali tivesse não só conhecidos mas até próximos. Quem havia de ser? Carlos Peixoto, da Casa da Ruborosa, que veio para ele de olhos espantados. Mais espantado ficou quando lhe disse que iam meter à serra. – À serra a esta hora, Deus os livre! – exclamou ele. – Imaginem que se lhes parte o eixo da sege, que dá uma dor de barriga a um macho... Quem lhes há-de valer, de noite, numa estrada em que só se topam arribanas e um poviléu lá nos altos: Carneiro? Não façam isso! Depois, ouvi dizer, mas não garanto, que o Serafim de Anreade anda pelos sítios. Afiançaram-me que o tinham visto lá para a Teixeira. Duvido. É um homem danado. Ultimamente bateu-se à bala em Quintela com uma força que vinha de Vila Real e varreua até o Basto. Ao que se rosna, é homem que se não mete com quem vai seu caminho. Mal empregado, não ser dos nossos! Imaginem, toda a sua fúria é contra os legitimistas. – Então estamos tramados – proferiu Luís de Azevedo. – Ele não precisa de saber quem nós somos – interveio P.e Tirteu. – Bem tolos também seríamos se lhe confessássemos quem éramos. – Pois! – apoiou o Peixoto. – Os senhores vão de seu caminho. Mas pensem no recado. Façam de conta que vão para Lamego à Semana Santa... – Bem lembrado – exclamou P.e Tirteu. – Amanhã é Quinta-Feira Santa e eu vou pregar o sermão do Encontro.
– Aí têm. Mas fiquem cá. Não caiam em se meter à serra a estas horas. Amanhã, pela madrugada, estão aqui estão em Mesão Frio. – O perigo é o mesmo com o tal Serafim – objectou o João Lopes de Calheiros. – É diferente. De noite todos os gatos são pardos. – E onde iremos pernoitar? – Não ofereço a casa, que tenho a mulher e criadas no Gatão. Mas há aí estalagens. Senão, é possível arranjar-se boleto no convento. Os frades para pessoas de qualidade, como são os senhores procuradores, e ainda mais legitimistas, têm sempre as portas semiabertas e duas ou três celas devolutas com colchões de lã.
XIV
Os senhores procuradores, com P.e Tirteu, dormiram no convento. O prior dos
domínicos,
como
prenunciou
Peixoto,
tendo
em
conta
de
quem
se
tratava e ao que iam, acedeu de bom grado a hospedá-los nas celas do claustro
reservadas
aos
arcebispos
e
fâmulos.
Homens
de
escolta
e
postilhões foram pernoitar a um Zé da Calçada, chanfana muito antiga, bem afreguesada de Verão ao bacalhau frito e vinho verde, cujas ancoretas iam, na ponta duma corda, a refrescar ao Tâmega, que corria logo atrás. Mas embateram numas servas lampeiras, que se saíram biscas do diabo ainda que fosse Quarta-Feira de Trevas, e com a ajuda dum briol de Candemil, alegrete e trepador, passaram a noite em grande relambório e patuscada. De manhã foi preciso que Alexandre Malheiro se decidisse a ir chamá-los, porque não davam sinal de vida. Depararam-se-lhe zambros das pernas, chocos com o sono, tez esverdeada, língua ainda perra com o tarro da vinhaça. Mas, el-rei manda marchar, não manda chover, lá meteram as fúcias num balde de água fria, engataram as mulas, e ala! O Sol ia a romper de suas longínquas envoltas, sedas alaranjadas, sedas cor-de-rosa, senha de dia estival, eles a atingir o cimo da escarpa, onde o caminho se bifurca para Jazente. As mulas, folgadas depois do descanso da noite e do penso, soltavam das guizeiras uma fogosa tarentela, que afinava com certos pássaros a cantar no ramalhedo. E a trote ligeiro, com denodo, devoravam o caminho que discorria a meia encosta. Em cima das bestas, os homens, mal dormidos, embalados agora pelo chouto lento, espraiavam um olho mortiço pelas perspectivas da terra, meio lembrados que lhes incumbia guardar
o
precioso
costelame
daqueles
fidalgos.
Para
lá
de
Cavalinho
começou a escalada. De momento a momento, as mulas tinham que retesar
os
jarretes
obrigavam
e os
especar-se
para
cavalos
um
a
subir. passo
E,
como
mais
as
seges
vagaroso
que
eram o
dos
pesadas, próprios
sendeiros. Aproveitando-se da rédea lassa, por vício que não por fome, iam dando aqui e além a sua ripada às ervas que medravam pelas rampas e aos pâmpanos das videiras que descaíam dos cômoros para o caminho. Luís de Azevedo andava com pouca sorte. Mal cobrara o sono na cela de S.
Domingos,
apesar
de
não
haver
pregado
olho
em
Guimarães.
Agora
cabeceava, esboçando para o P.e Tirteu zumbaias que quase o atingiam e nos solavancos era natural se tornassem marradas. Tinham-no aposentado numa cela ao lado da do prior, por sinal que airosa e com vistas para a cerca. O diabo é que ele ressonava mais alto, variado e plangente que o órgão na vigília da Paixão. Fosse obra de esturrinho, com semiobstrução das fossas nasais, o certo é que dentro daquelas ventas monásticas ora mugiam dez gaitas de foles galegas, ora assobiava a gaitinha de palha mofareira que os rapazes fazem do trigo a apendoar. A partitura entrecortava-se de solos que estrugiam pelo claustro e deviam, trasbordando para o exterior, extasiar céu e
terra.
Quando
no
decorrer
dum
piano
pianíssimo,
que
também
tinha
dessas variações a trompa prodigiosa, Luís de Azevedo conseguia pregar olho, de repente soltava ela um larghetto, com notas de oboé e rabecão, e lá se ia o regalado soninho. Às seis horas da manhã, quando começou a luzir a clarabóia do corredor e um cochicho veio para os loureiros do claustro soltar a sua solfa, ainda andava ele aos tombos com o travesseiro. Vestiu-se a praguejar: – Tantas labaredas no Inferno consumam este prior como de lume gastaram os frades de S. Domingos com os autos-de-fé! Raios partam a vida, outra noite em claro! Fico doido! Guicho aquele P.e Tirteu. Conformado desde o seminário com as camas ascéticas e flageladas do percevejo, pudera dormir umas boas horas e, modo de entreter o tempo e pôr-se quite com a consciência – há que propiciar-se o bento Anjo da Guarda em jornadas assim problemáticas – ciciava agora as Horas que sabia de cor e salteadas, deitando ao ripanço um olhar ocioso. Estava uma manhã formosíssima e, ao vagar com que rodavam as seges, nada mais fácil ao cristão que abrir os foles do corpo e da alma e impregnarse da bondade de Deus e da doçura da atmosfera. À mão esquerda começava a
inscrever-se
o
vale
alpestre,
com
seu
cultivo
de
renovos
e
de
vergel,
marinhando na vertente oposta, até meia altura, a avaliar pela barra de verde. Do meio para cima era mato e pedregulhal. Em baixo, nas pequenas
chapadas reluzia a telha vermelha dalgum moinho, dum ou doutro casal, e por toda a parte as águas faiscavam como cutelos ao cair dos socalcos. Não se
descobria
a
profundidade
ao
declive
que
iam
contornando,
mas
adivinhava-se pérfido e com barrancos a pique. Tanto nas arribas, a um lado, como na vertente oposta, à mão direita do caminho, a terra vessada refulgia com a Primavera. Nas grimpas dos cabeços, a todo o longo do monte, as giestas
em
flor
desdobravam
grandes
tendais
de
amarelo.
Aqui
e
além
entremetiam-se as giestas alvarinhas, não menos floridas, e o seu brancor era como matiz de prata no brocado lento e denso das piorneiras. As urzes cobriam
seu
minúsculas,
manto
crespo,
embandeiradas
cor de
de
café;
pétalas
os
rosmanos
roxas,
e
as
arvoravam
estevas,
maças
guarda-sóis
brancos, orientais; reluzia o oiro das tojeiras; e as plantas sem nome, sempre prontas na roda do ano a dar-se ao caçapo, que tem fome, e à cabra da velha, que se nutre pelos caminhos, botavam flores inverosímeis para que a abelha, a vaca-loira e moscardão zangarreador, imundo mas vivente, tivessem néctar com fartura. Ah, todo aquele flanco do Marão lhe parecia bonito como uma igreja no Domingo de Páscoa! P.e Tirteu não era de todo insensível à contemplação, tanto
mais
que
as
horas
estavam
por
sua
conta.
Na
qualidade
de
bom
minhoto, ia supurando o valor das pequenas várzeas do fundo do vale, que deviam produzir gordíssimas e mesopotâmicas espigas. Fora caçador nos bons tempos e, quando um láparo lhe dava o traseiro a ler, estramontado com o barulho, seguia-o de olho matreiro, observando-lhe os pulins, rabo branco a borboletear e orelhas derrubadas. À devida altura disparava: bum! Via-o
alçar
as
patas,
e
mentalmente
encomendava-lhe
o
bem
de
alma:
Estavas à cinta, ladrão, estavas, nem o P.e S.to António te valia! As
duas
carruagens
agora
subiam
a
encosta
com
dificuldade
e
desesperadora lassitude. Ainda não teriam andado metade do caminho que vai de Amarante até Quintela, e tanto o cocheiro de Luís de Azevedo como o dos fidalgos de Ponte de Lima esfalfavam-se a estalar o chicote sobre o lombo das muares, com vozes de incitação: – Ih, mulas! ih! Ides a rezar... Eu dou-vos a reza! Os
homens
da
escolta,
em
cima
dos
cavalos,
cochilavam.
Um
deles
dormia mais testo que deitado na sua enxerga. E se não dobavam abaixo das selas
é
porque
os
estribos
tão
bem
como
o
hábito
cooperavam
no
seu
equilíbrio. A marcha fazia-se pois com toda a pacatez e perfeito à-vontade.
A um cavalo relampejava pelos olhos uma touceira de erva; pois havia de roê-la, só despegando quando não restasse fêvera. A comitiva, entretanto, tinha seguido avante e o cavaleiro nem dava conta. Andando,
andando,
a
encosta
tornou-se
mais
íngreme,
com
voltas
apertadas e cegas, e à mão esquerda mais profundos os despenhadeiros. Num e noutro ponto, o piso esbarrondara-se, e via-se lobreguejar através do alçapão o fundo do abismo. Era preciso coser-se com a parede à direita, mas as cavalgaduras, mais previdentes que os homens, sabiam acautelar-se em tais
passos.
Não
se
estava
porém
livre
de
que
uma
roda
resvalasse,
e
traquitana, pessoas, bestas fossem parar ao fundo do precipício. P.e Tirteu, porque herdara esse bom costume de pais e avós, encomendou a alma a Deus e à Virgem Santa Maria. À mão direita, em natural contraposição ao alcantil, a terra empinava-se para lá de arretos, construídos de alvenaria e pedra de arranco. E desses arretos, às vezes com altura de três a quatro metros, debruçavam-se todos os géneros da horta, fruteiras de vária espécie, além de vides de cordão e de enforcado. Casebres, lá de raro em raro, e poviléus, Bostelo, Rechãozinho, Curvaceira, não maiores que acampamentos de ciganos, diziam que ali não era
ermo
oblíquas,
absoluto. em
E
cutelo,
a
cada
ou
de
passo
a
jacto,
água
perdida
se
despenhava
pelos
regos
em
lançadas
os
charcos,
e
cantarolando a sua ladainha. Com igual universalidade, o passaredo, que o homem não cobiça, porque é pequeno e mal lhe dá para a cova dum dente, ou tão buliçoso e suspicaz que se não deixa pegar, saraivava pela terra e ares na sua labuta ou moinação. A ascensão, a partir de Noveleiros, tornou-se ainda mais de costa-arriba, se
era
possível,
e
já
os
carros
em
certos
pontos,
além
de
emperrar,
patinavam... O cocheiro de Luís de Azevedo virou-se na boleia e proferiu: – Vossas Senhorias podiam fazer o obséquio de descer um instantinho? É só enquanto dobramos a lomba... O senhor de Romarigães e P.e Tirteu apearam em continente, e o carro, aliviado de doze arrobas, das quais as suas sete à conta do capelão, rodou com
sensível
também
por
desafogo.
No
necessidade
carro
ou
obra
dos de
procuradores exemplo,
de
Ponte
recorreu-se
de
ao
Lima, mesmo
expediente. Ao alto do cabeço, pois que se sucedia uma recta de pequeno ângulo, voltaram a entrar para as seges. Mas, ao cabo duns centenares de metros, lá
estava outra vez o auriga: – Os machos não atrepam. Se Vossas Senhorias fizessem o favor de descer outro bocadinho...? E o lance repetiu-se quatro ou cinco vezes, com intervalos de poucos minutos, até chegarem a um lugarejo, onde os cocheiros pediram licença para dar ração de milho aos cavalos. Havia taverna na terra? Sim, senhor, taverna e bem sortida de tudo, vinho, azeitonas e bogas de escabeche para matar o bicho. Como tencionassem porém ir almoçar lá para Carneiro, tanto mais que tal aldeia, segundo lhes diziam, ficava logo ali acima, trataram apenas de refrescar a goela. Entretanto, um gentio compacto e troglodita apinhou-se em torno deles, curioso de meter o nariz na sege, ver quem eram, quem não eram, muito pasmados todos perante o ar façanhudo dos guarda-costas. Caramba, que ricaços! Até as mulas comiam sopas de vinho e os cavalos abichavam penso de grão. Quem se não fiou no informe quanto a distâncias foi o P.e Tirteu. Sacou do bolso um naco de broa com um paio, que trazia de reserva embrulhado num bocado de jornal, e, antes de levar à boca, ofereceu à roda. Deu-lhe a primeira dentada com manifesto apetite, saboreou, deglutiu, e outras se seguiram com igual pragmática, até que tudo desapareceu no estreito de S. Golão, como chamava ao esófago um velho autor de Igreja. Em seguida pediu licença para ir molhar os beiços à taverna com o verdasco da terra, que o salpicão estava assaz condimentado com pimenta e colorau. Quando voltou, o nariz rúbido proclamava que estava mais satisfeito consigo e com Deus. –
Daqui
em
diante
ainda
é
muito
a
subir?
–
perguntou
Alexandre
Malheiro para um dos lapuzes que o admiravam boquiabertos. – Não, senhor, já é pouco a subir. Lá adiante é que lhes há-de ser preciso deitar o ombro às rodas... – Essa, agora?! Então é pouco a subir e temos de especar o carro com o costelado? – São costeiras de nada! – respondeu, mostrando os dentes de lobo. – Se vossemecês subissem de Barrô para a Quinta do Ramalhoto, com os cestos vindimeiros às costas, então, sim, haviam de ver o que era trepar! – Amigos – proferiu Malheiro dirigindo-se à escolta – até aqui têm vocês vindo sempre a cavalo e nós algumas vezes a pé. Santa paciência, agora cabe-nos a vez de irmos nós um bocado a cavalo e vocês a pé... Dito e feito. Quatro dos homens cederam os cavalos aos amos e as seges romperam logo a rodar com mais solércia. Continuaram a cavalo, com a
condição de se revezarem, o Daniel dos Cardais, o Barba de Aço e um João Padilha, filhote de Samodães. Foi a meio do rebuliço e grossa balbúrdia do gentio que a P.e Tirteu se afigurou que os dois cavaleiros que destacavam da ruela, que mais adiante se articulava ao caminho, e despediam ladeira acima a galope, eram nem mais nem menos os homens que entrevira primeiro na Lixa,
depois
em
Amarante.
Quase
o
podia
jurar
pela
própria
hóstia
consagrada. Mas que ganhava em dizê-lo, senão causar um inútil alarme!? A comitiva rompeu marcha, segundo o novo dispositivo, à frente os três cavaleiros da escolta, a seguir os fidalgos, depois as seges, à retaguarda os homens pedibus calcantibus. Tocaram-lhe. Mas o sol começava a apertar e a ladeira
embravecia,
mais
abrupta
e
semeada
de
torcicolos.
Era
como
agadanhar por um penedo acima. Dali a pouco caía-lhes em bagadas o suor da testa, e um deles lembrou-se de depor o trabuco dentro do coche. Logo os
outros
lhe
seguiram
o
exemplo
com
manifesto
alívio.
Aleatório
foi
todavia o expediente. Cavalos, muares, homens, dentro em pouco bufavam e eram vagarosas lesmas. – Raios partam o caminho! O ladrão que o estudou por aqui, não o fez para se ir casar – praguejou o Barba de Aço. – Está no Caldeirão de Pêro Botelho a arder – emitiu Malheiro. Então
aqueles
peltastas
da
perna
manca
despiram
as
vestes,
que
depositaram dentro dos carros, e ficaram em mangas de camisa. Ainda que exoneradas de boa dose de carrego, as próprias muares pareciam marchar com peias nos jarretes. Se tropicavam era muito a custo e estrebuchando. E, a cada passo, por cima da cernelha, lhes estoirava e tornava a estoirar o chicote
e
se
ouvia
repenicado
e
raivoso:
–
Ih,
machos!
ih!
ih!
Ah
excomungados, então nem com sopas de vinho?! O vale à esquerda distendia-se em amplitude à medida que o solo se alteava, recoberto de lés a lés da lençaria amarela das maias, cada vez mais espampanante e luxuriosa. A água jorrava, ouvia-se jorrar, ora em melopeia ora
em
cantochão,
e
diante
deles,
dir-se-ia
que
de
encomenda,
acompanhando-lhes a marcha, sem que se mostrasse, um cuco mofador cantava e recantava. A cinquenta passos de Terroeiro, quatro telhados comidos pelo arroz e os copilos, partiu-se o eixo ao carro dos procuradores de Ponte de Lima. – E agora? – proferiram os fidalgos, reunidos em conselho com P.e Tirteu. – Agoirou certo o Peixoto com o diabo que o leve!
– O D. Luís siga – soltou desenganado João Lopes de Calheiros. – Nós, quando chegarmos, chegamos, como diz o espanhol. –
Proponho-lhes
antes
que
passem
para
o
meu
carro
–
respondeu
o
morgado de Romarigães. – Pode ser que aguente... – Se, com dois, já os machos se viam gregos para subir, que faria com quatro?! Há outra solução: partimos a cavalo, sem escolta... – É arriscado – disse Alexandre, que era prudente. – Pode ser que se encontre um ferreiro e se dê um arranjo ao carro. Eu vou ver. Foi pelo caminho fora e topou um campónio, que ia para o lameiro de cesta brez no braço e seitoira. Indagou do que pretendia, e a toda a pressa volveu a dizer, de rosto desanuviado, até com ar de chistoso: – Em Carneiro, pelo
que
diz
aqui
este
homenzinho,
há
um
vulcano
formidável.
Lá
se
com
os
conserta o eixo. São dez minutos à Pata... Meteram
de
rópia
encosta
acima,
largando
a
sege
avariada
machos e o automedonte. No povo, de facto havia um ferreiro, mas era dos tais que chamam de maldição, quando têm ferro não têm carvão. Não tinha carvão, e o primeiro acto foi arrebanhar pelas casas dos vizinhos a torga que houvesse
disponível.
enquanto
acendiam
Levaram a
nisso
fornalha,
uma
hora
trataram
de
bem
contada.
rebocar
para
Depois, o
lugar,
emplastrando o eixo com verguinha e arame, a sege escangalhada. O Barba de
Aço
tocou
o
fole;
desenrugaram-se
as
pregas
do
coiro;
o
pulmão
esclerótico arfou um hálito roufenho; as brasas chisparam. Louvores a Deus, estavam governados! Só então puxaram dos atafais com comes e bebes e se acolheram a um quinteiro, à desbanda, dispostos a almoçar. Arrumaram-se como puderam, sentando-se em toros de pinho e em pedras, cada um à procura de sombra, que a réssega de Abril escalda quando lhe dá para apertar nos altos montes. Comiam em silêncio, pão na mão esquerda, conduto espetado na ponta das navalhas, mas inquietos. Ouviram, afinal, tilintar as primeiras pancadas do
malho,
e
confortador.
nas
faces
Desde
túmidas
esse
com
a
momentinho
botada
refloriu
entregaram-se
então
o
sorriso
gozosamente
à
tasquinhação. O Lopes Calheiros trazia um lombo de vinha-de-alhos, que era a primeira maravilha do Minho gastronómico. E estavam discorrendo sobre
receitas
culinárias
–
não
há
como
o
arroz
de
lampreia,
se
lhe
adicionarem uma colher de manteiga de pato; uma posta de salmão com salada de alface e rodelas de cebola tenra vale um ano de Paraíso, hem, P.e
Tirteu? Deixem lá, perdiz com couve murciana fermentada bate todos os petiscos inventados e por inventar – quando se viram cercados por um bando de quinze a vinte homens armados, que fizeram, antes de mais nada, mão baixa sobre os trabucos. A operação foi executada com tanta agilidade e limpeza, que levou menos tempo que o Azevedo a enxugar a buca e P.e Tirteu a murmurar com a volta do cabeção: – Minha N.ª S.ª do Amparo! Um homem, alto, bem entroncado, barba de oito dias, boina basca na cabeça, interrogou para o grupo: – Quem são? Para onde caminham? Os
procuradores
num
olhar
unânime
delegaram
em
P.e
Tirteu
o
responder: – A pergunta é boa – obtemperou ele num trejeito blandicioso, não destituído de tesura, levantando-se com certa moleza, a dar tempo que acudisse às glândulas da ronha o espírito todo. – Que tem o amigo com isso? Bastará dizer-lhe que somos gente de paz e em paz queremos chegar ao nosso destino. E poderemos nós esperar o mesmo dos senhores? – Padre, deixe-se de rodeios, e diga lá quem são e para onde vão. Se não sabem com quem estão metidos, eu digo-lho. Estão metidos com o Serafim de Anreade que jurou não deixar osso direito a quantos corcundas há em Portugal. – Então o senhor é que é o Serafim de Anreade? – Sim senhor, e que mais? – Pois viva lá por muitos anos e bons. Já o temos ouvido nomear. Eu pelo menos. Se é verdade o que dizem, estamos metidos com um cavalheiro às direitas e não há que temer. O cabecilha, em vez de se mostrar lisonjeado, franziu o sobrolho: – É consoante. Umas vezes sou cavalheiro, outras mais torto que um apostólico. Mas vamos ao que importa: para onde vão e quem são? – Vamos, meu caro senhor, para Lamego à Semana Santa. Fui rogado para pregar o sermão das Trevas. Aqui estes meus amigos levam também o mesmo destino. Lá têm os seus negócios. – E, ao passo que apontava os dois procuradores de Ponte de Lima, punha alternativamente os olhos neles a instigá-los a que preparassem resposta adequada ao subterfúgio. Depois, indigitando Luís de Azevedo, acrescentou: – Aqui este senhor veio comigo por vir. Eu sou o seu capelão. – Como se chama ele? – Chama-se... chama-se...
– Chamo-me D. Luís de Azevedo, morgado de Romarigães. Aqui o padre parece que estava com medo de dizer o meu nome. Homem, quem não deve não teme. – E os senhores quem são? Declinaram
os
nomes
verdadeiros,
Calheiros, correspondendo à senha do
P.e
e
acrescentou
João
Lopes
de
Tirteu: – Vamos pagar um voto à
Senhora dos Remédios e remir uns prazos que temos na Penajóia. Somos primos e co-herdeiros numa sucessão que se abriu na vara de Lamego. O cabecilha pareceu desconfiar de respostas tão oportunas e, depois de estar um momento a considerá-los, tornou: – Os senhores têm partido, olé se têm? Quem vive? – Vive Portugal, a senhora D. Maria da Glória e a Carta – respondeu o padre de modo tão precipitado que por pouco não perdeu o fôlego. – Ah! ah! Para um padre é caso. É caso! Então o senhor prior não é legitimista? – Não senhor. Sou malhado. – Malhado? Quem o malhou? – Quer dizer, sou constitucional. – Abaixo então D. Miguel? – Abaixo! – Viva a liberdade? – Viva! – Viva D. Pedro? – Viva! – Já vejo que o senhor está pronto a dar quantos vivas e morras lhe pedirem. Habituou-se com os améns da missa. Os senhores perfilham as opiniões cá do seu língua...? – Perfilhamos, ora essa – apressou-se a responder Calheiros, como se se tratasse do mais apaixonado adepto da Revolução. Os outros guardavam silêncio com ar um pouco encavacado. Os homens da
escolta,
principalmente
o
Daniel
dos
Cardais
e
o
Barba
de
Aço,
mostravam, de olhos em terra, uma fisionomia torva e reflectida. – Ó Lobelhe! – exclamou então o cabecilha, dando ao topete. – Anda aí um rapaz do termo de Ponte de Lima, Refoios, não anda? Que venha cá reconhecer estes sujeitos...
– Saberá o meu alferes que foi numa diligência a Soalhães. Só pela noite está de volta. – Pois têm de esperar até à noite para poder seguir viagem. Ó Lobelhe, entrego-te esta gente; condu-la para a Alcaria. Que se arranjem, e olho neles, hem? Ferra-lhes com duas sentinelas à porta... – E, voltando-se para os procuradores, acrescentou: – Tenho muita pena se atrasam a jornada. Pelos vistos, a sege está também a reparar. No entrementes, chega a praça. Conduziram-nos
desarmados
para
a
casa
da
Alcaria,
nem
mais
nem
menos o primeiro andar dum prédio apenas sobradado, ainda na telha-vã. As janelas altas, com portadas, mas sem vidraças, davam a nordeste para o vale, e a sudoeste e oeste para a serra, lombas de Carvalho de Rei e Ovil. Foi-lhes permitido ir buscar às seges a tralha essencial, e os alforges, salvo as armas. As cavalgaduras ficaram à conta dum lavrador, com promessa, por espórtula, de tratar bem delas. Tudo regulado pelo melhor, que remédio senão apresentar boa cara à imprevista borrasca?! O pior estaria para vir, mas enquanto o pau vai e vem folgam as costas. –
Ó
padre,
você
respondeu
com
uma
desfaçatez
ao
malandro
do
guerrilheiro que até eu fiquei banzado – dizia-lhe o João Lopes. – De longas vias, longas mentiras, mas, se não é Vossa Reverendíssima, estávamos de patas ao ar. – Só desfaçatez, senhor? – pronunciou o padre, cravando os olhos no procurador de Ponte de Lima. – Agora salvei-lhes eu a pele, para logo chamem-se a Deus e à Virgem Maria. Mas creia que não menti. Se está persuadido
que
faltei
à
verdade,
que
jurei
observar
quando
abri
coroa,
mesmo com o risco de vida, está muito enganado. – Não se arrenegue, que não é para isso. Deus me livre de o censurar. Pelo contrário, admiro a prontidão e os recursos do seu espírito. A mentira é em certos casos tão digna como a verdade. Neste, por exemplo... – Já lhe disse que está muito enganado, quando parte do princípio que menti. Cada resposta que dei, fui-a acompanhando da respectiva reserva mental. Compreende agora ou não compreende...? – Como é isso? – Saiba: quando o homem me perguntou se era legitimista e eu respondi que era malhado, pus o pensamento numa beta branca que tenho no peito e me permite considerar-me malhado. – É boa, meu padre, é boa! Mas inculcou-se constitucional?
– Então cada um não tem a sua constituição? Que é o canastro dum pecador!? Estrugiu grande gargalhada. O próprio Daniel dos Cardais desamordaçou a dentuça sinistra. – E abaixo D. Miguel como ressalvou? – Muito simplesmente: abaixo D. Miguel e acima Deus. – E viva a liberdade? – Viva a liberdade de cada um em sua casa fazer o que lhe aprouver com mulher e filhos. –
E
viva
D.
Pedro?
–
perguntou
Luís
de
Azevedo,
ganho
ao
jogo
dialéctico. – Viva D. Pedro até que morra. Querem nada mais inocente? Estão a ver?! D.
Luís
desprendeu
nova
risada:
–
Não
é
má
vermelhinha!
–
E,
vivamente, reconsiderando: – Mental, mental, já se deixa ver. – Faz a sua diferença, meu senhor. Aqui onde me vê nunca joguei a batota. Cumpri o que devia a Vossas Senhorias e a mim que também sou filho de Cristo, além da alma, de carne e osso. Mas de que vale? Daqui a pouco, vem o gerifalte de Refoios e põe-nos a calva à mostra. É para o que uma mãe cria um filho! – acabou a dizer, antes de ficar siderado à janela que deitava para o Marão. Toda a falda, coberta de flores, era um deslumbramento. Uma epifania! Do mesmo modo olhando para baixo, aos pés, a vista desvairava, obsidiada pela vertigem que exalavam os abismos. Banhada pela luz crua da tarde, a alcatifa da terra, que se antemostrava verde verdinha, revestia-se a todo o longo do vale de mil tons furta-cores, os mais irreais e fantásticos. – Deixe lá, P.e Tirteu, o nosso reizinho tudo merece – confortaleceu Luís de Azevedo. – Pois, pois! Não é arcanjo? O canudo foi tropeçarmos num Serafim. – Na ordem dos espíritos, qual é superior? – O serafim, dez vezes mais. – Arreda! – Arreda, também eu digo. Não agoure, senhor! A teodiceia, em muitos casos, é como a lógica das sabatinas: uma batata. Sabe que mais, contas na mão e olho no ladrão!
– Que raio de paragens estas, P.e Tirteu! – exclamou Luís de Azevedo que havia mais de uma hora estava à janela, olhos perdidos no côncavo do vale. – Estamos no Marão, onde não há palha nem grão, o que é falso. Repare, meu senhor: estas terreolas, metidas aqui pelos sovacos da terra, têm de tudo.
Olhe-me
para
as
hortas.
Quer
folhas
de
couve
mais
orelhudas
e
viçosas? Repare nas vaquinhas... Temos na quinta mais nédias que aquelas que pastam lá em baixo, na chá? Não falta cá nada. – Lobos devem ser a especialidade. – Lá isso! – E quadrilheiros? Pelo menos há malhados. – Hoje, terra que conte, tem duns e doutros. Quem havia de dizer que vínhamos tropeçar com esta praga em pleno Marco! Mas não derranque a passarinha. Deus há-de livrar-nos de suas garras como livrou a Daniel da caverna dos leões. Os dois braços do povo de Ponte de Lima, estirados de papo para o ar sobre feixes de carqueja, olhos no tecto, davam manifestamente voltas à casa interior. Coitados, se Deus não lhes valia, estavam aqui estavam a fazer tijolo. Para que não fossem ambiciosos! Os homens da escolta com os cocheiros e o guia, tomado em Guimarães, conseguiram desencantar um baralho de cartas e renhiam uma acirrada bisca samarreira. Mas a jogatina sem briol era como sermão sem lágrimas e arraial sem cacetadas. Tinha-se acabado o vinho e pediram licença aos dois guardiões para irem à sege buscar um barril que lá ficara. Ah, ali, sim, levavam um palhetinho dos Arcos
–
e
puxavam
a
aresta
da
orelha
num
gesto
de
aliciação
que
convenceria um santo quanto mais dois pobres diabos, patudos, gulosos e macarenos
–
primor,
Daniel
o
que
cantava dos
na
goela
Cardais
foi
a
música
da
autorizado
regaleira! a
cometer
Em a
vista
ao
diligência
necessária, que ele aproveitou bem aproveitada para especular o sítio e tirar o ponto. Volveu com o vinho e cascaram-lhe. Às libações associaram os dois custódios que em breve entravam com eles em súcia franca e confiada. Entre dentes o Cardais contou que fora encontrar a sege consertada e tudo mais,
inclusive
os
trabucos,
no
seu
lugar:
gente
séria,
sim,
senhor!
Entretanto descia a tarde. A encosta, face virada a poente, iluminou-se de amarelo doce, como se por ela abaixo escorregasse uma onda de azeite puro. Cantavam mais desesperados o cuco e a poupa. Havendo ganhado ânimo e, pois que tristezas não pagam dívidas, voltaram a comer e a beber, e ali os
dois patolos tiraram os ventres de misérias. Palavra puxa palavra, contaram as áfricas do Serafim, os lugarejos onde recebia acolheita, o seu ódio aos corcundas. E todos se derretiam em bazófias, orgulhosos de pertencer à guerrilha. Um momento ainda o Calheiros pensou suborná-los, com uma boa mancheia de dobrões na palma da mão. Mas o Cardais percebeu-lhe o intento e apertou-lhe o braço a tempo, ao passo que lhe segredava: – Assim não. Deixe-os comigo! Mais uma saúde, é desfeita se não bebes, chegai-lhe que este não o aveza qualquer filho da mãe, a certa altura estavam mais pesados que patos na engorda. Pela boca deles, souberam então, o que precisavam saber: o alferes tinha ido sair a caminho duma patrulha de miguelistas destacada do Marco para
Vila
Real.
Era
milagre
se
antes
da
meia-noite
estivesse
de
volta.
Sobrava-lhes tempo para fazer uma soneca. Ouviram a novidade os homens da escolta. O Daniel dos Cardais piscou o olho ao testade-ferro do Calheiros, que era homem de poucas falas, com ar obtuso
mas
atento.
Havia
que
aproveitar
a
ocasião:
ter-lhes
a
Divina
Providência mandado para carcereiros aqueles dois inocentes, nada de nada estreados
nas
safadezas
da
guerrilha.
Passaram
palavra
uns
aos
outros,
depois de se abocarem com os procuradores, e cada qual se dispôs a dormir, atirando-se para cima das faixas de palha. Dali a pouco, uns jaziam de borco, pregados num sono de chumbo, outros ressonavam mesmo como órgãos da Sé. Os dois guardas, quando os viram naquele estado, saíram para fora
da
casa.
fecharem
a
Estavam
porta.
bêbedos
Três
vezes
como o
cachos,
tentaram
e
foi
um
embalde,
brequefesta
entre
até
insultos
e
encontrões: – Larga, meu aranha, larga! – Não tens melhores unhas do que eu! Nem que te virasses nos cornos de teu pai! – Passa cá a chave e vais ver, meu pele de asno! Passa-ma ou arrebento-te com o juízo!? Só à terceira acertaram não fechar a porta em falso, nenhum dos dois dando conta que se encostavam a ela ao tempo que rodavam com a chave. Isto
feito,
divertidíssimos,
enrodilharam-se
no
patamar
e,
socando-se
amicalmente, caíram no letargo dos bons borrachos. O Cardais, que lhes seguira a manobra por uma frincha da portada, com um silvo pôs a malta a postos.
– Agora ou nunca! – proferiu desenganado. – Temos de andar depressa. Estão decididos a jogar a preta contra a branca? Dize tu, direi eu, depois de opiniões desencontradas e até conflituosas, chegaram a este apuro: o Daniel dos Cardais e o José Barba de Aço iam ver se era possível safar os cavalos e mulas sem darem conta. Ao mesmo tempo, botariam a garra aos trabucos. Se ainda estivessem no mesmo lugar, bem ia o negócio. Nosso Senhor havia de fazer com que assim fosse. Engatavam e tratavam de romper. Alvoroçava-se o poviléu...? Que tinha lá isso! Com um cachação a este, duas coronhadas àquele, calava-se-lhes a caixa. Se as coisas corressem a favor, em menos de meia hora, três quartos de hora, se tanto, estavam
em
Quintela.
assobiassem-lhes
às
Dali
botas.
até
Para
Mesão
ser
bem,
Frio
era
havia
de
um a
rufo.
sege
Depois,
achar-se
em
condições de rodar e recuperarem as armas, como tudo levava a crer que sim. Naquele meio tempo quem poderia ter-lhes pegado, uma vez que o Serafim abalara de espora fita antes da surtida do Cardais?
P.e Tirteu esboçou umas tímidas objecções: se entretanto os malhados voltassem em número e força para os sufocar? E se as duas sentinelas acordavam e davam o alarme? – Sosseguem – murmurou o Cardais. – Por esses respondo eu. – Suceda o que suceder, todos os expedientes são preferíveis a sermos identificados pelo malhado de Refoios – emitiu João Lopes Calheiros. – Pode acontecer que não nos conheça, mas duvido. Refoios fica a dois passos de Ponte de Lima. Lembro-me dum rapaz, que andou no seminário de Braga, natural da região, e que atirou com a sotaina aos quintos. Será esse? Se é esse, noutros tempos tivemos uma pega na Feira Grande. Mas estava
convencido de que era de Vilar do Monte. Se é ele, podem contar, amanhã ao romper da alba somos arcabuzados ou atirados para um despenhadeiro, porque
hão-de
probabilidade
querer
de
poupar
escapar,
as
seríamos
munições. muito
Oferece-se-nos
cobardes
ou
asnos
se
uma não
aproveitássemos. Por mim tem carta branca, Daniel dos Cardais. – Óptimo. Eu vou lá baixo fazer a sondagem indispensável. Aqui o senhor José vem comigo – disse o Cardais, apontando o Barba de Aço. – E tenham fé. Eu perca o nome que tenho se os não puser a são e salvo em Mesão Frio. Prometi-o a meu patrão, o Sr. D. Pedro de Tresmonde, hei-de cumprir a palavra honrada. – Toque – exclamou o Calheiros, estendendo-lhe a mão. O Cardais e o Barba de Aço penduraram-se do peitoril da janela que deitava para terras de Canaveses, dos lados de poente, e deixaram-se cair. Puf, caíram sobre lastro de tojo e urze, não quebraram nenhum osso. E Luís de Azevedo e P.e Tirteu fecharam as portadas de mansinho e vieram para a janela que deitava para o vale. Ali é que se ia representar o drama. Estava uma noite baça e não se vislumbravam os vultos dos objectos para lá de um tiro de espingarda. Uma vaguidão tenebrosa estendia-se dali em fora, vácua e cheia de frémitos, quase silente e possuída duma sonoridade secreta, vozes, música, e movimento das coisas não só na terra como no céu. O padre olhava em frente e tinha a impressão de pairar por cima do escuro, levado numa asa imponderável. A súbitas um ralo soltou duas notas do seu canto magoado e foi como a ponta dum punhal que furasse o odre de negrume. O espaço num instante se encheu e despejou. Depois, a coruja rompeu a lamuriar-se para os altos, às traseiras da casa, por cima de alguma cruz negra de homem morto. E Luís de Azevedo teve um arrepio de mau presságio. Estava em suspenso bem como o capelão aos ruídos do mundo. Em Carneiro escrevia-se-lhes a sentença de vida ou de morte. Apurando a orelha pareceu-lhes ouvir um chocalho, a meio do rumor das águas que rezavam a inalterável litania por toda a parte, e cuja soada flébil ou em esmorzo se casava com o próprio silêncio. O mais era paz, a paz espacial dos
ermos,
a
paz
imensa,
inconsútil
desde
o
princípio
do
mundo
em
despeito dos gritos de vida ou de morte dos homens e dos povos, que mal se acendiam
se
apagavam
no
próprio
fluir
do
tempo.
Nisto
ouviu-se
um
relincho e ficaram sem pinga de sangue. Eram talvez os seus cavalos, com a manjedoira às moscas, sabe-se lá desde quando, havendo sentido gente à
porta do estábulo e queixando-se. Seguiu-se-lhe outro relincho. Não havia dúvida. Os cavalos davam sinal de si. E as seges? Passou-se uma meia hora, e a coruja que cantava ali perto emudeceu. Subtis, os dois homens voltavam. Luís de Azevedo adivinhou-os, mais que lhes viu as sombras confusas adensar-se no escuro, pé ante pé, dobrados como feras que vão investir. Subiram os degraus do patim e, perante os dois rapazotes rolados no escuro, suspenderam-se um tempo de nada. Pareceu a Luís
de
Azevedo
cinemática:
um
e
P.e
a
braço
Tirteu
armado
de
ver faca
desenhar-se que
subia
no e
escuro
descia
uma
com
cena
rapidez
fulgurante e renovava o gesto, à banda, no molho de sombras. Mas nem uma palavra proferiram, recusando-se a aceitar o que era para eles menos uma convicção dos olhos do que palpite do instinto. Um nadinha se detiveram os vultos, dobrados para terra, a ultimar o acto ou a querer ler o quer que fosse no fundo opaco da noite. Em seguida, afoitaram-se. Reconheceram num deles o Barba de Aço que correu a chave com desengano e do limiar da porta bradou: – Saltem-me para fora! Mas é já! Vamos!... Vamos!... Estavam todos a postos, com a tralha na mão, e imediatamente se foram escoando na penumbra, primeiro os mais animosos, depois os mais tímidos. No patim, P.e Tirteu viu que descia pelos degraus, a partir das duas sombras condensadas,
uma
fita
mais
escura
que
o
escuro,
e
ia
desdobrando-se,
saltando duns para os outros ágil e irregular. Curvou-se para o chão a afirmar-se, mas já lhe dizia o Malheiro: – Homem, venha! Quer ministrarlhes a Extrema-Unção? O poviléu dormia a sono solto. Puxaram para a estrada os cavalos e as mulas e trataram de engatar. Faziam-no à lufa-lufa e atrapalhavam-se. Lá atinaram, com perda de alguns minutos preciosos, a porem-se em ordem de marcha. Começavam a respirar. Sentiam Deus a protegê-los. E as armas? As armas encontravam-se dentro das seges. Sim, senhor, o Serafim era mais honrado
do
que
se
supunha,
mais
honrado
ou
mais
palerma.
Deus
lhe
mandasse uma bala que o virasse para as profundas do Inferno sem lhe dar tempo a sofrer! Entretanto, por mais silenciosos que manobrassem, sempre repercutiu o rumor
da
abalada,
e
o
gentio
estremunhou
em
suas
casas
e
choças.
O
homem que se encarregara de pensar os cavalos rompeu ali primeiro que ninguém, de corpo bem feito, estadulho na mão. Pagassem-lhe o trabalho e
o comestio das bestas ou ia tudo raso! O Barba de Aço deitou-lhe a mão ao gasnete a atirou com ele pela ribanceira. Deram conta umas raparigas, que desataram lumieiras
em a
grande
cada
uma
clamor. das
Cresceu
bandas
da
logo
estrada.
o
burburinho.
As
mulheres,
Surgiram
em
monte,
faziam maior cacarejo que um poleiro em que entrou raposa. E a escuridão, com gente que ia, vinha, procurava acudir ao homem jogado ao chafurdo, povoava-se
de
vultos
caóticos,
compactos,
e
de
sombras
salitrosas,
mosqueadas de laivos claros, consoante lhes batia o revérbero das luzes. Havia que acender as lanternas das seges e foi um tormento pegarem as torcidas. À volta porém crescia o tumulto, um tumulto em que já era custoso ouvirem-se as vozes de comando. Enfim, os homens da escolta subiram para os cavalos com seus trabucos a tiracolo, e os fidalgos para as carruagens. Enquanto atavam e não desatavam, um lapónio ergueu o lampião e, topando um padre de cabeção e volta, disse-lhe: – Vossa Reverendíssima não quer dar a absolvição ao homem que está a morrer? – Qual homem? Tire para lá a lanterna que me cega os olhos... – O homem que atiraram ao barranco... – Eu o absolvo em nome de Deus Padre Todo-Poderoso. Diga-me uma coisa: Quintela ainda é longe? – Não, senhor, é logo aí acima. Estão aqui estão lá. A estrada é como a palma da mão – tornou o homem da lanterna. – O que é, tem as suas ladeiras e voltas. Vão-se encostando sempre à direita, se não sucede-lhes o mesmo que ao meu compadre... – Seu compadre?! – O homem que botaram para o barranco. Logo por desgraça este é mais alto que a torre dos Clérigos. – Conhece o Porto? – Fui lá sacristão em Santa Catarina. A
carruagem
ir
pôr-se
a
rodar,
o
que
oportunamente
o
eximia
de
prosseguir no diálogo. Que fim tinha o homem em vista, conversando com ele tão manu a manu? Provavelmente entretê-lo. Nem mais. Tinham calçado as rodas, à frente, com um grande pedregulho. A carruagem estava cravada no solo. O Barba de Aço teve de se apear, o que fez ameaçando terra e céu. Com o pé puxou o matacão para fora e, agarrando dele, jogou-o à rampa. Volveu a montar e, uma vez em sela, comandou: – Siga!
Ouviu-se a bulha de lança e tirantes; as mulas bateram o trote; as rodas mastigaram o solo. O Barba de Aço virou-se na montada: – Se me obrigam outra vez a descer, rebento a alma a meia dúzia. – E à ilharga do cocheiro: – Vai tudo em ordem? – Tudo em ordem. – Então toca-lhe, meu mosca-morta! Toca-lhe de rijo! Era sempre a subir. As carruagens rodavam aflitivamente morosas. À retaguarda iam quatro homens com o Barba de Aço de trabuco a tiracolo, na dianteira três, contando o Daniel dos Cardais. Calados como fantasmas. Dentro das seges os fidalgos continham a própria respiração. Se Deus fosse servido levá-los a porto de salvamento! O passo arritmado dos cavalos e rascanhar das rodas no solo, o sarambeque das sombras ao fuzilar trémulo das lanternas, vergastando ao acaso muros de suporte e precipícios, de que sentiam o boqueirão a cada hausto, sobre a esquerda, o baque contínuo das águas, tornavam a marcha soturna e quase macabra. O P.e Tirteu levava o credo na boca e fervorosamente rogava a Nossa Senhora do Amparo que o livrasse daquele lance, para o qual não havia concorrido com prego nem estopa,
sob
promessa
dum
trintário
de
missas
rezadas
com
um
ritual
escrupuloso. Os carros, a cada dois metros, emperravam. A certa altura, houve que saltar fora. Não foi o suficiente. A meio duma lomba, nem empurrados a ombro avançavam. As mulas haviam levado o dia inteiro sem comer e não arrancavam por mais que o cocheiro as incitasse e fizesse estoirar o chicote. Para os homens da escolta poderem puxar os carros, tiveram os fidalgos de conduzir os cavalos à rédea. Foi numa destas conjunturas que aconteceu a Luís
de
Azevedo
sentir
o
ombro
de
Daniel
dos
Cardais
roçar
no
seu.
Desviando-se com náusea, julgou-se obrigado a dizer, entre dois froixos de riso para amenizar o remoque: – Escusava de os matar. Estavam bêbedos como cachos, bastaria amarrá-los... O
testade-ferro
do
senhor
de
Tresmonde
não
respondeu
desde
logo.
Azevedo julgou que já não responderia, quer por desdém, quer por não saber como desculpar-se, quando lhe ouviu por entre dentes como uma serpente que silva: – Olhe, meu fidalgo, já lá tinha cinco. Não andava contente comigo. Faltavam-me dois para completar os sete pecados mortais. Satisfiz o gostinho. Rezei os sete pecados mortais da Liberdade. Se outros fizessem o que eu fiz, acabavam-se os malhados em Portugal.
Os carros agora não iam para baixo nem para cima. Daniel dos Cardais correu furioso a apostrofar o cocheiro: – Raios te partam, ladrão, meteste o carro no atoleiro! Estavam naquele transe, ressoou grossa tropeada à retaguarda. Grandes fachos, balanceados no ar, retalhavam a escuridão da noite. Os homens da escola e o Cardais tiveram ainda tempo de formar atrás das seges e aperrar os
trabucos.
O
bulcão
de
cavalaria
e
o
vozeado
cresciam
para
eles,
desenhando-se sua massa infernal nas curvas e contracurvas do caminho. Quando assomou ao fundo da encosta, o Daniel dos Cardais gritou à sua gente: – Firmes! Deixem-nos aproximar... Eram
homens,
eram
demónios?
O
tropel
da
cavalgada
escoava
pelas
concavidades do vale num fragor medonho. – Fogo! – comandou o Cardais. Tinham apontado ao monte, e só deram conta que nem um só tiro partira dos seus trabucos e pistolas quando se viram cercados por uma horda que uivava, os fuzilava à queima-roupa e acutilava. – Não matem as bestas que precisamos delas! – gritou por cima do tumulto uma voz imperiosa. Manhã
alta,
Luís
desfiladeiro, com
P.e
de
Azevedo
acordou
do
coma,
a
meia
rampa
do
Tirteu ajoelhado aos pés. Fechou os olhos, tornou a
abri-los, torceu os lábios roxos numa expressão de infinita mágoa, e ciciou uma palavra que envolvia por certo todos os seus amores e o derradeiro sopro: – Casa de Romarigães... casa da minha alma, que te não torno a ver! – Nossa Senhora do Amparo o receba nos seus amorosos braços!
XV
Aquele portal, estreito e meio esbarrondado, onde mal cabia uma parelha de cavalos, mandou-o desde logo abater e reconstruir. Em vez de uma porta só, gizou uma de carro e outra de serviço, com grandes tranqueiros de pedra lavrada à escoda e frades de resguardo às duas bandas. Sem faltar à traça primitiva setecentista, coroou-o de esbeltas pirâmides. No frontão inscreveu – bela peça heráldica, cinzelada a primor – as armas dos Montenegros entrecorridas
com
as
dos
antigos
donos.
E
nada
mais
sobranceiro
e
filaucioso que essa entrada em cuja porta de ferro, de bandeira, um mestre serralheiro hábil estampara ainda o seu brasão ovante. Até longe, os visos do caminho que remontava das Pedras Finas, parecia gritar: – Aqui está um Montenegro! O
menino
manhã
exposto
gélida,
e
no
Convento
recolhido
pelo
das
bom
Franciscanas cirieiro
de
Aniceto
Braga do
por
Bento
uma
Lado,
sucedera a seu pai, D. Luís António de Antas de Azevedo e Meneses, no morgadio da Casa Grande. Era o sexto dono e senhor. Em vista porém da menoridade, quem ficou na posse virtual do vínculo foi o avô e tutor D. Telmo Montenegro Iraizoz Sottomayor e Valadares. Deus escreve direito por linhas tortas. Mil graças lhe fossem rendidas, que dera por resgatadas as faltas do descendente de Fávila e o conduzira a paradeiro igual ao da Terra da Promissão! A
primeira
coisa
que
o
fidalgo
cometeu
foi
lavrar
acto
de
presença.
Ultimada a airosa fábrica do portão, para realce da arrogante heráldica, plantou
no
Campo
da
Igreja
duas
araucárias
que
seriam
como
os
passavantes do solar. Tais plantas, para vingarem, têm que ser enganadas na sua
idiossincrasia
de
subtropicais,
pelo
que
são
de
tenras
e
friorentas.
Morreram glaciário
com
e
o
áspero
todo
que
que
o
sobreveio
caramelo
numa
cobriu
as
manhã
de
árvores
Dezembro,
da
tão
fantasmagórica
vidraçaria e penetrou no solo mais fundo que agulhas de meia. D. Telmo persistiu
na
sua
fantasia
botânica.
Os
novos
pés
agasalhou-os
das
intempéries debaixo de chapelões de palha. Cresceram sem licença de Deus uns dois ou três anos a poder de cuidados e adubo. Depois começaram a cismar e morreram. E D. Telmo concluiu que tais plantas gostam dum solo gordo, solto e fácil de penetrar com o radiculado, indolentes e fidalgas como são. No Amparo, a terra era mais apta às plantas viris, os carvalhos, os pinheiros, os castanheiros que fabricam o seu solo, estoirando a rocha e desagregando o folhado do xisto como se abrem as páginas dum livro. E desistiu de ver a casa do neto estremecido anunciada, a quem ia em trânsito, por essas árvores engraçadas como pagodes, onde a aragem vem desferir baixinho arrufos de melancolia. Plantou ciprestes e, esses, talvez porque avistassem de perto a ascética serra da Arga, puseram-se a crescer na ânsia de serem mais altos e agarrar as nuvens. E era, avenida fora, uma formatura de gigantes, perfilados em suas cotas de veludo e bronze, que dava à quinta um ar distinto e senhoril. Mandou vir também três casais de pavões que soltou na mata, e bichos foram eles que acabaram por pintar o arco-da-velha. Tanto para D. Telmo como para o neto era um regalo vê-los arrastar sua capa de asperges de arcebispos
de
Bizâncio
pelo
pátio,
quando
a
moça
lhes
vinha
deitar
o
milhinho raçoado, no meio da mais criação. Os perus, atrabiliários por natureza, não gostavam de ver os parentes no farricoco sacerdotal e às vezes cresciam para eles, indignados. Como porém são cobardes em extremo, detinham-se a meio da investida com o ar de bravi que desdenham do adversário.
Armavam-se
também
e,
ufanos,
movendo-se
com
lentidão
litúrgica num espaço estreito, roda à direita, roda à esquerda, não era raro ensaiarem um arremedilho de sapateado. Todo o seu manejo consistia em mostrar
magnificência,
à
laia
de
sátrapas
ensoberbecidos.
Entretanto
os
pavões palmilhavam de cá para lá, cabeça baixa, ar não-te-rales, a rebolar na órbita
o
palúrdios.
olhinho E,
muito
luminoso
subitamente,
à
voz
e
sarcástico,
dum,
que
porventura
teriam
eleito
a
rir-se
por
dos
maioral,
levantavam em rabanada, direitos à mata, ao pomar ou horta, cujos primores eram para eles. O hortelão odiava-os figadalmente. Além de esmordicarem
as
couves,
que
não
havia
uma
que
estivesse
intacta,
arrasavam-lhe
os
alfobres à cata dos vermes da leiva. – Cleô, Cleô! – gritavam do meio do arvoredo num miado tão rascante na quietude da tarde, que as pitas na capoeira e as vaquinhas no pasto pareciam ficar arrepiadas. – Que raio de voz! – exclamava o pequeno. – Estão vingados os perus... –
É
a
chamar
por
Cleópatra,
rainha
do
Egipto,
que
andava
sempre
rodeada de pavões. – Mas eles dizem Cleô, Cleô...! – À francesa, filho, chamam por ela em francês familiar. A língua dos Faraós perdeu-se – comentava com um sorriso bem legível de facécia o velho salafrário. – Parecem estúpidos... – disse outra vez o neto ao olhar-lhes para aquela cabecinha de arolo, coroada dum penachinho de grisette parisiense. – Têm os pés feios... – São mais inteligentes que a Maria das Domas que lhes vem dar de comer. Se fossem estúpidos, não teriam os Gregos escolhido tal ave para figurar
no
mesmo
plano
ao
lado
das
divindades.
Os
Gregos
nunca
dissociavam inteligência de formosura. Mira, Telmito, como se estimam e compreendem... Lá quanto às patas, foi castigo... para não serem mais tolos do que o que são. O
pequeno
estacava
a
observá-los
em
seus
costumes
íntimos
ou
familiares. Acontecia um dos pavões ter uma pálpebra atacada pelo piolho. Com a carda do pé coçava-se, rascanhava e, não se sentindo aliviado, roçava a cabeça numa pedra. A vérmina, pegadiça, ferrenha, nem assim cedera. Ele então ia mostrar à pavoa, sua mulher, a pálpebra infestada. A pavoa punhase a mirar; imprimia um esticão à cabeça como médico que puxa de toda a sapiência ao mostrarem-lhe tal ou tal mazela. E, uma vez instruída do axe, como se manobrasse uma pinça, dava-lhe umas tantas bicadas, exactas e rigorosas a preceito, a tirar a bicheza. Toda esta operação a pavoa praticava com
jeito
e
medida,
isto
é,
repetiria
tantas
vezes
as
bicadas
quantas
entendesse necessárias até catar o piolhinho na pálpebra do esposo. Não raro, o pavão, meia dúzia de passos andados, voltava cabisbaixo a oferecer a face ao conspecto da pavoa. Ela compreendia: o ninho de piolhos fora apenas desinçado. E com a atenção e delicadeza anterior voltava, tape! tape! tape! a espiolhar a pálpebra. Se o pavão se tinha por limpo da bicheza,
depois de duas cabriolas a bater as asas em sinal de satisfação, encostava reconhecido a face à face dela ou afagava-lhe o pescoço com o pescoço, como se dissesse: all right! – All right! – exclamava o pequeno que havia prestado bom ouvido à explicação do avô. – Sim. Eu traduzi em inglês com licença tua e sem desfeita para eles. O gentio vinha para ali admirá-los, com aquelas olhas cromáticas no leque caudal, mais bonitas que amores-perfeitos e o Sol a pôr-se, e os Manéis, se podiam ripar-lhes à socapa uma das penas para enfeitar o chapéu dos domingos, faziam-no enquanto o Diabo coça a bunda. As pacatas vaquinhas, aliás esplêndidas estampas, com que D. Telmo animara as encostas verdes da quinta, votavam não menos azar aos pavões. Andavam
na
mais
beatífica
e
meticulosa
tasquinhação,
quando
eles
desferiam por cima delas em vertiginoso e rompante arco-íris. A tromba espavoria-as e, até que sossegassem, fartavam-se de tropicar e bufar. Avô e neto riam às escâncaras de tais peloticas. Não se consagrava D. Telmo apenas aos pavões, mas ao aviário, em geral. Tinha duas catatuas, duas araras, um papagaio cinzento e outro verde, muitos periquitos, e um flamingo que, às vezes postado sobre uma perna a meio da veiga, cabeça rolada
para
o
colo,
criava
a
confusão
à
vista
duma
ave
e
duma
rosa.
Gloriava-se ainda dos lindos sabiás e dos corrupiões, um dos quais, se lhe mostrassem um bocadinho de pão-de-ló embebido em vinho fino, dizendolhe:
canta,
corrupião!
cantava
que
nem
uma
caixinha
de
melodias.
Os
melros, uns três, viviam em boa paz com as rolas da índia. Dois rouxinóis ainda, que não eram cegos, habitavam um palacete de bambus, à parte, na solidão
dos
derretiam-se catatuas
e
loureiros, em
e,
motetes
araras,
que
assim e
o
tratados,
esqueciam-se
epitalâmios
quando
conheciam
à
légua
chegava com
o
do a
cativeiro
sua seu
hora. bigode
e
As à
Vercingétorix, ele a acercar-se e a celebrá-lo com algaraviadas e palinódias. Simultaneamente os papagaios batiam o sarambeque nos poleiros de zinco e os periquitos grulhavam, aos saltaricos e voejos contra as grades da gaiola, desinquietos como meninos na aula a quem se anunciou o Roberto. Tal era o paraíso que vinha recompensar D. Telmo de muitos anos de homizio e de penitência por almuinhas e furnas, roto e desesperado, tantas vezes a pão e água. De permeio, dava Graças a Deus! Como espanhol de verdade, acreditava no outro mundo e na redenção dos corpos. Mas ia
aproveitando este pelo melhor, segundo um entendimento muito particular da vida através das Escrituras. Por causa dos pavões, esteve o velho fidalgo, rebento longínquo dos reis godos asturianos, a pagar caro o desfrute e prazer que gozava no éden de Romarigães. De todos os sítios da mata, onde aquelas aves caprichosas mais gostavam de se empoleirar para fazer a sesta ou dormir a noite, era do lado de lá da lomba, numa mimosa colossal que crescera à ilharga da capela de S. Tiago, no caminho para Casais. Mal escurecia, ei-los chegados, o que eles próprios denunciavam pelo grito lamentoso, meio nostálgico, meio assanhado, de tigre real: Cleô! Cleô! Aos carvalhos anosos e barbaçudos, que viram passar os tiufados de Hermenegildo, e aos pinheiros mansos, árvores tão pacíficas e solenes que têm
ar
de
parodiar
a
curva
do
firmamento,
preferiam
aquela
planta
esguedelhada, sem pátria, todavia boa galdéria, luxuriosa e cheia de sexappeal. Era pelo menos uma exótica como eles, emigrada lá de cascos de rolha, donde talvez o fatacaz que tinham por ela. É verdade que também caíam no seu feitiço os romeiros que na festa do orago a esfrançavam, as raparigas para enfeitarem o peito, os rapazes o bolso da jaqueta ou ainda entalar um raminho detrás da orelha. Aquele amarelo gordo, farto e sensual carregava-se
de
floridas,
pavões
os
tentação
para
os
olhos.
gostavam
de
ir
Mesmo
quando
encarrapitar-se-lhe
não nas
estavam pernadas,
chamados talvez pelo parentesco íntimo que os ligava a ela e lhes transmitia gostos e formas comuns de simpatia e identidade. O certo é que à sua sombra redolente desatavam os devotos os farnéis e os namorados trocavam beijos, na boca das botelhas e borrachas, quando os não davam lábio com lábio
por
detrás
dum
chaparro
ou
de
qualquer
jeito
mais
ou
menos
paradisíaco. D. Telmo sentia que os adorados bichos fossem pernoitar tão longe, fora do seu olhar vigilante. Mas pela manhã, eles lá. estavam por debaixo das janelas a alegrar os prados, ou o pátio, depois de soltarem umas tantas vezes aquela sua azougada e hieroglífica fanfarra. Ora, certa manhã, uma das pavoas apareceu retardatária à primeira ração, muito amarfanhada e a pincharolar num pé só. A Maria das Dornas lá conseguiu deitar-lhe a unha a ver o que era. Tinha a perna partida. Como foi, como podia ter sido, assentaram que não fora raposa nem qualquer outro
bicho bravo, que não eram aves para se deixar surpreender por tal raça. Devia antes ver-se ali o golpe, mal sucedido, do caçador bandoleiro que lhes jogara a pedra ou a moca. Quem o praticou voltaria a campo, e D. Telmo pôs-se
de
atalaia.
Os
seus
sabujos,
bem
como
os
dois
são-bernardos,
obedeciam-lhe ao gesto e ao toque da buzina melhor que soldados às vozes do clarim. Todas as noites, ao despedir das ave-marias, deixava os cães em casa e batia mata e tojais com vagar e pela sonsa. Os ujos choravam no coruto dos pinheiros velhos; alarmados sabe-se lá porquê, de raro em raro os pavões lanceavam o silêncio com a voz atrida e estridulosa. Os coelhos saíam dos brejos e avançavam aos saltinhos e pé ante pé, orelhas rasas com os lombos, por vezes uma derrubada, outra guicha, para a horta e o ferregial. E no encalço, pelo largo, a coberto dos troncos e das monticulações lanternas
de
do
terreno,
furta-fogo,
à
iam
os
espera
toirões,
de
campo
pupilas para
amortiçadas
lhes
salvar
à
como
suã.
Os
noitibós voejavam em parábola ao acercar do seu vulto, e ele via-as mais longe, no carreirinho de pé posto, de olhos acesos como candis, a espiar-lhe a marcha. Os pombos bravos erguiam em sobressalto dos ramos altos dos pinheiros
e
estreloiçada.
abalavam O
homem
no era
escuro o
para
inimigo
outras
número
paragens um
dos
com
bichos,
grande e
esta
desconfiança e instintiva pavidez palpitava-as D. Telmo a cada hora na fuga e atenção precauciosa de todos eles ao simples chapejar do sapato. Noites após noites procurou D. Telmo, com tanta fleuma como paciência, o caçador furtivo dos seus pavões. Tinha o palpite que, mais tarde ou mais cedo, ele se daria a conhecer. E tanto porfiou que acabou por identificar num vulto, que lançava as armadilhas aos coelhos numa encruzilhada de carreiros, o homem fantomático. Por escrúpulo de consciência deixou-o completar o trabalho e mesmo ir-se em boa paz sem que desconfiasse que era espiado. Dias decorridos, surpreendeu-o a armar os fios na vereda que cortava da mata a direito para o paul, uma seita secreta das lebres que vinham
comer
à
horta.
Limitou-se
a
desmanchar
o
laço.
Em
seguida
apanhou-o a armar a uma perdiz, que já começara o tempo da postura, depois de lhe trocar os ovos por bugalhos. Quem era ele? O Pimpolim, sapateiro-remendão, mais visto e achado nas tavernas a puxar a bisca que no sótão os liços das gáspeas e meias solas. Chegara a ouvir dizer que a mata do Amparo lhe fazia as vezes de salgadeira, uma vez que não matava porco. Mas como era um pobre diabo, com dois ou três miúdos, maltrapilho,
inconformado com a sovela, rebelde impenitente e vagabundo de Deus, fez vista
grossa.
porventura
D.
Telmo
porque
tinha
também
o
ele
fraco o
fora
por num
estes
irregulares
degrau
acima.
do
mundo,
Levar-lhe
os
coelhos e as lebres era uma malefício venial; matar-lhe os pavões não tinha perdão no pretório da sua consciência por muito passa-culpas que fosse. Decidido a dar-lhe um ensino, redobrou de vigilância nas suas roldas e sobrerroldas. E, afinal, quem sabe se de facto seria ele o salteador? Certa noite, os pavões, depois de meia farândola por cima dos pinheiros mansos, havendo com a doçura do céu cismado na capela da quinta, uns nas pirâmides, outros no campanhário, desceram ao poiso de sempre, à beira de S. Tiago. D. Telmo via-lhes a mancha mais espessa e oblonga contra a lactescência
celeste
de
que
se
marchetava
a
folhagem
da
mimosa.
Escarmentada, a pavoa, cuja perna suturara à força de desvelos e depois duma quarentena de enfermaria, escolhia agora com o macho, para passar a noite, um dos pinheiros velhos mais próximos. Os outros dois casais, quer advertidos, quer houvessem senha da pirataria, ainda que continuassem a empoleirar-se na mimosa, faziam-no agora sistematicamente nos galhos do coruto. D. Telmo, subtil e matreiro, não perdia de vista os bichos preciosos, rondando por detrás dos chaparros e tojos molares que ali atingiam uma altura de mais de homem. E uma noite baça, com o céu lívido como zinco, a que mal iluminava a lua nova do seu nascente, viu vir o Pimpolim com os ferros dos coelhos às costas, armá-los e discorrer de gargalo no ar por debaixo da mimosa. No dia seguinte voltou com o lusco-fusco, munido duma
espécie
de
cacheira
pouco
maior
que
o
arrocho
que
usam
os
almocreves nas cargas, quase o aléu de jogar a bilharda, sobre o grosso. E mais surdo que o texugo, descalço como andava, foi até debaixo da mimosa, onde se deteve. Depois de circunvagar olhos desconfiados a toda a roda, pôs-se a estudar a posição dos pavões. Esteve imóvel um bom migalho e, ao fim e ao cabo, retirou-se. D. Telmo, reprimindo
o
fôlego,
viu-o
passar
quase
rente
a
ele,
a
passo
arrastado,
cabisbaixo, sem dúvida de orelha murcha. E disse para consigo: achou os pavões empoleirados muito em alto para ter a certeza de não errar o golpe. Claro que, se errasse, eles levantavam e iam dar alarme. Isso é que ele não queria
por
nada
deste
mundo.
Quantas
vezes
o
ladrão
não
há-de
ter
reflectido: se os pavões não fossem as aves forçudas que são, com visco lhes
dava eu o catatau! Se dava!... Mas com a fateixa daqueles pés, pegavam-se lá!? Segunda
noite
repetiu
Pimpolim
o
manejo,
para
também
desistir,
abanando a cabeça. À terceira noite, ou porque viesse decidido ou a posição dos pavões lhe parecesse mais condicente com o seu propósito, logo de princípio se mostrou com outra ralé. Assim, depois de escrutar a copa da árvore bem dum lado bem doutro, cabeça tombada para as costas, movendose à direita, movendo-se à esquerda, o olhar apontado ao alvo, estacou, é de crer
porque
acabasse
por
deparar
campo
favorável
ao
tiro.
E,
de
facto,
balanceava já o zarguncho na mão, braço estendido obliquamente sobre a perna direita, prestes a arremessá-lo, quando D. Telmo, num pulo, o filou pelo gasganete: – Ah cachorro que sempre te pilhei! Querias almoçar pavão, hem? O Pimpolim, que era robusto, entesou-se com o fidalgo. Mas este, quando viu que ele ia erguer a cacheira e mandar-lha à cabeça, descarregou-lhe duas pancadas de modo tão fulminante e vigoroso, de farpão pelo ombro, com a grossa bengala de volta de rangífer, que ele deixou cair logo o pau, partido ou
dormente
o
braço.
Em
vez,
porém,
de
aguentar
e
boca
calada,
o
Pimpolim, na sua refinadíssima desvergonha, rompeu em grande clamor: – Aqui-d’el-rei que o espanhol da Casa Grande quer-me matar! Aqui-d’el-rei que já me partiu o bracinho! Aqui-ii-d’el-rei-ei-ei!!! Berreiro foi ele que os pavões ergueram voo, estramontados, soltando o grito felino, e a gente de Casais, que estava com a tigela da ceia na mão, acudiu ali em peso. D. Telmo deu conta que o Pimpolim sangrava da cara, arranhado por um tojo no momento de querer esquivar-se à bengalada e que, de mau, com as unhas se esgadanhava mais. Mas não se via à luz do quarto. Tocando com o focinho
no
focinho
do
sapateiro,
acabaram
então
por
vê-lo
no
que
chamavam «bonito estado», sujo e sangrando como um santo lázaro. E ergueu-se logo o rumor. D. Telmo não era simpático ao gentio com a sua prosápia altaneira de espanhol, descendente de Fávila, rei dos Godos, e a opinião foi-lhe logo hostil. O Pimpolim açulava os ânimos: – Ia de meu passo para o moleiro da Pedrosa – estavam realmente à beira do caminho de pé posto, que com o tempo revertera a logradoiro do público – quando este homem me saltou à frente e, sem quê nem para que não, encheu-me de pancadas.
Sejam
muito
boas
testemunhas!
Se
morrer,
já
sabem
de
que
morri!
Não
posso
mexer
o
braço.
Partiu-mo!
Partiu-mo!
Arrebentou
comigo! Já me veio o sangue à boca. Sejam muito boas testemunhas! – Coitadinho! Que mal lhe fez o prove? – São lá feitios! Aqui é passage do povo... – Eu ia na minha devoção, assim Deus me salve! – grunhia o Pimpolim. – Queria matar-me os pavões – balbuciou D. Telmo. – Eu há muitos dias que o trazia de olho... – Matar-lhe os pavões...? Raio venha se eu alguma vez pensei em tais alimais! Onde é que eu os matei?! –
Eu
não
lhe
queria
fazer
mal
–
alegava
o
fidalgo.
–
Ele
é
que
se
endireitou comigo, de pau no ar, e tive que me defender... – Mentira! Eu ia de meu caminho em paz e dia bom! Mentira! Ele é que é homem de má raça! Não tivesse ele matado o padre! – Já disse, este homem queria chegar aos pavões. Foi ele que há umas duas semanas quebrou a perna a uma pavoa... – E por causa dum pássaro, vindima-se um homem? – perguntou com tom ameaçador um mariolão que mais de uma vez fora perdoado de matejar na quinta. – Mas ele está morto? – tornou D. Telmo, de ar afrontado. – Arrebentou comigo. Nem posso respirar. À luz indecisa da Lua nova, em despeito de estarem numa clareira da mata, D. Telmo viu em torno de si uma turbamulta pouco tranquilizadora. Já uma voz esganiçada de megera clamava: – Mate-se o espanhol! Matemolo, que veio ele aqui para a nossa terra inquietar quem está quedo?! – Mate-se! – ganiu outro. – Esta terra não é dele. Que vem para aqui dar leis? – Mate-se! Mate-se! D. Telmo reparou nuns homens que andavam de gatas, e compreendeu que procuravam pedras pelo chão para lhe atirar. Mas além de que ali o terreno, por sua natureza, poucas teria consentido à superfície, seria difícil dar com elas à luz nocturna. Pelo sim, pelo não, calmo, mas pronto a tudo, pegou da bengala pela ponteira e foi-se encostando a um pinheiro, no gesto instintivo, que logo reconheceu como sendo o modo de evitar tanto quanto possível que o agredissem pelas costas. E aconteceu-lhe sentir no pulso o frio da trompa. O mais prudente – pois que o arraial crescia – era tocar. Tocar como Roldão, mas decerto com outro sucesso. E, levando a buzina à
boca, soprou. Ora, foi expediente abendiçoado! Cada um se escamugiu para seu soito. O Pimpolim sumiu-se primeiro do que ninguém. A descer da Casa Grande,
pelo
caminho
da
fonte,
ladravam
à
charachina
os
sabujos
de
coleiras de puas e os dois são-bernardos. Logo atrás vinha a jolda toda dos criados com o neto. – Porque tocaste, avô? – perguntou de longe. – Foi manobra, filho. Queria ver se as minhas hostes acudiam ao sinal... A caminho de casa, visivelmente satisfeito, contou que os vasconços, a mando dum fero piratão, o haviam cercado em Roncesvales e se dispunham a exterminá-lo. Mas desta feita valera-lhe o toque do olifante. Depois, sozinho com o neto, depondo a linguagem metafórica, contou o passo todo em sua realidade nua e crua. Telminho rangia os dentes: – Ah! havia eu de lá estar! – E que fazias, meu filho? – Que fazia? Trincava os fígados ao Pimpolim. Mas deixa, quando o vir, paga-mas bem pagas. – Não, meu filho, se lá estivesses e fosses sensato, fazias o que eu fiz. Aconselhava um velho e prudente fidalgo português, D. Aleixo de Meneses, ao príncipe doido e temerário: o que puderdes alcançar por paz nunca o tomeis com guerra. Eu bem sabia com quem estava metido. Depois, cá o meu rangífer não fica a dever nada à durindana! O saber de P.e Tirteu era limitado. Além disso, o mestre cincava de todo na disciplina pedagógica. A lição acabava às vezes a cantarem os dois o Rei chegou.
Em
suma,
P.e
Tirteu
parecia
mais
um
padre
evadido
dalguma
Abbaye Thélème do que um cura de almas e muito menos o preceptor em artes de menino nobre. Houve que enviar Telmito para Braga, como aluno externo do acreditado colégio da Virgem Intemerata, cuja direcção, a cargo do P.e Mariano, sábio beneditino, era celebrada em vila e termo. Quem era fidalgo e tinha posses mandava para ali os pimpolhos. Ensinavam-nos a rezar e a ajudar à missa, a escrever uma carta em boa caligrafia garrafal, a ler correntemente na Besta Esfolada. Ultimamente haviam introduzido a dança no número das boas prendas que ali se iam buscar, dois passos da gavota pro forma, e boas maneiras
no
Manual
de
João
Rosado
de
Vila
Lobos
e
Vasconcelos.
Educação
para
morgados,
mas
já
retardada
para
o
tempo,
porquanto
Mouzinho da Silveira erguia o facão a cortar-lhes vínculos e privilégios. Mas era como era. Foi um dia de páscoa esse em que o pequeno, descavalgando no Campo de Santa Ana à porta do cirieiro, exclamou para dentro, ao entrever Aniceto do Bento Lado de bruços sobre o balcão: – Paizinho, aqui me tem... E por muito tempo! O
cirieiro
ia
caindo
fulminado
de
alegria,
se
bem
que
a
Quinta
do
Amparo fosse recreio seu às temporadas. O muito tempo cifrava-se nos dois ou
três
meses
do
período
escolar.
Mas
naquela
hora
para
Aniceto
e
Felismina foi como se lhes anunciassem a beatitude à mão direita de Deus Padre e com os anjos em volta. D. Telmo, entrando com prosopopeia pelo estabelecimento dentro, disse para o amigo cirieiro: – Aqui lhe trago, meu velho, o seu menino. Dêem-lhe quantos abraços e beijos queiram, vossemecê e a D. Felismina, mas façamno estudar. Não vem para outra coisa. Trataram logo de instalá-lo no melhor quarto da casa, com janela, donde se avistavam beatas e beatinhas, tupa que tupa, para a Igreja de Nossa Senhora a Branca. – Fica aqui que nem um príncipe – encarecia Felismina para que o avô soubesse que era tratado tão bem como em Romarigães. – Aqui se há-de fazer doutor se não tiver bossa para padre! – proferiu por sua vez Aniceto, compartindo, optimista, da hipérbole geral. – Não deixas passar fome ao meu pónei...? – disse para o avô, no acto da despedida, fazendo beicinho. – O teu pónei fica ao meu cuidado. Tua mãe não pega nele ao colo porque pesa muito. Sossega e aprende. Adeus! Galopou campo fora, deixando o netinho entre os pais adoptivos, de lágrima no olho, se bem que de sorriso nos lábios, tal como o céu de Maio quando, interferido por uma nuvem baixa, se obscurece com bruscas e ralas cordas de água. D. Telmo no fundo do peito chorava a ausência do neto, com quem dia a dia corria a quinta, prados, bosque e colinas, ora a trote, ora a galope dos cavalos, sempre bons camaradas, porque nada se parece com a alma dum velho como a alma dum menino, o nascer com o pôr do Sol. Entretanto, D. Telmo voltou com novo afinco a procurar, no arraial desfeito dos
conventos
com
a
extinção
das
Ordens,
a
netinha
que
D.
Luís
de
Azevedo
expusera
anteriormente
a
Telmo,
em
Santa
Clara,
de
Vila
do
Conde. D. Maria Carantonha todas as manhãs lhe pedia de joelhos e mãos postas: – Paizinho, a minha menina!? De elo em elo, na inimaginável barafunda, foi bater às franciscanas de N.ª S.ª
da
Misericórdia,
de
Caminha.
Ali
fora
albergada
uma
menina
que,
devido à profusão dos expostos, viera de facto transferida de Vila do Conde. Mas,
pelo
mesmo
motivo,
a
tinham
remetido
para
as
beneditinas
de
Salvador de Vairão, comunidade rica e menos atreita a tal comércio. D. Telmo
botou-se
estivera
ali
lá
uma
esperançado
menina,
no
chamada
fanal
da
Gracinda,
ténue triste
luzinha. e
Realmente
engelhadinha,
que
falecera dois anos depois de entrar. Não era aquela? Doutra não tinham conhecimento. Era preciso voltar ao ponto de partida. Seguiu nova pista, que o levou a Guimarães, às dominicanas de Santa Rosa. Certa criancinha do sexo feminino saíra com efeito daquele convento, levada por um casal de lavradores de Montalegre, onde guardava cabras. Chamava-se Gertrudes e era morena como a amora dos silvados. Tão-pouco era aquela. Constou-lhe que, por alturas do enjeitamento, as freiras do Convento das Chagas, em Lamego, adoptavam todos os expostos dos conventos menos providos de recursos, visto poderem, mercê das rendas, que eram avultadas, custear-lhes a criação. Cavalgou para Lamego. As boas claristas, que foi surpreender de lágrimas
nos
olhos
em
transe
de
abandonar
a
casa,
mostraram-lhe
os
registos das entradas e saídas da roda, bem como o rol das filhas adoptivas dos demais claustros da Ordem de Santa Clara. Nenhuma, nem pelo nome, nem pelos sinais, condizia com a filha de Maria Carantonha de Montenegro. A menina tinha-se submergido no mare magnum monástico de Entre Douro e Minho e arredores, ainda antes da ressaca liberal. Acaso existia ainda? Agora encontrá-la só por milagre. Mesmo assim, passaram senha sobre senha a todas as mesas liquidatárias das comunidades religiosas femininas de Portugal e ainda para os claustros da Galiza. Desonerado, a seu pesar, deste encargo, meteu-se em obras, grandes obras de
restauro
e
alindamento
da
quinta,
rendido
ao
gosto
de
fausto
e
sumptuosidade. Parado não podia estar um momentinho. O seu regalo era demolir
morros,
erguer
arretos,
levantar
muros
e
telhados.
Para
tanto
contratou obreiros em barda, alvenéis, saibradores, e bons marceneiros. Entretanto sua filha D. Maria Carantonha mirrava com doença que, por falta de manifestações ostensivas, chamavam de pasmo. Diziam os médicos
que
tinha
sua
sede
na
alma
onde
não
chegavam
os
remédios
nem
as
lancetas. Por mais carinhos que lhe prestassem, não havia modo de atalhar aquela
sua
cerrada
melancolia,
mormente
depois
que
o
filho
fora
para
Braga. Pareceu a D. Telmo que no grande solar havia silêncio a mais e espectros condensados no ar. Para salas tão vastas, a gente era pouca. E chamou de Salvatierra duas velhas irmãs que lá deixara a usufruir o seu património,
solteironas,
indemnes
ao
tempo,
duras,
hieráticas
e
verdadeiramente castelhanas, mais castelhanas que a serra Morena. Uma chamava-se Dolores e, ao que era de presumida, crédula e arcaica, só lhe faltava uma troca de letras para ser a Dolorida ressurrecta do Engenhoso Fidalgo. A outra, D. Escolástica, era grande rezadeira, filosofal nas horas vagas,
e
sabia
anexins
sem
conto
e
condimentar
como
nenhuma
freira
marmeladas e gulodices. Estas duas sombras ajudariam a encher as salas ermas da Casa Grande e, verdade seja, encheram-nas de fantasmagoria e metafísica. envoltas
Não
em
deixavam
crepes
de
negros,
à
revestir beira
o
dum
seu
donaire
açafate
de
aquelas
silhuetas,
costura
ou
duma
almofada de bilros. Os róseos abades do Minho quando davam de cara com tão
respeitáveis
matronas
persignavam-se
mentalmente,
confundidos
de
todo, supondo-as ectoplasmas de dueñas filipinas. Levado por aquele sentido de actividade, que era o seu fraco ou o seu forte, começou D. Telmo a demolir os pardieiros do Espinheiro e com a pedra a remontar os muros da quinta. Era tarefa a longo prazo, mas, uma vez assente o plano, nada o fazia recuar. Pouco a pouco, do lado do sul, onde o caminho se tornara com o trânsito e as enxurradas ravina profunda, elevouse uma espécie de muralha feudal, sólida e para a eternidade. Restaurou ainda os muros que delimitavam a quinta do lado de Moldes, contra a artéria de ligação dos lugares, golpeando-os de janelas por onde criados a abegões vissem passar os cortejos e ajoelhassem à passagem do Senhor fora...
Uma das alas da casa ameaçava ruína, construída bons dois séculos antes pelo licenciado D. Gonçalo da Cunha em tempos de Filipe II, e não esteve com meias medidas: a terra com ela. E sobre os alicerces encetou uma reconstrução, que apenas tinha o defeito de pôr de parte a sóbria e amena simplicidade do estilo primitivo e empregar o que estava em voga, um joanino
catita,
com
frestas
altas,
providas
de
belos
alizares
e
avental,
cornija, grande pé-direito. D. Telmo era em Romarigães uma sorte de Lourenço I, o Magnífico. O antigo sequeiro estava arruinado e deixava entrar os aganões. O aganão é uma entidade, meio mitológica, do Minho, que penetra nos canastros sem
ninguém dar conta, sem acesso visível, e que rilha alqueires e alqueires de maçarocas. É o leirão, é o musaranho, é apenas o rendeiro? À sombra dos seus malefícios, tem o proprietário minhoto de condescender na perdoança – também outro termo local – com servos e arrendatários. Para cortar duma vez para sempre as avenidas a este trasgo mefistofélico, renovou
D.
Telmo
no
espigueiro
as
fasquias
podres
de
carvalho,
entrenervando-as de colunelos de pedra. Chapelão de larga aba, soleira de granito,
tão
grande
que
não
haverá
maior
na
frumentosa
comarca
interamnense, lá está com os seus trinta metros de comprimento, lauto e garboso, verdadeiro templo de Ceres. O génio especial de homem progressivo e insatisfeito exercia-se em mais de um modo. Vacas, arrebanhou nas feiras de Padornelo, Paredes e Ponte de Lima as mais belas estampas que ali haviam pisado, sem olhar a preço. A manada, quando de pastoreio pelo prado, fazia estalar de inveja os olhos dos criadores. Não havia nada mais perfeito. Um senão na galhadura, uma falha de elegância no porte, e já as não queria no estábulo. Tinha ali as legítimas novilhas barrosãs, com as pontas em lira, longas e proporcionadas que nem hexâmetros.
Um
toiro
adquirido
na
melhor
parada,
impetuoso
e
nobre,
mugia no presépio, e as entranhas das bezerras estremeciam palpitando o farpão ardente que as havia de fecundar. Todas as manhãs, dir-se-ia inspirado pelo travesseiro do velho Nestor, surgia com ideia nova. Lembrou-se de repovoar o córrego e a balsa das bonitas
e
grandiosas
trutas
que
maravilharam
o
licenciado
Gonçalo
da
Cunha. E expediu pelo Coura, o rio mais truteiro do universo, quanto fiel patife encontrou susceptível de lhe trazer boas espécies vivas. Custou-lhe os olhos da cara, mas teve o regalo de ver as águas do seu domínio ilustradas por
estes
salmonídeos,
tão
prazenteiros
aos
olhos
como
saborosos
ao
paladar. Não consentia porém que lhes tocassem. D. Maria Carantonha, ralada tantas vezes por não poder oferecer aos hóspedes de qualidade uma ementa digna, chegava-se suplicante àquele fero Artaxerxes: – O paizinho dá licença que o António vá apanhar uma trutinha ao poço...? Indignava-se. As trutas não estavam ali para fornecer paparoca, mas eram como os pavões ou o escudo na padieira da entrada. Compreendia-se uma casa
antiga,
ociosas
com
coisas?
fidalgos
D.
Maria
genuínos,
sem
Carantonha
este
apendiculado
argumentava:
as
de
trutas
belas
e
tinham-se
multiplicado a ponto que se comiam umas às outras. Andava lá uma que era um verdadeiro ogre... Depois
da
sua
objurgatória,
acompanhada
de
topetadas
de
cabeça,
transigia. O António entrava no pego e, quase a bragas enxutas, volvia com uma truta, cintilante de cores na trepidação da morte, grande que nem um bacalhau. Bem decerto D. Telmo, velho e bizantino fidalgo espanhol, apreciava nas coisas mais o seu estadão e paramento que a sua utilidade. As vacas tinha-as ali
como
exemplares
de
belo
porte
que
não
pelo
leite
ou
trabalho
que
produziam. Lavrar os campos, abastecer a queijeira e a copa eram para ele fins mediatos. O mesmo sucedia com os viveiros de trutas. Cultivava-as para que aquela água fosse mais que um poceirão cristalino, inane e deserto, onde uma rã coaxava, soberana reinante. Para que se tornasse um mundo vivo, colorido e na escala de seu fausto senhorial. Havia deleite maior que contemplar as trutas no deflúvio matutino, com a água do córrego a cair do batedoiro dos seixos, oxigenada da frescura do orvalho e do azul do céu?! A Casa Grande ganhava em imponência e prestígio. Reinstaurava-se em seus pergaminhos um autêntico homem de prol que, fechando os olhos à realidade compressiva, fazia executar o que lhe vinha à cabeça. E dinheiro para tudo isto? D. Telmo pediu emprestado e saldou com usura. Depois, golpe de génio, pôs a contributo Aniceto do Bento Lado, rico como um porco. Para quem queria ele o que tinha? O meu herdeiro é o seu menino – ouviu-lhe dizer. Pois que assim era, fosse alargando os cordões à bolsa. E alargou. Aniceto do Bento Lado pagou a reconstrução da ala da casa que fora razoável abater; ia pagando a muralha da China que vedava a fazenda das bandas da serra da Arga; pagou o canastro; pagou as vacas; pagou as trutas. Pagaria o resto o denodado cirieiro bracarense. Com
um
capitalista
destes
à
espalda,
a
que
cometimento
não
se
abalançaria o opíparo senhor castelhano, em cujo peito acordara a alma soberba dos Fávilas? O brasão dos Montenegros luzia na torça da grande entrada, bem como o dos Cunhas de Antas, raiz da linhagem, na frontaria da capela. Mas de portas adentro? Meditou então organizar a galeria da casa. Só havia no salão o
retrato
de
D.
Joana
de
Azevedo,
olhos
à
flor
do
rosto,
boquinha
de
engulhada, seresma de todo. Do mais, homens de guerra e vivedores, donas
devotas e alevantadas do sangue, restavam uns apuntos, pouco fidedignos, no brasonário que deixara um capelão da Casa, meio escriba, meio pintamonos.
Em
suma,
era
um
subsídio,
posto
que
magro
e
aleatório.
Informaram-no que em Astorga, a terra que disse ao principe borgonhês: volta atrás, ó cavaleiro, morava um pintor de bandeiras das almas e de retratos de fidalgos a tinta e a craião, consoante a encomenda, que andava de braços caídos à espera que o rogassem. Também em Braga lhe falaram dum para os lados de Penafiel, mas nas suas pinturas os narizes saíam tortos e as caras sempre de poucos amigos. D. Telmo queria ver nos ascendentes do seu neto gente recia, de cara dura mas anunciando ralé, pouco parecidos com cicrano ou beltrano. O pintor de Astorga havia pintado uma Ceia para a igreja matriz de El Barco de Valdorras que era o assombro de quem a via. Os apóstolos, reunidos ao ágape em torno do Divino Mestre, pareciam de carne e osso, tu cá, tu lá como na estalagem do Cojo, em Orense. Ao centro, estava o Cordeiro Pascal, pintado tão ao vivo que fazia crescer água na boca como se acabasse de chegar na espadela, tostadinho do forno. Mandou chamar o portento. Veio ele em continente. Homem de meiaidade, cara rapada, com boina na cabeça, olhos azuis, e com um sorriso à flor dos lábios, não se sabia se de zomba se de complacência. – Queria que me pintasse os senhores desta Casa. É capaz? – Vamos a isso. Onde estão eles? – O primeiro está numa capela de Rubiães. Só restam as cinzas... – E existe algum desenho? – Desse tio, nada. – Então? – Invente. Era padre, e ao que me dizem gostava de Deus, sim, mas não menos da mulher e da boa pinga. Pinte-mo nédio, róseo, lábios grossos... – Queixo de duas barbelas, pescoço de touro...? – acrescentou o pintor com aquela sua intraduzível e ambígua expressão. – Pode ser, mas não me faça chuchadeira do fundador do morgado – proferiu D. Telmo, assestando olhos na água improfundável dos do pintor. – Por amor de Deus, pinto o sacerdote tradicional do Minho e Galiza. Habitante, não é, do paraíso...?! Depois do da terra, o do céu... – Faça. Tem aqui o nobiliário. Veja... Este homem com ar de infante de Lara é o filho do licenciado e primeiro senhor do vínculo. D. Telmo tinha aberto o tombo genealógico e apontava um retrato a águatinta.
– Boca de homem vulgar. Mesmo assim não lhe falta um certo ar de vontade – comentava o pintor. – Repare que foi capitão de milícias e andou na guerra. Pinte-mo de sobrancelhas crespas, olhos a chispar, espada no talim. Bem vê, temos de exalçar a estirpe. – Sim, senhor. E a seguir? – A seguir, esta boa matrona, nem carne nem peixe. Faça-me dela uma dama de alto donaire, fina como um teixo. Aristocratize-ma o melhor que puder. – Pode-se pintar a tocar harpa ou com a flor-de-lis em punho... – Nada, nada. Dama de alto dom, mas provincial. Não se esqueça que estamos na aldeia, a cem léguas da Corte. – Podia pintá-la com um galgo ao lado, desfolhando, misteriosa, um malmequer... – Não, não, pinte-ma mais terra à terra. – Estou inteirado. Quer uma fidalga sem romance. Sã como um pêro. Se lhe pusesse roca...? E a ordenhar uma cabra...? – A roca rebaixa. Quanto a cabras, nem falar nisso. Precisamente a nora era
originária
da
Portela
das
Cabras,
o
que
não
lhe
trouxe
honra
nem
proveito e só contrariedades. Antes a almofada de bilros. Aqui tem o filho. Este foi alguém. Encabeçam nele os familiares do Santo Ofício, de que a casa tem sido farto seminário... – Mau negócio... – Olhe que não! A carta de familiar era, ao que me persuado, para quem a possuía uma espécie de salvo-conduto de muito préstimo. Podia não ir à missa todos os dias e ninguém lhe pedia contas. Podia comer carne em dias de magro e nenhum esbirro lhe deitava a mão à gola do casaco. Em suma, tornava-se o processo de dormir a sono solto, que não o levariam para um calabouço. Raramente se serviam dela em matéria religiosa. Este Luís da Cunha foi quem mandou edificar a capela que lhe mostrei e basta para que se
lhe
perdoem
todos
os
crimes
da
terra,
mesmo
ter
carta
de
familiar,
supondo que fizesse queimar meia dúzia de judeus e outros tantos hereges. – Abrenúncio! Aqui parece um afável e bonito homem. Louro, alto e singelo. Era-o realmente? – Mais ou menos, pela opinião que formo dele. Faça-mo uma simpatia de homem. Suponha que o retratou no equador da vida, doidivanas e formoso.
A mulher é esta que aqui vê no painel de Josefa de Óbidos... O pintor contemplou a figurinha esbelta e cativa, com o cabelinho a doidejar sobre a fronte alta à Dürer, um rostinho de anjo atreito ao prazer, boca a pedir beijos lícitos. – Aqui, no seu ar de carochinha – exprimiu ele – devia ser o que um místico espanhol classificava de mulher deliciosa. São estas as que causam a tontaria e desespero dos homens. – D. Joana foi de facto uma senhora modelar, o que não impedia que fosse voluptuosa. Já esta – e apontou na iluminura do nobiliário uma dama de cabelos em tranças à Velázquez, cara à banda sem que tivesse o nariz torto – deu muito pela sonsa a sua escorregadela. – Gozou-lhe – formulou o pintor com ar pincha-no-crivo. – É o que se leva deste mundo. D.
Telmo
capacitou-se
que
estava
a
tratar
com
um
homem
pouco
respeitador da lei de Deus e observou: – O amigo está numa casa em que todos, até os mais patifes, eram católicos desde as unhas dos pés até à flor dos
cabelos.
Lá
que
alguns
pecaram
pecaram,
mas
isso
não
tira.
Sem
pecado, a cidade de Deus carecia de fundamento. Para que andavam os santos a sofrer pelo mundo, os doutores sagrados a queimar as pestanas sobre os livros da santa teologia e o inferno está aceso? Uma casa fidalga sem pecado é mais enfadonha que uma boda sem bebedeira. – Vivam os pecadores, que são o salero e o donaire da vida! – exclamou o pintor. – De tal ordem é que eu gosto de pintar. Com que sim que esta senhora D. Angélica deu um pontapé na honra conjugal? –
Supõe-se,
supõe-se
–
respondeu
D.
Telmo
ganho
à
bonomia
e
maledicência lírica do pintor. – Mas não ma faça nenhuma Messalina... –
Não,
senhor,
pintarei
uma
virtuosa
Lucrécia.
Uma
Lucrécia
que
rescenda ao nardo. E a seguir? – Temos aqui uma D. Silvava, de Bravães, que morreu com a cornada duma vaca. Reza a crónica que uma das pontas lhe perfurou o intestino e saiu pelas costas. – Caramba, uma vaca digna de entrar para a linhagem dos Miuras! – O fidalgo mandou-a logo matar. – Que bárbaro! Ao menos comeu-a ou deu-a a comer em bifes...? – Não zombe. A justiça em Portugal tanto pune o homem como o bicho. Deu-se há pouco o mesmo caso com as mulas que atiraram de escantilhão o
carro em que ia o Senhor D. Miguel. O príncipe quebrou a perna, mas as mulas foram justiçadas e abatidas. Não ouviu falar? – Não, a Zamora não chegam notícias tão grandiosas. Pinta-se a dama com a vaca ao lado a chorar lágrimas de arrependida... –
Nada
de
caricatura.
Em
Portugal
que
ninguém
o
veja
rir.
Eu
sou
adventício nesta casa, espanhol como usted. Na minha estirpe há diabos e santos, adúlteros, incestuosos e puros, todos de marca maior. A gente desta Casa, até a altura em que chegaram os – do meu sangue, tem as virtudes e os defeitos em inho, honradinho, bonzinho, marotinho, ladrãozinho. É um côvado especial para esta província, cujo nome precisamente parece mesmo o eco de tais dimensões. Mas não diga nada, hem? O pintor não sabia se o velho fidalgo gracejava ou falava a sério, estava a entrar
com
ele
ou
simplesmente
discorria.
E,
ao
tentame,
disse:
–
Eu
procederei como se fosse um cicerone do panteão. Todos os varões são grandes, magníficos, heróicos e as mulheres formosas e pudendas. É assim? – É assim mesmo. Todavia os homens que sejam homens e as mulheres que saibam despertar um bom apetite. Pois que não nasceram para serem canonizadas, antes santas de pau carunchoso que Virtudes. – Perfeitamente. Um a um foi-lhe D. Telmo traçando o perfil psicológico dos senhores da Casa Grande, e assinalando a feição substantiva: a este pinte-mo de escalafavais, àquele de lunático na sétima lua, àqueloutro de honesto burguês. – Sim, senhor. – Quando chegar à actualidade, atenção. Quero o meu neto, que terá ocasião de pintar quando vier a férias e é o herdeiro do vínculo, belo como um serafim. Aquela senhora de preto, triste e inconsolável, é a mãe dele e a minha filha. Melhor coração não se criou em toda a Espanha. – Compreendido. E Vossa Senhoria? – Sim, eu também quero figurar na galeria, patriarca dos Montenegros. Olhe bem para mim, que lhe pareço? – Um verdadeiro fidalgo. – Só? – O seu tanto original como todos nós os espanhóis; orgulhoso; pessoa de capricho; no fundo, coração de pomba. – Não, senhor, não, senhor. Eu não sou boa pessoa, nem quero parecê-lo. Pinte-me
como
me
vê,
fantástico,
doido,
quixotesco,
e
com
bigodes
façanhudos nunca menos do que o que são. Ponha-me espada de fidalgo à cinta. À cinta não, que já se não usa. Numa almofada, à minha direita. Acrescente uma rosa. Que amanhã possa dizer quem me olhar: aqui está um Montenegro!
XVI
Telmo Virgem
de
Montenegro
Intemerata,
dirigia-se
acaudatado
todas
por
um
as
manhãs
aprendiz
para
da
o
colégio
oficina,
que
da lhe
transportava, pendurada rio dedo, a bolsa com os livros. Até lacaio de libré não alcançavam os desvelos do cirieiro pelo filho adoptivo. Proibia-lho o espírito de parcimónia, que lá fausto e grandezas prezava ele como à sua alma. O rapazinho seguia deambulando pelas ruas fora coalhadas de senhores padres, que entravam para os templos a dizer missa, e de beatas que lhas iam ouvir, de gente dos subúrbios com burros e atafais repletos de veniaga, de obreiros leva que leva à sua jorna. Parava onde a curiosidade lhe dizia pára,
e
rompia
adiante
depois
de
satisfeitos
os
olhos
ou
recreado
o
entendimento com um despique de regatões e qualquer fábula ocasional. Nesta gandaia matutina costumava deter-se muito particularmente à entrada de Nossa Senhora do Pópulo, a cuja igreja os ofícios das primeiras horas atraíam as matronas consideradas de Braga com suas interessantes meninas. Telmo,
em
despeito
dos
verdes
anos,
começava
a
cheirar
às
fraldas,
segundo relatório do pajem, coado pela linguagem do cirieiro. Seria calúnia da pituitária. O que ele fazia, bem instintivamente, sem ninguém lho ter ensinado,
era
trocar
com
as
beatinhas
de
mantilha
preta
e
missalinho
dourado em punho olhares langorosos. Elas, na terra onde toda a gente se ama ou se aborrece, sabiam quem era o filho do cirieiro, exposto da roda, embora
portador
dum
nome
fidalgo.
Uma
auréola
mais
realista
que
romântica emoldurava-lhe a fronte que não era feia. Mas que a nobiliarquia destas meninas desdenhasse da profissão do pai de Telmo, as mamãs lá estavam que avaliavam bem do que ele era pesado a dobrões. Não é que uma
D.
Engrácia
Trandeiras,
Veríssimo
lhe
chamava
Limpo
de
«menino
Sousa, de
morgada
oiro»,
de
S.
lançando-lhe
Salvador
no
de
alqueire
o
morgadio de Romarigães e o pecúlio de Bento Lado? E naturalmente para menino de oiro afivelavam a máscara mais graciosa e afável que é legítimo pedir a uma sogra problemática. Mas as próprias arvéloas, cheias de suevo até à medula, acabavam, ante o rapazinho de grandes olhos pretos, não só de não lhe voltar as costas, mas de o disputarem arteiramente. Namoriscavamno mais in mente e à sorrelfa do que outra coisa, no entanto escondiam-no as amigas das amigas e as primas das primas, e nisso se confinava sua malícia e o natural escorregadoiro dos corações amaviosos. Uma volta pelo chafariz da porta do Souto, outra pelo largo da feira, se era dia, chegava ao colégio quando as aulas já iam a meio ou no salão de estudo
os
internos
estavam
fartos
de
marrar
com
o
quidam,
quaedam,
quodam. Os prefeitos tinham-no em horror porque lhes indisciplinava a classe. Os mestres, esses, elogiavam-no como inteligente talvez porque o fosse, mas decerto para poder conferir-lhe as honras de cabeça no ar e cábula número um do estabelecimento. Como tal, tinham-no mesmo como factor perigoso de contágio. Mas de olhos no céu, por serdes vós quem sois, que
remédio
senão
tolerá-lo!
Se
era
obedecia ao processo escolástico do
chamado,
P.e
que
tudo
naquela
casa
Inácio, com singular desfaçatez
declarava que não sabia a lição: haviam-lhe roubado o tempo; doera-lhe a cabeça; estivera a ajudar o pai na loja... Animado da melhor boa vontade e santa paciência, na própria aula o mestre condescendia em estudar a lição com ele. A páginas tantas, Telmo embezerrava e procedia em seu mutismo com tal casmurrice que outro tinha que vir substituí-lo. Nas relações com os condiscípulos, de começo prevalecia-se da natural superioridade
que
lhe
conferia
a
circunstância
de
ser
menino
bonito
e
responder aos mestres com desplante e cinismo. Mas foram tão clamorosas as raias que deu que as bancadas romperam em impetuosa algazarra. Com a algazarra veio o desfrute. Telmo, uma vez no corredor, aplicou dois socos no primeiro gracioso e jogou valentemente as cristas com outro, mais velho do que ele, que acudira em socorro do esmurrado, grande nome de Bracara Augusta,
José
Teles
Girão
da
Paxiúta.
Levava-lhe
este
aluno
quase
um
palmo de altura, mas Telmo, como um galaripo, saltava-lhe à cara com tanto denodo e encarniçamento que o grandão se rendeu à mercê, tapando, à maneira do avestruz perseguido, a cabeça às mãos ambas para não apanhar
mais punhadas. Ficaram a ter respeito pela sua tesura, mas ele, por sua vez, intimidou-se. Nunca mais abriu boca, receoso de alvoroçar os capões. De forma que só de raro em raro se lhe ouvia a voz na aula do P.e Inocêncio, um senhor cónego, que carregava a venta de rapé – larga e cavernosa cisterna, em cujos bordos crescia um denso mato – como os caçadores carregam a escopeta orçando a pólvora pela cova da mão. Também a escorvá-la, um dedo
na
narina
contrária,
as
paredes
da
caverna
fungavam,
silvavam
e
expeliam uma nuvem de partículas imundas, que cobriam o céu à volta e deixavam cair em terra as escórias do Vesúvio. P.e Inocêncio, porém, era um barra nas latinidades e passava por ser ele da Câmara Eclesiástica quem redigia a correspondência da Arquidiocese com a Santa Sé no idioma que, para enaltecer a Virgem Mãe, primeiro se apurara a cantar as brincalhotices dos faunos com as ninfas. Aniceto do Bento Lado, advertido pelo director do Colégio, mal teve ânimo de lastimar os desmandos do rapaz, boquinha que queres, coração que
desejas.
caprichoso
Mercê
quanto
duma
a
natureza
conduzir-se
a
muito seu
fora
talante,
da
regra,
por
outro
por
um
lado
susceptível
ao
extremo, ninguém seria tão difícil de reger. Isto de colégios e conventos, filosofava Aniceto, era para quem era. Telmo não se compadecia com a disciplina
imposta
aos
educandos
pela
férula
e
a
vergasta.
Da
pauta
pedagógica não se fala. A regra fazia carneiros e aquele menino gostava de pensar, bem ou mal, pela sua cabeça. Os alunos, por via de regra, filhos segundos, filhos de sirgueiros e de um ou outro rico mercador, afilhados dos senhores cónegos, não precisavam de ter mais ideias que aquelas que lhes ministravam
os
padres-mestres,
por
sua
vez
metidos
dentro
das
velhas
sebentas aristotélicas. Como tal, carecendo de ideias próprias, a tendência natural era que as não admitissem nos outros. Tratava-se, bem entendido, de ideias comezinhas, de trazer por Braga ou por casa, nada se parecendo com a prova ontológica, sol do sistema divino, mas ideias subalternas, ideias ínfimas de que se compõe a personalidade do fabiano em geral e do braguês em particular. Ora Telmo, rico, rebelde, malcriado, mimalho, era o contrário de tais tortulhos com dentes alçados para o açafate da vida. Toda a questão para
eles
estava
nesta
habilitação.
Faziam-na
encornando
bem
os
compêndios e autores dos programas. O quid, por conseguinte, consistia em ter memória. A memória pedia-se à milagrosa Santa Catarina, advogada dos estudantinhos junto do Espírito Santo. Pedia-se-lhe todas as manhãs à missa
obrigatória, ao terço obrigatório, e mais rezas litúrgicas ao sentarem-se e erguerem-se da mesa. Telmo, que não compartilhava do magro refeitório colegial, era havido como libertino. Libertino de pensamentos e obras. Foi
por
todas
estas
razões:
rapazinho
era
um
mau
rapazinho
era
um
cifrão
–
exemplo para
o
que na
o
rapazinho
grei
latim
–
dócil que
não
dos
estudava;
que
o
educandos;
que
o
Felismina
se
dirigiu
ao
Badalhocas santeiro para que lhe fizesse a benta imagem da virgem de Alexandria. Menos de uma semana andada, o artífice entregou-lhe uma imagem do tipo que, com menos respeito e nenhuma graça, denominavam pistautira: esgalgada, rubicunda e pulcra de todo. E desde logo a entronizou no quarto do mocinho, em cima da cómoda, com uma lâmpada perpétua de azeite à ilharga. O milagre porém não se operou. Em verdade, Telmo não era rude de entendimento. Não estava para enfados. De forma que o Eutrópio inefável, que
os
outros
trauteavam,
assobiavam,
sabiam
de
cor
e
salteado,
não
conseguiu atravessar-lhe as camadas cerebrais, impermeáveis àquela linfa chilra da marnota latina. Aniceto do Bento Lado, sempre que aviava cera para a capela do estabelecimento, não se esquecia porém de observar ao reverendo Mariano: – Este menino não se destina à carreira eclesiástica, Monsenhor. Tenha-me paciência com ele. É fidalgo das unhas dos pés à ponta dos cabelos. Sabe o que lhe convém aprender? As artes que dão relevo a um homem na corte ou na sociedade. Pensou-se ainda mandá-lo para o Colégio dos Nobres em Lisboa. Era ficarmos sem ele mais do que o que ficamos. Pus os pés à parede, não e não. – Pois para aí é que ele ia bem. O colégio da Virgem Intemerata destinase em especial a fazer homens de capa e volta, ministros da nossa santa religião... – Então não sei!? Ah, quanto não daria eu por vê-lo de coroa aberta! Foi o meu sonho até o dia em que entrou na minha loja o senhor de Romarigães. Resisti quanto pude. Veja que direito este que autoriza o desalmado dum pai a
tirar-me
o
pequeno
depois
de
o
ter
lançado
à
roda
dos
expostos!
O
salafrário já lá está e que a terra lhe seja leve! Mas como ia dizendo, o meu rapazinho é cabeça de morgadio, um rico morgadio, vinculado desde fins do século XVII, e tanto lhe vale estudar no tal Estropias como fazer riscos na areia. Já vê V. Reverendíssima que as cardas dele não metem latim nem gramática. O que há mister é ser bem falante, correntão, escrever uma carta
que se entenda, cortar toda a espécie de caligrafia, ser em suma cavalheiro ilustrado. P.e Mariano, que tinha em mira que o cirieiro lhe não salgasse as contas, prestou bom ouvido ao amolador. Por uma bisbórria, de que todo o pagante faz grande caso, se tomam às vezes compromissos destes com Mercúrio. Não se repara quanto é improporcional a fineza a render com o bónus recebido. Fosse como fosse, o facto é que a situação de Telmo, debaixo do ponto de vista de comodidade pessoal, lucrou. Passaram a considerá-lo, à laia de ouvinte, como uma espécie de infante real que não precisa de matar a cabeça para exercer a função que lhe destinou a divina graça. Na aula de gramática, Telmo de Montenegro não era melhor aluno de que na aula de latinidade. A análise sintáctica contendia com o senso natural de que fora dotado o seu entendimento. Parecia-lhe ocioso assentar por que sorte de operações mentais se chegava a formular tal ou tal ideia, uma vez que a formulava igualmente bem conhecendo essa mecânica como não a conhecendo. O espírito ia, mercê da experiência adquirida, elaborando de forma a afastar o desacerto, o solecismo, a contradição, que são um género de sobrecarga a outros vícios com que vão ajoujadas as cavalgaduras para o inferno. Acaso era preciso possuir as regras do solfejo para se saber cantar? Telmo odiava a gramática pelo que tinha de pretensioso quanto a constituir um código para aquilo de espiritual que já existia codificado. Mas além da gramática, com as suas regras mais ou menos herméticas, professava um invencível horror pela retórica. Não se limitava a querer-lhe tordre le cou, como ensinava o poeta. Telmo escrevia os temas como se falava. O mestre fartava-se
de
lhe
mondar
nos
pontos
escritos
a
linguagem
regional
e
libertina com que matizava as descrições, mormente quando obrigadas a motivos rústicos. A rega dos milhos, por exemplo, era para ele um animado painel de rijo e rúbido pername ao léu, a saia, repuxada na cinta pelo alteador, a dançar com a dona a ribaldeira. Já na pintura duma pastagem, as vacas
loiras,
de
arrojo
farto
como
odres,
cascos
enterrados
na
erva,
mostravam «uma galhadura mais imponente que a de certo rei que nós sabemos». Tal e qual. Dessa vez ardeu Tróia. –
Então
o
senhor,
um
fidalgo,
atreve-se
a
escarnecer,
mais
do
que
escarnecer, a injuriar a augusta pessoa dum subentendido monarca, que Deus tenha? Que insensatez foi essa?
– É voz corrente que de meia dúzia de filhos nascidos no curral de S. M. nenhum era dele. A verdade acima de tudo. – Qual verdade ou qual carapuça! Calúnias! Tomaram-no de ponta por estas e outras. Um dia travou-se discussão a propósito
da
leitura
dum
autor
regional
que
descrevia
as
veigas
do
rio
Minho alabaradas pelo inverno. Interpretava o mestre a passagem como havendo reverdecido as veigas com as chuvadas hibernais e o menino como crestadas pelos rigores do tempo. E palavra puxa palavra: porque na minha Quinta
de
Nossa
Senhora
do
Amparo
tenho
ouvido
muitas
vezes
aos
trabalhadores empregar a palavra neste sentido, porque o menino não dá atento a nada nem sabe o que diz – e o rapazinho jogou-lhe com toda a impertinência: – O senhor padre-mestre está muito enganado. O senhor nunca lidou com a gente do nosso Minho fora dos muros de Braga. Nunca os ouviu falar. Sabe o que é uma sachola? E uma maçaroca? Faz ideia de que é um prado...? – O menino é parvo. – Parvo é o senhor, que não passa dum papa-hóstias. Tropeçou na palavra «alabarar» e eu imagino porquê. Lembra-lhe outra muito semelhante, não lembra?
Uma
que
diz
o
que
lhe
vão
fazer
depois
de
lhe
deitarem
a
gualdrapa... Veja lá se me engano! Houve em toda a aula uma pausa de espanto, depois o chuchurreio da palavra
muito
do
dicionário
de
moleiros
e
almocreves.
Foi
quase
instantâneo. O mestre fez-se verde, bateu com o livro a fechá-lo, pegou do tricórnio e, sem o cobrir, saiu pela porta fora de esfuziote, mudo e rabioso. Largou em linha recta a ter com o director. Este mandou chamar o menino insolente e grande de Espanha. Lá o repreendeu, lá o arrazoou e quando lhe pareceu dobrado e maduro com a prédica, disselhe: – Em atenção ao Sr. Aniceto do Bento Lado e à memória de seu tio-avô, Monsenhor Domingos da Cunha, deão da nossa gloriosa diocese, o senhor P.e Hilarião, digno professor de gramática, condescende em aceitar as suas desculpas na aula, em presença de todos os alunos... – Não apresento desculpas nenhumas ao senhor P.e Hilarião. S. R., além de
grande
ignorante,
procurou
humilhar-me
e
ofendeu-me.
Chamou-me
parvo. Parvo será ele e o pai que não soube que o fez. – Procurou humilhá-lo pelo facto de lhe dizer que não sabia nada de nada?! Essa é boa. Que se sabe na sua idade, embora se seja um portento de
inteligência, quer ter o obséquio de me dizer?... Envergonhe-se. É preciso comer muita rasa de sal, queimar muitas noites as pestanas para se saber que se não sabe nada. O senhor Telmo está na idade da toleima e é a sua desculpa. Não trabalha, não abre um livro, julga que há uma ciência infusa! Quer que lhe diga o que tudo isso é? Mimo. Estragam-no com mimo. – Posso-me retirar? – Retire-se, mas considere que se retira de vez. De modo algum podemos fazer vista grossa do seu desacato. Ou pede desculpas ou não será mais aluno nesta casa. Escolha. Antes, só lhe peço que medite um momento no desgosto que vai dar à família... – Já meditei. Vossa Reverendíssima não manda mais nada? Monsenhor Mariano, que era um homem sanguíneo, esteve tentado a pôlo fora a pontapés. Lembrou-lhe a cera mais cara no Aniceto: – Meta a mão na consciência. Meta, se é possível um fedelho ter consciência. – Tenho, sim senhor, e está consultada. Ainda ontem nos dizia na aula o senhor P.e Furão: ego sum qui sum. Eu também sou quem sou. Aniceto do Bento Lado foi posto ao corrente do grave destempero do seu filho adoptivo. O padre Hilarião passava em Braga por um dos sete sábios da Grécia, ressuscitado, já se deixa ver, para glória da arquidiocese. Bento Lado não o conhecia por esta faceta, mas por outra: engrolador de missas. Só à sua conta despachava todos os anos para cima de três mil. Não sabia celebrar
doutra
maneira
senão
em
raiz
quadrada.
Assim
o
apregoava
a
criada que pusera no olho da rua a título de se ter amancebado com o sacristão de Santa Cruz, e viera cair na oficina do Aniceto, onde ganhava meio tostão. Ela jurava e trejurava que era uma refinadíssima calúnia, assim Deus lhe falasse n’alma, o que o velhaco do homem inventara só para não lhe pagar as seis soldadas que lhe devia. Todas aquelas missas, algumas a seis vinténs, preço esse de ricaço, deviam encher, segundo as certidões passadas
aos
universais
testamenteiros,
os
reinos
do
Céu
de
fiéis
bracarenses. E a dar ouvidos às almas penadas, que corriam os quelhos da cidade
altas
vestidos
e
horas
calçados.
e
botavam De
quem
alarido,
trambolhavam
era
parte
boa
da
todos
culpa?
A
no
culpa
Inferno era
de
Hilarião bem como o afrouxamento de comércio na loja do Aniceto. Por isto tudo, o industrial de velas e mais artigos concomitantes não pôs grande dialéctica em demover o seu menino de resolução tão desmarcada, como era essa de deixar para todo o sempre o colégio da Virgem Intemerata. Limitou-
se, pelo primeiro recoveiro que se lhe ofereceu, a mandar recado a D. Telmo de Montenegro: que tinha muita urgência de lhe falar; ou D. Telmo se dignava vir à cidade, ou ele metia pés a caminho de Romarigães, se tardasse mais de dois dias. D. Telmo de Montenegro, tocado pelo vago pavoroso da mensagem, alanceado de apreensões, mandou engatar a caleça e partiu para Braga com D. Maria Carantonha, que apenas deitou uma mantilha negra pela cabeça e uma capa pelos ombros. Desceram a estrada das Pedras Finas a mata-cavalo. No Prado deram sopas de vinho às mulas depois de as amantar,
que
escorriam
água
por
todos
os
pêlos,
e
a
galope!
Quando
chegaram, quase ao anoitecer, à porta de Aniceto do Bento Lado, e ele se lhes deparou naquela posição que lhe era tão peculiar, debruçado sobre o balcão, braços à frente como as antenas do caranguejo, respiraram. E logo lhes palpitou que nada havia de grave nem para alarmes. Felismina estava à ilharga do homem, se não com cara de páscoa, a cara de todos os dias do ano. Mesmo assim, D. Maria Carantonha, mal pulou da caleça, despediu um grito aflitivo em correspondência com as ideias de ruim agouro que viera a mascar toda a viagem: – O menino, D. Felismina? – O nosso menino saiu há um poucochinho. Não deve tardar. Entrem que vêm suados e estão a ganhar aí a morte. Entraram.
Abraços,
viva
mais
viva,
confidências:
–
Querem
saber:
Tomou-se de namorico com as filhas do corregedor, não sei qual das duas, e a estas horas deve estar de gargarejo para o balcão. – Boa vai ela! – proferiu sorrindo D. Telmo de Montenegro e Valadares. – Dá sinais dum verdadeiro gentil-homem, peito às damas dado... O fidalgo galego não aprendera bem o português, em despeito dos seus bons dez anos de residência em Portugal, quanto mais a sua literatura. O quiproquó
é-lhe
pois
desculpável.
Aniceto
do
Bento
Lado
contou
com
requintes de homem veraz e rígido o que se passara no colégio da Virgem Intemerata. O fidalgo galego soltou-lhe uma sonora gargalhada, com o que Aniceto encavacou, pois que, tendo calçado coturno dramático, expusera o caso, atrido de voz, e com grande compungimento. – Deixe lá o rapazinho, amigo, deixe-o lá – proferiu D. Telmo na sua voz sonora e descansada. – Antes isso que um morcego das sacristias. Não gosta de dar o braço a torcer, não gosta, e faz muito bem. Eu também assim era. – Vossa Senhoria há-de-me dizer para onde é que o manda...?
– Para onde é que o mando? Ora essa! Para aquilo que é seu. Para a Quinta do Amparo. Para onde quiser ir... Aqui para sua casa, pois então. – E fica assim um brutinho...? –
Brutinho?!
Os
padres
transtornaram-lhe
o
juízo.
O
meu
neto
tem
ciência cabonde. É o que lhe digo, homem! A verdadeira ciência é a da vida. O Telmito já estudou de mais para um verdadeiro fidalgo. Para aldrabices do mundo, se alguma coisa lhe falta, temos lá o capelão... Tem-me lá a mim. Eu e ele não havemos de ter algum préstimo? Hem?! Para que é um padre na casa? Sim, para que tenho eu lá o P.e Tirteu? Não sabe... Sabe, sabe, é ele querer, o finório. Para que aprendi eu equitação e espada-preta? Fique certo, um homem de posses e de pergaminhos basta que saiba assinar o nome, ler uma carta, decifrar os seus títulos de nobreza, montar e jogar as armas. Fora daqui, nisga! – Isso foi no tempo em que se dançava a galharda, senhor D. Telmo! As coisas mudaram. Hoje um homem vale pelo que é e pelo que impõem as suas qualidades de inteligência. De resto, o saber não ocupa lugar. E digame cá: não é Vossa Senhoria, além de bom cavaleiro e mestre espadachim, um homem lido e sabedor? Até esse P.e Hilarião, a tal besta do rapé e do Apocalipse, como V. Ex.ª lhe chama, me dizia há uns dias: este D. Telmo com certeza andou em Salamanca. Sabe mais que sete doutores juntos. – De facto andei em Salamanca, mas de pouco me serviu. O que lá aprendi
entrou-me
por
este
e
saiu-me
por
este
–
e
D.
Telmo
levava
sucessivamente o dedo indicador aos ouvidos. – Olhe, meu amigo, o saber, esse saber teórico que se vai beber a Coimbra e a Salamanca, é como a zurrapa das cabaças. Não se conserva, antes se estraga quanto mais se mexe com ele. O que conta para governo dum homem é a experiência que vai adquirindo pela vida fora, ou, melhor, perante os problemas que se lhe vão pospondo no caminho. O canudo que liberalizam as Universidades de facto serve para se viver à custa da barba-longa. Por esse lado, sim, vale a pena roçar as calças nos bancos dos Cursos Superiores. Mas o meu neto não háde precisar da mamadeira oficial, se Deus quiser. Portanto, nada de lhe soprar vento com uma cana. Não é sabichão, mas isso não me rala nada. Se o quisesse formado em burrologia mandava-o para Coimbra. Quero-o a saber as quatro operações, para os rendeiros o não enganarem nas contas, e quantum selvagem.
satis
do
Por
isso
português mesmo
e
veio
do
latinório,
para
Braga,
para terra
o de
não
tomarem
bons
por
sacrossantos
sendeiros. Para cavalgadura de retranca e gualdrapa de franjas, formava-se na Universidade. Não se amofine. Estou até contente com o que sucedeu. Deste jeito é-me restituído o mocinho. Não torça o nariz, amigo Aniceto. O menino lá o tem; aqui e em toda a parte; bem sabe que é mais seu do que de ninguém. Ele também tem-lhe mais amor a si e aqui à D. Felismina do que à mãe que lhe deu o ser. A culpa que assim fosse não é da mãe, a verdadeira mãe, D. Maria Carantonha, minha filha, aqui presente, que me não deixa mentir. Esta é para ele como uma deusa. Mãe do coração, mãe de dentro, é a D. Felismina. A culpa foi do tratante do pai. Só para ter o castigo que merece, faço votos que o Inferno exista e todos os caldeirões estejam acesos e a trabalhar. D. Telmo de Montenegro e Valadares via na cara do cirieiro um olho sombrio por causa das suas sentenças libertinas, outro a rir em face das suas conclusões sentimentais, se bem que nimiamente diplomáticas. Mas o olho que ria sobrepujava ao olho tristonho e, obtido assim o efeito desejado, permitiu-se D. Telmo acrescentar: – Levo o rapazinho, se ele e vossemecê estiverem pelos ajustes. Forçado, não. Também já não é menino para se levar
de
arrepia-cabelos.
corregedor,
diz
Travanca
Ceia
e
Anda
vossemecê? que
se
É
a
bem
trata?
catrapiscar do
Bah,
uma
corregedor
coisas
de
das
pequenas
Joaquim
criança!
Meireles
Isso
do de
passa-lhe.
Também se lhe não passar, não há nada perdido. O pai tem boa casa e é homem de chaço; os filhos, ao que ouço rosnar, saíram uns estoira-vergas, mesmo uns bardinos da pior espécie. – É verdade – confirmou Aniceto. – O mais velho desonrou aí uma rapariga e, vai, os irmãos fizeram-lhe uma espera e moeram-no à pancada. Esteve em lençóis de vinho. Não lhe serviu de emenda. Consta que abusou da sobrinha do cónego Raimundo, uma seresma que passava pela gente com os olhos tão metidos no chão que parecia mesmo uma santinha que levam no andor. – Ah! ah! Pior, dez vezes pior, é o irmão cadete – interveio Felismina. – Mas noutro género. É conhecido por o maior caloteiro de Braga, e olhe que os temos cá de x-p-t-o... Não há botequim onde não deva. Pede a toda a gente. Até à nossa porta veio bater, sem nos conhecer mais que de vista, a título de vago parentesco com os Cunhas. Lá nos surripiou umas dezenas de pintos. Nunca o diabo mais leve!
– Também me bateu à aldraba com a mesma léria: mais parentes para aqui, mais parentes para acolá, as cunhas de azul em três palas duns, as lisonjas de prata doutros – proferiu D. Telmo com entono de superioridade indulgente. – Lá levou também não sei quanto. Não foi pouco. Noblesse oblige, dizia um ilustre franciú. Calaram-se
uns
segundos,
atentos
ao
chapejar
duns
sapatos
que
se
avizinhavam e com o lusco-fusco não se distinguia quem fosse. Não era Telminho, e o velho fidalgo volveu: – Pois uma aliança naquela casa por este lado não é de recomendar. O pai é homem honrado, às direitas, estimável debaixo
de
todos
os
aspectos,
cheio
de
dignidade,
talhado
ao
conceito
antigo, que eu mais prezo. Mas pode bater a bota dum momento para o outro
e
quem
fica
a
dar
leis
na
casa
são
os
valdevinos
dos
filhos.
As
raparigas ficam um joguete nas mãos deles. Irribus! Portanto eu não estorvo a inclinação nascente do meu neto, porque seria dez vezes pior, mas lá darlhe asas, nem por sombras! – E dois! – disse Aniceto. – Amém – corroborou Felismina. –
Pois
se
o
rapazinho
não
tiver
relutância,
levo-o.
Vou
continuar
a
ensinar-lhe a arte de ser fidalgo. Eu é que sou o seu mentor. Falta-me dar-lhe umas tantas lições, de gineta principalmente. O resto há-de ser com o P.e Tirteu. Que puxe pela cachimónia! Caramba, para que tenho eu ali aquele padreca? – Veja lá, senhor D. Telmo, não fique o menino um asno chapado! –
Qual!?
mormente
Há-de
de
ficar
história
fino!
pátria,
Escritura geografia,
santa,
umas
ministra-lhas
migas o
P.e
de
história,
Tirteu.
Pois
então!? Olhe que o padre não é tão alarve como isso. Mula, isso sim. Foge à cilha, quer dizer, ao esforço. E senão, meto outro capelão. Um capelão, além de estar ali para dizer a missinha e rezar o terço com os criados, para mais alguma coisa há-de ser útil. Ou é só para beber o vinho das galhetas, para viático às canadas de verdasco que entorna pelo dia fora e o conservam são como um pêro?! D. Telmo tocava mais ou menos figuradamente nas mazelas do P.e Tirteu quando a súbitas chegou Telminho. Espigara muito aqueles meses. Estava uma linda vergasta de rapaz. Abraços, beijos, perguntas e respostas sobre coisas e loisas, os pavões, o pónei, os criados, as criadas, até as trutas do corgo, e nesse jogo passaram a noite. De manhã, já com sol alto, voltaram a
capítulo: – Afinal, queres tornar para o Colégio ou vamos para a Senhora do Amparo? – perguntou o avô. – Vamos para onde o avô quiser, menos para o Colégio. Estou farto de mestres de Braga até os olhos e de me sacudirem o tabaqueiro na cara. Eu já me acho meio doutor. – Parabéns, meu homem! Com a ciência toda podias tresler. Então vai, vai buscar o que tens a levar e despachemo-nos, que se está a fazer tarde. Na serra da Labruja os ladrões andam muito sobejos. O avô leu-lhe no rosto qualquer sombra de incerteza que o induziu a dizer-lhe: – Nada te prende à cidade, a não ser aqui os paizinhos, não é? Lá irão ter um dia destes. A casa é deles... O
moço
esteve
um
instante
calado,
entre
receoso
e
perplexo.
Todos
tinham os olhos nos seus olhos. Sentiu-o e vaidosamente saiu-se a dizer: – Há aí umas pequenas de quem gosto e que também gostam de mim. O avô não leva a mal, não? O avô sempre me disse que o coração era livre... Se dá licença, chego lá num salto a dizer-lhes que parto para a Casa Grande. Quisesse eu e eram capazes de largar a família e fugir comigo... – Logo duas? Como é isso possível? – Olhe, avô, gosto de ambas, mas não sei para qual me hei-de virar. Gosto da mais velha, que é a mais nutrida e um anjo, um amor de menina. Mas a magra
e
mais
nova
tem
um
não
sei
quê
nos
olhos,
nos
meneios,
na
quebradura da cinta que é como um arpão a segurar a gente. Desataram todos a rir, enquanto o avô lhe lançava, ele a despedir pela porta fora: – Vê lá, vê lá, não dês em Barba Azul!
XVII
D. Telmo Montenegro Antas de Mendonça e Meneses veio, afinal, a casar com D. Ana Adelaide, do morgadio de Travanca e Ceia, filha do corregedor Joaquim Meireles de Travanca e Ceia. Ia nos vinte e quatro anos e era uma pessoazinha
tão
repleta
de
virtudes
que
se
ficava
extático
diante
dela.
Poetisa, carteava-se com a Marquesa de Alorna, e era muito disputada em saraus onde se recitavam versos e se floreava espírito literário, uma prenda que entrara de moda nas casas palacegas do Alto Minho. Uma vez casada, pusera
de
parte
todas
as
ocupações
mundanas
para
se
consagrar
inteiramente à vida conjugal. Nesta fase, mais mimosa e cativa nem uma destas flores, açucena ou jarro, que vergam no caule delicado quando se acumula em suas pétalas o aljôfar da orvalhada. Não se concebe sequer em seu veludo a joaninha saltariqueira ou o pegajoso pulgão. Como esposa, não podia haver mais extremosa. Se o marido saía à rua, logo ela vinha à escada: – Telmo, veja lá: ponha o xaile-manta. Olhe que arrefeceu! Se o chamavam para negócios da casa ou coisas da política local, muito vesga e atrabiliária, não deixaria de lhe recomendar ao ouvido ou puxando-o de parte: – Não se fie nesses sujeitos, que só querem o seu mal. E, na meia modorra matinal da alcova, ela que caprichava em levantar-se cedo como boa e previdente domina, não se descuidaria uns dias por outros de arrulhar meiguiceira: – Telmo, fique a manhã na cama. Ontem à noite estava com um bocadinho de pigarro. Foi frio que apanhou. Era adorável a defender a sua felicidade no bem-estar, bom humor, boa saúde do esposo, e não se lhe podia levar a mal. Na sua freima, rolava os cabelos em carrapito, punha um vistoso penteador de rendas, e girava à lida. Não que fosse truculenta com as servas, mas empenhava-se em não lhes
faltar com a sua presença, que poderíamos aquilatar de inefável. E a manhã inteira discorria, às vezes parte da tarde, e ela com aquele paramento, meio alba de sacerdotisa, meio plumagem de pavão branco armado, da cozinha para a sala, da sala para a cozinha. D. Telmo, a quem o amor conjugal não obscurecera o senso crítico, já e sempre um desabusado Salomão, ora via nela a odalisca, ora uma boa dona, o seu tanto enxundiosa no carinho e na virtude. O pior do pior é que lhe faltava dedo para a culinária. A felicidade esponsalícia,
depois
imponderáveis,
à
de
volta
um da
ano
bonne
de
tálamo,
chair
–
repousa
dizem
os
sobre
pequenos
Franceses.
Carícias
sápidas entremeadas com bons pitéus. Frente a uma dona de casa, destituída desta ciência, é escusado inquirir porque entrou a gear no matrimónio. O desamor muitas vezes vem no pimenteiro, danada condição humana! Às vidraças partidas do palácio cor-de-rosa a pedra que as parte pode muito bem ser uma pedra de sal. Esta esposa, em tudo o contrário dos sete pecados mortais, ignorava o que era a gula, que não fosse através do penitológio romano. Desta aliança da graça com os mandamentos, o não zelar D. Ana Adelaide convenientemente a sua copa. Há uma certa inteireza de alma em não acreditar o que se não vê e se não conhece. Mas que pesa isso no concerto dos órgãos gustativos?! Atenta em tudo, cincava a boa senhora quanto a estes requisitos pabulares da célula, naturalmente seva e voraz, de que há a prever todas as vinganças secretas, mais tarde ou mais cedo. Como se comportaram as faculdades gástricas de Telmo? Do modo mais tortuoso e descaroável. Olhos de lince para as acções do marido não os tinha Ana Adelaide, porque o amava. O que ela via ou supunha ver objectivamente eram os seus catarros, as ciladas que seriam capazes de lhe urdir os amigos-da-onça, e os flagelos dos tempos, que não deixariam de o alcançar, como fossem as ideias,
que
avançavam
por
cima
do
morgadio
e
da
cidade
de
Deus
à
semelhança dos quatro cavalos do Apocalipse, e não haveria força, nem lei, nem respeitos que refreassem. Ora aconteceu que à desbanda do gineceu de pureza, o homem luxurioso se havia de gozar de quantas servas e criadas pisassem na Casa Grande. A sua norma era a do galaroz: franga que entra no poleiro, passa par baixo dos esporões. Nisto era implacável. Ele, na qualidade de rei, chamava o sol, corria com a noite, dava os bons-dias. Galipanso que se atrevesse a arrastar a asa a uma das polhas, corria-o a pontapés. Depois das servas foi a vez das
jornaleiras e das filhas das jornaleiras. O curioso é que, em despeito de pequenos arrufos e despiques de quotiliquê entre elas, todas à uma, como as pitas bem galadas que rapam satisfeitas nos barbilhões do sultão, cumpriam os seus deveres com diligência e dignidade. Nenhuma voltava a cara. Se Telmo
erguesse
o
dedo,
arrojar-se-iam
à
fogueira
como
as
viúvas
de
Benares. Simultaneamente, pois que a senhora continuava cecém, todas lhe obedeciam a preceito. – Que talismã é esse que toda a criadagem da Casa Grande morre pelos amos? – perguntavam as senhoras parentas, donas mal governadas com as moças, tanto do ramo dos Cunhas como dos Ceias. – Não é talismã nenhum! – respondia a D. Ana Adelaide, gloriosa da sabedoria com que se comportava o pessoal feminino da sua casa. – Então é coisa de soldada? Pagam-lhes bem... – Não senhora, não senhora, pagamos como na Ex.
ma
Casa de Angeja.
Por mês, a aia ganha 2200 réis; criadas de fora: 1200 réis; engomadeira: 1800 réis. Temos uma criada de dentro, muito boa rapariga, muito limpa e escarolada, que serviu seis anos com D. Maria Tinalha Veruáguas, da Casa de Faim, que ganha 2400 réis, a Felisberta. Mas é excepção. Creia, não é o ordenado que as prende... – Então que visco é...? Fatuamente, aquela alminha branca sorria da arte consumada de dona de casa. Mas com exclusão das senhoras respeitáveis, verdadeiros dragões dos bons costumes, e dela, cândida enamorada do esposo, toda a gente sabia quem dava a chuva e o bom tempo na Casa Grande. O avô sentira há muito que espécie de império era o do neto. E, no fundo, desvanecido com aquele salomónico descendente, bastante amorfo em matéria de moral, apenas lhe disse: – Não te gastes, não te gastes. Estes abusos só se notam para o fim. Telmo recebeu de cabeça dobrada, sorrindo, a advertência do avô, o que equivalia a dar-lhe razão. Em geral, Telmo era tido e havido como um garanhão de alto lá com ele. Sabiam-no todos os que não tinham cataratas nos olhos, mesmo do ramo dos Travancas e Ceias, inclusive Dionísia, a cunhada. Por outro lado, a título dos muitos desvelos que exigia a administração da Quinta do Amparo, Telmo passou a andar muito por fora. – Muito saído – dizia a esposa. Os acepipes domésticos, que ele chamava, pejorativamente
sem que ela o notasse, vaca, galo e arroz, arrefeciam à espera na toalha alvíssima. Afinal ele preferia a feijoada e o bazulaque das estalagens, com muita molhanga e pimentinha, àquele comer sãozinho, de meia dieta. Por isso às duas por três, rompia de caleça até Âncora, até Melgaço, até Vigo, a terra da regalada marisqueira. Voltava farto, consolado, jubiloso, a arrotar ao vinho de Rivero e à lagosta, algumas vezes com a seresma da Felisberta ao lado, que simulara ir visitar a mãe a Formariz. E tudo corria pelo melhor na mais fecunda das quintas. – Telmo do diabo, nasceste num sino! – exclamava seu primo Basílio da Rocha Piscalho, senhor da Portela das Cabras. – Tu és dos tais para quem a chuva cai no nabal e acerta o sol na eira. É verdade! Parem-te os bois, a mim nem as vacas! – Não andas na graça de Deus, primo. És um homem angustiado, severo, cumpridor
como
um
menigrepo.
Calma
e
prazer!
Deus
e
a
natureza,
especialmente a natureza, apenas se entendem com os pecadores. Vê lá se não há excesso de virtude na tua vida! Telmo era estimado de gregos e troianos. Se pelo sangue, retinto de suevo, se
considerava
do
mais
altanado
em
nobreza
e
terçava
armas
pelos
privilégios inerentes, a arraia-miúda lhe era dedicada a mais não poder ser. Do Clero não se fala, atento às vontades do fiel cristão, exacto na côngrua, generoso com a Bula, largo nas alcavalas do pé-de-altar. Pouco faltava para os malhados junto com os apostólicos votarem nele o deputado às Cortes. Trazia outrossim os negócios em dia. Se lhe sucedesse algum contratempo e constasse, acorriam os próximos e conhecidos mais solícitos uns que os outros
com
os
seus
préstimos.
Um
ano
que
se
lhe
perdeu
a
colheita,
quotizaram-se para lhe oferecer um ror de moios de milho e não se sabe quantas sacas de castanhas piladas e ervanço. Já assim não acontecia na casa de Travanca e Ceia, onde fora buscar a sua metade. Tinha ingressado sua sogra no seio de Abraão, refarta de missas e responsos, entre coros de anjos, que não podiam faltar a conduzir ao trono de Deus aquela que o abade de S. Pedro de Maximinos chamava a mãe dos pobres. Ficara o marido, um velho decepado, mas esperto do entendimento, para
quem
a
esposa
nunca
tivera
outro
papel
que
dizer
amém,
agora
usufrutuário da terça, segundo o testamento em reciprocidade que se haviam ditado
os
dois.
De
modo
que
D.
Telmo,
quando
requereu
a
parte
que
competia a sua mulher, topou a passiva resistência da família, especialmente
dos
cunhados,
vergônteas
que
viviam
aferradas
ao
espigão
do
roble,
parasitas e valdevinos, interessados em manter a herança indivisa, o que, alegavam eles, dado o estado precário do pai, não seria por muito tempo. Anuiu
Telmo
contrariado
curial e
e
presa
da
melhor
dos
boa
piores
vontade
na
aparência,
pressentimentos.
À
no
fundo
sombra
da
indivisibilidade não só os filhos, desbaratadores de mão-cheia, mas a outra rapariga, Dionísia, podiam esbanjar à larga. Eles naturalmente vorazes, ela na
virtualidade
de
conquistar
o
príncipe
suspirado
com
os
pomos
das
Hespérides que pertenciam aos outros. Esta perspectiva apavorava-o, sem de princípio
se
perguntar
porquê.
Namoriscara-a,
algum
tempo
vogando
indeciso entre as duas. Vinte anos, esgalgada de corpo, inculta de espírito, passava bastante despercebida, não só na família como na roda das suas relações, com o que Telmo folgava, também sem durante muito tempo saber a causa. Era loira, com reflexos de cobre nos cabelos fartos, loiro mortiço engraçado, tez fina mosqueada de sardas. Estas sardas não a desfeavam, pelo contrário. Delas, quando falava, muito mais quando ria, móveis, possuídas de frémitos estranhos como areias finas a que sopra o vento, exalava-se um picante que a ele, conhecedor de mulheres, o fazia delirar. Mas era honesta como uma virtude cardeal, sobretudo, porque, sendo inteligente, pressentia que
só
com
esse
viático
lhe
seria
permitido
forçar
a
porta
de
certos
morgados onde velavam, dentro da pele de velhas donas, zelosos dragões do que na província chamavam meninas com assento. Todavia o mimo sensual que
estava
represado
no
seu
corpo
desbordava
em
eflúvios
que
só
um
eunuco não sentia. Telmo farejara-o à légua, vibrátil, divino, susceptível dos mais estranhos acordes da voluptuosidade. A firmeza e finura da perna quem lha soubera medir! E no entanto era das pernas às quais não seria gongórico chamar as esbeltas colunas do templo. Ao anel da cinta, que se deslocava segundo uma fluidez de onde, quem lhe experimentara os ritmos flexuosos de modo a sofrer o apetite intolerável de tenteá-lo nas duas mãos?! Alta quanto basta para ser proporcionada a sua linha de teixo, enxuta de quadris, peito sem grande volume, pungia-lhe a boca um vinco que não era de amargura, mas de contrariedade. Porque faltavam beijos na fonte viva dos seus lábios?! Além doutros dons, dolosamente negativos como o de ser fausse maigre, era bisonha, mesmo arisca, pronta a retribuir a carícia ou a unhada, dons por que um homem honradamente viril e que não é bacoco dá o cavaquinho.
Para Telmo, à força de vê-la desta forma assim corpórea no seu meio real, e
de
vê-la
intuspectivamente
ao
espelho
de
alma
como
na
superfície
aquática dum poço, a obsessão condensou-se num filé maluco. A querença sexual, em seguida, acabou por dominá-lo de todo e tornar-se câncer roedor. Vivia
da
impregnação
da
dilecta,
para
o
que
se
construíra
todo
um
mirabolante mundo sonhado. Dentro dele, tanto suspirava feliz como se afundia em seu desespero num naufrágio sem remédio. Era porém a forma de ir contemporizando, temeroso de que chegasse o gerifalte que desse pela gata-borralheira. Porque era fatal que viria o gerifalte! Entretanto da sua paixão e acidente não transpirava eco. Tinha medo sobretudo de atirar ao ânimo da esposa, quieto como um oceano inavegado, com uma suspeita que, por muita aérea que fosse, poderia provocar a catástrofe das suas esperanças. E subitamente esse dia chegou. O filho do morgado de Valgouvinhas, Abel
Couto
Orbacém
da
Jola,
depois
de
trazer
os
irmãos
dela
por
bambochatas e montarias ao cerdo nas tapadas do Gerês, declarou-se-lhe em Braga. Dionísia, meio alvoraçada, meio interdita, escreveu à irmã a consultá-la. Deduzia-se da sua carta que estava no pendor, que desceria infalivelmente se lhe não tocassem, e com grata rapidez se lhe dessem um impulso. Telmo sentiu
no
coração
um
ferro
em
brasa
a
trespassá-lo.
Era
o
seu
mundo
secreto, o mais cativo e melindroso dos mundos, que ruía sobre ele e o esmagava. A própria mulher se apercebeu. – Que tem o Telmo? Está tão pálido...! – Ó prima – murmurou ele recobrando-se – tem lá flor de margaça, não tem? Faça-me um chá. Ouvi-lhe dizer que a flor de margaça era boa para o baço... – Foi a pontada que lhe deu? Jesus, Nossa Senhora! Felisberta!... Veio a criada a correr, entretanto que Ana Adelaide, com a cabeça meio perdida,
dizia
para
as
velhas
tias
que
entraram
logo
como
sombras
escoteiras, sem ruído nem rasto. –
É
a
pontada
na
passarinha!
Não
há-de
ser
nada,
se
Deus
quiser!
Chamem-se a N.ª S.ª do Amparo! Chamem-se também por mim... –
É
aquela
Oliveira
quer
maldita que
seja
pontada cólica
que do
me
dá
baço...
–
Escolástica que era muito entendida em tudo.
de
tempos
explicava
a
tempos.
Telmo
para
O a
Dr. tia
D. Ana Adelaide e Felisberta rodaram a fazer o chá, deixando Telmo com as tias galegas e a mãe D. Maria Carantonha, que na sua aflição se desatara do nirvana em que vegetava. D. Escolástica, a mais intemporal das tias deste mundo sublunar, madona ressurrecta dum enterro de Greco, tinha copiosa leitura de Sabuco de Nantes. E logo ela se saiu com a sabença toda, não desaconselhando a flor de margaça, mas recomendando que se temperasse com
uns
raminhos
de
endros,
arruda
e
borragem,
o
mais
cordial
dos
simples. Para dar a conta, havia de se lhe adicionar dois dedais de alcaçuz raspado. D. Dolores foi de parecer que, pelo sim, pelo não, se chamasse o P.e Tirteu, que andava às trutas, para que ouvisse o sobrinho de confissão. Telmo,
que
já
se
ressarcira
do
quebranto,
despediu-lhe
uma
sonora
gargalhada com que ela, ao mesmo tempo que embatucava na sua boa previdência sacramental, rejubilava, pois que o doente dava mostras de se não ir desta. Mas o alarme correra a quinta e do extremo do Meijoeiro veio o mais depressa que lhe permitiam os membros meio perclusos, encostado ao bengalão de rangífer, D. Telmo Montenegro Iraizoz e Valadares, senhor de Salvatierra y Moz. Quando viu a filha Maria Carantonha a chorar e a rir, torcendo os dedos, que tal era o seu gesto predilecto, percebeu que não era coisa de cuidado. De facto, o neto tinha o ar pimpante que o caracterizava. O velho pôs-lhe a mão no ombro, deu-lhe uma abanadela, como quem sacode uma
árvore
para
lhe
deitar
abaixo
os
frutos,
e,
vendo-o
sólido
e
bem
apegado à terra, exclamou: – Anda-me para a bacelada, Telmito! Preciso lá de um homem que ensine os trabalhadores a manobrar o ferro do monte. Eu já estou velho... – Ai, mano, deixe-o tomar o chazinho – dizia D. Escolástica. – Passou... passou! A Virgem do Pilar ouviu-me. Chamei-me a ela, ouviu-me. – Tia, quem manda na Casa Grande é a Senhora do Amparo. A sua manda para lá da fronteira... – Bebe o chá, meu filho... bebe... Telmo pegou na xícara com a tiborna nojenta de ervas cordiais que sua mulher
lhe
vergonha.
apresentava.
E
Fazia-se
sofregamente,
de
tão
um
pressurosa trago,
e
doce
emborcou
que
quase
aquele
teve
quimérico
remédio para um quimérico colapso, e não se achou pior. A máquina reage aos
quatro
pontos
da
rosa-das-doenças
debaixo
de
qualquer
princípio
estimulante, fantástico ou não, mesmo que se trate de lograr os crédulos. A questão é provocar o choque. Quando
as
cores
lhe
voltaram,
o
que
não
demorou,
as
tias
galegas
regressaram ao seu oratório, Maria Carantonha à sua alcova de hebética, D. Telmo de Valadares ao bacelo, marido e mulher puderam ventilar a sanguefrio o caso de Dionísia. Que havia ela de dizer à mana? Telmo pouco ou nada sabia daquele Abel Couto Orbacém da Jola a não ser que passava por tolo, rico, inútil, e com um amor imoderado ao pêlo. O Chico Prelada na romaria do S. Torquato partira-lhe os queixos e ele ficara com eles partidos, limitando-se a dar parte aos quadrilheiros. Mas não será esta mansidão sinal de boa índole? – Jesus, um homem medrola não inculcava eu a minha irmã! – exclamou Ana Adelaide, soltando um gritinho reprovador. – Cada um sabe as linhas com que se cose, prima! Cristo não manda oferecer a face esquerda ao esbofeteador da direita? – Credo! Credo! É quanto sabe do homem?! Para veneno, tratando-se duma rapariga pundonorosa, com o seu brio, chegava. Adicionou ao récipe: – Nada mais sei. Espere: parece que este rapaz tem-se farto de namorar a torto e direito por terra e mar. Todas as namoradas acabam por mandá-lo à fava. Porquê, não sei. Namorou em Ponte
de
Lima
uma
sobrinha
do
Visconde;
namorou
em
Barcelos
uma
rapariga de Santa Maria de Lijó; corre que namorou em Montedor e Fafe. Não pegou nenhum dos derriços. Olhe, prima, diga à Dionísia que esteja apenas de pé atrás com semelhante salta-pocinhas. A esposa, que era uma singelez de alma, não viu ai por baixo do sanai do impostor, e reproduziu para a irmã, mutatis mutandis, as suas palavras. Mas
Telmo
não
sossegou.
Aquilo
podia,
quando
muito,
servir
de
retardador na ladeira. Que outras armas empregar de eficácia certa? Os dias que se seguiram passou-os Telmo sobre brasas. Não parava em parte alguma. Logo de manhã cedo pegava da lazarina, a última palavra em espingardas de caça, trochada e de espoleta, e partia pelos montes. Em regra metia de carreira para a Portela Grande, de cujos altos se desdobrava o céu até horizontes de Braga e se abarcava o lençol de ar que envolvia o corpo estremecido. As perdizes e a lebre saltavam-lhe dos pés, e perplexo ou desastrado deixava-as ir. O Medor voltava-se para ele com a sua carranca
horrenda
de
navarro,
orelhas
caídas,
beiça
babosa,
olhos
sarcásticos,
a
abanar o rabo, muito admirado daqueles malogros da pontaria. Chegava a casa fora de horas, esquecido das refeições, esfalfado e de cinto vazio como fora. Deixava correr. Enganaram-no duas vezes os caseiros nas contas. Dava respostas trocadas quanto a preços e sementios. Parecia andar na lua e de lá não sair. Recrudescera o seu furor sensual, como possuído de priapismo agudo. Criadas e servas exibiam caras jubilosas. Nunca ele assim se prodigalizara com elas em rapapés e dádivas. Andavam todas muito bem arranjadas
e
algumas
iam
fazendo
pé-de-meia.
A
Felisberta
chegou
a
persuadir-se que era a favorita e tratava as outras com uma superioridade desdenhosa. Ruiva, com o nariz arrebitado, magra e flexuosa, chamavam-lhe a Cabra esfolada. Faziam dela chacota pela presunção e os ares: – Grande delambida! Que é o que o patrão lhe acha para assim andar pelo beicinho?! Foi tibornada que lhe deu a beber. Nem a criada de dentro nem elas podiam supor que a pessoa que ele abraçava em Felisberta era a mesma Dionísia que se lhe semelhava nos meneios de serpente, nos olhos piscos às suas horas e sobretudo no tique que lhe arrepiava as comissuras dos lábios, expressão de anjo num dobre de sensualidade. Mas como ninguém a desiludira e amor são obras que não palavras, vivia ditosa e devaneando. Entretanto aconteceu que Ana Adelaide caísse doente com umas febres ruins, precisamente à altura em que os pequenos tiveram o sarampo e logo de cambulhada bexigas loucas com o seu rescaldo maléfico. As criadas, ainda que diligentes, não satisfaziam por recreação própria aos cuidados da casa. – E se eu pedisse a minha irmã Dionísia que viesse para cá uma semana!? Os pequenos andam sujos, amarelinhos, e há três dias que lhes não lavam os pés... – alvitrou Ana Adelaide, desafogando a cabeça dos travesseiros no meio dum grande febrão. Para Telmo foi como se o atirassem duma torre abaixo. E, como homem que sofreu grande boléu, redarguiu tartamudo e incerto: – Ela está lá para aturar estopadas destas...?! A prima tem aí as tias galegas, recorra às tias galegas. – O Telmo tem coisas! Para que servem as tias que não seja para rezar? – E
depois
duma
longa
e
ruminativa
desfazer na pobre rapariga, pronto.
pausa
acrescentou:
–
Deu-lhe
para
– Que rapariga?! A Dionísia? Perdão, prima, isto não é desfazer. Não é desfazer. Sempre tive a maior estima por ela. Posso não ter grande apreço pelo seu tacto de dona de casa, mas boa rapariga quem o contesta? Boa rapariga e sã – proferiu em tom já de solilóquio na preocupação por um lado de esconder o interesse, por outro de não salgar a dissimulação. Mediou entre eles uma nova pausa que Telmo se decidiu a saltar com receio de criar um vácuo intransponível, corrigindo o excesso da fingida repulsa: – Emiti uma opinião. A prima está convencida que a Dionísia é mestra em governo de casa...? Pode ser que tenha razão. Agora prestável... prestável... quem mo garante? – Quem lho garante? Parece tão esperto e não vê o que se passa à sua roda! Ele há lá menina mais liberal que Dionísia?! Dá o sangue dos braços se lho pedirem. Não sabe dizer que não. Não tem reparado? – Sim, lá isso, pode ser. Mas não dirá que sim a tudo, tudo. Queria que dissesse que sim a tudo? Suponha que a vinham cometer... Hem? – Não seja tolo. Há bem e mal. A Dionísia para o bem nunca diz que não. E lá quanto a governo de casa, responda-me: quem tem estado à testa da casa depois que minha mãe faleceu? – Então não é a tia Ambrósia? – Tia Ambrósia, quê! A tia Ambrósia, sim, é uma mulher de armas. Mas trazer
tudo
no
seu
lugar,
a
recato,
limpo,
perluxoso,
roupas
que
é
um
brinquinho, a Dionísia. –
Está
bem,
está
bem.
Não
lhe
sabia
tais
artes.
Oxalá
que
se
não
arrependa! – Arrependa de quê? – Então não a quer mandar vir? – Não se fala mais nisso. Livra! Prefiro para aqui morrer com os dentes enfechelados e que os piolhos comam os meninos. A Nardazinha traz umas chostras na cabeça que mete nojo! – Ó prima, a Virgem do Amparo me valha, quem manda na casa não sou eu. Eu mando na quinta, nos caseiros, nos criados, no milho, nos cães, nos cavalos. A prima de portas para dentro dá leis. É a rainha. Reine, reine, que eu não lhe vou à mão. – Não senhor, não senhor. Eu sou uma escrava. Contento-me em receber as suas ordens, vê-lo satisfeito. – Então se sou eu que dou ordens, vou dar-lhas... Chame sua mana.
– Ah, isso é que eu não chamo. – Não chama?! Agora me zango eu. Não chama porque eu pus em dúvida as suas excelentes prendas como dona de casa? Pronto, retiro tudo o que disse. Já aqui não está quem falou. – Não chamo, não chamo! – Deixe-se de perrices! Chame-a, sou eu que o exijo. Exijo-o em nome da minha
comodidade,
do
bem-estar
dos
pequenos.
De
facto,
andam
em
miserável estado. As criadas não chegam para tudo. Podíamos mandar vir a mãe Felismina. Mas agora com as festas havia de lhe ser difícil desamparar a loja. Mande vir a Dionísia, e mande-a vir já. Manda-se vir, não se manda vir, Telmo pôs os pés à parede e, com grato constrangimento da esposa, ficou decidido convidá-la e, caso afirmativo, ele iria na caleça da casa com D. Escolástica buscá-la a Braga. A resposta chegou com atraso de dois dias porque Dionísia se encontrava para Capareiros, com D. Ofélia Ninfa de Orbacém da Jola Larim, esposa do morgado de Larim e irmã de Abel Couto Orbacém da Jola, pretendente à sua mão. Estava ao dispor da querida maninha e só porque lhe anunciava a ida da carruagem se não punha já a caminho.
XVIII
Saíram de Braga já tarde, soavam no sino de Nossa Senhora a Branca as seis badaladas lestas, a ritmo binário, da derradeira missa conventual. Viase o reverendo Hilarião avançar no ar dilúcido da praça, tricórnio para a nuca, o cálix da consagração debaixo do braço numa saquinha de ramagens. Caminhava de seu mole, narcisando-se de meias vermelhas nas pedras da calçada e nos olhos das moçoilas que havia acocoradas com seus cabazes e seiras pelos traços das portas, pois, sobre ser velho e ralaço, era o celebrante mais gaiteiro dentre os mil e um celebrantes da Roma lusa. O Sol ia alto, e todavia desde o lusco-fusco da alba que o Zé Robim tinha a carruagem e os cavalos amantados contra o aguilhãozinho da friagem à porta do Corregedor. Mais cedo do que era preciso, viera depois bater no taipal do cirieiro grossas palmadas: truz! truz! O pai Bento Lado estava já a pé. Julgando que fosse beata dos arredores atrigada e pedir cera para algum mortório sucedido durante a noite, entreabriu a porta e meteu a cabeça a esgrelhar.
Quando
reconheceu
naquela
lua
dos
reportórios,
seccionada
contra o batente, a cara linda do Robim, desembestou: – Terçã te coma para desalmado! Tu queres-me acordar o homem a estas horas?! Não te levarem seiscentos mil diabos para o inferno! – Ele é que mandou... – Qual mandou...?! Não sabes como ele é, não sabes? – Como ele é...? – Como ele é, então? Gosta de dar-vos campo para cebolas e marca uma hora. Depois, lá sai quando lhe dá na gana! Telmo, que passara mal a noite, entrecortada de pesadelos e insónias, bem ouviu o aranzel na loja, divertido em sua alma com a linguagem assaz pítica
do pai Bento. E só para o não deixar mal colocado é que não saltou da cama. Virou-se para a outra banda, mas não houve meio de conciliar o sono. Em baixo o postilhão marralhava, meio rabugento, meio cavidoso: – Sabe que mais, senhor Aniceto, o carro lá está. O patrão quando chegar, chegou. – Ora, marca lá dois tentos, meu homem! Ouviu-o finalmente desandar, a passo lento, arrastado, talvez meter, que era amigo da bursunda, para a tasca do Penagate, que abria com a alba a apanhar os regatões que botavam de Merelim e Adaúfe, os sacristães e bufarinheiros em dias de feira, mais as cróias tresnoitadas das ruas de trás da Sé. Aquilo era como um botequim nos portos de mar. Amanhecia-se de pé ao balcão a beberricar cachaça e muitas vezes falava o cuchilho de três estalos. Telmo repassava na fantasia o que iria no cóio, entretanto que saíam da missa das sete e tocavam para a das oito. Na loja romperam a trabucar. Eram os seus dois velhos. Quando chegassem os oficiais, já eles tinham dado muita volta na lida quotidiana, incansáveis e bem dispostos como se fosse a sua uma faina igual à do cantar dos pássaros e à dos regatinhos que vão pelos prados fora dando de beber às ervas que têm sede. Felismina varria, limpava o pó com um esfregão minucioso. Por causa dele, bem dava conta, devia andar nas pontas dos pés e mexer nas coisas com mão de veludo. Mas os ruídos mais subtis, quando se tem espertina, levantam eco que
nem
rufos
suspendiam
a
de
tambor.
estreloiçada
Na
diante
rua, do
de
quando
escaparate,
em sem
quando, dúvida
tamancos lapónios
a
admirar os ex-votos, mãozinhas, pés, bonequinhos inteiros de cera com que as mamãs agradeciam aos santos terem os filhos naquele andaço escapado de ser anjos. Dormir, impossível. O sol percorreu o largo, deixou a sua dalmática de oiro fúlgido pendurada na vidraça, e pulou pelo quarto dentro. No meio dos odores a incenso e sebo que subiam da oficina e do mofo próprio da peça desabitada, era como um mordomo a fazer as honras ao patrão pródigo de regresso. Tudo, sim senhor, muito limpo e asseado. Tudo tal qual o deixara há mais de uma dezena de anos. Lá estava a cómoda de mogno com o toucadorzinho
de
espelho
búcio,
o
aço
amortiçado
com
o
tempo
e
a
humidade, a barra de nogueira maciça, o oratório ao canto. A mãe Felismina esquecera-se apenas de acender a lâmpada, que a Virgem Santa Catarina reluzia, na mesma ordem de respeitos, com o seu peplo azul, debaixo da redoma de vidro. Não conseguira preopinar-lhe o caminho para Coimbra,
mas decerto o preservara de maiores cabeçadas. Ave, inefável padroeira dos cábulas! O lume do espelho reflectia-lhe a cama, com ele estirado de papo para o ar a devanear, o rosário à dependura duma das pirâmolas, e por debaixo curial,
do
guarda-bacios,
espreitavam
mosqueadas
duns
como
uma
instituição
outrora,
chinelos
de
à
pele
de
espera de
Braga
dos
cabrito.
tão
seus Jazia
pudenda
pés,
as
tudo
como
biqueiras
no
mesmo
encantamento, tal qual ali vivera, menos o seu descuido e alma livre. Quanto aos pais adoptivos, adiantados nos anos, a velhice ia passando por eles como uma lunação de vasto orbe. Não era ela que os impedia e, louvores a Deus, nem impediria ainda por muito tempo, de continuar a ser as células activas, espontâneas, da cristandade bracarense, o que tinham por mandado do alto e força da natureza. Do rombo que dera em seus cabedais D. Telmo, senhor de Salvatierra
y
Moz,
com
sua
mania
de
magnificência,
breve
se
haviam
ressarcido, imitando os castores na ralé de restaurar a lura desmantelada. Àquela
hora
teriam
mesmo
superado
o
nível
anterior.
Uns
sobrinhos
revolteavam à roda daquela áurea senectude. Mas tanto Aniceto do Bento Lado como Felismina do Coração de Jesus tinham um só herdeiro, legatário universal, Telmo. Este soube-o, sem dar mostras de desvanecimento, nem ficar de pedra no sapato, sendo certo que nenhum extremo viria acrisolar a afeição
que
lhes
votava.
Acendrada
e
pura
como
nascera,
assim
fora
medrando. Na véspera, quando surgira imprevistamente na loja, Felismina até chorara de regozijo. Depois da ceia, nem a casa do sogro queriam deixálo ir dar as boas-noites a Dionísia e a D. Escolástica, que ali pernoitara. Dobando a sua cisma por um lado, teimando inutilmente com o sono por outro, a meia manhã foi passando. De novo ouviu a voz peganhosa do postilhão a despicar-se com Bento Lado. Precipitou-se da cama, despediu grandes chapadas de água para os olhos, e foi à janela com a toalha nas mãos a enxugar o rosto: – És tu, Robim? Atrela os cavalos, eu já aí vou... – Estão atrelados desde o amanhecer... – Temos muito tempo. Não corras que morres cedo! – e recolheu-se a acabar de se vestir, assobiando a Casta Diva. Uma boa meia hora depois atravessava o largo, cheio de mendigos e moscas,
a
grandes
pernadas,
adiante
de
Bento
Lado
e
Felismina
que
bufavam para o acompanhar. As duas senhoras esperavam debruçadas à janela aberta para o largo, as mãos dentro dos regalos, erguida a gola dos casacos de peles. Avistou-as de longe e com desenfado pensou que mais de
uma vez Dionísia deveria ter procurado moderar a impaciência de sua tia Escolástica. Em febre de alma ninguém era mais castelhano. O relógio duma torre, provavelmente Nossa Senhora do Pópulo, estava a bater horas, e a rapariga dobrava-se para ela. Que lhe diria que não fossem estas palavras de circunstância: – Não se aflija, D. Escolástica. Só agora deram as nove! E a velha
responderia,
estava
mesmo
a
ouvi-la:
–
Este
meu
Telmo
é
um
descansado. A esta hora podíamos estar lá para Vila Verde. E se a Ana Adelaide piorou, menina?! Viram-no descoser do gargalo da rua, e Dionísia prepararia mesmo um remoque, consoante a veia de mordacidade que lhe era peculiar. Mas ter-seia
arrependido,
porque
se
limitou
a
dizer,
sorrindo:
–
Chama-se
a
isso
dormir... – Pois acredite, mal preguei olhos. Noutros tempos, metia-me naquela mesma cama e levava de uma assentada dez horas de sono solto. Tinham de me ir abanar para não perder a aula do padre Urbano. Agora não há maneira de dormir. Não me vêem ar de tresnoitado? Deitei-me quando fui daqui. Nem que caísse num ninho de lacraus! – Minha Nossa Senhora, lacraus...? Não serão por lá percevejos...? – Lá haverá um ou outro, que são gado ruim de desinçar – exclamou Felismina em tom mal-humorado, pois que lhe estavam em casa. – Ainda há poucos dias passei cama e soalho a água a ferver e sabão amarelo. – Lacraus é um modo de dizer. E lá de percevejos não se fala, embora figurem como fauna particularmente braguesa em Contador de Argote, se não estou em erro. São os cuidados, Dionísia... os cuidados que mordem como lacraus e nos dilaceram corpo e alma! – e, dizendo isto em tom melodramático, lançava-lhe um olhar terno, sonsamente infeliz. – Suba a tomar um copo de leite – proferiu ela, evitando olhar para ele. –
Já
vem
temperado
–
respondeu,
na
mesma
voz
seca
de
há
pouco,
Felismina, transplantando para a vida comum a terminologia química do seu laboratório. As
senhoras
aposentado,
alto
desceram e
solene
a
escada
nas
suas
de cãs
pedra, e
após
honras,
elas
o
aprumado
Corregedor ao
grosso
bengalão de castão de prata, à direita de Ambrósia, irmã e almoxarife. Telmo curvou-se, rabo do olho para a filha. Que interessante que ela estava com o mantelete de seda verde e flores amarelas, enrolado de turbante à volta da testa, as pontas a lembrar ramos de maias, e um jaqué de merino
reseda, muito cintado, que lhe represava os seios, dando-lhes aquela forma empinada que toma o trigo quando cai da joeira! Sobre a brancura do colo, que despertaria apetite a um canibal, doidejavam dois ou três cabelos loiros, escapos ao pente, se é que não desleixados por garridice. A esse trecho, tão voluptuosamente condimentado, completava-o a boca, que não era correcta, talvez
nem
mesmo
bonita,
mas
possuía
não
sei
que
sortilégio
no
seu
contorno e uma expressão impura de libido, cheia de sex-appeal. Telmo bem fugia com os olhos; às duas por três, os olhos voltavam ao prado delicioso. Dionísia deu conta da impressão que causara e veio-lhe um sorriso aos lábios, um destes sorrisos fulgurantes, involuntários e atraiçoados. Telmo depressa se apercebeu de tal casquilharia interior, e não foi preciso mais nada para ficar bêbedo de todo e mais fátuo de que o que lhe cabia por temperamento. Podia ter-se enganado? Não, o dengue de Dionísia estava mais
que
transparente
no
maneio
artificioso
e
nos
gestos
o
seu
tanto
desconexos. Em despeito da ebriedade que o tomara, Telmo mantinha-se atento a todos
os
sinais
que
ela
por
vanglória
ou
insuficiente
ardil
deixava
exteriorizar. Mais atento nem um timoneiro a conduzir o seu barco. Capaz de todas as tontarias, sabia por experiência o perigo que há em esbarrar quer na timidez improdutiva quer na audácia espalha-brasas, situações por igual contraproducentes no plano da sedução. Sempre tivera uma certa confiança em si e na imperiosidade de que se acompanham as leis da natureza. Não é que tudo entre homem e mulher se reduz a sexo? Ao
alto
da
escadaria,
o
velho
Corregedor
Dr.
Joaquim
Meireles
de
Travanca e Ceia, em chinelos de tapete, um grande capindó pelos ombros, e xaile-manta em torno do pescoço, a bater o compasso com a ponteira da bengala, mostrava cara de poucos amigos. No fundo devia achar-se chocado, sentir mesmo certa relutância em ver a sua menina na companhia dum homem, conhecido de ginjeira como insolente valdevinos e galo doido com mulheres. A tia Ambrósia, que ali estava ao seu lado, não manifestava menor engulho. Mas não duvidariam da firmeza de carácter e claridade de alma de Dionísia. Ela fora a primeira a passar-se carta de crédito. Telmo apurou que não foi sem constrangimento que a viram naquela conjuntura impor o seu modo de ver, tão peremptoriamente voluntariosa: – Se a Ana
Adelaide me chama é porque precisa de mim. Não posso faltar a minha irmã. A tia Ambrósia cá fica... Conformaram-se.
Agora,
perante
o
ar
composto,
muito
naturalmente
fraternal, de Telmo, acabaram por dissipar-se-lhes as apreensões recalcadas. Não ia ainda de sentinela aquela dueña invulnerável, verdadeira encarnação das virtudes teologais, D. Escolástica? Foi ela a primeira a tomar lugar na caleça, à esquerda, no sentido da marcha; em frente, Dionísia. E porque era curial deixar o espaço mais amplo à respeitável anciã, Telmo sentou-se à ilharga de Dionísia. No assento vazio depositaram em monte as coisas várias de viagem, sacos, malas, a condessinha com almoço e merendeiros. Dali até Romarigães podiam contar oito léguas, nada roubadas, incluindo o tempo de paragem no caminho para dar penso aos cavalos. Seis horas, para mais que não para menos. Estava
uma
aragenzinha
rica
fria,
manhã
que
de
fazia
Primavera,
baloiçar
no
se
bem
céu
a
que
cortada
grimpa
dos
por
uma
pinheiros
e
esfarrapava as duas notas do cucuritar das rolas. Nos lameiros e ferregiais a erva corria, corria, e era curioso ver as suas milhentas pernas, lançadas da testa
das
leiras
reptiliana,
sem
a
toda
mais
a
ter
orla
extrema
fim.
Mas
dos
nas
campos,
baixas
e
numa
abrigos
curiosa era
um
fuga ledo
encantamento, e certas árvores, como macieiras e pessegueiros, cobertas dos primeiros gomos, davam a impressão de que tinham pousado em cima delas enxames de borboletas. Outras, tais os amieiros e saulos, eram pasto de enxames de lagartas felpudas e aneladas, de cabeçorra maciça e olhos de ónix. Ainda outras, com seus borbotos finos e repetidos, pareciam cobrir-se dum cendal cinzento e róseo, semelhante à gaze da névoa a esgaçar-se à tez dum rio. Já o passaredo se digladiava, esquecido do cibato. Quais eram os mais belos ou os mais fortes e levariam a melhor no terreno da competição? Chegara a altura do ano em que o diabo anda à solta. Com os cavalos a bater o trote nos piamos ou a arrastar o passo nas subidas, as campainhas das coleiras a tanger a sua tarantela, foi-se criando o clima de viagem. lam silenciosos, desapegadamente a contemplar o painel do mundo. Os olhos comportavam-se quase como vidraças, viradas para a rua,
que
prímulas
não e
têm
ninguém
corimbos
por
roxos,
lá
trás
a
ver.
estavam,
e
Os eles
campos,
marchetados
bem
viam,
os
mas
de
sem
apreensão interior, como reza a sentença dos passantes passados. A palavra «embevecimento»
aplicada
a
Telmo
não
definiria
bem
a
sua
forma
de
levitação.
Dionísia,
aparentemente,
encarnava
a
viajanta
impassível
sem
outra ideia essencial de momento que a de chegar ao destino. Mas por baixo da sua máscara plácida, aprazia-se Telmo a ver criar-se, que mais não fosse por reflexão dos seus desejos, uma atitude nada indiferente. Sim, Dionísia devia estar a par da tormenta que lavrava em sua carne e alma. Não dera ainda fé? Oh se dera! Bastava que a paixão lhe houvesse a ele arrepelado os sentidos
e
viesse
a
dominar-lhos,
para
que
os
sentidos
dela
fossem
advertidos, senão tocados. Nestes casos, a intercomunicação lúbrica é tão natural como a do calor ou da electricidade. Não é que tudo no mundo é molecular? Um sexto sentido, particularmente apreensor nas mulheres, as avisa de quem as cobiça. Compreende-se que, ordenadas como receptáculo, seja mais desenvolvida nelas a faculdade de detecção. O homem pode ser amado e não fazer reparo. Elas fazem sempre reparo. Quando se ama uma mulher e se está em contacto com ela, pode partir-se do princípio que está ciente. Qualquer declaração de amor é redundância. Dionísia
fora
sentimento
o
teria
seu
namoro
deixado
o
de
seu
criança
gérmen.
bem
como
Porque
não
Ana
Adelaide.
havia
num
O
dado
momento de desabrochar e florir, aquentado a um sol favorável?! Mercê dessa antecipação, esperava ele agora se lhe proporcionasse meio propício ao desdobre do seu empreendimento. O primeiro objectivo a conseguir era fazer derivar as relações dos dois da ordem familiar para o plano superior, puramente
humano,
do
sexo.
Felizmente
o
próprio
silêncio
que
agora
mediava entre eles estava cheio de vozes, vozes que iam permutando as suas duas naturezas de fundo revesso a qualquer constrangimento. Bem julgava ele ouvir-lhe recriminar: «Casaste com Ana Adelaide quando eu gostava de ti e deste a entender que eu te não era indiferente. Sim, tu gostavas de mim como
eu
restante induzir
gostava mundo,
não
sei
de não
ti. se
porque
Estas
coisas,
medradas
compreendem conjunto
de
sem
na
despreocupação
reciprocidade.
circunstâncias
e
do
Deixaste-te
optaste
por
Ana
Adelaide como se pudesse ficar impune o torcer-se a lógica dos sentimentos. Tarde vieste a saber que foi pior que matares um homem. Mas agora já não há
remédio.
Bem
dou
conta
que
morres
por
mim
de
amor,
ou
de
concupiscência, que é equivalente. Sinto-me muito lisonjeada. O que mais lisonjeia uma mulher de parte dum homem em matéria de finezas é que ele a deseje. Desejada de lábios contra lábios, de braços nos braços, de poros nos poros a comunicarem-se toda a lia de que é feita a atracção universal.» –
«Ah, Dionísia, tu sabes quanto te quero! Pois que o sabes, ainda não perdi a esperança de satisfazer o mandato que se prevalece dessa ordem suprema. Palpita-me
que
terei
ainda
algumas
barreiras
a
vencer,
mas
o
caminho
principal está percorrido. Tenho-te aqui a meu lado e vou-te impregnando do fogo que me abrasa. Que melindre é esse teu que me não falaste ainda do homem que te pediu em casamento? A que pudor da consciência obedece essa reserva em não enunciares sequer projecto tão culminar? Aceitas que eu me cale e faça sobre ele um silêncio que não pode ser senão reprovação e estigma. Ah, Dionísia, tudo isso é a prova do compromisso tácito que se está elaborando
entre
compenetram
e
nós
à
medida
comungam.
Se
és
que
os
liberal
eflúvios e
benigna
de
nossa
como
carne
afiança
se
Ana
Adelaide e eu o pressenti há muito, Dionísia, escusas de fugir, tenho-te nos braços.» Estrias
compridíssimas
de
sombra,
que
escurentavam
os
campos
consoante os grandes cirros mansarrões se interpunham ao Sol, pungiam a manhã
dum
fresquinho
leve,
mas
traiçoeiro.
Todavia
era
a
altura
da
Primavera em que o frio é saboroso e saudável. O ar que se respira possui um ressaibo de sorvete. D. Escolástica tinha-se amachucado e enroscado mais no xaile de merino, o que visto por Telmo forneceu ensejo a que lhe dissesse: – Está com frio e vai tão calada...?! Tia, tem aqui a manta... Foi só pegar nela do banco em frente e, desenrolando-a, estender-lha sobre os joelhos. A velha lançou-lhe um olhar agradecido: que regalo! Mas era larga de mais e avançava, por cima dele e de Dionísia, enorme e fofa como uma onda de velos por enfardar. Telmo esmerou-se então a ajeitá-la, orçando-a com sorridente pachorra e aconchegando-a bem dum lado, bem do outro, a palmadinhas de cutelo, em volta de todos três. Feito o que, de mansinho,
com
brandura
cautelosa,
encostou
a
espádua
à
espádua
de
Dionísia. Ela não buliu sequer; havia de estranhar, porquê? A seguir, de chofre, encostou-se-lhe com o corpo todo. Esta manobra executou-a em dois tempos,
não
tão
rápidos
que
não
se
distinguissem
bem
pela
pulsação
afadigada do sangue. Dionísia, como se fosse indelicadeza dar àquele jeito outra interpretação que a de encontro fortuito, arredou-se do modo mais natural do mundo. Mas arredou-se, ao de leve, um nadinha de nada. Por sinal que bastou a Telmo
um avanço milimétrico à direita para sentir roçar o seu joelho na saia que ela trazia. No entanto foram decorrendo os minutos e ele em suspenso. Telmo sujeito
considerou é
um
que
Dionísia
inveterado
talvez
reflexionasse
conquistador.
Todas
as
desta
maneira:
mulheres
lhe
Este
servem:
casadas e solteiras, senhoras e labregas. Não foi padre Hilarião que disse: Telmo é um perigo para as Onze Mil Virgens se vai para o Céu?! Posso concluir que se se chegou a mim foi com má intenção. Que magicasse assim ou assado, o certo é que sentiu o corpo de Dionísia desviar-se do dele. Não havia dúvida. Já não experimentava, deslocando a perna para o lado, o contacto cicioso da seda. Olhos fitos em vago, mas com todo o propósito, anélito porventura mais ligeiro, esfinge, assim lhe pareceu Dionísia. A reacção devia processar-se bem longe no domínio puramente sensorial. Mas espera... – A tia à força de dar voltas já se descobriu. E logo do lado donde vem o vento... – e, isto dizendo, foi de mão solícita compor-lhe a manta. Com ademanes de beatitude a velha fechou os olhos. Para agasalhá-la bem agasalhada, meteu-lhe as pontas da manta por debaixo do corpo e depois por baixo de Dionísia. Daquele jeito a envoltura abrangia a todos três. Sentindo-se apertada contra ele, a rapariga esboçou um ricto indefinível de contrariedade, acompanhado de resistência do corpo, mas nada mais que uma suspeita de resistência. Reacção formal, logo seguida de renúncia. Telmo
tinha
agora
no
subterrâneo
da
manta
de
viagem
o
corpo
de
Dionísia bem chegado ao seu, só a anca, um tudo-nada rebelde, à desbanda. Mas não tardou que o seu joelho avançasse medroso à busca do joelho, que descobriu à distância de um cabelo. Tocou-o e retraiu-se como se se tratasse de choque ocasional. Mas logo volveu a tocar-lhe e a retrair-se, avançando e recuando,
dir-se-ia
conforme
os
sacolejos
do
carro.
E
na
imaginação
imantizada de Dionísia talvez se formulasse a dúvida: fá-lo expressamente? Não faz? Em harmonia com esta cadência, o joelho dela, por movimentos quase
imperceptíveis,
consentia
no
toque
ou
furtava-se.
E
este
maneio,
como Telmo o impunha, era mais discreto que uma pena a esvoaçar bafejada por sopro intermitente. Dionísia acabou por se cansar ao jogo de negaça, quem sabe se alcovitada pelo demónio familiar: não é teu cunhado? O seu joelho imobilizou-se junto do dele. Que, em última análise, se tivesse rendido, por um compreensível decoro
do
próprio
melindre
ou
por
um
qualquer
estímulo
do
cérebro
desabusado, não cuidou de saber. O importante é que possuía afinal o corpo de Dionísia, desde o artelho vibrátil à espádua cheia, concorde e confiado. A súbitas, terramoto. Que sobressalto fora aquele? Apenas um intempestivo rebate. E de novo o seu joelho, agora a descoberto, sem hipocrisia, como quem reconduz à razão amante desavinda, posto que maneirinho, túrgido de blandícias, saiu à procura da perna apetitosa. E, pronto! Que mal havia, para eles, para os próximos, para a infinita harmonia do Universo, que os poros de seus corpos se compenetrassem de voluptuosidade sobre o açude sem fundo da vida e da morte? Dionísia recostou-se sobre as almofadas, fechou os olhos, e as pálpebras, levemente roxas, encobriram na íris o reflexo dos seus sentimentos. Telmo via-lhe na membrana as vénulas finíssimas embaciarem-se dum fuminho vago, sobre o azul, mais ligeiro que o dum belo sonho sonhado. A boca lá estava
na
sua
torção
nativa,
tão
excitantemente
viciosa,
arfando
com
regularidade. D. Escolástica deambularia pelo céu, lábios agitados como os dos
leporídeos,
decerto
a
bichanar
orações
pela
salvação
do
mundo.
E
Telmo, olhos em vago pelos prados, desvairava no seu paraíso de Maomet. Nas proximidades de Moure, Dionísia fingiu acordar do sono que não dormia. Com certo espalhafato de gestos e de vozes, de forma a que não houvesse dúvida do seu colapso, inquiriu: – Onde vamos nós? – Estamos a chegar a Moure. – Já?... Temos de passar pela casa da prima Câmara Coutinho... Fora decidido descerem em Moure e dar os bons-dias à prima Mafalda, ali casada com Adeodato Tralhão Viegas Câmara Coutinho, ela também Câmara Gastão
pelos
Câmaras
Joseph
comendador
de
da
de
Pico
Câmara
Santa
de
Regalados.
Pantafufo,
Maria
de
senhor
Casével,
Com da
efeito,
Casa
consorciara-se
um
das com
destes,
Taipas D.
e
Maria
Teresa de Noronha, filha do conde de Assumar, dama que por sua tia, D. Brunilde Oia Rinchuevos de Montenegro, era prima-coirmã de D. Brites Aldonsa Iraizoz de Montenegro, a respeitável genitora do avô D. Telmo de Montenegro, senhor de Salvatierra y Moz. – A tia vai bem? – perguntou Telmo ao desenfado. – Muito bem. Levava os joelhos frios, mas agora já vou quentinha. Vocês deitam mais lume que uma fornalha. –
E
fominha
não
leva,
D.
Escolástica?
–
derivar o tema, olhando de soslaio para Telmo.
proferiu
Dionísia,
fazendo
A velha dona esboçou com um gesto de cabeça que não era fome de três dias; ele abriu as mãos na mais expressiva curialidade: – V. Ex.
as
é que
mandam. – Então depois de Moure. Quando pararam à porta dos Câmaras Coutinhos – cinco estrelas em sautor e uma torre de prata com dois leões rompantes, lampassados de sinopla – acudiu a criada de fora e o mordomo, um velhote com barba ruça de quinze dias. Depois de muita zumbaia, subiram a escadaria de dois lanços, e surgiu no patamar a prima Mafalda, com seus grandes úberes de vaca
leiteira
dentro
dum
chambre
sujo
de
lemiste,
pés
a
nadar
numas
babuchas de veludo bordadas a roxo em ponto de espinha. Passava pelo anjo da caridade e, coitadinha, não era nada toleirona. As senhoras beijaram-se, prodigalizaram-se festas sem conto, que ela e Dionísia muitas vezes tinham jogado as pedrinhas no Largo de S. Paulo quando iam para o colégio das Ursulinas.
Mafalda
meio
engasgada,
purpúrea
e
vergonhosa,
entrou
a
desculpar-se: – Adeodato andava para a caça. As primas porém fizessem o favor de entrar e Telmo cobrisse o chapéu que na casa não havia santos... Por certos olhares do mordomo surpreendidos de esconso, o acanhamento de
Mafalda
e
seu
ar
comprometido,
veio
Telmo
a
inferir
que
o
primo
Adeodato da Câmara não estivera para lhes aparecer e se furtara. Tanto mais que, em artigo de caçador, não lhe conhecia outras artes que a de espatifar duas perdizes em molho de vilão, enquanto o diabo esfrega um olho, com duas sopetarras de broa e uma canada de verde. Que traste! Não admirava, eram notórios os hábitos do morgado, que tinha fama de sorrelfa, matreirão e o primeiro forra-gaitas da comarca. Bastava olhar para os meninos, quatro raposinhos ranhosos, com os calçonicos rachados nos traseiros e rotos nos joelhos, e tinha-se uma ideia do desmazelo ou cainheza de tal família. Os mesmos catraios iam e vinham, como se andassem de moços de recados a levar e trazer dixe-me-dixe-mes dali para uma potência invisível, que não podia ser senão o paizinho. Diabo do homem, lá teria matutado que o melhor era meter-se em copas, embora tal atitude tivesse sido, durante o espaço em que esperaram à porta, motivo de altercação entre ele e a esposa, que
não
quereria
sozinha
aguentar
a
bucha.
E
tinha
razão.
Quem
lhe
garantia que esse Telmo não lhe vinha pedir dinheiro, quer para ele, que era um esbanjador, ou então para o senhor D. Miguel que já lhe estava por uma
continha calada!? A mulher que aturasse os primos das dúzias, que para alguma coisa havia de servir. Ele não nascera para panos quentes e empadas daquele calibre. Telmo estava a sonhar este bate-língua a meia voz entre marido e mulher, enquanto ela agora lhe dava explicações, que aceitou com ar pesaroso e a mais impressionante boa fé. E foi prevenindo que levavam horas contadas e, se tinham descido, era, além de lhes dar, bem entendido, os prolfaças pelo nascimento
da
Adosindinha,
Pantafufos,
porque
D.
o
último
Escolástica
e
rebento D.
dos
Dionísia
Tralhões queriam
e
Câmaras
repousar
os
minutos indispensáveis às senhoras que vão de jornada pelos caminhos de longo tracto. E assim se refez a placitude da boa e rebolona dama, cujo sorriso depois disso se lhe esbagoava do rosto como o painço na espiga quando a debicam galinhas poedeiras. – Então, Dionísia, já sei que te vais casar?! Ai, que levas um marido tão bom! Tão bom! E bonito moço! Também o mereces... – cacarejava agora a boa senhora. Dionísia ouviu sorridente, mas sem pestanejar, estes elogios imprevistos. A título de que ia vigiar o penso dos cavalos, Telmo saiu da sala. Fê-lo tão desabaladamente que ao descer a escada, voltando-se para arrenegar das armas dos Câmaras Coutinhos perfiladas na padieira, deu com os olhos numa
cara
barbuda,
terrosa,
que
espreitava
por
debaixo
do
torçal
das
persianas. Desviou a vista confuso, envilecido em parente tão ordinário, vergonha dos morgados do Alto Minho. Quando
reapareceu,
D.
Mafalda
dizia,
na
galeria
dos
retratos,
para
Dionísia diante duma dona farfalhuda, rósea e de merimaques ao estilo velasquenho: – Aqui tens, menina, a filha de D. Pedro de Almeida, primeiro conde de Assumar, dama de honor de D. Maria Sofia, augusta rainha. Pai e marido foram veadores sucessivamente de D. Afonso VI e de D. Pedro II. Por ela é que D. Escolástica é minha prima em sexto grau, mas temos de remontar Tralhões,
à
geração
que
dos
vieram
Assumares
casar
a
na
Braga
Galiza. e
aí
Pelo
geraram
ramo a
colateral
um
D.
dos
Manuel
Balafrazes, que foi coudel em Mormugão, entronca a nossa linhagem na dos Travancas e Ceias. Também por este costado somos eu e tu parentas do Abel Orbacém da Jola, primo em sétimo ou oitavo grau. – Vamos, vamos que se faz tarde – prorrompeu Telmo, com brusquidão, chegando-se ao grupo e caminhando para a porta.
Em despeito das vozes de escusa, as criadas acabaram por preparar um beberete na sala de espera, servido em belas pratas antigas e bandejas não menos espampanantes. Mas à uma os hóspedes pediram licença para não aceitar, à parte D. Escolástica, que fingiu provar o hidromel de alcaparras e melápio
de
Fafe,
que
passava
por
altamente
carminativo
e
de
muito
consumo entre os chantres da Sé. Telmo insistia: Estava à espera deles em Portela das Cabras o primo Basílio Piscalho, que já lhes anunciara um salmão chegado na véspera de Lanhelas e um marraninho de leite cozinhado no forno por sua tia D. Maria da Porciúncula, que fora rodeira na Tamanca e tinha dedo inspirado para os pitéus. E com fazer crescer a água na boca aos quatro cachorrinhos, ao mordomo, à própria Mafalda, todos de ar faminto, se retiraram depois de dar e receber muitos salamaleques e emboras, que são barata feira. D.
Escolástica
ocupou
o
seu
lugar,
depois
Dionísia.
Já
o
cocheiro
desenrolava o chicote no ar a desferir o estalo da partida quando Telmo saltou para a caleça. Tornou a desdobrar a manta e a estendê-la sobre os joelhos
e,
como
se
fosse
acordo
estabelecido,
chegou-se
para
Dionísia,
ombro contra ombro, joelho contra joelho, o que ela aceitou de bom grado, tal
a
coisa
Escolástica traquitana esvoaçar
mais
legítima
bailava abalou
na
e
um os
escadaria
e
simples
sorriso
velhos
deste
mundo.
angelicamente
lenços
sobrepujada
sujos
pelos
dos
leões
Nos
lábios
zombeteiro. Pantafufos rompantes,
de
Quando
deixaram desfraldou
D. a de o
estandarte: – Reparou a menina para a marmelada que nos ofereciam...? Por cima do papel até havia porcaria de rato. – Reparei muito bem. E que tal o licor? – Nem óleo de mamona. Só molhei a ponta da língua e vou enjoada. E o vinho fino no fundo duma garrafa de cristal da Boémia, viram? – Eu vi muito bem – disse Telmo. – Três moscas e uma vareja patinhavam lá dentro, as grandes bêbedas! Entretanto Telmo gozava a posse do que era seu. Seu por incontestado direito de conquista. E tinha a impressão de que se desdobrava, e a sua pequenez, os seus desejos, os seus problemas quotidianos soçobravam numa ampla e montuosa personalidade. Os
ingleses
haviam
pouco
antes
abandonado
a
Península.
Tinham
deixado, perdidos pelos campos, uns pelouros, umas espadas ferrugentas e duas ou três palavras. Uma delas, de ufana pirataria, soando como tal desde
o duque de Lencastre a Wellesley, trazia-a sempre o velho D. Telmo de Montenegro na boca. O neto aprendera-a com ele, e agora levava-a na alma, que vale mais que nos lábios: all right! Entretanto trocando
Dionísia
divertia-se
comentários
triviais
com
a
acerca
bisbilhotice
daquele
de
morgado
D.
Escolástica,
recolhido
no
paredeiro a ver crescer as unhas de fome e os calondros. A sege atravessava agora extensões semidesérticas, mas a que um sol frio besuntava tudo de amarelo brando, um amarelo de flor de sargaço, inspirador de optimismo. O ventinho continuava a torcer ervas e plantas, produzindo o lindo efeito dum pente a derrubar uma marrafa. Puxaram
dos
merendeiros.
Serviram
de
mesa
os
joelhos
de
Telmo
e
Dionísia. Estavam de morrer por mais os infalíveis bolinhos de bacalhau sobre o vinagre, e digno de D. João VI, grande papa-frangos, o polho de grão assado no espeto. Comeram e untaram a barbela, fazendo-lhes dignas honras um palhetinho alegrete e gajeiro de Leitões, colheita do Corregedor. D. Escolástica ingurgitou-se mais que uma velha perua, estilada uma manhã inteira pela vara implacável do saloio. Fez uma cruz sobre a boca pecadora e, porque o comer lhe desse na fraqueira, cabeça sobre o ombro direito como um girassol à noitinha, adormeceu. Dionísia, ajudada por Telmo, levantou a improvisada mesa. Sempre que lhe era azado, os dedos inábeis de Telmo compraziam-se em tocar os dedos destros de Dionísia. Ela, como aquilo era ou podia ser tido obra de acaso, não se esquivava. Num dado momento as mãos dele encontraram-se com as dela no fundo da cestinha. Telmo demorou a sua mão em cima da de Dionísia. Ela fugiu com certa veemência. Mas a mão dele, tal um açor, agarrou-a no voo, murmurando baixinho, quase num cicio: – Que mão tão bonita! Ela fitou-o e, ruborizada como uma rosa, proferiu, a meia voz, não lhe abandonando a mão, mas retirando-a com indolência: – Não seja pateta! Recolheram louças e vitualhas aos cabazes, que depositaram ao pé de D. Escolástica
espapaçada
diante
deles.
A
boa
velha
dormia
como
uma
cariátide de altar, e desta vez foi Dionísia que lhe aproximou a manta em volta dos joelhos para que não tivesse frio. Depois recostou-se para trás e, sem dizer mais palavra, cerrou os olhos. Ficava de perfil para Telmo e era na atitude
de
repouso,
não
se
lhe
divisando
mais
que
um
canto
da
boca
cometedora, duma pureza divina em suas linhas serenas. Telmo quedou embevecido, devorando-a com os olhos e possuído não de temor, mas de
respeito ante aquele espelho de fragilidade e formosura. Tinha o direito de ser perverso com quem apenas seria sensual por natureza e, contas feitas, fácil de render em sua pobre indefensão?! Narinas delgadas formadas por arestas lineares e curvas perfeitamente simétricas, sobrancelhas descidas para o globo ocular como conchas de nácar, a face escorrida e uma testa erecta sem exagero, a sua expressão, pois que se lhe não descortinava o vínculo temperamental da boca, era duma nevada juventude a pedir piedade. Contemplando-a, teve de súbito o palpite de que ela o espreitava por uma frestazinha inverificável do olho esquerdo, tão exígua como a pupila dum gato no pino do dia. E foi o suficiente para o acender. Encontrava-se já na postura de adorador, e mediante calculado exagero, com arregalar os olhos e exalar um hausto de opressão, encareceu seu êxtase. Seria para fugir a tal visagem, tida ou não por simulada, que ela se teria voltado
para
o
outro
lado,
donde
o
não
poderia
ver?
Fingindo-se
adormecida, a mão dela, que estava por cima da manta, escorregou para o joelho por baixo da orla. E logo a mão dele se lançou a preá-la. Com o movimento a manta descaiu para aquele lado e rasou o tapete. A coberto, como se o entremez se passasse em pleno sono, Dionísia deu um sacão para desprender-se. Mas foi um sacão moderado, que não descompôs a ordem e recato em que se achava na carruagem. Segurando-lha primeiro sem grande esforço, a mão bonita acabou por entregar-se à mercê. Primeiro em rendição passiva. Os dedos fortes é que apertavam, se contorciam com aliciantes afagos
em
torno
humilhando-se
à
dos sua
dedos presa
esbeltos.
Em
semimorta,
seguida,
a
anediando-a
garra desde
espalmou-se, o
cotovelo,
estância alta do santuário, ao pulso, seu primeiro degrau. Uma vez, duas, três vezes a carícia de veludo subiu mansa e suavemente a via voluptuosa com mais sabedoria que a dum encantador que modula na flauta a ária que há-de subjugar a serpente. Em certa ocasião afigurou-se-lhe que a mão deliciosa parecia ter pena de ficar inerte. E Telmo redobrou de blandícias. Pouco a pouco foi sentindo latejar mais ágil o sangue arterial, e que um frémito inefável a tomava como a um pentacórdio. Sim, a mão saía do seu torpor e correspondia com languidez aos dedos amorosos. Lentos e a medo abraçaram-se aos outros dedos. Para se certificar que não era logro, Telmo suspendeu o seu manejo. E sentiu os dedos maviosos esboçar uma leve, levíssima pressão, a confessar o seu acordo.
A traquitana ia rolando, tropeçando, de escantilhão quando o caminho era em declive. O boleeiro praguejava e D. Escolástica, no processo para a mumificação, se abria um olho fechava-o logo balouçada sobre a eternidade. Dionísia e Telmo iam de pálpebras descidas, cabeças reclinadas sobre as cortinas da caleça. As mãos deles conversavam às escondidas. Faziam plena confissão geral sem se saber mentir, como no princípio do mundo amantes à boca de suas cavernas. Agora os dedos finos e vibráteis enroscavam-se nos dedos fortes e nervosos. Era a entrega absoluta e desenganada. Telmo conduziu a mão vencida, e a mão deixou-se conduzir. Com certa molície; indiferente; inculcando-se inerte. Um leve sobressalto, e estalou o conflito. A unha rósea enterrou-se-lhe na chave da mão entre o polegar e o índice.
Podia
vir
uma
faca!
E
a
mão
divina,
embora
com
jeitos
de
sonâmbula, deixou-se levar na aventura. D. Escolástica lembrava, pescoceira à frente por cima deles, a gárgula duma catedral.
XIX
Não se entendiam os facultativos com os padecimentos de Ana Adelaide. Dos mais obscuros às sumidades gloriosas, o diagnóstico era irresoluto e até contraditório. Por fim, despacharam ao barbeiro de Covas, meio herbanário, meio corpo-aberto, uma embaixada, discutida durante muito tempo que nem a do Preste, com os sintomas da doença. – Só à vista – emitiu o homem de virtude. – Nem ao menos me trouxeram uma camisa da doente para eu poder ajuizar! – Venha à Casa Grande, que não perde o seu tempo... O senhor Euclides Fragoso, que assim se chamava, calçou as botas de monte
e
os
polainos
com
que
roçava
o
mato,
pôs
o
gabinardo
de
três
cabeções, o gorro de pele de coelho, e botou-se a Romarigães. Entre a frieza reservada de Dionísia e o crendeirismo reticente de Telmo inquiriu o mágico dos axes da enferma. Depois de ouvi-la a ela, de ouvir os próximos, volantes,
de
deitar
torcidos
os
os
olhos
beiços
em
em
alvo
a
alguidar
captar no
as
vozes
paroxismo
do
dos
espíritos
meio
transe,
pronunciou: – Aqui anda mau olhado, por mais que me digam. Esta senhora tem queixa lá no íntimo, oh, se tem, mas não basta para explicar tão grande quebreira. É preciso dar-lhe defumadoiros e sangrá-la... Enunciou o barbeiro os ingredientes que haviam de entrar na operação, e passava a novo capítulo quando Dionísia lhe observou: – Sangrá-la não me parece assisado, que anémica está ela. Sangue é o que lhe falta... – Pois garante-lhe o filho de meu pai, que já não nasceu ontem, que o sangue que lhe corre nas veias é pior que o não ter. Mais envenenada nem a água choca dum charco. Se a querem ver boa, abram-lhe o braço...
Discutiam
remédio
tão
radical
quando
se
anunciou
de
improviso
o
médico de Paredes. E menos temerosos do encontro que envergonhados de terem chamado o mezinheiro, depois de o fazer sair por uma porta travessa, despediram-no com uma rasa de milho às costas, dois litros de feijão frade e um corte de surrobeco para umas pantalonas. Dinheiro, não havia na Casa Grande nem com que mandar cantar um cego. Baseavam
os
médicos
conspícuos
o
deperecimento
físico
de
Ana
Adelaide e seu linfatismo no facto de haver amamentado de seguida, ano por ano, a quatro filhos, de que sobreviviam apenas os mais velhinhos, abandonando-se à alimentação. Decerto por inapetência, pois que não lhe faltava nada do que costuma abastecer mesa fidalga. Ana Adelaide acabara, com efeito, por admitir que ignorava o que fosse paladar. Convinha tê-lo presente. Pessoas falhas do quarto sentido ou duram toda a vida e mais seis meses, utilizando as substâncias nutritivas como uma máquina utiliza os combustíveis,
ou
vão
desta
para
melhor
à
primeira
macacoa
séria.
Compreende-se: a lei de conservação privou-as do seu estímulo essencial, que
tem
por
órgão
príncipe
o
céu
da
boca.
Para
D.
Ana
Adelaide
a
terapêutica aconselhável seria pois féculas, caldos gordos e carnes verdes. Chegassem-lhe mandioca desta ao bico, e veriam como arrebitava. Não pareceu à família que fosse destituída de bom senso e de lógica tal explanação do morbo. E, pois que era tudo uma questão de meios, trataram de obtemperar. O padre-capelão foi expedido a Braga dar uma sangria, à conta da que o bruxo não dera a Ana Adelaide, no Bento Lado, este tendo sempre cruor a verter e do bom, que o nome não mentia. Posto que chamada para o governo da casa, cingia-se Dionísia ao papel de enfermeira, que desempenhava com discreto e silencioso esmero. Telmo cirandava à sua volta, mas ou ela não fazia reparo, ou ele não lhe fazia nenhuma sombra. As vezes que era forçoso ouvi-lo, prestava-lhe a mais despreconcebida atenção. Se acontecia encontrarem-se, ela passava adiante com jeito tão natural que seria imperdoável tirá-la do seu caminho. Em suma, sempre que pela força das circunstâncias tinha que atendê-lo, fazia-o sem
baixar
os
olhos,
nem
os
retrair,
como
se
a
sua
retina
se
despersonalizasse, reflectindo uma imagem tão despsicologicamente externa como a que recebe um espelho. As refeições tomavam-nas em comum à mesa redonda. Mas lá estavam as tias
galegas
no
papel
de
sentinelas
de
Deus,
quanto
a
alguns
dos
seus
mandamentos, e a quem não passava o ver pelo ouvir. De resto, Dionísia comportava-se
com
mesurada
cerimónia,
aprumo
todo
senhoril,
certa
lentidão degustativa, um alongamento muito donoso de dedos sobre o garfo, tudo traduzindo um regradozinho artificio, que impunha respeito. E, à parte os
desvelos
de
que
dava
mostras
para
com
os
pequenos,
um
estranho
poderia perguntar: – A que casa de saúde up to date foram buscar esta enfermeira? Debaixo de tão inflexível regime, Telmo rabiava e sofria. A sua alma nadava em fel. Ter ali a dilecta, mais cobiçada do que nunca pelo facto de mostrar-se esquiva, estar longe dela sentindo-a ao pé, tornava-lhe a vida um tântalo. Vingava-se com furor erótico nas moças e caseiras, especialmente naquela Felisberta de olhos poalhados de oiro e embridados à oriental, com uma
sapidez
deletéria
de
cabra
esfolada,
que
nas
suas
horas,
com
boa
vontade, lembrava Dionísia. Todavia, embora favorita, não era a única. A sua lascívia desbordava como dum sultão heróico, superarreitado, sem ter sido preciso sujeitar-se à dieta específica de mandrágoras e granjeias de âmbar. Correspondentemente, nunca as suas mãos se mostraram mais rotas. Dinheiro
que
lhe
entrasse
na
algibeira
jogava-o
às
rebatinhas.
Dotou
mancebas em barda e legou terras a muitos menores que lhe pediam a bênção como a pai de trás da porta. Para ocorrer a tais despesas, que eram avultosas, assinou letras e contraiu hipotecas a torto e a direito. Ana Adelaide não via nada do que passava à sua roda. Os seus olhos contentavam-se
em
adejar
sobre
a
cabeça
dos
dois
pequerruchos,
que
vinham para a sua beira traquinar. Acocorados no tapete, brincavam felizes e descuidadosos com as coisas mais inverosímeis. Por obra de fantasia tanto convertiam em burrinhos e moleiros as castanhas-da-índia, como as cascas das
nozes
em
caleças,
para
as
quais
recortavam
rodas
nas
cascas
das
abóboras e beringelas. O soalho ficava um chiqueiro ao fim do dia, mas para ela
um
chiqueiro
esplêndido
como
o
paraíso,
pois
que
era
o
palco
de
tropelias daqueles seus anjos. Quanto à doença, não havia meio de vencer a sua repugnância pelos remédios, e só com o medo de desagradar, delicada como era, não mandava os médicos abaixo de Braga. Quem havia de pô-la no seu pé – não era raro ouvir-se-lhe – havia de ser Nossa Senhora do Amparo, padroeira indefectível dos Cunhas e Montenegros. A essa, sim, não regateava Grande.
ela
votos
e
promessas,
como
nos
tempos
epopeicos
da
Casa
Embora alheada do mundo que não fossem os seus dois inocentes, não lhe passou despercebida a mudez que reinava em tomo do seu leito e aquela contenção de palavras da irmã para com o marido. Certa manhã, que o sol de Outono entrava alvissareiro e folgazão pelo quarto dentro, inspirando à franqueza e optimismo, proferiu, quando Dionísia lhe dava uma canja, com o marido silencioso e hirto ao pé: – Andam amuados? Providencialmente
os
pequenos
entravam
no
aposento
como
dois
ciclones, guinchando e arrastando à laia de trenó uma cadeira D. João V pejada de objectos inomináveis, desde livros a sapatos. De modo que a pergunta insólita, tão gravemente barométrica, perdeu-se no escarcéu. Mas na atmosfera alguma coisa ficou de sua irradiação tóxica, uma sorte de ozone moral. E mais deu nas vistas a pragmática que observavam de parte a parte. Bom dia! bom dia! – e Dionísia não se desviava um ápice da sua lide, mexida,
rápida,
vaporosa,
como
se
tivesse
nascido
para
aquela
função,
imune a qualquer interferência de fora. Já ele, ao contrário do génio, se mostrava
sorumbático.
denunciar
um
estado
Alheamento de
nela,
antecipação
turvação
entre
os
nele,
dois?
que
mais
para
segunda
vez,
soltou-lhe
uma
E,
aconteceu Ana Adelaide proferir: – Andam amuados? A
pergunta
desta
feita
não
se
deliu
no
ar.
Dionísia
pequena gargalhada. Ele sorriu, o sorriso que chamam amarelo, e proferiu também ao disfarce: – Então querias que nos despicássemos...? O médico não ordenou o máximo repouso à tua roda, querida? – Repouso não me falta – respondeu ela com certa amargura. – Se não fossem
as
partes-gagas
destes
meninos
podia
julgar-me
na
câmara
de
moribunda. Uma tal quarentena, além do que perigosamente significava, dava com ele em doido. O seu desespero excrescia para a intemperança sexual. Felisberta retomava todas as manhãs o serviço de olhos bistrados, lenta e langorosa. Escandalizava o seu arrebique de amada. Ele fazia-o de mau, no propósito de
provocar
em
Dionísia
esse
subsentido
feminino,
pronto
a
captar
os
eflúvios e sinais da voluptuosidade que exalam as outras mulheres. Ora, se com o dobar dos dias endureceu aquela crosta de reservas mútuas, tornou-se ao mesmo tempo a Casa Grande fria e soturna como um hospital. As
velhas
damas
galegas
vagavam
pelas
salas
vazias
como
sombras
elisianas. Dionísia discorria do quarto da irmã para a cozinha, da cozinha para o quarto, a preparar-lhe o comer e as tisanas, e ali, à mesa, em toda a
parte, coisa alguma seria susceptível de infringir o seu inalterável horário. À noite, depois de acomodar os meninos e a irmã, nunca antes de baterem as dez, recolhia ao quarto, onde se fechava a sete chaves. Não obstante este cariz de esfinge, Telmo estava persuadido de que ela bem se apercebia do seu
desespero
e
inquietude.
Mas,
acaso,
nada
seria
nela
obra
de
dissimulação? Perante depois
de
a
inextricável
pro
forma
maranha,
ouvir
os
Telmo
anjos
consultou
bons.
Estes
os
seus
eram
de
anjos
maus
parecer
que
abandonasse uma empresa perversa que, ao fim e ao cabo, lhe havia de causar grossos amargores de boca e sair cara. Os anjos maus, livrando-se de moralizar, limitaram-se a ensinar-lhe o caminho, com a respectiva tramóia, por onde poderia conseguir os seus fins. A virtude couraça-se contra os insucessos terrestres visando ao recrescido galardão do Céu. Telmo não aceitava
letras
a
tão
largo
prazo.
Preferia
o
mal
com
suas
intrínsecas
bondades, sem cuidar das penas no outro mundo. Engazupava as criadas e assim
fazia
delas
activas
e
honradas
serviçais.
Pensava,
agora,
com
subconsciente cinismo, que se seduzisse a cunhada ficaria o administrador da
sua
legítima,
o
que
lhe
faria
um
jeitão,
reunindo
assim
o
útil
ao
agradável. Em obediência ao plano maquiavélico, saiu de casa, certa manhã, de espingarda a tiracolo, como quem vai espairecer. Desceu a carreira da fonte e com um rodeio pela mata inflectiu para a Quinta do Meijoeiro ou estrema sudeste da propriedade. Era ali que morava o Gabriel, moço de estrebaria, com a mulher, seu guarda-costas e arrieiro nas digressões arriscadas. Diziase até que ele se gozara da Esperança, a mulher do Gabriel, a quem a dera bem arreada de oiros e com a patrona cheia de libras. O Gabriel era homem de ruins febras, capaz de meter as mãos no lume por ele e dar uma facada a Cristo, se lhe mandasse. Naquela hora, esperou que ele assomasse no pátio e, mal o viu, fez-lhe sinal. Apressou-se o criado a ir ao seu encontro a coberto do arvoredo, desde logo entendendo haver condessilha. Lá falou com ele e, dado o recado, despediram a furto cada um para seu canto. Estavam na Casa Grande em fins de ceia, veio uma criada dizer que chegara
naquele
instante
o
Gabriel
com
uma
parte
muito
urgente
de
Padornelo. –
Uma
parte
muito
urgente
de
Padornelo...?!
–
repetiu
ele
em
voz
admirativa. – É por lá de minha irmã. Que me quererá ela? O Gabriel que
entre... Como era hábito nas casas antigas, o criado veio à presença do amo, e ele à mesa. Camisa aberta nos bofes, chapéu na mão direita, pau na esquerda, dava ares de quem trazia umas boas léguas no pêlo, andadas de rota batida. – Então que há, Gabriel? – inquiriu Telmo apoiando um cotovelo na mesa, soerguido o outro com o garfo a meio caminho da boca. – Venho de Padornelo. A senhora D. Maria Egéria manda dizer para Vossoria ir lá imediatamente. O senhor Quinzinho teve um ataque... – Meu cunhado teve um ataque...?! Coitado, tu viste-lo? – exclamou em voz patética. – Saiba Vossoria que não vi. Mas na casa andava tudo numa dobadoira. Tinha partido um criado a cavalo para os Arcos a chamar o médico. Fez-se uma pequena pausa e Telmo pronunciou, com vista à roda, de Dionísia para as duas zurbaranescas senhoras: – É o segundo insulto. O homem arrisca-se a patear. Uma destas! Há luar? A pergunta era dirigida ao criado que respondeu: – Há luar de quarto, senhor. Mas a Lua vai já muito baixa... – Está bem. Tu já ceaste? Se não ceaste, ceia aí, que hás-de ir comigo. Vens muito enfadado? Eu vou-me arranjar. Levantou-se de rópia sem acabar de comer. As damas olharam umas para as outras compungidas. Dionísia não proferiu palavra. Antes, deixou-se ficar onde estava, terminou a refeição a ritmo levemente mais pressuroso, e a passo natural foi advertir a irmã do que ocorria. A breve trecho apareceu Telmo envergando capote de cavalaria, pistola à cinta, pingalim em punho: – Deus permita que se trate duma falsa alerta. Se o homem morre, faz grande diferença a minha irmã nesta altura – pronunciou em guisa de despedida. – Aninhas, dorme em paz. Amanhã pela manhã, se não houver novidade, estou de volta. Adeus, menina! Adeus, tias! –
Vais
ganhar
a
morte!
–
exclamou
Ana
Adelaide
pelo
vezo
antigo,
excessiva como sempre em seus desvelos. – Por uma noite destas...?! Podem sair-te os lobos ao caminho... os ladrões... – Levo aqui para uns e outros – emitiu em tom de gracejo, voltando-se a apontar
a
coronha
da
pistola,
com
um
rebate
de
prazer
surpreendendo
Dionísia que o seguia, imóvel e interessada. À
passagem
empurrou
Felisberta
que
se
atravessava
muito
salerosa,
odalisca a fazer-se para o afago do paxá. O cavalo batia as lajes do pátio,
montou e, com o criado à frente, engolfou-se no caminho que ladeia as portelas de nascente. Uma vez no rumo de Sampaio disse para o criado: – Recolhe o cavalo no Meijoeiro. Que nem o Diabo o suspeite, ouviste bem? Leva-me também o capote... – A noite está fria, patrão... – Cá me entendo. Rompe! – O patrão não manda mais nada? – Rompe! O
criado
despediu
pelas
terras,
a
corta-mato,
com
o
cavalo
à
rédea,
imaginando pela certa que ele ia a uma das suas inúmeras aventuras na aldeia, moçoila envergonhada ou mulher de homem que andasse a ganhar a vida pelo mundo. E Telmo embrenhou-se pela bouça, distraído a magicar no pensamento que, possivelmente, ocuparia o bestunto de Gabriel, segundo a fórmula: lá vai mais uma tola ao castigo. Se assim fosse! Ah, aquela era caça de altanaria. Do alto, à luz baça do quarto minguante, espraiou a vista pelo vale de Moldes. Nas casas, pelos lugares, apagavam-se as luzes. As donas tinham lavado as tigelas da ceia e, aqui, além, recolhiam às mantas. Um ou outro ralo lançava ao rés do espaço siderado a solfa dorida. As águas iam rolando córrego abaixo, chocalhando, para lá ao fundo se repartirem, limarem umas as várzeas de sanfeno e ferra, as outras, contornando a Casa Grande, pela direita, lançarem-se do cômoro em catadupa. Nada para assinalar uma bela propriedade como a água corrente. Ali, noite e dia, por toda a parte, a voz divina proclamava que ali era o Amparo, terra gorda de almargeal e vessada. Quando deixou de ouvir o tropear do cavalo, depois de salvar a lomba, Telmo retrocedeu. Devagar, parando aqui, escutando acolá, caminhou até que diante dos olhos a Casa Grande avultou no meio da escuridade como um caravelão ancorado numa laguna. Ainda saía duma das janelas uma lançada
de
luz.
Devia
ser
no
quarto
de
Dionísia
que
olhava
a
mata.
Aproximando-se das grades do portão, ouviu um restolhadoiro e dois vultos que se arremessavam para ele, com um ronco na goela: – Chut, Turco! Chut, Janota! – falou em voz baixa. – Chut! Aquietaram-se os molossos que, ao reconhecê-lo, maticavam em gama baixa de consolação e, a bater a cauda, volveram ao ninho. Telmo abriu e cerrou sobre si a porta pequena sem levantar rumor. Passou na sombra da capela. Lá estava Nossa Senhora do Amparo, entre S. Pedro e S. Paulo,
decerto seguindo-o com os seus olhos preclaros. E não se conteve que não lhe dirigisse uma prece fervorosa: – Minha Nossa Senhora, padroeira da minha casa de geração para geração, perdoa-me o que vou tentar e, se é possível
entremeteres-te
nestes
negócios,
ajuda-me.
Vai
no
seu
êxito
o
sossego e destino da minha alma. Bem sabes que um pecado é tantas vezes o degrau que se tem de subir para alcançar o caminho do bem e da glória. Juro vestir cem pobres desde a camisa ao casaco, dotar cem donzelas pobres que se proponham casar com oficiais honrados, mandar rezar cem missas em cem igrejas da diocese, se levar a empresa a bom acabamento. Minha Nossa Senhora, digna-te ouvir-me e auxiliar-me! Foi de volta pelo lado da cozinha e copa. A luz alaranjada do quarto de Dionísia continuava a projectar seu clarão mortiço através da noite baça, lambuzando
na
horta
a
rama
esfarelada
das
fruteiras.
Quanto
às
outras
janelas, mal acendia nas vidraças um reflexo dúbio a luminescência do minguante,
a
Raciocinando
descer se
muito
valia
mais
esvaído a
pena
por se
detrás
não
valia
do
rossio
esperar
da
que
Raposa.
se
fizesse
escuridão absoluta na Casa Grande, concluiu consigo que tanto uma coisa como a outra tinha os seus prós e contras. Em conformidade decidiu-se. Pé ante pé trepou a escada que dava serventia à capela pelo pátio. Fê-lo o mais subtilmente
que
pôde,
rodando
devagarinho
com
a
chave
que
trazia,
reprimindo a respiração, vigiando na porta o estalido dos gonzos. Passos andados estava diante do aposento de Dionísia. A chama doirada da luz emoldurava o orifício da fechadura. E agora? Não hesitou. Louvores a Nossa Senhora, aquela noite ela não se fechara por dentro. Sempre era então certo que o temia, que se deitava e alevantava com ele no pensamento! Isso, por agora,
pouco
interesse
tinha.
Desandado
o
manípulo,
a
porta
cedeu,
e
deparou-se-lhe a rapariga, sentada na cama, de penteador, cabelos soltos pelas
costas.
Era
uma
linda
mancha
e
a
sua
alma
se
abriu
a
tanta
jucundidade. Dionísia deu logo conta. E, ia a adiantar o pé, já ela proferia de lábios torcidos pela surpresa e voz turvada: – Que vem aqui fazer? Se dá mais um passo, grito! Tinha-se soerguido na cama e mostrava-se de gesto irado, impulsivamente hostil. Telmo encostou a porta e respondeu, detendo-se o tempo suficiente para sacar a pistola da cinta: – Grite! Mas fique certa: se grita, mato-me neste mesmo instante...
E avançou com a arma na mão. Ela, que sabia quanto era homem para cumprir a ameaça, conteve-se. – Só quero que me ouça – tornou ele. – São poucos instantes... Dionísia
desviou
os
olhos
e,
voz
espremida
na
glote
com
a
aflição,
gemeu: – Não tenho nada que o ouvir. Que homem! Que homem! – Tem razão, que homem! Sou um mau homem, sou um malvado, nem o inferno me há-de querer, mas assim não é vida. Antes de me matar só lhe queria dizer porque o faço... Dionísia, de unhas raivosas nos dedos recurvos, arrepelava-se, escrevia na carne as emoções do seu transe, o rosto desmanchado num ricto de angústia. E no tom em que se confinavam dor, ódio, desespero, disse: – Mate-se!... Porque se não mata...?! Porque espera? – Dionísia, juro-lhe e torno-lhe a jurar que é hoje o último dia da minha vida!
Dionísia estendeu o braço com o dedo em riste a apontar um ponto no frontal, donde lhe parecera vir rumor. E ficaram ambos em transe, o hálito opresso. O ruído acentuou-se e ela soprou à luz. Quedaram como que em levitação,
suspensos
na
redoiça
das
trevas.
Depois
o
silêncio
da
Casa
Grande envolveu-os como o mais macio dos veludos. Como era salutar, depois das lágrimas, depois de exasperado sofrimento, acolher-se à deshipocrisia corações estábulos.
da
noite
e
com
um
só
Apenas
o
à
pureza
pulsar.
da
Um
caruncho,
rrá,
sua
atrição?!
chocalhinho rrá,
Ouviram
de
verrumava
ovelha as
bater
os
tiniu
para
os
velhas
do
tábuas
dois
soalho mandado lavrar pelo licenciado Gonçalo da Cunha. Ao cabo duma longa pausa, em voz ciciada volveu ela: – Vá-se embora, Telmo! A Ana Adelaide pode espertar... – Vou, sim, vou... Deixe-me beijar-lhe a mão... Deixe... é a última fineza... antes de acabar comigo. Ela fugia-lhe com a mão, a mão lembrada e maviosa. Telmo procuravalha debaixo e no meio das roupas. Encontrou a poma rija do seio. Premiu. Premiu. Dionísia contorceu-se toda. Ah, era aquela a campainha que abre a porta do afrodísion, depois de repercutir por todos os seus meandros e corredores! – Deixe-me, Telmo, deixe-me! Não seja mau! Para que é tão mau!...
A evitar o tacto empolgador, o corpo descaiu-lhe sobre a banda e a cabeça sobre o ombro de Telmo. Foi como oferecer-lhe a boca. – Telmo, não! Telmo, não! Olhe que eu grito... Ah, que melhor alcaiota que a noite! Todos os demónios da sensualidade saíram à uma dos seus tugúrios, do céu, do inferno, da alma e da carne, e reforçaram o seu poder abismal.
XX
Abre o capítulo vigésimo desta fastidiosa mas verídica crónica por uma invectiva de ordem celestial contra a voluptuosidade. Tocar em alegrete de goivos tão fragrante seria irreverência de sacripanta. Damos com toda a vénia o seu transunto fiel: Mundo, mundo, os estragos que tens sofrido da luxúria são maiores que os da peste, fome e guerra! Serpe hedionda, em suas espiras de ferro e veludo cinge e afoga os viventes. Foi ela que originou a queda de dezenas e dezenas de impérios, se reparássemos bem, e fez com que mais santos, do que estrelas tem a constelação das Plêiades, resvalassem às penas eternas quando já estavam à vista da Cidade de Deus. Pela luxúria se perdeu David, se perdeu Sansão, se perdeu Amnão. Antes de o mundo ser mundo, se perderam Adão e Eva, pois que tudo na maçã era engodo dos sentidos. Pela
luxúria
se
afundiu
no
oceano
de
seus
areais
o
Egipto
com
Cleópatra, e os Bárbaros do Norte soverteram em sangue e nojeira Roma com os Césares dissolutos. Pela luxúria se perdeu a monarquia gótica, jardim das Cinco Chagas, e o pobre rei Rodrigo foi encerrado vivo numa sepultura de pedra juntamente com uma cobra que rompeu a alimentar-se do seu corpo. – Já me come! Já me come! Já me come por onde tanto gozei! – ouvia-se-lhe gemer, sem a mão do Senhor tolerar que o guardião valesse ao
desbaratado
penitente.
Santo
António
a
definiu
de
modo
lapidar:
Luxuria inquinat; irretit; inviscat; foedera rumpit. Pai da vida, aqui rompeu ela os mais sagrados laços do parentesco e da honra: simultaneamente incesto, estupro, adultério. Tríplice danação! Aguardai,
míseros,
o
castigo
do
céu!
Podem
na
Casa
Grande
as
macieiras dos vergéis viçosos continuar a florescer e cobrir-se de pomos; as
videiras a dar uvas gostosinhas; as águas delgadas das portelas a descer cantando para os prados, inebriando as trutas brincalhonas e velhacas, fazendo crescer as ervas que pascem os poldros rinchões, trazendo a fartura às arcas. Pode mesmo a inefável Nossa Senhora do Amparo não vendar os olhos quando passais e até sorrir – haveis de ter o castigo de tão inaudito pecado! Tremei, amantes, que esperais a hora em que a Casa Grande e o mundo submergem na noite inviolada para vos entregardes às babilónicas e loucas bacanais, lábios contra lábios, membros estorcidos aos membros, criaturas feitas à imagem e semelhança do puro Deus tornadas serpentes da fornicação. Tremei, desventurados, que está na forja o ferro que vos háde percutir, brandido por um anjo ou por um demónio, no vosso abominável leito de torpeza! Como se infere desta imprecação do cronista, agreste como as do profeta Ezequiel,
não
foram
tão
cautelosos
os
amantes
que
a
verdade
não
transpirasse. Dionísia era feliz e Telmo felicíssimo. Os azares podem ainda esconder-se, mas a felicidade deita mais fumo que uma fogueira de ramos verdes. E, todavia, durante o tempo que Dionísia se ausentou para assistir a seu
pai
enfermo,
Telmo
mandou
fazer
da
loja
para
o
quarto
dela
uma
entrada tão cavidosa que, ao demolir-se aquela ala da Casa Grande, mal se conheceu no soalho o risco do alçapão. Mas,
se
não
com
o
escândalo,
com
os
reflexos
daqueles
amores
extremados, tudo mudou na quinta. As criadas foram-se embora, vendo-se destituídas nas graças do amo. Faltava-lhes o intrépido e generoso rrascario, como uni galo pode faltar na capoeira. Mas para que não fossem a cacarejar, houve que convidá-las e bem. A título de que iam residir para Lisboa, como de facto, vestiu umas dos pés à cabeça e comprou-lhes bons cordões de oiro, deu casa e horta a outras, e ainda a esta e àquela, almas errabundas, instituiu rendas vitalícias. Felisberta foi a derradeira a largar, e Telmo fez-lhe em notário bens com que atrair um ambicioso de certo tomo ao matrimónio, ou levar existência regalada até o fim dos dias. Ela tudo teria rejeitado, se não fossem os pais que a assovelavam pelas costas: – Pega-lhe, tola. Ficas para aí uma desgraçada que nem os cães te ladram! E pegou. Quando voltavam do notário de Ponte de Lima, onde tinham ido em sigilo, ela esperou por ele horas e horas tristes e desesperançadas num bosque, ao cimo da ladeira que se reparte com a Labruja. Quando o viu afinal chegar a trote, tinha os olhos tão pisados das lágrimas que ele se
comoveu e apeou do cavalo a consolá-la: – Tens de me esquecer, minha boa pequena, tens de me esquecer... Bem vês que para Lisboa não te posso levar. Demos muito nas vistas. Mas torno-te a repetir: casa com um rapaz que te estime e conta comigo para tudo... – Não quero saber... – Diz lá, como te posso ser bom...? – Leve-me consigo... –
Impossível,
mulher!
Toda
a
gente
sabe
que
fomos
amigos,
até
a
senhora... – Ai a senhora sabe... a senhora sabe o quê?... A senhora nada na lua... – Foram-lho dizer... – Foram-lho dizer?... Meta-me aqui o dedo na boca a ver se mordo. Valha-o Deus. – E a ti, que bem precisas. Perpassou entre eles um silêncio cheio de cobras e lagartos, todos esses pensamentos
reptilianos
que
se
não
exprimem
e
cada
um
vê
correr
no
cérebro do outro. Depois de cortar um chamiço de urze e se pôr a mascá-lo com os dentes, volveu ela, olhando-o de frente: – Para que me cometeu? Não jurou que nunca me deixava...!? – Não deixo. – Ha! ah! não deixa...?! Por quem o senhor me deixa bem eu sei, mas, espere, que a senhora há-de sabê-lo... – Anda, vai-lho dizer. Corre! Agarrou-lhe
pelo
braço
com
o
arremesso
que
punha
contra
quem
o
contrariava, mormente pessoas inferiores. Sacudiu-a sem dó. Ela, ao tempo que
redobrava
de
choro,
agarrava-se-lhe
ao
pescoço
com
desespero.
Pareceu-lhe ver um ramo de mimosa em flor batida por uma refega de vento. A chorar, as mulheres são mais bonitas, e quanto mais os homens são brutos, melhor elas triunfam. Para elas a humildade é sempre a grande táctica. Acordam o macho e está ganha a batalha. Telmo apertou-a pela cinta, e nos olhos dela, babada e benditosa, um sorriso, de quando em quando, trémulo, fugaz e doce, trespassava o nevoeiro das lágrimas. Na manhã tinha chovido a potes e a terra estava abeberada de água. Tirou o xairel do cavalo e a manta. Estendeu-os no chão e ela ajudou-lhe. A luz ténue da tardinha, coada pela rama dos pinheiros, acendia nos olhos piscos de Felisberta a claridade de água salgada, que espelhavam a certas horas as
pupilas de Dionísia. Foi quanto bastou para o exaltar. O seu peitinho de rola arfava. Nunca ela estivera tão bonita como naquela hora depois do delíquio das lágrimas, o busto cingido no chambre de reseda, lenço descaído para os ombros e sobre o âmbar do pescoço um lunar cor de sardónica a luzir. O rosto imobilizara-se-lhe naquele ar de gravidade, que retrata o clima interior de dita e reconhecimento, as meninas dos olhos, nem bem verdes nem bem oiro, a reflectir como num espelho o fogo azulado do seu apetite. Tacteoulhe o seio como era estilo seu e o timbre inefável ressoou por todas as salas do palácio. Por cima deles, ao alto dos pinheiros, a noite esvoaçava asas de veludo e de cristal. Antes de transferir residência para Lisboa, por alvitre do Corregedor, fizeram partilhas de bens com escritura em tabelião. Ao filho mais velho, caberia em obediência à tradição a Quinta do Amparo com o Meijoeiro e bens anexos, que faziam parte do vínculo instituído pelo licenciado Gonçalo da Cunha, com reserva de usufruto. A Leonarda, em iguais condições, o que revinha
a
Ana
Adelaide
da
legítima
materna
em
termos
de
Braga
e
Guimarães. Ficavam-lhes livres e alodiais o Casal de Padomelo, rico em terras
de
pasto
e
semeadura,
os
foros
de
Infesta
e
a
herança
opípara,
constante de estabelecimento comercial, vinha, olival e grandes herdades em Esporões e Merelim, de Aniceto do Bento Lado e sua mulher Felismina do Espírito Santo. O cirieiro admirável, uma bela manhã de Páscoa da Ressurreição, que em Braga é cantada ao desafio pelos rouxinóis e pelos padres, morreu, e com diferença de dias – caso que deu que falar – seguiuse-lhe em marcha para o céu pela Via Láctea sua virtuosa companheira. Deitado o balanço às virtudes e deméritos de suas almas encontrou S. Pedro que aqueles pingos de cera, que na manipulação das velas escapavam das mãos imperitas dos oficiais, eles em sua ralé mesteiral os encomendassem devotamente: seja pelas Almas! Valeu-lhes palavra tão sentida apiedar o chaveiro-mor. Um pingo ou um oceano de cera para o caso é o mesmo. Pois mercê dos pingos perdidos, de algumas missas de seis vinténs, e do amor entranhado que cobraram pelo piranguinha tirado da roda, em despeito das pragas que lhe ficaram a rogar os parentes preteridos, mereceram a salvação. Testemunhavam-no
Maria
Camela,
a
vidente
da
Porta
Nova,
que
os
divisou em sonhos a alumiar ao Senhor com ponderosos círios pascais, e
uma pomba branca que dias e dias andou a espenujar gemidos sobre suas campas. Ora
estes
bens,
a
começar
pela
loja
de
cera,
alienou
Telmo
em
três
tempos quando meditou ir habitar na capital. Em poucos anos transfigurara-se a Casa Grande. Os restos mortais de D. Telmo, o avô espanhol, há muito se tinham juntado aos Cunhas e Antas na capela
de
S.
Bartolomeu,
em
Rubiães.
Não
couberam
lá
as
velhas
tias
galegas, e foi preciso dá-las à terra da verdade no cemitério comum, assim protestando contra as manas Teresa e Urraca, desunidas na vida e na morte. Lá veio a jazer a ossada de D. Maria Carantonha, a mais humilde e sublime das mulheres. Mercê dos fartos cabedais, que lhe acudiram de vias diferentes, pôde Telmo liquidar hipotecas, saldar dívidas crónicas, e obviar a descalabros iminentes
nas
suas
terras.
Pôs
na
Casa
Grande
um
caseiro,
que
julgou
abalizado, e na Primavera, ditosa Primavera minhota com as fruteiras em flor, águas límpidas, cachoantes aqui, múrmuras além, meteram a caminho da capital, entrevista Terra da Promissão, cuja miragem fora bastante para ajudar Ana Adelaide a convalescer. Em Lisboa, tinham parentes à farta, tanto do lado dos Cunhas e Antas como dos Travancas e Ceias. Por essa altura dava que falar na Corte pelo estadão da maior sumptuosidade uma D. Micaela Ninfa de Castro, da Casa do
Reguengo,
esposa
de
António
Brandão
Pais
de
Castro,
que
fora
governador da praça de Valença e, havendo retirado para Lisboa, se tornara um dos lugares-tenentes do rei proscrito. Telmo e ele eram primos pelos dois lados. Pois nesta nobre família tomaram os Meneses e Montenegros – o nome
de
relações.
Cunhas À
Ana
de
Antas
Adelaide
já
ultrapassado
secundava
a
–
exemplo
irmã,
sempre
para com
a o
vida
de
consenso
pressuroso de Telmo, que dizia amém a tudo o que elas riscavam. Montaram casa, Rua das Chagas, no palacete dum fidalgo arruinado, de grandes e esplêndidos cómodos, cocheira, hall, horta e jardim, notável pelas ruas de buxo,
caramanchões
conformidade pessoal,
com
capelão,
e o
jogos seu
mestras
de
água.
espavento, e
mestres
Era
caro
tiveram tanto
que
para
a
como
a
morte
assoldadar menina
e,
em
numeroso
como
para
o
menino, professor de dança e até de armas. A casa de D. Micaela Ninfa, ainda aparentada com o monarca, contava nada menos de 29 assalariados, além
dos
dignitários,
só
de
mordomo
para
baixo,
copeiros,
porteiros,
postilhões, aias. Na prosápia de rivalizar com ela, Telmo tinha que satisfazer ao fim de cada semana uma conta calada. Mas enquanto ele pagava com pontualidade
de
provinciano
simplório
as
soldadas
em
débito,
tanto
D.
Ninfa como a sereníssima Casa de Angeja, que batia na Corte todas as pompas, eram devedoras crónicas de criados e serviçais. Receberem dum ou doutro roda de caloteiras, era-lhes indiferente e nem podia empanhar-lhes o brasão,
uma
vez
que
o
caurim
se
tornara
uma
instituição
aristocrática
nacional. Que os servos, arteiros e manhosos, se pagassem por suas mãos, roubando à larga e à francesa, era inevitável. Telmo, a título de dar à mulher as maiores pompas, no fundo o que mirava era a cercar Dionísia de regalos, cada vez mais doido por ela. Dispondo da legítima materna, estava esta no direito de ostentar as jóias mais caras e os vestidos mais invejados. Trazia muitos homens pelo beiço, e um deles era o Orbacém e Jola, que viera para Lisboa na sua peugada, suspiroso e derretido. Não sabia ele que na Rua de S. João dos Bem-Casados, num prédio igual aos outros prédios, tinham os amantes seu paraíso secreto, onde duas vezes por semana davam copioso cevo ao pecado, como reza a crónica do bom Reverendo que nos serve de matriz. Nas
férias
achava-se
ao
grandes seu
faleceu
lado.
Para
o
Corregedor
ela,
excessiva
Travanca
em
tudo,
e
o
Ceia.
Dionísia
trespasse
do
pai
produziu abalo tão profundo que não seria impropriedade dizer que ficou em estado espasmódico. Não via Telmo há duas semanas e, quando ele apareceu, forte e crestado do sol das caçadas, fez-lhe sinal para subir à trapeira. Aí, fremente e chorosa, se fez possuir. Fosse efeito da fome de amor, exacerbada pela amargura da hora, ou do clima genésico criado pela morte, a sua convulsão desatou num grito que alvoroçou a casa inteira. As pessoas
importantes,
alarmadas.
Ana
disfarçava,
meio
que
Adelaide
velavam correu
desvestida,
e
às
o
ilustre
defunto,
mansardas.
apercebeu-se
entreolharam-se
Encontrou
ainda
dum
Dionísia vulto
que
que se
esmorecia nas sombras do corredor. Confirmavam-se suspeitas suas, que vinham de longe, mas não se deu por achada. Voltaram
a
Lisboa
e
durante
dez
anos
a
roda
da
fortuna
os
foi
cilindrando. A Quinta da Senhora do Amparo propendia para o desbarato. A mata estava derrotada, os almargeais socavados pelas cheias, e os muros em terra. No solar, de soalhos rotos e vidraças escaqueiradas, chovia como na rua.
Dionísia arvorara Telmo seu bastante procurador, e à legítima dela, com a falta de escrúpulo que o caracterizava em matéria de negócios, foi buscar recursos com que obviar à ruína iminente. Mas havia que mudar de norma, se não queriam ir parar ao abismo, e resolveram desfazer a casa de Lisboa. Por uma tarde brumosa deram entrada na Casa Grande, com criados e caseiros, mais velhos e de joelhos rotos, formados no pátio, à frente da capelinha de Nossa Senhora. Ana Adelaide tinha Leonarda pela mão. Olhou para a Virgem, a única que parecia manter-se inalterável, e disse para a menina: – Tens o coração puro. Pede-lhe que nos acuda! Deu-se Telmo a restaurar a casa, mas à pressa, começando naturalmente pela habitação. O que queria era ter ali bem limpo e bonito o ninho da pega. O
filho
estava
meio
valdevinos
e
a
sua
paixão
eram
cavalos,
galgos
e
mulheres. Armara em arruaceiro de feiras e arraiais, mantendo porém a linha romântica de fidalgo vieille rache. Mal sabia ler e escrever. Mas a Telmo que lhe importava o mundo se tinha ali a senhora dele por o ser do seu coração? Repentinamente
Ana
Adelaide
entrou
a
tomar-se
de
melancolia
e
a
deperecer. Filiaram os médicos o seu estado mórbido no reaparecimento dos antigos males solapados. Recomeçou a romaria por consultórios, sumidades e até santuários. Não houve nada que se lhe não fizesse. Telmo pensou em voltarem para Lisboa.
– Pior! – emitiu o médico que, à orelha do marido e sob reserva de poucas probabilidades de erro, diagnosticou a tísica galopante. A Casa Grande tornara-se um ermo para a doente. Abandonavam-na ao deus-dará.
Leonarda
que
até
os
quinze
anos
fora
uma
espécie
de
gata-
borralheira, trombudinha e inverniça, com os anos desabrochou e floriu. Estava uma pequena dengosa, louçã, a vender encantos. Para mais, com fama de rica. Requestaram-na grandes nomes, herdeiros opulentos, e veio a dar a sua mão a um fidalgo pobrete de várzea de Orense, D. José Padilha. Mas era feliz, ao que consta, e isso vale todos os tesoiras do mundo.
Quando a mãe, nas vascas da morte, a mandou chamar, apenas chegou a tempo de lhe cerrar os olhos. Tinha porém ali o seu filho, com quem pediu a deixassem, arredando todos, mesmo marido e irmã. E na voz alada, que está a desprender-se de significação terrestre, lhe disse: – Má herança é a tua, meu
filho!
A
casa
de
teus
avós
está
em
ruínas.
Terás
tu
mãos
para
a
levantar? Duvido, perdoa-me que duvide. O que resta por fora, são migalhas, que não chegarão para teu pai. Levo-te atravessado na alma pelo amor que te tenho, e porque adivinho que hás-de ser infeliz... gastador como és, cabeça no ar, incapaz de ganhar a vida, embora de bom fundo... bom fundo de homem. Teu pai, sempre to digo, é o pior dos malvados. Ele e tua tia Dionísia é que me deram o empurrão para a cova. Soube-o tarde, quando já não era tempo de dar volta à vida. Que Deus lhes perdoe, que também por aí prevejo mau fim. Por isto mesmo, meu filho, conta só contigo. Não queiras nada com teu pai que é homem que tudo sacrifica a seus vícios. Foge dele! Ana Adelaide morreu cheia de fel, sem querer marido e irmã à sua beira. Teve
missa
e
ofícios
de
corpo
presente
e,
ao
fim
de
semanas,
com
a
Primavera, um casal de pardais levantou o crepe que recobria o escudo dos Meneses e Montenegros e fez o ninho a meio das insculturas do coronel. Na conservatória,
os
mangas-de-alpaca
manuseavam
os
cadastros
da
Casa
Grande, conferiam, e vagarosamente arrumavam nas matrizes os nomes dos novos proprietários. No quarto de Dionísia, para onde Telmo já entrava pela porta, obliterada a escadinha secreta, depois duma hora desabusada de amor, disselhe ela uma tarde, voltando a cara do toucador a que atava os cabelos: – E se casássemos...? – Parece-lhe que é preciso, Dionísia...? Interpôs-se uma pequena pausa muito leve, imponderável e, voltando-se outra vez, nos olhos uma centelha baça, dir-se-ia despegada do aço do velho espelho: – Preciso, preciso não é, mas ser-me-ia agradável... Espaçou-se entre eles novo silêncio. Ouviu-se nas espaldeiras do monte uma égua recém-parida relinchar pelo poldro. Telmo bocejava e Dionísia teria dado conta. Com mão nervosa enrolava agora os cabelos. Tinha um alfinete nos lábios e picou-se. Acaso o amor já não era para eles o pábulo sôfrego dos famintos?! O que nele havia de delicioso requinte estava perdido para sempre, jamais, com deixar de ser vedado? Como transfundir-lhe o comburente sabor para lá dos olhos de Deus e dos homens?
– Se lhe é agradável, porque não?! – disse ele afinal sacudindo a cinza do cigarro.
–
Mas
olhe
lá,
não
é
pôr
uma
estampilha
pública
na
nossa
felicidade...? Há ainda a questão dos filhos. Aquele meu António Telmo não é boa peseta. – Não se fala mais nisso! – proferiu cortando cerce e caminhando para a porta. – Fica? – Vou dar dois tiros às perdizes, se dá licença. Pegou da espingarda, assobiou à setter, e meteu pela carreira da fonte direito à mata. Quando voltou, sobre o pôr do Sol, não viu Dionísia a esperá-lo. Teve um mau pressentimento e subiu a escada de rompante. No quarto dela topou a relativa desordem do hóspede que se foi embora. – A senhora D. Dionísia? – veio perguntar às criadas, dominando a sua ânsia, ele próprio se vendo pálido como na hora da morte. – A senhora deixou recado que ia a Braga falar com os irmãos. – Veio alguém? – Ninguém que déssemos fé. – Com quem foi? – Foi sozinha. Deixou também dito que não estivesse em cuidados, que sabia bem o caminho. A esta hora já está mais perto de Braga que da Casa Grande, se é que não mudou de rumo. O senhor D. Telmo a voltar costas e ela a mandar selar a égua. Não reflectiu grandes instantes. Ele mesmo aparelhou o cavalo e rompeu a galope pela estrada das Pedras Finas. A altura de Calheiros desferrou-selhe a montada. Chegou ao Prado a hora que já se não via um gato pelas ruas. Tanto bateu à porta do alquilador, que um homem estremunhado o veio atender. Deixou o cavalo esfalfado e tomou um macho. Em Braga, no solar dos Travancas e Ceias, há muito que tudo dormia a sono solto. Sobressaltou, o pessoal com alarme insólito, só comparável ao de fogo. Veio D. Ambrósia. – Minha sobrinha Dionísia para aqui não veio. Em Ponte de Lima deve ter metido para Pico de Regalados. Se lho digo é que tenho cá as minhas razões... – Não me está a enganar?!... Jura-mo? – Ora essa, juro-lhe pela salvação da minha alma. – Adeus, tia... Com certeza que ela lhe notou o rosto demudado, nos olhos lampejos salitrosos e, porque houvesse há muito destorcido a meada, previu grande história: – Veja lá, sobrinho Telmo, em que se mete!
Chegou a Vila Verde já mais morto que vivo, mas porfiou deitar avante. Em Pico de Regalados caiu em cima dum banco da estalagem, sem fôlego, as pernas flácidas, o coração aos saltos. Lá se recobrou com os comes e bebes que lhe foram servindo e, peitando bem o locandeiro, induziu-o a informar-se, tanto por linhas directas como travessas, se à terra não chegara forasteira de qualidade. Inteirado que não tinha chegado ninguém, tomando um
guia,
abalou
para
Valvouguinha,
lá
no
calcanhar
do
mundo.
Atravessaram vales e serras fragosas, dormiram duas noites em alpendres do mato, e uma meia manhã de bruma lá lhes entreluziu entre penedos e campos de centeio a aldeia troglodita. – O senhor de Orbacém e Jola está para o Porto. – Está para o Porto? Ora essa! Esse javardo está para o Porto...? Falou do senhor da Honra com tal irrespeito e arreganho que dali a pouco tinha à sua volta uma choldra para o sovar. Lá se desenrascou como pôde, ajudado pelo arrieiro, que era homem tão resoluto como cordato, e bateu dali em retirada. Pernoitaram em Amares em cama de barqueiro e no dia seguinte pelo meio-dia botavam a Famalicão. Entrou para a estalagem da Eugénia, e almoçou. Comeu sem apetite. Pediu uma cama e à tarde, quando quis
levantar-se,
não
teve
forças.
Estava
às
portas
da
morte.
Quando
recuperou o uso dos seus cinco sentidos, mandou o estafeta, que o não desamparara, chamar o filho. Tornou-lhe o filho resposta em meia folha de papel de carta, tão crivada de erros, que o próprio pai, impávido analfabeto, se admirava com os seus botões: mas que jerico! De mais importante, depois de o bom cronista mondar as bestidades, escrevia o herdeiro da Casa Grande: «Diz-me que o vá ver... Nessa não caio eu. Quem má cama faz nela jaz. Agora que tomei posse do Amparo, vejo a lástima a que chegou. Jesus Maria, até o tecto da capela está a vir abaixo! Todo este estrago é obra sua. Pode limpar as mãos à parede. Sabe o que lhe peço: ponha-se-me de largo! Não o quero ver nem tragado. Minha mãe à hora da morte contou-me as suas façanhas. Vá, vá com o seu belinzinho lá para onde eu os não sinta. Decidido a pôr mãos à obra
a
ver
se
levanto
estes
pardieiros,
quero-me
só.
Se
não
voltar
a
apoquentar-me, direi que o doido de meu pai sempre guardou dez réis de vergonha na cara estanhada.» E assinava o grande traste em sinal de esparramado desquite: D. António Telmo da Cunha Antas Meneses e Montenegro.
Lida a carta, rompeu aos urros, os olhos fora das órbitas, congestionado: «Havia de torcer o pescoço àquele cão! Era pior que a víbora traiçoeira que mordeu o seio de quem a acalentou!» Não foi mesmo preciso aquietá-lo. Caiu
prostrado
de
raiva
e
impotência.
No
paroxismo,
porém,
não
lhe
esqueciam os trunfos que tinha na mão. Ocorreu-lhe que podia cortar todas as vazas a Dionísia, pois que era seu bastante procurador. E, febril, correu ao notário de Braga. Caiu-lhe a alma aos pés. Na véspera tinha-lhe sido retirada
a
procuração.
Em
contrapartida,
informou-o
que
estavam
já
assinadas as escrituras esponsalícias de D. Dionísia de Travanca e Ceia com Abel de Orbacém e Jola. Saiu do cartório cambaleante. E agora? Lembrou-se de pedir agasalho a sua filha Leonarda. Devia ter-se tomado de dores pela mãe e era também capaz de lhe bater com a porta na cara. De repente fulgurou-lhe ao espírito Felisberta, sorte de Agar desdenhada. E pediu ao arrieiro que o levasse a Formariz, onde ela morava com a mãe; lá se lhe pagava tudo.
XXI
Não passaram de boas intenções os propósitos de António Telmo quanto a
restaurar
a
Casa
Grande,
que
recebera
de
legítima
por
determinação
cautelosa de sua mãe. O seu feitio de perdulário levou a melhor. Todos os meses mudava de cavalo. Era um corredor de saias e batedor de montes. Falavam-lhe
num
óptimo
podengo
que
havia
na
serra
da
Arga
para
desentocar o coelho, mandava adquiri-lo por todo o preço. Um dia comprou por cem mil réis, a certo caçarreta do Bico, um furão que viu ferrado ao cachaço dum raposo e não desamarrar. Tinha todavia prosápia de grande lavrador, e nos seus prados pastavam as mais bonitas estampas de vacas que havia no Alto Minho. A sua divisa era: o melhor e o mais bem parecido, predicados que nem sempre são conciliáveis. Sujeitava as criadas ao mesmo critério: nada de maritornes. E, como já sucedera com o pai, todas haviam de passar sob os seus esporões de galaroz. Sucedeu daí que tudo andava contente e corria de vento em popa na Quinta do Amparo. As amásias estavam muito bem ao par da lei que as regia. Se, bulhando em particular umas com as outras, se agatanhavam e arrancavam os cabelos, lá ficava em família.
O
senhor
muitas
vezes
nem
chegava
a
sabê-lo.
Outras
vezes
congratulava-se com os zelos e pugnas amorosas que ia provocando. As criadas trouxeram manos e primos, aos quais se deparava sempre mesa posta em casa de fidalgo. Com a assiduidade dos ágapes, formou-se em volta de António Telmo uma espécie de Távola Redonda. Seriam afinal mais de doze pares e quanto a qualidade muito veio a rezar a história. António Telmo ia por feiras e romarias com a sua guarda pretoriana, e ditava a chuva e o bom tempo. Ele com o seu porrete, mais que bengala, menos que bastão de marechal, tão alto que lhe chegava ao peito, castão de
prata atravessado por uma ataca de couro em cuja laçada passava o pulso, fazia
as
eleições,
nomeava
os
regedores,
empossava
e
desempossava
as
Câmaras da região. O Visconde de Vila Nova de Cerveira, tetraneto do grande Bisconde, sentiu a vantagem que haveria em ter aquele homem por seu cabo de ordens, e soube passar-lhe a mão pelo lombo. O franco-atirador notou que teria também vantagem em encostar-se a alguém que dava cartas na capital. Pactuaram. Era a comandita da raposa com o lobo. Anos e anos António Telmo foi o cacique-mor, por força do pulso e pelo apoio do alto, daquela
comarca
minhota,
sob
o
pendão
de
Xavier
de
Lima,
aliado
eleitoralmente ao abade da Cabração e aos Inflas de Braga. Na sua faina política, aconteceu-lhe cometer muito despautério e rachar muita cabeça. Um dia, em Paredes, além de partir o braço ao boticário Bento Gonçalves Pereira, o Bento da Ponte, então administrador do concelho, deixou-lhe o criado num santo sudário. O filho, um rapazinho vivo, feições enérgicas, olhar incisivo, Miguel Dantas, Dantas pelo nome do padrinho, amparou o pai
e
fez
uma
jura
que
a
todos
espantou:
–
Eu
seja
o
homem
mais
desgraçado do mundo, se mas não pagar! Alto, garboso, bigode de duplo caracol, com seu largo chapéu braguês sobre a orelha, jaquetão de montanhaque, uma grossa cadenilha de oiro de bolso para bolso, por berloque um cavalo que lhe servia também de sinete, calça a estalar na barriga da perna, bota de relúcido verniz e de cano até o joelho, era o ai-jesus das mulheres. Tinha amigas em todas as aldeias, dessas que bailam o vira em cima duma moeda de vintém, vão para a missa de tairoca: cá vou! cá vou! e são feras no trabalho e no amor. Mas não lhe bastava. Viu sua prima Maria Angélica no Cerdal, da Casa de Paço de Afe, e requestou-a.
Supôs
ao
mesmo
tempo
que
ia
buscar
o
que
em
troça
de
ceceoso denominam chão cheio e saiu-lhe um chão chuchado. A casa de que provinha estava ainda mais escalavrada que a sua. Acrescentavam os maldizentes em gíria de sapateiro, aludindo ainda ao facto de a noiva não ser nenhuma Helena: Foi buscar coiro para gáspeas, não trouxe sequer para umas tombas. Fosse como fosse, uma dona entrou na Casa Grande e com ela um fumo do esplendor antigo. Mas a carcoma tomara conta do solar em toda a sua curiosa traça filipina. Voltaram outra vez as paredes a fazer barriga. Um guieiro no salão nobre ajoelhou; nos beirais já as andorinhas não faziam o ninho com medo que lhes caíssem em cima as telhas desequilibradas. Na
capela um musgo miudinho, glauco à maneira de olho de gafanhoto, basto como varíola, pegou na frontaria, marinhou pelas pedras esculturadas, e cometeu a infâmia de se pascer do rosto de Nossa Senhora do Amparo e de seus dois bentos custódios, Pedro e Paulo. Os olhos dela, sempre formosa, afável, papudinha, pareciam agora sonolentos, cobertos da herpes malfazeja. Quem libertaria a Virgem, padroeira da Casa Grande, de insulto tão soez? António Telmo pensava na sua hoste de caceteiros, no seu serralho, no dog-cart com que embasbacava a fidalguia bisonha e forra-gaitas, não em Nossa Senhora. A conselho dum feitor, suprimiu a galeria que da casa levava ao coro da capela e permitia assistir ao santo sacrifício sem apanhar as
esgravanadas
de
chuva
de
sota-vento,
ali
tão
comuns,
e
respirar
os
eflúvios a bodum do poviléu devoto. A capelinha ficava assim reduzida à sua fábrica, sem que fosse grande enfado descer ao terreiro em vez de ir pelo passadiço coberto. O que sucedeu com a capela sucedeu com a fonte. Fora preciso
argamassar
as
juntas
na
mãe-d’água.
Deslocou-se
a
pedra
do
tampadoiro, uma bela e prolixa Górgona. Anos depois ainda ela andava por lá aos tombos, e os pastores britavam em cima avelãs e pinhões. Também aos cantos dormiam as duas pináculas da capela, que lhe davam, quando erectas todas quatro com o campanário, muito esguias no céu doirado, um ar precioso de pagode. Ruínas por um lado, dilapidações por outro, bateu à porta de quantas instituições
pias
havia
pelo
distrito,
susceptíveis
de
lhe
emprestarem
dinheiro. Empenhou à Congregação e Hospital de Velhos Entrevados de Nossa Senhora da Caridade, de Viana do Castelo, ao recolhimento de Santa Clara, de Vila do Conde, à confraria de N. S. da Misericórdia, de Caminha, as
Quintas
do
Amparo
e
Meijoeiro
com
os
terrenos
anexos.
Sobre
as
hipotecas contraiu empréstimos onerosos. Não pagou juros nem capital, e abriram-lhe falência. Os homens são o somatório das virtudes e vícios dos antepassados.
Neste
António
Telmo
acordou,
além
do
pai,
aquele
avô
galego, estroina e fantástico, gastador e opíparo, capaz de vender no mesmo dia a alma a Deus e ao Diabo. Já no pendor, a fortuna entrou a negacear com ele. Duas tias ricaças, do lado de sua mãe, deixaram-lhe uma herdade magnífica lá para Esporões. Correu a pô-la em almoeda. Em menos de dois tempos, espatifou o produto. A sorte a persistir, por um lado, e o pródigo a porfiar, por outro, qual levaria a melhor? Em Salvatierra abriu-se o processo duma
sucessão
num
dos
ramos
colaterais
dos
Montenegros
y
Moz.
Assobiaram-lhe aos ouvidos. Habilitou-se, e venceu o pleito. Veio-lhe dali uma bolsa cheia de dobrões. Em menos de três anos, não tinha porém com que mandar cantar um cego. A pandilha, as concubinas, os cavalos, além do fausto recrescido da Casa Grande, o que um padre que não ia à sua bola chamava bailar num tremedal, engolfavam tudo e mais que viesse. Para cúmulo Ilídio Bacelar, primo e concunhado, fugiu-lhe com a esposa. Era feiota,
mas
tinha
o
picante
de
fruto
proibido.
Mais
uma
simetria
nas
rebentações aberrativas da árvore genealógica. O pai seduzira a cunhada. Agora era o cunhado que lhe levava a mulher. Magicou lavar em sangue as barbas desonradas. Distraiu-se-lhe a atenção para a rixa a faca e revólver com o Canedo dos Arcos. E meteu-se mais no briol e na galopinagem. Quando mal o esperava, abriu-se-lhe o chão aos pés. Caíram em cima dele os credores. E agora? Bens à praça. Deitou bando pelos homens da sua mesnada: – Pateia quem se atrever a licitar no que é meu. Era
ao
tempo
mandão
e
rei
de
Coura
o
filho
daquele
homem,
administrador do concelho, Bento Gonçalves, o Bento da Ponte, que um dia António Telmo apaleara e a um criado que acudira em sua defesa. Fora de rapaz para o Brasil, passageiro de terceira na barca Amélia. Para seus gastos pessoais não levava mais que seis patacões. A bordo, deu dois a um infeliz e gastou três. Chegou ao Rio com um patacão, ou sejam 950 réis. No dia seguinte apregoava o jogo do bicho pelas ruas. Tempos andados, era caixeiro de armarinho na Rua da Quitanda; um lustro depois, sócio do patrão; dali em
fora,
sucessivamente,
foi
corretor
de
pedras
finas;
comerciante
por
atacado para o sertão; banqueiro. Em guerra com o Paraguai, o Brasil um dia
careceu
de
lançar
um
empréstimo.
Encarregaram
Miguel
Dantas
da
operação. Duma hora para a outra, ficou milionário. Volveu riquíssimo a Portugal. Paredes, aldeia sertaneja, converteu-a numa vila. As estradas partem do seu largo central como as varetas dum guardachuva.
Edificou
paços
do
Concelho,
hospitais,
escolas,
e
mais
locais
camarários. Numa grande fome, franqueou os seus celeiros ao povo, com cereal de empréstimo, ao antigo preço, e na maior parte, dado. Importou vagões
de
milho
nas
melhores
condições.
Estava
conjurada
a
crise
na
comarca. Afável e déspota nas suas horas; homem sem medo. – Então o caceteiro de Romarigães mata quem lhe arrematar os bens? Melhor, que mais barata fica a praça! Vou lá eu. Temos contas antigas a ajustar...
Comarca de Ponte de Lima. Escrivão Augusto Forte-Gatto. Carta de arrematação
para
conselheiro
Miguel
Mantelães,
Paredes
título
e
Dantas, de
posse
passada
casado,
Coura,
e
a
favor
proprietário,
extraída
da
da
do
arrematante
casa
execução
e
que
quinta D.
o de
Emília
Sotomaior, viúva, proprietária, da freguesia de Calheiros, desta comarca, promoveu
contra
António
Telmo
de
Meneses
Montenegro,
residente
na
freguesia de Arcozelo, desta mesma comarca, e esposa D. Maria Angélica Teles de Meneses, da freguesia de Cerdal, da comarca de Valença. Dom Carlos Primeiro, por Graça de Deus, Rei de Portugal, Algarves e seus Domínios: Faço saber a todas as minhas Justiças, Autoridades, Tribunais e mais repartições em geral destes meus Reinos e Domínios de Portugal, àqueles a quem e perante quem o conhecimento e cumprimento desta minha mais verdadeira carta de arrematação for apresentada, e o seu verdadeiro conhecimento e execução pertencer, que, perante o meu juiz de Direito da comarca de Ponte de Lima e cartório do quarto ofício, se processaram e correram seus devidos e competentes termos uns autos de execução entre partes: como exequente – D. Emília Sotomaior, viúva e proprietária, da casa e quinta do Rego, freguesia de Calheiros, desta comarca, e executado – António Telmo de Meneses Montenegro e esposa D. Maria Angélica Teles de Meneses, e nos mesmos autos que correram seus termos se acha o auto de penhora do teor seguinte: Auto de penhora: Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e noventa e um, aos vinte e sete dias do mês de Junho, nesta freguesia de Romarigães, comarca de Paredes de Coura, onde eu escrivão vim acompanhado do oficial de diligências José Maria de Lima. Aqui procedi à penhora e efectiva apreensão em um prédio urbano e rústico denominado: As casas e quintas do Amparo... etc., etc. Ao pressentir-se desapossado, num dos intervalos judiciais da penhora, António Telmo tivera uma reacção: – Autorizo quem quer que seja a ir cortar à mata do Amparo quantas árvores queira e a levá-las. Com uma condição: deitam os muros abaixo para entrar; deitam-nos abaixo para sair, e nenhum passa pelo mesmo lugar por onde outro passe. De joelhos ante o Cristo negro, torcido na cruz, pareceu-lhe que ele o inspirava. Pois não caiu uma pedra dos muros. Foi coabitar para Insalde com uma das mancebas. Já seu pai vivia em Formariz com Felisberta, antiga criada da Casa Grande. Nova simetria na estirpe. O velho D. Telmo, muito decepado, com os sinos mais dia menos
dia
a
tangerem-lhe
a
sinais,
arrebanhara
as
migalhas
da
mesa,
que
era
pingue, e fizera da amiga uma matrona cobiçada. Estava gorda, luxuriosa, e mais de um esperava que ele batesse a bota para entrar na casa pela via do conjungo vos. Depois de anos e anos de Paris, de correr à deriva como barco num golfo, sem grandes embates nem quebrantos, deixando-se flutuar, Hilário Barrelas veio surdir naquele rincão do Alto Minho. Vira aquela menina dos olhos grandes, castanhos e leais, e amou-a. Quando, por morte do avô conselheiro, visitou a Casa Grande, com as ruínas da gloriosa Nossa Senhora do Amparo a consumir-se, mas sempre de imarcescível beleza, ficou deslumbrado. E, uma vez que o património se repartia, e os herdeiros, mais escabreados, restos e absurdos que lobos famintos, se lançavam uns sobre os outros, disse para sua mulher: – Fica em Romarigães, na bela ruína do Amparo. Tinha caído o telhado na linda capela, os caseiros queimaram as portas, a talha do altar e do coro, e deixaram desaparecer imagens e painéis. o solar uma das paredes da construção filipina esbarrigara e acabou por dar em terra. Pelos telhados entrava água como por cestos rotos e as tábuas do soalho, se lhes punham pé em cima, rangiam e estalavam, escancarando-se em precipícios traiçoeiros para as lojas. Para cúmulo, o Estado tomara conta do salão principal para aula de primeiras letras, o salão onde D. Telmo de Montenegro, o verdadeiro, o espanhol, o quixotesco, dera festas de truz às duas fidalguias de Minho e Galiza. Não restava um alizar direito nem uma janela intacta. Os móveis, que eram de estilo, carregara-os um ferro-velho para o Porto por tuta-e-meia. De gorra com um caseiro ladro e tramposo, os netos do Conselheiro haviam alienado águas que pertenciam às quintas e procederam a derrubadas consecutivas na mata, em cujas brenhas se caçara o javali, sempre que tinham necessidade de dinheiro para suas pândegas, encalvecendo-a
miseravelmente.
abstractos,
o
Lussac,
encontrou
só
sonhador,
o
De
Hilário
modo
Barrelas
verdadeiramente
que
o
das
midinettes
incólume
o
homem
olhar
dos da
puro
espaços
Rue de
Gay
Nossa
Senhora do Amparo. Mas tanto bastou, ajudado duma mirada angustiosa do Cristo setecentista, que assistia na fumareda da casa dos caseiros a suas rixas e bodeganas, para se declarar rendido.
Uma bela manhã ia ele pela propriedade, à hora em que rompem a cantar todos
os
pássaros
e
o
Sol
entreabre
nos
céus
seu
bonito
e
brando
malmequer. Era a estação das sementeiras. Divisavam-se pelas encostas as grandes
lavradas,
três
e
quatro
juntas
de
vacas
em
cingel
abrindo
um
interminável rego, e turmas de gente erguendo e baixando a compasso a sachola de larga pá a virar a terra. O milho é a segunda Divina Providência do minhoto. De a caneira trepa, apendoa, arroja como deve, bem vai para o cultivador. Se a caneira sofre quebra por falta de sol ou de chuva – mais uma vez
a
virtude
está
ao
meio
–
o
Alto
Minho
tem
fome.
Em
anos
de
abundância, o Minho não sabe para onde há-de vazar os seus espigueiros. De Abril para Maio, o milho está seco e resseco. Pega-se de uma mancheia e tilinta como o oiro. O velho Antas costumava dizer: – Não me meçam as rendas antes de Maio. Até Maio, o milho está prenho. Deita leite. Para estar bom é preciso que absorva a humidade como o papel mata-borrão absorve a tinta. O abade de Padornelo é que a sabia toda. Pegava dos butes molhados, metia-os entre as espigas. Se de manhã os encontrava enxutos, estava em condições de se malhar. Hilário Barrelas presenciava todo aquele renovamento e, insensivelmente, fugia-lhe o espírito para a conta dos seus anos que, se não lhe pesavam, já não tiniam como o milho seco na peneira. Casa dos enta, fatídica casa! Iam e vinham, lés a lés dos campos, as vessadas ruidosas. O próprio babaréu, vozes, cores, tarantela das campainhas, denotava que a sementeira se fazia com esperança. O minhoto pela sua alegria e o seu trabalho merece todas as graças de Deus e dos bons génios da terra. O solo é fecundo e a gente olhava para Hilário com os olhos de amenidade. Diante das uveiras, trepadas pelos troncos dos carvalhos, olmos, salgueiros, amieiros, a que deixaram um penacho de milhafre para que vivam e aguentem a carga especiosa,
enternecia-se
com
semelhante
sujeição
da
natureza.
Que
humildade! Quando a vide não marinhasse pelas árvores, estaria adereçada, muito acima do solo, em parreiras esbeltas, sempre encostadas aos muros e aos cômoros, construídas com esteios de pedra ou lousa, finos como varas de pálio. Haviam-na desterrado para a borda da estrada e dos caminhos, do regato e do morro, onde não tirasse o sol nem chupasse o húmus necessário às
culturas
mimosinhas.
A
vide,
afinal
de
contas,
era
uma
silva.
Vivia
perfeitamente à desmão, satisfeita com o recanto e as escorralhas da mesa farta. Era uma pobre alegre; as uvas de enforcado, quando maduras, não
pareciam mesmo uma cantiga de melro ou de peto-real empoleirados à beira dos caminhos?! Chegou depois Maio, terrível e admirável mês, e Hilário Barrelas ia logo de
manhãzinha
discorrer
pela
quinta,
onde
a
cada
passo
a
Natureza
patenteava seus laboratórios de integração e desintegração, sem o menor rebuço,
era
só
deitar
os
olhos.
Levava
nos
ombros
os
seus
detestados
sessenta anos. Contemplando umas coisas e outras, notou ele que uma força misteriosa e criadora, tão surda como rítmica, procedendo a compasso, era contrabalançada
por
outra
que
actuava,
igualmente
às
claras,
com
brusquidão inaudita e destrutiva por excelência. A vida, isso que se chama vida, não era mais que o momento de equilíbrio, efémero como abrir e cerrar as pálpebras, dos corpos organizados debaixo da acção combinada destas
forças.
Todavia,
esse
momento
ou
parêntese
representava
no
panorama universal, com a sua beleza e o seu drama, uma razão suficiente, por assim dizer, para valer a pena o Mundo existir. E não deixava de ser espectáculo emocionante assistir às rápidas e estupendas mutações que se efectuavam no seio da Natureza, de todo insensível, neutra em matéria de bem e de mal, sem privilégio de carinhos para ninguém, embora dispensasse a uns seres prerrogativas que parecem obra de parcialidade. Nada estava parado. Um exemplo eloquente de como desapareciam as coisas à superfície da terra, em poucos anos, às vezes do pé para a mão, estava naquela Quinta do Espinheiro, registada ainda nas escrituras da arrematação de 1891-92 pelo avô Miguel Dantas. Embora desse a casa em ruína, onde ficava ela que já nem a pedra se lhe via? Restava-lhe o nome em sítio problemático. Quanto ao mundo dos seres vivos, decerto que uma fatalidade biológica os condicionava e que o indivíduo só era livre ou só podia julgar-se livre no tablado restrito em que lhe coubera mover-se. «Eu quero, mas não mando; determinando-me, se me apetece, não faço mais que submeter-me a forças que se desencadearam para que eu efective esse acto de aparente alvedrio. Acima do meu querer, em círculos aparentemente alheios, desenvolvendo-se concentricamente
até
a
intimidade
do
ponto,
a
lei
da
interdependência
universal, com o seu império e coacção, não deixa de tocar-me e pesar na insignificância
do
meu
ser.
A
certa
altura
da
sua
escala,
começa
ela
gradativamente a influir em mim. Tudo no Mundo afinal se concatena e se associa, dando lugar a esta especiosa réstia de alhos que são as coisas diferenciadas no tempo e no espaço.»
Mata fora as aves cantavam e recantavam. Hilário, cabeça dobrada para a terra, pois lá reside o segredo do mundo que mais imediatamente se propõe à especulação da nossa inteligência, dizia consigo: – Está dito, tudo morre e tudo volta. Reparo que uma força criadora, decerto instilada do Sol, palpita de modo tão intenso que o sentimento da velhice no homem se torna de uma tristeza funérea e confrangedora. É pena que se não possa regular a vida como um relógio, andando com os ponteiros para diante e para trás segundo a nossa conveniência. Como eu faria da Quinta do Amparo um jardim maravilhoso, Senhora,
esta
a
minha
doce
estância
imagem
de
de
contemptor
faces
do
Mundo,
bochechudinhas,
e
minha
de
Nossa
amiga
do
coração?! A Primavera, tantas vezes rebelde ao calendário, rejuvenesce tudo menos o homem. As leis da ciclidade física assim o mandam. Para o ano, por
esta
altura,
voltarão
as
aves
a
cantar.
Que
chova,
que
faça
um
sol
radioso, com o mundo vegetal pletórico de seiva ou mais aganado, à triste planta humana é que nada a afasta da sua carreira para a morte. Será ela a obra-prima da Criação ou a pior de todas? Lisboa, Inverno de 56-57.