Discursos e Notas Políticas: 1928 a 1966 9789723223071


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Table of contents :
Sumário
Livro I - 1928 a 1934
Livro II - 1935 a 1937
Livro III - 1938 a 1943
Livro IV - 1943 a 1950
Livro V - 1951 a 1958
Livro VI - 1959 a 1966
O Pensamento de Salazar 1967
Índice de Nomes Próprios, de Frequências e de Palavras de Referência
Índice Geral
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Discursos e Notas Políticas: 1928 a 1966
 9789723223071

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DISCURSOS

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NOTAS

POLÍTICAS

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Coimbra Editora

Nota do Editor A presente edição reúne os volumes I a VI da obra "Discursos e Notas Políticas" de Oliveira Salazar. Foi critério do editor apresentar neste livro as últimas edições publicadas pelo Autor na Coimbra Editora, entre os anos de 1945 e 1967: - Volume I (1928-1934) - 5.a edição, 1961 -Volum e II (1935-1937) - 2.a edição, 1945 - Volume III (1938-1943) - 2.a edição, 1959 - Volume IV (1943-1950) - 1.a edição, 1951 - Volume V (1951-1958) - 1.a edição, 1959 -V olum eV I (1959-1966) - 1.a edição, 1967 Os textos do Autor, não obstante agora reunidos e repa­ ginados num único volume, correspondem integralmente às versões acima referidas, sem quaisquer revisões orto­ gráficas para além de pontuais correcções de evidentes erros tipográficos das publicações originais. Por especial autorização dos seus representantes, insere-se, autonomamente no final desta obra, o último discurso conhecido do Autor e nunca antes editado, proferido em 30 de Novembro dc 1967, por ocasião da homena­ gem que nessa mesma data lhe foi prestada pelos Muni­ cípios de Moçambique. Por último, no intuito de facilitar a pesquisa de assun­ tos e de contribuir para uma melhor leitura e interpre­ tação da obra na sua globalidade, publica-se um índice dc nomes próprios, dc frequência e de palavras, da auto­ ria do Professor Doutor Teimo Verdelho.

Sumário 7

DISCURSOS Vol. 1.°(1928-1934) 187

D ISCURSOS E NOTAS POLÍTICAS Vol. 2.°(1935-1937) 341

D ISCURSOS E NOTAS POLÍTICAS Vol. 3.0 (1938-1943) 507

DISCURSOS E NOTAS POLÍTICAS Vol. 4.“ (1943-1950) 723

DISCURSOS E NOTAS POLÍTICAS Vol. 5.0(1951-1958) 923

DISCURSOS E NOTAS POLÍTICAS Vol. 6.0 (1959-1966) 1099

0 P E N S AM EN T O DE S A LA Z A R nu índice de Nomes Próprios 1135

índice Geral

DISCURSOS

19 2 8 A 19 3 4 5.aedição, revista

P refácio da 4 .a E dição A Coim bra Editora ped¡u-me duas palavras que servissem de prefácio à quarta edição deste volume, composto, impresso e è espera delas há muito tempo. Na ver­ dade, não tendo podido reler os discursos aqui reunidos e muito menos benefi­ ciá -lo s com alguma correcção, senti a maior dificuldade em me decidir acerca do que havia de dizer.

A involuntária demora fez porém que a obra apareça em

pú blico quando vão com pletar-se vinte anos sobre a minha vinda para o M inisté­ rio das Finanças, nos fin s de Abril de 1928. E se era tarefa impossível para o tempo de que disponho lançar uma vista de olhos sobre os sucessos deste período, tão cheio de história, pensei que não seria descabido com entar - iluminadas agora por longa experiência — as posições que representaram para todo o trabalho realizado os po n to s de partida. Os portugueses dados à reflexão e animados de consciente patriotismo estavam pràticam ente de acordo acerca da situação a que o País chegara. Discutiriam ainda as causas da nossa decadência ou atraso; dividir-se-iam quanto aos remédios que podiam ou deviam ser aplicados com êxito, e até quanto à forma de tratamento. M as que a origem de tantos males estivesse na desregrada vida política e nas tradi­ cionais deficiências da Administração; que derivasse da pobreza material, do nosso m odo de ser não corrigido pela educação e do atraso da instrução pública; que pudesse atribuir-se à indisciplina dos Portugueses ou até ao gigantesco esforço que houvem os de fazer, através dos séculos, para descobrir, ocupar, administrar e civ ili­ zar territórios em desproporção com o potencial humano e os recursos normalmente disponíveis — em nada se alterava a conclusão geral. Decerto não deixaram nunca de afirm ar-se em todos os sectores ou modalidades de vida homens que honrariam Portugal e seriam para sempre lustre da sua história e da raça portuguesa. A crise não secara as fontes dos valores individuais, nem mesmo, felizmente, extinguira as reservas espirituais do nosso povo; ela atingira porém, a nossos próprios olhos e no conceito europeu, as m anifestações de vida colectiva, a unidade Nação. Nós estávamos colocados diante de um intrincado de questões e dificuldades que se repercutiam umas sobre as outras e umas às outras se agravavam.

Eram

com o a meada a que se perdeu o fio, o labirinto sem guia, a imensa mole a trans­ portar ao alto da montanha. Diante delas homens e instituições houveram de co n ­ fessar-se impotentes; e de tantos esforços dispendidos e perdidas boas vontades a única verificação útil foi não ser possível encontrar solução de conjunto para tão d ifíceis problemas.

Em tais circunstâncias, e tendo o levantam ento do Exército

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Oliveira Salazar Discursos • 1928 a 1934 criado por si mesmo o mínimo de condições políticas indispensáveis, o que se im pu­ nha era escolher o principio do ocçõo. Eu não tinha a pretensão de partir de conclusões puramente científicas - a inves­ tigação não é de exigir aos homens de governo

mas tinha perfeita consciência da

viabilidade do processo quando procurei, nas primeiras palavras dirigidas aos oficiais da guarnição de Lisboa, apresentar em esquema o conjunto dos grandes problemas nacionais, designando-os por problema financeiro, económico, social e político. Sem perder de vista a complexidade e dependência de uns problemas em relação aos restantes nem o condicionalismo próprio de cada um, aquele enunciado traduzia uma sistematização, essa talvez grosseira, e claramente também uma ordem de pre­ ferência, essa decisiva na acção. Em estudo recente acerca do «Portugal de hoje» publicado na revista The W orld Today, órgão do Royol Institute o f International Affairs, o autor nota com transpa­ rente estranheza aquela seriação dos problemas portugueses, que o mesmo é dizer das reformas necessárias à vida da Nação. Eu tinha porém para advogá-la algumas 'azões; elas serão compreensíveis aos nacionais e a alguns estrangeiros também. I. 0 problema financeiro não abrangia apenas o que em sentido estrito se poderia compreender, mas, além do equilíbrio das contas, tudo quanto nele se apoia ou dele pode derivar. Ele abraçaria a repartição dos impostos, a regularização da dívida pública, as taxas de juro, as reservas monetárias, a estabilidade e solidez do valor da moeda, a distribuição e mobilidade do crédito, a dotação eficiente dos serviços públicos, a própria ordem da Administração. Nesse vasto conceito entravam pois, não apenas a manutenção do equilíbrio orçamental ou a acumulação de saldos no Tesouro, mas a equitativa repartição dos gastos públicos e privados e até as relações da economia nacional com as economias estrangeiras. 0 equilíbrio representaria sobretudo a imagem de um Estado «pessoa de bem», que satisfaz pontualmente os seus compromissos, só gasta na medida das suas possibilidades e sabe organizar a vida colectiva com modéstia e com decência. A prioridade da reforma financeira não foi aceite pacificamente, mas objecto de sérias controvérsias. 0 grande número inclinava-se para que se desse de com eço preferência ao desenvolvimento da produção e o equilíbrio financeiro se buscasse mais adiante, na base larga e sólida de uma economia enriquecida. Esta construção, entre nós filha do menor esforço mas teóricamente defensável, esquecia duas c o i­ sas essenciais: uma, que a reforma das finanças, na falta absolutamente confirm ada de crédito externo e na impossibilidade de movimentar em condições aceitáveis capitais nacionais, era necessária ao incremento das obras públicas e à exploração dos maiores recursos do País; outra, que essa reforma, dado gozar a moeda já de certa estabilidade de facto, vinda de trás, era também a que mais rapidamente se 10

Prefácio da 4.a Edição desdobraria em resultados tangíveis e, sob o aspecto da defesa do interesse nacio­ nal, nos aparecia revestida de maior importância e urgência. Eu entendia que só no caso de se verificar impossível equilibrar as contas e sanear a Adm inistração se deveria desistir. Mas era firm e a minha convicção de que a favor do equilíbrio se poderia pedir ao rendimento nacional um contributo maior e aos serviços públicos um esforço de economia sem prejuízo da sua eficiência corrente. A indicação dada «de uma vez só e agora» ressoou como ordem de saltar por cima do abismo e cons­ tru ir em terra firme. Um inglês, um suíço, ao abrigo da sua tradição de finanças sãs, têm talvez o direito de sorrir. Afirm o que em Portugal se tratava de problema d ifí­ cil e infelizm ente de uma solução rara. Era fá cil de prever - e a experiência o confirm ou - que, estabelecido o equ i­ líb rio e ganha a co nfian ça, m uitos aspectos da nossa crise passariam a ostentar sinal co ntrário. A balança de pagam entos foi aliviada da hemorragia represen­ tada pela e xp o rta ção de capitais, tradicionalm ente fugidos do País em busca de co lo ca çã o nas bolsas estrangeiras, e beneficiou tam bém da im portação de m ui­ tos que a segurança atraiu. O bliterou-se a mania do mercado externo, alim en­ tado por nós próprios: ajudaram a curar-nos as suspensões de pagamentos, ban­ carro tas e reduções de juros, que foram moeda corrente entre as duas guerras. A abastança da Tesouraria, o barateam ento do dinheiro, a abundância de ca p i­ tais, a repatriação de títu lo s, o equ ilíbrio da balança de pagamentos, a liberdade cam bial, o prestígio e força da moeda foram a recompensa dos sa crifícios co n ­ sentidos. En contrarem -se os capitais dos Portugueses ao dispor do Estado e da econom ia nacional fo i a m aior conquista e uma das bases da nossa re co n stitu i­ ção económ ica. Assim cuidava que a reforma financeira arrumaria um problema e facilitaria a solução de outros; mas em verdade eu tinha em vista também, e sobretudo, alcan­ çar uma das melhores garantias da independência do País. É ainda hoje para mim m otivo de estranheza que só m uito raros portugueses (ao menos do meu conheci­ mento) se apercebessem do valor político da obra realizada naquele domínio. E, no entanto, pelas suas ruins finanças e irregular administração o País foi julgado nos pretórios da Europa, umas vezes com alguma justiça, outras sem ela. Pelas suas fa l­ tas de devedor e urgências de dinheiro teve de aceitar contratos leoninos e acordos cujas cláusulas se afastavam do teor normal entre pessoas ou Estados solventes. Com a expectativa de novos pedidos de empréstimo se pretextaram conluios inter­ nacionais, em que se viu contarem pouco os direitos, a integridade, a soberania de uma Nação, suposta independente, segura e garantida. Tudo isso é História; e se esse passado, cujos traços mais humilhantes temos, uns após outros, tentado apa­ gar, não deve incom patibilizar-nos com o capital estrangeiro, a que m uito devemos e de que m uito precisamos, im põe-nos no entanto uma linha de conduta que, mesmo à custa de grandes sacrifícios, não possa jogar contra o País e seja antes um dos factores da sua defesa.

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Oliveira Solazar Discursos • 1928 a 1934 II. Munidos com os primeiros resultados da reforma financeira, era já possível enfrentar a melhoria da situação económica. Esta impunha de um lado a in te n sifi­ cação de obras públicas, directa ou indirectamente reprodutivas, e do outro a exploração de recursos novos e o aperfeiçoamento do conjunto da produção n acio­ nal. As duas espécies de actividade exigiam porém capital e técnica; era de saber como podiam conseguir-se. Embora a economia tenha naturalmente beneficiado do movimento geral, a nenhum observador terá escapado que as obras públicas marcaram até ao presente muito maior avanço. As razões são: primeira, o Estado pôde mais fácil e mais rapi­ damente mobilizar os factores da sua actividade; segunda, esta actividade era ela própria em certos casos indispensável ao aproveitamento de recursos disponíveis. A verdade é que, ao menos dentro das especialidades de mais frequente ou intensa aplicação, o Estado pôde formar, ao contacto das suas próprias realizações, os técn i­ cos de que tem necessitado; e o capital português tem acrescido aos excedentes das contas para suprir a todas as necessidades. Finalmente a exploração mineira, a u ti­ lização das quedas de água, como o aproveitamento nacional de outros recursos, exigiam, antes dos respectivos empreendimentos, estudos de anos que inacreditávelmente não estavam feitos. A realidade era esta: o País não se conhecia. Os partidários de que se desse, antes de mais, o maior incremento à economia, com a modernização e instalação de fábricas, o largo aproveitamento da energia hidráu­ lica e de outros recursos naturais, pressupunham certamente que a técnica, com o as máquinas, se pode importar e os capitais obter de empréstimo no estrangeiro, se não os há no País. Mas o problema era visto talvez com excessiva simplicidade. Eu sou pelo nacionalismo económico, mas este nacionalismo - tão moderado que para nós é condição e base da melhor cooperação internacional - nem quer dizer socialização, nem caminha no sentido autárcico (que sempre considerei contrário à verdadeira economia), nem se afirma exclusivista em aceitar ou achar boa a colabo­ ração, aqui e nas Colónias, do capital estrangeiro. Simplesmente penso que as d ife ­ rentes produções fazem parte integrante da economia nacional com o fim de serem aproveitadas em harmonia com a sua maior utilidade para a vida da população, e que é pelo menos imprudente deixar em mãos estranhas algumas das posições mestras da economia de um país. Acresce que em muitos casos - e precisamente nos mais importantes - a participação capitalista não usa desinteressar-se dos fins e da direc­ ção do empreendimento. Eu sei que se fala muito de internacionalismo económ ico e de solidariedade e de cooperação entre as nações, mas não posso esquecer que, se há elementos da riqueza ou da produção que não interessam a uma econom ia estrangeira senão pelos benefícios do seu rendimento, outros tendem a ocupar, ainda no presente momento, dentro dessa economia, o lugar deixado vago na economia nacional. Um país que preza a independência tem de acautelar-se de criar pontos vulneráveis tanto nas suas finanças como na sua economia.

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Prefácio da 4.a Edição As exigências da economia portuguesa, quer no respeitante ao seu reapetrechamento, quer relativamente a empreendimentos novos, são de tal magnitude que uns e outros não seriam viáveis sem a acumulação extraordinária de reservas, a reeduca­ ção do capital português e o aumento de rendimento do trabalho.

As reservas

foram -se acumulando em anos sucessivos, mas só podem mobilizar-se gradualmente. 0 capital, batido pelas inclemências dos mercados externos e seguro da honestidade da Administração, confiou-se numa primeira fase ao Tesouro para empreendimentos públicos, e começa agora a interessar-se pelas grandes empresas que o Governo apoia. Quando em terceira fase se abalançar com decisão à valorização económica da M etrópole e das Colónias, podemos estar satisfeitos dele e da sua função no mais vasto plano nacional. Quanto ao trabalho, cujo rendimento é diminuto em todas as categorias ou graus, terá de receber da escola a base e da vida o principal ensina­ mento: aprender-se-á a trabalhar trabalhando com chefes competentes. Pelo jogo das circunstância indicadas e em virtude do peso da herança recebida, viu -se logo desde o com eço que o Estado, ao enfrentar o problema económico, havia de desempenhar papel de maior relevo do que aquele que em tese entende­ mos lhe compete. Em numerosos países se fazem hoje nacionalizações de empresas, isto é, se faz socialismo.

Estranham m uitos que numa Europa empobrecida, com necessidade

instante de aum entar a produção, se tenha enveredado por caminho que mais provàvelmente conduzirá ao definham ento ou estagnação económica.

Mas deve

entender-se que, salvo raros casos, se trata, não de providências económicas, mas de actos políticos im postos pelas massas, convencidas de que os proventos próprios aumentariam fortem ente com a lim itação ou anulação dos encargos do capital e dos lucros da empresa. Deixemos porém correr a experiência alheia; é lição que nos ficará de graça. Esta form a de intervencionism o na vida económica não a perfilhamos, pois; mas onde a iniciativa privada falha, os capitais não se arriscam e a acção impulsionadora ou coordenadora do Estado é imprescindível dentro dos quadros da produção, tem este tom ado a responsabilidade da form ação e direcção de empresas. Nos casos em que de facto se trata de ser ou nõo ser, transigiu-se com a intervenção, mas de pre­ ferência em empresa mista de que o Estado possa retirar-se, uma vez lançado e acreditado o empreendimento. Isto é política d ifícil de fazer executar, porque os representantes oficiais tende­ rão sempre a defender as posições, fazendo crer na sua indispensabilidade para a defesa do interesse público. Se tal se verificar, concluir-se-á que o Estado pode corrom per-se através da econom ia e que tem de estar organizado de form a que possa im pedir a supremacia dos interesses privados em relação ao interesse comum. Este é porém um aspecto político a que adiante me referirei. Sob o im pério dos factos e ao abrigo dos princípios enunciados se tem assim procurado dar solução ao problema económ ico. E, embora os maiores empreendi­ m entos não estejam ainda contribuindo para a riqueza geral, são de facto notáveis,

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Oliveira Solazar Discursos • 1928 a 1934 tanto sob o aspecto da qualidade como das quantidades dos produtos, os progres­ sos realizados nos últimos anos. As nossas cifras serão sempre modestas para fig u ­ rarem na escala mundial; mas as comparações devem fazer-se em primeiro lugar connosco mesmos. E nenhum sinal de progresso será mais concludente que ter-se assegurado trabalho e sustento à população, que aumenta, não emigra e goza de nivel de vida cada vez mais alto E não podemos quedar-nos satisfeitos. Durante vinte, durante trinta anos será ainda preciso trabalhar duramente para vencer o atraso e nos aproximarmos do nivel económico que reputemos satisfatório dentro das possibilidades nacionais. in ­ considerado o problema social no sentido corrente de justiça na distribuição das riquezas, foi-se apenas lógico ao colocá-lo depois do problema económico, mas, com proceder assim, marcou-se ao mesmo tempo a posição de principio - que para se distribuir é necessário primeiro criar. Sem o desenvolvimento económico, ou seja sem o aumento da riqueza, a melhoria porventura conseguida neste domínio, e fosse qual fosse a pressão do operariado ou do Estado, não nos satisfaria inteiramente. Demais tornou-se claro pelas considerações anteriores que o Tesouro teve de exigir para si maiores tributos e a produção, em face de mais instantes necessidades, ten­ deria a fazer maiores capitalizações. Tudo aconselhava pois a caminhar com prudên­ cia, sem prejuízo de se remediar desde logo o que a justiça reclamasse ou a vida e dignidade do próprio trabalhador impusessem. Visto o problema fora da influência dos dissídios particulares e dos chamados conflitos de classe, deve entender-se que a maior dificuldade a vencer aqui é o baixo rendimento nacional de que temos de viver - Estado, serviços, funcionários, pensionistas, profissões liberais e operariado, afinal páticam ente todos os p o rtu ­ gueses. Elevar esse rendimento por habitante é condição essencial da real m elhoria de vida em todas as classes. E ainda que a justiça social seja de exigir sempre, as suas aplicações só podem trazer vantagens apreciáveis quando se disponha de e co ­ nomia sólidamente constituída. Isto representa a linha geral da solução, mas à margem dela - e espero que sem a prejudicar gravemente - foram-se acumulando nos anos decorridos vantagens materiais, atribuidas aos trabalhadores, em salários, abonos de família, contratos colectivos, férias pagas, segurança do trabalho, habitação, higiene, garantias ju rí­ dicas e sociais, e para muitos ainda subsídios ou pensões na doença, na invalidez e na morte. Duas notas são essenciais à compreensão dos factos e caracterizam só

w A população do continente e ilhas, que era em 1920 de 6 032 991 e em 1930 de 6 825 883, deve andar em 1947 por 8 312 000 habitantes, com o aumento de cerca de 1 500 000 entre as duas últim as datas e de 2 280 000 entre a primeira e a última. A média anual da emigração, que atingiu, no decénio 1910-1919, 40 051, foi de 1920 a 1929 de 36 634 e desceu para 11 922 de 1930 a 1939 e para 5604 de 1940 a 1946.

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Prefácio da 4.“ Edição por si a nova política social: nenhuma vantagem houve de ser conquistada à maneira socialista, em luta com a classe patronal; as m elhorias de situação conse­ guidas excedem m uito o que foi prometido, pedido ou reclam ado antes de nós pelo m undo do trabalho, sem que este aliás deixasse de ser ju iz e estrénuo defensor das suas reivindicações. No meu modo de ver porém o problema social não havia de lim itar-se à con­ quista de regalias materiais, decerto necessárias a uma vida decente e digna, mas pela ordem natural das coisas condenadas por si sós a alim entar a insatisfação dos espíritos.

Parecia-m e que devíamos dar-lhe outra profundidade e m uito maior

alcance, transform ando-o de questão que interessa apenas a uma classe no pro­ blema da própria organização social.

Cada vez terá menos sentido considerar a

parte o mundo operário; cada vez está menos de acordo com a realidade conside­ rar os trabalhadores uma classe diferenciada no meio social. Nós tínham os porém de partir do estado actual de coisas e, se é justo o conceito enunciado acima e deve­ mos agir em obediência a esse conceito, os tópicos fundam entais da transform ação a operar seriam os seguintes: a segurança e dignidade do trabalho, o acesso à pro­ priedade, o acesso à educação e por interm édio desta ao exercício de todas as fu n ­ ções, e finalm ente, através da organização, a respectiva representação no Estado. Duas palavras resumirão o essencial. Desenraizado da terra, da casa, da oficina, e sem o ponto de apoio da fam ília, que se desagrega a olhos vistos nos tempos modernos, a sensação mais penosa do homem é a que lhe vem do desconhecimento e da precariedade da sua própria ocu­ pação. Em substituição do direito à assistência que a Constituição de 1911 ingénua e inutilm ente estabeleceu, fomos, creio eu, os primeiros a proclamar um novo direito, inédito e revolucionário: o direito ao trabalho. A execução prática e integral deste direito, que naturalmente im porta nos casos extremos o sacrifício ao menos ocasional da profissão habitual, trará ao actual regime da economia graves d ific u l­ dades que não se sabe ainda como vencer, mas tem de reconhecer-se que é o ponto de partida da segurança do trabalhador. Ao lado da segurança, a dignidade do trabalho. A integração do trabalhador no processo da produção é um facto material, mas a consciência da função desem pe­ nhada e o reconhecim ento pela empresa dos valores humanos ao seu serviço entram na reform a social com o expressão de solidariedade humana, proveitosa a todos e fon te de direitos e deveres. É contra este princípio a organização que possa actuar no inteiro desconhecim ento dos trabalhadores como pessoas, consciências ou v a lo ­ res individuais. Por outro lado a convicção do trabalhador de que terá conquistado maior grau de liberdade quando, desprendido de laços pessoais, busca ou aceita a posição de simples unidade num conjunto fabril, é filha de uma deform ação do seu espírito e sinal de que, em vez de colaborar na empresa com o homem, lhe interessa apenas vender o seu trabalho com o força. Nenhuma pregação será porém suficiente para acreditar o trabalho com o função social digna, se não coexistirem com a necessidade o sentimento do dever de prestar um serviço efectivo à sociedade e a consciência de que é imoral a desocupação volun-

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Oliveira Solazar Discursos • 1928 a 1934 tária. Se se reconhece uma garantia de estabilidade e progresso na posse individual da riqueza, não deve tirar-se daí a conclusão de que social ou moralmente seja admissível viver dela sem trabalhar. A generalização do trabalho, mesmo por via de obrigatorie­ dade legal, será assim, se não o melhor, um dos caminhos da sua dignificação. A propriedade dos bens de gozo é exigência da natureza do homem, mas a dos bens produtivos, para sua exploração individual ou por intermédio do trabalho alheio, é antes uma vocação ou, se se quiser, uma competência. Todas as reformas que desconheçam esta realidade e pressuponham em todo o homem capacidade para dirigir o trabalho e administrar a riqueza encaminham-se ao fracasso econó­ mico e social. Daqui nascem todas as nossas reservas em relação a reformas, supos­ tas ousadas, que dão aos técnicos e operários, pela sua simples posição de técnicos e operários, participação na direcção das empresas. Aqui se filiam, ao lado da rasgada tendência para a ascensão do maior número à propriedade, os cuidados postos, por exemplo, na escolha dos colonos para os casais agrícolas. Mas daqui vêm, por outro lado, as facilidades concedidas e o desenvolvimento dado à construção de casas eco­ nómicas. Entende-se que essa «casa própria», em plena propriedade, devidamente garantida, equilibrará pelos laços físicos e morais a mórbida tendência para a desa­ gregação a que a família operária está mais intensamente sujeita. As nossas leis não reconhecem privilégios de fortuna ou nascimento, mas porque a sociedade possui naturalmente uma hierarquia, verifica-se a favor das classes mais abastadas a persistência de privilégios de facto resultantes da forma com o está organizada a educação. Considerar abertas as classes e profissões pouco mais repre­ sentará do que afirmação doutrinal, se os meios de educação não se encontrarem pràticamente acessíveis a todos em igualdade de inteligência e capacidade. Não só haverá a maior vantagem social no aproveitamento dos maiores valores, porventura ignorados ou perdidos, como a possibilidade de subir ou fazer subir os seus na escala das profissões ou no meio social faz que a igualdade perante a lei assuma aos olhos de todos um aspecto realista que de outra maneira se lhe não enxerga. Por fim a organização. Seja qual for o interesse e força do Estado em fazer reconhecer a justiça ou em realizar a transformação social a que se aludiu, o traba­ lho operário, como todas as actividades, deve numa sociedade bem ordenada encontrar-se organizado. No conceito de Estado que desejaria ver realizado a orga­ nização é uma necessidade. Não se trata de prever ou preparar a luta sem sentido em ambiente de colaboração, mas de representar interesses que têm de ser co nsi­ derados, comparados e defendidos na concorrência com muitos outros. A repre­ sentação desses mesmos interesses no Estado através das Corporações é a m aior consagração da sua importância e legitimidade. Estes princípios, que formam como que o enquadramento moral de legítim as reivindicações materiais, não representam promessas nem são impossibilidades, visto que vêm inspirando toda a acção. 0 nosso espírito é tão largo, tão aberto neste domínio que não receamos confrontos nem temos encontrado dificuldades nas conferências internacionais em relação a reivindicações de ordem social, com a única excepção das que poriam em perigo uma economia ainda frágil. 16

Prefácio da 4.a Edição Que o conjunto dos trabalhadores portugueses, largamente beneficiários duma obra que, sendo já tão vasta, consideramos ainda em começo, a segue com inteira compreensão, não ouso afirm á-lo. Para além da massa de indiferentes continua a haver alguns espíritos form ados no negativismo da inveja e do ódio, aqui como em toda a parte solicitados, em estranha concorrência de vantagens abstractas, por sectores que diríamos antípodas da sociedade.

Não trabalhamos assim.

Apesar

disso, um escol valioso, alheio às paixões que são característica da luta social do m om ento no Mundo, acompanha com o maior entusiasmo este trabalho. A verda­ deira revolução que ele importa exige porém a transform ação da mentalidade geral. E tudo estaria com prom etido se não a pudéssemos realizar. IV. S into-m e embaraçado para, além do que já tenho dito, dizer neste momento alguma coisa acerca do problema político. A situação criada pelo 28 de M aio era de sua natureza provisória: tendia apenas a dar aos Governos as primeiras condições de trabalho. M ais adiante haviam de definir-se os tópicos da organização política, delineados e assentes sobre as reformas e a transform ação mental e social que se houvesse operado. A esta luz a Constituição de 1933 representa um estádio da evolução, mas não a solução definitiva; simplesmente, uns pensam que essa evolu­ ção se fará com o fim de se completarem os seus princípios, enquanto outros, dom i­ nados pela pressão ideológica exterior, pretendem que deverá fazer-se no sentido da reposição das ideias-causas da nossa decadência passada. Todos terão notado a regressão do pensamento político depois da última guerra. Para além dos Pirenéus, sufocadas a Alemanha e a Itália no sangue e na miséria e com o que paralisada a França por dois medos confessados, pode dizer-se que o pensamento político europeu cristalizou entre o empirismo inglês e o sovietism o russo. Com os seus partidos a alternarem-se ou a cooperarem no Poder, o seu Par­ lam ento e as suas eleições livres, digamos com a sua democracia, a Inglaterra reali­ zou, ao que parece, o máximo da sabedoria política para o tem peram ento do povo britânico, mas julga - e isso já é mais duvidoso - ter encontrado a fórm ula ideal para todas as outras nações.

Se a cissiparidade partidária torna impossível o

governo ou só permite governos sem acção; se do jogo das instituições não resul­ tam condições de vida normal e a desordem se instala na sociedade c no Poder, respondem -nos que as nações devem fazer - e pagar - a aprendizagem da liberdade. Em contrário do que seria normal, chega a temer-se que os governos tenham força para governar e, com o terror pânico da autoridade, vão os países um a um, por m étodos mais ou menos democráticos, caindo no despotismo. Não é brilhante. 0 conglom erado de misticismo e de realismo brutal que caracteriza o sovietismo russo tem decerto contado maiores êxitos - e o pior é se ele revela na compreensão das questões e na respectiva solução superioridade sobre os restantes regimes. Mais de uma vez me referi a que a facilidade de decidir e a rapidez de execução se encon«n

tram em alto grau no regime soviético: são vantagens. Contra si tem porém aquele

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Oliveira Salazar Discursos • 1928 a 1934 uma filosofia inconciliável com a dignidade da pessoa humana e inadaptável às e xi­ gências da civilização ocidental. É muito grave que as chamadas democracias tenham revelado grande permeabilidade às doutrinas e partidos comunistas, de que umas após outras se têm aliás pretendido libertar por métodos de duvidosa ortodoxia. Sob a pressão destas circunstâncias estabeleceu-se tal confusão na term in o lo­ gia política e já vai tão grande distância dos factos às palavras, das realidades sociais às teorias dos homens de governo, que toda a discussão passou a ser inútil e não se é superior à impressão - oxalá que errada - da falta geral de sinceridade. Andam à tona de água muitas ideias mortas; dispende-se grande energia a fazer ressurgir velhos dogmas, mitos sem influência na imaginação dos homens de hoje; há uma sorte de psitacismo político que dos comícios e assembleias legislativas ameaça transbordar para os cenáculos internacionais. Impunha-se um esforço no sentido da verdade e da sinceridade, e seria lamentável que o pensamento russo precedesse o Ocidente nesse caminho. Problema nevrálgico não só para as democracias mas para o M undo civilizado é o respeitante à amplitude e garantias das chamadas liberdades, e à roda dele se tem complicado a questão das formas de governo. Talvez a situação se esclarecesse se pudéssemos entender-nos acerca deste ponto: em que medida dependem as liber­ dades públicas da forma de organização do Poder? Em que medida ou grau são aquelas liberdades efectivas segundo o regime político ou têm de ser sacrificadas ao interesse comum? Deve notar-se que, repetindo-se quase os diversos textos cons­ titucionais, o uso e garantia das liberdades públicas são mais fruto das leis ordiná­ rias e dos regulamentos que das Constituições, e a execução das leis é mais fru to dos hábitos sociais e da educação dos povos que da vontade do legislador. A maior dificuldade das sociedades políticas e o problema crucial das C o n sti­ tuições é porém a ordenação e funcionamento dos órgãos da Soberania. Que as nações tenham governo eficiente e estável é a sua maior necessidade e o seu mais inequívoco direito. Ora, seja qual for o sistema de responsabilidades e n co n ­ trado para o exercício da governação pública, uma coisa é essencial aos gover­ nos - a autoridade, no sentido de possibilidade constitucional e efectiva de gover­ nar. E não pode crer-se que se chegou a boa solução quando os diferentes poderes funcionam de tal sorte que os governos ou não existem ou não governam: defen­ dem-se. Se os grupos partidários a cada momento se consideram candidatos ao Poder com fundamento na porção de soberania do povo que dizem representar, a maior actividade - e vê-se até que o maior interesse público - não se concentra nos problemas da Nação e na descoberta das melhores soluções, mas só na luta política. Por mais propenso que se esteja a dar a esta algum valor como fonte de agitação de ideias e até de preparação de homens de governo, tem de pensar-se que onde ela atinge a acuidade, o azedume, a permanencia que temos visto, todo o tra ­ balho útil para a Nação lhe é ingloriamente sacrificado. Tem de distinguir-se, pois, luta política e governação activa: os dois termos raro correrão a par. Estas questões são a bem dizer questões de sempre, mas nunca como hoje se lhes deu solução menos satisfatória ou mais desproporcionada às necessidades dos 18

Prefácio da 4.a Edição tempos. As grandes massas emergem para a consciência política: grandes Estados concorrem à hegemonia do Mundo; as nações arrasadas pela guerra começam a tirar do pouco pão que têm para a boca com que fazer munições para as armas; há tendência para absorver no Estado a direcção de todos os interesses, dos económ i­ cos aos espirituais e morais; a liberdade individual afunda-se nessa hipertrofiada função; a defesa do que possa ainda salvar-se dos direitos e dignidade da pessoa humana só pode encontrar-se num Estado em que o Governo seja forte e livre, ele mesmo, dos arranjos partidários, dos movimentos anárquicos da opinião, dos con ­ luios dos interesses particulares.

A necessidade incontestável que tem hoje de

intervir na vida económica e de trabalhar para o equilíbrio social mais lhe impõem isenção e autoridade, sem as quais não pode ser guia, propulsor e árbitro. Este o grande, o máximo, o angustioso problema. Apesar de não se ter ainda chegado a uma fórmula constitucional que sintetize ou represente com maior fidelidade os princípios enunciados, bastou termos evi­ tado as maiores faltas dos outros sistemas e caminhado firm em ente em certa direc­ ção, para que o País tenha progredido, gozado de ordem e beneficiado da existên­ cia de governos eficientes e estáveis. Pode lamentar-se que este resultado tenha sido conseguido à custa de algumas restrições da liberdade individual (aliás perfei­ tam ente com portáveis e menos graves ou extensas do que em geral se supõe) e do menor interesse de alguns elementos políticos pela discussão de problemas nacio­ nais. Isto é certo e eu nem mesmo procuro atenuá-lo com dizer que noutras cir­ cunstâncias talvez se discutisse mais, mas não se estudaria melhor. E não o digo, porque despertar interesse pelos problemas gerais e ir levando a grande massa a preocupar-se com eles pode não ser objectivo do regime, mas constitui sinal da sua força e da saúde da colectividade. Quando relembramos a atmosfera de ódios e o regime de violências em que por m uita parte se vive para im plantar ou consolidar as velhas e as novas democracias, podemos estar satisfeitos de que muito poucos portugueses tenham sofrido na sua vida ou actividades com a nossa maneira de agir e as transform ações que apesar de tudo se operaram no regime político e social português. Alegra-m e sobretudo que, tanto com o os amigos, os adversários gozem tranquilam ente daqueles beneficios a que têm direito com o portugueses e do prestígio da Nação, que decerto os encherá de orgulho com o patriotas. D o m ingo de Páscoa - 1948.

O liveira S a la z a r

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P a ra S erv ir de P refácio i. Este livro intitula-se Discursos mais por facilidade de nome que por justeza de expressão.

Deveria propriamente denominar-se: Pedaços de prosa que foram

ditos. Terem sido proferidos pelo autor diante de auditórios mais ou menos num e­ rosos, e originàriam ente escritos com esse destino, não lhes havia de dar qualidade que não possuem. A oratória tem suas exigências e regras, descobertas pela razão e pela experiên­ cia, e próprias para a consecução dos seus objectivos; mas satisfazer inteiramente essas exigências e obedecer fidelissimamente a todas essas regras nunca puderam dispensar a verdadeira eloquência. Esta não é o brilho da forma, nem a loquacidade do orador, nem a inteligência do assunto, nem a correcção do dizer, nem a majes­ tade e m ovimento da exposição, nem a propriedade dos gestos, nem a riqueza das m odulações vocais - nada disto só por si, certamente alguma coisa de tu do isto, mas sobretudo esse dom misterioso de com unicabilidade pela palavra falada, pos­ suído por homens raros, e com o qual, nos termos clássicos, se convence, se deleita e se persuade aos ouvintes. Com o obra de arte, o discurso tem sobre todas as outras a excelência, e ao mesmo passo a fragilidade, de ser obra viva, impossível de conservar no tempo: só existe em toda a plenitude a perfeição no momento mesmo em que foi criada. Depois ficam os traços das ideias e as cinzas das paixões, apagadas, mortas, sem alma. 0 m onum ento arquitectónico, o mármore, a tela, a poesia mesmo conser­ vam, com a identidade e duração da matéria e da forma, aquele jorro de luz, aquela centelha de sentimentos, aquela parcela de beleza que o artista lhes com unicou e perpetuam ente os informam. A obra da eloquência não; o alto engenho do homem não poderá nunca evitar se destrua uma das suas mais belas criações: para fix á -la um dia com o fora, ou fazê-la reviver, era preciso transpor a distância que vai da matéria ao espírito e da mecânica à vida. Lê a gente ainda hoje as obras-primas da eloquência de todos os séculos, admira a elevação do pensamento, a inteligência e força dos raciocinios, a elegância e beleza da forma, o movimento próprio dos sentimentos que se vão despertando para ganhar e persuadir o auditório; e, ainda que se tenha ouvido o orador e na m emória se conserve alguma coisa da alma dos seus discursos, sente-se, ao lê-los, a frieza das coisas m ortas e a impossibilidade de os interpretar à altura do que foram . Em todo o caso - aviso ao estéril verbalismo declam ado - é pela grandeza

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Oliveira Solazar Discursos • 1928 a 1934 do que resta que há-de medir-se o valor da oratoria no campo da criação intelectual ou artística. Se nada resistiu ao tempo, nada tinha o cunho da verdadeira obra de arte. Desço das alturas à craveira destes pobres discursos. Vale-me para desculpa, não de publicá-los em volume - houve para isso outra razão - , mas de tê-los feito, serem todos impostos pelas circunstâncias. Não sentindo em mim essa força íntima da vocação que irresistivelmente leva o escritor e o orador de raça a escrever e a falar, todos os trabalhos do género os tenho executado como dever do cargo e sem dúvida mais penosamente que qualquer outro serviço. Deste modo, apertado pela obrigação e pelo tempo, verdadeiramente orador à força, sem estímulo interior nem possibilidade de longa preparação, estes trabalhos haviam de padecer, além de outras, da grande inferioridade que consiste em serem quase só áridas exposições de ideias, sem intenso movimento passional que lhes dê vida e vibração. Isto não quer dizer que muitos destes discursos não foram trabalhados com certo :uidado nem significa que não fosse em absoluto capaz de fazer obra superior. Não sei; digo apenas que nas circunstâncias que lhes deram origem, fugindo a roubar ao governo do País mais que as horas estritamente indispensáveis para escrever, com a clareza possível, o que se me afigurava de interesse ser dito, não pude fazer melhor. Esta feição predominantemente doutrinal será ainda porventura reforçada à medida que o tempo vá delindo os factos da vida política de todos os dias e certas cir­ cunstâncias acidentais a que se encontram alusões ligeiras ou que explicam uma ou outra frase. Mais por estas minudências que pela ideia geral se casavam os discursos com o ambiente político, as necessidades do momento, o seu auditório obrigado. É de esperar que, não tendo sacrificado o essencial ao que de si se apresentava tão aciden­ tal e transitório, eles sobrevivam àquele momento em que para algumas passagens se não encontre já explicação nem eu próprio possa recordar a sua razão de ser. Por estes motivos se eliminaram sem excepção todos os sinais de concordância ou aplauso constantes dos jornais da época; reproduzi-los seria sem dúvida aproxi­ mar os discursos do seu momento de vida, podia até ser útil aos investigadores da evolução política através das reacções que nos espíritos provocaram as afirm ações do orador, mas perturbaria, com sugestões inconvenientes, a atmosfera de sereni­ dade em que me parece convir apresentar algumas ideias mestras da construção política portuguesa nestes anos. Demais não há necessariamente íntima correlação entre o valor real de qualquer obra e o seu efeito imediato no grande público. Na oratória então, em que a reacçâo do auditório é contemporânea da produção do discurso, a vida e glória deste dependem do efeito em extensão, mas a acção futura dos espíritos provém do seu efeito em profundidade. Pode dizer-se que um não tem nada com o outro. Como discursos, os trabalhos agora reunidos têm ainda dois defeitos fundam en­ tais: não raro substituem a afirmação pela dúvida e abusam da síntese. Num ou noutro caso, de facto, em vez de simples exposição de ideias, põem -se aos ouvintes problemas, e, embora se levante a ponta do véu que os encobre, ou

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Para Servir de Prefácio se enuncie o princípio de que pode deduzir-se a solução, devem fica r pairando nos espíritos, como impressão dominante, a dificuldade ou a dúvida, não inteiramente dissipadas. Por outro lado os ouvintes são às vezes iludidos acerca da clareza da exposição; parece que a luz a ilumina a jorros, e há por detrás todo o labirinto de raciocínios que se não reconstituem ou se não apreendem sem esforço. Da leitura dos mestres se deduz serem quase da essência do discurso a afirmação e a análise, nunca a dúvida e a síntese. A dúvida aparece como artifício para fazer realçar a certeza; a síntese como resumo dos factos ou ideias, não como forma exclusiva ou dominante de apresentação do assunto. Não sendo a nossa compreen­ são pelo ouvido tão fácil nem tão profunda como pode ser pela leitura, a peça ora­ tória tenderá a aproximar-se da linguagem espontânea, naturalmente discursiva e analítica. Nem com a espontaneidade desta, natural ou artificiosa, será compatível por parte do orador o esforço de achar a forma apropriada para sínteses do seu pen­ samento. Os espíritos de feição sintética não podem dar oradores. De tudo resulta ser aqui mais fortemente solicitada a inteligência que a vontade, ser comedida a emoção, encadeados os raciocínios, mais que moderadas as paixões, em suma, serem frios estes discursos em país de sentimentos.

0 entusiasmo de

momento, a embriaguez pela palavra, a vibração passional produzida com habilidade ou suma arte na massa humana, mesmo desacompanhados de toda a reflexão ou convencimento sério, têm por vezes grande interesse político; em caso algum devem constituir sistema ou escola. Por isso se deixaram em repouso as paixões, se fez sobretudo apelo às inteligências e se trabalhou no domínio das ideias, sempre correc­ tas, sempre sinceras, mas talvez incapazes de por si arrastar os corações. - Mas não são isso discursos... - Rigorosamente, não são. Eu afirm ei no princípio serem apenas pedaços de prosa que foram ditos. II. A s ideias destes discursos são geralmente conhecidas: posso mesmo dizer que não são minhas, mas da colectividade, ou porque as fui beber às profundezas da consciência nacional ou porque, correspondendo ao estado de espírito do Pais, este as adoptou e fez suas. Todavia a situação especial do autor pôde fazer delas não só pensamento mas acção. A s afirmações produzidas correspondem na vida da D ita­ dura e na criação do Estado Novo Português a evolução doutrinal e sim ultanea­ mente a realizações políticas. Estas foram seguindo aquela, passo a passo, à medida que surgiam as oportunidades e o espírito público estava preparado para as aceitar e compreender. Por vezes se marcou a possibilidade de novo avanço no m om ento de se realizar o anterior: como é natural, a ideia à frente iluminava a marcha. A crítica contemporânea dos factos políticos é geralmente apaixonada e injusta: por isso vemos tantas dúvidas, desconfianças, negações que, por se referirem a co i­ sas evidentes, parece não deveriam surgir no espírito dos nossos concidadãos. A s erróneas convicções de alguns não têm no entanto o poder de alterar a marcha da

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Oliveira Solazar Discursos • 1928 a 1934 vida portuguesa nem de evitar que esta, sob o aspecto político, tenha evolucionado segundo pensamento definido e lógico, e não ao sabor imprevisto das paixões ou das conveniencias, sem norte ou rumo certo. Nada pode já impedir que certas afirm a­ ções marcassem por si mesmas momentos decisivos da política portuguesa e esta passasse a obedecer à directriz nelas traçada; nada pode impedir que para bem se apreender o espírito da revolução e a sua marcha, para bem se interpretarem a Cons­ tituição, o Acto Colonial e as leis fundamentais deste periodo, para se fazer ideia exacta do caminho ainda a percorrer até se completar a revolução política e enri­ quecê-la com a económica e a social, nada pode impedir, dizia, que para tais fins se tenham de ler e meditar alguns destes trabalhos. Os que se intitulam Ditadura adm i­ nistrativa e revolução política, Princípios fundamentais da revolução política, A Nação na política colonial, O Estado Novo Português na evolução p olítica europeía, A constituição das Câmaras no evolução do política portuguesa, por um lado, e por outro Conceitos económicos da novo Constituição e Problemas da organiza­ do corporativa contêm em germe ou em resumo as principais ideias de reforma política, económica e social que dirigem neste momento, e em consequência da revolução de 28 de Maio, a vida portuguesa. Não só pela administração, mas pelas ideias e realizações políticas, estamos reinte­ grados na Europa, de cuja civilização e progresso fomos em outras épocas importante fautor e seguro guia; e uma vez reintegrados também no nosso tempo pelos melhora­ mentos materiais, pela obra de educação e de valorização nacional empreendida, pode­ mos ser no mundo, como já alguns nos consideram, verdadeiros criadores do futuro. Nem sei em que o trabalho de reaportuguesamento das nossas instituições sociais e políticas, e o culto das boas, sãs, fecundas tradições nacionais, tão próprias para nos darem originalidade e carácter, hão-de levantar dificuldades de monta e não ser preferidos à cópia servil de quanto se pensa e faz em país estrangeiro, ins­ pirador máximo da nossa actividade desde há muito tempo. Além do mais, este esforço é homenagem ao espírito criador da raça lusitana e ao seu poder de in icia­ tiva, que será fecundo se o trabalho persistente da descoberta «interior» não ceder o passo à preguiçosa imitação de estranhas criações. Pelo pensamento, em virtude do que se acaba de dizer, pela maneira, em virtude do que é geralmente conhecido, estes discursos não se aproximam de quaisquer modelos do nosso recente passado político: pertencem a outra escola. Ser desviada a política das competições e lutas partidárias devia ter só por si influência neste género de produções. Mas, se não tivesse, nem mesmo assim dei­ xaria de imprimir-lhes nova feição o deliberado propósito de fazer arrefecer as pai­ xões e animosidades pessoais, de tratar com objectividade os problemas, de m anter na governação permanente atmosfera de dignidade e elevados sentimentos. Por este processo se tem habituado a Nação a desgostar-se das virulências e dos insul­ tos como inestéticos e indignos da sua inteligência. Pode supor-se que trilhar este caminho tenha sido fácil ou cómodo; nem sem­ pre, porque o meio ainda não purificado tem solicitações doentias. Aos homens indignamente atacados apetece, parece até impor-se a resposta no mesmo tom,

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Para Servir de Prefacio com o único desagravo capaz. Não nego que fosse justiceira a réplica, mas posso negar que fosse útil. Assim se voltaria ao principio. Os princípios morais e patrióticos que estão na base deste movimento reformador impõem à actividade mental e às produções da inteligência e sensibilidade dos Portu­ gueses certas limitações, e suponho deverem mesmo traçar-lhes algumas directrizes. Que ideia fazem das suas responsabilidades os espíritos de primeira ordem do actual momento português, os que, por terem recebido maior parte na distribuição dos dons divinos, estão naturalmente constituídos em guia e exemplo dos demais? Vejo com desusada insistência desculparem alguns seus repetidos malefícios com a apregoada sinceridade das suas convicções literárias, artísticas ou morais. Basta isso? Atrevo-m e a negá-lo por várias razões e sobretudo porque, além de responsáveis pelo que produzem contra a sua consciência, o escritor e o artista são ainda responsáveis pelos desvios da sua própria inteligência e pela má formação da sua vontade. Ser sin­ cero é muito pouco; reconheçamos a obrigação de ser verdadeiro e justo. Quando B ourget pôs em Le disciple a tese da responsabilidade do escritor pelos efeitos da sua obra na inteligência e na moral dos seus admiradores e sequazes, parece ter-se operado um m ovim ento de espanto sobretudo nos que tendiam a for­ mar da literatura e da arte mundos à parte, bastando-se a si próprios, tendo em si mesmos a sua finalidade e razão de ser, e não viam nelas m anifestações humanas, integradas na vida e susceptíveis de a embelezar, de a melhorar, de ajudar o homem na conquista dos seus fin s últimos.

Esses desconheciam as profundas realidades

humanas, perderam a rota das grandes certezas morais, criaram o amoralísimo e a arte pela arte, como frutos lindos de ver-se, mas inaproveitáveis ou nocivos.

Na

m elhor das hipóteses desperdiçou-se o génio em prejuízo da humanidade. A tese da responsabilidade pode continuar a discutir-se teóricamente, abstrac­ tamente; mas aos homens que sentem sobre os ombros o peso da direcção dos povos ensinou-lhes a história, quando não a observação própria, coincidir a deca­ dência com certas m anifestações mórbidas das inteligências e das vontades, com a pretensa em ancipação do jugo de regras superiores, impostas ao homem e deriva­ das da sua natureza e dos seus fins. Para elevar, robustecer, engrandecer as nações é preciso alim entar na alma colectiva as grandes certezas e contrapor às tendências de dissolução propósitos fortes, nobres exemplos, costumes morigerados. É impossível nesta concepção da vida e da sociedade a indiferença pela fo rm a ­ ção m ental e moral do escritor ou do artista e pelo caracter da sua obra; é im pos­ sível valer socialm ente tanto o que edifica como o que destrói, o que educa com o o que desmoraliza, os criadores de energias cívicas ou morais e os sonhadores nostál­ gicos do abatim ento e da decadência. Costum a dizer-se que a literatura é o espelho das diferentes épocas; mas se tão fielm en te as reflecte é que ajuda a criá-las.

Neste momento histórico, em que

determ inados objectivos foram propostos à vontade nacional, não há rem édio senão levar às últim as consequências as bases ideológicas sobre as quais se constrói o novo Portugal. Cremos que existe a Verdade, a Justiça, o Belo e o Bem; crem os que pelo seu culto os indivíduos e os povos se elevam, enobrecem, dignificam ; cre-

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Oliveira Solazar Discursos • 1928 a 1934 mos que ao alto sacerdócio de buscar e transmitir a Verdade, criar a Beleza, tornar respeitada a Virtude é inerente a responsabilidade pelas devastações acumuladas nas almas e até pela inutilidade social da obra produzida. E se, por se generalizar tal estado de consciência, se vier a escrever menos... M as virá algum mal ao mundo de se escrever menos, se se escrever e sobretudo se se ler melhor? Hoje, como na critica de S éneca, «em estantes altas até ao tecto, adornam o aposento do preguiçoso todos os arrazoados e crónicas». III. Se por infelicidade minha venho a morrer em cheiro de celebridade, logo se preci­ pitarão sobre os papéis, que não tenha tido tempo de queimar, sábios de nome, dados a investigar com gravidade e minúcia os pequenos segredos humanos. A forma da letra, as emendas dos textos, a elaboração mental dos trabalhos e a sua tradução grá­ fica, a ordem dos factos e das ideias devem ser objecto de muito doutas investigações. E hão-de surgir problemas difíceis. A uniformidade dos meus dias de trabalho faz-me errar as datas constantemente; logo comecei a minha vida política por tomar posse de Ministro das Finanças na vés­ pera da nomeação, segundo se conclui do Diário do Governo e dos relatos dos jornais. A história ver-se-á sèriamente embaraçada para desenvencilhar um dia tão impor­ tantes questões. Por isso me lembrei de poupar aos futuros investigadores muitos trabalhos e erros, deixando escrito o que eu mesmo posso saber acerca da matéria. Ignoro donde venha a curiosidade de saber como trabalham os poetas e os escri­ tores; todos a sentimos, pelo menos relativamente àqueles que mais nos dominam a inteligência ou tocam o coração. Serão dotados de uma espécie de dom divino de improvisação, dando origem, como num acto de criação perfeita, à obra de arte que lhes brota da pena como da terra a água das fontes? Trabalharão pelo método de aproximações sucessivas, como o estatuário que vai pouco a pouco, no bloco pouco menos de informe, talhando, retocando, aperfeiçoando com paciência infinita até à forma definitiva? Entre os grandes criadores de beleza no mundo devem encon­ trar-se os representantes de todos os sistemas e de todas as gradações, e porventura a pergunta se deveria fazer não em relação ao escritor mas às suas obras, tanto devem ter diferido duma para outra as condições de trabalho e de realização. Não deve ser verdade que todas as páginas de um autor tenham da mesma forma saído perfeitas ou sofrido emendas, tenham sido criação dolorosa ou fru to espontâneo da sua inteligência e sensibilidade. A disposição do momento, o assunto, preocupações alheias a este, o tom em que se escreve - os músicos com positores sabem com certeza o que isso é - fazem variar a dificuldade da produção e o seu rendimento, deixam até por vezes a sua marca na obra literária. E como trabalharão os oradores? Há os que improvisam a matéria e a forma; há os que estudam o assunto, porm e­ norizam e ordenam as ideias, trabalham cuidadosamente os passos fundam entais e

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Para Servir de Prefácio de maior responsabilidade e deixam à improvisação do momento vestir e adornar o resto; há os que preparam todo o trabalho — o assunto, a forma, a exposição; e há ainda o quarto grupo dos que estudam em casa e improvisam na tribuna. Este é o mais numeroso. A ntónio C ândido não decorava; estudava, compunha de cor os seus discursos e escrevia depois de os ter proferido. Deve ser caso raro; a maior parte ou os escre­

vem antes inteiramente ou fixam apenas os tópicos fundamentais: a estes a in flu ­ ência directa da multidão, a reacção do auditório auxilia-os, quase se diria lhes ajuda a fazer o discurso. Pelo que me toca, e desculpando-se-m e por instantes o abuso da camaradagem, depois de ter experimentado tudo, escolhi, como era de razão, o processo mais económ ico - penso, escrevo e leio. Obrigado a falar, sem os dotes naturais dos oradores, sem essa magnífica consciên­ cia da superioridade própria sobre a multidão que dá o sangue-frio, o à-vontade, a clareza dos raciocínios e a facilidade de expressão do pensamento, não me atreveria em coisa de responsabilidade política a deixar à memória dos jornalistas colaboração no que devesse ser dito. Eles mesmos involuntariamente me curaram das improvisa­ ções do começo: era ainda pior que o que eu dizia o que me faziam dizer. Por este m otivo o livro tem só os trabalhos que foram escritos, com duas ou três excepções, coligidas e publicadas segundo as notas dos jornais, não pelo seu valor, mas porque se tornaram conhecidas e foram posteriormente muito citadas algumas das afirm ações feitas. Aos restantes, de que tinha apenas apontamentos ligeiros ou nem isso, fosse qual fosse o seu interesse de momento, não podia agora, para os publicar, dar-lhes forma, que já nem provàvelmente seria a mesma que revestiram na ocasião. A experiência levou-m e a adoptar para todo o trabalho intelectual, como m étodo de maior rendimento, o que força à maior tensão de espírito no mais curto espaço de tempo. Duas horas de madura reflexão valem mais que um dia todo em que a inteligência apenas aflora a superfície das coisas. Por outro lado, escrever antes de bem am adurecidas e bem dispostas as ideias, antes de perfeitam ente assente o esquema em que se divide e subdivide a matéria, se marcam as relações e depen­ dências dos factos e se fixa toda a marcha do pensamento, transform a-se necessàriam ente em perda de tempo, à procura da forma e a forma à procura da ideia, com m odificações frequentes do texto, deslocações de trechos e ajustam entos d ifí­ ceis. Quem esteja habituado a pensar conhece por vezes as transposições e sabe que um trecho se não encontra no lugar em que nasceu. Com o a clareza da ideia impõe por si a forma mais exacta da sua expressão, esta parece surgir espontânea na escrita se a tensão de espírito é suficientem ente forte para reproduzi-la.

Nestas condições parece-me escrever com certa facilidade; e,

sendo impossível repetir para o mesmo trabalho o mesmo esforço de concentração, a revisão fin al dá-m e apenas pequenas correcções, e tem de fica r definitiva a pri­ meira form a com o a melhor encontrada: sei mesmo que depois não farei melhor. São igualm ente definitivas a primeira divisão, a ordem das matérias e dentro de cada capítu lo o encadeamento das ideias. Não saberia m udá-las ou alterar-lhes a

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Oliveira Salazar Discursos • 1928 a 1934 ordem: pode ser desta forma intercalada no texto uma pequena frase; uma ideia nova com algumas sequências é absolutamente impossível. M elhor ou pior ficam assim os trabalhos como nascem; as poucas emendas que os manuscritos apresen­ tam são quase todas contemporâneas da redacção primitiva. De todos os trabalhos agora publicados os que mais me custaram - e isso se conhece perfeitamente no original - foram os dois discursos destinados à cidade do Porto, e destes sobretudo o primeiro, sobre os Conceitos económicos da nova Cons­ tituição. 0 desconhecimento completo do meu público exerce sobre mim uma espé­ cie de acção inibitória. Esta e a dificuldade e delicadeza do assunto levaram -m e a desistir a certa altura da forma habitual de redigir e a fixar em simples apontam en­ tos, escritos a correr e até em letra diferente da usual, as ideias que deveria expor. 0 pior é que, tendo faltado o tempo, fizeram esses apontamentos a vez do trabalho definitivo, cujos principais capítulos não chegaram a ser escritos. Aconteceu-lhes o mesmo que ao meu melhor discurso: ainda o não fiz e não sou mesmo capaz de fazê-lo... 17 de Fevereiro de 1935.

O liveira S a l a z a r

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N ota - Reprod uzem -se a seguir quatro folhas tiradas dos originais m anuscritos. O te x to respec­ tiv o e n co n tra -se , pela ordem das reproduções, a pág. 101 (As diferentes forças políticas em face da revolução nacional), a pág. 79 (Elogio das virtudes militares) e a págs. 112-113 e 114 (Conceitos eco­ nómicos da nova Constituiçãol Foram escolhidas para exem plificar da m elhor form a possível a lg u ­ m as a firm a çõ e s do texto.

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Va¡ por êsse mundo, e a propósito dos acontecimentos de Espanha, grande ala­ rido contra Portugal. Acusações de todo o ponto injustas, de mistura com intensa ofensiva de boatos acerca da ordem interna e da nossa posição internacional, cir­ culam nos jornais estrangeiros e têm seus propagandistas no País. Há-de demons­ trar-se que não tem razão o esquerdismo europeu, embora por êsse efeito venha a ficar um pouco a descoberto o verdadeiro motivo da sua irritação. I.

0 primeiro ponto em que deve assentar-se é o carácter da luta civil espanhola e o alcance ou significado político da vitória de qualquer dos contendores. Uma coisa parece evidente: mesmo que o levantamento da fôrça armada não representasse no princípio o que hoje vemos ser, êle viria a representar pela fôrça das circunstâncias não a luta do Exército contra a democracia parlamentar mas contra o comunismo em Espanha. Desde que a revolta se deu na máxima parte da força armada e Madrid enveredou pelo caminho de organizar a sua defesa com milícias, teoricamente com todos os par­ tidos da Frente Popular, pràticamente, pela ascendência dos mais violentos, com os filiados nas organizações comunistas e anarquistas, ficou fixado o carácter da luta. E então, independentemente das preferências ou simpatias de cada um, ou os aconte­ cimentos do País vizinho haviam de desmentir a razão e a experiência humana, ou no dia do aniquilamento do Exército não haveria senão um triunfador e uma fôrça política - as milícias armadas, e ninguém poderia infelizmente salvar na derrocada nem a Constituição nem o parlamento nem a democracia espanhola. Os que prefiram enga­ nar-se a si próprios podem no entanto continuar a fantasiar outras hipóteses. Estes os factos - e não nos importa agora qualquer responsabilidade dos homens - estes os factos que, devido ao carácter do comunismo, deram à guerra civil de Espanha a natureza de luta internacional, embora desenrolada, como já escrevi, em território nacional. Não obstante isso, sem o perder de vista e sem perder de vista os perigos do contágio e da extensão do predomínio comunista, o estado actual da Europa claramente indicava dever tentar-se tudo para não deixar que a luta de Espa­ nha se repercutisse no quadro dos interesses e posições internacionais.

Nota oficiosa publicada nos jornais de 23 de Setembro de 1936.

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Discursos

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Oliveira Salazar Notas Políticas • 1935 a 1937 II.

¿Foi isso o que sucedeu? Supomos traduzir a realidade dos factos dizendo que no principio dos a con teci­ mentos a Europa encontrou diante de si, de um lado, a indiferença da Inglaterra, a fria reserva da Itália, a expectativa da Alemanha e, do outro, o apoio e incitam ento da Rússia e... a atitude da França. A França, que em todo o caso não era a França do Quai d'Orsay, por dois modos deixou levar a questão para o terreno internacional: ali se tem defendido o direito e o dever de prestar ajuda material às m ilícias de Madrid; ali se pôs a questão da segurança dos Pirenéus e das ligações com a África. Sabem os que a cham ada liberdade de imprensa e de reünião permite irresponsabilizar os Governos de se criarem estados de opinião inconvenientes, mas aquí tratam os de fa c to s e não de responsabilidades. A verdade é que os auxílios materiais no campo da solidariedade ideológica em que foi posta a questão importavam o reconhecimento a outros países de também, por afinidade ou interesse doutrinal, prestar ajudas materiais ou morais à parte contrária. Por outro lado a idea de segurança das fronteiras e das ligações com a África, aparte o efémero resultado que podia ter e teve na política interna francesa, pela adesão de muitos elementos do centro e até das direitas, levantaria inhábilmente e sem razão o problema mediterrâneo. Não só de todas as nações europeias é a Espanha de amanhã o país a que mais parece convir a neutralidade, mas uma França que conte com a Inglaterra aliada a Portugal nada deveria recear da Espanha nacionalista, a quem aliás está ligada na Europa e na África pela vizinhança e pela amizade. As reacções externas eram, porém, fatais. I II .

Só por éste caminho se explica a iniciativa do acordo de não-intervenção pro­ posto pelo Govérno francés. Por ele espontáneamente renunciava a França ao direito de fornecer armas e munições ao Govérno de Madrid, direito que no cam po puramente jurídico nunca pensámos negar, em nome desta ¡dea convencional na comunidade das Nações de que é ainda aquele Govérno o representante da Espanha. É geralmente sabido que, talvez devido a razões de urgência, o processo dêste acordo não foi o da discussão e aceitação geral de um texto, mas o da adesão unilateral de cada Estado a uma idea comum, apresentando cada qual as suas reservas ou condições. Após conversações necessárias ao esclarecim ento da questão que já irritaram além de toda a medida certos meios, o M in is tro dos Negócios Estrangeiros deu, por nota de 21 de Agosto, a adesão do G ovérno por­ tugués e formulou ao mesmo tempo as reservas e condições da sua anuência, lar­ gamente fundamentadas. Apesar da sua importância, fomos apenas informados pelos Governos inglês e francés de que havia sido recebida, e se agradecia, a nossa adesão; o silêncio porém 264

XV. Os Acontecimentos de Espanha... das duas grandes potências não podia tirar a tais reservas e condições o seu signi­ ficado, nem nos podia convencer a deixarmos de as julgar essenciais. Isso o fizemos sentir aos referidos Governos em notas de 28 de Agosto; mas o facto aconseIhou-nos a usar de maior prudência ainda no futuro. IV. De harmonia com o acordo, na parte e nos termos em que nos havíamos com ­ prometido, publicou-se o decreto n.° 26:935, de 27 de Agosto. Êste diploma está em vigor; mais precisamente, está a ser executado, e ainda ninguém nos pôde acusar de o não cumprirmos ou de não o fazer-mos cumprir: declarações espon­ tâneas nos têm sido feitas de termos mantido com honestidade os nossos com ­ promissos. Se as chancelarias não estão reduzidas a fazer política externa com as informações anónimas de anónimas emissoras, as deficientes e equivocadas notí­ cias das agências e as paixões de certa imprensa, terão todas chegado à mesma irrecusável verificação. De facto não temos sido acusados por qualquer entidade responsável de havermos violado ou contribuído para ser violado o acordo de não-intervenção. ¿A que vem pois a nova campanha contra Portugal? E certo que as reservas e condições da nossa nota de 21 de Agosto passaram para o decreto publicado, em termos de o Govêrno português só se reputar ligado ao compromisso emquanto os outros Estados o estiverem, e de poder suspender a sua execução, se verificasse por parte de outros quebras do princípio de não-intervenção, mediante a organização de corpos de voluntários e subscrições públicas para manter os combatentes. Mas, devendo crer-se que no espírito de todos está cumprir com seriedade as obrigações assumidas, não vemos em que as nossas tão razoáveis condições pudessem exacerbar os ânimos dos partidários da não-intervenção em Espanha. Há-de haver para o caso outra explicação. V. Fôsse por êsse motivo ou por outro qualquer, logo após o compromisso dos Estados propôs o Govêrno francês a constituição de um «comité» que poderia fu n ­ cionar numa grande capital europeia, como por exemplo Londres. A sua constitui­ ção e funcionamento não só não estavam previstos no primeiro acordo, como revo­ gavam em parte o estabelecido. A nós porém, a quem só verdadeiramente importa a essência das coisas, pouco se nos daria de substituir um processo de informação recíproca por outro se, mantidas as nossas reservas, nos fôsse demonstrado: a) que estava rigorosamente definida a competência do «comité»; b) que a êste estavam assegurados meios eficazes de fiscalização, no caso de se querer atribuir-lhes funções fiscalizadoras; c) que estava garantida a sua absoluta neutralidade. 26 5

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 Com mais ou menos demora se foram fazendo representar no «comité» de Lon­ dres muitos países, mas até ao presente, embora já inform ados da opinião do Governo inglês, não fomos ainda inteiramente esclarecidos acêrca de todas as d ú vi­ das e não pudemos por isso fazer-nos representar no seu seio. Nós desejaríamos que a Europa se convencesse de que é norma da nossa vida pública cumprir com honestidade, senão com escrúpulo, aquilo a que nos co m pro­ metemos, mas para tanto precisamos de saber claramente o que nos é exigido. Ora há muito que vemos perderem-se na invenção de fórm ulas vagas os esforços que melhor se empregaram em descobrir soluções concretas e não tem os notado quais­ quer resultados dessa orientação. Não os poderia ela ter, pois que, por tal processo, à facilidade de conquistar adesões se sacrifica toda a possibilidade de exacto enten­ dimento e de trabalho útil. Demais os grandes países podem assumir a responsabilidade de interpretar os textos das suas obrigações e regular estas pela interpretação própria, mas os peque­ nos não podem evitar atritos inconvenientes e discussões ou represálias senão adeindo a textos que não sejam dotados de demasiada elasticidade. A prova de que tínhamos razão está na falta de rendimento do «comité», do qual js vagas notícias publicadas não parecem dar a entender que ao menos até ao pre­ sente momento saiba muito bem que missão desempenhará, pois estuda ainda a sua competência e meios de acção. Nem nós poderíamos crer que constituím os, País tão modesto como somos, estorvo de maior ao seu funcionam ento ou às suas deci­ sões. Não só o acordo de não-intervenção e a vigência do decreto que o fez cu m ­ prir em Portugal são independentes do «comité», mas no caso presente, estando nêle os países produtores de armamento, estão nêle por igual representados os maiores interêsses perante cuja actuação a nossa situação de possível país de trâ n ­ sito é absolutamente secundária. V I. Postos assim nuamente os factos e obrigados em princípio a dar às decisões dos outros Estados sentido razoável e justo, não podemos com preender a irritação que parece ter causado nalguns a nossa atitude. ¿Dar-se-á o caso de havermos in volu n ­ tariamente frustrado o maquiavélico plano de tolher-nos os braços, quando a outros seria deixada inteira liberdade de acção? Tal atitude não podemos porém a trib u í-la por equívoca e injusta a Governos com quem temos amigáveis relações, mas quando muito aos torvos especuladores desta hora. Segundo o correspondente parisiense do Times (Action Française de 12 de Setem ­ bro) é-se de parecer em certos meios que «o direito de um país relativamente pequeno a manter uma atitude de intransigência a propósito de uma questão da mais alta importância internacional num momento em que as grandes Potências renunciaram às suas preferências pessoais ultrapassa os privilégios normais da soberania interna e torna-se negócio de interêsse geral». «Pregunte-se agora, conclue o correspondente, se não chegou o momento de dar uma expressão prática a esta desaprovação geral». 266

XV. Os Acontecimentos de Espanha... Por mais alta e bem abastecida que seja a fonte aonde o jornalista foi beber a sua notícia, diga-se o que se disser, não pode ser esta a doutrina de Paris. A posi­ ção oficial está fixada na seguinte passagem do discurso do Chefe do Governo francês de 17 do corrente: «A França respeita a soberania dos demais povos na medida em que é seu propósito fazer respeitar a sua». É assim que pensamos e fare­ mos até onde chegarem as nossas forças. V II. Quando forem levadas a bom têrmo, como esperamos, estas incruentas batalhas diplomáticas, todos os países de ordem poderão ver com serenidade que no fundo só em duas coisas interessa deter a atenção. A primeira é: o comunismo está a tra­ var na Península uma formidável batalha de cujo êxito dependerá em grande parte a sorte da Europa, razão por que por ela se interessam e nela tentarão intervir, na medida permitida em cada Estado, todas as ideologias afins. A segunda é: mais valioso para o comunismo ibérico do que um carregamento de armas e munições seria a transformação política operada em Portugal que tomasse vulnerável a reta­ guarda de todo o exército espanhol. E foge-me a pena para uma pregunta indis­ creta: ¿também nesse caso interessaria tanto como agora que aderíssemos ao com­ promisso de não-intervenção? A êste ponto fundamental - Portugal país de ordem social e de autoridade - está ligada substancialmente a campanha dos jornais e a intriga do presente momento por meio da qual, ao mesmo tempo e em extremos opostos da Europa, se afirma a nosso respeito a venda de colónias, a cedência de bases marítimas, a mudança do eixo da política tradicional, conjuntamente com dinheiro suspeito, conspirações acti­ vas, organizações revolucionárias, entendimentos e compromissos entre gente que mal podia supor-se estar tão unida e ser tão dada. Só quem tenha presentes os dois pontos acima referidos pode entender um importante sector da política europeia do momento e orientar adentro das fronteiras a acção que competir. M uitas vezes, talvez demasiadas vezes, se nos põe a alternativa de seguirmos determinado caminho ou ficarmos com a responsabilidade de desabar o mundo. Nós não acreditamos que em geral as coisas pudessem passar-se com tanta simpli­ cidade e tão grande perigo, mas não queremos opor-nos aos bons entendimentos, sempre que não temos de respeitar um alto principio moral ou de atender a interêsses vitais do País: estes não podemos sacrificá-los a nenhuma consideração, mesmo porque passa a ser naturalmente bastante secundária para nós a desgraça do mundo, se nós já não existirmos para senti-la. Ora os que têm seguido sem paixão o drama peninsular, os que não esqueceram a história de há décadas, de há anos e de há dias, os que se lembram das ambições alguma vez manifestadas do plano ibérico do comunismo, da clareza, aliás de agra­ decer, com que tem sido muitas vezes defendido na imprensa o direito de interven­ ção em Portugal, fazem-nos a justiça de crer que não são românticos os receios nem levantamos por capricho dificuldades a ninguém; simplesmente não desistimos 267

Discursos

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Oliveira Solazar Notas Políticas • 1935 a 1937

dc que seja respeitada a nossa tranqüilidade nem podemos transigir no necessário à defesa da vida e liberdade do nosso povo. V III. ¿E a Inglaterra? Embora com razões para sorrir de tamanha ansiedade, sossegarei os m tranqüilos dizendo-lhes simplesmente: 1. ° A Inglaterra compreende a delicadeza da nossa posição e não há-de estra­ nhar que o nosso modo de ver sobre os problemas peninsulares seja mais rigoroso que o seu próprio; 2. ° E porque tem da aliança com Portugal, quanto ao objecto e m odo de fu n cio ­ namento, uma noção diferente da dos que formulam tão a flitivas dúvidas, respeita as divergências, acompanha as discussões e certamente nos dará sem contrariedade razão naquilo em que lograrmos convencê-la. E não provém daqui senão melhor compreensão mútua e m elhor trabalho de conjunto a bem dos interêsses comuns. Espero assim ter conservado para a Inglaterra a fidelidade dos seus antigos am i­ gos e haver-lhe ainda granjeado a daqueles cuja dedicação me era até há pouco absolutamente desconhecida.

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XVI. OS PROBLEMAS DO EXÉRCITO E AS GUERRAS RELIGIOSAS DO NOSSO TEMPO (1) A o terminarem ontem as manobras da brigada de cavalaria, apôs ter falado o Sr. general M orais Sarmento, usou da palavra o Presidente do Conselho e M inistro da Guerra que, dirigindo-se aos Srs. major-general do Exército, governador m ilitar de Lisboa e aos restantes oficiais, disse que as suas primeiras palavras seriam para agradecer o brinde feito ao Chefe do Estado. Senhor general Carmona. Retrib u i-lo-ia como o faria Sua E x 3, se a li estivesse, bebendo pelas prosperidades do Exército Nacional. Não fazia a menor tenção de falar ali, pelo que as suas palavras não poderiam, mesmo de longe, ser consideradas como um discurso à altura das afirmações que acabava de ouvir e das pessoas a quem se dirigia. Teve mesmo muitas dúvidas se deveria ou não aceitar o convite que lhe fôra dirigido: amanhã os jornais de Madrid em largas parangonas, ilustradas até com fotografias autênticas, poderiam anunciar que, prosseguindo triunfante em Portugal a revolução comunista, o Presidente do Conselho se vira obrigado a refugiar-se junto de um pequeno núcleo de tropas fiéis com que iria atacar Lisboa. Entre a contingência de contribuir embora involuntaria­ mente para tão flagrante falsificação da História e o prazer de algumas horas de boa camaradagem com os oficiais do nosso Exército, não hesitara porém. Quisera informar-se do valor dos exercícios realizados, da forma como decorreram, das deficiências encontradas e do melhor meio de remediá-las. Compreende bem a uti­ lidade de ouvir da bôca dos competentes as queixas ou mesmo reclamações form u­ ladas por amor dos serviços acêrca do que falte às nossas forças para constituírem um Exército de campanha que a todos plenamente satisfaça. No processo a seguir para chegar a êsse objectivo há porém que escolher entre os dois caminhos que se nos oferecem — reparar ou criar, quere dizer, ir simples­ mente remediando as pequenas falhas, deixando por debaixo intactos os vícios fun ­ damentais do sistema, ou, convencidos da insuficiência e no final maior carestia dêste método, lançar as bases sôbre as quais se possa levantar o Exército do Estado Novo. Ora essa obra de criação é ao mesmo tempo de ordem moral, de ordem orgâ­ nica, de ordem técnica e de ordem material.

w Palavras dirigidas em 19 de Outubro de 1936 aos oficiais duma brigada de cavalaria no final dos exercícios que havia realizado, junto de Vila Nova da Rainha (segundo os notas dos jornais).

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 Põe-se em primeiro lugar o aspecto moral: experiências de sempre e outras muito recentes ainda permitem supor que quási debaixo do fogo se pode m elhor ou pior organizar um Exército, adquirir grandes quantidades de material, tratar até das insta­ lações dos serviços. As mesmas experiências porém demonstram igualmente que só a moral não pode ser improvisada. 0 conjunto de qualidades e virtudes que primeiro hão-de formar o homem na sociedade e dêsse homem hão-de fazer o soldado tem de ser obra de educação demorada e o mais possível prosseguida desde as primeiras ida­ des. Se juridicamente considerarmos o militar funcionário público, ficaríam os muito longe das realidades e das necessidades públicas se nos contentássemos em que êle fôsse apenas um burocrata fardado. Nada no fim estaria feito se as melhores instala­ ções e o mais poderoso material fôssem postos ao serviço de homens sem o claro entendimento do que representa a sua fôrça na vida da Nação. A fonte da maior acção e da maior resistência estará sempre no homem, na fôrça do seu carácter ou seja na vontade que serve uma consciência. Eis porque primeiro que tudo a moral do Exército. Depois a necessidade da organização. 0 Exército é como nenhum outro por defi­ nição um organismo vivo. Êle não é o material, nem os soldados, nem cada uma das armas ou serviços, seja qual fôr a sua importância e a índole da sua acção própria, mas o conjunto de elementos materiais e humanos tão perfeitamente combinados e inte­ grados que sejam afinal uma só fôrça ou, por outras palavras, a fôrça da própria Nação. Mas a orgânica, por mais perfeita que fôsse, não bastaria ainda, porque o desen­ volvimento das ciências aplicadas à arte da guerra obrigam o m ilitar à posse segura de uma técnica dentro da sua especialidade. Nós não faríam os idea exacta dêste aspecto do problema se houvéssemos de considerar os exercícios a cuja conclusão assistimos e outros mais complexos ainda como uma raridade digna de ser notada. Deveria mesmo dizer que grande parte da vida profissional a haveríam e terão de passar no campo os militares. Por maior que seja a sua cultura, por mais vastos que sejam os seus estudos ou por mais completos que sejam os cursos das escolas nada pode substituir o ensino da vida real, pois - e lembraria aqui a frase-program a de Gustavo le Bon - savoirc'estfaire. É nos exercícios e manobras que se hão-de a p li­ car as doutrinas dos livros, que se hão-de revelar ou fortalecer as faculdades dos comandos e das forças, que se hão de até notar os erros dos sistemas e criar, diante da realidade dos campos de acção, a nossa arte militar. Com as m agníficas q ualida­ des de compreensão e adaptação da nossa raça, a tudo se poderá chegar. Por fim as instalações. Infelizmente tocamos nesta matéria extrem os inverosí­ meis. Temos cavalaria em Santarém a profanar um monumento a rquitectó nico de rara beleza e em Lisboa um batalhão de metralhadoras em abarracam entos apodre­ cidos: ou palácios que se não podem m ultiplicar ou tugúrios que não deveriam exis­ tir. Nestes termos, mesmo para o problema de todos o mais simples, que é o das instalações, é necessário, para não se refazer constantemente o que nunca fica feito, assentar em critérios e definir directrizes. Depois do que se acabava de dizer todos compreenderiam que certas demoras, porventura para alguns exageradas, em realizações aliás urgentes, têm a sua origem na necessidade de traçar as grandes linhas da construção futura. E ninguém poderá 270

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XVI. Problemas do Exército...

julgar que essa urgência não é fortemente sentida. Nem o País pretende furtar-se aos sacrifícios necessários, nem o Governo alguma vez deixou de ir preparando os meios com que, na devida altura, pudesse fazer face ao rearmamento do Exército.

Não por maior agudeza de vista mas por melhor pôsto de observação podem os que governam fazer mais perfeita idea da delicadeza de situações que umas após outras se vão criando no mundo. Tem havido guerras de puro interesse dinástico, guerras de carácter económico, guerras coloniais. De século a séculos porém a Humanidade atravessa ciclos de guerras ideológicas: assim foram as guerras religio­ sas nascidas da Reforma e as guerras oriundas da Revolução no século XIX; assim serão as guerras sociais do nosso século. Não há dúvida de que estamos assistindo a guerras deste tipo, e, mesmo que elas possam ser limitadas às fronteiras de cada país, haverá em cada um reacções de outros e terá na vida de outros largas repercussões o seu desfecho. Temos à vista claríssimos exemplos. Sendo assim, já seria algum bem que os homens de Estado responsáveis pudes­ sem impedir o alastramento do mal: ¿mas será isso possível? Não há muito que o Governo de Madrid procurou comprometer a S. D. N. na posição por êle tomada na guerra civil de Espanha. Frustrado o intento, a Rússia propôs-se em Londres, com um impudor que raro se terá encontrado na diplomacia de algum país, criar condi­ ções propícias à internacionalização do conflito. E oxalá que o mundo e especial­ mente a Europa não pague em ruínas irreparáveis a fraqueza com que por vezes se definem as posições dos povos diante de tais propósitos. ¿Qual é a posição portuguesa nestas circunstâncias? A grande previdência, a salutar energia de alguns dos nossos monarcas no século XVI pouparam Portugal aos horrores das guerras religiosas que muitos dos outros povos sofreram. Mais tarde se verá que foi a revolução «de cima» por nós defendida e firmemente reali­ zada que poupou o País aos horrores das guerras sociais do nosso tempo. Perante a trágica convulsão de que já foram ou são vítimas outros Estados pode assegurar-se que nenhuma obra da actual situação política é comparável a esta de fazer pacificamente a sua revolução, ainda que para realizá-la tenha de impor a muitos alguns sacrifícios e a outros algumas restrições. Em tal orientação Portugal não perturba a paz do mundo nem a ninguém pode permitir que perturbe a sua: no dom ínio da política interna é esta nitidamente a posição. ¿E no domínio internacional? Seja qual fôr a seqüência da política agressiva e intervencionista dos Estados comu­ nistas ou dominados pelo comunismo internacional, consigam os homens responsáveis pelo futuro das Nações opor-se a que o incêndio alastre ou leve a fraqueza dos Gover­ nos a sucessivas transigências ao fim das quais estará perdida a ordem interna e a paz da Europa, uma coisa começa a desenhar-se - a impossibilidade de se reconstituírem, por virtude dos conflitos ideológicos, as frentes de 1914-1918. 271

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 Vão-se pouco a pouco desatando antigos laços e m odificando as velhas posi­ ções. Em tal redemoinho importa salientar que não muitas coisas alem da aliança luso-britânica continuam de pé. Paralelamente à estabilidade da política interna que não embaraça antes condiciona as mais ousadas realizações, a tradicion al am i­ zade luso-britânica a que Sua Majestade o Rei Eduardo VIII ainda há pouco se refe­ ria em termos penhorantes, continua a ser, pelo que respeita a um sector im por­ tante de interesses mundiais, um factor de ordem e segurança externa. Duas coisas são porém necessárias - uma serenidade que se não perca e uma firm eza que se não abale. Por esta forma temos até hoje garantido os nossos sucessivos triunfos. O Presidente do Conselho term inou as suas p a la v ra s p e d in d o d e scu lp a dos m inutos que a todos roubara e salientando que a P á tria c o n fia v a a b s o lu ta mente no esforço de todos os seus filh o s e de m odo e sp e cia l no v a lo r dos o f i­ ciais do seu Exército.

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XVII. A GUERRA DE ESPANHA E A SUSPENSÃO DE RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS “> Meus Senhores: - Eu transmitirei ao Senhor Presidente da República, a quem a nossa Constituição entregou a orientação superior da política externa, e ao Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros, principal executor dessa política, ausente neste momento por doença, as saüdações do povo de Lisboa com o qual não duvido há-de estar em íntima comunhão de sentimentos todo o bom povo de Portugal. Por mais alto se dirigirem os louvores não contrariei além de certa medida esta manifestação, da qual para mim quero apenas guardar a confirmação reconfortante duma consci­ ência nacional desperta, apta a compreender e a seguir os novos rumos por onde há dez anos se busca afirmar a honra, o prestígio, a grandeza da Nação. Terminaram vitoriosamente as últimas campanhas diplomáticas e com isso nos devemos regozijar; mas sôbre a minha alma insatisfeita uma pequena nuvem paira ainda, porque, se por aqueles triunfos se pode aferir a excelência dos nossos princí­ pios, também infelizmente, pela sua pretensa novidade, se pode medir um pouco a decadência moral da Europa, contra que ainda a mêdo nalguns pontos se reage. ¿Que fizemos ou fazemos que não possa ou não deva ser feito em toda a parte? Temos reivindicado como atributo indispensável da independência política a nossa independência mental e moral, o nosso poder de revisão e de crítica das ideas feitas, das noções assentes, dos compromissos tomados, dos conluios de interêsses, das sombras, dos vaticínios, das tétricas profecias. E, contràríamente aos que pude­ ram confundir independência e isolamento ou hostilidade, verificou-se, ao pormos claramente sôbre a mesa das conferências os dados da nossa experiência - as nos­ sas razões — que mantínhamos mais firmes as amizades antigas e granjeávamos novas simpatias e o respeito de todos. Temos procurado que os princípios políticos e morais que seguimos e a que estamos ligados se distingam por uma vez corajosamente das fórmulas vazias, hipócritas, a ameaçarem converter a vida internacional em farisaismo intolerável, em sábio processualismo inútil, já sem poder sequer salvar as aparências. A êsses altos princípios da vida social, entre os indivíduos e entre os povos, entendemos que tudo o que lhes é inferior se deve sacrificar; mas o que por vezes se sacrifica são realidades tangíveis a concepções abstractas sem alicerces na razão nem vida no espírito dos homens.

m

Proferido em 31 de Outubro de 1936, de uma das varandas oo Ministério das Fia n ça s, o ^ c o da

m anifestação do povo de Lisboa ao Govêrno.

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Discursos

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Oliveira Solazar Notas Políticas • 1935 a 1937

Temos, em terceiro lugar e semelhantemente ao que praticam os na ordem interna, defendido que a ordem internacional seja de direito e de fa c to resultante da conciliação de interesses nacionais, fora da abusiva intervenção de grupos ou partidos de uma ou outra nação, convencidos de que por ou tro m odo só se conse­ guiriam m ultiplicar as dificuldades existentes e de que piores que nacionalism os, mesmo agressivos, são alguns internacionalismos da hora presente. M ina n do-se a segurança interna dos Estados, debilitando-se a coesão nacional, perm itindo -se a criação de partidos políticos com acção e influência exterior, não se cam inhou para uma Humanidade mais amiga, fraterna ou pacífica, mas para a hegem onia de um partido que, parodiando a raça eleita do Senhor, promete sacrilegam ente a todos os povos a redenção pelo crime. Por fim êste conceito de Estado - pessoa de bem não percebem os nunca por­ que havíamos de lim itá-lo aos usos da governação interna (se bem que a m uitos se afigurasse mesmo aí grande arrojo e novidade), e não haveria de estender-se aos domínios da política internacional onde a honra, a sinceridade, a lealdade dos fin s e dos processos deveriam ser regra indiscutível e fielm ente observada. Por nós vamos ainda mais longe, exigindo, pelo que se refere a relações norm ais e am igáveis com os outros Estados, um mínimo de concordância de ideas, sentim entos e instituições jurídicas sobre que assenta a civilização. Nada encontro nestes princípios e atitudes extraordinário ou novo, mas não há dúvida que por êles se tem norteado a acção externa e que êles condicionaram o não reconhecimento da Rússia soviética, as nossas contínuas e por vezes im p o rtu ­ nas intervenções em Genebra, a nossa suspensão de relações com a Espanha. Confesso que me doeu êste último e forçado acto da nossa política externa: nós e a Espanha somos dois irmãos, com casa separada na Península, tão vizin hos que podemos falar-nos das janelas, mas seguramente mais amigos porque independen­ tes e ciosos da nossa autonomia. Como peninsulares, episódicos inim igos e cons­ tantes colaboradores nas descobertas e divulgação da civilização ocidental, cobrem-nos de luto as desgraças e horrores da sua guerra civil, sentim os com o nos­ sas as perdas do seu património material e artístico, o derram am ento do seu sangue, o trágico desaparecimento de alguns dos seus maiores valores; e parece-nos que alguma coisa se quebrou - embora confiemos não ser por m uito tem po - destes laços que à Espanha nos ligavam. Mas as realidades eram dolorosas e expressivas demais para sôbre elas se assentarem relações com algum sentido; nem vim os outro meio de nos mantermos dentro do direito senão evitar que o direito tom basse em pura ficção e responsabilizar pelas faltas cometidas os que perante o m undo se apresentam como tendo a autoridade e a fôrça efectiva suficientes para o fazerem acatar. Para além do extremo a que se chegara, a prudência seria covardia e m aior tolerância falta de brio. Por acusações que só o ódio podia levantar fomos julgados — ¡quem havia de prometê-lo ao comunismo nosso inimigo! - julgados e considerados quites com os nossos compromissos; e, ainda que só justiça, satisfez-nos que a mesma nos fôsse 274

XVII. A G uerra de E spanha e a S u sp en são...

reconhecida por todos os Estados, com excepção da Rússia, e de modo especial pelo próprio Governo da Grã-Bretanha da mais alta tribuna do seu país. Nunca traíra­ mos nem os nossos interêsses, nem os interêsses da aliança, nem os da civilização que nos cumpre defender. Só os acusadores - grave ironia das coisas - não puderam justificar-se, e tiveram de declarar não ser seu propósito estabelecer na Península o comunismo mas man­ ter a democracia, declaração comprometedora e em aberta negação dos factos mais bem averiguados, declaração que, embora seja infinita a credulidade dos homens, mal encontrará algum puritano dos imortais princípios para acreditá-la. A nós ao menos não nos convenceu, pelo que continuaremos a defender-nos. Meus Senhores: - É esta obra de defesa da independência nacional e da civili­ zação por nós ajudada a criar e a expandir pelo mundo, que havemos de levar ao fim por cima dos cegos, dos egoístas, dos inadaptados, dos maus portugueses, se alguns há. Podemos contar para tanto com a vossa dedicação? com o vosso sacri­ fício? com a vossa vida? Para diante!

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XV III. PROJECTO ANGLO-FRANCÊS DE NÃO-INTERVENÇÃO E DE MEDIAÇÃO NA GUERRA DE ESPANHA“1 (Nota do Governo Português de 11 de Dezembro de 1936) 1. Nas Memórias entregues com data de 5 do corrente pelos Governos de Sua Majestade Britânica e da República Francesa são apresentadas ao Govêrno portu­ guês as duas sugestões seguintes: a) a declaração de resolução firme de renunciar desde já a qualquer acção directa ou indirecta que possa conduzir a intervenção estrangeira na luta de Espanha; b) o anúncio da sua intenção de dar instruções ao representante na Comissão de Londres no sentido de tomar em consideração medidas imediatas de fiscalização efectiva sôbre todo o material de guerra destinado a Espanha. Com estas duas sugestões é o Govêrno português também convidado a asso­ ciar-se aos dois referidos Governos e aos outros a quem idêntica nota foi dirigida, para uma oferta de mediação, com o fim de permitir à Espanha dar expressão comum à vontade nacional, ou, no dizer da nota do Govêrno francês, colocar o país no seu conjunto em termos de exprimir a vontade nacional. Aparecendo agora em público uma versão das propostas que lhes dá maior amplitude e deixa supor que outras consultas e iniciativas se realizaram além das anunciadas, mas de que o Govêrno português oficialmente não teve conhecimento, dispensa-se êste de fazer-lhes qualquer alusão e limita a sua resposta aos pontos acima indicados. 2. As mais generosas intenções se confessam nos documentos citados como estando na base das sugestões e convite apresentados ao Govêrno alemão, italiano, russo e português: invocam-se expressamente os interêsses da paz, da salvaguarda da civilização europeia e da humanidade. Cumpre examinar se os meios propostos não colidem com as circunstâncias criadas e em si próprios podem contribuir para aqueles fins.

w Abre-se uma excepção relativamente a notas diplomáticas que, embora da responsabilidade do autor, não são compiladas neste volume, reproduzindo-se, sob os n.oi XVIII a XX e XXIV-XXV, cinco notas dirigidas ao Govêrno britânico acerca da guerra civil de Espanha e cujo conhecim ento se reputa necessário à boa compreensão de várias passagens de discursos e notas oficiosas sôbre o mesmo assunto. As primeiras três foram publicadas nos jornais respectivamente de 16 de Dezembro de 1936 e 10 e 14 de Janeiro de 1937. As notas reproduzidas sob os n.os XXIV e XXV são agora pela primeira vez tornadas públicas. Insere-se igualmente sob o n.° XXVIII a resposta do Govêrno português à «declara­ ção Hull» acêrca dos princípios de acção internacional para a conservação da paz.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 3. 0 Governo português que pela sua situação geográfica se reconhecia espe­ cialmente qualificado para fazer idea da questão de Espanha, fo i o prim eiro a cha­ mar a atenção para certo número de factos e circunstâncias que, devidam ente exa­ minados, acima das preocupações e preferências políticas internas de alguns Estados, teriam permitido a todos ajuizar com justeza do carácter do m ovim ento revolucionário espanhol. Não só porque o seu ponto de vista não foi ¡m ediata­ mente perfilhado, mas porque os seus interêsses na Península não são com paráveis aos de qualquer outra potência, o Govêrno português, sem deixar de acom panhar a acção que se pretendeu exercer com o acordo de não-intervenção e depois com a Comissão de Londres, formulou reservas e condições, as quais, pelo fa c to de não terem ainda sido postas em jôgo, nem por isso deixaram de ter para êle plena vali­ dade. Essas reservas e condições caracterizam de certo grau de independência a sua política em relação à Espanha e em tudo quanto possa considerar necessário para «defender a paz interna, salvaguardar as vidas, haveres e liberdade dos cida­ dãos, assegurar a integridade e independência nacionais» m. Isto quere dizer que o Govêrno português tem de exam inar todas as propostas |ue se refiram a luta em Espanha num plano que lhe permita co nciliar os interêsses da paz e da humanidade com os seus interêsses vitais (pois estes os não pode sacri­ ficar a nenhuns outros), com a seriedade que deve presidir às relações entre povos e com a dignidade própria do Govêrno de cada país. 4. 0 acordo de não-intervenção foi uma declaração pública e solene da vontade de numerosos Governos de não intervirem no co nflito espanhol. Vários puseram em destaque, como devendo ser evitadas, as formas de intervenção indirecta, e entre estas o recrutamento de voluntários e as subscrições públicas para fin s de guerra. Sem suspeitar que algum Govêrno se haja com prom etido sem propósito ou desejo de cumprir, os factos que precederam tal acordo já o tinham condenado a insu­ cesso, como infelizmente se provou. A renovação agora proposta do mesmo compromisso, quando persistem as mes­ mas circunstâncias ou algumas destas se m odificaram em favor de uma das partes por acção dos mesmos que haviam de abster-se de contribuir para o agravam ento do mal, nada poderia significar perante o mundo, senão forte golpe nos processos diplomáticos que vêm sendo seguidos com pertinácia contra a verdade das coisas. Daí adviria nova causa de desprestígio para os Governos interessados. 0 Govêrno português entende não ter sido a falta de afirm ações públicas que deu lugar à participação efectiva de elementos estrangeiros na luta em Espanha; antes, pelo contrário, foram as declarações de homens responsáveis em alguns paí­ ses, claramente favoráveis a uma das partes, que conduziram, por natural oposição de ideologias, outras nações a afirm ar a sua preferência pela outra parte. 5. 0 Govêrno português que se esforçou por cum prir com correcção os co m pro­ missos tomados e ao definir estes foi mesmo mais longe do que m uitos outros, abs-

Nota do Govêrno português de 21 de Agosto de 1936.

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XVIII. Projecto Anglo-Francês de Não-Intervenção... tendo-se de actos de intervenção indirecta largamente praticados por alguns, não levanta no entanto qualquer objecção a publicar outras medidas ou a tomar por via legislativa as que administrativamente adoptou no sentido de dar execução ao espí­ rito do primitivo acordo. Inspirar-se-á para tanto nas legislações que venham a ser promulgadas noutros países, como êle ligados ao acordo de não-intervenção. 6. As nossas instruções pedidas e a dar ao representante do Govêrno português na Comissão de Londres e a que acima se fez referência levantam as seguintes objecções: a) pôr-se-ia diante de todo o mundo, o que aliás foi desde o princípio convicção do Govêrno português, e por expressa confissão dos interessados, a ineficácia ou insuficiência da Comissão constituída e em actividade com a responsabilidade de numerosos Governos; e se bem que se esteja por demais habituado ao fra ­ casso dos processos seguidos para estudo e resolução de dificuldades interna­ cionais, parece não serem de aconselhar actos que mais cavam o prestígio dos Governos e fazem perder aos povos a confiança para a obra de consolidação da paz entre os povos e no seio dos povos; b) o estudo e conselho por parte da Comissão de medidas imediatas a fim de se exercer uma fiscalização efectiva estariam dentro da sua competência, tal como desde o princípio foi definida e aceite; a execução de tais medidas directamente pelo «comité» ou por órgão dêle delegado estaria fora dessa competência e transferiria para aquele atribuições próprias, e em certo modo inalienáveis, dos Governos. Os factos desenrolados desde o acordo de não-intervenção, as pres­ sões políticas internas que não deixam a alguns Governos inteira liberdade de acção, o envenenamento da atmosfera internacional, carregada de paixões das massas a que nem todos os Governos são estranhos, não permitiriam senão apa­ rências de imparcialidade, com grave dano da justiça.7 8 7. Portugal que não é produtor de armas nem, ameaçado como se encontra pelo comunismo internacional, poderia ceder a outrem as armas que possue, oferece limitadíssimo interêsse no caso do fornecimento de armamento para o exército espanhol, como fez notar na sua declaração de 15 de Agosto, se os países produto­ res cumprirem o estipulado no acordo. Mas dará instruções ao seu representante na Comissão de Londres para, em harmonia com as considerações anteriores, e de colaboração com os outros representantes dos Governos, estudar as medidas que cada um deve tomar. Não poderia porém comprometer-se a fazer-se substituir na fiscalização das suas leis internas por outrem que não sejam as legítimas autorida­ des portuguesas. 8. Entendem os Governos britânico e da República Francesa que novo esforço deveria ser feito no sentido de aliviar as penosas condições existentes em Espanha, e com êste fim se faz o convite ao Govêrno português para se associar a uma oferta de mediação. O povo português não pode ser considerado nem através da sua história nem pelas suas qualidades actuais, como povo a quem sejam estranhos os sentimentos de 279

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 humanidade. Basta dizer que por disposição constitucional tem a arbitragem como meio próprio de dirimir os litígios internacionais; e que não tem nos seus Códigos a pena de morte nem mesmo contra os assassinos. Tem porém o dever de distinguir os sentimentos de humanidade de um humanitarismo que para evitar uma pequena violência contra os malfeitores sujeita as pessoas de bem aos m alefícios dos grandes criminosos. 0 Govêrno português tem receio, e declara-o abertamente, de que se continue com uma falsa idea do conflito espanhol e dêste êrro originário provenha a sugestão de medidas que umas após outras estão condenadas ao insucesso. ¿Precisamente o que é que se pretende? Pode pretender-se em primeiro lugar minorar a situação angustiosa em que por motivo da guerra civil se encontra a população de Espanha. O Govêrno português não tem relações com o chamado Govêrno de Valência e tem visto êste perder suces­ sivamente todas as características de um Govêrno regular, de direito ou de facto. Por outro lado não reconheceu ainda o Govêrno de Burgos. M as não tem m elindre em se associar a outras potências para continuar a obra que vem realizando, e contribuir para que a mesma se alargue, em benefício da população espanhola de qualquer dos lados, sem distinções, embora, pela situação m ilitar em todos os territórios adjacen­ tes à fronteira portuguesa, os nossos auxílios humanitários tenham sido entregues às autoridades nacionalistas. Reconhece-se vasto o campo para uma acção internacio­ nal que em víveres, artigos de vestuário, remédios, intercessão pela população não combatente, direito de asilo firmemente respeitado, tratam ento de prisioneiros poderá ser realizada por humanidade e até por exigência da justiça. Pode pretender-se em segundo lugar que as potências acordem no sentido de proteger os vencidos, de ajudar a reconstituição da Espanha depois da guerra e até de conseguir que o Govêrno vitorioso o seja de todos os espanhóis, com longan im i­ dade e justiça. Ainda será humanitário e relevantíssimo êste esforço. Se finalmente, como se insinua, se deseja oferecer a mediação às duas partes para terminar o conflito por meio de acto eleitoral, oferece-se com a m elhor das inten­ ções um serviço justificável, se se reduz o problema de Espanha à luta armada de dois partidos políticos pela posse do Poder, incompreensível se, com o supomos, ali se assiste à luta de duas civilizações ou de uma civilização contra a barbárie. A cessa­ ção da luta por qualquer forma que não seja a vitória iniludível e indiscutível de algum dos contendores, seguida daquele Govêrno forte mas generoso de que a Espa­ nha carece, é aliviá-la de um flagelo, sem dúvida grande, para a deixar esmagar den­ tro de pouco tempo por outro maior e sem remédio. Com tal tática não pode co n ­ cordar o Govêrno português, e sente que as ideas neste sentido postas a correr, aliás sem justificação conhecida, são já em si um perigo para a civilização ocidental. A proposta de mediação, embora de intuitos hum anitários, a figura-se ao Govêrno português uma tentativa destinada a não obter êxito, o que equivale a dizer, destinada pelo seu malogro a exacerbar, se ainda é possível, as paixões. Nem os mediadores propostos são tidos uns ou outros por neutros ou im parciais nos campos em luta; pelo contrário, a posição jurídica em que perante êles as partes sem conflito se encontram são fundamentalmente diferentes. 280

XVIII. Projecto Anglo-Franccs de Não-intervenção... 0 que importa ver em Espanha não é a guerra, é a paz; não são os horrores da luta, as mortes e sofrimentos que esta traz, a perdoar e a esquecer, mas crimes perpetra­ dos quando não havia luta e onde ainda não há luta - crimes que não interessam ao desfecho da contenda senão porque traduzem uma orientação, uma doutrina, uma política. E não parece justo dar um passo que possa vir a garantir a liberdade e até uma situação política aos seus fautores. Isto em nome da humanidade. 0 Govêrno português não se atreve, em virtude do exposto, a dar a sua adesão a essa idea aparentemente tão generosa mas que, além do mais, se baseia numa con­ fiança em actos eleitorais que êle não pode partilhar, que não atende à dificuldade invencível de garantir um mínimo de liberdade aos que não usam do terror como arma política, nem tem em conta o valor relativo das ideas e das posições morais. Mas se vier a convencer-se de que os contendores aceitam e desejam livremente a mediação proposta, de bom grado o Govêrno português se prestará a estudar com os outros Governos a forma que deveria tomar a acção mediadora encarada.

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XIX 0 ALISTAMENTO DE VOLUNTÁRIOS PARA A GUERRA DE ESPANHA (Nota de 2 de Janeiro de 1937 em resposta à proposta franco-britânica) O Govêrno português prestou a sua melhor atenção às memorias do Governo de Sua Majestade Britânica e do Govêrno francês, relativas à questão dos voluntários estrangeiros alistados nas forças em luta na Espanha. 0 Govêrno português - ousa lembrá-lo - foi dos primeiros a assinalar a impor­ tância que a questão do alistamento de voluntários estrangeiros poderia assumir. Na sua nota de 21 de Agosto de 1936, dirigida aos Governos britânico e francês, deixou expressamente consignado que se reservava o direito de sair do acordo de não-intervenção no caso de em algum país, parte nêle, se fazer o alistamento de voluntários ou se realizarem subscrições públicas para fins militares. Esta condição mostra a importância que o Govêrno português atribuía à intervenção nos negócios de Espanha, sob as duas formas referidas. E não era porque receasse ver envolvido grande número dos seus nacionais nos acontecimentos de Espanha, tão arraigada é nos portugueses a tradição de se abste­ rem de participação nas lutas políticas do país vizinho. 0 Govêrno português tem ainda hoje a convicção - e mantê-la-á emquanto não lhe puderem ser fornecidos dados concretos que a invalidem - de que se contarão dificilmente por dezenas os voluntários portugueses nas fileiras das forças em luta. E dêsses certamente o maior número será dos comunistas saídos de território nacional muito antes da guerra civil de Espanha, e que ligados a outros emigrados políticos portugueses ali se emprega­ ram em manejos contra Portugal, do que o Govêrno bastas vezes se queixou. Mas o Govêrno português pensava que, se era inevitável resultar da luta o embate de ideologias já de si perturbadoras da atmosfera internacional, a perturba­ ção seria certamente mais grave, se em socorro militar de cada um dos partidos acorressem a território espanhol nacionais de diversos Estados. Bem poderiam estes ver-se em dado momento envolvidos na luta. Nestas condições o Govêrno português sente-se agora à vontade para aceitar o princípio de restrições legais que impeçam o alistamento em grupo ou individual­ mente de voluntários nacionais ou estrangeiros, nas forças combatentes de Espanha. Não pode porém deixar de encontrar sérias objecções ao alcance limitado da pro­ posta e ao processo, aliás inspirado em louváveis intuitos, por que se procura realizar aquele intento. Em primeiro lugar, a questão dos voluntários não deve ser considerada isolada­ mente das outras formas de ingerência directa ou indirecta. Suprimir uma das for­ mas que reveste o auxílio dado às duas partes em luta para deixar subsistir outras que as beneficiem em condições de desigualdade, não é assegurar o melhor cum 283

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 primento do acordo de não-intervenção: pelo contrário é praticar ou deixar prati­ car uma verdadeira intervenção. Êste porém não é o único aspecto grave. 0 «comité» de Londres foi criado com o fim não só de estudar os meios práticos mais eficientes de dar cumprimento ao acôrdo de não intervenção, mas de evitar as susceptibilidades e perigos das acusações não verificadas e as delongas das discus­ sões diplomáticas directas entre umas e outras potências. A proposta agora recebida parece desviar-se do processo de trabalh o que tinha sido adoptado. Sem que perante o «comité» hajam sido levadas acusações concre­ tas contra quaisquer potências, duas de entre elas dirigem -se a outras, e segundo as notícias dos jornais, até agora não desmentidas, a algumas apenas das que são par­ tes no acôrdo, para lhes propor a adopção de medidas cuja necessidade, urgência ou razão de ser estavam submetidas à apreciação daquele organism o e não tinham sido por êle nem aceites nem negadas. A darmos crédito à imprensa europeia, não eriam mesmo sido ouvidas nações de quem se tem dito m aior núm ero de volu n tá ios contarem na guerra civil de Espanha. Ora quer se trate de dualidade de métodos de trabalho, quer de nova orientação, condenam-se por esta forma e de maneira irremediável o prestígio, a autoridade e porventura a própria existência do «comité». Há ainda outra consideração a que não pode deixar de se fazer referência. 0 Govêrno português tem para si que os perigos da crise espanhola derivam não somente do embate de ideologias que entre os povos e no seio dos povos ela fez nascer, mas também do agravamento da atmosfera de desconfiança, que pesa tão enorme­ mente nas dificuldades presentes da Europa. As diligências isoladas realizadas fora do «comité» e sôbre matérias sujeitas à sua apreciação correm o risco, seja qual fôr a nobreza dos intuitos, de fazer supor que, ao lado dos propósitos declarados, outros fins políticos se procurariam atingir; e isso mais agravaria o actual estado de desconfiança. 0 Govêrno português tem visto, ao lado de declarações term inantes acêrca da necessidade absoluta de não-intervenção, afirmações igualm ente claras de elem en­ tos responsáveis acêrca do rumo que tem de tomar a política espanhola. A co n tra ­ dição entre um e outro conceito não escapa à opinião pública dos diferentes países e não pode deixar de apagar nos espíritos aquela confiança na perfeita isenção com que serão cumpridas as deliberações acordadas e que é condição essencial da e fic i­ ência de qualquer acôrdo. Apesar de tudo, o Govêrno português, mantendo integralmente as reservas da sua nota de 21 de Agosto e reivindicando a eventual liberdade de procedimento que dela resulta, mais uma vez condescenderá em prestar a sua leal colaboração nesta matéria. E confirma a declaração feita na sua nota de 11 de Dezembro de que não levanta objecção a publicar quaisquer medidas no sentido de dar execução ao espírito do primitivo acôrdo, desde que as potências que são partes nêle dêem a sua adesão à proposta: inspirar-se-á porém para tanto nas legislações que venham a ser promulgadas nos outros países.

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XX. DILIGÊNCIA INGLESA ACERCA DOS VOLUNTÁRIOS PARA A GUERRA DE ESPANHA (Nota do Governo Português de 12 de Janeiro de 1937) O memorándum datado de 11 do corrente e ontem mesmo entregue no M inis­ tério dos Negócios Estrangeiros pelo Embaixador de Sua Majestade Britânica, rela­ tivo a questões derivadas da luta em Espanha, foi ¡mediatamente submetido à atenta consideração do Governo português, para assim dar satisfação ao desejo expresso de resposta urgente. Nas suas comunicações de 11 de Dezembro e 2 de Janeiro, assim como na nota dirigida em 19 de Dezembro pelo delegado de Portugal no «comité» de Londres a Lord Plymouth, o Govêrno português definiu claramente a sua opinião relativa­ mente aos pontos agora de novo tratados. Na esperança de que as restantes Potências procederão de igual forma, o Govêrno português está disposto a assentir à proposta do Govêrno britânico e que êste declara inspirada na gravidade da situação; acompanhará aquelas das Potên­ cias que mais restritivas medidas promulgarem para impedir o alistamento no seu território, ou o trânsito por êle, de indivíduos com destino às forças em luta em Espanha; mas aguardará, como já disse, que tais medidas sejam promulgadas nos outros países para se inspirar nelas. Não retardará isso a sua adesão porque a Cons­ tituição Portuguesa permite ao Govêrno a promulgação das medidas necessárias ao fim proposto, se a urgência fôr tanta que não possam ser votadas pela Assemblea Nacional, aliás neste momento em funções. Àparte esta restrição, não tem também dificuldade em obrigar-se a fazer entrar em vigor essas medidas em qualquer data que entre todos e para todos seja fixada. É contudo condição essencial que as providências fiquem efectivamente em vigor desde a data convencionada em todos os países que são parte no acordo, e que elas compreendam não só os nacionais de cada pais mas também os estrangei­ ros residentes ou em trânsito nos respectivos territórios. Em questão que tão de perto se liga com interêsses vitais de Portugal, o Govêrno não pode deixar de fazer expressa condição da vigência da sua lei o rigoroso cumprimento do compromisso que por outros seja tomado. Com esta declaração julga o Govêrno português ter respondido ao ponto que a Mem ória britânica de 28 de Dezembro de 1936 declarava ser em muito o mais im portante e urgente de todos os que derivam da guerra civil em Espanha: a ques­ tão dos voluntários. Mas a aquiescência que traduz não deseja o Govêrno portu­ guês possa ser interpretada no sentido de ter passado a julgar como de menor im portância todas as outras formas de ingerência directa ou indirecta nos aconte­ cim entos de Espanha. 285

Discursos

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Oliveira Salazar Notas Políticas • 1935 a 1937

Na sua Memória pregunta ainda o Governo de Sua M ajestade ao Governo por­ tuguês se êste tem algum método especial de fiscalização em m ente diferente dos que têm sido examinados. 0 Govêrno da República, tanto pelo seu delegado no «comité» de Londres, como expressamente nos §§ 5, 6 alínea b), e 7 da sua Nota de 11 de Dezembro, definiu já qual a sua atitude nesta matéria. Cada dia mais o confirm a na sua crença de que a condição essencial da eficiência do acordo de não-intervenção não reside nos d iplo­ mas publicados, nos textos subscritos e nos métodos de fiscalização, mas sim no que a Memória britânica com admirável justeza assinala no seu parágrafo 3 com o factor indispensável: «a resolução por parte dos Governos contratantes de executarem de maneira leal e inteiramente do coração os compromissos assumidos». Ora a co nvic­ ção íntima de que, conseguida aquela atitude tudo será fácil, e sem ela tu do co n ti­ nuará a ser inútil, e até contrário aos fins desejados, é que tem norteado e não dei­ xará de nortear a atitude do Govêrno português. É êste o m otivo por que a questão da fiscalização o não tem interessado e nada tem a propor a seu respeito.

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XXI 0 SUPOSTO ARRENDAMENTO DE ANGOLA À A LE M A N H A (1) Passadas poucas semanas sôbre uma arremetida, nova tempestade de boatos se desencadeou acerca das colónias portuguesas. Gerou-se em Basileia como a ante­ rior, correu as capitais da Europa e deu a volta ao mundo porque a sentimos na América do Sul e na África. Como havíamos desmentido a venda, aparece a atoarda agora sob a forma de arrendamento e com notáveis pormenores: contrato por 99 anos que deixava intacta a soberania portuguesa; citam-se as firmas alemãs inte­ ressadas e os trabalhos que vão empreender; intensificar-se-á a produção de Angola para pagar o armamento adquirido para o Exército; o Chanceler no seu dis­ curso de 30 do corrente dará mesmo público conhecimento do acordo realizado. 0 jornalista de Basileia, interrogado acêrca da notícia, garantiu a sua «rigorosa exactidão», pois a tinha da melhor fonte; em certos meios diplomáticos e políticos, já certamente informados, tomaram-se atitudes confirmativas; e jornais ingleses, com o sentido apurado da precisão, escreveram que Portugal já tinha desmentido a venda de colónias, mas o arrendamento a longo prazo era negócio, quere dizer, podia ser considerado. No meio de tudo, o Governo português absolutamente ignorante de tal acordo. Por ordem de Lisboa os nossos Ministros no estrangeiro tinham desmentido da primeira vez e desmentiram também desta, embora convicta a nossa Chancelaria da inutilidade de tais declarações. Para a hipótese de novos desmentidos, tem de pen­ sar-se que muitos Governos, pelo menos em casos que não lhes interessem, se encontram perante a existência legal da liberdade de imprensa, e é de certo modo desprimoroso para os representantes de Portugal verem levantar-se por sistema, em face dos seus desmentidos categóricos acêrca de negócios colonais, as insistências de jornais que se julgam mais entendidos no assunto que o Govêrno português. Demais há sempre processo de salvar uma tal ou qual delicadeza protocolar: como desmentimos o arrendamento de Angola a 99 anos, entende-se que não fica des­ mentido o arrendamento a 98 anos e 11 meses.

As insistência destas campanhas e a ineficácia dos nossos esforços para lhes pôr têrmo, não tendo conseguido mais que curtos dias de repouso entre ataques suces-

1,1

Nota oficiosa publicada nos jornais de 29 de Janeiro de 1937.

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Discursos

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Oliveira Solazar Notas Políticas • 1935 a 1937

sivos, revelam a existencia de causas de actuação permanente: uma, podiam ser negócios entabulados ou em execução, concessões, contratos que adulterados, per­ vertidos, engrossados por imaginações delirantes, dariam origem a essas ideas de mais vastos arranjos coloniais; outra, podem ser as com binações co nfusas e mal definidas de interesses políticos que neste momento dividem a Europa, têm nos espíritos receosos e doentes campo para a fácil aceitação de coisas absurdas e são habilmente dirigidas, por meio da mesma perturbação que provocam , a certos resultados internacionais. A primeira causa não existe ou não poderiam os factos reais levar a tais dedu­ ções, visto êsses factos serem correntes nas relações económ icas da Alem anha com os vários Estados, representarem em Portugal muito menor valor que em m uitos outros e não poderem ter pelo seu objecto ou circunstâncias nenhum sign ificado especial. É sabido que a política comercial alemã se baseia no princípio da com pen­ sação, recusando-se aquele país em geral a com prar mais do que vende e anuindo em certos casos a comprar a contra-partida do que vende. Conseguido pelos tra ­ tados de comércio o equilíbrio da balança ou o saldo positivo em relação a deterninado país, o Govêrno alemão consente, à margem dos contingentes fixados, co n ­ tratos de compensação directa entre firmas de uma e outra nação, co ntrato s que, aliás, já gozam de pequeno favor por poderem perturbar a orientação im posta à economia do Reich. Por este motivo e porque não estamos em Portugal organiza­ dos para trabalhar nessa base, os negócios de compensação directa têm represen­ tado uma pequeníssima parte da nossa actividade comercial, e os únicos im po rta n ­ tes que parece terem sido feitos para troca de produtos industriais alem ãis por matérias primas coloniais queixaram-se os interessados alemãis ao Govêrno p o rtu ­ guês de que não foram cumpridos. Mas se o fôssem ou o tivessem sido, nada de extraordinário se poderia ver aí. Como somos um país de liberdade comercial e não temos contingentes de im por­ tação, nem mesmo em relação aos países que os mantêm contra nós, a balança comercial é favorável à Alemanha, funcionando portanto o clearing existente ape­ nas como processo de liquidação e não como lim itativo das im portações alemãs em Portugal. Mas em relação à Alemanha, como em relação à Itália e à França, por exemplo, o (Govêrno português não poderia adm itir a possibilidade do agravam ento indefinido da sua balança, sem procurar obter, por meio de troca directa ou de co n ­ tingentes suplementares, compensações totais ou parciais de im portações mais avultadas, reclamando do Reich a possibilidade de exportar produtos m an u factu ra ­ dos ou matérias primas m etropolitanas ou coloniais de que, segundo é sabido, a Alemanha é um dos mais im portantes mercados. Apesar disso deve dizer-se que o material de aviação com prado na Alemanha, como todo o material de guerra comprado ou ajustado na Inglaterra, na França, na Bélgica, na Suécia ou na Dinamarca, tem sido pago exclusivamente em divisas. 0 que não prometemos é fazer sempre assim no futuro. Seja qual fôr o interêsse que para os dois países tenham co n tra to s de c o m ­ pensação; sejam quais forem as possibilidades das em prêsas alem ãs de re a liza r 288

XXL 0 Su posto A rrendam en to de A ngola à A lem an ha

grandes obras de fom ento no continente ou nas colónias portuguesas onde têm trabalhado e trabalham ao lado de empresas dinamarquesas, holandesas, fra n ­ cesas, italianas ou espanholas; sejam quais forem as possibilidades económ icas que cada um anteveja, sonhos que arquitecte e mesmo as responsabilidades passadas da Alemanha no tocante a projectos sôbre as colónias portuguesas de África, a verdade é que sôbre os factos presentes, ao alcance da observação de todos, não podem enxertar-se a cada passo as atoardas da sua venda ou arren­ damento, tanto mais que se apresentam como exigindo o acordo do Governo português. Mais razoàvelmente filiaríam os tais campanhas no actual estado p olítico da Europa. Só não sei se com elas mais se pretende atingir Portugal se com bater a Alemanha.

Embora isso pese aos admiradores nacionais e estrangeiros do Estado Novo, há ainda por êsse mundo quem nos julgue crivados de dividas, a penhorar as últimas jóias, incapazes de trabalhar, de ordenar, de fazer progredir material e moral­ mente a metrópole ou as colónias. 0 exagêro das nossas queixas, o hipereriticismo dos nossos homens da geração passada, o doentio dizer mal de alguns inte­ lectuais têm alguma culpa; a ingorância alheia deve ficar com a responsabilidade do resto. Não há m uitos dias, a propósito do estabelecimento de alemãis por toda a parte pondo em perigo as com unicações vitais das grandes potências, jornais de grande categoria confundiram as nossas ilhas adjacentes com colónias a frica ­ nas e puseram o generalíssim o Franco desembaraçadamente a dispor, ju n ta ­ mente com as espanholas, das nossas bases atlânticas. Em revista da maior res­ ponsabilidade, dos fin s de Janeiro, o autor de um artigo com largas referências ao nosso arquipélago de Bijagoz «sabia poder afirm ar de fonte segura» um certo número (não de intenções ou de estudos) de obras materiais de grande tômo que as nossas autoridades a viver nos locais indicados não foram ainda capazes de descobrir. 0 desconhecimento das coisas portuguesas está sem dúvida na base da expan­ são de notícias falsas e da credulidade geral; mas quem cria e alimenta os boatos é perfeitamente conhecedor das situações e dos problemas, e sabe como deve actuar. A situação de Portugal na Península hispânica, a sua posição política e moral contra o comunismo, os seus vastos interêsses e direitos coloniais, bem ali­ cerçados e definidos, a maneira como entende conduzir os seus destinos, dão-nos, neste momento preciso, relêvo entre as Potências. E não é que pretenciosamente nos ponhamos em bicos de pés para nos verem; outros se sentem obrigados a atri­ buir-nos im portância real. E por isso alguns nos consideram importunos e in có­ modos, e nos acusam perante o mundo, e nos promoveram a revolta dos marujos, e nos presentearam com explosão de bombas, e maquinam meessantemente con­ tra nós, e sem cessar nos agridem e levantam boatos sôbre as nossas colónias que, 289

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas ♦ 1935 a 1937 a traduzirem a verdade dos factos, só demonstrariam im potência ou insensibili­ dade patriótica. Mas tudo é inútil. Alheios a todos os conluios, não vendemos, não cedemos, não arrendamos, não partilhamos as nossas colónias, com reserva ou sem ela de qual­ quer parcela de soberania nominal para satisfação dos nossos brios patrióticos. Não no-lo permitem as nossas leis constitucionais; e, na ausência dêsses textos, não no-lo permitiria a consciência nacional.

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XXII. PORTUGAL E A GUERRA DE ESPA N H A (,) Tendo aparecido aqui e no estrangeiro notícias que podem induzir em êrro sôbre a atitude de Portugal perante os projectos de fiscalização que abrangeriam as suas fronteiras, esclarece-se: a) 0 Govêrno português não se afastou um momento da posição primitivamente adoptada de não admitir uma fiscalização internacional em território nacional. Essa atitude filia-se: 1.°, na sua oposição de principio a fiscalizações da vida interna do País por organismos internacionais; 2.°, na insuficiência dos processos de fisca­ lização e na consagração oficial da desconfiança na palavra, lealdade e correcção dos Governos, substituídas perante a sociedade internacional pelo testemunho de delegados de organismos internacionais fiscalizadores; 3.°, no temível precedente que constituiria para a liberdade e independência dos pequenos países o estabele­ cimento de comissões fiscalizadoras para responder em vez dêles pelo cumpri­ mento das respectivas leis internas. b) 0 Govêrno não teve necessidade de se opor a qualquer fiscalização dos portos ou costas portugueses, porque nem tal medida foi aventada no plano do «comité», nem, se houvesse passado de ameaça de certa potência com que não temos rela­ ções, semelhante proposta poderia ser discutida com a nossa presença e muito menos tomada com a nossa colaboração. c) Não sendo de modo algum responsável pela situação internacional relativa à guerra civil de Espanha, mas não podendo desconhecer o seu melindre e a neces­ sidade de concorrer para a criação de condições que permitam o cumprimento efectivo do acordo chamado de não-intervenção, o Govêrno, instado por várias potências amigas para as auxiliar, no interêsse comum, a encontrar soluções para as dificuldades que a todos criara aquela nossa recusa, dirigiu um convite ao Govêrno britânico para, por meio de observadores seus, adidos à sua Embaixada ou consulados, ter ocasião de ver o rigoroso cumprimento, por parte de Portugal, das obrigações assumidas quanto ao recrutamento e trânsito de voluntários e expedição de armamento para Espanha. d) Escolheu-se a Inglaterra para tal convite, tendo em vista a atitude tomada pelo Govêrno britânico em face do conflito espanhol, a confiança que merece às

w

Nota oficiosa do M iristério dos Negócios Estrangeiros, publicada nos jornais em 20 de Fevereiro

de 1937.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 potências mais interessadas e as relações de secular aliança existentes entre os dois países. e) 0 convite dirigido ao Govêrno inglês foi levado ao conhecim ento do «comité» de Londres por Lord Plymouth, seu presidente; mas, receando-se que do fa cto nas­ cesse qualquer equívoco, tem sido repetidas vezes precisado não se tra ta r de simples modalidade nova do plano de fiscalização form ulado pelo «comité» e recusado por nós na parte que envolvia o nosso território, mas de espontâneo convite à Nação aliada, assente na disposição em que nos tem os encontrado sempre de cumprir as obrigações assumidas, não se nos dando que se possa observar como as nossas.autoridades, e só elas, executam as leis e vigiam pelo seu cumprimento. f) Nesta orientação nem a competência dos observadores, apesar das facilidades que lhes seriam concedidas, seria igual à prevista no plano do «comité» para os seus fiscais e aceite em princípio pela Inglaterra e pela França para a fiscalização nos respectivos territórios, nem os observadores britânicos poderiam ser consi­ derados delegados dum organismo internacional. g) 0 Govêrno confia em que, sem ser pôsto de lado o princípio fundam ental por que se tem batido, as outras potências façam justiça à nossa boa vontade e se chegue a algum resultado útil. Mas, caso contrário e convencido então de que a sua pre­ sença pode ser irremovível estorvo à unanimidade necessária às resoluções do «comité» de Londres, nenhuma dúvida terá em abandoná-lo.

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X X III. A EM BAIXADA DA COLÓNIA PORTUGUESA NO BRASIL E A NOSSA POLÍTICA E X T E R N A (,) As poucas palavras que hei-de dizer não quis deixá-las à improvisação do momento. Tive receio: sei lá o que ditariam ao coração, em tão solene e grave passagem da nossa história, a saüdação fraterna, o decidido apoio, o grito de orgulho patriótico da coló­ nia portuguesa no Brasil de que vós trouxestes os ecos fiéis e sois aqui autorizados intérpretes. Como faz bem pensar que um milhão de portugueses, em toda a gama possível das situações e da fortuna, iguais porém na origem e no trabalho, se irmanam igualmente, por toda essa boa terra do Brasil, em desinteressada devoção à Pátria que tanto mais parecem amar quanto mais se julgam esquecidos dela e alguma razão se lhes poderia dar nisso - não se queixando do abandono, da vida áspera, do trabalho e da ausência, mas contentes apenas porque vão seguindo de longe, com o olhar, alta no céu, e pura, e brilhante, a estréia de Portugal! Pelo Eminentíssimo Cardeal Patriarca de Lisboa, pelos Comandantes dos nossos barcos de guerra, pelos sábios Professores que visitam o Brasil, humildes mandam-me abraços familiares, lembranças ingénuas, cartas simples em cuja letra se divisa a mão rude mas em cujos dizeres cintila a inteligência prática e em tudo o coração português. Essas inúmeras demonstrações de carinho têm para mim valor pessoal inestimável pelo seu cunho de sentimento e de sinceridade, e bem podia por elas aferir-se o estado de espírito geral. Mas a manifestação de Novembro junto da nossa Embaixada no Rio e o propósito agora realizado de trazer pessoalmente ao Senhor Presidente da República e ao Govêrno a expressão do sentir da colónia é acto cuja transcendência se deve subli­ nhar. Vejo aí firmar-se a solidariedade da raça, estreitar-se a união no terreno patrió­ tico, definir-se o sentimento da comunidade de interêsses, a comunhão de ideal nacio­ nal, a perfeita compreensão de um esforço hercúleo e salvador. M uito significava já que assim fôsse; mas afirmá-lo como tem sido e mais uma vez o é aqui, diante do Govêrno Português e do mundo nem podia ser-nos indiferente nem a ninguém passará despercebido como facto político do maior alcance: somos agora maiores.

De dois factos incontestados e facilmente verificáveis, inacessíveis às confusões das querelas partidárias, se alimenta hoje o legítimo orgulho dos portugueses de

1,1 Discurso proferido no Gabinete do Presidente do Conselho em 15 de Abril de 1937, diante dos comissionados pela colónia portuguesa no Brasil para cumprimentar o Govêrno.

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Discursos

e

Oliveira Salazar Notas Políticas • 1935 a 1937

aquém e de além Atlântico - a valorização interna e externa de Portugal. Trazeis os olhos saüdosos da terra da Pátria que havia de parecer-vos bela ainda que lhe não houvéssemos tocado; mas, morta a saudade, a reflexão e a m em ória do pas­ sado poderão ajudar-vos a fazer as necessárias comparações. No fu n d o trata-se apenas de saber se desde que partistes o povo é mais numeroso, a econom ia mais sólida, a finança mais sã, a instrução mais acessível, a paz social mais firm e, a vida mais saüdável e mais alta, o vínculo nacional mais forte, e se para ta n to em alguma coisa contribuiu a nova concepção da vida política e do Estado de há dez anos a esta parte. Se a vida é mais activa, o trabalho mais produtivo, a terra mais fecunda, a indústria mais próspera, o comércio mais rico, mais intenso o tráfego, mais sólida ou luxuosa a construção, mais barato e fácil o crédito, se numa palavra, se cria maior soma de bens e deles sobra ainda anualmente com que restaurar o passado, alindar o presente, prevenir com capitalizações prudentes o fu tu ro - bem está; e no entanto não é êsse o nosso único nem sequer o nosso mais alto intento. Não nos seduz nem satisfaz a riqueza, nem o luxo da técnica, nem a aparelha­ gem que deminua o homem, nem o delírio da mecânica, nem o colossal, o imenso, o único, a fôrça bruta, se a asa do espírito os não toca e subm ete ao serviço de uma vida cada vez mais bela, mais elevada e nobre. Sem nos distrair da actividade que a todos proporcione maior porção de bens e com êles mais co n fo rto m aterial, o ideal é fugir ao materialismo do tempo: levar a ser mais fecundo o cam po, sem emmudecer nêle as alegres canções das raparigas; tecer o algodão ou a lã no mais moderno tear, sem entrelaçar no fio o ódio de classe nem expulsar da o ficin a ou da fábrica o nosso velho espírito patriarcal. Duma civilização que regressa cientificamente à selva separa-nos sem remissão o espiritualismo - fonte, alma, vida da nossa História. Fugimos a alim entar os pobres de ilusões, mas queremos a todo o transe preservar da onda que cresce no m undo a simplicidade de vida, a pureza dos costumes, a doçura dos sentimentos, o equilíbrio das relações sociais, êsse ar familiar, modesto mas digno da vida portuguesa — e, atra­ vés dessas conquistas ou reconquistas das nossas tradições, a paz social. Em face das terríveis lições a que assistimos, da série de experiências dolorosas feitas por outros mas ao alcance da observação geral, uma só crítica séria poderia ser levantada contra êste pensamento político - que o não é já só e sim vida real­ mente vivida: dissolver-se na amenidade da paz a fôrça necessária à conservação e engrandecimento da Pátria. Pode alguém sustentá-lo? Erguem-se contra o argu­ mento os factos: por esta política se esperou para reorganizar a M arinha de Guerra; por esta política se esperou para ter outra vez Exército e criar a nação armada; a ela se deve a formação dos legionários, os nossos «voluntários da ordem»; a ela o espí­ rito viril que sopra sôbre a mocidade, viveiro de portugueses para serviço da Nação. E ainda pelos mesmos motivos nunca no nosso tempo o Estado foi mais inacessível ás aventuras políticas nem a Nação mais refractária a pressões alheias e a e qu ívo­ cas combinações internacionais. Não menosprezamos pois a fôrça da fôrça, mas queremos ter sem pre por nós a força da razão, pois é sobretudo com a humana linha média das nossas co n ce p 294

XXIII. A Em baixada da Colonia P ortuguesa no B rasil...

ções, a nossa ordem, o nosso equilíbrio, a nossa contribuição para a paz e prospe­ ridade geral, a dignidade da nossa vida pública, a nossa independência mental que tanto no interior como no domínio externo temos servido o interesse da Nação - talvez provocando estranhezas, causando alguns incómodos mas emfim reve­ lando autoridade.

Falamos com inteira franqueza do desconcêrto europeu. Heis-de ver nos países pacifistas prègar-se a guerra santa contra os países de ordem, e os que pretendem evitar lutas entre povos por motivos ideológicos promo­ verem a união das democracias contra as ditaduras. Vereis em nações que blaso­ nam de livres serem negadas liberdades reconhecidas e praticadas nos Estados autoritários; em nome da independência dos Estados admitida a ingerência, na sua vida interna, de organismos revolucionários estrangeiros, e em nome da igualdade dos povos na comunidade internacional ir-se pouco a pouco substituindo à livre associação dos Estados um super-Estado em que por tal caminho se afundará a real independência política dos pequenos países. A Rússia herdou a estréia da França de 89: vai-se curando do comunismo dentro de si própria, assiste ao fracasso do sis­ tema doutrinal em contacto com as realidades da vida, esmaga-o impiedosamente no que teime ainda em viver e aproveita o prestígio da ilusão comunista subsistente no mundo como arma poderosa de domínio internacional; mas os cegos não podem vê-lo. Nações que supõem defender a paz estão deixando a outras o cuidado de defender a autoridade e a ordem; e da necessidade de as estabelecer mesmo no seio daquelas pode nascer a guerra um dia. Todos o temos sentido neste tristíssimo caso de Espanha que a nós mais que a ninguém afecta pela solidariedade de interêsses na Península, pela estreita colabo­ ração dos dois povos na História do mundo, pela ameaça directa, não digo já à nossa estabilidade política mas à independência de Portugal, parte integrante, no plano comunista, das repúblicas soviéticas ibéricas. Só estes motivos e não outros quaisquer - nem simpatias pessoais ou políticas, nem irredutibilidades ideológicas, nem mesmo a aliás monstruosa série de crimes erigidos em processo político — explicam o nosso interêsse, as nossas reservas e aqui e ali aberta discordância do que se tem passado. Não compreendemos as posições que resultaram de vagos sentimentos humani­ tários: tem-nos sido muito difícil admitir tal humanitarismo que deixa matar os vivos para enterrar piedosamente os mortos e se apresta a auxiliar a reconstrução de catedrais que mais fácil fôra não deixar destruir. Não compreendemos as posi­ ções que resultaram do princípio de não-intervenção, com o qual não só se chegou à maior intervenção nos negócios de Espanha de que, afora as invasões napoleóni­ cas, temos memória, mas se pensou poder também intervir nos negócios de outros países, estranhos ao conflito. Não compreendemos as posições que resultaram de um conceito limitado e nacional da guerra de Espanha que desde o comêço assina-

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 lámos pela origem, interêsses atingidos e âm bito ideológico com o nitidam ente internacional e, embora êste conceito tenha já penetrado no espírito de todos, de se pretender que não seja o que é, vêm as sucessivas desilusões dos que teim am em fechar os olhos. Não compreendemos as posições que derivam do ju íz o acerca da legitimidade de um governo só pela histórica sucessão de governantes - o que poderíamos chamar a acção da inércia nas relações internacionais — sem exigências de poder real, de ou bem público, ou de vontade nacional, pois se o reconhecem deveriam apoiá-lo e se o apoiam faltam aos compromissos internacionais. E no entanto, se a maior parte dos homens não preferisse à realidade as ficções, todos haviam de ver o que desde princípio foi evidente ao nosso espírito: à Espanha e a toda a Europa ocidental sem nenhuma excepção só uma coisa teria convindo — a vitó­ ria nacionalista sem qualquer apoio externo a vencedores ou vencidos, e seguida daquele govêrno nacional, forte e largamente generoso, tão necessário a estabelecer a ordem e a cicatrizar as fendas no corpo retalhado da nobre nação espanhola. M as esta verdade transparente, luminosa, só será infelizmente partilhada, como outras, quando seja muito tarde para emendar os erros cometidos. Tudo temos afirmado singelamente, sem pretensões mas com firm eza, co n tin u ­ ando aliás a cumprir com lealdade os compromissos tom ados até ao m om ento em que já não seja possível acreditar na mentira. Ninguém supõe que se possa ir mais além, porque, para nós, acima de quaisquer outros interêsses, está a vida e a inde­ pendência da Nação portuguesa, ligada por sua essência e história à civilização o ci­ dental que igualmente nos cumpre defender.

Temos pois que, independentemente da guerra de Espanha em que mais vasto conflito pode ser enxertado - e são dignos do maior louvor os esforços do Govêrno inglês para o evitar —, por via de lamentáveis confusões e da loucura revolu cion á­ ria que agita o mundo, uma violenta luta está desenhada ou mais concretam ente travada já entre as forças da ordem e as da desordem, entre a nação e o in te rn acio­ nalismo, entre o comunismo e a civilização. Os povos europeus e asiáticos vão uns após outros definindo atitudes; na América do Sul o Brasil e outros grandes Estados pressentiram igualmente o perigo e tomam posições. Sabe-se o que som os e onde estamos, e enquanto o céu se turva de ameaças, não só pela bôca e pela pena de brilhantes espíritos brasileitos se manifesta comovente solidariedade com Portugal, mas a colónia portuguesa sente o dever de afirm ar-nos solenem ente a sua presença e a sua confiança. Ela não espera certamente que um homem cônscio das respon­ sabilidades e com algum conhecim ento das circunstâncias lhe envie resposta d ife ­ rente da que se contém nestas palavras: - Hoje, mais que nunca, Portugal conta com todos os seus filhos.

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XXIV. RETIRADA DOS VOLUNTÁRIOS ESTRANGEIROS (Nota do Govêmo Português de 20 de Maio de 1937) (1) O Govêmo português prestou cuidadosa atenção ao conteúdo da Memória do Embaixador de Sua Majestade Britânica de 18 do corrente, em que é proposto ao Govêrno da República, em nome do Govêrno de Sua Majestade, que se associe a outros Governos para uma diligência junto das partes em luta em Espanha no sentido de suspenderem as hostilidades em todas as frentes pelo tempo necessário para que se possa levar a efeito a retirada dos voluntários estrangeiros do território espanhol. Com a mesma leal franqueza com que tem procurado sempre levar ao conheci­ mento do Govêrno britânico a maneira de ver da chancelaria portuguesa nas ques­ tões de Espanha, o Govêrno da República deseja expor em poucas palavras as con­ siderações que aquela proposta lhe sugere. Elas são de duas ordens - as relativas a questões de fundo, e as de carácter polí­ tico e de oportunidade. A questão da retirada dos voluntários estrangeiros das frentes espanholas tem sido desde há muito objecto de discussão no «comité» de Londres e no «sub-comité» por êle designado, e está presentemente ali em estudo com a concordância dos Govêrnos não intervencionistas. Afigura-se ao Govêrno português injustificável e gravemente desprestigioso para o organismo de Londres que, sem consulta ao «comité», os Governos pratiquem por fora déle diligências ostensivas concernentes às mesmas matérias que lhe estão afectas. Foi esta já uma das considerações apre­ sentadas pelo Govêrno português por ocasião de anterior proposta de mediação por parte do Govêrno de Sua Majestade. No caso presente o Govêrno português ainda menos justificável julga a diligên­ cia proposta, pois ela tende a assegurar a execução de medida dependente de um plano em estudo cuja essência é ainda desconhecida e afinal dependente da futura aprovação dos Governos. Antes de pretender executar a retirada dos voluntários é logicamente necessário saber qual o plano que para êsse fim será adoptado e se os Governos e as Partes em luta lhe dão o seu assentimento. Quanto à oportunidade e ao aspecto político da diligência proposta, o Govêrno português não pode deixar de ponderar ao Govêrno britânico que a coincidência da diligência sugerida com uma operação militar de envergadura que se está desenvol­ vendo com êxito para um dos contendores, se presta à interpretação por parte de um ou outro de haver na diligência projectada objectivo totalmente diferente do

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Ver a nota 1 do n.° XVIII.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 que se invoca para a levar a cabo - qual seria o de evitar o seguim ento até fin a l da operação iniciada e a superioridade de situação m ilitar daí resultante. 0 Governo português mantém o ponto de vista mais de uma vez expresso de que a perfeita imparcialidade de facto e na aparência é condição essencial para o êxito de qualquer diligência colectiva, como considera que nenhuma diligência desta natu­ reza deverá ser tentada sem se encontrarem realizadas na situação m ilitar geral con ­ dições que tomem aquela, senão desejada, ao menos aceitável. O m alogro de dili­ gências como as agora sugeridas, mais do que responsabilidade para aquele dos contendores que não a acolhesse favoràvelmente, seria causa de desprestígio e des­ confiança em relação às Potências que inútilmente as praticassem. São estas as razões por que o Govêrno português julga não poder associar-se neste momento à diligência sugerida na Memória de 18 do corrente.

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XXV. 0 INQUÉRITO À DESTRUiÇÃO DE GUERNICA (Nota do Governo Português de 21 de Maio de 1937)

(1)

Por mais de uma vez e ainda ontem a propósito de diligências propostas pelo Govêrno britânico para serem efectuadas junto das partes em luta em Espanha, o Governo português expôs ao de Sua Majestade a sua maneira de ver sobre a neces­ sidade de quaisquer apelos humanitários serem de facto e na aparência inspirados por grande espírito de imparcialidade para poderem ser bem acolhidos das duas partes em luta. Por muita isenção que tenha existido nas sugestões até agora fei­ tas para suspensão ou humanização da guerra, todas têm infelizmente coincidido com operações militares que parecem dar decidida vantagem a um dos combaten­ tes e, o que é para lamentar, com violentas e generalizadas campanhas de imprensa contra o mesmo combatente, em alguns países. Seria difícil que para êle não fos­ sem suspeitas de parcialidade a favor do seu adversário as diligências praticadas em tais momentos. Parece ao Govêrno português que a proposta emanada do chamado Govêrno vasco, e constante da Memória do Embaixador de Sua Majestade Britânica, de 17 do corrente, para um inquérito à destruição de Guernica, não pode deixar de ser considerada pelo Govêrno do general Franco como fortemente inquinada daquele espírito, por isso mesmo que provém do seu adversário, e também pelo momento em que aparece. Têm sido tantos os factos de destruição praticados durante a guerra em Espa­ nha, tão numerosos, mais ainda do que nos campos de batalha, os atentados nas cidades, vilas e aldeias fora das zonas das operações contra vidas e bens dos parti­ culares, sem que qualquer acção colectiva internacional viesse condená-los, que difícil seria explicar o interêsse especial inspirado pelo caso de Guernica até ao ponto de se propor um inquérito internacional sôbre êle. Demais estando situada Guernica em zona de operações de guerra neste momento muito activas, e não podendo realizar-se ali qualquer inquérito sem assentimento do general Franco que por aquele motivo não poderia dá-lo, o pedido do Govêrno vasco só teria como objectivo obter uma negativa e aproveitá-la para especulações que não nos inte­ ressam e para que não podemos contribuir. Acresce que ao Govêrno português se afigura pouco em harmonia com os prin­ cípios repetidamente afirmados de não-intervenção uma proposta para inquérito

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Ver a nota 1 do n.° XVIII.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 internacional em território espanhol por Potências que, não sendo partes na luta, também não têm títulos para nela serem juízes. 0 Govêrno português não julga portanto oportuna a iniciativa do chamado Govêrno vasco, e entende que só lhe poderia ser dado seguim ento, se o inquérito proposto fôsse admitido e realizável em relação a todos os sofrim entos a que têm estado injustamente sujeitas as populações pacíficas espanholas. M as isso, care­ cendo de base na posição jurídica em que em relação à guerra se colocaram as nações não-intervencionistas, é na opinião do Govêrno português ainda mais falto de possibilidades de realização.

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X X V I. SÔBRE A LEGIÃO E A MOCIDADE (Palavras pa ra o «D iário de Noticias») (1)

Duas espécies de pessoas se hão-de ter enganado ao presenciar o desfile: os ten­ tados a reduzir a vibração do povo ao contágio da ternura familiar de quem lá tinha os seus a caminho do futuro ou ao serviço da Pátria e os que sorriram de incredu­ lidade julgando ter visto tudo. O que vimos representa, sem dúvida, ilimitada dedicação, grandes sacrificios pessoais, patriotismo do melhor, um milagre de esforço, mas trabalho apenas de escassos meses - e por isso foi apenas, em toda a sua beleza, pálida amostra do que há-de ser, quando a M ocidade enquadrar toda a juventude portuguesa e a Legião conseguir afeiçoar toda a Nação ao serviço das armas. 0 País sente no íntimo da sua alma o valor moral da obra empreendida; um sópro heróico o fez vibrar: mostrámos-lhe o bastante para compreender não haver já entre nós lugar nem para os tímidos nem para os cépticos. (Palavras pa ra * 0 S écu lo »)í2)

Reservámos para a Mocidade Portuguesa e para a Legião as festivas comemora­ ções do ano XI da Revolução nacional, precisamente o primeiro dêste novo ciclo de dez anos que eu disse já haver de representar na História Pátria uma era de engrandeci­ mento. 0 nosso intuito com o desfile de ontem foi mostrar com que sentimentos, vir­ tudes, sacrifícios e esperanças contamos criar a nova era, escrever a nova História e erguer Portugal à altura do nosso patriotismo. Sinto que o País compreendeu êsse pensamento; adoptou-o como filho do seu entusiasmo: já nada pode contrariar e muito menos destruir a obra que é ao mesmo tempo penhor da sua salvação e base da sua grandeza.

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Publicada em 29 de Maio de 1937, no dia seguinte ao da primeira parada e apresentação oficial

da Legião e da Mocidade Portuguesa. w

Veja a nota anterior.

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X X V II. PORTUGAL, A ALIANÇA INGLESA E A GUERRA DE ESPA N H A (1) Senhores M inistro da M arinha e Sub-Secretário de Estado do Guerra, Senhores Generais e Almirantes, Senhores Oficiais de Terra e Mar: Recolho no fundo da alma esta manifestação - o vosso protesto indignado, os vossos cumprimentos, a vossa simpatia e apoio. Daqui a pouco vereis porque lhes dou, independentemente das vossas pessoas e da vossa categoria, lugar especial entre as mil provas, bem significativas e comoventes, que tenho recebido. Nem todos os dias se escapa de um atentado que a inteligência do mal tanto se esmerou em conceber e fazer executar; mas é também certo que a explosão de uma bomba não é suficiente para arrombar um portal da História. Seria antipático e incle­ mente para os hábitos da minha modesta existência ter-me poupado a vida para me sujeitar aos tratos da glória... E nenhuma outra impressão me ficou: nem receio - instintivamente me recuso a crer sejam para mim as liquidações sumárias - nem desânimo, nem ódio, nem sequer o amargo travor que dizem ser o da ingratidão, pois estou bem pago de tudo. Mas eu não posso fugir a examinar, até à descoberta das causas, os factos de algum relêvo e sobretudo os que possam ter repercussões de importância na vida nacional. Vós sabeis que êste regime a que ainda hoje chamam Ditadura, e agora carregado com o apôdo de fascista, é brando como os nossos costumes, modesto como a própria vida da Nação, amigo do trabalho e do povo. Não há agitação superficial ou profunda, nem divisões das classes, nem ódios irreprimíveis na grande massa, irmanada hoje na aspiração suprema do engrandecimento nacional. Mas se não vemos causas internas, vemo-las de sobejo na atmosfera internacional, sobre­ excitada, carregada de sistemas de ideas que são sistemas de crimes - e a nossa ati­ tude tem sido sempre chamá-los pelo seu nome. Aqui dentro, influenciando mesmo, por vezes, pessoas dedicadas, nós temos seguido campanhas que se erguem de todos os lados do horizonte, nascidas da perturbação mental e moral da Europa a que não podemos ser estranhos e algumas das quais nem sempre podemos tratar pela delicadeza das questões e a natureza dos documentos com fôrça para escla­ recê-las. É o momento de até onde o permita a prudência, mas dentro da estrita verdade dos factos, encarar de frente alguns aspectos.

1,1 Discurso proferido na Sala dos Passos Perdidos da Assemblea Nacional, em 6 de Julho de 1937, ao agradecer aos oficiais de terra e mar os seus cumprimentos pelo malogro do atentado de 4.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 Nós não vamos ser exagerados - não vamos supor que m uito longe, em qualquer grande império, um chefe supremo se entretenha a fazer listas de pessoas que por êsse mundo hão-de ser sacrificadas a uma doentia volúpia sangüinária, ao deus terrível da revolução mundial. Mas deve pensar-se que, ao passo que trabalham dispersas as for­ ças da ordem, há entendimento tácito ou expresso de todos os elementos empenhados na desordem. Um sentimento comum os irmana, quando não é a mesma inteligência que os dirige; e daqui vem que tudo em toda a parte é nesse ponto igual. Os factos a que assistimos, mesmo confinados nas fronteiras de cada Estado, são supra-nacionais; como acima das Nações estão os vastos interêsses em jôgo — ideológicos ou políticos. Nós temos crido que se arrisca na batalha a própria civilização do ocidente. Infelizmente, e porque isso serviria o interesse do inimigo, toda a p olítica externa do Governo e designadamente a aliança inglesa tem sido objecto de incom preen­ sões e mal-entendidos, como se julgássemos a Inglaterra protectora do com unism o ou nos fôsse necessário procurar novas alianças para nos oporm os à encorporação de Portugal na Federação das Repúblicas Soviéticas Ibéricas. Isso me força, porém, a precisar o meu pensamento nessa matéria.

A Revolução de 26 encontrou a vida do País dominada por três conceitos funda­ mentais - um financeiro, outro económico, outro ainda político. Cham em os-lhes os postulados da inércia ou decadência nacional. Quando tomei conta da pasta das Finanças era ainda ponto de fé que a vida financeira do País devia eternamente oscilar entre o d é ficit e a bancarrota. Houve dificuldade em convencer a Nação de que lhe era possível e relativam ente fácil equi­ librar as contas, ter saldos, dispensar o recurso aflitivo ao empréstimo, pagar honra­ damente as suas dívidas. Fez-se a prova; fez-se a contraprova de uma crise que aba­ lou os mais fortes edifícios e as nossas finanças resistiram heroicamente. 0 primeiro postulado morreu. Era igualmente de fé que o País vivia económicamente da exportação de emigran­ tes e do ouro do Brasil. Teimei que não era exacto e que os nossos recursos, aprovei­ tados por um trabalho ordenado e intenso, deviam dar-nos para que nos bastássemos modestamente. Fez-se a prova; fez-se a contraprova: a grande Nação brasileira é sujeita a urna das suas maiores crises, proíbe a entrada de emigrantes - também inibi­ dos de procurar trabalho na América do Norte - e quási paralisa as transferências para o estrangeiro com fins não comerciais. Perdem-se milhões, não se aproveitam rendi­ mentos auferidos em vários países, e a população portuguesa pôde viver, e a balança de contas é positiva, e sobem no mesmo período as reservas de ouro do País. Creio que esta experiência enterrou bem fundo o falso postulado da nossa vida económica. Politicamente o nosso século XIX viveu de outro postulado - Portugal mantém a sua independência devido a rivalidades das nações da Europa. (De vez em quando elevamos a divisa nacional as frases desoladas de um poeta). Sem força, sem dinheiro, sem missão específica no concêrto das nações, não se via razão de ser na 304

XXVII. Portugal, a Aliança Inglesa... autonomia nacional: Portugal arrastava por benefício de rivalidades alheias o peso da sua independência. Logicamente a actividade externa se devia reduzir è aliança inglesa e a aliança ao simples protectorado da nossa fraqueza medular. Não podia ser verdade, mas, se por desgraça o fôsse ou tivesse sido, está vedado a um homem de Governo partir de uma idea suicida. Com as luzes dos meus modestos conhecimentos de finanças e de economia eu havia podido chegar, como aliás outros, a descobrir a falsidade dos postulados financeiro e económico; agora, meditando os tratados, apreciando as circunstân­ cias, lendo a História, aprendendo a conhecer as qualidades do povo inglês, os tex­ tos que exprimem as relações, as discussões ou discordâncias incidentais, tenho sido levado a verificar o êrro histórico daquele último postulado e, em qualquer caso, o seu êrro político. E vem daí a nova orientação.

0 pesado esforço de ordenar e reorganizar a vida pública e privada, a cultura do sentimento nacionalista, o sucessivo fortalecimento de todas as posições, têm o objectivo de desfazer em nós o pessimismo, a desconfiança, o receio de viver, criar a alegria, a virilidade, a fé, despertar a consciência nacional até nem sequer aceitar a discussão do valor da nossa existência independente. Paralelamente lá fora se criará a mesma noção: ela é condição indispensável da nossa vida e progresso. Êste trabalho sôbre o corpo e a alma da Nação é acompanhado por um elemento de política externa do mais alto valor — a secular amizade e aliança com a Ingla­ terra: muito do que se fez e se projecta tem a finalidade precisa de a valorizar. Ora de vez em quando em Inglaterra, pessoas de certo sem grande responsabili­ dade, irritadas pela nossa atitude noutros campos, têm pôsto, e recentemente com alguma freqüência, acima dos grandes interesses nacionais ou internacionais as suas paixões ou ressentimentos e convidam o Govêrno inglês a rever o problema da sua aliança com Portugal. Suponho efectivamente que, pelo lado inglês, a aliança deve ser revista, mas quando findar o Império britânico e um cataclismo tenha feito perder à Inglaterra a sua natureza insular. Os argumentos clássicos de defesa da aliança luso-britânica não foram apresen­ tados por escritores portugueses; são ainda hoje 1. Por estranho que pareça, dada a evidência dos factos, ainda aparecem de tem­ pos a tempos os inimigos da actual situação política a contestar o valor e a verdade da obra de regeneração financeira que em Portugal se vem operando desde 1928. Não faltam dados suficientes para aquilatar o valor das criticas feitas, mas por­ que a muitos se afigura pesada e monótona a leitura das contas e relatórios oficiais e a alguns amadores da leveza e da amenidade poderá — até inconscientemente — parecer mais sugestiva a simplicidade fácil de financeiros improvisados, é conve­ niente mais urna vez fazer notar os absurdos em que se traduz a argumentação dos críticos e a mentira que se esconde por trás da sua aparente evidencia. Não podemos deter-nos a analisar os seus conceitos sobre a divida pública, em que avulta a repetição da já tão conhecida teoría segundo a qual a alta cotação dos títulos - em que qualquer veria apenas afirmação inequívoca do firme critério do Estado - representa aumento da divida, visto que, quanto mais baixa fôr a cotação, mais fácil e económicamente se poderá amortizar por compra no mercado. Nada mais simples, pois, que deminuir ou extinguir a divida pública: bastará fazer baixar a zero a cotação dos títulos, e bastará para tanto não pagar. E não seria a primeira vez entre nós, e não seríamos nós os primeiros; só é pena que por contradição das coisas ou vingança da moral o método se tenha revelado de tão barato demasiada­ mente caro. . Mais urna vez se socorrem os críticos de dados colhidos no Anuário Estatístico da Sociedade das Nações, e embora o Pais já tenha sido elucidado sobre o valor da arrumação de números ali feita, o argumento, dada a categoria oficial do organismo de que provém, não deixará de perturbar alguns daqueles que têm sincero desejo de conhecer a verdade. Mostremo-lha, pois. 2. Tem o País vivido na convicção de que os seus orçamentos e as suas contas estão equilibrados desde 1928-1929; tem-se regozijado ao ver que os resultados expressos nas contas excedem sempre os previstos no orçamento, o que revela a prudência com que éste é elaborado e o rigor com que se executa. Pois a essa con­ vicção corresponderia — e confirmada pela autoridade oficial da Sociedade das0 1

01 Nota oficiosa do Ministro das Finanças publicada nos jornais de 5 de Fevereiro de 1936. Teve a colaboração do Sub-Secretário de Estado das Finanças, Doutor Costa Leite.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 Nações - esta dura realidade: os d éficits das contas de 1932-1933 e de 1933-1934 elevam-se, respectivamente, a 4:000 e 71:000 contos, e o d é fic it do orçam ento de 1934-1935 a 260.000! 3. Os dados estatísticos da Sociedade das Nações baseiam-se, com o não podia deixar de ser, nos nossos docum entos oficiais e, portanto, a diferença dos resulta­ dos reflecte apenas diversidade de critérios na sua classificação e apreciação. Os números da Sociedade das Nações, em que tanto insistem os fin an ceiros sau­ dosos da administração anterior ao 28 de Maio, são os seguintes (em contos):

193219331934-

1933 (contas) 1934 (contas) 1935 (orçam.),

Receitas

Despesas

Déficits

1.953:200 2.015:000 1 916:000

1.957:200 2.086.000 2.176:000

4:000 71:000 260:000

Os resultados oficiais portugueses são pelo contrário:

193219331934-

1933 (contas) 1934 (contas) 1935 (orçam.),

Receitas

Despesas

Saldo

2.040:000 2.217:000 2.177:600

1.957:000 2.087:000 2.176:100

83:000 130:000 1:500

¿De onde vem a diferença? 0 Anuário Estatístico da Sociedade das Nações inclue nas despesas todas as des­ pesas, tanto ordinárias como extraordinárias, ao passo que exclue das receitas as p ro­ venientes de empréstimos, que são quási todas as extraordinárias: ao alto das colunas que se lhes referem está claramente escrito - Recettes (non com pris emprunts) e Dépenses. No critério adoptado em Portugal, como em todos os países, o produto dos empréstimos é considerado receita extraordinária. Nos elementos reproduzidos acima vê-se coincidirem rigorosamente as despesas e, quanto às receitas, abatendo os empréstimos segundo os nossos números, obtêm-se os números do Anuário. 4. ¿Que defesa tem o critério do Anuário da Sociedade das Nações à face dos princípios da Ciência das Finanças? Ver-se-á que nenhuma. Têm os Estados despesas ordinárias e extraordinárias, que finan ceiram en te se distinguem pelo seu carácter normal ou transitório na adm inistração do Estado. Sob o ponto de vista da sua natureza económ ica (e salvos os casos derivados de eventos extraordinários, com o grandes sinistros, guerra, alterações de ordem pública, etc.), as despesas ordinárias representam actos de consum o público na satisfação das diversas necessidades colectivas, e as extraordinárias investim entos de capitais na criação da utensilagem nacional, isto é, na criação de bens e u tilid a ­ des que, pela sua natureza e duração, significam não satisfações m om entâneas e repetidas de necessidades permanentes, mas uma satisfação antecipada de neces­ sidades, que se vai tornando efectiva pelo uso continuado — por m uitas gerações —

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XXXIII. Os Orçamentos e as Contas Públicas... dessas utilidades e bens: a construção de portos, de vias de comunicação, de edifi­ cios, de obras de hidráulica... Ninguém pretenderá que na economia do Estado a criação desses bens se faça sem recurso ao crédito. Para o conseguir só três caminhos poderiam tentar-se: a) Ou o Estado limitava o ritmo da criação de tais bens, fazendo-a por parcelas à medida que os seus rendimentos ordinários o permitissem, o que retardaria a satisfação de necessidades essenciais por forma incompatível com os interesses colectivos, visto que grande parte dessas necessidades ficariam longo tempo insatisfeitas, quando o progresso das nações as faz constantemente aumentar; b) Ou ia acumulando saldos sobre saldos até juntar o indispensável para os adqui­ rir, o que, além de agravar aquele inconveniente, levantaria o natural reparo contra exigências tributárias cuja utilidade ninguém veria ¡mediatamente ou em futuro próximo; c) Ou procurava criar desde longo a receita definitiva indispensável, o que poderia não se conter, e geralmente se não contém, na capacidade tributária da Nação. Por isso mesmo, um único meio têm os Estados de satisfazer tais necessidades, sobretudo quando o ritmo acelerado do progresso ou a herança de um passado de estagnação aumenta o seu volume: recorrer ao mercado de capitais, realizando operações de crédito que são apenas a antecipação de futuros rendimentos, natu­ ralmente aumentados pela produtividade dos investimentos a fazer. É essa a justi­ ficação económica do crédito público, cuja legitimidade, quando utilizado nestes limites, nunca ninguém, nem mesmo os técnicos financeiros da Sociedade das Nações, que bastas vezes têm aconselhado empréstimos para fins menos defensá­ veis, se lembrou de contestar. Pois bem: sendo regra fundamental da boa administração financeira o equilíbrio dos orçamentos e das contas, o critério estatístico dos peritos de Genebra leva logi­ camente a estas conclusões: 1. a Só os países que não podem - ou por falta de crédito ou por pobreza irremediá­ vel - recorrer ao empréstimo, e que portanto têm que limitar-se a viver dia a dia satis­ fazendo com as receitas ordinárias as suas necessidades normais, quere dizer, os países a quem está fechado o caminho do progresso, podem ter orçamentos equilibrados; 2. a 0 empréstimo não é uma operação financeira legítima; 3. a Um empréstimo emitido para conversão, quere dizer, para substituir outro de encargos mais elevados, terá, sôbre o equilíbrio orçamental, estes efeitos bizarros; não agravará a dívida (o que, segundo o critério de Genebra, significa, que não houve alteração daquele equilíbrio), mas porque é um empréstimo novo, será só por si a expressão de um dé ficit Conseqüências absurdas - princípios falsos. 337

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 5. Mas há mais: o critério da Sociedade das Nações é puram ente form al. Limi­ tam -se os técnicos da secção financeira a procurar nos orçam entos dos diversos Estados o m ontante das receitas (deduzidos os empréstimos) e o das despesas totais, e a fazer a comparação simples daqueles números. Dêste modo, basta que um Estado, mesmo com largos e ilegítim os recursos ao crédito, inscreva o produto dos seus empréstimos em orçam ento especial e faça figu rar nas despesas dêste orça­ mento as suas despesas extraordinárias e até as ordinárias que não caibam no lugar que lhes é próprio, para que o vejamos incluído no número dos felizes possuidores de um orçamento em equilíbrio. Não é preciso dizer mais para deixar demonstrada a falibilidade de tal método de contabilização. Um exemplo frisante, sem form ularm os qualquer ju ízo sôbre a perfeita legitim i­ dade do recurso ao crédito: Sabe-se do esforço financeiro da Grã-Bretanha para reconquistar nestes ú lti­ mos anos o seu tradicional equilíbrio financeiro. 0 A n uário da Sociedade das Nações parece reconhecê-lo nos seguintes números: 1933-1934 Saldo 1934-1935 Saldo 1935-1936 Saldo

30,2 7,5 0,5

m ilhões de libras » » » m ilhão

»

»

Simplesmente o mesmo Anuário presta a seguir estes esclarecim entos: n ão com ­ preendidas as despesas de ca p ita l cobertas pelo p rodu to de em préstim os. Por acaso em 1933-1934 estas últimas cabiam no saldo, mas, se não coubessem, o resultado inscrito no Anuário seria o mesmo. Idênticas observações se lêem relativam ente a outros países. Entre nós porém segue-se rigorosamente a regra da unidade orçam ental, e, por isso, todas as recei­ tas e despesas, ordinárias e extraordinárias, se inscrevem no O rçam ento Geral do Estado. Entre renunciar ao seu sistema rígido de verdade fin an ce ira para prestar homenagem a critérios alheios ou manter-se dentro dos p rin cípios in d iscu tid o s que pôs na base da sua regeneração à custa de um fácil lugar nas e sta tística s de Gene­ bra, o nosso País opta pela segunda alternativa, lam entando aliás e n con tra r no seu caminho só inim igos que não sabem ler o Anuário da Sociedade das Nações. 6 6. Mas, se não se ju stifica o critério do «Comité» Financeiro da Sociedade das Nações, há-de ter, pelo menos, uma explicação. Tem e já foi dada em nota oficiosa de 14 de Outubro de 1933. Se a legitimidade do empréstimo depende, como foi dito, da sua aplicação, o Anuá­ rio Estatístico da Sociedade das Nações, ao pretender exprim ir com os seus núm e­ ros a situação financeira dos diversos Estados, tinha de entrar numa melindrosa análise. Tinha de descer à minúcia dos números, de averiguar a aplicação dos empréstimos, para só considerar legítim os os que se contivessem dentro do m on­ tante das despesas extraordinárias, legítim am ente classificadas com o ca p ita liza ­ ções colectivas. 33 8

XXXIII. Os Orçamentos e as Contas Públicas... Mas essa análise era difícil e ingrata: a secção financeira já não faria só estatís­ tica, faria crítica administrativa e não se sabe se países com pêso suficiente na Sociedade das Nações lho permitiriam. Assim, ninguém tem razão de queixa: o critério é igual para todos, embora para todos igualmente errado. Outra explicação pode aventar-se ainda: a soma dos «déficits» daquele modo calculados dá ¡mediatamente o montante total do recurso ao crédito por parte dos Estados em cada ano. Verdade seja que o mesmo resultado se obteria destacando dos orçamentos as receitas provenientes de empréstimos. 0 trabalho não seria muito maior e haveria mais rigor nos números oficiais da Sociedade. 7. Para terminar, convém ver rapidamente se em Portugal as receitas provenien­ tes dos empréstimos se contêm, nos anos citados, dentro das despesas extraordiná­ rias de fomento. Estão patentes a todos números pormenorizados que esclarecem completamente o assunto: (Contos) 1 9 3 2 -3 3

1 9 3 3 -3 4

1 9 3 4 -3 5 (Orçamento)

Produto de empréstimos Despesas extraordinárias de fomento

7 5 :1 8 6

6 9 :5 1 4

1 6 0 :0 0 0

9 8 :9 1 9

7 8 :8 2 0

1 8 8 :4 8 0

Não se compreendem nestes números, nem nos empréstimos nem nas despesas, as despesas de fomento custeadas pelas receitas ordinárias, designadamente as ver­ bas destinadas a construções de edifícios do Estado, as despesas que se fizeram e hão-de fazer por conta dos saldos dos anos anteriores, no valor anual de muitas dezenas de milhares de contos. Não são abrangidas ainda as despesas com a recons­ trução da marinha de guerra e aviação naval, em que já se gastaram, sem recurso ao empréstimo, cêrca de 400 mil contos. 8. Mas a adoptarem cegamente, como têm feito, o critério da Sociedade das Nações, não precisarão os nosso inimigos de esperar pelo Anuário para verem a irre­ mediável sucessão dos nossos «déficits»: foi aprovada pela Assemblea Nacional a lei n.° 1:914, prevendo um plano de reconstituição económica com a despesa total de 6.500:000 contos, a realizar em 15 anos, dos quais 2.000:000, pelo menos, serão cobertos por empréstimo. Desde já se pode anunciar, portanto, que os «déficits» acumulados nos 15 anos que vão seguir-se somarão, pelo menos, 2.000:000 de con­ tos. Que horror!9 9. A doutrina da nota oficiosa de 14 de Outubro de 1933 foi levada até ao Con­ selho da Sociedade das Nações pelo nosso representante junto daquele organismo. Tanto o Director da secção financeira, como o autor do Anuário reconheceram a exactidão dos nossos pontos de vista, e, considerando o orçamento português um 339

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1935 a 1937 orçam ento modelar, consideram ao mesmo tempo Portugal um dos países mais bem adm inistrados do mundo. Dá-se o caso de o Director da secção financeira ter sido o secretário da com is­ são financeira que veio a Portugal em 1927, para estudar a nossa situação. Como conheceu o passado, admira mais que os outros o presente, e para poder estudar melhor o caso in loco o Governo convidou-o a visitar Portugal, bem com o ao Autor do Anuário. Espero que venham breve; verão tudo o que quiserem ver, e aí os terão os nossos críticos para os esclarecerem devidamente sôbre a calam idade nacional que tem sido esta administração de há oito anos para cá. M as vejam os críticos se estudam mais alguma coisa, senão é uma vergonha para todos nós...

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DISCURSOS

E

NOTAS

POLÍTICAS

19 3 8A 19 43 2.aedição, revista

Duas Palavras a Servir de Prefácio Como sou dos chefes de governo que menos falam, levo tempo a arranjar maté­ ria para um livro de Discursos. Este é o terceiro em quinze anos, à média de um volume por cada cinco anos de governo. Bem vistas as coisas, isto não é virtude mas defeito de que só me não curo por não poder. Será muito difícil que alguém tenha para cada dia ideias originais ou definitivas, planos ou comentários de interesse a que valha a pena dar alguma vida com fixá-los na escrita. Mas, dado que todos os regimes, embora o não pareçam, são hoje em maior ou menor grau regimes de opinião, mais assíduo contacto com o País, clareando a atmos­ fera política, só facilitaría a missão governativa: o essencial é saber avançar entre aque­ les extremos em que política e governo se excluem ou repelem. Atendendo à origem e natureza destes trabalhos, nunca se pode saber se a série há-de continuar ou terminará por aqui. Ainda que estivesse certo da última hipó­ tese, que aliás só em pequena parte está nas minhas mãos, não desejaria dar a estas palavras o ar pretencioso de testamento político ou solenidade parecida. Verdade é porém revelar a leitura do que em momentos sucessivos e já recuados entendi dever dizer, embora imposto por circunstâncias acidentais, que tudo foi suficientemente reflectido e sincero para a meus olhos não ter que ser alterado nem poder ser des­ mentido. Por outro lado, à medida que o tempo avança, trazendo consigo o por si só o irremediável duma tarefa que finda, apenas interessa, no governo e no Pais o essencial e o permanente, o isso é redutível a bem pouco. Não sou dos que julgam que há uma verdade política; mas firmemente creio que há verdades políticas tão exactamente demonstradas pela razão e pela experiência como conclusões das ciências positivas. Os que julgam possuir o verdade na política e governo dos povos vão desgraçá-los com a imposição, até onde puderem, do seu elixir universal; os que não creem nas verdades políticas pouco se lhes dá dos regi­ mes e dos sistemas, mudarão ao menor sopro as instituições dos países, dispor-se-ão a sacrificar com elas as garantias da sua própria segurança e vida colectiva, sem ver que há por vezes aí tentativas e manifestações... de dominio do exterior. Eis porque, sem esquecer a História com seu mostruário de instituições políticas que morreram, se revezaram ou rejuvenesceram, nem supor que se cria agora, para a eternidade e tudo se conservará imutável no tempo, o que sèriamente me preo­ cupa é saber se, sim ou não, têm sido focados os problemas centrais da comunidade nacional e se, através de reformas de toda a ordem, e à frente as das instituições políticas, se tiveram presentes as verdadeiras necessidades e possibilidades da Nação portuguesa. 343

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 Que isso tenha sido percebido e devidam ente apreciado pela generalidade dos contem porâneos não interessa senão ao m om ento p o lítico e em certa medida, pela calma da consciência pública e a tranquilidade que cerca o trabalh o de governo. 0 que acima de tudo im porta é que se tenha encontrado o verdadeiro caminho, seguindo o qual o povo pode viver tranquilam ente a sua vida e a Nação cum prir a sua missão histórica, isto é, que se realize o que é essencial n a vida e se seja fiel ao que é perm anente na História. Só isso na verdade é transcendente para o futuro do País. Os que, investidos em funções de mando, amorosamente se debruçam sobre o panorama da vida nacional no passado e no presente hão-de ter verificado que é muito mais simples definir as grandes directrizes da vida colectiva do que determinar os processos de conduzir a Nação a seu contento. M ais ou menos vincadam ente se vive em Portugal numa espécie de crise política endémica. Na grande massa do povo, ainda que iletrado, há, por intuição talvez, firm e consciência nacional - a mais segura base da nossa independência como nação — mas não há, porque não pode haver, sólida consciência política. Por outro lado, aqueles que, oriundos dos vários meios, constituem o que deveria esperar se ser a classe dirigente, falham em geral como condutores do povo e portadores de pensamento político. De onde ser em 3ortugal a Nação acessível a todos e o Estado a m uito poucos. Para isso contribuem, :ada um por sua forma, o homem e o meio. 0 vinco da abstraeção no pensamento e vida p olítica por v ício da nossa fo r­ mação intelectual dá im erecido e perigoso prestígio a fo rm u la sse m co nte ú do real e a ideias sem aplicação prática. M esm o fora dos períodos de e xa lta çã o em que por toda a parte afinal as m ultidões costum am em briagar-se de palavras e vagos sentim entos lhes dirigem a acção, o português vive e sa crifica -se , sa crifica n d o também por vezes o País, a coisas irreais. Dem ocracia, liberdade, reacção, pro­ gresso, além de outros, são no espírito de quase todos nós puros m itos, a b stra cções de que se não pode tirar regra de conduta nem fin alid a d e nacional. M u ito melhor nos iria se pudéssemos substituir-lhes, com o tem os tentado, sabe Deus com que êxito, noções concretas, objectivos definidos, processos de tra b a lh o e fi­ cientes. À volta do real as discussões são mais lim itadas, m enos azedas e por isso mesmo menos capazes de dividir-nos. Atente-se por outro lado nas dificuldades trazidas à vida pública pela teimosa mediocridade do meio onde ameaçam afundar-se todas as aspirações generosas, movimentos largos, planos de envergadura. 0 meio, ou mais correctam ente o co n ­ ceito que dele fazemos (pois é ainda em parte uma abstraeção) pesa terrivelm ente sobre todos e sobre tudo e m uito especialmente sobre os obreiros de em preendi­ mentos nacionais, necessitados de largas perspectivas. Não há dúvida de que o português, transplantado, brilha entre os prim eiros nas Academias e Universidades estrangeiras; vem o-lo triunfar, até sem grandes letras, inteligente e ousado, pelo Rio, por Paris ou Nova Iorque, no com ércio e na indústria do grande mundo. Mesmo nas nossas colónias, desconhecido e por vezes desaju344

Duas Palavras a Servir de Prefácio dado, faz maravilhas que só podem honrar-nos. Sendo assim, nós não podemos atribuir à falta de qualidades de inteligência ou de sangue a vulgaridade corrente: temos de buscar a não floração das qualidades naturais à falta de estímulo do aca­ nhado ambiente local. O fenómeno é tanto mais curioso quanto flagrantemente contrasta com a nossa ancestral mania de grandezas na vida privada e com a realidade histórica que nos faz senhores de vasto império. Creio por isso que a não integração efectiva da ideia imperial no conceito corrente da Nação portuguesa encurtou a este País os hori­ zontes a que devera habituar-se e em que deve aspirar a viver. De modo que, não sendo prudente abandonar a si mesmo o problema da estabi­ lidade política que neste plano é solidária da estabilidade nacional, sou levado a duas forçosas conclusões - a reforma da educação no sentido do positivo, a eleva­ ção do meio tanto na parte material das exigências de vida, como na parte moral de ideais, aspirações, tarefas colectivas. 0 fim é sempre o mesmo: valorizar o por­ tuguês ou, para falar com mais exactidão, pô-lo em condições de compreender e agir num mundo diferente daquele a que se afez - e ele já não está em perfeito equilíbrio com o de hoje - mantendo intacto o duplo tesouro das suas qualidades como povo e do seu património como nação. É pura justiça reconhecer que no terreno económico, moral, político ou diplomá­ tico tudo tem sido conduzido em obediência àquele pensamento fundamental, mas eu receio muito da preguiçosa tendência que espera prodígios da actuação de um homem ou de poucos, quando todos os milagres se deveriam confiar do esforço em conjunto da Nação, sobretudo quando, como Portugal, está habituado a fazê-los. Só se pode estar tranquilo quando obra tão vasta que se propôs descer até às próprias raízes do nosso ser colectivo não só tem o apoio geral - porque isso é ainda pouco - mas quando ela mesma representa como que a floração e fruto do esforço comum. Em verdade dois grandes sentimentos deviam inteiramente dominar as nossas atitu­ des e acções - o sentimento da comunidade portuguesa na vida de relações interior, e o do interesse nacional no trato com as outras nações, como reacção contra a doentia preferência do nosso espírito pelo interesse estrangeiro. Em tais bases e sob tais condições nós temos naturalmente de prever a ressaca dos acontecimentos, mas não temos de recear os tempos futuros, seja qual for a vastidão ou dificuldade dos problemas que a guerra crie, que a paz suscite. Esta­ mos, por mercê de Deus, na zona que a sua luz e a sua paz ainda iluminam e doce­ mente recobrem; podemos observar, reflectir, trabalhar, precaver-nos; somos senhores do nosso pensamento, livres nos nossos actos, superiores aos ódios cegos que dividem o mundo e rasgam o próprio seio das nações. Se o espirito do mal nos não contamina, se unidos e solidários trabalhamos para garantir a vida e bem-estar da comunidade nacional, e representamos - pela nossa ordem, trabalho, possibili­ dades geográficas e económicas, espírito de colaboração - factor positivo na reconstrução da Europa e do mundo, não podemos ser afrontados, nem despreza­ dos, nem sequer esquecidos. Uma só coisa nos está vedada - sermos inúteis. Indi­ vidual, social, internacionalmente essa impossibilidade, veto das circunstâncias 345

Discursos

e

Oliveira Salazar Notas Políticas • 1938 a 1943

senão da moral, traduz os lim ites para além dos quais tudo arriscaríam os, ao mesmo tem po que marca o largo sentido em que deve desenvolver-se a nossa vida de Nação. ... Há aí alguém que se disponha a tom ar estes sim ples tó picos e p a rti-lo s aos bocadinhos e satisfazer a ânsia de espíritos generosos que para se darem só querem compreender? P arv u li petierunt panem ... Novembro de 1943.

O liv eir a S a l a z a r

346

I. REFORMAS MILITARES "> O Governo estava prevenido há bastantes semanas de que se procuraria o momento da publicação das reformas militares, finalmente aprovadas em 31 de Dezembro findo, para larga agitação política no interior do País. Esperava-se mesmo que a agitação fosse susceptível de interesse internacional. Tão convictos estavam alguns dos resultados da acção exercida que emissoras vermelhas de Espa­ nha não esperaram mesmo por quaisquer acontecimentos para noticiar a revolução em Portugal. Por mais de uma vez tem havido oportunidade de fazer referência ao desco­ nhecimento existente entre estrangeiros, e também entre alguns nacionais, acerca do espírito e do valor da situação portuguesa. Vem desse desconhecimento a errada convicção de que seria fácil, ou pelo menos possível, levar o Exército a des­ fazer a obra de estabilidade política que criou e mantém, por meio das esperadas reacções em face de diplomas que se supunha haviam de ter uma de duas directrizes, ambas a explorar - ou a de privilégio com que se diria ter se comprado a força armada, ou a de sacrifícios com que se lhe mostrasse o desamor e desagradecimento do Governo, embora necessários esses sacrifícios à própria valorização do Exército português. Por estas razões a campanha dos últimos dias não causou surpresa nem tem consequências. Visto que ainda é preciso, mais uma vez se repete o nosso juízo acerca da inutilidade de tais esforços. Isto para os agitadores profissionais de todas as cores e de todas as classes; e com eles não se deseja perder mais tempo.

Ao lado do facto referido acima, não deve esconder-se que o conjunto de leis causou, pela sua própria complexidade, pela profundeza das reformas realizadas, pela orientação dada à solução de alguns problemas, grande preocupação nos meios militares: havia efectivamente a ansiedade pelos resultados das novas providências, o receio dos regimes de transição em que não é conveniente manter a força pública, sobretudo em momento grave de política externa, as situações individuais resultan­ tes das leis e, sem dúvida, algumas desfavoráveis para alguns. E porque se esqueceu que a grande virtude das leis é serem humanas e que humana, embora fiel, deve ser

w

Nota oficiosa publicada pelo Ministério da Guerra, nos jornais de 10 de Janeiro de 1938.

347

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 a sua execução, não é de estranhar que aqui e além, sem conhecim ento do Governo, se tivesse ido na aplicação a certos exageros ou surgissem dúvidas a esclarecer. Não é possível nem fácil referir todas as interpretações precipitadas e erróneas dos decretos ou resolver todas as dificuldades de ordem prática, as quais natural­ mente as estações com petentes levarão pouco a pouco ao conhecim ento das enti­ dades superiores para oportuna resolução. É possível que a m aior parte das d ificu l­ dades seja adm inistrativam ente resolvida; é ainda possível que outras o não possam ser sem retocar as leis num ou noutro ponto de porm enor em que a solução legal não tenha sido a melhor. Far-se-á hoje referência apenas a três ou quatro questões sobre as quais a redac­ ção dos artigos da lei parece ter levantado dúvidas.

Refere-se a primeira a deduções nos vencimentos. Na reforma publicada, como em todas as do mesmo género em toda a parte do Mundo, os vencimentos mensais ou anuais têm a sua expressão ilíquida, quer dizer, são apresentados com os quantitativos que o Tesouro paga e não com os que o beneficiário recebe. Há entre os dois totais maior ou menor disparidade devido aos descontos a que estão sujeitos. Não é por habilidade ou com intenção política que isto se faz, mas por sim plici­ dade e boa ordem da escrita, visto que o mesmo vencim ento ilíquido — único que o legislador pode abranger na sua previsão — se transform a em diversos vencim entos líquidos, consoante a situação pessoal de quem a ele tem direito. Tendo desaparecido o imposto de rendimento e continuado suspenso o imposto de salvação pública, os vencimentos fixados na lei ficam no entanto sujeitos à dedu­ ção de 4°/o para a Caixa de Aposentações (artigos 17.° da lei de vencim entos e 12.° da lei de reformas). Parece ter-se confundido ou com binado este desconto com a im posição de 1% sobre o vencim ento a pagar à Caixa Geral de Aposentações com o com pensação pelo direito que se adquire a uma reforma referida a vencim ento su perior ao que até 31 de Dezembro correspondia à mesma situação, se a diferença fo r superior a 40$. Mas esta im posição não tem que ser adicionada à dedução de 4% para a Caixa, pois a percentagem é apenas a fórm ula empregada para determ inar uma espécie de indem nização devida pelo m otivo apontado, não é deduzida no venci­ mento, não tem de ser paga durante a efectividade de serviço nem na situação de reserva, mas só quando se passa à situação de reforma, e em 96 prestações, que­ rendo-se. E como, por m otivo desta dedução, a pensão de reform a não pode des­ cer abaixo do quantitativo de hoje, a dedução será feita pela Caixa só pela d ife ­ rença que o pensionista a mais perceberia, até à liquidação. Em caso algum, pois, pode haver prejuízo. A mesma disposição se tom ou na reforma de vencim entos do funcionalism o civil, tendo então levantado acesas discussões. Pois - caso curioso — podendo a 348

/. R eform as M ilitares

indemnização a que nos referimos ser paga só depois da aposentação, os funcioná­ rios têm antecipado voluntariamente o seu pagamento.

0 parágrafo 1.° do artigo 6.° do Decreto n.6 28:404 estabeleceu as percenta­ gens de aumento sobre o tempo de serviço prestado em condições especiais de dificuldade ou de perigo como em campanha, na frente ou fora da frente de batalha, e nas colónias. Acerca desta disposição levantaram-se duas ordens de questões - uma relativa ao fundo, outra aos direitos adquiridos por tempo pres­ tado anteriormente. 0 decreto reduziu as percentagens que eram na legislação anterior de 25% a 50% conforme as colónias; não se viu razão para manter os referidos aumentos e unifor­ mizaram-se, reduzindo-os todos a 20%. Há para isto os seguintes fundamentos: Primeiro. Política e juridicamente as colónias portuguesas são meras províncias do ultramar, e em princípio o serviço ali prestado não deveria mesmo gozar de qualquer vantagem especial. Socialmente o progresso das colónias tem-se acentuado nas últi­ mas dezenas de anos, de modo que em muitos locais de Angola e Moçambique se vive tão bem ou melhor que em certas cidades do continente ou das ilhas adjacentes. Segundo. Salvo o caso de operações militares coloniais (mas então seria outra a percentagem), é pràticamente inexistente a obrigação de serviço colonial, visto que os oficiais que desejam servir nas colónias excedem muito as necessidades. Não é a percentagem de aumento a contar para a reforma que leva a este resultado, mas a melhor remuneração auferida nas colónias portuguesas - muito melhor mesmo comparada à modéstia dos soldos na metrópole. Estas razões são de si tão ponderosas que nenhuma objecção parece ter sido feita • a baixar-se a referida percentagem para 20% em todos os casos de serviço colonial. A redacção porém do citado parágrafo que não podia ser diferente da que é para exprimir o tempo de serviço o prestar foi geralmente interpretada como aplicando-se ao tempo já prestado à data do decreto e que os beneficiários supunham contados como percentagens de aumento superiores. Independentemente de saber se a lei podia ou não, sem violar quaisquer direitos, mandar contar de modo diferente tempo de serviço anterior à sua vigência - esse problema não interessa aqui - a verdade é que o legislador estabeleceu uma regra de contagem para o futuro, respeitando abso­ lutamente para o serviço já prestado as leis sob as quais o havia sido. Ainda, com referência à contagem de tempo, aproveita-se a oportunidade de aludir de passagem à interpretação segundo a qual relativamente aos sar­ gentos só o tempo de serviço prestado desde 1 de Janeiro de 1938 seria contado para a reforma. Esta interpretação não tem por si nem a letra da lei, nem o espirito, nem a razão esclarecida. 0 Governo tem vindo pouco a pouco estendendo o direito à aposenta­ ção ou à reforma a todos os seus servidores, mesmo aos simples assalariados dos quadros permanentes, e generosamente tem mandado contar a eles e a todos o ser349

Discursos

c

Oliveira Satazar Notas Políticas • 1938 a 1943

viço anterior prestado ao Estado. Como poderia conceber-se que o mesmo direito fosse retirado aos sargentos, que sempre tiveram direito à reform a, para só fazer contar o tempo prestado depois da publicação da lei? 0 facto de não haverem pago para a reforma não é argum ento, pois que antes de 1936 também os vencim entos dos funcionários civis se consideravam líquidos da cota para a Caixa de Aposentações, ou seja, considerava-se o Tesouro como tom ando sobre si o respectivo encargo. Só a partir de Janeiro de 1938 se paga, mas o tem po de serviço ao Estado conta-se todo, quer tenha sido prestado antes quer depois da nova lei.

Como no artigo 48.° do Decreto n.° 28:401 se prescreve a e xtin ção do quadro especial de oficiais m ilicianos e na tabela de vencim entos se incluíram em coluna à parte os serviços auxiliares e os quadros extintos, supôs-se que nestes estariam incluídos também os oficiais milicianos. Tal não é porém a interpretação da lei. Não há o ficia is m ilicianos nem nos serdços auxiliares nem nos quadros extintos à data do citado decreto, e só os há nas diferentes armas e serviços gerais, pelo que os vencim entos a atribu ir-lh es são os que pertencem aos restantes oficiais das mesmas armas. Pode ser deficiente a redacção da lei neste ponto, mas a conciliação das várias disposições que ao assunto se referem, não pode levar a interpretação diferente da exposta.

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II. ... NÓS SOMOS UM A FORÇA DESTINADA A V EN C ER ...01 Legionários! Além do que possa significar a minha presença entre vós - pouco ou muito, vós o avaliareis - para mais não vim que para ouvir, gritada a toda a força dos pulmões sadios e do entusiasmo viril, a palavra que sobre tudo o que pudesse dividir, nos une na mesma aspiração, na mesma luta e cremos firmemente que na mesma vitó­ ria: Portugal! Não vim para mais nada, repito, mas porque vim, terei de dizer algumas palavras, muito poucas e certamente desnecessárias para quem não precisa de enco­ rajamentos e revela tal consciência do dever que prescinde mesmo de louvores. Nós não somos uma força destinada só a batalhar; nós somos uma força desti­ nada a vencer e a manter intacta a vitória; e é por isso que em cada peito legioná­ rio, em cada bandeira, em cada quartel ou acampamento há-de poder ler-se, gra­ vada por vontade de aço, esta legenda simples: aqui não reside o temor. Vieira escreveu magistralmente: «a audácia é a metade da vitória e quem temeu ao ini­ migo já vai vencido». Eis onde eu veria um risco enorme; por isso, antes de apelar para o sentimento, não fujo, segundo a minha predilecção, a fazer apelo à inteligên­ cia, e desta solicito as razões de não temer. Uma das maiores fontes do temor é a ignorância do inimigo: não saber quem seja, qual o seu número, a sua força, as armas de que dispõe, as suas posições, a direcção dos seus ataques paralisa ou enfraquece os mais esforçados ânimos. Nenhum gene­ ral se arrisca a dar batalha sem ter colhido e estudado as informações mais minucio­ sas; e de não serem suficientes ou precisas se arriscam ou perdem muitas vitórias. Ora a primeira vantagem que temos na luta e a primeira razão de não temer é que o inimigo - o grande inimigo a cuja sombra se agitam alguns aliados ocasionais que importa não confundir com ele — é perfeitamente conhecido; e neste ponto não tivemos nunca as ilusões que embalaram muitos outros. Nunca nos iludiu quando se esforçou por parecer pacifista em Genebra, condescendente em Londres, humanitarista em Espanha, cordato nas chancelarias, civilizado nas cortes euro­ peias. E porque nunca nos iludiu, nada perdemos nos negócios e financiamentos, não fomos obrigados a dar foros de legitimidade à sua propaganda oficial, não sofremos o desaparecimento de homens entregues confiadamente à nossa protec­ ção, nem sentimos o desgosto de ver passar diplomatas das recepções das Necessi­ dades para o cadafalso dos criminosos ou dos desgraçados.

Alocução aos Legionários, no Ginásio do Liceu Camões, em 11 de Março de 1938.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 0 inim igo é conhecido e não sei por que espécie de trágica cegueira se não viu que tem de sê-lo por necessidade da sua mesma existência, por lógica irremovível dos seus princípios, quando não pela natural força de expansão dos erros que acor­ dam, no espírito dos homens, baixos instintos adorm ecidos ou acorrentados por séculos de civilização. Mas não deixando já lugar a quaisquer dúvidas, atirando fora as confusões pos­ síveis, desistindo de diáfanas separações estabelecidas e fin gidam en te aceites entre órgãos de Estado e organismos revolucionários, o homem que parece depositário do maior poder efectivo no Império russo, claramente, expressivam ente retoma a tese da revolução universal para defesa e consolidação dos sovietes, e prega e promete ajudar a luta civil em todos os países para a im plantação do com unism o. Temos de reconhecer-nos obrigados! Andam por aí uns pobres homens que por já não saberem onde hão-de ter as mãos as estendem pressurosos aos operários, aos proprietários rurais, aos donos das empre­ sas, aos tímidos conservadores e até aos católicos e a velhos caudilhos monárquicos. E é bom que por inequívoca confissão dos responsáveis saibam todos donde vem a ordem para a guerra civil, donde é inspirado o internacionalism o contra a Pátria, o domínio estrangeiro contra a independência da Nação, a propaganda contra a beleza e o valor da vida, o ódio a Deus e ao próximo, a ditadura execranda da inteligência e da insensibilidade moral. 0 inimigo é pois conhecido, e mais do que conhecido, con­ fessado - «tu o dizes». E aqui temos a primeira razão para não o temer. Conhecendo o inimigo e o alvo dos seus ataques, im porta ter igualm ente pre­ sentes a qualidade e têmpera das suas armas. 0 inimigo tem do seu lado dinheiro com que procura com prar consciências e armamento, técnica com que busca vencer as dificuldades, a eterna fascinação do mal, absoluta independência de regras morais, o ódio — o ódio ao homem, ao pai, ao filho, à mulher, à inteligência, à cultura, à bondade, o ódio que parece não can­ sar, que parece não se satisfazer nunca e desdobra sobre as nações desprevenidas o manto negro da crueldade e do terror. Arm as temíveis, sem dúvida; melhores que as nossas? Não o direi: sobretudo diferentes. A guerra não é estado permanente mas colapso da paz; o ódio não pode ser eterno, pois os corações anseiam pelo amor e rendem-se fácilmente à bondade; o terror nem sempre paralisa as vontades: do paroxismo do medo brotam com o despreso da vida ras­ gos de heroísmo. Para sustentar a crueldade, o comunismo tem-se visto obrigado a subs­ tituir a cada passo os algozes, convertendo estes em vítimas; e montes de cadáveres não têm evitado que sobre eles muitos outros tenham de ser lançados também. Parece a alguns que o nosso poder ofensivo é afectado exactam ente porque nem prègamos o ódio nem prescindim os de nobreza e dignidade na luta. M as seria incompreensível que adoptássemos os mesmos processos que com batem os; nem a experiência deixou de revelar ainda a força, o ascendente especial de ter sempre razão. Fazemos constantem ente apelo a sentim entos superiores, a m otivos eleva­ dos de acção e de luta; haurimos da consciência recta a força com que batalhamos 352

II. ... Nós Somos uma Força Destinada a Vencer...

e tiramos das próprias veias - não de outras - o sangue dos sacrifícios; e certa­ mente a Providência abençoa estas armas, pois temos sempre vencido. 0 último motivo de não temer é conhecermos as posições que o inimigo ocupa e aquelas que se esforça por ocupar. Ele está em muita parte, sem dúvida, e até em nós mesmos, se não sabemos medir a gravidade desta hora nem cumprir todo o nosso dever. Está o inimigo ainda na repartição pública, está ainda no ensino, está ainda na imprensa, está ainda no teatro e no cinema, no boato, na má língua, oo desalento dos derrotistas. Fixa-se ou muda conforme as circunstâncias e as neces­ sidades; vai do campo para a cidade e da cidade para as aldeias em segredos alvo­ roçados, em propagandas dissolventes, em resistências e más vontades. Neste ou naquele momento ora se manifesta aqui, ora surge de além. Simplesmente nós também estamos, estamos sempre e em toda o porte. Estamos sempre na vigilân­ cia, na contradita, na acção; estamos em toda a parte - nos cafés, nos teatros, nos serviços públicos ou particulares, nos comboios, nas serras, nos campos, nas cida­ des, nas praças e nas ruas, e depois que nos mostrámos dispostos a ocupá-las, nunca mais o inimigo conseguiu apoderar-se delas. Como poderia pois haver medo, se não há razão para o temor? E como poderia o inimigo vencer-nos, se não temos medo dele? - Eis porque desde principio me pareceram inúteis estas palavras. LEG IO N ÁRIO S! Q U E M V IV E ? - P ortugal! ... 0 Portugal de nossos avós - de Afonso Henriques, de D. João I. do Infante de Sagres, dos Gamas, dos Albuquerques, de Camões; dos descobrimentos, da restau­ ração; conquistador de reinos, fundador de impérios, pregoeiro e defensor nos outros continentes da civilização latina e da palavra de Cristo! LEG IO N ÁR IO S! Q U E M V IV E ? - Portugal! ... 0 Portugal de nossos pais, explorador de sertões, fundador de colónias a repe­ tir-se e multiplicar-se pelo Mundo - pedaços da sua alma, da sua carne e do seu sangue - tirando dos reveses da fortuna, dos azares da sorte e até da desconside­ ração alheia a revolta e orgulho que nos transmitiu a nós! LEG IO N ÁR IO S! Q U E M V IV E ? - Portugal! ... 0 Portugal de vossos filhos, redimido no sacrifício e na dor, nas privações, no trabalho, na angústia destes calamitosos tempos, mas salvo, honrado, belo, forte, engrandecido, como o divisamos já na aurora de amanhã!

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III. A EDUCAÇÃO POLÍTICA, GARANTIA DA CONTINUIDADE REVOLUCIONÁRIA(l) Reunimo-nos para dar posse e investir em suas novas funções aos membros da Comissão Central da União Nacional, da sua Comissão Executiva, da Junta Consul­ tiva e da Comissão de Propaganda. É o momento de fazer acerca da política e da governação pública deste País algumas considerações, umas indicadas pelo acto, outras exigidas pelas circunstâncias. I. Há pouco mais de um ano que se demitiu a anterior Comissão Executiva da União Nacional, cujos membros a meu pedido e desde então se encarregaram apenas do expediente ordinário. Tendo a crise atingido assim o principal centro motor da orga­ nização, de onde partem as ordens, as directrizes, o impulso para toda a acção de conjunto, a actividade política foi sucessivamente diminuindo até quase se extinguir. Deste facto deduziu ou fingiu deduzir o inimigo que abandonáramos o campo, aliás por outras diversas formas ocupado; e por isso e pelo recrudescimento conspiratório que acompanha sempre deste lado da fronteira as campanhas do Exército naciona­ lista espanhol, por virtude ainda das novas ordens dadas para a agitação ou revolu­ ção mundial comunista e das repercussões inevitáveis de certas medidas do Governo, toldou-se um pouco a atmosfera política, espalhou-se por aqui e por ali certo desâ­ nimo e alguns tímidos, mais nascidos para o aconchego do lar que para as lutas polí­ ticas começaram mesmo a perturbar-se com trágicas visões. Nada disto tem felizmente para nós, experimentados e prevenidos, consistência ou realidade, nem representa perigo que não possamos vencer: o Exército está no lugar que ocupa, desde o 28 de Maio, de garantia suprema de ordem revolucioná­ ria; a Guarda vigilante e pronta; as Policias, apesar de competições lamentáveis que deveriam ter sido evitadas, continuam sem descanso e sem desânimo a cumprir o seu dever. Todos mais bem armados que em qualquer tempo, todos municiados como nunca, todos decididos como sempre. Além do que tínhamos passámos a dis­ por dos admiráveis voluntários da Legião e, quanto ao País, tendo conhecido por experiência os resultados de todas as aventuras, conhece também já por felicidade todos os aventureiros: comparando as promessas e decepções passadas com as rea-

w Perante os dirigentes da União Nacional, quando da posse das novas conrssòes, e^ 22 de Vla'ço de 1938, na sede daquele organismo.

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lidades presentes, a anarquia eom a ordem, a decadência com o ressurgimento, aprecia os benefícios colhidos de uma obra, aliás ainda incom pleta, antevê os resul­ tados definitivos da única verdadeira revolução social e política a que assistiu e confia em que a transform ação da mentalidade geral perm ita à Nação resolver duradouram ente os seus problemas fundam entais. Só não com preende m uito bem com o em Portugal a ordem parece estar sempre em crise, quando efectivam ente o não está. A verdade porém é que politicam ente tudo o que parece é, quer dizer, as menti­ ras, as ficções, os receios, mesmo injustificados, criam estados de espírito que são realidades políticas: sobre elas, com elas e contra elas se tem de governar. E uma primeira observação se me afigura de utilidade fazer: não há, em geral, coincidência entre o valor da actividade ou as realizações governativas e a atmosfera política. 0 inteligente esforço desenvolvido por D. Carlos e coroado de êxito nos últi­ mos anos do seu reinado na política internacional não logrou desanuviar o ambiente e não retardou de uma hora o seu bárbaro assassinato. 0 esforço fe ito em 1907 pelo saneamento das finanças — sempre a máxima questão nacional — e continuado com as reformas de 1908, já no reinado de D. Manuel, não teve efeito algum sobre a cons­ ciência pública, não diminuiu a intensidade das lutas partidárias e m uito menos pôde alvar a monarquia. É certo que muitos outros problemas, á espera duma solução que demasiado tardava, se encontravam na base dos descontentamentos; mas continua verdadeiro que actos da maior transcendência se podem inteiram ente perder em ambientes contrários de paixão, fundada ou infundadamente criados. Em muitas circunstâncias sujeitas à minha observação pessoal tenho mesmo notado que exactamente quando a necessidade me obriga a absorver-m e mais intensa e longamente no estudo de medidas do maior alcance nacional é que o estado polí­ tico piora, pela falta de contactos ou o sem i-abandono de algum as alavancas do poder. Por triste e injusta que esta situação se afigure, são factos e nada valem lamentações; importa apenas não os esquecer para lhes dar remédio. Ora examinar os factores desfavoráveis a que se encontra sujeito o nosso am biente político é pôr em evidência a necessidade e esclarecer as directrizes da acção. II. Deve em primeiro lugar atender-se a que a execução integral dos princípios da Revolução nacional suscita por si mesma grandes dificuldades: com o é profunda, fere o egoísmo dos interesses criados; com o tem de ser morosa, coíbe os ímpetos dos apressados e dos improvisadores; com o é ampla e se estende desde os dom ínios do pensamento à produção e distribuição das riquezas, a todos atinge e a todos terá de descontentar. A Revolução tem sido um esforço realizado no sentido do «alto» e do «grande», e só é preciso ser português para ter consciência do sentido heroico do nosso res­ surgimento. 0 ambiente estrito, mesquinho, em que se debatiam as nossas mais graves e complexas questões nacionais teve de ser varrido e fortem en te arejado; a

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III. A fid u r a ç ã o P o lític a ...

discussão dos problemas, elevados sistemáticamente e por exigencia dos principios ao plano nacional, tornou-sc logo incompatível com o pequeno interesse, o compadrio político, a habitual mediocridade. Por outro lado, vencer o atraso de dezenas de anos, reconstituir a vida nacional com a modéstia exigida pelos recursos mas com a dignidade imposta pela nossa ética e pelo nosso passado, organizar o que era inorgánico ou desordenado, criar a consciência duma possibilidade de engrandecimento que, embora assente no patri­ mónio antigo, tem de ser construído por nossas mãos, exige tais sacrifícios, tais vir­ tudes, tão elevada devoção, apela para sentimentos tão puros e desinteressados que, se dão grandeza à Revolução nacional, apresentam também dificuldades enor­ mes. É fácil de ver o Governo mostrar a necessidade de sacrifícios; mas aceitar de boa vontade esses mesmos sacrifícios, chegar a amá-los é quase virtude de santos. Outro ponto. Nós tentamos fazer uma criação política estruturalmente portu­ guesa. Decerto nenhuma experiência alheia, nenhum conjunto de factos sucedidos onde quer que seja deixa de ser considerado com o fim de tirar deles quaisquer lições úteis. Mas a fonte principal dos nossos ensinamentos, a fonte de inspiração das grandes linhas da nossa construção política tem sido a nossa história, a tradi­ ção, o temperamento, a realidade portuguesa em suma. Daí se procura tirar tudo o que do passado se mantém ou deve manter vivo e fecundo, e, dos novos tempos, o que parecem aquisições seguras ou aspirações legitimadas pelo progresso geral ou melhor compreensão da justiça. Sendo assim nacionalistas e portugueses, é inú­ til procurar ver identidade de ideologias ou processos onde a análise profunda des­ cobrirá diferenças substanciais, que, aliás os factos, de quando em quando, põem a nu. A falta, porém, de independência mental, que acompanhou a nossa decadência e durante esta nos levou, tanta vez, à cópia servil do estrangeiro, seria natural­ mente levada a encontrar inferioridade de ideal ou de construção no processo revo­ lucionário português. Por mais de uma vez estudiosos e escritores estrangeiros de renome mundial - o último, H. Massis - vêm a mim, entre tristes e desapontados. Analisando, com­ parando, observando de longe princípios e factos propósitos e realizações, a traça e a construção do nosso edifício político, o que tem sido delineado e o que está feito chegaram a interessar-se pelo caso português, sobretudo pelo facto de que a sua originalidade não traduz particularismo político, antes está ligado a alguma coisa de universal, porque humano, isto é, verdadeiro em toda a parte. E, quando tomam contacto connosco, admiram-se de não ver partilhado o seu entusiasmo, choca-os o excesso das críticas e surpreende-os notarem preferências inexplicáveis por modelos estrangeiros. Debalde explico que no nosso mundo político bastantes dos meus amigos mani­ festam exactamente a sua dedicação com estarem descontentes, que temos o hábito de amar, batendo, e que noutros casos não há mais que versatilidade de ânimo e ligeireza do espirito meridional. Mas, ai de mim! que a originalidade que deveria ser o nosso orgulho, algumas vezes se arrisca a ser a minha desgraça! 357

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Outro ponto ainda. A todas as dificuldades anteriorm ente aludidas deve juntar-se agora o peso do passado sobre a m entalidade política: m uitos de nós terão ainda no espírito os estigmas da democracia. À geração que ai vem, se fo r cuida­ dosamente dirigida a sua educação, hão-de aparecer com o evidentes principios hoje ainda custosos de admitir, e certas disciplinas im postas pelo interesse comum da grei não só hão-de ser tidas como razoáveis mas aceites com prazer. M uitos de nós, que vim os de trás, temos presente sem dúvida o espectáculo da desordem e da dissolução social, do abastardamento e decadência da Nação, mas, se ainda não lográmos reform ar inteiramente a nossa mentalidade, d ificilm e n te sentim os e d ifi­ cilmente vivém osos tempos novos. Pesa-nos a autoridade, atrofia-no s a disciplina, seduz-nos o hipercriticism o por m otivos fúteis, parece-nos salutar entretenim ento desgastar hom ens e destruir governos: tudo é ainda filh o da desordem dem ocrática, instalada sem se dar por isso nas inteligências e nas vontades. III. Às considerações anteriores pretendem dem onstrar por uma ou por outra forma a necessidade de continuar, intensificando-a, a vasta obra de educação política do povo português em harmonia com os princípios da nossa Revolução; cham o a essa obra obra de educação e não de propaganda, pois esta será apenas um dos meios de conseguir aquela. As mesmas dificuldades que pus em evidência com todo o cui­ dado de um exame objectivo das condições portuguesas devem co n stitu ir estímulo para a vasta acção educativa, pois nascem da mesma grandeza da Revolução e da mesma elevação dos seus princípios inform adores. Nós não podem os recear nem desistir; seria não termos consciência dos esforços e sa crifício s passados, das reali­ dades presentes e das largas possibilidades do fu tu ro deixar se afundassem de novo na mediocridade, de novo na tristeza da decadência as mais fundadas esperanças, as mais belas aspirações de ressurgimento. Quando me ponho a considerar o panorama internacional — a inquietação, a ruína, o em pobrecim ento dos povos, as lutas internas ou externas, a desordem, a disciplina, a pouca estabilidade e força dos governos, a falsa solidez dos princípios, o precário equilíbrio social; quando penso que países ricos não podem dar valor estável às suas moedas, econom ias sólidas não logram ou não querem satisfazer as suas dívidas, grandes nações não conseguem equilibrar as suas finanças; quando vejo a vida em crise, a riqueza em crise, a moral em crise; e depois v o lto os olhos para a nossa casa sem dúvida modesta mas tranquila, arrum ada e digna, sinto que muitas graças devemos todos à Revolução nacional. Com os sacrifícios e privações do país, o apoio do Exército, o esforço e dedica­ ção dos governantes, foi possível d efin ir e fix a r os princípios de profunda reforma em todos os sectores da vida nacional, criar nova estrutura política, dar aos p ortu ­ gueses consciência de grandeza e da missão providencial da Nação. No equilíbrio financeiro, na estabilidade de valor da moeda, no ordenam ento da econom ia, no

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III. A E d u c a ç ã o P olitica...

sentido social da organização corporativa, na melhoria progressiva das condições do trabalho, na educação do povo, na reforma do Estado e na subordinação da sua actividade a principios superiores da moral e do direito, no reforço da autoridade do Estado sem prejuízo da autonomia, respeito e liberdades dos indivíduos, na coerên­ cia e dignidade da vida pública, na serena afirmação da nossa independência e dos nossos inalienáveis direitos de grande nação colonial, nós não damos lições mas damos o exemplo. Nesta pequena faixa ocidental que a Europa se habituara a olhar com comisera­ ção ou tédio, fizemos o prodígio de reconstruir a Nação na sua feição tradicional - missionária e civilizadora, cavalheiresca e espiritualista; muita vez tivemos de fazer ouvir no sinédrio dos grandes a palavra justa, sem poder ser discutida a nossa autoridade moral. E os factos demonstraram sempre que tínhamos razão. Tínhamos razão ao alvitrarmos modestamente que não se sujeitassem a fracas­ sos sucessivos os estadistas que em conferências internacionais buscavam entendi­ mentos e remédios para a crise geral, quando mais fácil e eficaz seria mostrar cada um o seu espírito de colaboração remediando como pudesse as dificuldades pró­ prias sem agravar as alheias. Tínhamos razão quando asseverámos não poder ser cometido maior erro que alinhar os povos por ideais de política interna, contra­ pondo-os depois, e fazer projectar nas relações internacionais as simpatias dos governantes pelos sistemas políticos. Tínhamos razão quando, chamando a atenção do mundo para a verdadeira índole da guerra de Espanha, procurámos mostrar à Europa quanto o seu equilíbrio poderia ser prejudicado com intervenção das potên­ cias e como a única solução razoável e feliz teria sido a rápida vitória nacionalista sem auxílios estranhos. Tínhamos razão quando, opondo-nos à entrada dos Sovie­ tes em Genebra, pretendíamos preservar a Sociedade das Nações da infiltração comunista e salvar, senão no seu estatuto, ao menos na essência, para base de futu ­ ras construções, os principios da igualdade dos Estados, do respeito pela sua inde­ pendência, da sua colaboração amigável e da superioridade do direito que todos podem ter em relação à força de que só alguns dispõem. E tínhamos ainda razão quando em face da crise da moral internacional opinávamos ser um perigo confiar duma fraseologia sem sentido, quero dizer, sem força na consciência das nações, a resolução do que importava à paz e à vida de muitas delas. Sim tínhamos razão e cada dia que passa há-de mostrá-lo mais claramente; mas eu não queria afastar-me da matéria deste discurso e a ela volto para terminar. IV. A minha tese de hoje é que se torna necessário intensificar a educação política do povo português para garantia da continuidade revolucionária, e que, se os prin­ cípios da Revolução nacional pela sua mesma elevação constituem fonte de d ificu l­ dades, também a missão educadora é simplificada por duas ordens de factos. A pri­ meira é a obra realizada nos doze anos escassos decorridos desde o 28 de Maio; a segunda é que o povo português apreende por intuição notável o sentido profundo

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 da transform ação que se opera e tem por natureza ou educação secular o sentido de um destino nacional que nada tem que ver com a m odéstia dos seus recursos e o baixo nível da sua instrução. A Nação tem decididam ente a vocação do heroísmo, do desinteresse, da acção civilizadora, da grandeza im perial, e enternece verificar que o simples povo não a perde mesmo quando o escol dirigente parece atraiçoá-la. Ora ninguém desejará certam ente que renasça a cada m om ento entre nós a ten­ dência doentia para a m ediocridade e se troque o sentido das grandes aspirações da Nação pelo depravado gosto de coisas mesquinhas e fúteis que não valem nos ocu­ pemos delas. Ainda que não fossem graves sob todos os aspectos as condições do tempo presente, ninguém compreenderia se pudesse co ntinu ar enleado e dim inuído por preocupações inconciliáveis com a grandeza da tarefa que a cada um cabe na obra do engrandecimento pátrio. A União Nacional, como único organismo político reconhecido, cabe desempe­ nhar a missão que a traços largos desenhei; e é inútil acrescentar que a nova com is­ são executiva tem para empreendê-la toda a minha confiança.

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IV. COMEMORAÇÕES CENTENÁRIAS (l) 1. No ano que vem - 1 9 3 9 - pode dizer-se que faz oitocentos anos Portugal, contada a sua independência desde que D. Afonso Henriques se proclamou rei pela primeira vez. Em 1940 passa por seu turno o terceiro centenário da Restauração, ou seja o terceiro centenário da reafirmação, solenemente selada com o sangue de muitas batalhas, da mesma independência. Ter oito séculos de idade é caso raro ou único na Europa e em todo o mundo, sobretudo se para a definição da identidade política se exigir o mesmo povo, a mesma Nação o mesmo Estado. Quase desde o princípio, com o esforço dos primei­ ros reis, ficaram definidas e fixadas na península ibérica as nossas fronteiras. Guer­ ras, muitas; mas nem invasão ou confusão de raças, nem anexações de territórios, nem substituição de casas reinantes, nem variação de fronteiras: do primeiro ao último os próprios chefes tinham nas veias o mesmo sangue português. Liberto de todas as perturbações da Europa donde foram surgindo uns após outros os Estados modernos, Portugal viu nascer muitos, juntarem-se ou desmembrarem-se alguns, desaparecerem uns tantos. A todos sobreviveu e não no apagamento do olvido mas a realizar através dos séculos da sua existência uma das obras mais vastas e valiosas para o património colectivo da humanidade de que algum povo se poderá ufanar. Isto é, não durou, porque se furtou a viver durou precisamente porque viveu - a vida intensa do soldado, do trabalhador da terra, do explorador do mar, da des­ cobridor, do missionário, do portador de uma doutrina e de uma civilização. 2. Entendeu-se que seria bom celebrar solenemente nos dois próximos anos as referidas datas, fundidas no mesmo significado de independência nacional e cons­ tituindo portanto um ciclo único de comemorações festivas. Seria, primeiro, dar ao povo português um tónico de alegria e confiança em si próprio, através da evocação de oito séculos da sua História - que foram sim ulta­ neamente oito séculos da História do mundo, e através da solidez e eternidade da sua independência. Em segundo lugar conseguir-se-ia pela pressão do tempo e pelo entusiasmo criador levar os serviços públicos e particulares a acelerar o ritmo da sua actividade, com o intuito de afirmar a capacidade realizadora de Portugal, os seus serviços à

w Nota oficiosa da Presidência do Conselho sobre a comemoração dos Centenários da Independên­ cia e da Restauração (publicada nos jornais de 27 de março de 1938).

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civilização, e o contraste entre os nossos recursos sempre dim in u tos e os resultados obtidos, tantas vezes admiráveis. Por um e outro modo dem onstraríam os com a clareza da evidência aos nossos próprios olhos e aos olhos de estranhos que Portugal, Nação civilizadora, não fin ­ dou e continua pelo contrário a sua alta missão no mundo. 3. Não é preciso dizer que os centenários, com o grande festa de fam ília, não inte­ ressam só è capital; a província, as ilhas, todos os dom ínios têm de participar nela. E não só nós. Tratando-se de acontecim ento invulgar, não é am biciosa a esperança de que países estrangeiros queiram ter a gentileza de se associar às com em orações festivas pelas muitas formas por que pode render-se homenagem a uma velha nação civili­ zadora ou cooperar-se no brilhantism o de uma solenidade. Temos por esse mundo alianças, amizades fiéis, estreitas afinidades de raça, com unidade de civilização; e não hão-de esquecer todos aqueles povos de um extrem o ao o u tro da Ásia que nos devem o primeiro contacto com o mundo ocidental. Pena é que o monumento do Infante D. Henrique, a volta do qual se anda há mos, não possa ser inaugurado nessa época, e nos não seja por isso dado assistir ao ispectáculo maravilhoso que seria desfilarem em grande parada naval, diante da ponta de Sagres, em face do m onum ento ao propulsor da navegação e dos desco­ brimentos nos tempos modernos, luzidas representações de todas as marinhas do mundo. Por mim não ju lgo impossível que a Europa, a Ásia e a Am érica viessem da melhor vontade e com a presença de barcos seus reconhecer na obra do Infante a ambição e o impulso das descobertas e o serviço prestado à mais estreita com uni­ dade dos povos através dos cam inhos do mar.4 4. A o Brasil é devida referência especial, pois, seja qual fo r a parte que nas comemorações centenárias queiram amavelmente tom ar os ou tro s Estados, não podemos dispensar na gloriosa festa a presença, a participação, o concurso perma­ nente e activo do Brasil. A história dos dois povos é comum a ambos até ao alvorecer do século XIX; e, quando os dois reinos se separaram, fizeram -n o em term os que não têm preceden­ tes na História. A atitude constante de Portugal para com o Brasil, desde o dia da nossa bifurcação no vasto mundo, é a da terna e carinhosa solidariedade. OrguIhamo-nos tão naturalmente de quanto empreenderam os nossos antepassados, como do que fizeram e têm de fazer os nossos descendentes. A nossa língua é a sua língua e, enquanto Portugal continental é estreita nesga de terra na Europa onde nunca poderão caber senão escassos milhões de almas, o Brasil é quase um co n ti­ nente, um mundo novo, e dele jorrarão pelos séculos adiante torrentes de hum ani­ dade em cujas mãos estará bem entregue o tesouro das tradições de que hão-de ser herdeiros, em sagrada partilha connosco. Eis algumas razões por que havemos de pedir ao Brasil que venha a Portugal, no momento em que festejamos os nossos oitocentos anos de idade, ajudar-nos a fazer

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IV. Comemorações Centenárias as honras da casa; que erga o seu padrão de História ao lado do nosso; que não seja apenas nosso hóspede de honra mas, como da família, a par de nós acolha as home­ nagens que o mundo nos deve e nos trará nessa ocasião; que nos mande, no maior número, os mais egrégios dos seus filhos, em romagem patriótica e cívica. Não nos deteremos a precisar a forma a que aspiramos da colaboração brasileira nos centenários de 1939-1940. Queremos que o encontro dos nossos povos seja então efectivo e intenso como nunca o foi; e que o mundo seja testemunha do que é o Brasil na História portuguesa - ama das suas páginas mais belas e a sua mais extraordinária realização, e do que é Portugal para o Brasil - a fonte inicial da sua vida, a Pátria da própria Pátria. 5. Não devemos crer que os estrangeiros nos visitem em multidão, nem nós desejamos orientar as celebrações centenárias no sentido da exploração turística, digamos claramente a palavra. Mas não há dúvida de que tais solenidades terão nós desejamos que tenham - repercussão internacional. Por dever, por curiosi­ dade, por interesse, muitos estrangeiros visitarão Portugal; e a primeira coisa é saber como poderão ser recebidos e como podará ser preparada a nossa casa para os acolher. À volta desta primeira preocupação deve ser posto, estudado e resolvido certo número de problemas, entre os quais apontarei, como exemplo, os que se referem à entrada no País ou na capital, á facilidade de circuitos turísticos, à vida nas cidades ou nos locais mais apetecidos e apetecíveis pelo interesse artístico, da paisagem ou de quaisquer características regionais. E há um mundo de coisas, pequenas umas, outras grandes, que têm aqui lugar: o melhoramento das estações ferroviárias fron­ teiriças; a construção de uma estação marítima, pelo menos no porto de Lisboa; o aeródromo da Portela de Sacavém; algumas, senão todas, as estradas de acesso imediato à capital; o aperto de certas malhas na rede de estradas, com o qual se completariam ou arredondariam passeios de grande comodidade e beleza; a melho­ ria de instalações e o aperfeiçoamento dos serviços dos hotéis de Lisboa e da pro­ víncia; estabelecimento de certo número de pousadas em recantos provincianos onde a iniciativa privada não cuidou até hoje das necessidades de quem viaja ou passeia; maior vigilância na repressão da mendicidade; mais cuidado na limpeza das casas e das ruas, e muitas outras coisas que comissões especiais podem facilmente estudar e promover, quando estejam compenetradas desta primeira necessidade de estarmos em condições de receber as pessoas que nos visitem.6 6. Sendo os dois centenários a celebrar da Fundação de Portugal e da Restaura­ ção, e não devendo alhear-nos das figuras centrais daqueles dois grandes factos históricos - D. Afonso Henriques e D. João IV - que faremos para os honrar de modo especial nas comemorações de 1939-1940? Quanto ao último, deve relembrar-se que o Palácio dos Duques de Bragança em Vila Viçosa pertence hoje com muitos outros bens a uma Fundação instituída pelo Senhor D. Manuel e que, por expressa e voluntária cedência das Herdeiras, a Fundação usufrui

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já quase todo o Palácio em que há-de instituir um museu e uma biblioteca. Dado o carácter de utilidade pública da aludida Fundação, o valor arquitectónico do Palácio e o interesse histórico e artístico do seu recheio, está indicado se trate já da sua restau­ ração para poder ser efectivada o mais cedo possível a vontade do Fundador. No largo em frente, devidamente regularizado e embelezado, deveria levantar-se uma estátua a D. João IV, o Restaurador da Independência. 0 Palácio, a vasta praça, a formosa igreja fronteira dos Agostinhos, que constitui o panteão dos Duques de Bragança, seriam por este modo elevados no conjunto à beleza e dignidade que lhes pertence. Por outro lado quando se considera Lisboa na sua sintética expressão de capital portuguesa, e com o pensamento no fundador da nacionalidade se busca o meio mais próprio de consagrar-lhe a memória, nenhuma outra ideia sobreleva à da reconstituição e aproveitam ento do castelo de S. Jorge, pois, se a cidade está por tradição, valor e direito consagrada com o o centro vital da própria Nação, é no cas­ telo que se encontra a afirm ação da conquista e do dom ínio da terra, quer dizer, o penhor da independência de Portugal. Despido dos estabelecim entos m ilitares que ali se encontram, aliás em más condições, e restituído ao traçado e beleza das suas muralhas, ainda que fiquem parcialmente em ruínas e mesmo sem se levantar estáua ou qualquer outro monumento, o castelo que m aterialm ente dom ina Lisboa e o êjo, deve dominar espiritualm ente o País, deve ser a acrópole sagrada, o lugar eleito das peregrinações patrióticas. Acresce que dali se disfruta — nem os lisboe­ tas o saberão — um dos mais belos panoramas que em qualquer cidade do mundo pode existir; e não há o direito de desperdiçá-lo. 7. Será preciso talvez, no período intenso e de certo m odo febril em que vamos preparar as duas comemorações centenárias, defender-nos do excesso de querer realizar agora em dois anos o que não pôde sê-lo em oitocentos, desde o começo. Mas no intuito de afirm ar o nosso poder realizador — um dos intentos afirm ados no começo desta exposição — muitas obras já começadas deveriam concluir-se e outras em projecto, em estudo ou simplesmente desejadas deveriam ter o seu com eço ou, melhor ainda, com eço e fim neste período. Os serviços a quem se vai pedir um esforço excepcional deveriam ter com o questão de brio e de honra própria (além de tudo o que ficou mencionado e lhes pertence) pelo menos as seguintes realizações: a) Acabam ento das obras de restauração do Palácio, jardim e parque de Queluz; b) Acabamento da Casa da Moeda (parte adm inistrativa e oficinal); c) As obras do anexo ao Museu das Janelas Verdes (Arte Antiga), de form a que fique em condições de nele se poderem realizar exposições temporárias de Arte; d) Construção da auto-estrada para Cascais; e) Construção do Estádio, que deve ser levada a efeito sim ultaneam ente com a da auto-estrada para Cascais, sua ligação a Lisboa e co nstru ção da estrada m argi­ nal, qualquer delas pelo menos até à Cruz Quebrada; f) Libertação definitiva da Torre de Belém: ninguém com preenderia que, ao realizarem-se comemorações de datas de tão grande sig n ifica d o na nossa História e

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quando exactamente por meio delas se procura exaltar o valor da raça e o seu esforço mundial, aquele belíssimo monumento não esteja definitivamente livre da aviltante vizinhança que há perto de meio século o ennodoa e a nacionais e estrangeiros pode dar a falsa ideia de desapego nosso às tradições e ao patrimó­ nio artístico português; g) Conclusão das obras no Palácio de S. Bento e urbanização do local; h) Resolução do problema do chamado Parque Eduardo VII e construção de um palácio de exposições, antiga aspiração da capital, onde não existe qualquer edi­ fício próprio para tal fim; i) Reparações necessárias no Teatro de S. Carlos; j) 0 maior impulso possível ao parque florestal de Monsanto e, se possível (não sei em que tem esbarrado esta aspiração), a arborização da encosta marginal do Tejo desde os Estoris, cuja nudez muito prejudica a beleza do estuário; k) A primeira fase de construção dos novos hospitais-escolares, em que se visione pelo menos a grandeza da obra; l) Decidido impulso nas obras de novos bairros económicos, de modo que se pos­ sam fazer desaparecer os bairros miseráveis que cercam Lisboa; m) Ligação radiofónica de Portugal e do seu Império, com a aspiração de que, durante as festas e depois a partir delas, todos os domínios ultramarinos possam seguir em cada momento as manifestações espirituais da Mãe-Pátria. 8. Se bem que poucas vezes estaria tão bem fundamentada uma exposição internacional como com a celebração do duplo centenário por nós empreendida, renunciaremos a ela; mas não seriam completas nem de certo modo possíveis as nossas comemorações festivas sem que do programa definitivo constassem algu­ mas exposições nacionais, e não se opõe isso a que num ou noutro caso se peça a colaboração de outros países:1 3 2 1. ° Impõe-se naturalmente, dada a índole das comemorações, e em primeiro lugar, a Grande Exposição Histórica do Mundo Portugués. 0 local poderia ser nos terrenos vagos da Junqueira até Belém, já nessa altura certamente do Estado e da Cámara Municipal; os fins da Exposição apresentar uma síntese da nossa acção civi­ lizadora, da nossa acção na História do mundo, mostrar, por assim dizer, todas as pegadas e vestigios de Portugal no globo; 2. ° Exposição de Arte Portuguesa que deverá, na parte relativa á pintura, restringir-se aos primitivos. Na parte decorativa acessória poderiam figurar obras de outras épocas. Os trabalhos de restauração, a começar ¡mediatamente, poriam em estado de ser expostos polípticos e tábuas que no conjunto seriam urna autén­ tica revelação para nacionais e estrangeiros. 0 local poderá ser o anexo ao Museu de A rte Antiga; 3. ° Grande Exposição Etnográfica, na Tapada da Ajuda. Tentar-se-ia a reprodu­ ção da arquitectura característica de cada urna das vinte e urna provincias portu­ guesas, de aquém e de além-mar, em casa onde os habitantes, com indumentária

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 própria, reproduzissem os usos e costum es das suas regiões. Poderiam ser convida­ dos outros países a fazer-se representar com uma síntese do seu folclore, o que poderia dar lugar a interessante com petição do folclore com parado; 4. ° Grande Exposição do Estado Novo, na qual se procuraria m ostrar tudo quanto o Estado Novo tem feito, desde a sua estrutura e orgânica até à obra de renovação e de ressurgim ento moral e m aterial, o que está realizado e a projecção no futuro; 5. ° Julga-se que, por iniciativa de sub-com issões da província ou de outros orga­ nismos competentes, poderiam ainda realizar-se pequenas exposições acessórias e locais, como, por exemplo, uma de ourivesaria em Coimbra, outra de barroco no Porto, etc. 9. Sim ultáneam ente e até com o com plem ento de algum as das exposições indi­ cadas há a oportunidade de promover alguns congressos, estes de carácter inter­ nacional. De entre os possíveis destaco apenas um Congresso do M u n d o Portu ­ guês, ao qual é de esperar concorram em inentes vultos de ciência estrangeiros com os seus materiais e trabalhos de investigação relacionados com a nossa Histó­ ria. E numa das secções deste Congresso, onde se tratasse de p olítica indígena e de colonização, poderiam ser versados com interesse internacional problem as da maior oportunidade. 10. Quanto a cortejos, festas, m anifestações p a trió tica s e cívicas, falecem -m e ao mesmo tem po im aginação e experiência para in d icá -lo s, mas representam , por definição, parte im portante das festas com em orativas. Com o som os ricos de datas históricas que podem ser nos dois anos dos ce n te n ários celebradas de m odo especial, algum as serão incluídas no program a, que tam bém com preen­ derá romagens p a trió tica s a lugares mais especialm ente ligado s aos fa c to s que se celebram. Parece ainda que dois grandes cortejos podem ser tentados com êxito: 1.

° Em Lisboa, o Cortejo do M un do Português, por assim dizer apoteose da Expo­

sição e do Congresso do mesmo nome; 2. ° No Porto, grande Cortejo do trabalho em M aio de 1940, onde desfilariam representantes de todas as actividades económ icas nacionais, Sindicatos, Grémios, Casas do Povo, etc., continuando-se a tradição já estabelecida nos últim os anos e realizando-se em mais larga escala o que já se fez em Braga, Barcelos, Guimarães e este ano se projecta em Viana do Castelo. 11. Uma vez posta em marcha a ideia das celebrações centenárias, o Governo julga que muitas publicações aparecerão em que particulares e corporações ou ins­ titutos científicos e de ensino hão-de m ostrar sob os mais diversos aspectos e nos mais diversos domínios a acção de Portugal e dos portugueses nos oito séculos de existência. Não podem prever-se os resultados desta ideia a dom inar todos os espí-

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ritos nos próximos anos; a atenção convergindo no mesmo plano fundamental de glorificação pátria pode dar lugar a muitas e valiosas criações. Neste lugar queria porém referir-me apenas a certas publicações que de forma especial, directa, deveriam ficar marcando os centenários e que exemplificarei indi­ cando as seguintes: Publicação da documentação (diplomática e iconográfico) respeitante tanto à fundação da nacionalidade como à restauração: Terras, paisagens e monumentos de Portugal; Álbum folclórico de costumes e iipos populares portugueses; A casa portuguesa (fachadas e interiores dos nossos solares e casas típicas portuguesas); Os primitivos portugueses; Catálogo monumental, ilustrado, da Exposição do Mundo Português; 1940 (álbum panorâmico da obra do Estado Novo). 12. Gizando a traços muito largos os fins a que obedecem as comemorações e a orientação que pretende dar-se-lhes, creio ter ficado dentro das nossas possibilidades - isto é, dentro da nossa capacidade de realização e da modéstia dos nossos recursos: seria contra os nossos princípios de política e de administração empenhar ou vender as pratas da casa para servir um chá luxuoso à família ou aos amigos. É ainda por esta consideração fundamental que só pequena percentagem das importâncias a gastar o serão em coisas que morram, em coisas que passam: a máxima parte deve ficar como obra útil e ajudará por si mesma a perpetuar as festas. Embora pretendendo ser modestos e devendo sê-lo, não creio que nos moldes habituais consigamos realizar toda a soma de trabalho reclamada, em harmonia com o indicado acima. Há decerto que acelerar o ritmo do nosso esforço normal, estabelecendo regras de trabalho de que possa provir rendimento excepcional. Será ainda necessário começar a trabalhar desde já, porque os estudos levarão forçosamente muito tempo, que já é pouco para tanto que há a executar; e para não nos dispensarmos não deverão ser consentidas nem aceites iniciativas isola­ das, isto é, que se não integrem nem subordinem ao programa definitivo ou aos seus objectivos. À comissão que for nomeada e aos vários pelouros a constituir impõe-se seja concedida, uma vez garantida pelo Governo a unidade de comando, grande liber­ dade de acção, descentralizando-se quanto possível a execução das várias iniciati­ vas. Onde há organismos com serviços próprios para as levar a bom termo devem ser aproveitados: tal orientação não só estimulará e desenvolverá a vida desses organismos como diminuirá os inconvenientes da escassez de tempo. 13. Eis sucintamente uma ideia, uma aspiração, um programa (este apenas ligei­ ramente esboçado) e, além disto, os fins a atingir, os meios, as condições de trabalho. As comemorações centenárias são acima de tudo, grande festa nacional, festa para todos os portugueses do mundo e em que todos podem e devem eola-

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borar de maneira efectiva. E se todos para elas co ntribue m , to d o s devem ter sua parte na alegria que criem , na sa tisfa çã o que dêem, na fé e optim ism o que hão -de arraigar nos espíritos acerca da vita lid a d e do povo p o rtu g u ê s e do seu engenho criador. E vamos a ver se, dom inados por tão alta e bela ideia, não expulsarem os de nós o espírito da tristeza e do mal, a fim de nos prepararm os para festejar condigna­ mente - o que raros poderão fazer - oito séculos de independência, quer dizer, de vida livre e de trabalho intenso, em grande parte desinteressado e a favor dos outros povos da terra.

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V. REALIZAÇÕES DE POLÍTICA INTERNA - PROBLEMAS DE POLÍTICA E X T E R N A (,) Senhor Presidente, Senhores Deputados: Realiza hoje a Assembleia Nacional a última sessão ordinária da primeira Legis­ latura, e com ela finda, salvo o caso de alguma convocação extraordinária, a com­ petência dos primeiros eleitos nos termos da Constituição de 1933. Para ser mais nítido o corte com o passado, mantive-me durante os quatro anos de vida desta Câmara sempre ausente, embora nunca desinteressado da sua actividade; mas ao findar este ciclo de trabalho, e em vésperas portanto de nova consulta eleitoral, não me sofreu o ânimo que não viesse vincar com a minha presença a solidariedade dos dois órgãos da soberania e congratular-me com a Câmara pelos resultados obtidos, ao mesmo tempo que agradeço - e sinceramente o faço - a sua patriótica e valiosa colaboração. Acima da natural divergência de critérios particulares no exame de uma ou outra questão e das discussões mais ou menos apaixonadas, mas nunca descompostas ou violentas, o que importa notar é o espírito que informou o traba­ lho comum, é o contributo positivo para a solução dos problemas nacionais. Tomando para si durante o período das sessões o que menor valor poderia ter como elemento da nossa obra legislativa, o Governo reservou por principio ao labor da Assembleia alguns dos mais importantes documentos do sistema jurídico portu­ guês, e parece que nenhum, precedendo os exaustivos estudos da Câmara Corpora­ tiva, deixou de sair daqui grandemente melhorado. Termina este primeiro período experimental, quando acaba tambcm de fazer dez anos desde que a mim mesmo começou a caber-me parte maior ou menor de res­ ponsabilidade no Governo deste País e na direcção de uma obra a principio de ver­ dadeira salvação pública e depois felizmente de engrandecimento nacional: só um sentimento de modéstia, que pelo seu exagero poderia ser considerada vaidade, me levaria a esquecer, ou a fingir esquecer, um facto a que aliás se quis dar por várias formas relevo excepcional. É certo que o ilustre Deputado Doutor Pacheco de Amorim afirma que não devem ter memória os políticos; e até certo ponto con­ cordo com a afirmação. Mão hão-de ter memória para as fraquezas dos homens, pois muitas vezes sc lhes hão-de confiar como se acreditassem na sua hombridade; não hão-dc ter memória

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Na Assembleia Nacional, na sessão de encerramento da I Legisiaura, e r 28 ce Ao'!- ae 1938.

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para as ofensas dos inimigos, pois acontece terem de estender-lhes a mão para que ajudem a erguer o que antes por cega paixão desejaram destruir; não hão-de ter memória para os desgostos, para as noites perdidas, para os esforços mal avaliados, as intenções deturpadas, a honra injuriada, o patriotismo transm udado em interesse, a justiça em gravame, os sacrifícios em delícias do Poder, nem, finalm ente, para a ingra­ tidão dos povos, porque, apesar de tudo e acima de tudo, é preciso servi-los sem res­ sentimento e governá-los com dedicação. Não; os políticos não hão-de ter memória para nada que seja obstáculo à colaboração patriótica, para nada que os leve a pagar agravos com outros agravos, para nada que lhes abata o ânimo no trabalho ou turve na fonte da consciência as rectas intenções. Vive a memória do tem po ido, e, ainda que eu não saiba se a citada frase se referia a políticos sem passado e também felizmente sem futuro, achei-lhe em muitas coisas razão: mas não lha encontrei em tudo. Alguns ufanam-se de sistemas políticos feitos e com pletos, que basta aplicar ao corpo social, são ou doente, em todas as circunstâncias de trabalho, de form ação ou de cultura, em todas as raças ou latitudes. E estes, obececados por suas doutrinas ou sonhos de gabinete, não têm de saber com o são os hom ens ou com o vivem as lações: desprendidos da vida real pelo apriorístico das suas teorias e do passado pela ambição de construir um futuro que não é dele a continuação, também não precisam de ter memória. Mas nós não estamos aí. Com poderosas amarras a alguns princípios fundamentais que a razão esclarecida e a experiência dos séculos consagraram no exercício do Poder; servidos por aquelas luzes superiores que iluminam os fundamentos da vida social e os seus fins; vinculados à tradição e à história da Pátria portuguesa, com seu património, seus interesses mate­ riais ou morais, sua índole e vocação no mundo, há dez, há doze anos se trabalha em tudo que não são bases ou objectivos indiscutíveis, a adaptar, a ensaiar, a experimen­ tar cautelosamente, direi vagarosamente, processos e soluções. Obra de reintegração e de reeducação, obra em que muito há a salvar do que se perdia e m uito a construir e a inovar, é forçoso a cada passo cotejar os princípios e a aplicação, as instituições e os resultados, os sacrifícios e as vantagens, as reacções individuais ou colectivas perante as reformas que violentam os hábitos e os egoísmos; é preciso lembrar-se do que era e de como deixou de ser, do que se desejava e do que realmente foi, para se estar habi­ litado a manter ou a modificar, a prosseguir ou a abandonar com lealdade o caminho errado. E para tanto e a bem dos povos devem os políticos ter memória. Felizmente que a análise mesmo sumária da transform ação operada em Portugal e o exame dos princípios sob cujo influxo ela se operou permitem chegar à conclu­ são de que, à parte a necessidade de retoques nos pormenores, não há mais que conservar, desenvolver e aplicar integralm ente as grandes bases do sistema.

I. V IS T A DE O L H O S S O B R E A A D M IN IS T R A Ç Ã O

A Câmara aprovou ontem sobre o relatório duma com issão especial (que por sua vez se baseou nos m inuciosos estudos do Deputado Sr. Araújo Correia) as contas do

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V. R ea liz a ç õ e s d e P o lítica In ter n a ...

Estado até 1936, e consagrou com o seu voto a administração pública, em oito anos e meio, por que sou directamente responsável. E a estas poderiam já ser acrescen­ tadas as de 1937, acabadas de encerrar com saldo de 200 mil contos, tendo-se pago por conta das receitas ordinárias a quase totalidade daquelas despesas que, pelo facto de se referirem a grandes obras de fomento, se tinha previsto seriam custea­ das por empréstimos. Todos estes factos - ter contas actuais, dispor de saldos, fazer o julgamento da gerência logo que findas - são factos únicos no conjunto da nossa história e são já factos banais na história da nossa Revolução. Por eles se passa com indiferença, e isso me alegra, pois não há para mim maior prova de estar bem resolvido um pro­ blema do que não dar-se por ele. São já de um passado morto as finanças arruinadas, os orçamentos com déficit, a tesouraria exausta, o instituto emissor desviado da sua função, a pobreza do meio circulante, a variabilidade de valor da moeda, a escassez das divisas, as res­ trições cambiais, os juros altos, os capitais expatriados, as baixas cotações da dívida, a multiplicidade inextricável dos impostos e dos vexames fiscais, a anarquia do crédito - tudo enterrado no tempo mas de desejar vivo ainda na memória para não poder repetir-se. Ao classicismo, por assim dizer, da reforma financeira contrapõe-se a revolução económico-social, realizada no sentido corporativo, e também aqui parece não haver que voltar atrás ou mudar de caminho, a termos em conta os benefícios já resultantes do incipiente ordenamento da nossa economia e a melhoria conseguida nas condições de trabalho. E verdadeiramente uma revolução em marcha, a qual. depois de estender-se a todos os sectores da indústria e do comércio e de abraçar a agricultura, dará á vida económica e social uma feição diferente e imprimirá um cunho específico à mesma organização do Estado. Havendo repudiado com seu cortejo de desastres o individualismo e o libera­ lismo do século passado, não nos expusemos a pôr nas mãos do Estado a compe­ tência omnímoda de reger por seus próprios meios e serventuários a economia da Nação; e, tendo-nos revoltado contra uma falsa burguesia parasitária e gozadora, não queremos caminhar para a crescente e geral proletarizaçáo, pois não nos cau­ saria inveja a nação em que só o Estado fosse rico. Não podem fechar-se os olhos a que nalguns casos recentes o potencial finan­ ceiro e económico colocado nas mãos do Estado em virtude de regimes autárqui­ cos, fortemente autoritários e disciplinados, assume proporções que mal se imagi­ nariam e por ora sem repercussão inconveniente no progresso da própria criação industrial. Os Estados não só ficam dispondo de somas enormes para realizações colectivas mas dirigem superiormente a economia como fonte da riqueza da Nação e instrumento de política externa. 0 que se não sabe ainda é se a máquina conti­ nuará funcionando com pleno rendimento sem os génios que ocasionalmente a diri­ jam; e em qualquer caso é bem de recear a sucessiva extensão de disciplina econó­ mica até abranger nas suas estreitas malhas as manifestações espirituais, a família, o mundo das ideias e dos afectos. E teríamos chegado por este caminho á mesma

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escravidão de que andámos fugindo. Embora sem fech ar os olhos aos ensinamen­ tos que outras form as de organização e outras soluções tragam á resolução dos nossos próprios problemas, continuam os a considerar co m o saudável ao corpo social larga margem concedida à iniciativa privada e até à concorrência, desde que o Estado se mantenha com o árbitro supremo entre os interesses em jogo. Demasiado longe (segundo o meu m odo de ver e as m inhas predilecções pes­ soais) nos obrigará a ir nesta matéria a insuficiência técnica ou fin an ceira dos par­ ticulares. Mas, resolvidos a ir até onde seja absolutam ente necessário, não devere­ mos ir mais além. Na actividade traçada ao Estado pela lei de re co nstitu içã o económ ica, sabe a Câmara com o uns após outros se têm form ulado os planos necessários è sua execu­ ção e, com o depois de aprovados, se lhes tem dado seguim ento. Efectua-se a um ritmo sucessivamente acelerado, sujeito embora às condições actuáis da produção mundial, o rearmamento do Exército, e posso desde já anunciar que em breves dias será aprovada pelo Governo a continuação da reorganização da armada com a construção de novos barcos; executa-se o plano postal, telegráfico e telefónico nos termos aprovados pela Assembleia; acabou de ser aqui votado o plano do povoamento florestal das dunas e das serras ao norte do Tejo; está sujeito à apre­ ciação da Câmara Corporativa o plano das obras de hidráulica agrícola, sem embargo de ter-se continuado a trabalhar activamente nas obras já aprovadas; estão conclu­ ídas ou em grande adiantamento as obras dos portos que constituíram a primeira fase aprovada pelo ilustre Deputado Dr. Antunes Guimarães, quando M inistro do Comércio, e a que posteriormente se aditaram os portos de Ponta Delgada, Funchal e Póvoa de Varzim; procede-se à revisão da lei de portos com o condição prévia à aprovação das restantes obras ainda indispensáveis, sobretudo nos de pesca, algu­ mas das quais aliás se têm ido realizando com os recursos ordinários do orçamento; tem o Governo em estudo o diploma que estabelece as bases da electrificação nacio­ nal; a Câmara aprovou nesta sessão a reforma da instrução primária, sobre a qual se pode gisar a respectiva rede escolar e form ular o plano das casas de escola necessá­ rias em todo o País, e não falo nos edifícios liceais e nas cadeias e palácios de justiça acabados de dotar; estão a negociar-se convénios com as com panhias ferroviárias por meio dos quais se esclarecerá a política de caminhos de ferro, e deve dentro de poucos meses encontrar-se uma solução, fora ou dentro das actuais empresas, ao problema da navegação comercial para as colónias. - São coisas m uito grandes a passarem do sonho para a realidade da vida ante os nossos olhos, atónitos de tanto nos haver a decadência habituado a tê-las por impossíveis. Esta vasta acção de fom ento ajudará algum tanto a solução de outros problemas, mas é da organização, sobre a base corporativa, de toda a actividade nacional que há-de provir o remédio para muitos dos males actuais. Temos sustentado ser pura ilusão - e bastos exemplos estranhos o confirm am - separar o social do económico, como se a vida de nós todos pudesse ser independente do trabalho e da riqueza que

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V. Realizações de Politica Interna. . . se produz. Mas, assente essa absoluta dependência para marcar o limite das possi­ bilidades, também não entra nas nossas concepções, como forma definitiva de orga­ nização social, que seja por intermédio do Estado que passem todas as realizações em benefício dos trabalhadores. A ligação do económico e do social não é para nós apenas a indesmentível afirmação de um facto, mas a directriz marcada para a acção. Salários, seguros de doença ou invalidez, habitação, repouso e férias, subsídios fami­ liares, recreios, assistência aos trabalhadores inválidos não poderiam viver do orça­ mento público senão como meio transitório, pois só teríamos assim no fundo suple­ mentos de salários pagos ao Estado em impostos para que os devolvesse sob a forma mais ou menos disfarçada de assistência aos trabalhadores, quando o que deve ser é tê-los em cada ramo de produção como encargos directos e justa compensação do trabalho. Ficará deste modo tudo mais no seu lugar. Apesar do muito que está realizado com as casas económicas, os contratos de trabalho, a constituição das caixas de reforma, a extensão do direito de aposenta­ ção aos operários do Estado, as férias pagas, a fiscalização das condições de traba­ lho, não fujo a dizer que estamos muito longe do ambicionado objectivo, primeiro pela fraca resistência da nossa economia, depois pelo baixo rendimento do nosso trabalho, e por fim porque só lentamente estas ideias vão penetrando nos dirigen­ tes das empresas, nados e criados noutro ambiente. Não creio que a força da nova mística vença por si só a resistência dos egoísmos individuais e das mentalidades feitas em sentido contrário: eis porque julgo que o Estado deverá usar da sua auto­ ridade para conseguir mais rápida compreensão, reservando sempre para si resta­ belecer em benefício dos prováveis desfavorecidos o desequilíbrio provocado pelas condições da produção rica e pobre.

Não podemos estranhar que num Estado corporativo se assista à evolução dos órgãos políticos à medida dos progressos da própria revolução corporativa e que dentro de anos a face actual das coisas se tenha transmudado. Assim a Câmara Corporativa, segundo a organização que lhe foi dada em 1934, não corresponde já inteiramente, à parte a excelência do trabalho produzido, ao estado actual e ao próximamente futuro da organização corporativa, estando indi­ cado venha a sofrer no interregno duma para outra legislatura as m odificações resultantes dos progressos realizados. Acentuou-se já na última reforma da Constituição a quebra do paralelismo fu n ­ cional das duas Câmaras; e, quanto à Assembleia Nacional, duvido de que as altera­ ções últimamente votadas lhe dêem a maleabilidade exigida pelo exercício da fu n ­ ção legislativa a par e passo das necessidades do Estado; suponho teremos de ir ainda mais longe. Mais um motivo para louvarmos a previdência com que se facilitou a revisão constitucional e nos permite sem solavancos nem precipitações ir adaptando os órgãos da soberania à realidade orgânica da Nação.

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1 Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943

Passando apenas pelas cumiadas que representam os m aiores problemas da nossa Pátria, direi ainda duas palavras relativas à política colonial. Uma vez definida pelo A cto Colonial de 1930, não houve até hoje necessidade de tocar-lhe; e dentro das bases nele traçadas se publicaram a Carta Orgânica e a Reforma Adm inistrativa Ultramarina. Para norm alizar inteiram ente a adm inistra­ ção, regulou-se, de modo que parece definitivo, o regime das dívidas das colónias à metrópole e o das dívidas inter-coloniais. 0 tempo desmentiu as profecias que auguravam os piores resultados da aplica­ ção dos princípios de ordem m etropolitana aos dom ínios coloniais. Saneada a vida de cada um, em todos se desenvolveu a produção e o com ércio, tom aram notável incremento as obras públicas segundo planos previam ente elaborados, intensificou se a obra missionária, a instrução e assistência aos indígenas, e o m agnifico espírito de cooperação imperial e de dedicação à m ãe-Pátria vai receber justa consagração na viagem do Chefe do Estado à África Ocidental dentro de meses e esperamos que para o ano à outra costa. Certamente não fizem os ainda calar de todo as vozes m aldizentes, algumas crí­ ticas estrangeiras à colonização portuguesa, nem as alusões à desproporção entre a relativa pequenez da metrópole e a extensão dos dom ínios que colonizam os; não será fácil consegui-lo, pois sabemos que tais estudos não pretendem ser objectivos nem os orienta um espírito de verdade ou de justiça: têm outra razão de ser e outro fim, contra o qual se deve estar sempre prevenido. II. P O L ÍT IC A E X T E R N A E S IT U A Ç Ã O I N T E R N A C IO N A L

Fui demasiado longo nestas minhas considerações; apesar disso não desejava term iná-las sem ligeira referência à nossa política externa e à situação internacio­ nal portuguesa, pois, ainda que os factos possam falar por si, convém esclarecê-los com alguns elementos de interpretação. Tem-se a Europa encontrado nos últimos tempos, por mais de uma vez, à beira da catástrofe, e o relativo apaziguamento desta hora não pode garantir-se que sobre­ viva à resolução de algumas grandes dificuldades pendentes. Levou-a até aí a polí­ tica idealista, presa de certos grandes tropos conhecidos e de algum as frases Feitas; foi o tempo em que crédulamente se admitia a miragem da «paz universal e indivisí­ vel» e da «segurança colectiva», dos acordos e pactos no «quadro da Sociedade das Nações». Esfalfada esta pelo grande esforço a que a obrigaram, m uito para além das suas possibilidades, eis que de todos os lados se afirma e goza do maior favor a cha­ mada política realista, aureolada por alguns grandes sucessos. Por mim estou em recear tanto uma como outra; preciso para isso de defin i-las a ambas. A política idealista não é essencialmente uma política de ideal; pode tê-lo, pode não tê-lo, e geralmente não tem nenhum. 0 que a caracteriza é a ausência do real,

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V. R ea liz a ç õ e s d e P o lítica In tern a ...

é a abstracção dos factos, c estar vinculada a sistemas teóricos sem ligação com as realidades da vida e as mutações produzidas pelo domínio de outras correntes dou­ trinárias e pelos acontecimentos históricos. Quer dobrar o mundo às suas concep­ ções abstractas, sem medir as possibilidades, nem as contingências, nem as forças opostas, e por esta forma acumula fracassos sobre fracassos. Nos últimos anos entrincheirou-se do dogma da bondade dos homens e da ino­ cência das nações, no sonho da paz perpétua entre os povos, como se todos fossem pacíficos e estivessem contentes, na abolição das guerras, na possibilidade do desarmamento integral, na virtude imanente do direito e da justiça. Por este modo tornou-se extática e inactiva, cega perante todos os factos que à evidência demonstravam a sem-razão das suas posições: cega perante o facto de serem alguns pacifistas que preparavam as guerras: cega perante o facto de que o direito criado pelas vitórias só pode manter-se enquanto se mantém a força que o impôs; cega perante as divergências entre os sentimentos e os interesses de um lado, os acordos e os compromissos do outro; cega em Espanha, cega em Praga, cega em Genebra, cega em muita outra parte. Em face desta perigosa cegueira, outras nações aplicaram métodos diferentes e obtiveram incontestáveis triunfos. Com inteiro conhecimento das circunstâncias, das possibilidades próprias e alheias, houve realismo no Sarre, realismo na Renânia, realismo em Dantzig, realismo no Anschluss; do outro lado houve e há também rea­ lismo no Brenner em 1934. na adesão ao acordo de Nyon para a fiscalização do Mediterrâneo em 1937, no recente convénio anglo-italiano, e até nos contidos sen­ timentos com que se aceitou o desaparecimento da Áustria. Simplesmente - e começam aqui agora as restrições - esta política fascinará em breve as inteligências e apresentará o perigo de arrastar as vontades para o que no meu pensar é já desvirtuamento da política realista - a política do facto consumado, a política da força. Eu sei que a razão também tem força; por outras palavras, tam­ bém é uma realidade: o maior empenho dos que se dispõem a recorrer às armas é demonstrar, e nisso lhe prestam homenagem, que o fazem em defesa do seu direito. Mas ninguém tem dúvidas de que essa força não basta, e os que desejaríamos viver na paz e segurança do nosso direito teremos de lamentar toda a política indiferente às imposições do direito e desprovida de um ideal superior de justiça - lamentar e, em harmonia com as realidades, prevenir-nos também: tal é o sentido do nosso rear­ mamento, das amizades na Europa e fora dela e da aliança inglesa.

Conformemente ao que nos dava a observação dos factos, já em 1935 a nossa actividade internacional era definida nas palavras seguintes, a cujo sentido nos temos mantido fiéis: «Sente-se que a linha tradicional da nossa política externa, coincidente com os verdadeiros interesses da Pátria Portuguesa, está em não nos envolvermos, podendo 375

Discursos

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Oliveira Salazar Notas Políticas • 1938 a 1943

ser, nas desordens europeias, em m anter a amizade peninsular, em desenvolver as possibilidades do nosso poderio atlântico.» Do carácter de potência atlântica nasceu a aliança inglesa, e provêm, ju n ta­ mente com os justos im perativos de um dos maiores factos da nossa história, ínti­ mas e poderosas ligações com o Brasil. Refiro-m e em primeiro lugar à aliança anglo-lusa. A Europa está bastante inquieta e um dos sinais do seu nervosism o é sem dúvida o ciúme que provocam m anifestações correntes de boa am izade internacional e a necessidade de reafirm ações sucessivas dos mesmos sentim entos, com o se os tra­ tados e os acordos não vivessem da confiança na palavra dos Estados mas se ali­ mentassem como derriços de constantes declarações sentim entais. Nós não adop­ tamos porém essa forma de proceder, nem na verdade tenho nada a acrescentar ao que disse sobre a aliança inglesa em 6 de Julho do ano passado. À s mesmas neces­ sidades e interesses correspondem os mesmos sentim entos e com prom issos: daqui não se falta ao devido; e da parte da Inglaterra estou certo de que tam bém não. Em todo o caso não fujo a notar que nos últim os meses, por vezes em dias segui­ dos, jornais da esquerda em Inglaterra (é certo que de m uito baixa cotação) agridem Portugal, convidam o Governo britânico a rever, com o quem diz a abandonar a aliança, sugerem-lhe se apodere para a sua segurança de te rritório s nossos, e par­ lamentares da oposição insistentemente o provocam a responder sobre a validade dos tratados e a sua aplicação às colónias, não certam ente pelo gosto de ouvirem confirm ar a plena validade de compromissos antigos. Ora nós sempre considerámos por nossa parte a aliança com o negócio de Estado e não fruto de simpatias de partido, e de que assim também têm sido do lado inglês temos a prova nas declarações term inantes que a esse respeito foram feitas por membros da actual oposição quando no governo, com tal força se lhes impunha, juntam ente com as responsabilidades dos interesses britânicos, a com unidade de interesses anglo-portugueses em que se funda a aliança. Por esta razão, m encionando o facto para acusar-lhe a estranheza, não o tenho considerado com o suficiente para causar-nos preocupações; antes o tenho atribu­ ído à circunstância de começarem a aparecer no regime p o lítico inglês processos de combate que caracterizaram desde o princípio as dem ocracias continentais. Supondo porém que me engano neste juízo, mais acertada ainda se m ostra a polí­ tica que seguimos - valorizar-nos, de m odo que a nossa am izade seja sempre que­ rida e o nosso valim ento em favor deste ou daquele nunca nos seja im posto nem declinado, se oferecido. A situação do Império Britânico no mundo, a situação de Portugal no A tlân tico e em África são factores suficientes para nos imporem por tem po im previsível a mesma colaboração de aliados; e por este m otivo consideram os da m aior im portân­ cia para ambas as nações que o Governo inglês haja tom ado a in iciativa de mandar a Portugal uma missão m ilitar que há várias semanas estuda com os nossos técn i-

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eos problemas de interesse comum. Há muito tempo se fazia sentir a necessidade de mais estreitos contactos, de assídua troca de conhecimentos e informações e até de maiores precisões no que toca ao funcionamento da aliança. Estas particular­ mente são-nos úteis e somos obrigados a atribuir-lhes o maior interesse, pondo-as, se necessário, na base de quaisquer negociações, pois sem elas não seria nunca fácil definir em Portugal qualquer política militar. E mais não é preciso dizer para inferir a perfeita solidez, na actualidade, dos laços que desde séculos nos unem à Ingla­ terra, sem prejuízo das boas amizades que a outros nos prendem.

Digamos agora alguma coisa da Espanha. «Nós desejamos tão amigáveis e cor­ diais relações com a Espanha, que desapareçam desse lado todas as desconfianças e preocupações. Não só no campo económico se podem desenvolver muito as rela­ ções entre Portugal e a Espanha, mas ainda no campo político parece não ter hoje aquela nação nenhum interesse contrário aos interesses portugueses, dado que a nossa plena independência, para a realização dos nossos destinos no mundo, tem de ser axioma fundamental da política espanhola. Nesta base temos o campo aberto para entendimentos mútuos». Estas palavras eram tão sinceras e leais que as dirigia eu, em 1935, a alguns que aliás veio depois a demonstrar-se tinham no seu passado ligações delicadas com emigrados políticos e combinações suspeitas acerca de Portugal, e estas talvez não assentassem nos mesmos postulados, a considerarmos o entusiasmo com que se lhes referiam trechos de memórias já publicados... Desde então do lado de lá da fronteira houve a revolução e a guerra, substituí­ ram-se por outras muitas situações políticas, implantaram-se novas ideias de governo, gozam de favor outras doutrinas, revelaram-se amizades e influências - em suma, muita coisa mudou; mas do nosso lado nada, pois continuámos a ofere­ cer à Espanha a mesma amizade fraterna. Não queremos ficar aquém e não pode­ mos ir mais longe. Nós sabemos que esta posição é perfeitamente compreendida e aceite pelas pessoas responsáveis no governo e direcção mental da Espanha nacionalista, e temos atribuído alguns desvios aos fumos inebriantes da vitória, à exaltação provo­ cada por duríssimos sacrifícios e à necessidade de apelar para os mais altos heroís­ mos. Passado o momento convulsivo da horrorosa guerra civil, esmagado o comu­ nismo e salva a Espanha para a civilização ocidental, quando os espanhóis se ocupem de reparar as ruínas e de erguer o futuro, a todos se há-de impor, como a própria evidência e luz da razão política, este facto irredutível da dualidade peninsular con­ tra o qual, se foram impotentes as tradições federalistas das duas repúblicas, tam ­ bém não o é menos a tradição imperialista de Filipe II - Mas eu afastei-me um pouco do ponto preciso que acerca da Espanha desejava tratar. Influências a que há muito vinham estando sujeitos alguns governos espanhóis, aumentadas com o desenrolar e as necessidades da guerra, as vicissitudes desta, a 377

O liv e ir a S a l a z a r

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Notas Políticas



1938 a 1943

mesma ideologia de crime e destruição que está no fun do da resistência de muitos, fizeram com que o governo que tinha por si a presunção da legalidade fosse per­ dendo, uns atrás de outros, todos os requisitos de governo legítim o. Dividida a Espanha não reconquistada em fracções, cada uma agora já sujeita a seu governo, suspensa a Constituição, substitituídos uns governadores por ou tro s sem sujeição aos preceitos constitucionais, evidenciada a carência da autoridade na inexistência de garantia das vidas, crenças e bens das pessoas, com o a lei ainda teoricam ente as define, poderá afirm ar-se que persiste em Espanha o cham ado governo legal? Quando por outro lado se considera, nos territórios libertos da guerra ou do terror vermelho, como reina a ordem, se desenvolve o trabalho, se adm inistram os interes­ ses gerais, se cuida do bem dos povos, poderá continuar a dizer-se que se trata ape­ nas do mando arbitrário de generais rebeldes? Tendo meditado longamente sobre este problema, pareceu-m e que seríamos réus de covardia não encarando de frente as situações criadas e não tirando delas as conclusões que se impõem — reconhecendo de direito o G overno do Generalís­ simo Franco como o governo de Espanha. E o que anuncio agora realizá-lo-em os em breve. Estando ainda longe o termo da guerra, não fazem os com isto um negó­ cio nem vamos pressurosos ocupar uma posição; afirm am os simplesmente, ante a reserva ou a incompreensão do grande número, os direitos da verdade e da justiça.

Vou concluir. Relembrando factos, repetindo ideias, to ca ndo problemas, não tive a pretensão de fazer nem um apanhado de realizações do Estado Novo nem o processo crítico dos seus princípios fundamentais: a obra já não cabe num discurso nem o seu valor depende do que eu próprio diga em seu abono. Noto porém que, não sendo ainda o que poderia ou deveria ser, uma virtu de tem, inegável: Portugal foi chamado a nova vida, com o se ressurgisse do tú m ulo ou pelo menos se erguesse daquela tristeza, ao mesmo tem po apagada e vil, a que se refe­ rira o poeta. Não poderíamos ter do facto m elhor dem onstração que o entusiasm o com que os portugueses se aprestam para as com em orações centenárias de 1939-1940. De todas as classes, de todos os meios, de todas as terras e dom ínios, de todos os pon­ tos do globo onde agenciamos a vida ou por onde andám os batalhando, se acorre entusiasticamente ao cham am ento de oito séculos de história. E é, como no princípio do decénio, com a impressão de uma tarefa m uito pesada mas a mesma fé nos destinos de Portugal que, sob o olhar da Providência, começo mais um ano de vida e mais um ano de governo.

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VI. «MAIS E MELHOR» "> Soa solicitado para dirigir duas palavras à Mocidade Portuguesa e, levando à letra o pedido, direi entre muitas possíveis as duas que, embora em aparente con­ traste com a beleza deste espectáculo e o sincero entusiasmo geral, traduzem a necessidade de progresso e a ânsia da perfeição: mais e melhor. M aisidd capital à província, da cidade à aldeia e ao campo; mais dos milhares às dezenas, das dezenas às centenas de milhares, até à integração completa neste movimento da nossa mocidade. Melhor: ainda melhor na cultura física, no cumprimento dos deveres, no amor da família, do trabalho e da terra, na consciência da utilidade e da responsabilidade pessoal, na disciplina e na devoção patriótica. M ais e melhor: mais até serem todos; melhor até serem um por Portugal.

1,1

Palavras dirigidas à Mocidade Portuguesa, na Festa do Jockey Club, em 29 de Maio de 1938.

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VIL A REVOLUÇÃO E O EXÉRCITO (1) Srs. Oficiáis: A vossa benevolência há de dispensar-me hoje de fazer um discurso; mas o cora­ ção não me dispensa de agradecer o convite para esta festa nem de sublinhar em duas palavras o claro significado que todos lhe hão-de ver. Esse significado é: a doze anos do 28 de Maio, decorrido um período suficiente­ mente longo para que de ordinário passe o interesse da novidade, afrouxem entu­ siasmos do começo, amorteça o esforço da primeira arrancada, mudem de opinião os homens, substituam ídolos as massas, seque e morra na dedicação pública e na rea­ lidade da vida tudo que não tem raízes profundas na consciência dos povos - a doze anos do 28 de Maio, mil oficiais, por si e em representação dos que decerto muito sentem não ter podido vir, afirmam com a mesma fé e consciência da sua responsa­ bilidade: o Exército está com a Revolução. Nos doze anos que precederam estes ou nos outros antes deles que mutações e que metamorfoses na vida portuguesa: assassínios de Chefes do Estado, substitui­ ção de regimes, formação e desagregação de partidos, ditaduras e parlamentos, guerra e paz, revoltas e conspirações, governos e desgovernos, tantas esperanças e desilusões em tão pequeno espaço que muitos reconheciam não ser aquilo que sonhavam, tantos ódios e malquerenças que os homens uma vez reunidos para a luta não mais podiam encontrar-se para a acção. Pois, Senhores, essas transformações não eram senão arremedo de mudanças: no fundo a mesma desorientação dos espíritos, a mesma indisciplina dos indiví­ duos e das colectividades, o rumo perdido duma grande nação; e nas ruínas e perigos internos ou externos os dirigentes enjeitavam culpas e responsabilidades e não se reconheciam já na sua própria obra. Sendo tudo tão igual, não atino com a razão do facto. Ao contrário, nestes doze anos, já em nada se parece o ponto de chegada ao ponto de partida - nos melhoramentos materiais, na ordem moral, na dignidade política, na paz pública, na organização do trabalho e da economia, no reatar da nossa tradição, no renascimento de toda a actividade, no perfeito domínio de si, na

01 No banquete de confraternização de oficiais do Exército, realizado no Pavilhão de Festas do Par­ que Eduardo VII, em 29 de Maio de 1938 (em comemoração do XII aniversário da Revolução Nacional).

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posição conquistada entre as nações, na consolidação progressiva do Império Colo­ nial, no reencontrado sentido da vida e do progresso com o nação. E, havendo tanta coisa mudada, é natural que o País já não se conheça a si mesmo, mas o Exército reconhece a Revolução: com o árvore plantada em pequena, crescida e frondosa agora, reconhece a Revolução e está com ela. Entendo por este reconhecim ento e assistência que persiste a lembrança das causas que provocaram o 28 de Maio, vive a consciência do mesmo imperativo nacional que o originou, patenteia-se em metódica realização e satisfação aquele conjunto de sentimentos e de aspirações, de interesses e necessidades que tradu­ ziam mais que um momento da nossa história, porque se confundem com a própria vida e a alma da Nação. Entendo por este reconhecim ento que a Revolução se m antém fiel ao seu pen­ samento de começo - nacional sem equívocos, espiritualista sem reservas, popular sem subserviências nem privilégios. A Nação continua o ponto de referência de todos os actos do Governo e o ponto de encontro de todos os portugueses de boa vontade; o espírito é chamado a dominar a matéria por superioridade essencial e oor correcta disposição de valores, na educação, no trabalho, no sentido profundo ia vida; os mais fracos e mais sujeitos por sua fraqueza às inclem ências da fortuna j aos abusos dos fortes têm por bem entendida justiça direito a especial protecção e, sem ser melhorada a sua situação material e transform ada a posição na sociedade e no Estado, a Revolução não com pletou a sua obra. Entendo por aquela assistência o mesmo cuidado e vigilância, a mesma pronti­ dão no ataque e na defesa, a mesma valentia e desprezo dos riscos e da vida com que tem tido necessidade de assegurar a estabilidade da situação p olítica — condi­ ção primária de uma obra fecunda. Está pois o Exército com a Revolução; ocorre-m e perguntar se a Revolução estará também com o Exército. Como partido suposto beneficiário de actos do Governo, com o classe que para si talhasse parte especial de interesses ou favores ou privilégios negados às outras, como indivíduos cuja influência m ilitar se arvorasse pelo carácter do m ovimento em situação política, é visível não estar a Revolução com o Exército, cujos com po­ nentes em nada beneficiaram com ela; e não está, em nome dos mesmos princípios por ele adoptados e por exigência da mesma pureza de ideal que deve tê -lo inspi­ rado na sua acção. No mais está com ele. Está com ele quando o vê na sequência ininterrupta e na herança dos que por oito séculos formaram a Pátria, consolidaram as fronteiras, alargaram além -m ar os domínios portugueses, reconquistaram a independência, fundaram im périos sobre impérios e cuja espada brilhou ao sol de todos os continentes. Está com ele quando, no meio do desinteresse geral, considera a desolação da sua decadência, a sua tristeza por sentir-se incom preendido e ju lg a d o inútil, a sua revolta íntima, porque, exigindo-se-lhe a vida, não se havia posto em condições de ao menos vendê-la caro. 382

VIL A R evolução c o Exército

Está com ele na sua ânsia de renovação e de progresso, no desejo de uma for­ mação técnica tão perfeita como aquela a que dão direito a inteligência e saber teórico dos melhores valores, na necessidade da reforma moral, na cultura das virtudes militares, na subordinação consciente e total - corpo e alma - , no inteiro sacrifício a essa realidade superior que é a vida da nossa gente e a histó­ ria da nossa terra. Está com ele - e falo agora em nome do que sei, do que vejo e do que quero como português e homem de governo que não precisa de um partido militar nem de uma guarda pretoriana — está a Revolução com o Exército quando o encontra no desenvolvimento lógico da sua política de engrandecimento da Nação, como necessidade premente e factor essencial. E não digo sobre este ponto senão as pre­ cisas palavras para ser compreendido um pensamento fundamental.

Entendidas, assentes, consolidadas estas duas posições - a do Exército que está com a Revolução, a da Revolução que está com o Exército - , tudo quanto nestes doze anos tem ameaçado tão fecunda solidariedade se deve considerar muito inte­ ligentemente orientado mas destituído de eficácia. E pois que temos a felicidade de compreendê-lo bem, pudemos dar-nos à pura alegria desta festa. Deveria em agradecimento da vossa gentileza erguer a minha taça pelo Exército português de que sou neste momento o chefe; mas Alguém, acima de mim e de vós, representa mais perfeitamente o sentido de unidade superior que as minhas pala­ vras pretenderam traduzir: camarada vosso pelas armas, erguido por suas qualida­ des e virtudes à mais alta situação, bebamos pelo Chefe do Estado, Sr. General Car­ mona, fiador supremo da Revolução Nacional!

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1

VIII. PREOCUPAÇÃO DA PAZ E PREOCUPAÇÃO DA VIDA w Meus Senhores: Com dificuldade compreenderiam muitos que mantivesse absoluto silêncio em toda a campanha eleitoral. Não fugirei por isso a dizer algumas palavras, as menos possível, dado que nada saberia acrescentar de real valor-à propaganda já feita. A renovação da Assembleia Nacional, segundo o espírito da Constituição Política e o nosso sistema de eleição, tem essencialmente carácter plebiscítário: o acto elei­ toral não se destina tanto à designação dos Deputados como ao reconhecimento solene das benemerências do regime político e à afirmação da confiança do País na realidade sempre fecunda dos princípios da Revolução Nacional. É-me impossível fazer referência, ainda que em rapidíssima síntese, ao trabalho realizado desde o principio e ao que esperamos realizar no futuro. Mas nos anos mais próximos, nós - como outros - vamos ser inteiramente dominados por duas grandes preocupações - a preocupação da paz e a preocupação da vida - quer dizer, problemas de política externa e defesa militar; problemas de produção e orga­ nização económica O que disser andará pois só à roda destes dois pontos.

I. PR E O C U P A Ç Ã O D A PA Z

O mundo viveu nas últimas semanas horas de grande inquietação. Por muita parte, desusada actividade diplomática, apelos patrióticos, medidas defensivas das cidades, evacuação de populações, movimentos de tropas faziam pressentir imi­ nente a grande catástrofe. Aqui chegaram os rumores dos perigos, seguiu-se com ansiedade o desenrolar dos acontecimentos e sentia-se - por menos que se auscul­ tasse a consciência pública - sentia-se o reflexo da angustiada dúvida universal: a Europa tem ainda esta excepcional posição e singular privilégio de que as suas grandes crises políticas parecem abalar os alicerces do mundo. Apesar disso nenhuma declaração entendi dever fazer, como entendi evitar ao nosso povo a precipitação de medidas custosas e graves, que aliás supunha desne­ cessárias. Era minha convicção segura que não haveria guerra. De facto ninguém

A

,rt Proferido na Emissora Nacional, no encerramento da camparha eleitoral para constituição óa nova Assembleia, em 27 Outubro de 1938.

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Oliveira S olazar D iscursos e N otas P olíticas • 1938 a 1943

queria a guerra; ninguém estava preparado m ilitar e econom icam ente para ela; a questão de que deveria sair o co n flito estava posta dos dois lados no terreno dos princípios por que nos últim os vinte anos se tem pretendido a fe içoa r e d irigir a vida internacional. Bastava que os homens responsáveis fossem colocados em presença para encontrarem, premidos além disso pela com oção geral, o cam inho entre a razão e a necessidade. M as isto que nos parece tão sim ples agora é já perante a História a indiscutível glória de Chamberlain, a quem o Chefe do G overno italiano deve ter dado a colaboração decisiva do seu génio político. A s mesmas razões que me convenciam da im probabilidade da guerra me tran­ quilizavam acerca da sua generalização, não vendo por que haveria de envolver-nos necessàriamente nem descortinando razões que nos forçassem a abandonar o firme desígnio de poupar até ao últim o extrem o o nosso povo aos horrores da miséria e da destrição: tratava-se de co nflito sem qualquer interesse para nós e por causa de um Estado com o qual nos vimos mesmo forçados a não ter relações normais. Mas um co nflito extenso teria repercussões imprevisíveis e pelo fatal encadeam ento das poisas ninguém poderia saber até quando e até onde fica ria indem ne da sua acção, tanto mais que à nossa porta o problema espanhol poderia converter-se - e muitos o desejavam - num aspecto ou sector da grande luta. Por esses motivos, se não devíamos abandonar-nos ao desânim o, ninguém com justiça nos poderia julgar isentos de preocupações. Essas preocupações duram ainda e acom panhar-nos-ão por largo tempo, pois, contrariam en te ao exagerado optim ism o que sucedeu à ansiedade e desolação de m uitos, ju lg o co n tin u a r a crise de que o problema checo foi apenas episódio ou incidente. A verdade que todos sentem e ninguém se atreve a confessar é que o m undo vive em crise de modo: saber com o e em que sentido se desenvolverão a força de expansão e o génio dos grandes poderios m ilitares constitui objecto de preocupação geral. Todos temos ouvido ser o Tratado de Versalhes a fo n te do m a l-e star europeu. Mas, apesar de os críticos terem hoje por si a luz dos próprios acontecim entos, a mim me parece esquecerem-se a cada passo três pontos fundam entais: o primeiro é que houve em 1918 nações que ganharam e nações que perderam a guerra; o segundo é que as condições duma paz vitoriosa, se não se tiverem esgotado com o simples facto da vitória, não se mantêm senão enquanto se mantém a força que as ditou, e esta desagregou-se ainda antes da paz: o terceiro é que a reconstituição das nações, se não fo i atacada a fonte essencial da sua vida, é fa c to por demais verificado na História, e que designadamente a França m oderna ilustra a seguir às guerras napoleónicas e ao desastre de 70. Se pois é estranho pretender que aos paí­ ses vencidos na Grande Guerra nenhuma im posição se deveria fazer, é insensato supor que a Alemanha poderia indefinidam ente resignar-se a v ive r numa espécie de menoridade que violentava a sua consciência nacional e, a ser possível, privaria* em qualquer caso a Europa da extraordinária capacidade de organização e de trabalho de muitas dezenas de m ilhões de homens superiorm ente apetrechados e cultos. Assim aconteceu que as mesmas razões que im peliram a Alem anha para o regime que consubstanciava, senão a revindita, ao menos a unidade, a plenitude da sobe386

Víll.

Preocupação da Paz e Preocupação da Vida rania e a recuperação da anterior grandeza, levaram a política europeia a enrodi­ lhar-se impensadamente na aversão ao sistema político, a tentar isolá-lo e a criar barreiras ideológicas queja não coincidiam com os interesses aliados e não tinham mesmo lógica, desde que as «grandes democracias» se vangloriavam da contribui­ ção soviética. A Alemanha, embora com algum exagero, encarnou então o papel de perseguida, levou a extremos o sistema económico e financeiro que poderia dar-lhe a maior soma de disponibilidades para gastos improdutivos e criou um imenso poderio militar que em plena paz lhe permitiu alargar as fronteiras do Império. Há alguns anos entre considerações acerca da crise europeia, tive oportunidade de conf iar ao papel estas palavras que, se então não foram compreendidas, estão já hoje ilustradas pelos factos: era preciso, escrevi eu, não esquecer que os povos, como os indivíduos, precisam de ser tratados com justiça, que os problemas da vida não se resolvem com simples fórmulas e por último que a guerra não tem medo... do medo. Dois anos antes, em Genebra, quase sós e em todo o caso contra o pare­ cer e a política da Inglaterra e da França, então dominadas pela preocupação de um pacto de leste que nunca mais se fez, nós batemo-nos por que os Sovietes não entrassem na Sociedade das Nações, convencidos de que o seu espírito acabaria por derrancar aquele organismo, já demasiadamente eivado de ideologia socialista e intemacionalista, e já demasiadamente ambicioso e preocupado de uma política sua, para não virem a ser mais tarde ou mais cedo afastados os que na política interna e na defesa dos seus interesses entendiam seguir princípios diversos. Ora bem: por sentimento de elegância para com os homens responsáveis pela direcção dos negócios da Europa, não quero cotejar os factos e as previsões; mas quem quer pode verificar que os perigos cresceram com o esquecimento daquelas verdades elementares, e a crise foi afastada na medida em que se lhes obedeceu. Sucedeu a acção a vagos discursos sem sentido; despiram-se os homens de Estado de mesquinhos preconceitos da política partidária; enfrentou-se a realidade senão a justiça de certas aspirações; a força começou a revelar a sua presença; m odifi­ cava-se o mapa da Europa no respeitante a quatro nações, enquanto Genebra admitia em surdina uma proposta de mera especulação política para a retirada de voluntários das terras de Espanha; e até a Rússia soviética, aliás directamente inte­ ressada na contenda, teve de ser afastada como indesejável para ser possível alcançar a paz. Grande derrota e para muitos duríssima lição! Saíram de Munique, senão uma nova Europa, ao menos as perspectivas de uma Europa muito diferente. No domínio político, nas relações económicas, nas possibili­ dades militares, nas influências diplomáticas peia amizade ou vizinhança, acabou-se nos últimos meses a obra de destruição de Versalhes e em poucas horas se substituí­ ram por outras as bases que foram da política europeia durante dezenas de anos. Isto não é necessariamente a guerra. Pelo contrário, é bem possível encontrar para os pro­ blemas que ficaram ou surgiram desta crise soluções de colaboração amigável, talvez até com mais facilidade que nas circunstâncias anteriores. Infelizmente - e não é pre­ ciso para isso pôr em dúvida a sinceridade dos desejos e declarações de paz repeti387

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dos de todos os lados - infelizm ente a paz na Europa depende apenas do equilíbrio forçosam ente instável de dois factores: o desenvolvim ento que hajam de ter na prá­ tica da vida e relações dos Estados certos princípios e processos que estão postos e experimentados e a evolução do medo à guerra no espírito das nações e sobretudo dos seus governantes. Por este m otivo assisto sem a m enor estranheza á intensifi­ cação dos armamentos sobre a troca solene de am abilidades e às mais peremptórias declarações de não recorrer às armas para resolver co n flito s de interesses. Falta uma palavra acerca das eventuais com plicações que poderiam advir para a península da guerra civil espanhola. Alguns estavam ansiosos de ver, aliás em m elindrosas circunstâncias, a demons­ tração prática de como fora errada a política do Governo em relação à Espanha nacional; e os mesmos com outros entendiam ser mais conveniente para os nossos interesses termos fronteiras comuns com os vermelhos, inim igos da nossa indepen­ dência e em todo o caso da nossa tranquilidade, a term o -las com o Governo amigo do Generalíssimo Franco. Parece que houve ainda quem visse alucinadam ente tro­ pas de terceiras potências a avançar pelo nosso território, vindas de Espanha, para ocuparem as principais bases das costas portuguesas. E m eteu-se m uito medo... às crianças com esta invasão. Ora por nós não tínham os que re ctifica r a posição tom ada desde o começo do co nflito espanhol, nem a atitude havida para connosco pelas duas Espanhas, antes e depois da eclosão da guerra civil, prova que a nossa deveria ter sido diferente. Ela foi naquele momento, ela continua a ser no presente a que não só corresponde à nossa ética política mas às reais conveniências e mais claros interesses de Portugal. A delicadeza do problema estava em que as circunstâncias da política espanhola ou outras, mesmo contra sua vontade, pudessem criar à Nação portuguesa um con­ flito entre o sentimento e o dever. Seria para nós extrem am ente doloroso, por con­ trário à consciência e a alguns dos nossos interesses, sermos postos na necessidade do contribuir para a destruição do que com tanta simpatia tem os visto edificar. O justo, o razoável não era negarmo-nos a nós próprios; o necessário era evitar que chegás­ semos a contradizer-nos. A mim pareceu-m e desde o com eço evidente que o m aior interesse da Espanha nacionalista estava em m anter-se neutral em qualquer c o n flito eventualm ente nas­ cido dos problemas do centro europeu; tratava-se agora de ajudar na medida do possível os seus governantes a definirem e a manterem essa neutralidade. A decla­ ração pública desta política e a sua efectivação convinham m áxim am ente ao inte­ resse da França e da Inglaterra, e, embora com a perda de algum as possibilidades, também à Alemanha e à Itália, a quem sobretudo tem interessado no c o n flito espa­ nhol erguer barreiras à invasão com unista. E, com relação a Portugal, a Espanha desejaria ainda mais a certeza da tranquilidade nas fronteiras m utuam ente garan­ tidas, em correspondência com a amizade fraterna que liga os dois povos peninsu­ lares. Oxalá a vitória da verdadeira Espanha nacionalista possa em breve constituir base indestrutível dessa política de recíproca segurança! 388

VIU.

Preocupação da Paz c Preocupação da Vida Assim se criaram condições de tranquilidade na fronteira terrestre e se diminuí­ ram as possibilidades de extensão do conflito e de nos envolvermos nele; assim se chegara à demonstração palpável de que não erráramos o interesse nacional quando definimos a nossa atitude na guerra civil de Espanha; assim preservávamos por nosso lado a paz e podíamos reservar-nos para outras eventualidades. Todos pude­ ram deste modo ficar contentes, com excepção de alguns descendentes dos antigos «amigos da Sérvia», cujo entusiasmo bélico, acabadas as manifestações, eu estava aliás inteiramente decidido a aproveitar para o primeiro choque... E passo à outra grande preocupação - o vida. II. PR E O C U PA Ç Ã O D A V ID A

Mesmo que os homens de Estado consigam providencialmente evitar que a Europa se esfacele em largo conflito, basta que persista a atmosfera de inquietação para que o mal-estar económico não tenha alívio possível. A paz fortemente pre­ venida e desconfiada em que se viverá não há-de ter só influência na economia dos países a cujo esforço de rearmamento tudo seja subordinado, mas na de outros que, afastados das grandes competições políticas ou militares, desejariam apenas viver na tranquilidade, mesmo è custa da mediania. 0 esforço dos armamentos além das possibilidades normais tinha já convertido em verdadeiras economias de guerra as economias de algumas nações, e eu não sei se, além do evidente contágio de certos princípios políticos que já começam a ser considerados superiores, ao menos para épocas de crise, e em cuja adopção só aliás haveria vantagens, as necessidades da intensa preparação bélica não farão alastrar como nódoa as autarquias económicas e as restrições e regulamentações da produ­ ção e do comércio. Estas têm sem dúvida funcionado como engrenagem de econo­ mia sui generis; têm tido a virtude de manter o equilíbrio, embora em circuito fechado; podem mesmo considerar-se como tentativa de racionalizar a economia, de regular a produção pelas necessidades dos consumos vitais, de evitar todos os desperdícios que outros modos de organizar a vida fatalmente importam. Mas nós não vamos assistir à disputa académica sobre a superioridade para a vida econó­ mica mundial de dois processos diferentes, nem porventura à competição dos dois para se conquistarem as adesões e as influências: nós vamos verificar se o resto de liberdade económica existente no mundo sob a influência dos países que ainda lhe são fiéis vai resistir à pressão das necessidades dos tempos novos. E entretanto é preciso viver... - Este é o primeiro ponto a que há-de prestar-se atenção. O segundo diz respeito a traço que parece característico não já da economia de hoje mas da civilização moderna: o império da quantidade com o envilecimento correspon­ dente da qualidade dos produtos e a unânime exigência do baixo preço. A fatuidade, as necessidades, a velocidade da vida moderna estarão na base do fenómeno; mas suspeito que também o empobrecimento real das populações aí anda escondido e dissimulado. 389

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Enquanto a humanidade se não desgostar - se um dia se desgostará! - desta abundância aparentemente rica, no fundo insuficiente, e na m edida em que a racio­ nalização da vida económ ica não imponha, em harmonia com necessidades de eco­ nomias de guerra, orientação diferente, a produção industrial não tem interesse em seguir outro rumo e ela própria se defenderá na concorrência geral, continuando a envilecer-se. Mas quanto às produções filhas dilectas da terra, para as quais natu­ ralmente, essencialmente o alto grau da qualidade só é m uitas vezes compatível com a pequena quantidade e o elevado custo, nenhuma adaptação parece possível, e o espírito hesita nas soluções necessárias. — E entretanto é preciso viver... Estas são dificuldades do mundo e não só nossas: o que particularmente nos respeita a traços largos se pode expor. De 1926 a 1938 a nossa população do continente e ilhas aumentou cerca de 1:400.000 indivíduos, quase V5 do total. 0 solo está ocupado e não é fácil; salvo as terras aptas e destinadas a cultura florestal, as restantes estão aprovei­ tadas e não é possível estendê-las; a sujeição a regadio pode entretanto melhorar o aproveitamento de algumas. 0 sub-solo, embora nalguma parte desconhecido, pode considerar-se pobre, sobretudo nos minérios de larga extracção e fundamentais para a economia moderna. 0 clima é óptimo para viver, mas não igualmente bom para produ­ zir. Os rios são irregulares e o mar nem sempre é generoso e amigo. Fechados os países americanos do norte e do sul à im igração europeia, deixámos de poder contar com esse derivativo para o excesso da nossa população que na mesma casa temos de instalar e fazer viver. Assistiríam os em breve aqui à generali­ zação da miséria, se não tivéssemos possibilidade de fazer crescer os recursos - para troca, se o mundo os recebe, para consumo se, com o previ, as dificuldades da econo­ mia geral aumentarem ainda. E então minérios mesmo pobres hão-de substituir metais importados; a energia dos rios tomará seu lugar ao carvão estrangeiro; a terra e o mar têm de ser levados a desentranhar-se em maior riqueza e a absorver maior soma de trabalho. Este teria de fornecer rendimento mais elevado nem que não fosse senão por actuar em condições naturais sucessiva mente mais difíceis. M as nós que­ remos ir mais longe — pretendemos fazer subir o nível geral da vida. Não esqueço que temos também as colónias, subsidiárias da nossa economia, como meios de produção, mercados consumidores e, dentro de certos limites, campo aberto à actívidade da população; mas em tais circunstâncias e diante de tão graves necessidades, aqui e lá, eu só vejo para a resolução do nosso problem a dois factores — a técnica e a organização, possivelmente a técnica pe la organização. Sem duvida se deve a esta terem -se vencido algumas d ificu lda de s passadas e, embora incipiente, se descobre já ser arma própria para desenvolver a economia nacional, representá-la e defendê-a em face das outras econom ias e ao mesmo tempo assegurar a harmonia dos interesses que colaboram na produção. E quando, pelo raciocínio e pela experiência, considerando as necessidades do povo português e as condições da luta económ ica de nossos dias, o ensinamento das nossas melhores tradições e as exigências dos princípios sociais que defende­ mos, chego à conclusão de que nos incumbe desenvolver com urgência, com pletar e aperfeiçoar a nossa organização corporativa, depara-se-m e a cam panha insidiosa 390

VIII. Preocupação da Paz c Preocupação da Vida que sobre faltas, erros ou possíveis abusos individuais se aprestaria, se a deixassem, a restabelecer a fraqueza, a dispersão e a desordem, que também por vezes toma o nome de liberdade. Ora eu não defendo os erros de ninguém, nem sequer os que eu próprio cometa; não absolvo nenhuma falta, não me solidarizo com nenhum abuso e acho bem que consciências rectas e inteligências esclarecidas possam apontá-los à atenção do Governo para futura correcção. Mas havemos de distinguir estas criticas cuidado­ samente dos ataques, filhos de superficial vivacidade ou de interesses opostos a toda a espécie de disciplina, absolutamente certos de que, nas condições do pró­ ximo futuro, só teríamos de escolher entre a suficiência na organização e a miséria no caos. 0 Governo, é evidente, tomou já o seu partido.

Meus Senhores: Fui mais extenso do que desejava e não vou alongar ainda mais este discurso a tirar conclusões de tudo o que deixo dito. A inteligência dos homens esclarecidos e patriotas, reflectindo sobre os factos deste momento e suas possíveis interpreta­ ções, os sentimentos dos povos, as ideias dos governos, as necessidades e dificulda­ des gerais, os males e os possíveis remédios, a que velada ou claramente me referi, saberão por certo orientar-se e hão-de fazer a sua ideia - ideia justa - dos esfor­ ços e cuidados da governação no período para que vai ser eleita a nova Assembleia. Estaria talvez mais apropriado ao momento abstrair de todas as dificuldades e embalar os corações na esperança de glórias sem esforço ou de grandezas sem risco. Eu tenho, porém, habituado o povo português a enfrentar calma e resolutamente os prolemas que afectam a sua vida colectiva, e não me tenho arrependido disso. Se há obstáculos, dificuldades, perigos, melhor: a considerá-los e vencê-los se caldeia e fortalece a alma dos indivíduos e dos povos; nem podem meter-nos receio tarefas que apesar de tudo são menores do que as levadas a cabo por nossos avós. E nós somos ainda a mesma Nação, a mesma raça, o mesmo povo. Pondo diante dos olhos as duas grandes preocupações dos tempos próximos - a preo­ cupação da paz, a preocupação da vida - foi meu intento deixar do mesmo passo indicados os polos para que há-de fatalmente tender a cada momento a nossa princi­ pal acção. E apenas temos de habituar-nos à ideia - que é já do passado e não voltará tão cedo a «doçura de viver»; pois, quanto ao mais, nenhuma dificuldade ou perigo é superior às nossas amizades, às possibilidades do nosso trabalho, à firme vontade de continuar a nossa vida e a nossa História. Mentiria à minha consciência e à realidade nacional, se não terminasse as minhas palavras por este acto de fé em nós próprios, fé consciente, fé vivida e felizmente partilhada pelos portugueses de hoje.

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IX . MISSÃO MILITAR BRITÂNICA111 Senhor Embaixador, Senhor Almirante, Meus Senhores: Não desejaria que a Missão militar inglesa abandonasse Portugal sem que eu tivesse o ensejo de lhe exprimir o apreço do Governo pela sua vinda a este país e pela importância dos trabalhos empreendidos. E faço-o, como Ministro da Guerra, tendo em mente que a vinda da Missão foi um novo testemunho da camaradagem dos Exércitos das duas nações aliadas, e, como Ministro dos Negócios Estrangeiros, relembrando que a temos por espontânea afirmação dos sentimentos de amizade do Governo britânico e do comum desejo de estreitar ainda mais os laços existentes. Ainda que me parecesse dever a Missão encontrar muitas dificuldades inerentes à própria natureza dos problemas em estudo, tenho a convicção de todas terem sido vencidas pela competência e boa vontade dos oficiais e pelo desejo que todos animava de encontrar a melhor fórmula de garantia dos nossos comuns interesses. As visitas efectuadas, a observação local e melhor conhecimento das coisas e dos homens, a troca de informações e a amigável discussão dos pontos traçados como programa devem ter extraordinàriamente concorrido para mais perfeita compreen­ são mútua. Estimo tanto mais o facto quanto é certo esperar dessa melhor com­ preensão os mais benéficos resultados para o estreitamento da amizade que nos liga e a plena eficiência dos pactos existentes. Amamos sinceramente a paz, e trabalhamos na medida das nossas possibilidades por que seja conservada entre as nações, mas não podemos esquecer que temos inte­ resses consideráveis em diversas partes do mundo, cuja defesa somos obrigados a bus­ car através da melhoria das condições próprias e das garantias derivadas das nossas amizades, especialmente da aliança anglo-portuguesa. Por isso me permito exprimir a esperança, na convicção de que o mesmo intento será o do Governo britânico, de que os trabalhos da Missão sejam apenas começo da desejável intimidade de relações entre os dois Exércitos e dos estudos em conjunto dos problemas relativos à defesa comum. Agradeço a S. Ex.a o Embaixador «Sir» Walford Selby o interesse e cuidado que tem posto em tudo o que pode contribuir para consolidar a nossa velha amizade, e0 1

01 No banquete oferecido è Missão Militar Britânica, nas Necessidades, pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 14 de Dezembro de 1938.

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ao Sr. Alm irante W oodhouse, com o chefe da Missão, o espírito de camaradagem e a nobre franqueza e lealdade de que deu constantes provas para com a M issão por­ tuguesa e em que me apraz ver a m anifestação das tradicion ais virtu d e s da Armada Real inglesa. Desejo com preender na saudação que aqui lhe dirijo todos os ilustres oficiais da M issão britânica. Termino, pedindo aos meus com patriotas me acom panhem numa saúde aos nos­ sos hóspedes.

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X. REVOLUÇÃO CORPORATIVA w Trabalhadores do meu Pais: Homens dos Sindicatos, dos Casas do Povo, das Casas dos Pescadores, Dirigentes do trabalho nacional, Homens de pensamento e de acção, Portugueses! Eu não diminuirei com apagado e inútil discurso a beleza desta hora magní­ fica; se digo brevíssimas palavras é só para vincar o alto sentido da vossa mani­ festação. Nem tomarei para mim - transitório representante de uma ideia e defi­ ciente realizador de uma política, excedendo uma e outra a estatura e a vida de um homem - não tomarei para mim nem os aplausos, nem os louvores, nem as aclamações: quero que sejam para vós mesmos, os que pudestes erguer ante os olhos da cidade, com optimismo, com devoção, com fé, a antecipada imagem do que há-de ser a nossa revolução na paz. Não, não é ainda a hora triunfal, o sol a pino do meio-dia, mas é já, depois das indecisões do alvorecer, a alegria e a sau­ dável frescura da manhã. Fomos nados e criados, a maior parte de nós, em concepções diferentes das que inspiram hoje a nossa vida colectiva: era a divisão na política, a lua nas classes, a desordem na economia, o egoísmo nas relações sociais, a elegância da ociosidade, o cansaço de viver. Muitos disseram: abandonemos a coisa pública à inspiração das paixões e aos movimentos e caprichos da multidão - e foi o predomínio da política sobre a vida, com a democracia. Outros afirmaram: criemos sem preocupações e sem método as riquezas, elas chegarão com abundância a cada um - e foi o predo­ mínio do económico sobre o social, com o liberalismo. Ainda outros defenderam: distribuamos pelos que somos as riquezas criadas e a criar, segundo a razão suprema dos nossos apetites - e foi o predomínio do social sobre o económico, pelo socia­ lismo. Mas, se na desordem política, nas injustiças da economia liberal, na devas­ tação operada pelo socialismo estavam as lógicas consequências dos sistemas, estava também ai o germe da ruína colectiva. Nem eu sei como a Pátria podia ser nas almas mais que imagem literária ou velha tradição de heróicos feitos a que ia faltando a vida profunda, a consciência de uma unidade essencial. Pois que a uni-

w Na grande manifestação dos Sindicatos, Casas do Povo e Casas dos Pescadores, realizada no Ter­ reiro do Paço em 27 de Fevereiro de 1939.

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dade resiste è divisão? que solidariedade ao ódio? que com unidade à falta de disci­ plina e de organização? E nasceu o corporativism o que, elevado a regra co n stitu cion a l da ordem nova, a principio inform ador da com unidade nacional, caldeia a N ação no Estado e é como a consciência activa da nossa solidariedade na terra, no trabalh o e na vida, isto é, na Pátria — a nossa fam ília que não morre. Quando vos ouço afirm ar o desejo de trabalhar sem descanso pela grandeza e a eternidade da Pátria; que desejais contribuir para o desenvolvim ento económ ico de Portugal e para melhorar as condições de vida dos portugueses; que sois para tanto atentos à palavra do com ando e que estais com os Chefes co m o um irmão com outro irmão — sinto que haveis mergulhado até ás raízes profundas e com preendido na pura essência das coisas a que tende o nosso corporativism o. Podíamos não ter feito mais nada — podíam os não ter m elhorado os salários, nem feito contratos colectivos, nem estabelecido caixas de previdência, nem assis­ tido ao desemprego, nem construído casas para os operários e ja rd in s para os filhos dos pobres, nem aumentando as exportações, nem defendido os preços — podíamos nada ter feito que beneficiasse a econom ia ou m elhorasse m aterialm ente a condi­ ção dos portugueses, e teríamos realizado obra imensa só com dar aos trabalhadoes a consciência e o respeito da sua dignidade, só com ter criado o am biente de paz social, só com ter feito compreender, feito viver a solidariedade existente entre os que estudam as soluções e os que organizam e dirigem o trabalh o ou o executam, e convencido a todos a trabalhar cada vez mais para ben efício com um . Era isto sem dúvida o que impunham a razão e a justiça, e é tam bém isto que im põem as supe­ riores necessidades da Nação. Nós poderíam os não estar criando — e estam os — a sociedade do futuro, a antecipar-nos e a prevenir as convulsões de que usam irrom per os novos ciclos da história do mundo; nós poderíam os não estar senão atendendo às m ais instantes necessidades do m om ento e do nosso País, e ainda se im poria co m o acertado o cam inho que trilham os. Quando sentim os em volta de nós ta n to s sintom as de desagregação, ele condu z-n os a reforçar a nossa coesão e unidade e por elas a aum entar a força e poderio do Estado. Quando aqui e além se apregoam e conse­ guem im por-se os direitos da preguiça, debilitando as econom ias nacionais, nós ansiamos por mais intensos esforços para m elhor consolidarm os a nossa e defen­ dermos o nosso trabalho de alheias servidões. Q uando o ódio açula as paixões e inteligências pervertidas pretendem estabelecer na terra o reino bru to da matéria, nós protestam os pela revolução do espírito que anime os hom ens e assente a vida em justiça e amor. Eu não sou um ideólogo que visiona utopias, nem de tal pode acusar-se quem é obrigado a viver em cada dia pela inteligência e pelo coração m uitos anos do futuro. Leio em grandes dísticos frases soltas, pensamentos extraídos já não sei donde aspirações de algum dia. Caiu a semente na terra sequiosa e germ inou, e viceja, e fru tifica na extensa seara que os nossos olhos vêem: à descrença dos pessimistas apresentam-se realidades palpáveis.

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X. Revolução Corporativa

E quando, por ocasião das festas centenárias, realizarmos o primeiro Congresso das Corporações, alargada a organização e os seus benefícios pela progressiva inte­ gração de toda a actividade nacional no plano corporativo, seguros de havermos regenerado a Nação e conscientes do papel que ainda lhe está reservado no mundo, poderemos inclinar nossas bandeiras ante a memória dos que fizeram Portugal e dizer-lhes orgulhosamente: - nós somos bem os filhos do vosso sangue e os legíti­ mos continuadores da vossa História!

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XI. A CRISE POLÍTICA EUROPEIA E A SITUAÇÃO EXTERNA DE PORTUGAL Senhor Presidente, Senhores Deputados: Há um ano e dias, precisamente no fim da anterior legislatura, tive o ensejo de expor à Assembleia Nacional a orientação governativa quanto aos mais graves pro­ blemas da política interna e a alguns que então figuravam na primeira linha das preocupações internacionais. Ao vir hoje pedir em nome do Governo o assenti­ mento da Câmara à visita do Chefe do Estado a país estrangeiro, não se julgará des­ propositado fazer sumário balanço da situação internacional e dizer como entre os perigos e contingências desta se tem movido a nossa política externa. I.

No período de alguns meses acabou a guerra de Espanha, e com a vitória nacio­ nalista se desvaneceram algumas das causas do desassossego geral. Mas no resto da Europa e no mesmo espaço desmembraram-se Estados, proclamou-se a inde­ pendência de outros, fizeram-se rectificações de fronteiras com transferência de vastos territórios, encorporaram-se nações sob formas diversas, e com tudo isto se alterou notàvelmente o valor estratégico e o potencial militar de alguns países. Dados como resolvidos uns problemas, tomaram logo outros o seu lugar, criando novas inquietações, como se, perdida certa estabilidade embora precária, todo o mapa europeu estivesse por esse facto sujeito a revisão. Há manifestamente exa­ gero em supô-lo, mas na intranquilidade que se apossou dos espíritos todas as con­ jecturas, as mais absurdas, se transformaram em fonte de receios, senão de perigos. Temos assistido com calma - que não é inconsciência despreocupada - ao desenrolar dos acontecimentos. Longe do seu principal teatro, com fronteiras secu­ larmente estáveis, um só vizinho na metrópole, sem problemas de raça ou de língua, mistura de populações ou dependências económicas destas que arrastam as depen­ dências políticas, a um canto da Europa, quase desligado dela e projectado ousada­ mente sobre o mar, país atlântico por excelência, como só a Inglaterra pode preten­ der sê-lo, e como ela com os maiores interesses e a tarefa mais pesada noutros

M Na Assembleia Nacional, em 22 de Maio de 1939, em sessão de Câmara destinada a autorizar o Chefe do Estado a visitar a União Sul-Africana.

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continentes e mares — Portugal tem o dever de não se deixar tra n sviar pelo desas­ sossego geral. M as nalguma coisa estam os em causa com o os outros. Que pretendemos da Europa ou até que ponto nos devem os considerar solidários com a sua vida e cultura? Nós estamos presos à Europa politicam ente na m edida em que possamos ser arrastados pelas im previsíveis consequências de um c o n flito geral, e moralmente em tanto quanto ela possa continuar a ser o cérebro e o co ração do mundo. E em tais term os hão-de entender-se legítim as as queixas que tem os de form ular. Come­ cemos pelos processos de trabalho. Pôs-se de lado o convencionalism o diplom ático e estão por co m pleto desacredi­ tados os antigos processos. 0 tom de uma nota, o protesto de uma chancelaria, a retirada de um diplomata, o aparecim ento intem pestivo de um navio ou de uma esquadra, um incidente de fronteiras, a m obilização parcial de um exército perde­ ram o antigo significado e pelo menos parece que ninguém se im porta já com isso. Substituída a velha discrição, correcta e silenciosa, pela diplom acia em assembleia geral de que a S. D. N. foi vivo exemplar e consum ado descrédito, passou-se ao nétodo que podemos chamar da acção directa, febril nas diligências, premente nos jontactos, plebiscitário e clam oroso ante as m ultidões. C o ncen tra-se a atenção mundial nas declarações dos grandes homens públicos, e estam os bastante doentes para passarmos dias ansiosos à espera de um discurso e crerm os que dele dependerá a paz ou a guerra. Isso não seria possível, mas o sim ples fa c to desta ansiedade mos­ tra quão precária é aos olhos do espírito a organização da paz. Uma publicidade desaforada, estúpida umas vezes, ou tras inteligentíssim a e intencional, esquadrinha as atitudes, dá sentido às coisas indiferentes, perverte as intenções mais puras, desvirtua o pensamento mais lúcido, açula paixões, espalha o ódio, lança o terror, suscita problemas e lembra soluções que são ou tro s tantos pro­ blemas, e com falsas notícias e com meias verdades cria a atm osfera de guerra com que alguns, é certo, podem resolver dificuldades de p olítica interna e outros não se percebe que in tu ito tenham senão a mesma guerra. Destes usos e destes excessos nasceu um grande mal na Europa, que a visível dim inuição da sua sensibilidade moral mais tem agravado ainda - o mal da descon­ fiança. Declarações, garantias, promessas, acordos, salvo os raros casos de se basea­ rem na evidência dos interesses ou em amizades experim entadas pelo tempo, neles não crêem já os estranhos, porque em verdade os interessados parece serem os pri­ meiros a ter neles pouca fé. 0 co n flito dos interesses im ediatos e das obrigações assumidos term inou em várias conjunturas com a vitória dos prim eiros e o sacrifício dos valores morais. E para cúm ulo demos durante a tragédia espanhola, com olhos cegos ou a razão perturbada, bastas provas de não distinguirm os já bem a verdade e o erro, a virtude e o vício, a ideologia política e a m entalidade crim inosa, o que é deplorável para quem se proponha dar exem plo ao mundo. 400

XI. A Crise Política Europeia... São certos e graves estes males e no entanto afigura-se-me que os podemos considerar antes como sintomas de uma crise passageira e curável do que doença sem esperança, excepto se os princípios em nome dos quais a Europa pretende resolver os seus problemas contiverem em si o vírus mortal da guerra ou, por outras palavras, se a própria solução dos problemas importar a guerra, em vez de colabo­ ração na paz. A Europa, tal como resultou de condições mesológicas e de longa evolução his­ tórica, não pode resolver por si e dentro de si os problemas fundamentais da sua vida e cultura: necessita da cooperação de outras partes do mundo. Podem deslo­ car-se soberanias - e esta deslocação está pràticamente limitada a territórios e povos oscilantes —, podem sangrar-se populações, mas não podem aniquilar-se povos, raças, desenvolvimentos demográficos, energias e ambições de independên­ cia onde a maturidade da vida social a tenha por necessária. Não basta também a África em que a Europa pode dizer-se quase inteiramente domina, e por isso se habituou a resolver aqui os problemas de lá; são-lhe precisas a Ásia em que só par­ cialmente manda, e a América em que deixou absolutamente de mandar. Ora a guerra pode ou não lançar a Europa na subversão das suas instituições e no aniquilamento da sua civilização e cultura — e muitos o pensam —, mas é certo que económicamente a arruina, e a paz em que ela está a viver também. Dos loucos dis­ pêndios da preparação bélica que uns aos outros se atraem ou provocam advêm em grande parte as suas restrições de vida, as suas crises financeiras, as suas falências, as desvalorizações e instabilidade das moedas, em suma, não pagar e não cumprir, e à medida que maior colaboração se lhe impõe mais se vê condenada ao isolamento. A grande força de progresso social e político que os nacionalismos representam só parece ser benéfica enquanto se mantém nos domínios da competição pacifica, aliás tenderá a criar dificuldades à solução dos problemas próprios nos outros nacio­ nalismos despertos. Quando a Europa fala de espaços vitais como de um facto ou de uma aspiração representativos de estreitas relações económicas, da existência ou da formação de economias naturalmente complementares pela contiguidade ou aptidões naturais, ela pode tender para a progressiva racionalização da economia geral; mas, se dessa noção desliza para a reserva dos mercados e desta para o domínio político, encorpora naquela ideia um princípio de guerra e pode esperar se ergam fortes barreiras ao seu desenvolvimento. Enquanto grupos de emigrantes trabalham em país estranho a cuja economia e hospitalidade se acolheram, ninguém estranhará que até eles se estenda a protec­ ção do seú país de origem; mas, se a Europa proclamar o princípio de que esses núcleos representam projecção ou afirmação de soberania estrangeira em verda­ deiros enclaves, logo haverá quem divise no fenómeno começo de invasão política e novos obstáculos surgirão à colocação no mundo de excedentes demográficos. Quando a Europa deixa perceber que há regimes políticos essencialmente agres­ sivos e outros dotados de evangélica mansidão e respeito pelos direitos alheios, não s só comete um erro clamorosamente desmentido pelos factos mas tende para a arti401

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 ficiosa criação de blocos ideológicos e suscita problem as de ordem interna nos Estados que estão longe de fa c ilita r o cam inho para o entendim ento. E quando exige ou concede direitos de cidade a organizações partidárias cuja direcção ou chefia reside em país estrangeiro e se m anifesta contra a existência nacional inde­ pendente, está a m inar a solidez dos mesmos Estados ou soberanias em que pre­ tende apoiar-se para construir a paz. Disto e só disto me arreceio — que a Europa que nenhum problem a pode resol­ ver pela guerra dentro de si não saiba organizar em si mesma a paz e, de um modo ou de outro, procurando progredir e viver, lance ela própria, com o semente sobre a terra, princípios de ruína e de morte. E seria trágico, pois, quando a Europa se dimi­ nui, é já menor o mundo. Falamos com o europeus. Som os e orgulham o-nos de ser pela nossa organ ização , pelo nosso trabalho, pelas nossas concepções políticas e sociais, pela nossa mesma estabilidade factor de paz. Nada pretendem os dos outros e não há co n tra nós reivin dicações com qualquer fundam ento a apresentar. Para honrar co m prom isso s m uitas vezes entrám os em guerra e batalhám os por esses cam pos da Europa, sem que nunca recebêssemos acrescentam entos territoriais, buscássem os paz interna, auferísse­ mos lucros ou benefícios de qualquer ordem, e de o u tro c o n flito não os queremos nem esperamos. M uitas vezes nos batem os por honra, dever ou ideal, não por interesses materiais, e tendo m albaratado fazenda e vidas, nunca a guerra nos foi negócio ou fonte de negócios. Quando m uito, defendem os o nosso d ireito e mos­ trám os que a vida fácil nunca fo i nosso quinhão: isso nos dá d ire ito a fala r de paz sem se poder dizer que o fazem os por covardia ou com odidade. É por convicção; é por dever. Se efectivam ente a guerra não pode ser uma solução para os problem as euro­ peus mas um problema mais grave que os outros que pretenderia resolver, as difi­ culdades gerais reclamam no fim com o no princípio da corrida de armamentos as soluções que só a inteligência pode ditar e não poderão nunca advir da força mas da discussão, do entendimento, da boa vontade em suma. Nestas circunstâncias pode afirm ar-se que alguns em condições análogas às nossas só com mostrarem-se prudentes e calm os prestam já óptim o serviço à paz. II. Falemos agora com o portugueses. É porventura escusado defin ir nesta altura os princípios inform adores e as gran­ des directrizes da nossa política externa, tão naturalm ente decorrem das circuns­ tâncias da nossa vida e das realizações da nossa História. A nossa feição atlântica e actividade colonial estão na base da aliança inglesa; a vizinhança e solidariedade peninsular cimentam a fraternal amizade com a Espanha; o heróico esforço de Por­ tugal, criador de impérios, domina as relações com o Brasil — nem simpatia nem amizade de estranhos mas o próprio sangue e alma dos avós; a nossa compreensiva 402

XI A Crise Política Europeia...

universalidade e a extensão dos nossos interesses permitem as melhores e mais amigáveis relações com todos os Estados. Mas agora só vou referir-me ao que tenha importância especial, e começarei pelo problema peninsular. Portugal e a Espanha são obrigados a viver paredes meias na Península; a boa ou má vizinhança favorece-os ou prejudica-os a ambos. Muitas vezes em oito séculos de vida Portugal lutou contra a Espanha ou contra Estados espanhóis, para manter ou consolidar a sua independência; muitas vezes também lutou a seu lado contra terceiros. Este traço é característico e resume em si a História das relações penin­ sulares: dois Estados irremovivelmente independentes; duas nações fraternalmente solidárias. Não sei porquê, mas a liberdade e independência da Espanha parecem ser postulado da política portuguesa; e na última crise mais uma vez se fez ouvir a voz da História e Portugal se manteve fiel à tradição. Contra os compromissos tomados pelo Governo por bem compreensível neces­ sidade política, e como se tais compromissos contradissessem a razão e profundo sentimento do povo, alguns milhares de portugueses, iludindo por mil formas a vigi­ lância das autoridades, abandonaram a sua vida, interesses e cómodos, foram com­ bater pela Espanha, morreram pela Espanha. Orgulha-me que tenham morrido bem e todos - vivos e mortos - tenham escrito pela sua valentia mais uma página heróica da nossa e da alheia História. Em todos os domínios onde era livre a nossa acção ajudámos no que pudemos o nacionalismo espanhol e a civilização cristã, directamente ameaçados por doutrinas e regimes que só os que andam à cata de desilusões esperam converter ou tornar inofensivos. Mantendo-nos a nós próprios firmes contra os assaltos organizados cá dentro; garantindo a segurança e tranquilidade da fronteira; enfrentando por toda a parte a incompreensão e cegueira da Europa (onde a Espanha nacional tão pou­ cas amizades contava); arrostando com más vontades, ameaças e perigos; umas vezes acompanhados, algumas vezes sós e guiados apenas por mais exacto conhe­ cimento das situações e mais clara visão dos interesses da Europa ocidental, que através de tudo pretendíamos defender; sem cansaço, sem desânimo, sem cálculo, fomos desde a primeira hora o que deveriamos ter sido - amigos fiéis da Espanha, no fundo peninsulares. Despendemos esforços, perdemos vidas, corremos riscos, compartilhámos sofrimentos; e não temos nada a pedir nem contas a apresentar. Vencemos - eis tudo. Vencemos quer apenas dizer que se realizaram as nossas previsões, pois da vitó­ ria só esperamos poder trabalhar à-vontade, segundo a linha geral dos interesses comuns. A Espanha conseguiu matar no seu próprio sangue o vírus que ameaçava a paz e civilização da Península; martirizada, vergada pelo sofrimento, há-de ter mergulhado em meditação profunda até às mais recônditas raízes do seu ser; extrairá da sua consciência ancestral, do seu sangue e indómita bravura os princí­ pios da nova ordem social e política, e em nome deles pode afirmar que, tendo-se revoltado contra a servidão comunista, não lutou bravamente para hipotecar por outro modo a sua própria independência e destino. 403

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 Um só lim ite há hoje à plena liberdade da sua acção extern a — o Tratado de am izade com Portugal. E se é para nós algum ta n to desvanecedor, traduz por outro lado a perfeita com preensão dos interesses superiores da Península, que a defin ição de qualquer política por parte da Espanha tenha sido precedida e condi­ cionada, no pensam ento dos seus mais altos dirigentes, pelas declarações do pacto luso-espanhol. Quem quer que haja reflectido na política tradicional inglesa e no sentido essen­ cialmente defensivo da sua actuação internacional terá podido com preender quanto a Inglaterra deve apreciar a criação desta verdadeira zona de paz na Península, dado que um dos Estados é seu velho aliado e o outro foi sem pre seu amigo; mas eu não receio ir mais longe. Assim com o a vitória vermelha em Espanha poria constante­ mente em risco de colisão os interesses franceses e ingleses em relação à Península, pelo co n flito ideológico e político de um lado e pela aliança anglo-portuguesa do outro, assim é evidente que só através da Espanha nacionalista, irm ãm ente ligada a Portugal, a França e a Inglaterra podem trabalhar pela segurança dos seus interes­ ses ou fronteiras e melhoria das suas relações. A esta luz o Tratado de amizade com a Espanha é bem o coroam ento de uma obra e a pedra angular de uma política.

Assim foi e assim é, mas isso não quer dizer que os fa cto s e atitu des destes últi­ mos três anos tenham sido encarados e com preendidos pelos nossos melhores ami­ gos tal qual os encarámos e compreendemos, que a guerra de Espanha não tenha sido mais uma dura prova a que foi sujeita a aliança inglesa. Felizmente, com o dou­ tras vezes no decorrer dos séculos, dela saiu vencedora. Enquanto a guerra civil se arrastava, com a péssima ajuda da Europa e da Amé­ rica, e se mantinha em certos sectores da opinião inglesa m anifesta incompreensão do significado da luta e da nossa posição nela, os Governos Português e Britânico aprofundavam os problemas da aliança e estudavam em am istosa colaboração as questões relacionadas com a defesa dos dois países por meio da missão vinda a Por­ tugal. Não caíram no olvido os estudos, e apesar da influência que já possam ter tido na solução de alguns problemas militares, e de não se haverem perdido os contactos estabelecidos, estou por meu lado certo de que terão de prosseguir no futuro. Este simples facto - aliás corroborado por m uitas outras dem onstrações de alta estima — é claram ente revelador de com o entendemos m anter-nos dentro das cons­ tantes da nossa História, assegurando na fidelidade á aliança lu so -b ritâ n ica a defesa dos interesses comuns, e ressalvando no que lhe é estranho não só a liberdade de acção como a existência de m uitas outras amizades. Foi sem pre assim durante séculos, sem que possam estranhá-lo os que se habituaram a d istingu ir alianças com fundas raízes nas determ inantes da geografia ou da evolução histórica, dos arranjos ocasionais, por interesse passageiro ou ternura de m om ento, e tão frágeis, tão artificiais, tão dissolúveis com o m uitos casam entos de hoje. Por mim - e sei que falo em nome do meu País - tom o tanto a peito cu m prir fielm en te os deveres 404

XI. A Crise Politica Europeia. . . da aliança como não deixar, por honra e interesse de ambas as partes, corrompê-la ou aviltá-la. Noto porém haver muitos jornalistas que tratam por essa Europa fora com grande desenvoltura altos problemas de Estado, e se ocupam de nós com insistência não equivalente ao conhecimento dos factos; e fantasiam, e inventam, e deturpam, mas sobretudo ignoram. Têm ainda grandes ciúmes — quem no diria em democratas e liberais - de qualquer propaganda que não seja a sua. Retiro-me à propaganda honesta e não ao «caldo de cultura» em que a dissolução de ideias e costumes está a converter muitos países, e aproveito a oportunidade para dizer o seguinte: Somos, por tradição, formação moral, compreensão universalista do nosso espí­ rito, propensos e abertos ao conhecimento das instituições, ideias, modo de ser dos outros povos civilizados. Somos bastante orgulhosos para nos considerarmos pos­ suidores de algumas qualidades, e bastante modestos para julgarmos vantajoso adquirir outras. Só nos pode ser benéfico que uns dêem a lição da sua disciplina e trabalho, outros das suas criações de ciência ou de arte, estes da finura e claridade do seu espírito, aqueles da ponderação e equilíbrio das suas concepções da vida. Certamente será difícil que as instituições ou os regimes não tirem algum fruto de serem conhecidas as suas realizações ou benefícios; mas a propaganda puramente política não é em Portugal vedada a alguns portugueses para ser, sem distinção, consentida aos estrangeiros. A nossa ordem interna desenvolve-se em harmonia com o nosso modo de ser e os nossos princípios constitucionais e morais; a nossa política externa em harmonia com os nossos interesses e os deveres que nos impo­ mos como membros da comunidade civilizada. Só haveria que recear se o inter­ câmbio cultural, as competições dos desportos ou manifestações simplesmente e recreativas de estrangeiros pusessem em risco a nossa personalidade própria ou a plena independência com que nos momentos decisivos queremos definir o interesse português. Mas temos suficiente carácter para manter através de tudo a primeira, e bastante força para garantir a segunda. E retomo o fio perdido do meu discurso para terminar. •

Aquela feição, atlântica e imperial, a que acima me referi não caracteriza a nossa História por simples imposição de factores geográficos, mas pelo esforço constru­ tivo que, apoiado neles, os portugueses realizaram no mundo. A afirmação que da mesma temos feito não é tão pouco imagem de retórica para nenhum português de hoje, mas directriz de pensamento e imperativo de acção. A viagem do Chefe do Estado às terras do Império em África - e oxalá a deste ano tenha a coroá-la as mesmas apoteoses e os mesmos frutos que a do ano findo a S. Tomé e Angola está na mesma directriz das nossas preocupações e finalidades, é manifestação do mesmo espirito que pôs de pé o Acto Colonial. Sentimos por outro lado que não só a África, baldio da Europa, não corresponde às realidades presentes (e se o foi no passado não parece poder sê-lo no futuro), 40 5

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mas o m onopólio de a Europa falar em seu nome está tam bém já fora do actual momento. Há interesses difíceis de discu tir aqui e soberanias que se afirmam no continente africano com a força e evidencia dos factos. Form ou-se na vizinhança das nossas colónias de Á frica, e integrado na comuni­ dade britânica, um vasto e próspero país, e entre umas e o o u tro o entusiasmo, a boa vontade, o respeito m útuo transform aram em co laboração já hoje preciosa o que pudera ser rivalidade, inveja ou atritos prejudiciais á paz e ao desenvolvimento comum. 0 convite de Sua M ajestade o Rei Jorge VI co m o soberano da União Sul-Africana, para a visita do Sr. Presidente da República, se tra d u z homenagem ao representante de um povo que abriu aquelas regiões à civ iliza çã o europeia, consa­ gra ao mesmo tem po o espírito de estreitas relações e co operação amigável que, è semelhança das duas metrópoles, felizm ente existe entre os d om ínios portugueses e uma das mais florescentes nações do Império Britânico. E neste espirito que o Governo, tendo dado o assentim ento à viagem do Chefe do Estado, espera lho dê também a Assem bleia Nacional.

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XII. A LEGIÃO - EXPRESSÃO DA CONSCIÊNCIA MORAL DA NAÇÃO w Legionários: Pedem-me para vós, no começo do 14.° ano da Revolução Nacional, algumas palavras de estímulo e orientação. E eu hesito em proferi-las, pois não sei que se hajam tornado necessárias: o estímulo está na vossa fé e plena consciência de cum­ prir uma alta missão; a orientação está nas bases morais, sociais e políticas da Revo­ lução em marcha. Quando muito me sentiria hoje inclinado a rectificar posições. Não faltarão porventura espíritos simples que, vendo alteradas algumas condi­ ções externas e mais afastado do País o perigo comunista, suponham estar chegado o fim da vossa missão; mas o comunismo, embora fortemente batido na Península, não morreu e não desarma, e há-de prosseguir na sua luta, à luz do dia ou na som­ bra das organizações secretas, sempre pronto a reviver e a infiltrar-se enquanto lho permitam a fraqueza das nações e o desvario dos homens. Outros julgarão ainda que depois do esforço realizado está já bem merecido o repouso e ambicionariam não digo desertar das fileiras mas, enfim, ser ao menos licenciados, não digo descrer dos princípios mas poder não os proclamar como um grito de guerra. São tão difíceis porém os tempos que não só não pode ser permi­ tido a ninguém perturbar no seu esforço de engrandecimento a parte viva da Nação, como não podemos sequer tomar o compromisso de deixar a muitos gastarem-se estêrilmente em devaneios, aconchegados em cómodas posições de desfrute. Há equívoco em tais posições de espirito, e o meu primeiro dever é sem dúvida desfazê-lo. De nada nos serviria bater e afastar o mais próximo inimigo, se depois nos limi­ tássemos a deixar repor o estado de coisas que pelos seus vicíos profundos lhe deu condições de vida. Nós não podemos permitir-nos o luxo de deixar reinar de novo entre nós a divisão e a discórdia e de permitir às lutas partidárias o fraccionamento da unidade moral da Nação. Nós não fizemos a Revolução Nacional apenas para dar combate ao comunismo: fizémo-la para dar ao Pais a consciência do seu valor e da sua missão no mundo; fizémo-la para reforçar a unidade nacional e para elevar o

1,1 Palavras dirigidas aos Legionários em 28 de Maio de 1939 (começo do 14.° ano da Revolução Nacional).

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nível material e moral do nosso povo; fizé m o-la para defender e aum entar o nosso patrim ónio de oito séculos de história. Embora as conclusões de passadas experiências não tenham sido favoráveis, poderíamos ainda assim tentar conseguir por outros processos as realizações e bene­ fícios materiais que aliás incansàvelmente prosseguimos em favo r da colectividade; mas em meu pensar nada disso será um bem de fin itivo sem a revolução moral — revolução da nossa mentalidade e dos nossos hábitos — e essa só nós a achámos necessária a ponto de a empreendermos e dela não poderm os desistir. Não duvido do esforço preciso para fazer que passe do pensamento para a consciência, da cons­ ciência para a acção, com o um hábito, uma form a de com preender e viver a nossa vida nacional; mas só nesse momento seremos outros e estarem os salvos. A Legião tem de considerar-se e continuar a ser a expressão viva dessa consciên­ cia moral da Nação; afirm ação clara de fé e da doutrina da Revolução Nacional; reserva das maiores dedicações e dos mais altos sacrifícios; aquela chama de virtudes cívicas e de compreensão dos novos tempos que ilumine toda a casa portuguesa. É para tanto preciso que mantenha alto o seu ideal, fo rte a sua organização, :ompetentes e disciplinados os seus quadros e forças, resoluto e pron to o seu espíito. É preciso que as novas gerações, as que chegam à vida am paradas e formadas pela «Mocidade Portuguesa», tomem o seu lugar com o espírito fo rta le cid o pelo exemplo que lhes destes; encontrem form ados os quadros nacionais da sua actividade e lançado em impulso irresistível o m ovim ento ascensional que com tanto sacrifício começastes. É preciso que exerciteis na devoção legionária o patriotismo e a disposição de tudo sacrificar pelo bem comum; que nos exercícios m ilitares for­ taleçais o corpo e tempereis o espírito segundo o m odelo do português que, sem largar a charrua ou abandonar a oficina, está pronto a tom ar as armas; que na obe­ diência aos chefes sejais a prática dem onstração do valor da hierarquia e da disci­ plina que condicionam a ordem indispensável à existência da Nação. Assim servireis — na guerra ou na paz: na guerra que nos seja im posta para g a ran tir a liberdade da terra que lavram os ou a co n tin u id a d e da Revolução que iniciám os; na paz que ardentem ente desejamos, pois tem os n ecessidade de co n ­ tin u a r trabalh an do pela elevação e prosperidade m aterial do povo, e porque acim a de tu do proclam am os a fé num p atrim ó nio e sp iritu a l que a vio lê n cia bru­ talm ente devastaria. Eis o que espera tranquilam ente de vós, Legionários, a Revolução Nacional.

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XIII. AOS PORTUGUESES DA AMÉRICA DO NORTE 111 Pedem-me duas palavras que sejam para vós neste dia de festa eco da Pátria dis­ tante, e embora doente e receoso de vo-las fazer chegar, apagadas e frias, hei-de dizer o que mais importa ao momento sem preterir a parte que possa caber à saudade. A representação portuguesa na Exposição de Nova York teve o tríplice fim de prestar homenagem ao povo americano e à sua obra, de reivindicar para Portugal o seu justo quinhão, desde a afastada época dos descobrimentos, na formação dos Estados Unidos da América do Norte, e por fim de dar a portugueses e a america­ nos uma ideia, pálida que seja, do esforço de reconstrução realizado aos últimos anos em Portugal. Se houve povo de pioneiros da civilização e que larga parte tomasse na desco­ berta e formação da América, foi o nosso País. Os primeiros entre todos os euro­ peus que perderam a vida ao serviço do novo-mundo foram os portugueses Cortes Reais; e, entre os consagrados heróis da ocupação e do descobrimento das terras americanas do Oeste, está Cabrilho, o herói nacional da Califórnia. Depois disso, o esforço tenaz dos portugueses, o seu amor ao trabalho, o seu espírito de sacrifício, disciplina e respeito pelas leis e instituições dos países a cuja hospitalidade se acolhem, esse conjunto de qualidades morais e cívicas que fizeram sempre do nosso emigrante não estrangeiro que se tolera mas colabora­ dor que se estima, espraiam-se e afirmam-se como largas manchas na grande nação americana. É para nós altamente lisonjeiro que os portugueses espalhados pelo mundo sejam exemplo de trabalho, economia e disciplina e constituam aí uma das mais queridas colónias; e é ao mesmo tempo enternecedor que para isso e, apesar do seu formidável poder de adaptação às mais variadas condições locais de vida e de tra­ balho, não percam o carácter fundamental da sua raça - o seu acrisolado amor à família e à Pátria, a doçura dos seus sentimentos e o orgulho da sua História. Se quisemos comparecer na Exposição de Nova York, ainda que modestamente, como importa ao teor da nossa vida individual e colectiva e à simplicidade dos nos­ sos costumes, foi exactamente e em grande parte para que os portugueses da Am é­ rica não houvessem de sentir-se no grande certame como esquecidos e abandona­ dos e pudessem aquecer o seu coração de patriotas ao contacto desta singela

w Transmitida aos portugueses reunidos no Pavilhão português da Exposição Internacional de Nova York, na festa do Dia dc Portugal, em 12 de Junho de 1939.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 dem onstração do sol e do espírito da sua terra, levados até eles pela mão de artis­ tas portugueses. Se o nosso modesto pavilhão, cantinho da terra portuguesa na grande América; se a visita de um navio da nossa armada, intencionalm ente esco lhido de entre os construídos em Portugal por operários portugueses; se a Casa de Portugal em Nova York, agora criada com o lar dos portugueses da Am érica, vos derem a impressão reconfortante da Pátria presente e desvelada, sen tir-m e-ei feliz, porque toda a nossa política se reduz afinal a fazer que os portugueses sejam em tu do dignos das tradições da sua Pátria e m ostrar-lhes que a Pátria é pelo ressurgim ento operado em todos os campos digna do amor e dedicação dos seus filh os.

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XIV. NEUTRALIDADE PORTUGUESA NO CONFLITO EUROPEU >” Apesar dos incansáveis esforços de eminentes Chefes de Governo e da interven­ ção directa dos Chefes de muitas nações, eis que a paz não pôde ser mantida e a Europa mergulha de novo em dolorosa catástrofe. Embora se trate de teatro de guerra longínquo, o facto de irem defrontar-se na luta algumas das maiores nações do nosso continente - nações amigas e uma delas aliada - é suficiente para o grande relevo do acontecimento e para que dele se esperem as mais graves conse­ quências: não só se lhe não pode ficar estranho pelo sentir, como há-de ser impos.sível evitar as mais duras repercussões na vida de todos os povos. Felizmente os deveres da nossa aliança com a Inglaterra, que não queremos exi­ mir-nos a confirmar em momento tão grave, não nos obrigam a abandonar nesta emergência a situação de neutralidade. O Governo considerará como o mais alto serviço ou a maior graça da Providência poder manter a paz para o povo português, e espera que nem os interesses do Pais, nem a sua dignidade, nem as suas obrigações lhe imponham comprometê-la. Mas a paz não poderá ser para ninguém desinteresse ou descuidada indiferença. Não está no poder de homem algum subtrair-se e à Nação às dolorosas consequên­ cias de guerra duradoira e extensa. Tendo a consciência de que aumentaram muito os seus trabalhos e responsabilidades, o Governo espera que a Nação com ele cola­ bore na resolução das maiores dificuldades e aceite da melhor forma os sacrifícios que se tornarem necessários e se procurarão distribuir com a equidade possível. A todos se impõe viver a sua vida mas agora com mais calma, trabalho sério, a maior disciplina e união: nem recriminações estéreis nem vãs lamentações porque em muito ou pouco fique prejudicada a obra de renascimento a que metemos ombros. Diante de tão grandes males faz-se mester ânimo forte para enfrentar as dificuldades; e da prova que ora der sairá ainda maior a Nação.

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Nota oficiosa do Governo, de 1 de Setembro de 1939, publicada nos jornais de 2.

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XV. A EUROPA EM GUERRA. REPERCUSSÃO NOS PROBLEMAS NACIONAIS (1) Senhor Presidente, Senhores Deputados: Pedi me fossem reservados alguns minutos desta sessão para me associar, em nome do Governo, ao regozijo da Câmara pelo feliz regresso do Chefe do Estado e ao sentimento de gratidão, comum a todos os portugueses, pelo assinalado êxito dessa viagem triunfal. Serei muito mais breve que de outras vezes mas desejara não ser menos claro nas palavras que tenciono dizer. I. Seguimos comovidamente, e nalguns momentos com verdadeira ansiedade, a visita do Chefe do Estado às terras portuguesas de África: ela não seria no nosso pensamento a inspecção do Senhor a ignorados domínios de uma vaga herança secular, mas o saudoso abraço do Chefe aos membros distantes da família. Todo o ultramar africano, com excepção da Guiné, pôde acolher em seu seio Aquele que de entre nós goza do privilégio de representar-nos a todos, elo visível da cadeia que exprime a continuidade histórica do nosso povo e a unidade nacional. O afecto, o entusiasmo, a dedicação patriótica com que foi recebido não é para mim des­ crevê-los; não o será mesmo porventura para quem os presenciou ou viveu: quando o coração transborda, usa afogar as palavras com que tais sentimentos se pode­ riam exprimir. A descoberta abnegada e teimosa é sem dúvida um título; o sangue dos soldados, nas lutas da ocupação, selo material da posse; mas o que está feito é mais - é a fusão da raça e da terra, o alargamento, até aos confins do sertão, das estreitas fron­ teiras da Península, a mesma Pátria reproduzida, alma e sangue, ao modo de mãe em seus filhos. A charrua penetra o solo mais que o ferro da espada; o suor fertiliza a terra mais que o sangue das veias; o espirito afeiçoa e transforma os homens e a natureza mais profundamente que a força material dos dominadores. As fundas pegadas e traços que ficaram de nós na terra e ñas almas, por muita parte onde não é hoje nosso o

Na Assembleia Nacional, em 9 de Outubro de 1939, durante a sessão em que a Câmara se congra­ tulou pelo êxito da viagem do Chefe do Estado às terras portuguesas de África.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 dom ínio político, e têm m aravilhado os observadores desde as costas de Marrocos à Etiópia e do M ar Verm elho aos Estreitos e ao M ar da China, vêm exactam ente de que a nossa obra não é a do cam inheiro que olha e passa, do e xp lo ra d or que busca à pressa as riquezas fáceis e levantou a tenda e seguiu, mas a do que, levando em seu coração a imagem da Pátria, se ocupa am orosam ente em gravá-la fundo onde adrega de levar a vida, ao mesmo tem po que lhe desabrocha espontâneo da alma o sentido da missão civilizadora. Não é a terra que se explora: é Portu gal que revive. Quando, term inada a visita do Chefe do Estado, os portugueses de Moçambique me afirm aram «o seu profundo reconhecim ento e am or à Pátria e uma fé inabalá­ vel nos destinos de Portugal e no engrandecim ento do Império», pareceu-m e que não era só a mesma língua e os mesmos sentim entos, pois ju lg u e i o u vir o próprio eco das palavras, misto de aparente rebeldia e dedicação sem lim ites, que em iguais ' circunstâncias me enviaram de Angola: «Nós não desejam os o Império Colonial...; nós não desejamos a Metrópole...; nós, os portugueses de A n gola, queremos Portu­ gal e Lisboa capital do Império Português». Os homens que nas redacções dos jornais ou nas salas das chancelarias conside­ ram a África baldio da Europa e de vez em quando, teim osam ente, para m atar ódios ou dificuldades, estudam com binações de possível co n fisco ou redistribuição em que entrariam terras portuguesas, tais homens não podem faze r ideia do que isto seja; nós porém sabíamos que era assim, e de sabê-lo nos im portava tirar todas as consequências. Revelar ao mundo clam orosam ente tais realidades fo i o in ten to do Governo; rea­ lizar tal intento é mérito do Chefe do Estado, a cujo sentim ento do interesse pátrio e qualidades pessoais o Pais fica a dever a larga projecção im perial e internacional destas viagens. Foi a viagem deste ano coroada pela visita à União Sul A frica n a, onde o caloroso acolhim ento correspondeu inteiramente à am izade e à com unidade de interesses entre os dois países. M as eu calarei todo o com entário, pois receio to ca r nas pala­ vras definitivas que ao acontecim ento consagrou a mensagem presidencial. II. Entretanto era abalada a Europa pela guerra, que a invasão da Polónia pelas tro­ pas alemãs estendera à França e a quase todo o Império B ritânico. A Alemanha fez-nos saber estar na disposição de respeitar a integridade de Por­ tugal e das suas possessões ultram arinas em caso de neutralidade; a Inglaterra nada pedira em nome da aliança e amizade seculares que nos obrigasse a entrar no con­ flito; nós não tínham os neste, à parte os interesses que nos solidarizam com todos os mais com o membros da com unidade europeia e filh o s da sua civilização, inte­ resse próprio e directo a defender. 0 Governo podia assim m anifestar ao País a deli­ beração e a esperança de m anter na paz o povo português, salvo se a dignidade, os interesses ou os nossos deveres no-la viessem a fazer abandonar. Em todo o caso, não ficaríam os de bem com a nossa consciência, se — am igos que não voltam a cara 41 4

XV. A Europa em Guerra... na adversidade alheia - não reafirmássemos naquele grave momento os nossos sentimentos de amizade e toda a nossa fidelidade à aliança inglesa. A Câmara sabe como a Inglaterra apreciou e considerou benvinda a declaração do Governo: a ati­ tude tomada era de facto a que melhor correspondia à defesa dos interesses comuns das duas nações. Compreende-se facilmente que, se em curtas horas foi possível marcar posições de tal gravidade, é que estas eram apenas a lógica consequência de princípios pos­ tos, de conceitos assentes, de situações definidas há muito tempo. Elas estavam sobretudo na linha das declarações que em Maio passado tive a honra de fazer à Assembleia Nacional: dever de europeus era na verdade não sujeitar de ânimo leve toda a Europa a catastrófica revisão, mas criar, consolidar, em caso de conflito, zonas de paz, entre as quais a da Península tem decisivo valor. A declaração de neu­ tralidade da Espanha, à parte os esforços empregados pelo Generalíssimo Franco para a localização da guerra, é o natural complemento dessa política e uma das suas melhores garantias. A situação persiste pois tal como a definimos, e não julgo consentâneo com ela fazer neste momento e sobre a guerra na Europa nem história, nem crítica, nem vaticínios. Mas, se calo tudo o que poderia dizer, nada entendo retirar do que tenho pensado e dito. A grande crise da Europa é não saber conservar a paz dentro de si mesma. Tem ainda o primado da ciência, da literatura, das artes possui os segredos da técnica; sabe organizar o trabalho; mas não sabe ter paz. A origem do seu mal não reside propriamente na densidade da população, no esgotamento do solo ou do subsolo, na estreiteza das terras ocupadas, mas numa doença do espirito. E, como a antiga Roma, em certo momento da sua decadência, parece já «não poder suportar nem os males nem os remédios». A força essencial à vida das sociedades não é a ultima ratio, é a primeira; dela deriva a moral, o direito, a organização social; e nestes termos já não assegura a paz, gera a guerra. Ou a fazer a guerra ou a armar-se para ela, a Europa, apesar de intenso trabalho e duras restrições, empobrece enormemente: divisa-se a crescente proletarização das nações europeias e diante da hipertrofia do Estado que, a titulo da defesa colectiva, concentra em si toda a riqueza e poder, os homens limitam-se a esperar, em troca de trabalho servil, o suficiente para as necessidades fundamen­ tais da vida. Mas neste extremo tem desaparecido aquela parcela de liberdade e dignidade humana que nós teimamos em crer essenciais à vida civilizada. O definhamento da economia como a diminuição moral do europeu põem em sério risco a resistência da Europa perante eventualidades que podem não ser meras criações do espirito, pois é frágil e precária a força dos Estados - pese o facto embora às imaginações exaltadas que deliram ante as vitórias e as conquistas. A força dos Estados depende da sorte vária das batalhas; para além disso o que vale e conta é a organização da vida e a força moral dos povos, se pelos mesmos princípios de morte não tiverem sido ainda destruídos.

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Oliveira Salazar Notas Políticas • 1938 a 1943

Para haver paz não é su ficien te arrum ação étnica das populações, nem os acor­ dos económ icos, nem a segurança natural das fronteiras. Tam pouco a alcançam as com binações diplom áticas que não se baseiam na coexistência de interesses reais, nem as criações a rtificiosa s da política, nem a teim osia de sustentar contra a pres­ são da vida o que nem a história nem a geografia se encarregaram de consagrare manter. A paz é sobretudo uma criação do espírito, fru to da força que se limita, isto é, da consciência que sabe distinguir e respeitar a linha de separação do direito pró­ prio e alheio até sacrificar o seu interesse a interesse m aior que lhe é estranho. Crise europeia, crise no espírito; crise do espírito, crise de civilização. No seio da Europa gerou-se uma civilização especificam ente sua, que é a civilização latina e cristã. À sombra desta se form aram espiritualm ente todas as nações da Europa e da Am érica e do seu in flu xo m uitas outras beneficiaram em diversas partes do mundo. Se nessa herança moral, que é a nossa, há princípios eternos de verdade e de vida social, reputamos do nosso dever gritar a fidelidade a esses princípios: tanto mais quanto mais esquecidos e violados; tanto mais ju stificad a m e n te quando anda alar­ mado o mundo e perplexa a consciência dos povos que se interrogam ansiosos sobre se haverá ainda, no meio desta derrocada, lugar à verdade, à honra, à justiça, à legitim idade do direito, ao bem comum dos hom ens e das nações. Nem nós pode­ mos crer — e bastas vezes o temos afirm ado — que uma nação com o a Rússia, que exactam ente renegou desses princípios seja quem vem — piedoso cireneu — ajudar a restabelecê-los na Europa ocidental. M as isto são apenas a firm ações de principio; por ju stificado melindre não farei quaisquer aplicações à situ ação actual. Duas excepções abro apenas: a primeira para dirigir uma palavra de funda sim­ patia à nação polaca, à qual queremos prestar a hom enagem devida ao seu heróico sacrifício e ao seu patriotismo; a segunda para dizer que, não contentes de auxiliar a obra da paz com a nossa paz, por ela trabalharem os, e darem os a nossa colabo­ ração aos que trabalhem, quando convencidos da utilidade do nosso esforço, para o estabelecim ento de condições que dêem à Europa segurança e justiça. III. E assim reverto ao âm bito dos nossos problemas internos. A guerra — se verdadeiram ente vamos ter guerra — será sem dúvida mãe daque­ les horrores indisíveis, dos quais às vezes é o m enor a m orte; mas a vida continu­ ará mesmo entre cadáveres a a firm ar os seus im prescritíveis direitos. À medida que as dificuldades aum entarem , deve crescer em nós a força de vencê-las; e a vida dura, semeada de escolhos, traz em cada dia a possibilidade de uma vitória que não tem com paração em valor hum ano e cívico com o m órbido desalento dos que se deixam viver. Sem a inconsciência de quem não medisse a gravidade dos acontecim entos pre­ sentes, impõe-se ao espírito certa dose de optim ism o e, senão de alegria, ao menos de confiança, para que a vida individual e colectiva se afaste o m enos possível da normalidade habitual. Foi já em obediência a esta preocupação que, pesando

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XV. A E u ropa cm G u erra ...

maduramente os vários aspectos do problema e embora convencidos de estar irre­ mediavelmente prejudicado o alcance internacional das comemorações centenárias, se resolveu realizá-las na data própria, com as modificações e aligeiramentos de programa aconselhados pelas circunstâncias. As repercussões económicas da guerra serão sem dúvida graves, mas dependem em última análise da extensão, duração e condições do conflito; elas estão essen­ cialmente ligadas ao uso que pretendam fazer da sua força as potências que domi­ nam os mares e dos acordos que possam realizar-se para abastecimento dos países neutros e da população civil dos Estados beligerantes. Um ponto é para nós assente — não faremos da guerra negócio, e este princípio dominará as relações de Portu­ gal com os países estrangeiros, se também assim procederem para connosco, as relações de produtores e consumidores, as relações dos particulares com o fisco. Tiraremos destas posições todas as consequências. Não devem fazer-se deduções precipitadas do que em outras épocas sucedera: a economia nacional progrediu e fortaleceu-se; previdentemente se foi encami­ nhando a agricultura para o suficiente abastecimento da população em géneros ali­ mentícios; constituíram-se reservas de matérias-primas que nos permitem não resolver os problemas aflitivamente, sob a instante preocupação do dia a dia; o Ultramar Português tem sido chamado a estreita colaboração com a Mãe-Pátria, colaboração que as presentes circunstâncias tornam mais íntima e fecunda, aliás no caminho traçado de uma larga economia imperial. Lá e cá se compreenderá bem que não se têm feito sacrifícios a reservar mercados e manter preços remunerado­ res contra as baixas do mercado internacional, para que este seja agora preferido, nas excepcionais condições criadas, com prejuízo afinal dos interesses comuns. À máxima normalidade da produção e do comércio acrescentaremos outro prin­ cípio orientador - a máxima estabilidade possível para os preços e custos de pro­ dução. E certo que, importadores de materias-primas e fontes de energia, tributá­ rios, na maior parte das importações, de marinhas estrangeiras, não podemos ter a pretensão de decretar que nada, absolutamente nada, se altere nas condições actu­ áis. Mas se nos abandonássemos às livres repercussões que uns produtos haveriam de ter noutros e todos sobre os salários, as bases sobre que levantámos o edifício da economia, da moeda e das finanças públicas encontrar-se-iam destruídas. Nós não poderíamos responder pela realização da justiça social e pela conservação da riqueza colectiva, se não dispuséssemos de uma economia cujas bases oferecessem garantias de solidez e estabilidade, e não estamos por isso dispostos a sacrificar o interesse geral às ambiciosas especulações de alguns. Se não sabemos precisamente o que a guerra imporá em restrições e desvios à economia nacional, também não prevemos o que possa custar ao País sob o aspecto financeiro. É certo que importações reduzidas se afirmarão logo por diminuições maciças de receitas e que estas e os inevitáveis aumentos de algumas despesas terão de ser por várias formas compensados; mas a medida de sacrificios a impor só os factos a revelarão. Tenho porém desde já como provável que os programas das

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 grandes obras públicas não poderão executar-se ao ritm o em que se estava a tra­ balhar, e é por outro lado natural que a novas necessidades correspondam realiza­ ções de ordem diferente. Sobre política nada direi. Ouço que a algumas pessoas as preocupa sobretudo saber as consequências que da guerra advirão para as dem ocracias ou para os regi­ mes de autoridade e por aí determinam os seus ín tim os desejos. A tre vo-m e a dizer que a questão é indigna de nós, prim eiro porque só os povos que não sabem gover­ nar-se é que estão à espera de saber com o os outros se governam e na gestão dos negócios internos pautam pela alheia a conduta própria; segundo porque ou nesta guerra se não discute nada ou estão em jo go problem as de tal transcendência que a seu lado parece trágica ou ridícula a preocupação de situ ações políticas — porque infelizm ente é disto que geralmente se trata. M as se nalguns há receio mais alto e desinteressado, esses devem pensar que foi bem dura a experiência de se complica­ rem os problemas da vida internacional com a form a çã o de blo cos ideológicos e com prevenções acerca dos regimes internos dos Estados, e que seria desesperar da salvação reincidirem no erro os mesmos que lhe sofreram os efeitos e penosamente se estão a curar deles.

Termino e com mágoa de fazê-lo entre sombras. Há no mundo verdadeiro horror à guerra, mas não o há m enos à insegurança e sobressaltada paz em que se tem vivido. Os hom ens de Estado encontram -se per­ plexos entre duas situações intoleráveis e buscam em dolorosas m editações a pre­ ferência por um daqueles males. A nós nada compete decidir, mas somos lógicos co nn osco mesmos procurando descortinar se à consciência dos Governos e dos povos se abrem só as duas alterna­ tivas do angustioso dilema, ou se não é possível rasgar outros cam inhos à paz que não sejam os cam inhos da guerra.

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X V I. FINS E NECESSIDADE DA PROPAGANDA POLÍTICA(1> Meus Senhores: A Comissão Concelhia da União Nacional, que havia deliberado promover séries de reuniões políticas nas freguesias da capital, consultou há dias a Comissão Execu­ tiva sobre a propaganda em momento considerado impróprio para a execução do plano. Na verdade parece que às próprias Comissões de Freguesia «faltava a deci­ são necessária para enfrentar a opinião pública» desorientada «por um estado doentio de crítica». E terminava-se por pedir ao Governo os elementos necessários para rebater a condenável maledicência. Proponho-me eu próprio responder à consulta e entro sem rodeios na matéria. I. SIG N IF IC A D O D A P R O P A G A N D A

Entendamo-nos primeiro sobre o significado ou conteúdo da propaganda que se encontra na base de toda a actividade política. M uitos a confundirão com uma espécie de máquina de elogios, sistemáticos e banais, aos homens e às coisas, de onde foram banidos o sentido das propor­ ções e as exigências da verdade. Ainda que aos homens devotados à causa pública se não possa negar a justiça devida a todos nem o conforto do apreço geral, se o merecem por sua competência e trabalhos, em boa verdade não é só louvá-los a propaganda. Muitos outros ajuizarão dela ser como poderoso veículo que rola pelas estradas da vida social a converter o dinheiro da Nação em pó e barulho - barulho para que se não ouçam as queixas, os protestos, as vozes a clamar justiça; pó para que os olhos não vejam as insuficiências, as misérias, os favoritismos ou a corrupção do Poder. E, embora, certa exaltação dos sentidos e dos espíritos seja necessária à formação de ambientes heróicos e aos sobre-humanos esforços tantas vezes exigidos às nações para viver ou até para morrer bem, não é de facto só embriagá-las a propaganda. Alguns ainda considerarão a propaganda como o instrumento subtil que, reco­ lhendo todos os contributos da ciência e da arte, todas as fascinações da vida, todas

w Na reunião das Comissões da União Nacional de Lisboa, realizada na Sala do Conselho de Estado na noite de 26 de Fevereiro de 1940.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 as perversões dos sentidos, todas as fraquezas da alma humana, transm uda as cores, desfigura os factos, inverte o sentido dos m ovim entos, faz do atropelo razão e da violência justiça, inventa uma história, form ula um direito, cria um a verdade, tão clara, tão incisiva, tão evidente que todos a hão-de ju lg a r verdadeira. E, embora também para o ódio que cegam ente nos acusa seja o co rvo branco e o cisne negro, segundo a imagem de Vieira, não é isso para nós a propaganda. 0 que é, pois? Sempre que abordei este assunto tenho ligado a propaganda à educação política do povo português e lhe tenho atribuído duas fun ções — in form ação primeiro; for­ mação política, depois. Em ocasiões diversas devo ter proferido duas frases, que uma à outra se comple­ tam e traduzem o que acerca do prim eiro ponto poderia dizer: «Politicamente só existe o que se sabe que existe»; «politicam ente o que parece é». Podeis lançar estradas, galgar com pontes os rios, erguer edifícios, reparar monumentos, estender fios telefónicos, construir portos, levantar barragens, irrigar os campos - e tudo isso se ignora? Não existe. Criam -se novas indústrias, descobre-se o subsolo, intensifica-se a cultura, conseguem -se novos mercados, acredita-se a qualidade dos produtos, protege-se por várias form as a econom ia nacio­ nal: assim será; mas para quem o ignora é com o não ser. Acarin h a-se, organiza-se, protege-se o trabalhador e o fruto do seu trabalho; p ro p o rcio n a -se -lh e em bairros alegres e higiénicos a sua casa; difunde-se a instrução; m origeram -se os costumes; eleva-se a vida sempre dentro da m odicidade das condições locais; aformoseiam-se as aldeias; m ultiplicam -se os m elhoram entos para a tra ctiv o da vida umas vezes e instrum ento de trabalho outras; m inora-se a sorte dos infelizes; fru tifica m as obras de assistência particular e pública; mas tudo isso se desconhece? Nem ao menos ter sido pedido e satisfeito lhe dará o ser: existe com o a ctiv o nacional; não existe nos espíritos com o activo da situação política. Está ju stificada a primeira frase, isto é, ve rifica do por m uitos o prim eiro facto. Agora o segundo. Para a form ação da consciência pública, para a criaçã o de determinado ambiente, dada a ausência de espírito crítico ou a d ificu ld a d e de averiguação indi­ vidual, a aparência vale a realidade, ou seja: a aparência é uma realidade política. E este errado conhecim ento das coisas é pior que a ign orân cia delas. Por este m otivo o cuidado de cercar os actos do Governo ou da A d m in istra çã o daquelas aparências que se ajustam aos interesses regulados ou defendidos, à honestidade das intenções, à ju stiça das causas, co nstitu i o prim eiro a cto da defesa; rectificar cada desvio do conceito geral, repor a cada m om ento os actos na sua realidade perante as deform ações da ignorância ou da má fé, é dever e é necessidade que se impõe aos governantes e àqueles a quem incum be a u x iliá -lo s no desempenho da sua missão. Quantos acontecim entos da vida política se regulam só pelas aparências! Quan­ tas construções se erguem sobre aparências de inteligência, de iniciativa, de leal­ dade, de valor pessoal, de conhecim ento dos problemas! Q uantas reputações se 420

XVI. Fins e Necessidade... fazem e desfazem, quantos valores se destroem, quantos empreendimentos ficaram em começo, só porque os envolveu o véu duma aparência enganosa e os olhos não puderam ver à luz da sinceridade o que ele lhes ocultava! Simples gracejos podem ter a aparência de acerada crítica; palavras de desânimo em momento de cansaço podem ter a aparência da falta de fé; a legítima ansiedade de perfeição e progresso pode dar a aparência do desgosto ou da revolta por que nada se fizesse ainda ou nada se fizesse bem. O que ouve e passa supõe esfriado o entusiasmo, perdida a fé, desaparecido o espírito de luta, abandonado o campo ao inimigo, e isso deu-lhe atrevimentos e aumentou-lhe as forças. No entanto, no fundo das inteligências e dos corações nada há mudado - nada há mudado senão as aparências; mas essa mudança é às vezes enorme. No processo de revisão crítica a que devem estar permanentemente sujeitos os nossos princípios, os nossos métodos, os resultados da acção para garantia do seu aperfeiçoamento e segurança da sua eficácia, não podemos contar com os que desejam destruir-nos e não melhorar-nos. Mas, ao fazer apelo à plena independên­ cia do espírito que julga a própria obra, não pode nunca esquecer-se que o fazemos para bem da Nação e não para gáudio de inimigos dela. Cuidado com as aparências! porque «politicamente o que parece é». II. N E C E SS ID A D E D A P R O P A G A N D A A ) A FO RM A ÇÃ O POLÍTICA DOS PORTUGUESES

Esta definição de propaganda, ao mesmo tempo que lhe precisou a finalidade, o objecto e o modo de executar-se, deixou já antever alguns aspectos da necessidade com que se está impondo, para tornar conhecidos os princípios e os factos e para formar politicamente os portugueses. Mas o último ponto reclama mais um momento de atenção. A poucos homens públicos terá sido dado, como a mim, tocar mais fundo m últi­ plas manifestações de decadência nacional, sentir mais vivamente o que pode chamar-se a desordem, o nada, o zero das coisas, de que geralmente se fala com exactidão mas sem a consciência plena dessa triste realidade. Muitos anos à frente de negócios do Estado, tendo passado por vários sectores da Administração onde melhor me podia aperceber das deficiências, das necessidades, das misérias mate­ riais e morais da Nação, onde melhor podia auscultar os seus anseios e revolta con­ tra o imerecido abatimento; sem paixões, compromissos ou responsabilidades no passado; sem vaidade ou ambições pessoais a satisfazer agora ou no futuro - esses muitos anos de governo, cheios de dificuldades e perigos mas também de prestigio e vitalidade nacional, criaram em mim a consciência da utilidade do esforço reali­ zado em prol da Pátria Portuguesa. Não falemos no mérito ou glória de quem quer que seja: desde a arrancada do Exército em 26, a criar as condições fundamentais para a governação do Pais, até às dedicações de cada momento e aos sacrifícios 421

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 espontáneam ente consentidos por todos, podem a vu ltar alguns nomes, mas se há obra que tenha obedecido a um im pulso co le ctivo da N ação — é esta. Por isso é obra nacional. Os que verdadeiram ente o sentem h ão -d e ju lg a r in d ig n o re s trin g ir à sua vida e ao seu nome os b e n eficios e o m érito deste ren ascim ento. Seria v il pretender aum entar o b rilho duma época com o apagam ento da v in d o u ra . Não é de patriota nem de p o lític o abandonar o fu tu ro às co n tin g ê n c ia s da sorte, não criar para urna obra co ndições de duração e de e sta bilidade. P or d e fin iç ã o só fica fe ito o que perdura. E quais serão as garantias máximas de obra nacional estável? Não vejo outras diferentes da consciência dos portugueses. Nem a lem brança das glorias ou misé­ rias do passado, nem a memoria do esforço ou sa crificio s do presente, nem a sim­ patía ou o apoio alheio, nem rivalidades estranhas, nem a mesma força das institui­ ções políticas - nada poderá suprir essa form ação da consciência nacional encarregada de conservar, aum entar e tra n sm itir de geração para geração aquele patrim ónio comum que as excede no decorrer dos tem pos. — E aqui se põe o pro­ blema da form ação política. Ainda que todos os esforços da educação na fam ília e na escola convirjam hoje para a mesma finalidade geral da cultura do patrio tism o, algum a coisa mais se exige e é necessária a cargo de organism o próprio que pela propaganda e actividade específica crie e alim ente a consciência pública e fo rm e o escol político capaz de conduzir e realizar os im perativos nacionais. Não fu jo a apreciar uma das dificuldades. A geração que principalmente tem arrostado com o peso do ressurgim ento pátrio alim entava-a mais um sentimento de revolta do que um pensam ento político defi­ nido. Sem desconhecer o que se deva com o elem ento reco nstru tivo a alguma dou­ trinação nacionalista anterior, parece poder afirm ar-se que da cultura intelectuali­ zada de poucos não passara nem a sentim ento geral nem a m óbil de acção. 0 que vim os operar foi a reacção de energias latentes a procurar por entre escombros cam inho salvador. A aglutinação fez-se contra o que estava — e era desordem, misé­ ria, aviltamento, risco de perdas irreparáveis em grave conjuntura. A coesão poste­ rior deve-se, além da nossa doutrina já feita, à facilidade de com paração, isto é, a resultados fecundos à vista de todos. A nova geração porém já não viu ou não se lembra do que nós vim os ou sofre­ mos. Não assistiu ao descalabro das finanças e da moeda, à ruína da econom ia, ao assalto da propriedade, à desordem da rua e dos espíritos, aos assassinatos dos ini­ migos políticos e dos m ilitares de prestígio, aos insultos e vexam es da gente honesta nas praças e nas cadeias, às cam panhas an ti-religio sas, à «justiça popular», à instabilidade governativa, à indisciplina e afundam ento dos órgãos do Estado, ao riso escarninho do m undo perante uma gloriosa Nação m u ltise cu la r que, pare­ cendo não querer viver em paz, não fazia ao menos revolu ções mas sangrentos motins. Isto sentim os e tivem os ontem sem que hoje quase se lhe note o rasto: 422

X V i. Fins e Necessidade...

mas a viveza das reacções que em nós desperta não pode existir na mocidade como factor determinante duma atitude política; e exemplos de fora estão longe e vêem-se mal. Isto quer dizer que a formação política das novas gerações - e ainda bem! - não podemos teimar em fazê-la no sentido negativista e crítico mas à volta de um pen­ samento reconstrutivo do Portugal de amanhã. Se é mais difícil aos nossos hábitos e à velha mentalidade, é por outro lado mais conforme com os princípios da Revo­ lução Nacional. III. N E C E SS ID A D E D A P R O P A G A N D A A ) RAZÕ ES DE ORDEM E X T E R N A

Tenho aduzido razões de ordem interna para justificar a necessidade de intensa e bem ordenada propaganda; e posso acrescentar-lhes agora duas razões derivadas da ordem internacional - a primeira das quais é o preço da guerra que havemos de pagar; outra é o dever de mantermos sempre a liberdade das nossas decisões. Começarei pela última. A posição de Portugal no actual conflito foi definida pelo Governo no começo da guerra e permanece hoje ainda tal como foi definida. 0 Pais sentiu-a tão conforme aos seus melhores e maiores interesses que não hesitou em aplaudi-la e em aderir-lhe firmemente. Mas, enquanto o Governo espera que a Providência lhe permita manter, sem quebra de compromissos nacionais, o bem inigualável da paz, alguns, que precisamente não combateram em Espanha nem desejarão lutar pela Finlândia, batem-se por aí com ardor... Eu sei que não se trata de uma verdadeira discrepância de política internacional, mas de simples pretexto para um arranjo interno... Com muito pouca prudência, aliás, muito pouca exactidão e muito fraca visão do futuro se apregoa lá por fora ser a luta actual a luta das democracias contra os Estados autoritários; e, sem medirem o valor das palavras nem a diferença dos tem­ pos, a alguns entre nós se afigurou possível que a vitória das «grandes democracias» os ajudasse a repor de onde a justiça da Pátria para sempre os escorraçou. É talvez cruel desfazer as ilusões das crianças... e dos políticos, mas esta toca tão de perto o aprumo das pessoas e a dignidade da Nação que é nosso dever, velando por ela, não deixar que mesmo no domínio da fantasia nos possa diminuir. Estes trabalham de dentro para fora; mas há também os que trabalham de fora para dentro. Nestes conturbados tempos o comunismo sobretudo esforça-se por constituir frentes suas à retaguarda dos inimigos; e, se pela vigilância ou escassez de meios não pode constituí-las, tenta infiltrar-se nas linhas para desmoralização dos adversários. Processo conhecido é apenas meio perigo: basta prevenir os ingé­ nuos e estar alerta nas fileiras. Não se estranha que, encontrando-se pendentes dos conflitos internacionais solu­ ções económicas e políticas que respeitam não só ao prestigio mas à própria vida e his423

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tória das nações, não se estranha cada qual busque perante o tribunal do mundo — homenagem da força à consciência moral — aduzir suas razões, apresentar sua defesa, legitimar seus actos e processos de guerra, captar sim patias e adesões, ao menos no terreno sentimental. Deixam-se m ultiplicar as peças do processo, produzir testemunhos de um e outro lado, decorrer os debates, mas, se me é permitido conti­ nuar com o símile judiciário, seria pelo menos estranho que já não digo os juízes maso público manifestasse tomar partido pelos contendores. Seria o alvoroço que perturba, seria a divisão que enfraquece, pior ainda, seria a paixão que turva o pensamento e pode desviar do recto caminho a vontade. Não obstante afinidades, simpatias, ligações políticas, várias vezes afirmadas e sinceramente mantidas, o Governo tem a legítima pretensão de que se mantenham as condições de em cada m om ento se poder livre­ mente determinar conforme os mais altos e claros interesses da Nação. E passemos ao preço da guerra. Receio me acusem de apresentar um paradoxo, quando ju lg o e xprim ir simples­ mente a verdade: só as pequenas nações fazem as guerras inteiram ente à sua custa; as grandes potências não têm meios para cu steá-las só por si, recaindo sobre as mais uma parte das despesas. Quer dizer, nós em paz tam bém pagarem os a nossa contribuição de guerra. A outra — a últim a ... — pagám o-la em sangue, em m iséria, na desordem finan­ ceira, no afundam ento da moeda, na perda dos ca p ita is circulan tes. A da Alema­ nha pagou-a ela em prim eiro lugar, e depois nós e m uitos o u tro s com os marcos desvalorizados, as reparações em espécie, a perda dos v alores m obiliário s estran­ geiros. Os destroços da revolução russa pagou -os a França e depois a Alemanha e a Inglaterra em grossos financiam entos incobrados. A guerra da França e da Ingla­ terra pagou-a a form idável capacidade fin an ceira dos dois países, mas também os neutros com as frotas que perderam, os negócios que não fizeram , os capitais que se desvalorizaram . E quase tudo o mais o pagaram os Estados Unidos. M u ito pou­ cas nações terão enriquecido; quase todas ficaram m ais pobres. Tem a guerra tal capacidade de desperdiçar, é tal o volum e das riquezas que con­ some que mesmo a produção febril e centuplicada dos países em luta lhe não pode fazer face. E seja por força de política intencional, seja por fatal solidariedade eco­ nómica, todos haveremos de pagar a nossa parte de despesas. Ou em novas desva­ lorizações de moedas e de títulos que possuamos de ou tro s Estados, ou no acrés­ cim o dos fretes, ou no aumento de preços dos artigos que im portam os, ou na sua falta no mercado, ou nas restrições inevitáveis de alguns consum os, e em muitos outros sacrifícios e incóm odos, é necessário que os portugueses tenham sempre clara no seu espírito esta triste realidade - que não podem os e xim ir-n os a suportar uma cota parte do custo da guerra que não fazemos. E, se me perguntarem qual a m elhor form a de satisfazer o inevitável acréscimo de encargos, direi que a mais fácil, mais barata e mais cóm oda está em produzir mais, está em trabalhar mais e em que o nosso trabalho tenha m aior rendimento. E aqui pode bem o patriotism o ilum inar e tornar abençoado o que as circunstâncias venham a impor com o extrema necessidade. 424

XVI, Fins c Necessidade... IV. FÉ E COR A G EM

Tenho quase concluída a minha resposta: havendo aludido às várias razões de ordem interna e externa que justificam da nossa parte maior actividade e intensa propaganda, parece-me não me haver referido ainda à razão de inoportunidade apre­ sentada na consulta. Viram-se as comissões enleadas em tal teia de intrigas, maledi­ cências e boatos, que julgaram difícil arrostar com o estado doentio da opinião. Há nesta suposição dois equívocos que não hesito em pór claramente a nu. 0 primeiro é julgar-se que os papéis clandestinos que os sovietes pagam e os ingénuos lêem têm alguma coisa que ver com o verdadeiro estado da consciência nacional. Senhores, não! À parte as reclamações e queixas, justificadas ou não, mas sérias e que é preciso considerar atentamente, o Governo tem meios de saber quem são muitos dos descontentes: os que, havendo perdido a fortuna, esperam que o Estado lha reconstitua»; os que, tendo já dois lugares, não obtiveram o terceiro que ambicionavam; os que, empregando trabalho alheio, pretendem que este dê tudo e eles nada; os que vertem lágrimas por misérias para que bem podem ter contribu­ ído e não ajudam com seus meios a minorar; os que não encontram peixe em águas claras e por isso as turvam quando podem; os que não têm Pátria, porque a vende­ ram e a si próprios se vendem se alguém os paga: em suma, os descontentes de todos os tempos, os inadaptados de todas as latitudes, os incompreendidos candi­ datos a salvadores de todas as revoluções, lesados no mérito ou glória alheia. Nós não vamos amesquinhar o País com tão lamentável confusão. Como não são estes os que merecem atenção, também não são os seus ditos os que hão-de ter resposta, em primeiro lugar porque muito mais facilmente se inven­ tam cem mentiras do que se comprova uma só verdade; depois porque nos tornarí­ amos responsáveis de baixar o nível da vida pública portuguesa à inferioridade de que tanto tem custado arrancá-la. Perda de tempo útil, péssimos resultados. Quando miasmas invadem a atmosfera e tornam doentio o ar que se respira, convém sobretudo atacar os focos de infecção, varrer com rajadas de ar fresco o ar apodrecido, fazer entrar o sol a jorros nos lúgubres lugares. E falar, erguer a voz serena e vibrante da razão: notareis que deixará logo de ouvir-se o zumbido dos moscardos. E que se requer para esta acção? Duas qualidades ou virtudes que não se inven­ tam nem pedem emprestadas - ou se têm ou se não têm: fé e coragem. Fé nos princípios e nos homens: nos principios que estão na base da Revolução Nacional e por força dos quais se pôde operar o renascimento deste Pais, e nos homens em cada momento escolhidos para os executarem e fazerem viver. Fé nos princípios que consubstanciam a alma. tradições e aspirações da Nação portu­ guesa, e não podemos por isso, no que têm de mais sagrado, nem postergar nem pôr em discussão; fé nos homens cuja obra os acredite, cujo passado os imponha, cujo sacrifício e honra podem dispensar o reconhecimento, mas não podem dis­ pensar a justiça.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 E é também precisa a coragem - a coragem do que se pensa, do que se pre­ tende, do que se realiza. Que im porta que as nossas ideias choquem o pensar cris­ talizado no espírito de alguns, se é em nome delas que governam os, se para exe­ cu tá-las somos Poder? Buscamos resolver os problem as da N ação com os nossos conceitos de autoridade, hierarquia, ordem, liberdade, trabalho, riqueza, tradição, honestidade: com o estranhar que façam os o que ou tro s pretenderiam que não fizéssem os e não façam os o que esses achariam m elhor? Temos um mandato da Nação; auscultam os sem prevenções as suas necessida­ des e anseios; realizamos pelo m elhor meio os seus interesses superiores. No desen­ volvim ento de uma obra que não é ficçã o do nosso espírito mas realidade tangível em benefício da colectividade, e exige rasgo, decisão e urgência, não podemos ter o ar hesitante e com prom etido de quem há-de a cada m om ento pedir licença ou pedir desculpa. Seria não ter consciência nem do passado nem do presente estar perturbado e tím ido e não se apresentar diante de todos com a firm eza e a alegria de quem aju­ dou a salvar Portugal.

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XV II. VISITA DE UMA ESQUADRA ESPANHOLA111 Meus Senhores: Duas palavras apenas para agradecer a vossa presença aqui e para saudar na pessoa do Sr. Embaixador e do Sr. Almirante a Espanha e a sua gloriosa Marinha. As palavras, indispensáveis para traduzir ideias, nem sempre o são para exprimir senti­ mentos: destes se irradia uma força e cria um ambiente que melhor se apreendem do que se definem. Numa atmosfera dessas, que é de amizade e afecto fraternal, decorre a visita da esquadra espanhola a Lisboa, com a qual me regozijo como português e como homem de Governo. Ela não tem somente significado e alcance nas relações senti­ mentais entre os dois povos. A amizade sincera é firme esteio para os tratados, auxílio poderoso para os interesses comuns, garantia de conciliação para os que o não sejam, enfim seguro factor de compreensão mútua. Bem o experimentei durante a vossa admirável luta pela civilização, quando, como Ministro dos Negócios Estrangeiros, ao dirigir, ao viver a nossa campanha diplomática desta verdadeira guerra peninsular, me achei mais de uma vez a prati­ car as diligências e a tomar as atitudes que vos interessavam, antes mesmo de me serem solicitadas. Que esta compreensão mútua seja cada vez mais perfeita são os meus votos sin­ ceros para bem das nossas duas pátrias e da civilização de que somos obreiros. Nes­ tes sentimentos bebo pela Espanha e pela sua Marinha.

1,1 No almoço oferecido ao Almirante e oficiais da esquadra espanhola, no Palácio de Sintra, em 12 de Abril de 1940.

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XV III. CONVERSÃO DO FUNDO EXTERNO "> A conversão do «Externo», há dias decretada, é a quinta ou sexta operação do género levada a efeito nos doze anos da minha gerência financeira. As anteriores incidiram sobre nove empréstimos diferentes e tiveram os mais diversos fins: umas destinaram-se a regularizar a situação da dívida quanto a taxas de juro ou ao valor nominal dos títulos; outras tenderam a fazer beneficiar o Tesouro da baixa do juro no mercado. Quer porém quando buscava realizar apenas o interesse geral da administração financeira, quer quando tinha em vista diminuir os encargos da dívida pública, nunca disse sobre tais operações outras palavras, nunca dirigi inci­ tamentos ou convites que não fossem os constantes dos textos legais. A excepção de hoje deve atribuir-se à importância da operação em si própria e sobretudo ao seu interesse político: digo político no mais alto significado nacional. De facto, exceptuada a dívida ao Banco de Portugal, constituída por notas emi­ tidas em favor do Tesouro anteriormente a 1928 e cuja origem e regime a diferen­ çam de tudo o mais, a dívida externa representa só por si mais de metade de toda a dívida portuguesa: mais de 3 milhões de contos em 6 que é o total. Em segundo lugar, extinta a dívida flutuante e substituídos os suprimentos dos banqueiros estrangeiros por depósitos do Tesouro, a dívida externa é a única dependência — ainda assim mais aparente que real pela nacionalização operada - , é a única depen­ dência, dizia, do Estado português em relação à finança internacional. Por último é a única dívida de origem defeituosa, ainda ligada às consequências da crise de 1891; e embora nos trinta e oito anos decorridos Portugal tenha honrado fielmente os seus compromissos através de todas as dificuldades económicas ou financeiras e das convulsões políticas, sempre a dívida externa recorda um mau passado, impo­ sições dos credores, negociações difíceis - o Convénio de 1902. Tudo isto é verdade há muito tempo, ainda que só recordado agora. Mas desde que se apresentou com suficiente solidez a nossa regeneração financeira, e foram possíveis avultados empréstimos e outras conversões, fazer alguma coisa vasta e profunda com a dívida externa passou a ser ponto necessário do programa. Quando? Em que termos? Estas operações têm a sua oportunidade e são as condições do momento que indicam a directriz. As condições desta suscitaram-nas as alterações dos valores monetários a que temos assistido. 0 momento é este e não outro, desde que é

1,1 Palestra lida na Emissora Nacional, para propaganda da operação, em 25 de Abril de 1940.

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in tu ito do Governo sobretudo lograr o benefício m oral da n acion a liza çã o da dívida, não fazer lucros nem conseguir dim inuição de despesa mas v ir em a uxílio dos cre­ dores, para evitar-lhes a baixa eventual dos rendim entos e a desvalorização dos capitais. Aos financeiros ansiosos de maiores triu n fo s — tra d u zid o s na diminuição dos encargos do Tesouro ou na am putação substancial da dívida, sem qualquer con­ sideração pelos interesses dos portadores dos títu lo s - aconselharia eu que aguar­ dassem mais tempo ainda. Mas nós sen tim o-n os ligados por prin cíp ios de moral na adm inistração pública, e estes não nos permitem desinteressar-nos da situação criada aos credores do Estado pelos acontecim entos internacionais. Sob este aspecto a conversão do nosso externo deve fica r nos co nvu lsio na dos tempos que vivemos, entre tantas m anipulações financeiras de fin s diam etralm ente opostos, com o espécie rara e padrão de lealdade e seriedade do Estado.

0 Estado assegura em primeiro lugar, e sta b iliza n do -o s em escudos, os capitais representados na dívida externa, num valor superior ao v a lo r a ctu al de realização na Bolsa; o Estado assegura ao portador um rendim ento e sta biliza do em escudos, também neste momento superior ao que lhe com petiria pela co ta çã o da libra no mercado livre de Nova York. Quanto ao primeiro ponto: tratando-se de títu lo existente em grandes quanti­ dades nas mãos do público em geral, em empresas de vária espécie e instituições públicas ou particulares de previdência e capitalização, as baixas de cotação, veri­ ficadas em consequência da alteração de valor das m oedas em que o títu lo é libe­ rado, traduzem -se em perdas avultadas. Ora à cotação actual do 4%, negociado na Bolsa a 970$ (o que perm ite esperar para o novo consolidado de 2.000$ cotação im ediata à roda de 1.940$), o Estado, dando três títulos por quatro da dívida externa, valoriza de fa c to cada um destes a 1.455$, valor m uito mais elevado que o que se tem ve rifica d o nas últim as semanas. Pelo que se refere ao rendimento, o ju ro a receber pelos novos títu lo s é precisa­ mente o mesmo da dívida externa, se a libra estivesse a 100$; mas para ajuizar com rigor da situação tem de recordar-se que, sem a política cam bial seguida no sentido de dar a máxima estabilidade possível ao esterlino na nossa praça e de o furtar a toda a depreciação violenta verificada no mercado de Nova York, a libra teria valido nas últimas semanas, para um valor do dólar de 27$50, pon to de referência da nossa política, entre 95$ e 98$. Se pois pagámos os cupões do extern o desde 1932 a 1939 ao valor de 110$ a libra, e pagámos o cupão de Janeiro de 1940 a 108$20, não podemos neste m om ento saber a com o será satisfeito o cupão de Julho e os cupões seguintes dos títu lo s que não venham à conversão. Não se faz distinção nem entre as séries nem entre títu lo s carim bados e não carimbados: não era possível nem prático em operação deste tip o e desta enverga­ dura. Por outro lado com preender-se-á facilm ente que, se os acontecim entos da hora presente oferecem riscos diversos, estes são precisam ente m aiores para a 430

XVIII. Conversão do Fundo Externo

parte estampilhada da dívida. Nem pode objectar-se com a excepção, relativa­ mente ao imposto, de que têm gozado os juros dos títulos carimbados quando pagos no País, porque tal liberalidade do Estado estava ligada a uma política hoje sem o mesmo interesse e sobretudo não tem qualquer fundamento contratual. Este é em poucas palavras o interesse material e privado dos portadores dos títulos, e que os aconselha a converter a sua dívida externa; mas há interesses morais em jogo que correspondem precisamente ao interesse nacional da operação e em que patrioticamente todos devem colaborar. Os portugueses desperdiçaram nas últimas dezenas de anos muitos milhões espalhados por várias partes do mundo, e dessa perda se tem ressentido fortemente a nossa economia - sangrada ém elementos de vitalidade quando emigravam, depauperada porque não voltaram nem renderam. Um movimento se salva econó­ mica e moralmente - o da repatriação da dívida externa que, embora pesasse todos os anos na procura de divisas estrangeiras para a compra dos títulos no mercado externo, produziu a sua quase completa nacionalização. Pouco a pouco, os portu­ gueses se foram dando conta de que, estando em ordem a sua própria casa, nenhuma segurança ou garantia estranha excedia a do seu País. Pelos cálculos que puderam fazer-se sobre a importância dos juros pagos em Por­ tugal e no estrangeiro, e tendo-se em conta os títulos de nacionais cujos rendimen­ tos são cobrados fora do País, pôde chegar-se à conclusão de que nos últimos anos o repatriamento da dívida externa se fazia por valor superior a 400.000 libras anu­ ais, devendo encontrar-se hoje em mãos de portugueses entre 80 e 90% da totali­ dade dos títulos. A conversão destes títulos em dívida interna não é senão fazer cor­ responder a aparência à realidade e consolidar a situação livremente criada. Mal ficaria a portugueses dar a entender que a preferência pelo Externo é função das garantias especiais do título, substituídas, quanto ao novo Consolidado, pelas que usufrui toda a nossa dívida pública, e que é a 10% de estrangeiros, ou seja às possí­ veis pressões dos seus Governos - aliás inoperantes nos tempos modernos, como se tem visto - que confiam a segurança dos maiores valores mobiliários portugueses. Estamos já felizmente muito longe, no que respeita a sensibilidade nacional, do estado de espírito que pudesse sem revolta aceitar o problema em tais termos. 0s nacionais virão pois à conversão; e, se além deles vierem também os estrangeiros, isso será a maior afirmação de confiança no escudo, que ele inteiramente merece pela importância e solidez das suas reservas, mas que nem por isso deixará de nos lisonjear. A um ou outro portador pode parecer que, se muitos vierem converter os títu ­ los, a ele lhe interessará precisamente não vir, porque o mecanismo da amortização, mesmo na 1.a série, poderá, repousando em bases mais estreitas, provocar alta dos títulos suficiente para cobrir os riscos da baixa de rendimento. Devo porém recor­ dar que, estando garantida a conversão de parte importante da dívida, o Estado encontrar-se-á em condições legais e disporá de meios bastantes para poder defender-se da especulação abusiva dos portadores, se a houver e durante tantas deze­ nas de anos quantas teimasse em durar. 431

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Embora o intento principal da operação seja obviar à queda dos títu lo s e facul­ tar aos portadores a estabilidade do rendim ento e dos ca p ita is investidos na dívida externa e não propriam ente realizar dim inuições de despesa, o Estado tem interesse em que a conversão obtenha êxito com pleto, sobretu do pelas razões de ordem moral e nacional que indiquei. Se por hipótese viessem à conversão todos os títulos, seriam as seguintes as principais vantagens: 1. a Extinção da dívida externa e m aior segurança de fica re m no País os rendi­ mentos do novo Consolidado, salvo na parte hoje possuída por estrangeiros; por­ tanto menor necessidade de divisas, melhores co ndições para a estabilidade e soli­ dez da moeda interna; 2. a D im inuição do capital nom inal da dívida com repercussão favorável na sua capitação — indicador de boas finanças — e d im in u içã o de despesas obrigatórias de am ortização; 3. a Mais perfeita adaptação da dívida às taxas de juro do mercado, traduzida nas :otações próximo do par, e por isso maior resistência às grandes flutuações de valor, sabido de mais que a política monetária é em toda a parte orientada no sentido das taxas de juro baixas e aqui se concede ao novo Consolidado a garantia de quarenta anos sem poder ser convertido noutro ou remido obrigatoriamente. Por outro lado o Estado priva-se do benefício eventual da d im in u ição de encar­ gos por novas alterações monetárias, e isto sig n ifica que não joga na baixa das moedas estrangeiras que interessam à sua dívida externa, e nesse procedimento marca apenas a solidariedade para ele existente entre os interesses do Tesouro e os da econom ia dos portadores da dívida.

A Junta do Crédito Público e todas as secções de finanças do País abrirão amanhã e nos quinze dias seguintes para receber as propostas de conversão. A operação é inteiramente voluntária, isto é, no terreno jurídico não há obrigação de a ela concorrer. As palavras que vim proferir tenderam a mostrar o interesse dos portadores de aceitar em troca dos seus títulos o novo Consolidado. Tinham ainda outro intento - investi­ gar se, sendo certo e seguro o seu interesse, não haveria para os portugueses obriga­ ção moral de fazê-lo. Eu creio que sim. Não podemos perder nenhuma ocasião de afir­ mar a vitalidade nacional, de marcar a autonomia nacional nos interesses, nos sentimentos, na política, na administração. Podemos agora fazê -lo com rara extensão: não é no ano das comemorações centenárias que vamos falta r a este dever.

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X IX PROBLEMAS POLÍTICO-RELIGIOSOS DA NAÇÃO PORTUGUESA E DO SEU IMPÉRIO "> Senhor Presidente, Senhores Deputados: Hoje serei breve, mas entendi que não devia faltar. Se, não obstante o momento impor preferência a preocupações de ordem bem diversa, nos reunimos para ocupar-nos dos recentes acordos com Roma, isso quer dizer não termos cedido à hip­ nose da tragédia e não haverem os acontecimentos interrompido nem o esforço de reconstrução nem os trabalhos da paz. Mas eu serei breve e, deixando de lado o mundo de coisas que poderiam dizer-se, referir-me-ei apenas, por mais consentâ­ neo com a minha posição, aos princípios fundamentais da Concordata em relação com a política nacional.

I. A primeira realidade que o Estado tem diante de si é a formação católica do povo português; a segunda é que a essência desta formação se traduz numa constante da história. Nascemos já, como nação independente, no seio do catolicismo; acolher-se à pro­ tecção da Igreja foi sem dúvida acto de alcance político, mas alicerçado no senti­ mento popular. Tem havido através da história incidentes e lutas entre os reis e os bispos, os governos e o clero, o Estado e a Cúria, nunca entre a Nação e a Igreja; quer dizer, lutas de interesses temporais ou de influências e paixões políticas, nunca rebe­ lião da consciência contra a fé. Não há em toda a história apostasia colectiva da Nação, nem conflitos religiosos que dividissem espiritualmente os portugueses. Com maior ou menor fervor, cultura mais ou menos vasta e profunda, maior ou menor esplendor do culto, podemos apresentar perante o mundo, ao lado da identidade de fronteiras históricas, o exemplo raro da identidade de consciência religiosa: benefí­ cio extraordinário em cuja consecução se empenhou uma política previdente. Da forma como despertámos para a independência, misto de religiosidade e de sentido político na luta contra o sarraceno, e da vocação apostólica e universal do catolicismo que nos estava no sangue, nasceu, com o expansionismo das navegações,

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w Na Assembleia Nacional, em 25 de Maio de 19*0, durante a sessão em que a Cámara aorovou a Concordata e o Acordo missionário, assinados no Vaticano em 7 de Maio daqueie ano.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 o ideal missionário. Pouco im porta que alto pensamento de política comercial e marí­ tima determinasse o escol dos dirigentes a buscar novas rotas e descobrir outras ter­ ras; o constante apelo à evangelização dos povos, a par e passo das descobertas e da colonização, marcaria, senão a consciência religiosa do Poder, ao menos a mobilização do sentimento público para facilitar a empresa e tornar suportáveis, através do reco­ nhecimento de alta missão espiritual, os sacrifícios que custava. Assim se compre­ ende essa arrancada para a evangelização que m ultiplicava as forças das ordens reli­ giosas e gerava novas cristandades; assim se com preende o espírito da nossa dominação e das relações com os indígenas, m uito antes que se invocassem pela Europa as exigências do humanitarismo; assim se com preende o afecto, a filiação espiritual de muitos povos e raças que não dom inam os já politicam ente. Povo desco­ bridor, povo colonizador, povo missionário — tudo é revelação do mesmo ser colec­ tivo, demonstração ou desdobramento da mesma política nacional. Quer dizer: não pode pôr-se entre nós o problem a de qualquer incompatibilidade entre a política da Nação e a liberdade evangelizadora; pelo co ntrário, uma fez sem­ pre parte essencial da outra. Para quê a verificação deste princípio? Para saber se uma Concordata pode ser em Portugal apenas a conciliação precária de duas força s inim igas, a condescen­ dência do Estado perante actividade indiferente à realização dos seus fins nacio­ nais, ou a conjugação confiante de esforços para obra que, m esm o no sentido pura­ mente humano, corresponde à vocação de Portugal no m undo e à sua principal directriz histórica. II. Parece-m e averiguado este ponto, e não teríam os pois daí dificuldades, se outras não pudessem surgir da posição da Igreja ante as características, as necessidades, os interesses de um Estado moderno. Roma não muda no dogma nem na moral; evoluciona lentissim am ente no culto; bastante pouco na organização interna e na disciplina. O Estado por sua vez, quase desligado de princípios absolutos, adapta-se à variabilidade das circunstâncias, cede ás exigências dos tempos, alarga ou restringe os seus fins, m u ltip lica ou diversifica a sua acção, reforça ou relaxa a autoridade e, se m uito da sua a ctividade de hoje é passageira im posição da moda, m uito corresponde tam bém a necessidades reais da vida em sociedade, a aspirações irresistíveis do corpo social. Onde se poderá cho­ car esta expansão e volubilidade do Estado com a perm anência do dogm a e as posi­ ções tradicionais da Igreja? 0 Estado tem -se visto forçado a condicionar cada vez mais a liberdade dos indi­ víduos a necessidades e escopos colectivos; marca a cada passo mais e mais o carácter puramente civil da sua actividade; estende as suas exigências à formação do agregado familiar; reivindica a instrução e educação da m ocidade; vigia ou dirige a actividade intelectual; lim ita a propriedade, redistribui as terras, requisita os fru­ tos do trabalho; dá directrizes, normas, lim ites à econom ia da Nação; regula o 434

XIX. Problemas Político-Religiosos... esforço, o descanso, o divertimento; por vezes chama a si o homem no complexo da sua personalidade, em corpo e alma, ideias e sentimentos, com exclusão de alguém mais como roda de máquina de que ele não pode libertar-se ou fugir; engrandece-se e diviniza-se; e, sem nada que o limite, pode apresentar-se como a mesma consciência, força e riqueza da nação. Há nestas concepções realidades e necessi­ dades novas, e há também meras criações do espírito, que a experiência costuma condenar e a História - grande coveira - vai enterrando em seu largo cemitério. Mas por vezes há mais do que isso - há o ataque a alguma coisa de superior: à ver­ dade que resplandece sobre as contingências, à consciência que resiste a despo­ jar-se de si própria, isto é, de inauferíveis direitos que derivam da natureza do espí­ rito humano. É certo que estes últimos pontos nada têm que ver, ou muito pouco, com a polí­ tica e a organização do Estado, determinadas por muitas outras condições e cir­ cunstâncias que não só princípios abstractos; mas o conceito do homem e da socie­ dade, da vida e dos seus fins está no âmago da questão. Quanto a nós que nos afirmamos por um lado anti-comunistas e por outro anti-democratas e anti-liberais, autoritários e intervencionistas, tão rasgadamente sociais quanto de nós exige o princípio de igualdade de todos perante os benefícios da civilização; quanto a nós, três únicas questões podiam a meu ver tornar impos­ sível o acordo, por tocarem em pontos essenciais da doutrina: o reconhecimento de uma norma moral preexistente e superior ao próprio Estado; a constituição da família; a educação. A Constituição de 1933, com a clarividência que hoje podemos apreciar, arrancou o Estado português à tentação da omnipotência e da irresponsa­ bilidade moral, e permitiu atribuir à Igreja, na constituição dos lares e na formação da juventude, aquela parcela de mistério e de infinito exigida pela consciência cristã e que só por arremedos vis poderíamos substituir. Ir além, abrindo mão de tudo mais, seria fechar os olhos a vivas realidades do nosso tempo; não ir até ali seria igualmente ter em menos conta o que é exigência de justa liberdade e necessidade da estrutura cristã da Nação portuguesa. Se, pois, com seriedade e boa fé, foi possível encontrar uma fórmula de respeito e colaboração entre um Estado moderno equilibrado e a Igreja Católica, devemos regozijar-nos - por nós, em primeiro lugar, depois também por contribuirmos para a solução de problemas postos com acuidade num mundo que se desagrega pela força dos erros ou das armas e é preciso refazer «em espirito e verdade».

III. Toda a matéria dos acordos sujeitos à apreciação da Assembleia se reduz, pode dizer-se, a três questões fundamentais: liberdade religiosa; organização missionária do Ultramar Português; garantia do Padroado do Oriente. A que luz foi visto e em que plano foi posto o problema da liberdade religiosa? A quem ler atentamente as disposições que se lhe referem aparecerá com evidência ficar essa liberdade condicionada apenas por exigências superiores de interesse e 435

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ordem pública, pela garantia da form ação patriótica do clero e pela escolha das mais altas autoridades eclesiásticas em condições de boa co la b ora çã o com o Estado. Nada mais se considerou preciso - nem certas incursões co nh ecidas do Poder na vida da Igreja e das associações ou institu tos religiosos, nem m esm o alguns privilé­ gios, aliás insustentáveis em regime de separação e n ou tros tem pos conferidos ao Estado português. Nós tiram os da experiência esta dupla lição: m elhor se rege a Igreja a si própria,- em harmonia com as suas necessidades e fins, do que pode d irigi-la o Estado através da sua burocracia; m elhor se defende e robustece o Estado a d efin ir e realizar o interesse nacional nos dom ínios que lhe são próprios, do que pedindo emprestada à Igreja força política que lhe falte. D igam os por outras pala­ vras: o Estado vai abster-se de fazer política com a Igreja, na certeza de que a Igreja se abstém de fazer política com o Estado. Isto pode ser e deve ser assim. Pode ser, primeiro, em virtu de de todas aquelas razões derivadas da formação espiritual deste povo e da sua vocação histórica, e depois pelo facto de termos enfim um Estado Nacional, ou seja term os chegado à integração da Nação no Estado Novo Português. Deve ser assim, porque a política corrompe a Igreja, quer quando a faz quer quando a sofre, e para todos é útil que as coisas e pes­ soas sagradas as toquem o menos possível mãos profanas, e o menos possível também as agitem sentimentos, interesses ou paixões terrenas. Considero perigoso que o Estado adquira a consciência de tal poder que lhe permita violentar o céu, e igualmente fora da razão que a Igreja, partindo da superioridade do interesse espiritual, busque alargar a sua acção até influir no que o próprio Evangelho pretendeu confiar a «César». Nada teríamos aprendido, uns e outros, se não víssemos com o o privilégio pode cor­ romper, a protecção transmudar-se em cerceamento de liberdades essenciais, e a polí­ tica religiosa desviar-se da defesa dos interesses da Igreja para outras finalidades, per­ turbadoras da acção legítima do Estado, e que portanto este não pode consentir. 0 outro problema que teve de ser resolvido e versado com especial desenvolvi­ mento no A cordo M issionário é o da organização religiosa do U ltram ar Português. De que se trata? Simplesmente de com pletar a obra política do A c to Colonial com a sanção da posse espiritual conferida pela Santa Sé, e com a nacionalização da obra m issionária que se integra definitivam ente na acção co lon iza d ora portuguesa. Não farei o estudo das causas da desorganização religiosa do nosso Ultramar, nem de com o as deficiências portuguesas foram supridas por outras actividades fora da nossa tradição e sentido nacional, à sombra do A c to de Berlim e do Tratado de Saint-Germ ain; nem de com o a falta de entendim ento com Roma foi não só libertando as missões da sua subordinação às autoridades eclesiásticas portuguesas, como reduzindo a acção destas e m antendo o núm ero e categoria das circunscri­ ções eclesiásticas em nível desproporcionado com as necessidades da assistência religiosa e o desenvolvim ento e im portância dos nossos dom ínios ultram arinos. Deve fazer-se justiça a todos quantos, mesmo no fragor das lutas partidárias e arrostando a incompreensão de muitos, procuraram, com penetrados da importância nacional da obra missionária portuguesa, remediar os muitos males que a Lei da Sepa436

XIX. Problemas Político-Religiosos... ração causara. Se os resultados não corresponderam às intenções, isso se deve ao fatal destino daquelas tarefas que procuram deter os efeitos sem estancar-lhes as causas. Nós temos porém hoje a consciência de haver podido estudar o problema em inteira liberdade intelectual e política, apenas com os olhos postos no engrandeci­ mento e consolidação do Império, e consideramo-nos felizes por nos ser possível elevar espiritualmente os domínios e reforçar com novas condições de trabalho missionário e unidade moral de Portugal de Aquém e de Além-Mar. 0 Padroado do Oriente, que os acordos de 28 e 29 não conseguiram arrancar da precária situação em que o colocou a Lei da Separação de 1911, foi finalmente salvo e consolidado, como era aliás de justiça, devido ao esforço português, mas não era talvez de direito estrito no qual a Igreja se firmava. Embora reduzido de extensão e de importância pelas muitas contingências dos tempos passados, o Padroado do Estado português em territórios estranhos à sua soberania é o público reconheci­ mento da nossa evangelização e marca através dos séculos o prestígio espiritual de um povo que, alargando pelo mundo as fronteiras da Pátria, ainda estendeu mais a fé do que o Império. IV. Concluída esta breve referência - tão breve quanto me foi possível - aos três problemas centrais da Concordata e do Acordo Missionário, julgo dispensável qual­ quer luz que outras palavras minhas pudessem lançar sobre cada um dos muitos problemas versados e resolvidos. Além da competência dos Srs. Deputados e do elucidativo parecer da Câmara Corporativa, dá-se ainda a circunstância de perten­ cer a esta Assembleia alguém que deixou o seu nome e muito do seu talento ligado a estes textos, alguém que durante mais de três anos me ajudou ou, melhor falando, eu ajudei no estudo, na discussão e em difíceis e delicadas negociações. Não farei igualmente alusão ao alcance internacional destes actos: revela-se no reconhecimento solene da soberania espiritual de Roma, na garantia dos direitos da Igreja, na afirmação da necessidade de normas superiores de moral, de justiça, de bondade nas relações entre os homens e entre os povos. Mas volto à primeira ideia deste discurso e só para dizer o seguinte: não tivemos a intenção de reparar os últimos trinta anos da nossa história, mas de ir mais longe, e, no regresso à melhor tradição, reintegrar sob este aspecto Portugal na directriz tradicional dos seus destinos. Regressamos, com a força e pujança de um Estado renascido, a uma das grandes fontes da vida nacional, e, sem deixarmos de ser do nosso tempo por todo o progresso material e por todas as conquistas da civilização, somos nos altos domínios da espiritualidade os mesmos de há oito séculos. Marcá-lo por tal maneira é certamente um triunfo político e um grande acto da história.

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XX. DEVER MILITAR (1) Temos já hoje bastantes primorosas orações para que me atreva a acrescentar-lhes um péssimo discurso. É mais modesto por isso o meu intento - dizer em duas palavras a razão deste brinde. Parece que era velha aspiração poderem dispor os oficiais em Lisboa de ponto de reunião seu, de uma verdadeira «casa militar»: ei-la, e em condições óptimas para se desempenhar dos seus fins. 0 Governo - mais precisamente e de modo especial - o Sr. Subsecretário da Guerra, como bom camarada, fez o impossível para que a pretensão tivesse deferimento e o desejo se transformasse em reali­ dade neste dia que representa uma bela data para o Exército português. Por meu lado ajudei também com uma assinatura burocráticamente indispensável e no fundo, como era de esperar, com a mira do interesse em certos resultados úteis - j u r o s do capital. Não há certamente o propósito de desviar seja quem for de passar horas de repouso em sua casa, se o deseja; mas sim o de substituir à fatal dispersão por luga­ res das mais variadas frequências um sítio agradável de reunião de camaradas - para a conversação, a leitura, as distracções indispensáveis a quem tem, como os militares devem ter, vida absorvente de trabalho, e por cima do trabalho graves preocupações. O nosso conceito de vida séria não exige o ar carrancudo, a disposição fúnebre, o espírito em luta com a tragédia. Mesmo que a vida seja dura - e é-o para toda a gente nesta hora - não se pretende senão que as coisas sérias sejam tratadas com seriedade, e mais nada. À saúde física e moral, ao pleno rendimento da máquina humana são necessários o descanso, aliás tão regrado como o trabalho, a boa dispo­ sição e, se é possível, a alegria e o riso. Sejam quais forem as dificuldades a vencer, as dúvidas acerca dos resultados, é preciso o optimismo na acção; mal se imagina como este, quando não é desprovido de senso - e então não se chama assim - mul­ tiplica a energia dos homens. A profissão das armas ou, pois que me repugna chamar-lhe profissão, a missão militar faz dos que se lhe entregam, pela proximidade dos perigos e estreita solida­ riedade da acção, verdadeiros irmãos; e, quando tal se considera, falar de família ainda que o nome tenha sido muitas vezes empregado sem a mesma nobreza e ele­ vação - é traduzir uma realidade. Pois bem: entendeu-se que esta casa pode,

w Brinde, na Casa Militar de Lisboa, a oficiais de todas as armas, em 28 de Maio de 1940 - XIV ani­ versário da Revolução Nacional.

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Discursos

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através de mais íntim a convivência entre o ficia is das diversas armas e patentes, fa c ilita r o conhecim ento mútuo, a troca de ideias, o apreço recípro co e contribuir para a existência de bom am biente moral na fam ília m ilitar. A q u i não deve haver lugar para m aledicência, que é a fa ls ific a ç ã o da crítica e do recto ju íz o dos hom ens e das coisas; nem para o de rro tism o , que é a desculpa dos covardes; nem para a ja ctâ n cia , que é o arrem edo da vale n tia . Os tempos vão m u ito maus e se não tem os no presente os p e rig o so s deveres da guerra, tem os deveres de paz, não menos árduos, a cum prir. D irei m esm o haver obriga­ ções que são mais d ifíce is na paz, sem a e xcita çã o e a e m b ria g u e z das batalhas, e uma delas é estar sempre pronto - pron to a cum prir, o que pode querer dizer pron to a morrer. É m uito duro isso, mas a honra, a dig n id a d e , a independência não se mantêm por m enor preço, e é através desses c o n c e ito s que a vida pode ter elevação e beleza. Não julguem os que o dever de cada um de nós depende de que os mais cumpram ou deixem de cum prir o seu; do que os chefes mandam ou calam; do que os Gover­ nos fazem ou omitem; de que haja ou não haja m eios m ateriais suficientes para assegurar o êxito por nós am bicionado. Não, para os m ilitares o dever existe, só oorque existe a honra militar, e acima de nós a Pátria. Nós tem os prosseguido sem descanso a p o lític a da paz e p odido conciliar esta, mercê das circun stân cias e de m u itos esforço s, com os nossos deveres e os nossos m elhores interesses. 0 prestígio que co nse gu im os, as am izades que criá­ mos ou pudem os estreitar tê m -no s servido para m a n ter a fa sta d a de nós a guerra, mas esta a titu de ou p olítica não nasceu de um se n tim e n to pu ram en te interes­ seiro ou com odista, que em caso algum estivéssem os d isp o sto s a sa crifica r. Cre­ mos que a guerra é um mal, mesmo quando é uma necessidade, mas sabemos que há para os povos o u tro s males m aiores, porque os há que excedem a morte e a m iséria — são a sua desonra e aniquilam en to. Ju lg o em to d o o caso que no estado co n vu lso da Europa é alta mercê da P ro v id ê n cia m a n terem -se algumas zonas isentas do fla g e lo da guerra, porque, por m ais ousada que a afirm ação pareça, é com estas reservas de paz que em grande p a rte se h á -d e co nstru ir a paz fu tu ra . 0 nosso desejo e a nossa política da paz cá dentro e lá fora, em nós e com outros, não dispensam, m uito pelo contrário, nem a preparação m oral nem a pre­ paração material do Exército, e ninguém nos pode acusar com ju stiça de não haver­ mos em pregado todos os esforços para na medida perm itida pelas circunstâncias executarm os o nosso programa. Seremos porventura m enos queixosos, se não apreciarm os o que está projectado e feito à luz do «absoluto» das nossas aspirações de segurança - toda a história demonstra com o é precária tal aspiração - mas na realidade dos sistemas de forças com binadas perm itidas pelo condicion alism o polí­ tico, e também se não esquecermos que certas d e ficiên cias ocasionais podem ser supridas por garantias de outra ordem. Não está em todo o caso na minha índole nem nos meus processos de trabalho lançar sobre outrem o cuidado principal dos nossos interesses nem o suprim ento da 440

XX. Dever Militar

nossa incúria; e por isso apelo incessantemente para que esteja cada um no seu lugar e cumpram todos o seu dever. É porventura rude esta linguagem, mas nem sequer me desculpo de usá-la diante de militares aos quais me repugnaria falar em meias palavras, doseadas como para as almas tíbias. Parece-me isso indigno daqueles para quem a honra é servir e o dever também se chama a morte. E sobre esta palavra terrível e gloriosa ergo o meu copo à vida e bebo por toda a força armada portuguesa.

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XXL 8 0 0 ANOS DE INDEPENDÊNCIA "> Serei muito breve, pois toda a palavra a sinto inferior ao momento e todo o dis­ curso se me afigura profanar o recolhimento das almas e a comunhão espiritual desta hora. Por todo o Portugal do continente, das ilhas, do ultramar, em terras hospitaleiras de todas as partes do mundo, milhões de portugueses se recolhem, de alma ajoelhada diante deste castelo, e comungam connosco nos mesmos sentimen­ tos de devoção, de exaltação, de fé. Nem eu sei o que havia de dizer. Em vão procuro, no tropel de ideias e de emo­ ções, focar pensamento ou imagem, facto ou anseio, nome ou sentimento que aos outros sobreleve e me prenda. Passam pelo espírito séculos em revoada - os oito séculos da vida de Portugal - com seus reis e seus cavaleiros, seus descobridores e seus legistas, seus capitães e seus nautas, seus heróis e seus santos, sofrimentos e glórias, esperanças e desilusões. Passam séculos, e o português a expulsar o mouro, a firmar a fronteira, a cultivar a terra, a alargar os domínios, a descobrir a índia, a apostolizar o Oriente, a colonizar a África, a fazer o Brasil - glória da sua energia e do seu génio político. Para tanto discutiu nas Cúrias e nos Concílios, ensinou em escolas e Universidades de fama, fez uma língua e uma cultura, pintou obras-primas antes dos maiores mestres, prodigalizou-se em maravilhas de pedra, cantou em ver­ sos imortais a sua própria epopeia - e ainda hoje tão simples e tão modesto que é pobre em face dos opulentos e fraco junto dos poderosos. Abisma-se a inteligência a perscrutar o mistério, confunde-se com a desproporção dos meios e dos resulta­ dos, extasia-se ante a permanência do milagre, e não se sabe que homem, ideia, rasgo ou sacrifício há-de pôr acima dos mais - a não ser exactamente o facto fun­ damental e primeiro de haver a raça portuguesa estabelecido o seu lar independente e cristão nesta faixa atlântica da Península. Quis o povo ser independente, livre no seu próprio território, e quiseram os reis que ele o fosse, conquistando-lhe e man­ tendo-lhe a independência; e porque mandava em seus destinos, a Nação definiu um pensamento de vida colectiva, um ideal de expansão e de civilização a que tem sido secularmente fiel. Nas nações, como nas familias e nos indivíduos, viver, verdadeiramente viver é sobretudo possuir um pensamento superior que domine ou guie a actividade espi­ ritual e as relações com os outros homens e povos. E é da vitalidade desse pensa-

1,1 Do castelo de Guimarães, no dia 4 de Junho de 1940, começo das festas centenárias, na cerimó­ nia comemorativa da fundação da nacionalidade.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 mento, da potência desse ideal, do seu alcance restrito ou universal e humano que provém a grandeza das nações, o valor da sua projecção na terra. Ser escasso em território, reduzido em população ou em força ou em m eios m ateriais não limita de per si a capacidade civilizadora: um povo pode gerar em seu seio prin cípios norteadores de acção universal, irradiar fachos de luz que ilum inem o m undo. Para isso nos serviu a liberdade; de nós se não pode afirm ar que não soubemos que fazer da nossa independência: trabalhando e recebendo em nossa carne duros golpes, descobrimos, civilizámos, colonizámos. Através de séculos e gerações mantivemos sempre vivo o mesmo espírito e, coexistindo com a identidade territorial e a unidade nacional mais perfeita da Europa, uma das maiores vocações de universalismo cristão. Eis porque esta solenidade é ao mesmo tem po acto de devoção patriótica, acto de exaltação, acto de fé. Primeiro: acto de devoção. Cobrim os de flores, tra zid a s dos quatro cantos do mundo, as pedras m ortificadas sobre que se ergue este castelo, com o se piedosa­ mente se beijassem as feridas de um herói ou se alindasse o berço de um santo. Vim os de longe, alguns de m uito longe visitar a velha casa de seus velhos pais, a cidade augusta onde prim eiro bateu, com o coração do prim eiro rei, o coração de Portugal. Sabemos dever-lhe o que fomos, e o que som os dele vem ainda — viver­ mos livres na nossa terra e honrados na terra alheia. A cto de exaltação. A Pátria Portuguesa não foi o fru to de ajustes políticos, criação artificial mantida rio tempo pela acção de interesses rivais. Foi feita na dureza das batalhas, na febre esgotante das descobertas e conquistas, com a força do braço e do génio. Com trabalho intenso e ingrato, esforços sobre-hum anos na terra e no mar, ausências dilatadas, a dor e o luto, a miséria e a fome, almas de heróis amalgamaram, fizeram e refizeram a História de Portugal. Não puderam erguê-la com egoísmos e comodidades, medo da morte e da vida, mas lutando, rezando e sofrendo. Cada um deu, na modéstia ou grandeza dos seus préstimos, tudo quanto pôde, e por esse tudo lhe somos gratos. Do fundo porém dos nossos corações não podem deixar de erguer-se, ao comemorarem-se oito séculos de História, hinos de louvor aos homens mais que todos ilustres que os encherem com os seus feitos. A cto de exaltação. M as nós realizamos hoje também acto m agnífico de fé: fé na nossa vitalidade e na capacidade realizadora dos portugueses, fé no fu tu ro de Portugal e na continui­ dade da sua História. Não somos só porque fomos, nem vivem os só por termos vivido; vivem os para bem desempenhar a nossa missão e perante o m undo afirma­ mos o direito de cum pri-la. Com a solidez das raízes seculares, ligados à História Uni­ versal, que sem nós seria ao menos diferente, sentim os com a glória desta herança as responsabilidades e o dever de aum entá-la. Estamos aqui precisam ente por confiar­ mos nos valores eternos da Pátria; e quando dentro de pouco - e nenhum de nós pode mais reviver este momento - subir no alto do castelo a bandeira sob a qual se fundou a nacionalidade, veremos, como penhor que confirm a a nossa fé, a cruz a abra­ çar, como no primeiro dia, a terra portuguesa.

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XXII. ORGÂNICA MINISTERIAL E TRABALHO DO GOVERNO Crê-se que a opinião pública fez desde o primeiro momento ideia exacta do sig­ nificado da última remodelação ministerial. Independentemente do valor e catego­ ria das pessoas que entraram para o Governo e dele saíram por terem de ocupar outros postos ou simplesmente por desejarem descansar de longos sacrifícios, dois factos se apresentaram com especial relevo: 1. Um destes factos foi a criação da pasta da Economia em substituição de duas - a do Comércio e Indústria e a da Agricultura. A primeira tentativa de dar uni­ dade à direcção superior da economia nacional foi feita em 1932, com o Ministério do Comércio, Indústria e Agricultura e a criação do Sub-Secretariado da Agricul­ tura. Muito antes que noutros países se vissem as dificuldades e estas se resolves­ sem pela fusão de Ministérios ou pela subordinação dos existentes a uma espécie de súper-ministro encarregado de dar-lhes unidade de direcção e unidade de comando à actividade económica, aqui se pôs o problema e se tentou resolver, fora dos ciú­ mes ou melindres dos diferentes sectores, alheios às disputas da sua importância relativa e com os olhos postos apenas no interesse da colectividade; mas a opinião não estava entre nós amadurecida para tal reforma e um ano depois o Ministério foi dividido nos dois que até agora existiram. Embora na distribuição das questões ou sectores da administração pública por vários Ministérios se toque aqui e além no arbitrário, pela impossibilidade de fixar sempre divisórias perfeitamente definidas e de se evitarem interferências inconve­ nientes, as pessoas conhecedoras dos problemas do Governo e das actividades eco­ nómicas nacionais sabiam que neste ponto o artifício da destrinça de competências excedia o que razoavelmente poderia admitir-se. Os que durante muito tempo tive­ ram posição de espírito contrária não puderam deixar de render-se à evidência com o desenvolvimento da organização corporativa. Só uma estreita e cordial colaboração dos dois Ministérios e a assídua interven­ ção coordenadora da Presidência do Conselho permitiram até hoje se não revelasse por modo altamente nocivo na ordem dos factos a dupla direcção da economia do País. Mas, à medida que a organização tomava conta de novos ramos da produção, as dificuldades práticas aumentavam - ou pela criação de organismos diversos segundo as fases de evolução do mesmo produto ou pela subordinação dos mesmos

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Comunicado da Presidência do Conselho, publicado nos jornais de 3 de Setembro de 1940.

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organism os a autoridades diferentes: isto quando, fechados os olhos ao principio da organização m inisterial e em nome das necessidades im preteríveis da economía e da sua direcção unitaria, salva no que podia ser, se não foi decididam ente, mas arbi­ trariam ente, para deixar os cereais, por exemplo, com as in dustrias transformadoras subsequentes à produção agrícola, no M inistério da A g ricu ltu ra , e o vin ho do Porto, em todo o seu processo produtivo desde a agricultura, à indústria de beneficiação e à organização da venda, ao M inistério do Com ércio. Problemas da mesma ordem surgiram ou podiam surgir na organização dos vários sectores económ icos que trabalham com ercial ou industrialm ente com os produtos da terra — o com ércio de frutas e produtos hortícolas, a indústria dos lacticinios, as indústrias de lanifícios, a produção, refinação e com ércio de azeites e óleos comes­ tíveis e m uitos outros. Ora não se pode fia r indefinidam ente da boa vontade das pessoas a solução de dificuldades provenientes de grosseiros defeitos de organiza­ ção, visto tais anomalias não terem apenas interesse teórico, mas reflectirem -se na vida diária da produção e no sentido ou direcção de tod o o trabalh o nacional. Aos argum entos que em favor do M inistério da Econom ia se podem tirar dos artifícios da anterior arrumação de serviços e da necessidade de im prim ir direcção jn a a toda a economia do País acrescem as d ificu lda de s criadas pela guerra, que de certo modo lhe m odificam o carácter e aum entam e xtrao rdin ariam en te as dificul­ dades do momento — e por isso se entendeu dever reforçar a direcção superior com dois Sub-Secretaríados. A maior d ificuldade e perigo co m o o m aior cuidado que na conjuntura se impõem é não co nfu ndir a organização e desenvolvim ento da nossa econom ia com os problemas de guerra — problem as de abastecim ento e de preços — urgentes mas transitórios, prementes no m om ento mas não em iguais termos na continuidade da vida nacional. Essencial é não perder de vista que ao mesmo tem po que se procura assegurar na crise da guerra o abastecim en to público de arti­ gos necessários, se há-de tratar do aum ento da produção em co ndiçõe s económica, aceitáveis, m ultiplicar as fontes de trabalho e de rendim ento: dispor agora de car­ vão não é ter resolvido no País o problema dos com bustíveis e m uito menos da energia; ter algumas reservas de cereais previdentem ente adquiridas não é ter a solução do problema cerealífero ou alim entar da população portuguesa. As dificuldades de vida na Europa — e devemos crer que vão aum entar com a guerra e na razão directa da sua duração — já não podem co m p o rta r os prejuízos da dispersão de esforços, da falta de coordenação do trabalh o dos agregados nacio­ nais. 0 ordenam ento das actividades, em subordinação às necessidades vitais da colectividade, com a progressiva elim inação de todas as ocasiões ou m otivos de perda de riquezas ou trabalho, a melhor aplicação e rendim ento do trabalho nacio­ nal, a absorpção deste e a sua côngrua rem uneração é que em síntese competem, sem prejuízo dos problemas do momento, ao novo sector governativo. 2 2. Não se tendo ido até à arrumação geral dos serviços públicos respeitantes à economia, mas apenas à fusão dos dois M inistérios indicados, não se estranhará fiquem por ora dispersos e fora do novo M inistério serviços im portantes de idêntica

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natureza. Julga-se que, se alguns, como a produção da energia, têm ali o seu lugar, outros, como os transportes, ficarão sempre de fora: ainda que a organização, coor­ denação e custo dos transportes tenham acção por vezes decisiva no desenvolvi­ mento económico e os problemas que se lhes referem não possam em verdade, devido ao seu carácter subsidiário, ter boa solução independentemente das conside­ rações tiradas do custo dos produtos e do seu possível valor nos mercados, as comu­ nicações só por si constituem tal feixe de problemas que não se afigura razoável sobrecarregar com eles o Ministério da Economia. Isto, porém, não significa seja de louvar a actual dispersão pelos Ministérios das Obras Públicas e da Marinha, na qual, além da marinha mercante, se encontram as pescas, mais conformes estas sem dúvida com a índole do Ministério agora criado. Pelo menos, quando chegue a oportunidade de se criar o Ministério da Defesa Nacional, a parte de marinha terá naturalmente de ficar confinada aos assuntos de carácter militar, e a evolução agora começada terá a sua lógica consequência. Se, pois, um dia se verificar que o volume das Obras Públicas não comporta a união com as Comunicações, que dá ao Ministério a heterogeneidade actual, a solução das dificuldades buscar-se-á na criação para estas de Ministério próprio (ou ao menos de Subsecretariado especial), em que a marinha mercante tem justa­ mente o seu lugar, mas em qualquer caso as pescas terão de ser integradas no Ministério da Economia. À parte o que a experiência venha a impor na orgânica ministerial por virtude do desenvolvimento dos serviços a cargo do Subsecretariado das Corporações, não se prevêm desde já mais que as alterações indicadas, e nem dentro de prudente e equi­ tativa distribuição de trabalho e de lógica arrumação de serviços é razoável prever outras modificações.3 3. Há Estados onde o número de Ministérios varia de governo para governo, conforme as necessidades do momento - ou necessidades puramente políticas, como as que derivam da representação partidária, ou necessidades de realizar determinado programa, quando não se trata apenas de obedecer às exigências da moda que ora pede a contracção ministerial ora o seu alargamento até à quase impossibilidade de direcção e trabalho em comum. Nós que nos temos por fazer a nossa vida à margem de moldes estrangeiros e por conduzir-nos nesta matéria só pela experiência própria e as necessidades da administração, temos tido grande estabilidade na divisão dos serviços por pastas ministeriais e esta divisão tem sido sempre independente de facto da organização dos governos. O número de Ministérios importa, nos regimes não subordinados a exigências partidárias, sobretudo sob dois aspectos: primeiro o da coesão governativa e o da mais perfeita unidade na direcção superior da governação pública; depois o da maior ou menor dificuldade do trabalho em comum. Seja qual for a identidade de propósitos e de formação mental, a disciplina ministerial e a vigilância da opinião, deve ter-se como seguro que um governo muito

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num eroso é mais difícil de conduzir que um governo de re strito núm ero de pessoas. As pequenas diferenças de método, ligadas por vezes ao tem peram ento pessoal dos dirigentes, quando m ultiplicadas por núm ero elevado de agentes encarregados da direcção superior dos negócios, chegam a dar a im pressão de heterogeneidade, quando não de divisão inconveniente, tan to no dom ín io a d m in istra tivo como no dom ínio político. M as não pode por esta sim ples consideração levar-se m uito longe a contracção m inisterial, sobretudo se atrás dos governos não está uma organiza­ ção burocrática tão largamente provida de elem entos de alto v a lo r que o Ministro possa ser de facto apenas o orientador ou o «técnico das ideias gerais» Ainda assim a com plexidade da vida moderna e a variedade dos problem as de governo são tais que em países de civilização com plexa se correria com a dem asiada redução de M inistérios o risco de serem os M inistros, em vez de propulsores da governação, os altos representantes e delegados do funcionalism o público. 0 número excessivo de pastas m inisteriais tem ainda o inconveniente de tornar d ifícil ou im produtivo o trabalho em comum, ou seja o tra b a lh o em Conselho. Nos países de feição dem ocrática não só há tendência para a m u ltip lica çã o dos Ministé­ rios, devido sobretudo às necessidades partidárias, mas há a tendência para o tra­ balho ministerial ser realizado em Conselho, talvez pela necessidade de mútua fis­ calização e talvez também pela fraqueza orgânica da chefia. A experiência tem por quase toda a parte, supomos, dem onstrado o pequeno rendim ento do sistema. Por um lado perde-se imenso tempo em trabalhos ou discussões que não interes­ sam a todos; por outro não se devem esperar resultados apreciáveis de uma colabo­ ração incidental no estudo de problemas ou em decisões em que um só ou poucos se devem reputar preparados e os mais são obrigados a dar m eros pareceres de ocasião. Salvo as reuniões para discussão de questões políticas essenciais ou de orientação geral, o trabalho sistemático em Conselho deve pois reputar-se de fra co rendimento e baixa qualidade, além das perdas de tempo que com porta para todos os Ministros. M elho r m étodo é sem dúvida o usado entre nós — há anos — do trabalho do Chefe do Governo com o M inistro ou M inistros a cujas pastas os problem as interes­ sam directam ente, ou de pequenos Conselhos de co n stitu içã o e atribuições legais determ inadas para grupos de problemas, com o são o Conselho Corporativo e o Conselho de M inistros para o Com ércio Externo. É o processo mais expedito e por meio do qual se podem aproveitar ao máximo as qualidades de trabalho dos membros do Governo, com a co n d ição de a coordena­ ção dos princípios e das realizações, a ordem das reform as e das soluções, a visão do conjunto e a posse do que se passa de im portante em todos os sectores estarem de facto na chefia do Governo. M as isto traz consigo outros problem as relativos às exi­ gências e organização da Presidência do Conselho, que não têm de ser tratados aqui. Em resumo: deve crer-se que adoptám os soluções equilibradas e que pusemos em acção métodos novos de trabalho ministerial com resultados d ificilm e n te excedidos.4 4. Faltam umas palavras acerca dos Subsecretariados de Estado. Compreen­ deu-se geralmente que não só houvera o intento de re força r sob o aspecto técnico 448

X X II. O rgán ica M in isteria l e T rabalho d o G ov ern o

o Governo, mas ainda o de permitir nas melhores condições possíveis a preparação indispensável de muitos indivíduos, pelo contacto íntimo com os problemas do Estado, para altas funções em que o País necessite da sua actividade. A grave d ifi­ culdade em que se tem debatido a governação pública em Portugal pode ter por ali uma das suas vias de solução. Infelizmente em trinta anos o País teve de recrutar e formar três camadas de pessoal político. A República de 1910 inutilizou, pela sua própria existência, quase tudo o que havia de bom nos partidos monárquicos ou fora deles; e a Ditadura de 1926 teve também de improvisar os seus quadros diante da incompreensão quase geral dos que poderiam ser aproveitados. Esta perda de valores e de repetidos esforços de formação política que as circunstâncias e as necessidades imperiosas da Revolução impuseram temos de remediá-la da melhor forma pelo aproveitamento, como se tem feito, de todos os valores nacionais que patrióticamente se prestam a colaborar numa obra nacional e pela preparação sistemática de outros que sejam garantia de continuidade. As democracias habituaram-nos à ideia de que funções da maior gravidade podiam ser desempenhadas sem habilitações ou preparação especial, e apenas com o treino dos discursos políticos, inflamados e de matéria vaga. Certamente a política, como arte humana, existirá e será sempre necessária, enquanto existi­ rem os homens; mas o governo parece que será cada vez mais uma função cien­ tífica ou técnica.

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XXIII. A FUNÇÃO PÚBLICA E A BUROCRACIA Este singelo almoço, em que me deram o prazer de tomar parte os chefes de todos os serviços do Ministério das Finanças, não se destinava a ser, ainda que muito merecida, atenção meramente pessoal: no meu espírito estava sobretudo agradecer, na pessoa dos mais altos superiores hierárquicos, a todos quantos toma­ ram a sua parte, larga ou modesta, no trabalho de reorganização financeira do País. Não é o momento - e não me ficaria bem fazer referencias a essa obra da qual aliás me pesa dizer não ser perfeita e não ficar completa. Desde muito cedo as cir­ cunstâncias exigiram de mim muito do que não me pertenceria, e perturbaram atenção e cuidados que não deviam ser apenas vigilantes mas absorventes e exclu­ sivos. Obrigado a trabalhar em extensão e não em profundidade, pela vastidão imensa de outros campos de acção, foi impossível manter o ritmo primitivo e levar inteiramente a cabo a obra reformadora delineada desde os primeiros anos. Apesar de tudo nós podemos orgulhar-nos de haver realizado em condições adversas, internas e externas, o que entre nós e antes de nós comummente se jul­ gava impossível; e realizado não como quem atinge ofegante os altos cumes, em esforço que não há-de repetir-se, e repousa descendo, mas como quem lança ali­ cerces, consolidados e estáveis, para obra duradoira. Talvez por circunstâncias ligadas ao conhecimento da nossa passada administra­ ção; talvez pelo momento internacional prenhe de dificuldades a resolver como herança de uma guerra quando outra se gerava; porventura pelo êxito de um pen­ samento simples e claro e de princípios de estrita moralidade que se haviam oblite­ rado quase por toda a parte na consciência dos povos - a reorganização financeira teve para nós importância maior do que normalmente lhe caberia. Foi o ponto de partida de toda a reforma administrativa; influenciou benéficamente a moral da Nação; serviu de fundamento e garantia à própria revolução política e social; per­ mitiu o revigoramento da economia e verdadeira floração de obras de interesse geral; serviu entre as nações como carta de crédito da nossa capacidade; entre elas foi tomada como o sinal mais certo do nosso ressurgimento e sobre o prestigio que nos deu permitiu até se edificasse ou reconstruísse, tomando alento em seus voos, a nossa política externa. Acima de tudo porém, acima de tudo teve para mim o

w No almoço oferecido, na residência oficial do Presidente do Conselho, aos altos funcionários do Ministério das Finanças, em S de Setembro de 1940, por ocasião do abandono daquela pasta.

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m érito inigualável de se encontrar na base do verdadeiro processo de cura que tem feito ressurgir a Nação. Ora, mesmo descontado o que se deve às novas co ndições p olíticas criadas com a Revolução - meio indispensável a trabalho seguido e e fica z — os resultados obti­ dos não se devem a um só homem. Provêm sem dúvida de um pensamento, mas de um pensamento que animou m uitas outras inteligências; provêm de uma vontade, mas de uma vontade que se m ultiplicou em m uitas ou tras vontades; provêm de uma acção que se repercutiu do centro até aos mais ténues ram os da periferia. Sem esta concordância, sem este sincronismo, sem esta sinergia, mais um plano cairia como desilusão e o novo esforço aumentaria pelo fracasso a razão de descrer. É assim de justiça, pura justiça, a palavra que ponha em relevo a colaboração do funcionalism o do M inistério (ia dizer, mas tive receio, da burocracia das finanças; esta tem sido tão desacreditada, tão aviltada, que sem d istinçõ es necessárias nem eu mesmo me atreveria a fazer-lhe o elogio). Haverá uma espécie de injustiça social, involuntária e inconsciente, neste clamor ia opinião pública contra o burocrata? 0 burocrata é, no sim plism o e também por vezes na justeza dos juízos popula­ res, o homem inútil que se com praz em m u ltip lica r as form alidades, encarecer as pretensões, am ortalhar em papéis os interesses, em baraçar os problem as com as dúvidas, atrasar as soluções com os despachos, obscurecer a claridade da justiça em nuvens de textos legais, ouvir mal atento ou desabrido as queixas e as razões do público que são o pão, ou o tempo, ou a fazenda, ou a honra, ou a vida da Nação perante o Estado e a sua justiça; trabalhar pouco, ganhar m u ito e certo; sem pro­ veito nem utilidade social, parasitariamente, sorver com o esponja o produto do suor e do trabalho do povo. Estes traços têm caricatura e infelizm ente aqui e acolá tam bém retrato. De quem a responsabilidade? Quando nos países em desordem os p olíticos defendem as suas posições com a criação e distribuição de lugares às clientelas partidárias, praticam ao mesmo tempo acto im oral e ruinoso para a economia da Nação; mas quando, no aperto das crises, os mesmos responsáveis pela delapidação dos dinheiros pú blico s ou simplesmente pela inconsiderada extensão de serviços apregoam, com o m edida salvadora, o des­ pedim ento de funcionários em excesso, certo é fazer-se co n fu são entre problemas de m oralidade adm inistrativa e a necessidade de reform a do Estado. Quando por espírito de favoritism o, pessoal ou partidário, por fraqueza ou m al-entendida bon­ dade, corrupção ou ignorância das consequências, se preferem os m aus aos melho­ res, degrada-se a moral do Estado e com ete-se acto grave co ntra a justiça; mas no cam po do interesse co lectivo isso não é o mais grave. 0 pior de tu d o é não se poder dispor de instrum entos de trabalho úteis; é funcionarem com rendim ento baixís­ sim o e de má qualidade os serviços públicos. M uitos se admiram de que sejam tão precários, tao m odestos ou tardios os efei­ tos das suas reformas, de que os sinais das coisas se alterem do Governo até á 452

XXIII. A Função Pública c a Burocracia

Nação, o bem seja causa de injustiças e a justiça fonte de muitos males. Outros não sabem explicar-se porque aqui ou além uma ideia política e um acto de governo parecem dotados de tal poder de penetração no corpo social, de tal justeza na apli­ cação, que os resultados correspondem às previsões e os actos traduzem fielmente o pensamento que os ditou. Prudentemente deveriam uns e outros verificar como em ambos os casos estará montada a máquina do Estado. Nunca hesitei em considerar da maior importância o problema do funcionalismo público, mesmo para a eficácia das reformas estranhas à Administração de que ele verdadeiramente constitui a técnica e a alma. E nesta conformidade desde princí­ pio procurei a sua renovação ou reforma, sem violências inúteis e pondo apenas em jogo o tríplice sentido da utilidade, da justiça e da responsabilidade. Se ao funcionário, integrado numa ordem administrativa qualquer, se deu a compreensão de como o seu trabalho, simples que seja, se combina com o dos mais para a consecução de determinado resultado; se se lhe deu a consciência da grande obra em que participa e que sem o seu concurso seria impossível ou ficaria ao menos imperfeita, incutiu-se-lhe também o sentido da sua utilidade, na qual assenta em primeiro lugar a dignidade profissional. Depois da utilidade, o sentido da justiça - da justiça do Estado para com ele, em recompensar-lhe o esforço, em premiar-lhe o mérito, em reconhecer-lhe as suas preferências, em colocá-lo, em promovê-lo, em conciliar o interesse do serviço com o seu interesse pessoal ou familiar, em o libertar de influências aviltantes, desne­ cessárias para a justiça que se lhe deve e insuficientes para favores que não se lhe podem fazer. Por último, o sentido da responsabilidade - agora a justiça do funcionário para com o Estado e para com a Nação. Este homem, por vezes isolado e modesto, sabe que reside nele uma parcela desse poder sagrado que é a autoridade; que esta existe não por imposição da força de quem quer mas por necessidade da vida em comum e para o maior bem de todos; sabe que dos seus actos ou da sua incúria, do seu saber ou da sua incompetência podem advir benefícios ou danos, riscos ou prejuí­ zos para os indivíduos e para a colectividade nacional. A sua responsabilidade é enorme: da sua informação inexacta nasceu o despacho errado; do seu parecer ten­ dencioso proveio a denegação da justiça; por causa dos factos ou dos números que levianamente não verificou veio a acontecer que actos de governo e até toda uma política foram completamente errados. Por meios tão simples afinal se modificam a mentalidade, a formação, as quali­ dades profissionais e morais, o rendimento do funcionalismo de finanças. Assim se viu ressuscitar esse velho tipo de funcionário que conhece todas as minúcias do seu trabalho, só pensa no desempenho da sua função, se entusiasma com a boa ordem e aperfeiçoamento dos serviços, é progressivo, é zeloso, é exacto, não tem horas de serviço por que são todas, se é necessário, e sobretudo tem o espirito de justiça e o amor do povo. Perante a gente humilde, para quem as dotações orçamentais esgo453

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tadas, o reforço de verbas, os manifestos, as m atrizes, os lançam entos, os relaxes, as execuções são coisas terrivelm ente obscuras e m isteriosas, que escuta com pavor e incom preensão e lhe am arfanham a alma porque por vezes lhe destroem a vida; perante credores ou devedores do Estado, esse fu n cio n á rio não é altaneiro, nem arrogante, nem ¡mensamente superior; é m estre e guia, antes de ser ju iz e severo executor da lei. Vive do seu lugar, porque vive para o seu lugar; é respeitado por­ que se respeita; sente-se digno porque se sabe útil, e m esm o no mais baixo da escala, nos mesteres mais hum ildes ele pode to ca r a perfeição, segundo o pensa­ m ento de Junqueiro: pode ser-se sublim e a varrer as ruas. Se a moral profissional do funcionalism o se refugiara em poucos, está hoje em muitos; se este tipo de funcionário chegou a ser algum dia quase abstracção - e pelo menos tendia a ser raro - não é assim agora felizm ente. Sob a im ediata direcção de chefes, alguns dos quais trabalharam devotadam ente co m igo desde a primeira hora, a esse funcionário se deve a compreensão de um vasto plano de reformas, as minú­ cias e delicadezas da sua execução e em grande parte o seu triun fo. A ele recordo neste momento e o quero ver dignamente representado nos seus chefes supremos, por cujas prosperidades de homens, de funcionários, de portugueses tenho a honra de levantar o meu copo.

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XXIV. VALORES ESPIRITUAIS NO GOVERNO E NA VIDA DOS POVOS Agradeço à Universidade de Oxford, célebre entre as célebres no mundo, a honra insigne que acaba de conferir-me com o grau de doutor em direito civil; e, ao fazê-lo, não posso esquecer a gentileza que se quis ter comigo e a atenção para com os meus trabalhos, trasladando para Coimbra esta cerimónia que tradicionalmente se não efectua fora da velha cidade nem em ambiente estranho ao da sua típica vida universitária. As palavras com que o eminente professor Thomas Farrant Higham justificou esta honra é que não sei se deva agradecê-las se protestar contra elas, pois me parece que a simpatia traiu um tanto a justiça. Nesta velha e gloriosíssima Universidade de Coimbra muitos outros homens mereceriam mais do que eu, pelo seu talento e longa vida dedicada à ciência e ao ensino, as mais altas dignidades. Reconheço em todo o caso - e não pode haver nisto vaidade - que a poucos terão as circunstâncias permitido aproveitar pràticamente, e creio que em benefício geral, conhecimentos e formação que a Escola deu e a vida não pôde desmentir. Eu pude apreciar de um lugar donde a visão é larga em relação aos homens, às coisas e ao próprio tempo, e onde a intensidade do viver multiplica por si mesma os campos de observação e as experiências sociais, eu pude apreciar, repito, quanto valem algumas certezas da vida e algumas verdades da ciência, pois que apesar de tudo as há. E só me pesa não ter aprendido mais para errar menos, e compreender melhor para mais facilmente achar os caminhos por onde conduzir os destinos da Nação, que em tão confusos e delicados momentos me têm estado confiados. Se uma ciência puramente utilitária é em certo aspecto a negação da própria ciência, o saber pelo saber, o gosto ou vaidade do conhecimento, encerrado na ebúrnea torre da contemplação de si mesmo, sem ligação ou interesse pela vida dos homens e dos povos, à força de egoísta, também não seria humano. Daqui para a ciência e para o ensino o imperativo de um sentido social. Isto porém não é tudo para a vida das sociedades, pois, como para os indivíduos, dos conhecimentos da ciência e das suas leis não é possível deduzir as regras de conduta impostas à consciência humana. E portanto outro imperativo para a governação - ser essencialmente moral.

w Na Sala do Senado da Universidade de Coimbra, durante a cerimónia do doutoramento honorís causa pela Universidade de Oxford, em 19 de Abril de 1941. 0 discurso foi lido na tradução latina que não pertence ao autor e se imprime a seguir.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Politicas • 1938 a 1943 D ificilm ente se me encontraria ou tro m érito do que haver proclam ado estas duas conclusões tão sim ples e apesar disso tão esquecidas e haver-m e mantido pràticam ente fiel às suas determ inações, buscando incessantem ente a harmonia da autoridade do Estado e do bem dos cidadãos, o pon to de co in cid ê n cia da fidelidade aos nossos destinos nacionais e da prosperidade de todas as ou tra s nações. Quando se sente estrem ecer o m undo com a força de cataclism os, como o actual, que parecem destruir tudo o que nos habituám os a co nsiderar imorredoiro, os homens de ciência e sobretudo os homens do d ire ito são assaltados do desgosto e da dúvida se não é inteiram ente vão o seu trabalho. Eu não ten ho dúvidas de que o m undo se transform a, sob alguns aspectos, a nossos olhos, e também não as tenho de que nesse mundo, em que tudo se m odifica, o que m enos muda é o pró­ prio homem. E isso quer dizer que, passada a torm enta, é outra vez do espírito e dos seus valores que os povos esperam a cura das fe rida s e o estabelecim ento das condições da sua vida pacífica. São pois de confiança no espírito que se pretendeu aqui hom enagear, as minhas últim as palavras.

Oxoniensi almae stvdiorvm matri, inter pares florentissim ae, m axim as ob lauream doctoratus in iure ciuili refero gratias. Cuius laudis memor, o b liu io n i tradere nequeo et obsequium quod mihi tributum fu it et obseruantiam m earum elucubrationum, cum electa sit Conim brica ut haec ibi celebrarentur sollem nia quae, more atque ins­ tituto, non extra muros antiquae urbis nec ultra consuetam academicae uitae ratio­ nem perficiuntur. Verba quibus praestantissim us m agister Thom as Farrant Higham hos erga me honores patefecit, nescio utrum grato sin t anim o accipienda an potius mihi declinanda, cum consensus, quam Graeci aupTTa0Eiav uocant, aliquantulum institiae detrahere uideatur. In hac uetusta acpraeclara Co nim bricensi Academ ia non­ nulli inuenirentur qui, pollentes ingenio, diu tu rno in scie n tiis perquirendis labore et in erudienda iuuentute consum pti, meliore profecto iure am plissim is his honoribus exornari possent. Fateor equidem - quod anim i e la tio n i uertendum non est - , paucos adm odum reperiri homines quibus, pro rerum co n d icio n e lice re t in commu­ nem rei publicae usum doctrinam et institutionem deprom ere, quas Schola docuit et uita in discrimen uocare non et consequuta. E statione, unde longe lateque homi­ num, rerum tem porum que m utationes despici possunt, ubi uitae m otus iactatioque rei publicae intuendi uim et experiendi acumen e xcita n t e t adaugent, ex hac, inquam, statione m ihi perpendere integrum fuit, quanti nonnullae scientiae ueritates, quanti certa quaedam uitae instituta aestimanda sint: nullum sane dubium est, quidquid in contrarium afferatur, illa in aeuum exstare. Id unum me poenitet, non plura didi­ cisse quo rarius a uero deflecterem nec sagacius perspexisse quo expeditiora d u i­ tatis itinera aperirentur, cuius fata m ihi regenda in tam uariis dubiisque mundi tem­ pestatibus commissa sunt. Si doctrina ad usum tantum accom m odata, sub quadam ratione, ipsius doctrinae negationem inuoluit, scientia quae sibi soli studeret, - cul456

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Valores Espirituais no Governo... tus nempe scientiae ac uanitas in eburnea propriae contemplationis turri conclusa ab hominum et gentium uita ob nimium sui amorem aliena - , inhumana foret. Quo fit ut scientia et doctrina praescriptionem quandam a sensu sociali acceptam prae ocu­ lis habeant. Populorum tamen concentus aliquid amplius requirit, quod et apud sin­ gulos mortales locum obtinet, nam ex cognita scientia eiusque legibus uiuendi rationes communi hominum conscientiae impositae deduci nequeunt. Quare alte­ rius ad populos regendos praescriptionis necessitas demonstratur: ut recti uerique sit adaptata legibus. Vix in me aliud reperires promeritum, nisi quod hanc duplicem et perspicuam ueritatem, quamuis oblitam, in lucem ediderim semperque eius prae­ ceptis nixus permanserim, diu noctuque rei publicae auctoritatem inter et ciuium commoda compositionem tentans, et insuper fidei lusitanae gentis et aliarum natio­ num prosperitatis coucursum diligentissime quaerens. Cum mundus labefactetur perturbationibus, ut in praesentiarum euenit, quae uidentur euertere omnia quaae consueuimus reputare in aeuum duratura, scientiarum cultores, et praecipue jurepe­ riti, maerore conficiuntur et in dubium uocantur num incassum omnino cedant eorum labores. Id mihi plane persuasum est, mundum, prae intuentium oculis, sub quadam ratione, subesse conuersioni; quin imo, in hac rerum conuersione unus homo non mutatur. Quae sententia id sibi uult, gentes exacta procella denuo ex uiribus animi eiusque uirtutibus medicinam suis uulneribus et restitutionem pacis exspectare. Quas uires animi in hac ornatissima corona commemorandas suscepis­ tis, his maxime confido, iisque uerbis liceat mihi orationi finem imponere.

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XXV . TODOS NÃO SOMOS DE M A IS ...(1) A todos os que lembraram, apoiaram ou viveram esta grandiosa manifestação; àqueles que, abandonando ocupações e trabalhos, vindos de longe ou de perto mas com incómodos e sacrifícios, quiseram marcar a sua presença ou, não podendo fazê-lo, estão em espírito connosco; aos que por todo o País, nas ilhas ou no vasto Império, neste mesmo dia, levantaram os olhos por momentos do que é transitório ou efémero na vida e serenamente os volveram para o que é perene na Pátria; a todos quantos, dominados por sentimentos de simpatia ou dedicação, por imperativo da consciência, pela compreensão reflectida ou simples intuição das necessidades nacionais, por este ou aquele caminho trouxeram seu contributo de afecto, de apoio, de solidariedade, de confiança - a todos dirijo a expressão mais sincera do meu agradecimento. E faço-o por dois motivos: primeiro, por aquela parcela de afectividade pessoal que se quis emprestar a esta manisfestação e que mesmo aos homens cumulados de honrarias jamais cansa, e sempre comove quando se sente brotar límpida do cora­ ção do povo; segundo, porque não se podia esperar nem maior consagração de esforços passados nem mais seguro alicerce para toda a obra futura que a unidade viva da Nação. Temos passado anos a pregar, pela palavra e pelo exemplo, persistentemente, teimosamente, que todos não somos de mais para continuar Portugal. Com o alto nível da nossa tradição histórica e as exigências de uma herança de pesados deve­ res para com a nossa gente e para com os outros povos, se a louca tentativa louca e vã - construir sobre lutas de partidos, ódios de classes, antagonismos de fortuna ou profissão, divisões em nós mesmos. Nós o havemos compreendido e, sem abdicar do sentido da hierarquia necessária à vida social, revelamo-nos como membros solidários de uma comunidade que se funda no mesmo sangue, se ali­ menta dos mesmos frutos do trabalho e vive do mesmo espírito. No trabalho ou nos sacrifícios, no sofrimento ou na caridade, nas alegrias ou nas preocupações da vida individual e colectiva fomos guiados - e salvos - pelo amor pátrio a reencon­ trar o elo de solidariedade que devia prender-nos como as pedras de um edifício a sermos finalmente perante o mundo todos como um só. É por um lado nesta já agora indestrutível unidade nacional e por outro no valor dos princípios informadores da nossa vida material e moral e na consciência desse valor que deve repousar a nossa maior confiança.

1,1 No Terreiro do Paço, na manifestação de 28 de Abril de 1941.

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São certam ente grandes as d ificu ldades dos tem pos, e ninguém sabe neste aca­ nhado m undo qual a parte de sofrim entos que lhe reserva directa ou indirecta­ mente a tragédia da Europa. Temos conseguido e, digam os, m erecido viver em tranquilidade na Península e tem os a certeza de que nos acom panham na nossa conduta a simpatia e solidariedade moral de m uitos povos, não seguramente pelo egoísm o de uma atitude mas pelo real valor europeu de uma política. Talvez por isso me não pareça razoável nos alim entem exclusivam ente preocu­ pações da guerra, umas baseadas na gravidade real das situ a çõe s e sem dúvida legi­ timas, outras filh a s apenas do desvairo de fantasias sobreexcitadas ou malévolas, contra as quais é preciso reagir. Penso, ao contrário, m ais devem interessar-nos os problemas da paz, pois se a guerra tudo pode destruir, por si mesma nada cons­ truirá. Seja qual for a sorte das batalhas, a extensão das ruínas, os horrores dos sacrifícios, a transform ação política, económ ica e social da Europa, vinda de longe, seguirá o seu curso, e na revisão fatal de valores a que a mesma obriga tratar-se-á sobretudo de saber o que somos e valemos, com o elem entos construtivos, por nosso pensamento e trabalho. E havemos de não ter então o cérebro oco, o sentimento (ário, as mãos vazias. I É certo haver valores absolutos na vida a que tu d o mais se subordina e deve sacrificar, e alguns desses cham am -se dignidade da Nação, a liberdade e indepen­ dência, a integridade territorial que é a própria razão de ser da fam ília portuguesa; mas não sei que alguma nação as desconheça ou algum a am bição as cobice, nem que construção se haveria de fazer sobre o desprezo de realidades tão vivas e con­ sagradas pelo tempo e pelo esforço das gerações. Não; tenhamos confiança! Tenhamos fé na lealdade própria e alheia, na ordem, no trabalho, na serenidade e seriedade com que havem os de encarar os problemas e acudir às dificuldades. Confiem os sobretudo, mais que na força das armas, na coesa e firm e unidade nacional, no profundo e viv o am or à terra portuguesa, naqueles altos exemplos, valores da nossa história e ideais da nossa civilização, que o ferro não mata e o fogo não pode destruir!

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XXVI. PENÍNSULA HISPÂNICA E AMÉRICA LATINA w Ao reunirmo-nos aqui para cumprimentar, na sua curta passagem por Lisboa, o Ministro das Relações Exteriores de uma grande nação sul-americana, creio bem que o fazemos todos com júbilo sincero. Festejamos a nobre nação argentina na pessoa a quem vai incumbir a alta missão de dirigir a sua política externa, e na homenagem que ao mesmo tempo prestamos aos méritos do jurisconsulto e do professor saudamos uma escola a quem se devem algumas das mais progressivas e ousadas concepções do direito. Prestando-se homenagem a V. Ex.a, na sua qualidade de homem de governo e de catedrático, todos estamos de parabéns assim como as nossas pátrias. Em maior ou menor grau - no passado pelas recordações gloriosas que ele evoca, no presente por múltiplos interesses comuns e por igual labor pacífico e fecundo, no futuro por idênticas aspirações - há para todos nós e entre nós todos, as duas nações da Península hispânica e as nações da América latina, um património que é pertença comum, um fundo de tradições, de crenças e de ideais, laços de espírito que os séculos não rompem, correntes de simpatia e amizade que divergências transitórias não atingem na sua mais profunda essência. Da Europa, ora tão agitada, parece que o Atlântico separa as nações latinas da América, e no entanto não podemos considerá-las se não como parte dela. Sem vós a Europa seria mera expressão geográfica amputada do seu significado moral, por­ que, do seu espírito criador e da vitalidade dos princípios que a têm conduzido e ins­ pirado através dos séculos, nenhum testemunho existe mais evidente, nenhum flo ­ rão mais belo do que as nações aqui presentes, verdadeiramente carne da sua carne e sangue do seu sangue. Somos em suma uma grande família, constituindo em todos os momentos e em todas as circunstâncias altíssimo valor para a civilização cristã e um dia porventura para a paz do mundo. Tanto basta para que se nos imponha, com a autoridade imperativa do dever, não renegarmos, não esquecermos nem deixarmos enfraquecer os laços morais que nos unem. E é neste espírito de amizade, de cada vez maior compreensão, que eu bebo por Sua Excelência o Ministro das Relações Exteriores da República Argentina, unindo neste brinde, aos votos mais calorosos pelas prosperidades da sua grande pátria, os não menos sinceros pelas venturas pessoais de Sua Excelência e pelas de sua família, que tão gentilmente nos quis dar a honra de sentar-se a esta mesa.

1,1 No almoço oferecido ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Argentina, Or. Guinazu, no Palácio de Sintra, em 1 de Maio de 1941.

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XXVII. NA REELEIÇÃO DO CHEFE DO ESTADO 1,1 Pedem-me duas palavras - as últimas antes do acto de amanhã Í2J. Em verdade de entre todos os que podiam fazê-lo, eu sou o último que deveria falar. Vou mais longe: estas palavras só são possíveis, porque não se trata de eleger entre vários pretendentes quem haja de ocupar a chefia do Estado. Se assim fosse, poder-se-ia dizer, embora com grave injustiça para todos, que defendia por dever do cargo uma política ou tentava segurar uma posição. Por felicidade do País, ao desempenhar-se do encargo constitucional da eleição, não tem que escolher: felizes as nações que nos momentos cruciais da sua vida não são obrigadas a escolher, e às quais a Providência com desvelado carinho dispõe os acon­ tecimentos e suscita as pessoas de modo tão natural e a-propósito que só uma solução é boa e essa a vêem com nitidez no íntimo da sua consciência todos os homens de boa-vontade! Felizes porque não se debatem em dúvidas angustiosas, porque não se arriscam em desmedidas contingências, felizes sobretudo porque não se dividem! E no entanto puderam ter-se encontrado agora dificuldades sérias. Não falo das razões por que se fez o convite e se fará a reeleição; são a evidência mesma. Falo das razões que poderiam aconselhar uma recusa. Flumanamente, digo, à maneira egoísta da vida ordinária, o Senhor General Car­ mona não devia aceitar a sua reeleição para a Presidência da República.

w Ao microfone da Emissora Nacional, em 7 de Fevereiro de 1942. Publicado nos jornais de 8. w 0 acto eleitoral fora fixado para 8 de Fevereiro e nele se apresentava como único candidato o Senhor General Carmona que deveria ser reeleito pela terceira vez. A aceitação ae Sua Excelência tinha sido levada ao conhecimento do Pais pela seguinte nota oficiosa, publicada nos jornais de 15 de Janeiro: «O Presidente do Conselho comunicou ontem em Belém a Sua Excelência o Presidente da Repú­ blica o voto unânime dos membros do Conselho de Estado, do Governo e da Comissão Executiva da União Nacional, no sentido da reeleição do Sr. General Carmona como Chefe do Estado, para o futuro período presidencial. Na mesma entrevista foram presentes as razões pelas quais os entida­ des consultadas entenderam se devia pedir ao Senhor Presidente da República o sacrifício de acei­ tar a nova reeleição. O Senhor General Carmona que muito desejaria, findo o mandato, abandonar o exercido dos suas funções, declarou que, por maior que fosse o seu empenho pessoal, não devia no octual momento recusar ao Pais os serviços que entenda dever exigir-lhe e Sua Excelência possa prestar até ao extremo limite das suas forças. Nestes termos, no acto eleitoral que se realizará de harmonia com o preceituado na Constituição, em 8 do próximo mês de Fevereiro, será apresentada de novo a candidatura do Senhor General Car­ mona, como Chefe do Estado, para o período presidencial que começa em IS de Abril de 1942.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 Na chefia do Estado desde os alvores da Revolução N acional, quando mal se dis­ tinguiam de entre a névoa de vagas e desencontradas aspirações os caminhos do futuro, o Senhor General Carm ona tem presidido à mais vasta obra de reconstrução nacional dos últim os séculos e iniciou uma era que na História Portuguesa pode bem com petir com algum as das mais brilhantes, pela in iciativ a e labor intenso, mar­ cado progresso, elevação colectiva. E teve em tu d o a boa estrela dos afortunados, a rara felicidade do êxito. No terreno m ovediço e convulsionado das nossas paixões políticas e desregra­ mentos sociais, foi prim eiro o trabalho de consolidação, d oloro so algumas vezes, mas necessário a toda a obra que pretenda durar; fo i depois d e fin ir os princípios, gizar os planos, lançar os alicerces, erguer a co n stru çã o po lítica e económ ica, social e moral, de modo que não se desprezassem as exigên cias do nosso tem po nem se desperdiçassem materiais ou m otivos experim entados pelos séculos. Como obra de conjunto, das finanças à adm inistração, da econom ia à m oral, da saúde do corpo à inteligência, da riqueza material à cultura, do in d iv íd u o à colectividade, do agre­ gado local à região, à Nação, ao Império; com o obra de conjunto, dizia, como tra­ balho de reconstituição e reaportuguesam ento, de va lo riza çã o colectiva, de impulso criador sistematizado, ordenado à m aior coesão, força e prosperidade da grei; como ideia e realização, se esta obra causa orgulho aos portugueses, podem os dizer que o Chefe do Estado tem nela sobrados m otivos para a sua glória. As finanças, cuja reforma e estabilização nos absorveram tã o completamente que em certo momento parecia constituírem elas próprias o verdadeiro escopo da Revolução, não são mais que um dos pilares em que ou tras reform as e trabalhos haviam de assentar; quase são para o conjunto um porm enor. A reform a adminis­ trativa, forçando a máquina estadual a m over-se com econom ia, competência e respeito pelos interesses dos cidadãos, trabalhando ao ritm o im posto pela satisfa­ ção dos interesses colectivos, não fo i para mais do que deixar a burocracia de ser estorvo e o Estado ser efectivam ente o guia, co orden ado r e estím u lo do trabalho da Nação. Todo esse imenso trabalho de recuperação, salvam ento, valorização do nosso patrim ónio secular; tudo o que tem co n stitu íd o a obra pública na instalação de serviços, nos portos, nos rios, na estrada, nas com unicações, na urbanização, nos m elhoram entos rurais, se destinou a dar à Nação no co n ju n to instrum entos ou meios de trabalho e às populações maiores possibilidades e co n fo rto . Pretendeu-se mais trabalho e mais riqueza para todos e fo rço u -se a terra pelo arroteamento, pelas obras de hidráulica, pelo intenso povoam ento florestal, certam ente o mais vasto desde D. Diniz, pelo aperfeiçoam ento dos m étodos de cultura, pela activa intervenção da técnica, a dar alim ento para mais m ilhão e m eio de portugueses. Instalaram-se indústrias que não conhecíam os; elevou-se a produção mineira a níveis que não haviam sido aproxim ados antes; em estaleiros nossos se construíram barcos m ercantes e de guerra a que até aqui ninguém sonhara aventurar-se. E se em toda esta colmeia trabalhadora, que aliás tem perm itido a sucessiva elevação do nível geral da vida, há ainda obreiros sem aquelas garantias que ousam os proclamar com o direitos — o do trabalho e o da fam ília — todos têm a segurança de que os

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XXVII. Na Reeleição do Chefe do Estado

compromissos da Revolução se cumprem e de que se não se adoptam soluções pre­ cipitadas é para não comprometer soluções definitivas. Estabilizou-se a fórmula política; constitucionalizou-se a Revolução. A ordem, a harmonia a tranquilidade geral são indicador seguro de que os individuos e grupos sociais se congraçaram em a Nação e que o Estado Corporativo promove o interesse desta e garante eficazmente os direitos daqueles. Desta ordem, desta unidade uma nova consciência se formou, unitária, viril; o patriotismo passou a ser conceito activo e a dedicação pelo bem comum sentimento generalizado. Surgiu uma nova concepção de Império; tem-se vivido uma ideia imperial: quando o Chefe do Estado realizou as suas viagens verdadeiramente triunfais às ilhas atlânticas e aos domínios do além-mar pôde sentir como vibravam, sobre o fundo de um passado de glórias, as palpitações frementes da nova alma de Portugal e do seu Império. A solidez da estrutura política, económica e social parece averiguada, pois que tem resistido a crises económicas e financeiras que assolaram o mundo na última década, às mutações políticas que agitaram quase toda a Europa nos últimos anos, às lutas civis da Península, à guerra mundial de hoje. A ordem não se altera; man­ tém-se a unidade nacional; o trabalho intensifica-se; o País consegue abastecer-se quase satisfatoriamente numa Europa empobrecida e faminta, a moeda mantém a sua solidez; o crédito do Estado afirma-se todos os dias: aumenta o prestígio da Nação; os soldados do Império estão alerta nos pontos mais sensíveis; tem sido pos­ sível manter dignamente a neutralidade e conservar-nos em paz - neutralidade útil a todos, paz que não afronta ninguém. Não são afirmações o que digo - são os factos reais da nossa vida, patentes, pal­ páveis, metendo-se pelos olhos dentro, factos de que as Comemorações Centenárias de 40 foram contraprova e resumo. Ajudou-nos o Brasil, como membro de família, a fazer as honras da casa e a sua participação e concurso emprestaram o maior bri­ lho a essas comemorações; a Espanha fez reviver nos Jerónimos as suas recordações portuguesas; mas numa Europa já devastada pela guerra, só um País, com a plena consciência da sua história e bem compenetrado do valor positivo da sua actualidade, poderia comemorar 800 anos de independência e fazê-lo confiantemente, entre luzidas embaixadas estrangeiras, com a representação da velha Casa dos seus Reis, num esplendor de beleza e de glória, num frémito de comoção patriótica e íntima comunhão nacional. Todos estes momentos os tem vivido, na suprema magistratura da Nação, o Senhor General Carmona: a tudo presidiu, por tudo se interessou, tudo tornou pos­ sível pelo simples facto de representar um princípio de renovação e de unidade, de se manter fiel a uma doutrina, de ser garante da sua aplicação. E o seu mandato ter­ mina ainda, apesar das dificuldades dos tempos, num claro ambiente de felicidade.

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Para diante porém o que vemos? A guerra multiplica os seus teatros; recrudesce de intensidade; alastrando pelo Mundo, deixou só, até ao presente, pouco mais do que pequenas ilhas isoladas. Os doidos ventos desta imensa tempestade demorarão em regressar às suas cavernas. A extensão do con465

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flito, a profundeza dos problemas, o intrincado das questões postas, o valor das destrui­ ções materiais e morais, o conflito dos interesses e das concepções, a distância entre as ideias construtivas — tudo atinge tais proporções que me parece excederem já a capaci­ dade dos homens ou dos povos: julgo que ninguém poderá dizer com segurança que a guerra se manteve nos limites das suas previsões e a paz se fará nos termos precisos dos seus intentos. Para além da vontade dos homens im prim irão o seu cunho os aconteci­ mentos. A Humanidade certamente ressurgirá e retomará o seu caminho, sem que esta esperança alivie a angústia dos que vão mergulhando nas trevas e possa a nossos olhos diminuir a grandeza das catástrofes. Como hão-de os tim oneiros conduzir os seus peque­ nos barcos sob tão forte temporal? Podem distinguir a luz, indecisa embora, dum porto longínquo no meio das trevas? E manterão as suas certezas no meio da grande dúvida universal? E terão a alma forte entre as derrocadas e os perigos? E serão dignos no meio das fraquezas humanas? E conservarão o coração aberto, sensível, fraterno no meio dos egoísmos dos homens e das nações? Não insisto: às meredianas certezas do passado co n trap õ e m -se os negrumes e dúvidas do futuro. E é precisam ente agora que o problem a se põe por força dos acontecim entos e se resolve pela decisão do Chefe do Estado. Posso dizer que a alma m ilitar e a razão política se deram as mãos. 0 m ilita r pode evitar uma bata­ lha, mas não pode fu g ir a bater-se nem fazer-se render no m eio do combate; a reflexão aconselhava fortem ente o não abalar nem a co n fia n ça do País nem a con­ tinuidade da sua suprema M agistratura. Estas coisas parecem simples e lógicas e naturais, e pou cos notarão que esta sim plicidade revela o alto grau de uma form ação p o lítica e é pedra de toque da sen­ sibilidade nacional. Se o Chefe do Estado, que pudera alegar le gitim am ente serviço s de muitos anos, e a idade, e o cansaço, corre com a Nação os riscos de novas preocupações e traba­ lhos que o fu tu ro possa reservar-nos, com o vam os co rrespon der a essa altíssima noção do sa crifício e do dever patriótico? Os que faltarem não com preenderam.

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XXV III. DEFESA ECONÓMICA - DEFESA MORAL - DEFESA POLÍTICA Eu queria ver se era capaz de expor em não muitas palavras algumas coisas que o momento me aconselha a dizer, subordinadas a esta epígrafe: Defesa económica, defesa moral, defesa política. 0 assunto é vasto mas apresenta-se-me com a neces­ sária unidade, sendo fácil de descobrir a razão de ordem da matéria e a sua íntima relação. Em tempo de paz a defesa económica é afinal a defesa da produção: pro­ dução significa trabalho, riqueza, reservas, segurança na satisfação das necessida­ des. Em tempo de guerra é sobretudo a defesa da vida, no nível que puder ser. 0 estado de absoluta necessidade é inconciliável com a dependência moral, do que se deduz ser necessário a um povo dispor de suficiência económica para que ele se possa determinar livremente e em harmonia com o seu interesse. Este interesse é a política encarregada de o definir e guardar. O maior de todos é a integridade e a independência, atributos de que deriva a possibilidade de a Nação se engrandecer e prosperar, realizando no tempo a sua missão. Se a Nação, como agregado autónomo, é precisa ao progresso social, toda a doutrina e acção política no mais lato sentido em que se possam tomar, tendem ao objectivo supremo de assegurar aos homens os meios materiais e condições para a sua vida moral. Assim se fecha o ciclo; assim se verifica ser a defesa económica condição da defesa moral e por sua vez a consciência da Nação o primeiro factor a contar na defesa política. Comecemos então por aquela.

I. D E FE S A ECO N Ó M IC A

1. Sem ousar prever a extensão do conflito e todas as suas consequências, o Governo definiu logo no primeiro momento a atitude que se impunha: manter na medida do possível a normalidade existente, e isso importava na vida económica o emprego dos máximos esforços no sentido da estabilidade da produção e dos ser­ viços, da moeda e do crédito, dos preços, vencimentos e salários. As razões desta orientação estavam em que, repousando a normalidade da vida no equilíbrio económico para o qual contribuem inúmeros factores, se tem visto serem mais favoráveis à colectividade reajustamentos parciais e sucessivos do que0 1

01 Ao microfone da Emissora Nacional, em 25 de Junho de 1942: exposição ao Pais.

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a pretensão de ordenam entos de conjunto, por acto do Poder ou magia da liber­ dade. Não há conhecim ento tão exacto das m ú ltiplas repercussões nem poder tão extenso e fo rte para as im por na justa medida, que governos prudentes se aventu­ rem por política diferente. Outros, m uito depois de nós, acharam que não era mau o cam inho, pois que o seguiram. Na verdade, quando sucede o contrário, está-se mais em face da im provisação e de factos que se atropelam , do que de plano eco­ nóm ico, conscientem ente gizado. A actual geração viveu a outra guerra e tem ideia das injustiças, desgastes, anu­ lações de capitais m obiliários, ruínas m ateriais e m orais que se acum ularam com abandonar-se a econom ia à mercê dos acontecim entos. Dessa vez parte das culpas puderam ser lançadas ao próprio fa cto da guerra em que in tervínham os activa­ mente; agora só devíam os ser desculpados naquilo em que os acontecim entos são superiores à vontade dos homens. Não se podia repetir a doloro sa experiência. Para nos mantermos fiéis à orientação geral da m aior estabilidade possível, tor­ nava-se necessário ter mão nos dois elementos donde nascem com um m ente as per­ turbações - a moeda e as coisas. Quanto à primeira im portava não infringir as regras écnicas com que se defende o seu valor: que se lhes tem obedecido deduz-se do acto de o escudo ser hoje uma das moedas mais tesáveís e sólidas de todo o mundo. Quanto às coisas, preciso era velar por que não se alterasse o seu custo de pro­ dução nem o valor corrente, aquele ao menos na parte em que só dependia de nós, este sobretudo na parte em que o preço, desligado do cu sto de produção, oscila em razão do abastecim ento do mercado.2 2. Sabia-se que alguns custos de produ ção re fle ctiria m m ais cedo ou mais tarde a dependência de im portações estrangeiras. M as sem pre que possível devia obedecer-se à orientação geral. 0 preço dos se rviço s do Estado, da energia, dos transportes terrestres, por exemplo, tem sido vig oro sa m e n te defendido. Por outro lado, alguns preços das im portações têm sido sujeitos a sistem as de compensação quer entre m ercados quer entre o produto estran geiro e o n acion al, de m odo a ate­ nuar o peso de algum as altas inconvenientes ou p a rticu la rm e n te graves para a econom ia geral. 0 custo de produção não domina necessariam ente o preço das coisas em mer­ cado rarificado, não sendo portanto suficiente para o de fe nde r e lim itar. Daqui se tiraria outro principio orientador: na ausência de ra cio na m e n to para que só em últim o caso deveríam os ir, a defesa dos preços dependia ainda a fin a l deste pequeno segredo — dispor de leves excedentes de produtos sobre a capacidade do consumo. Os obstáculos que esta política tem tid o que e n fre n ta r são, além do que possa atribuir-se à deficiência e carestia dos transportes m arítim os, os seguintes: pri­ meiro, as exportações de m uitos países não obedecerem ao crité rio da normalidade anterior à guerra, mesmo com factores ju stific a d o s de correcção; segundo, o sis­ tema do bloqueio inglês. A tese repetidam ente exposta de que o excesso de artigos sobre o consum o corrente tinha a inapreciável vantagem de defender-nos os preços e com estes o equilíbrio económ ico e social, parece não ter lo grado a compreensão

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das autoridades inglesas, que geralmente a sacrificaram a hipotéticos receios. As suas cedências nesta matéria foram raras e tardias. 3. Tornou-se evidente que com o sucessivo desaparecimento dos mercados, a diminuição da tonelagem estrangeira ao nosso serviço e a escassez e diminuição da nossa marinha mercante, a economia portuguesa tinha de ser impulsionada em duas direcções: refluir sobre si própria, explorando ao máximo as suas possibilida­ des, no continente e nas colónias - produzir; tentar manter a estabilidade de con­ dições em nível mais baixo, reduzindo ao mínimo o consumo - poupar,; Esta a admirável campanha do Ministério da Economia, cujos termos se completaram mais tarde, acrescentando ser igualmente necessário organizare distribuir. E o País lan­ çou-se a trabalhar e viver no ambiente destas preocupações. Confesso ter poucas vezes visto ideia tão bem compreendida, tão espontanea­ mente abraçada e seguida com tanto entusiasmo e carinho. Nós fomos sem dúvida favorecidos, no que respeita aos géneros agrícolas, por este facto real, ainda que literalmente anti-económico, de que boa parte da nossa agricultura não é indus­ trial, ou para ser mais claro, não trabalha para o lucro, produz para viver pobre­ mente e alegremente gastar o excesso de outras rendas. Isto tinha particular impor­ tância no momento em que se teria de produzir mais e mesmo mais caro, sem sensível repercussão nos preços do que viesse ao mercado. Mais que paixão, o vício português da terra fez prodígios: aproveitou-se a gleba, quase até ao centímetro, o jardim, a clareira da mata, o valado, o cômoro. E não foi só na agricultura e na pecuária o esforço. Nas indústrias independen­ tes do estrangeiro, sobretudo nas minas à busca de combustível, a produção fez progressos consideráveis, ao mesmo tempo que nos serviços públicos ou privados, em casa e na rua, na vida individual e familiar, aquela divisa se traduzia em restri­ ções voluntárias no aproveitamento das coisas inúteis, na disciplina dos consumos. - Produzir! Produzir e poupar! O outro elemento de que se lançou mão foi a organização corporativa. Direi certamente noutra oportunidade alguma coisa acerca das suas faltas que são sobre­ tudo de espírito e de técnica. Para já basta dizer que a organização corporativa tem sido o instrumento necessário à execução da nossa política económica. Anda muito longe das realidades do momento quem supõe poder hoje produzir, negociar, viver fora da organização. Há ainda a escolha do tipo; já a não há do facto. Hoje não existem industriais ou agricultores - há a indústria ou a agricultura, a pro­ dução de ferro ou a de cereais. Uma tonelada de carvão e um fardo de lã são pro­ blemas de Estado. Os governos encontram-se frente a frente e falam em nome da sua economia. Em nome dela se toma o compromisso de comprar, de vender, de per­ mutar, muitas vezes quantidades, algumas vezes com preços, sempre em prazos determinados. Isto não pode conceber-se fora do conhecimento exacto das possibi­ lidades e fora duma rígida disciplina - entre nós a disciplina corporativa. Para apreciar devidamente as coisas devíamos lembrar nos de que a organização é recente, não é completa e não é perfeita. Ela reflecte naturalmente os próprios

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 defeitos que tem os e não conhecem os em nós; sendo criada para tem pos normais de paz, foi chamada a executar a política económ ica da guerra; mas o que inteira­ mente ju stific a a sua actuação é serem as falta s m aiores precisam ente onde não existe. Sim plesm ente então não sabem os quem acusar. Eu com preenderia ainda, dentro da atm osfera de im o d e rad o s ganhos para os quais desapareceu o obstácu lo da concorrência, que alg u n s patrões aceitassem mal a disciplina da Corporação. M as é-m e d ifíc il de e n te nde r que tam bém no meio de operários e em pregados se m anifestem de vez em q u an do algum a hostilidade e desconfiança das virtu des fun dam entais do sistem a. Sem dúvida, o estatismo o com unism o, o liberalism o têm razão de ver no co rp o ra tiv is m o português um ini­ m igo m ortal. M as não podem v ê -lo aqueles a quem a org a n iza çã o corporativa, reconhecendo-os integrados na econom ia da Nação, q u is in te g ra r de pleno direito no Estado, e que através da organização co rp o ra tiva lo graram a decisiva vitória de tornar solidário o social do económ ico, com o co nsequ ente reco nh ecim en to da sua dignidade e qualidade de colaboradores. 4. Quais tenham sido os resultados gerais desta p olítica, parece avaliarem-no m elhor os que vêm de fora que nós mesmos, pois lhes é m ais fá cil a comparação. Afora os com bustíveis líquidos de que depende parte im p o rta n te dos transportes terrestres, e do carvão que na pesca e na navegação não podem os substituir pela lenha, no mais tem -se conseguido o abastecim ento do País, não decerto com lar­ gueza mas com o indispensável p a ra o essencial' designadam ente na alimentação e vestuário. E pode-se ainda acrescentar que as fa lta s m ais salientes verifica das poderíam evitar-se e têm origem em factos estranhos à a cção e previdência do Governo português. Um dia se fo r necessário, se explicará isto melhor. No entanto, se quanto ao abastecim ento das coisas indispensáveis à vida se tem conseguido m anter a norm alidade possível, o m esm o se não pode dizer quanto aos preços. Grande número de factores se conjugou para este efeito, a p a rtir do outono passado: a entrada da Am érica na guerra, o esgotam ento das nossas reservas, as altas dos com bustíveis e m atérias-prim as im portados, o aum en to do poder de com­ pra proveniente de ganhos excepcionais, a onda de receio que levou a certo assambarcam ento dos particulares, o grande desnível de preços entre os que se praticam aqui e no país vizinho, as maiores disponibilidades existentes em face do mercado cada vez mais restrito — tudo contribuiu para certo e n carecim en to da vida. Com a política da máxima estabilidade possível não era de cre to do Governo mas orientação para a econom ia nacional, o problema é saber se aquela se abandona e se troca por outra ou se se mantém e como. Em linguagem de com un icado militar podemos dizer que perdemos algum as posições, im possíveis de defender, mas que a frente não foi rota, e enquanto m antiverm os a unidade de frente, consideraria um perigo, um erro, um crim e contra o equilíbrio económ ico, a solide z financeira e a paz social abandonar a disciplina a que nos tem os p roviden cialm en te sujeito. E não posso indicar outro processo senão trabalhar e produzir cada vez mais, limi­ tar-se e consumir cada vez menos do que seja essencial para todos, não abandonar

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nenhuma posição, enquanto for possível aguentá-la. É a melhor defesa que podem ter todos quantos vivem de rendimentos modestos e limitados, como é geralmente a classe média, o funcionalismo e parte do operariado. É o imposto mais fácil de satisfazer para uma guerra que outros fazem e nós também havemos de pagar. Mas estando fora deste quadro ajustamentos em massa, não fugimos a aceitar, abertamente, excepções para injustiças que se reparam, quando se descobrem, ou para quando, tocado o limite extremo, temos em face de nós esta realidade - o direito de viver. 5. Esta política há-de parecer dura e não levar em conta que os preços altos das exportações e o custo dos fretes, o volume de certos negócios e até em parte o encarecimento das mercadorias aumentaram os lucros das empresas. Ao seu lado os organismos corporativos engrossam ou mobilizam fundos importantes. 0 Tesouro tem disponibilidades como nunca. 0 que é isto ou, se temos juízo, o que deverá isto ser? - Reservas, e só reservas nacionais. Nós não vamos pôr-nos a adivinhar o que será a economia de amanhã, as suas directrizes e as suas exigências. Mas podemos orientar-nos por algumas ideias sim­ ples que são as realidades de sempre: ninguém nos sustentará, se não trabalharmos; ninguém nos preferirá, se produzirmos mais caro ou pior. E ainda estas outras: o português precisa de mais campos abertos à sua actividade; a empresa precisa de obter mais rendimento do trabalho operário e de pagá-lo melhor. E não poderá fazê-lo senão reorganizando-se, actualizando os seus processos, investindo capitais e reservas que por felicidade lhe não são exigidas para despesas do Estado. Deixei cair há pouco uma palavra relativa a compensações de preços com recei­ tas dos organismos corporativos. Mas estas hão-de também servir para crédito, para previdência, para investigações, para muita forma de actividade que interessa ao seu ramo e aos que nele trabalham. Ainda que não muito clara pelo momento de tran­ sição que vivemos, temos de habituar-nos à ideia de que, se a Corporação se há-de substituir e aliviar a actividade do Estado, ela terá de dispor duma frocçõo do Poder e de património seu. Educar para o exercício do primeiro, fazer administrar bem para a constituição do segundo são deveres que ao Estado Corporativo se impõem. Quanto ao Tesouro, se está a absorver as disponibilidades particulares sem emprego, não é senão para no momento oportuno prover por sua parte ao apetre­ chamento da Nação. Esta política não seria porém legitima se empresas e corpora­ ções, indiferentes aos problemas do futuro, entendessem dever distribuir o que o Estado com pesados encargos teria de recolher. E nada mais direi sobre defesa económica. II. D E FE SA M O R A L 1

1. Entenderemos por defesa moral a defesa da consciência da Nação, no duplo aspecto da sua unidade e da sua personalidade, da coesão que faz a força e do carácter que a torna inconfundível entre as nações.

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Os objectivos que se demandam com esta defesa são em prim eiro lugar poderá Nação determ inar-se em qualquer m om ento segundo o interesse colectivo, e depois poder dar co ntribuição activa e útil à obra de civ iliz a ç ã o de que aproveita em com um a humanidade. Correlativamente os perigos para a consciência da Nação são dividir-se, extra­ viar-se (que também é dividir-se) e despersonalizar-se. Se se extravia, não vê, não compreende, não atina, não está segura de encontrar o bom cam inho. Se se divide não sabe se poderá segui-lo, quando o encontre, enfraquece, amesquinha-se, diminui-se. Se se despersonaliza, perde, com o que a distingue dos outros povos, raças ou nações, um dos factores de apreço internacional e uma fonte de útil colaboração. Defendamos a unidade. 2. Por disposição p roviden cial e previdente a cçã o p o lític a através de séculos, nós tem os a fe licid ad e rara de co n s titu ir na Europa um a unidade geográfica; possuím os a mesma língua; co n stitu ím o s a mesma raça; professam os o mesmo :redo, e tem os uma só cultura. Sobre este c o n ju n to de ele m e n tos coesos a uniJade p olítica é apenas co ro lá rio e cú pula n atura l, que não fo i afectada pela expansão ultram arina e a co n stitu içã o do Império: por to da a parte a Mãe-Pátria conseguiu im prim ir a sua imagem, fix a r ca ra cte re s fu n d a m e n ta is, de modo que não é a rtificio sa criação a unidade im perial. Obra a dm irá ve l da natureza e da p o lítica dos antepassados, ninguém poderá a cu sa r-n o s de a não term os desen­ v o lv id o e consolidado, cria n d o -lh e novas bases m a te ria is com a solidariedade económ ica e v iv ific a n d o -a e sp iritu a lm e n te com p ro fu n d a co n sciê n cia naciona­ lista. Se esta obra repousa sobre tu do na u nião dos e s p írito s à volta do maior interesse nacional, e se a união dos espíritos, com ser re fle x o da unidade pátria, é tam bém a sua m aior força e fa c to r de e n gran decim en to, nenhum dever sobreleva hoje ao dever de defendê-la. Por isso fa ç o ligeira re fe rê ncia aos elem entos que a podem prejudicar. O m undo anda aturdido. A rádio, o jornal, a revista; o inform ador, o comunicado, a gravura, a notícia, o comentário; os exageros, as verdades e o resto que não será nem uma nem outra coisa sopram em rajadas, desabam em bátegas fortíssimas, que escurecem o horizonte. Não se vê a dois passos. E em bora alguns creiam ter se atin­ gido a saturação, quer dizer o enjoo e a inutilidade, sentem -se os espíritos embara­ çados, enleados nas contradições, no excesso de p se udo -fa cto s e de ideias já feitas. Precisamente o que se pretende é que se não reflicta, se não deduza, se aceite uma verdade ou uma noção já prontas a servir, para fazer proselitism o. É claro terem -se excedido os lim ites duma com pleta, criteriosa, im parcial infor­ mação de factos e duma razoável defesa das teses opostas. M as a luta não é fácil contra o abuso, salvo quanto a propaganda que u tiliza ce rto s m eios gráficos, por­ que o entoxicado por si próprio procura de qualquer m odo aturdir-se. Então se verifica não serem suficien tes meios negativos, mas im por-se que a imprensa, liberta de servidões, senhora de si, marque a independência do nosso espírito e a sua posição nos problem as essenciais.

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XXVIII. Defesa Moral - Defesa Política

A propaganda excita as paixões, ao que somos atreitos em Portugal, e simplifica de tal modo as coisas, que há aí tal com ideias assentes sobre a grande estratégia e os problemas mundiais; muitos se admiram porventura de não serem ouvidos nos quartéis generais, nem seus modos de ver escutados pelos grandes chefes. O nosso Tolentino já os tinha retratado: «E este concílio profundo, Sem ter um palmo de terra, Está repartindo o mundo.» Sentimentos exaltados criaram os partidos - os partidos do estrangeiro - tan­ tos tanta vez esquecidos do interesse nacional. E assim entre paixões e disputas, com bandeiras e dísticos e insígnias, alguns portugueses se distribuem por vários cultos, e desertam o altar da Pátria. Ouço dizer, em defesa, que estão postos alguns problemas que devem interessar a todos os espíritos. Concordo e respondo: há nesta conflagração problemas univer­ sais que interessam a toda a humanidade e problemas que respeitam essencialmente apenas a alguns países; e assim como o filosofar vem para depois do viver, deve pensar-se que os últimos ocupam o primeiro plano nas preocupações imediatas. Nem de outra maneira se poderiam conceber as estranhas solidariedades manifestadas nc conflito e alternadas camaradagens que se julgariam incompatíveis. Sobre os pro­ blemas de ordem universal temos feito clara profissão de doutrina; muito antes da guerra tomámos partido; sobre os outros não é correcto agora tomá-lo. Porquê e para quê dividirmo-nos à volta de interesses estranhos? Já é algum destes um inte­ resse nacional? Quando o seja, não havemos de estar divididos, mas solidários e for­ tes na nossa unidade.3 3. É pois necessário defender a unidade nacional, e defender também aquele atributo a que acima chamei personalidade. A personalidade afirma-se por quali­ dades próprias, por vocações decididas, por serviços marcantes, pela forma incon­ fundível de pensar, de sentir, de actuar na colectividade internacional, através de ideias, de fórmulas, de novas soluções. A personalidade não receia o estrangeiro ou o importado, porque não o copia nem se lhe escraviza, tudo fazendo passar por esse cadinho misterioso que é a alma de um povo; aproveita toda a contribuição útil ou conquista realizada, não como quem descansa em tarefa alheia, mas como quem se inspira e recebe incentivo para trabalho seu. Nisso o intercâmbio cultural - não o confundamos com a propaganda, a que acima aludi, nem no objecto, nem na forma, nem nos fins - o intercâmbio cultural será bené­ fico, com a condição, aliás implícita na palavra, de poder ser retribuído. E como no mundo de hoje nenhum país, sobretudo um pequeno país, poderia isolar-se do con­ junto, o intercâmbio será por força colaboração de valor ou colonato intelectual. Se ter literatura, arte, ciência, forma de indústria, costumes e modos de ser, prisma ou luz própria para ver ou interpretar os factos, sentir o mundo, regular ou viver a vida, não

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 é suficiente para garantir a independência política, devemos pensar que sermos em tudo nós e não outros é a primeira condição de não nos confundirm os. Consideram os com o elem ento de defesa m oral o poder criad o r de um povo den­ tro do seu carácter e personalidade, e por isso apelam os para os investigadores, os hom ens de ciência ou sim ples estudiosos, para to dos os criadores de beleza, os escritores e os artistas, os homens de iniciativa e tra ba lh ado re s de qualquer ramo de actividade: que no redobrar de esforços, exigido por esta época de ressurgi­ mento, se não desprendam do que em nós é com andado pela natureza, ou pela his­ tória, ou pelas qualidades de inteligência e coração para, sendo do nosso tempo, sermos da nossa terra. III. D E F E S A P O L ÍT IC A

No primeiro plano do que intentei cham ar defeso p o lític a está a defesa do inteesse nacional; no segundo plano a defesa das instruções; naquele a independência a integridade da Pátria; neste o sistema de governo e o co n ju n to doutrinário que ,rienta a vida da Nação.

§ l.° 0 interesse nacional achou o Governo que era bem defendido, nas presentes cir­ cunstâncias, através da neutralidade, tanto mais que era possível m antê-la sem pre­ ju ízo da aliança inglesa - neutralidade séria e digna, a única que, sendo conforme à ética das instituições, tinha algum as probabilidades de ser respeitada e produzir seus frutos. Mas a atenuada repercussão da guerra nas co n d içõ e s de vida, a ausên­ cia das restrições mais incómodas, term os sido poupados na nossa terra e na nossa gente às maiores tragédias dos tem pos m odernos têm levado m uitos de nós a con­ fu n d ir a paz, que seria bem para todos os Estados, e a neutralidade, que é apenas posição de alguns. Importa co rrigir o estado de e spírito que a esta tenha dado valor absoluto e deixado de reconhecer-lhe as desvantagens que possui. Oh! a deliciosa situação de neutro em que não há a titu d e acabada de compre­ ender, nem correcção impecável, nem serviço reconh ecido, nem imparcialidade bastante! Toda a sim patia é partido, toda a critica é ofensa, toda a restrição desin­ teresse, toda a recusa hostilidade. Na preocupação a bsorvente que domina os beligerantes e naturalm ente reduz o m undo às perspectivas da sua vitória, o inte­ resse do neutro por pouco não existe, o seu dire ito é apenas tolerância e, para alguns exaltados, tão incom preensível e despida de valo r a sua existência como de párias entre m agnificas gentes da guerra. Não é cóm oda a situ a çã o do neutro... Nem cóm oda nem económ ica. Por conveniência ou acidente quase não há hoje águas te rritoria is invioladas, céu que não haja sido cortado em abusivos voos, te rritó rio im une de acções guer­ reiras. Nós pousamos em mares e continentes em que se batalha, encontram o-nos

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XXVIII. Defesa Económica - Defesa Moral - Defesa Política na confluência de grandes estradas do mundo: impõe-se-nos a guarda custosa de certo número de pontos nevrálgicos. Não nos poupamos a esforços, sacrifícios e despesas e fazêmo-lo sem cansaço nem arrependimento, com a ambição única de que os nossos soldados cumpram bem o seu dever de sentinelas vigilantes. Outros se vêem obrigados a trabalhar e despender mais do que nós; como nós, pagam tam­ bém o alto preço da sua neutralidade. - Não é barata. Muito menos se pode supor egoísta. Quando se pensa no que Portugal ou a Suíça — para não falar de outros com igual razão - no que Portugal ou a Suíça têm feito para salvar do naufrágio os restos da solidariedade humana num mundo práticamente todo em guerra; quando se considera o valor dos pequenos oásis onde a vida não é ódio ou desespero e a simpatia dos corações não distingue povos ou raças mas apenas o sofrimento e a necessidade; quando se reflecte na porção de ar, de luz, de esperança que as poucas janelas abertas sobre o grande oceano representam para a Europa sequestrada de grande parte da sua vida e da sua glória - deveria louvar-se a Providência. Porque Ela faz sobreviver nos homens ao rancor das lutas o sentimento do bem e permite manter entre as nações em guerra a consciência da paz. Cómoda ou incómoda, egoísta ou não, a neutralidade não é vantajosa senão enquanto serve o interesse nacional e o maior deles na concorrência de vários. Esta ideia envolve outra - a de a neutralidade estar sujeita a contínua revisão, e por isso não poder alguma vez dizer-se que é definitiva. Ela depende mais dos factos que dos propósitos, mais de outros que a desrespeitem do que do próprio que pretenda mantê-la. Nem isto quer dizer que não haja uma política de neutralidade (creio termo-lo demonstrado); mas significa que, estando o mundo em guerra, mal pode alguém afirmar que em quaisquer circunstâncias se lhe conservará estranho. Numa palavra: o desejo de neutralidade não pode ser superior ao interesse da Nação. E sendo tao sinceramente neutrais, como somos, julgo prudente que o nosso espí­ rito não amoleça na ideia de se não bater. § 2.® 1. 0 segundo plano em que se há-de desenvolver a defesa política é, como disse, o que respeita às instituições. 0 problema cifra-se afinal em determinar que reper­ cussões poderão ter nos regimes políticos da generalidade dos países europeus cer­ tas hipóteses do desfecho da guerra mundial, e como esses regimes se poderão defender dos perigos que correrem. Refiro-me especialmente à inegável perturba­ ção dos espíritos causada pela aliança anglo-russa e à dolorosa inquietação que se pressente por toda a parte, mesmo no seio das chamadas nações unidas, em virtude da solidariedade emprestada pelas democracias inglesa e americana ao Governo soviético. Nada ganharíamos em fechar os olhos a problema porventura o mais angustioso da nossa idade e que vinca de amargos traços o pensamento europeu e americano, ainda liberto dos interesses e ódios do conflito e ávido de descortinar, para além da poeira das batalhas, as estradas do futuro. Não poderia examiná-lo profundamente; limitar-me-ei ao que importa ao meu desígnio.

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Discursos

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Oliveira Salazar Notas Políticas • 1938 a 1943

2. Ainda que a meu ver seja um ta n to presunçosa e cheia de perigos a superio­ ridade com que o povo inglês se julga a si próprio im une da desordem e do vírus económ ico e social, co ntam in ador em m aior ou m enor grau de toda a Europa depois da últim a guerra até à tragédia espanhola, é exagerado pensar e dizer que a Ingla­ terra deseja ou intenta favorecer o com unism o co m o esperança do amanhã euro­ peu. Neste ponto têm -se revelado pessim ism os e op tim ism os claram ente exagera­ dos. Não há dúvida porém de que há m uitos interessados em fazer da eventual vitória inglesa uma vitória ideológica, que possa repor em seus lugares os principais responsáveis da desordem e miséria europeia dos ú ltim o s v in te anos. Outros alme­ jam por que lhes abra caminho, pela ingénita fraqueza das dem ocracias, aos des­ m andos e desvarios de que andam cheias, sob aparências hum anitárias, as imagina­ ções dos indisciplinados e reform adores fantasistas. A lg u n s ainda contentar-se-iam com ser-lhes reconhecida a actual situação de o po sicion istas, mais para trás ou mais para diante, contanto que a mudança os favorecesse e às suas aspirações. São m uitos os que a este lume pretendem aquecer o seu rancho. Para exam inar a razão ou sem -razão destas esperanças não farei referência às eclarações autorizadas que têm vindo de todos os lados sobre o direito reconhejido aos povos de possuir o regime que m elhor quadre às suas necessidades e modo de ser, ou os com prom issos sobre a não in tervenção na p o lítica interna dos outros Estados. E passarei adiante sobre essas declarações ou propósitos, não só porque assim evito subjectivism os desagradáveis, mas porque os hom ens de Estado, ao contrário do que alguns deles mesmos suponham , nem sem pre podem executar tudo o que intentarem fazer. Por isso me in clin o para crité rio mais objectivo, e esse é o da linha geral da evolução política europeia e das necessidades de reconstrução da Europa.3 3. Ninguém pode aceitar sèriamente a pretensão de que esta guerra tenha nas­ cido com a finalidade ou se tenha desenvolvido com o p rop ó sito de repor regimes p olíticos gastos ou banidos. Além de problem as te rrito ria is ou económ icos, a guerra pode ter posto, e pôs com efeito, questões de o rga n ização e vida internacional, pro­ fundas e graves questões de princípio na vida de relação dos povos e outras ainda afins destas. É também para nós evidente que, independentem ente da bandeira da vitória, outros conceitos de vida se radicarão nos povos. R ecuso-m e porém a ir mais longe, no que só presto homenagem à inteligência dos homens. Se há facto dem onstrado pela experiência, é que a dem ocracia e o liberalismo se esgotaram no últim o século, e isso por duas razões que explicam a m orte ou substi­ tu ição dos regimes políticos e económicos: primeiro, esvaziarem -se do seu conteúdo ideológico, quer dizer, deixar de haver correspondência entre os princípios e os sen­ tim entos dos homens que se diziam servi-los; segundo, não corresponderem às necessidades dos novos tempos. Tão fo rte fo i o sen tim en to de insuficiência das ins­ tituiçõe s em vigor que a Europa m udou p o liticam en te de aspecto em poucos anos e, sem negar que a im itação tenha no fa c to algum a in flu ência, devem os sobretudo crer que as mesmas necessidades fizeram nascer aspirações que por toda a parte

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Defesa Económica

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XXVIII. Defesa Moral - Defesa Política

quase tomaram corpo em formas semelhantes e generalizaram concepções aproxi­ madas. E a última guerra que, não há negá-lo, sobre o princípio das nacionalidades reacendeu o facho das democracias, foi o último grande acontecimento provocador dos novos regimes, pela dupla necessidade generalizada de escapar à desordem e de fugir à miséria - a dupla e maldita herança que nos deixou. Só a Inglaterra pela natural lentidão da sua evolução política e económica - superior vantagem em épocas normais, grave inconveniente nos «rápidos» da His­ tória - teve dificuldade em compreender que o aparecimento dos novos regimes podia aqui ou além diminuir-lhe facilidades, mas nada tinha de essencialmente anti-britânico. Agora, em plena batalha, a Grã-Bretanha faz as adaptações conve­ nientes do regime, revoluciona a sua vida, tateia o seu caminho e abraça os novos tempos: não só isso lhe é necessário para conduzir a guerra, mas possivelmente a evitara se o houvesse feito. E o mesmo a América, e o mesmo muitos outros, com diferentes nomes embora. Ora bem. Temos pois que a linha geral de evolução política europeia - e nesta incluo como traço dominante a preocupação social com suas pretensões de criar um «homem novo» - está definida, aceite e experimentada por épocas difíceis e pelo facto da guerra. Seria fazer injustiça à inteligência dos quatro ou seis homens que dirigem os destinos do mundo supor que não vêem com clareza a marcha dos acontecimentos e iriam despender seus esforços a remar contra a maré. Poderiam ao menos fazê-lo com êxito?4 4. 0 problema reduz-se a saber quais as necessidades da Europa de amanhã e a forma como as instituições políticas têm de colaborar na sua reconstrução. Não pode oferecer dúvidas a ninguém que esta guerra, pelo seu desenvolvi­ mento mundial, criou problemas cuja vastidão não permite compará-los aos resul­ tantes do último conflito. Não pode haver igualmente dúvidas de que a extensão e variabilidade dos campos de luta, a supremacia dos meios mecânicos, sobretudo o poder da aviação ao estender a todos os recantos as frentes de batalha, elevam a proporções quase inverosímeis as destruições, perdas e desgastes de toda a ordem. Ainda que se não juntasse a miséria, que desde o tempo de guerra mina as popula­ ções, o estado geral da Europa será o de ruína e desolação material e moral. Nenhuma boa vontade, nenhum auxílio poderá impedir ou remediar rapidamente tal estado de coisas. Estão os maiores países envolvidos no conflito, desviada quase em absoluto a capacidade industrial do mundo para fins de guerra; muito tempo se passará antes de ser possível satisfazer convenientemente as necessidades das populações desprovidas de reservas, famintas, moralmente arrasadas. Todo o opti­ mismo se me afigura destituído de fundamento real. Vou mais longe: dado o fundo psicológico que reside na existência das necessidades humanas podemos prever que os povos sentirão mais fortemente depois da guerra a carência das coisas, com as naturais consequências de ordem social. Temos pois, como realidades imediatas, devastações sem conto, misérias sem limites, a necessidade de reconstruir quase um mundo que desabou. Ninguém pode

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 supor que tal tarefa, exigindo trabalh o intenso de dezenas de anos, colaboração fraterna, entendim ento m útuo, organ ização den tro e fora das fron teiras de cada nação, seja com patível com a desordem política, com a desordem económ ica e com a desordem social em que a Europa m ergulhou por e fe ito da guerra anterior. Assim levou vinte anos sem conseguir sanar todas as feridas nem reparar as principais per­ das. Se insiste, é que está louca e se quer perder. 5. A época que estam os vivendo e o c o n flito m u ndial terá m ais fortem ente vin­ cado decorrerá sob o tríplice signo da autoridade, do tra b a lh o e da preocupaçõo social. Pode haver — e certam ente se im porão de a co rd o com a diferenciação de condições - m odalidades ou processos diversos; mas p o r to da a parte em que se possa dizer que estam os em terra civilizad a e cristã as in stitu iç õ e s oferecerão parecenças flagrantes e se basearão em p rin cíp io s m orais idênticos. Nenhuma nação se poderá exim ir à autoridade forte; nenhum hom em ao dever do trabalho; nenhuma actividade ou riqueza ao crité rio da sua u tilid a d e social. Nisso estaremos todos por qualquer m odo de acordo. Em que o não estarem os? Em tudo quanto oorventura desconheça a natureza do homem, o se n tid o da vida, os ensinamentos da História, embora pela visão unilateral de q u alqu er p rin cíp io tenha parecido exacto, ou justo, ou útil. Nós, por exemplo, não poderíam os a ceitar que a h ip e rtro fia da autoridade des­ conhecesse os direitos da consciência; nem que o Estado absorvesse toda a vida da Nação e os agrupam entos naturais que defendem a própria vida e a actividade dos homens; nem que as necessidades económ icas sejam o p rin cip io básico de organi­ zação das nações ou da sociedade internacional; nem que a in iciativa individual desapareça com o órgão propulsor da a ctividade social e passe para a autoridade pública toda a iniciativa, toda a riqueza e todo o co m an do da vida em sociedade. Estas restrições, aparentem ente tã o sim ples m as tã o essenciais que por elas e co ntra elas parecem bater-se m uitos hom ens, tra du ze m pre cisa m e n te um dos tra­ ços dom inan tes das in stitu içõe s portuguesas: se a elas me re fe ri fo i apenas para a crescen tar uma razão mais às que vinha dando sobre a in dependên cia do regime em relação ao fenóm eno da guerra m undial. Nós não p o d íam o s nem ousamos por nossa m odéstia e fraca autoridade apresentar-no s co m o exem plo; trabalhamos apenas de espírito isento, sem esquecer o que há de pe rm a ne n te e imutável no hom em e com os olhos nas experiências passadas e nas necessidades de hoje. E parece-n os ter encontrado, para nosso uso ao m enos, aquela hum ana linha média aonde convergem as necessidades fu n d a m e n ta is da vida so cia l e as aspirações do nosso tem po. 6 6. Embora me pareça que as coisas serão assim por não deverem nem poderem ser de outra forma, não sign ifica isto ausência de graves d ificu lda de s. 0 após-guerra representará de m odo geral tendência regressiva para a desor­ dem; m uitos interesses secundários se aproveitarão das circu n stâ n cia s para traba­ lhar no mesmo sentido. 0 cansaço da excessiva mas necessária disciplina do tempo

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Defesa Económica

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XXVIII. Defesa Moral - Defesa Política

da guerra; o desaparecimento das pressões de ordem moral que obrigaram a obe­ decer e a sofrer em silêncio; o excesso de esforço pedido pela luta; a miséria ou per­ manência das faltas que não poderão milagrosamente suprir-se; a adaptação das produções de guerra aos fins da paz, que toca no trabalho, nos interesses, na vida de milhões e milhões de seres, repercutir-se-ão em solavancos graves na marcha política. Vencedores e vencidos devem sentir as mesmas dificuldades. Como não será surpresa, os homens reflectidos saberão que não se trata de ini­ ciar nova marcha, mas antes de recuo que deve ser travado; e os governantes pru­ dentes terão organizado reservas de força para o conseguir. Espero as tenhamos suficientes para não deixar perder na paz o que a guerra poupou, pois não se trata de salvar posições pessoais ou políticas, mas condições essenciais à salvaguarda da nossa independência e ao engrandecimento da nossa Pátria. Quem tem razão tem muita força - e muita mais quem a tem em sua casa.

Fico-me por aqui. Disse, senão tudo, alguma coisa do que podia dizer; não me mantive porém fiel ao intento de o fazer em poucas palavras. A razão já Vieira a apresentou há três séculos: faltou-me o tempo para ser mais breve.

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XXIX 0 CORPORATIVISMO E OS TRABALHADORES 01 Resposta do Presidente do Conselho à mensagem dos dirigentes sindicais O Presidente do Conselho respondeu em resumo o seguinte: Ouvi eom a máxima atenção a vossa mensagem, que julgo absolutamente sin­ cera, sem embargo de nalguns pontos a considerar exagerada, e aprecio sumamente que me tenham sido trazidas, com tanta lealdade e confiança, as preocupações dos dirigentes sindicais. Nos maus momentos que vivemos, as dificuldades pesam sobre todos os que têm funções de mando ou direcção. A impossibilidade de resolvê-las à medida dos nossos desejos e até à medida das necessidades de outrem pode fazer-nos desencora­ jar. Entre as pretensões que sobem de tom e de insistencia e os obstáculos ficticios ou reais, levantados pelo próprio facto da crise, põe-se a cada um, por vezes, o pro­ blema de saber se está em jogo a sua falta de qualidades ou a deficiência da orga­ nização em que se enquadra. 0 drama é doloroso para as consciências rectas; o pri­ meiro movimento é apelar para quem tem a responsabilidade da direcção superior e aquecer-se ao calor da sua própria fé. 0 vosso apelo quer antes de tudo dizer: vamos bem ou seguimos caminho errado? Antes de responder a alguns pontos concretos, vamos por isso fazer juntos o exame geral mas sucinto da situação. I.

0 primeiro ponto a examinar é se se pode dispensar qualquer forma de organi­ zação. A História, a razão e a consideração das necessidades económico-sociais da nossa época respondem negativamente: a economia e o trabalho oferecem tendên­ cia irresistível para se organizarem; a organização é assim um facto natural que o Estado pode conduzir, pode absorver mas não pode negar. No século XIX, sob a influência dos princípios da Revolução francesa, o Estado tomou, em relação à organização da economia e do trabalho, todas as atitudes pos­ síveis: hostilidade, desconhecimento, indiferença, resignação. 0 resultado foi que contra a lei, apesar da lei, sem lei, os indivíduos e as actividades se foram organi­ zando e renunciando por amor dos seus interesses a parcelas de liberdade que os regimes teoricamente lhes outorgavam.

111 Lida no Coliseu dos Recreios, em 23 de Julho de 1942, na sessão ali realizada pelos Sinacatos Macionais.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 Era de razão que assim fosse.

0 hom em a p a re c e -n o s enquadrado desde o

co m e ço da vida em v á rio s tip o s de a ssociação , p o rq u e n a tu ra lm e n te não pode criar-se, nem viv e r nem educar-se, nem d e se n v o lv e r-se s o z in h o e só por meios in dividu ais.

A fam ília é o prim eiro g ru p o n atu ra l, a p ro fissã o outro, a Igreja

ou tro, a sociedade c iv il ou tro, e ainda m ais à se m e lh a n ça destes.

0 homem

tende para o gru po por exigên cia da sua co n d iç ã o , in s tin to de defesa, ambição de progresso. A estes m otivos acrescem os derivados das necessidades dos tempos. Ninguém pode escolher a época em que vive e por consequência e v ita r as disciplinas impos­ tas pelas necessidades gerais. Quanto mais a vida em sociedade se complica, mais se im põe o ordenam ento de todas as actividades que no seu seio se desenvolvem. Encarando-se apenas o m undo da produção, a expressão nacional das diferentes econom ias tem de ter por base uma organização: nem com ércio, nem produção, nem trabalho poderiam ser orientados sem se organizarem . A conclusão geral e resposta ao prim eiro p o n to é que n ã o se pode dispensar um a organização. 0 segundo ponto será - que tipo de o rg a n iza ç ã o ? II. Há quem lembre substituir à nossa organização um de dois tipos - o fundado sobre o com unism o e o que se baseia sobre a lu ta de classes. 0 com unism o é conhecido em sociedades p rim itiv a s e tam bém o é nos conven­ tos. Fora daí não há nenhum caso averiguado de p len o ê xito. Ou a sociedade há-de ter uma econom ia e vida m uito sim ples, não te r in dústria nem comércio desenvolvidos, ou ser constituída por in d iv íd u o s p ossu in do ou aspirando a alta perfeição moral. Em ambas as hipóteses é necessária um a autoridade absorvente e extraordinariam ente forte. A crescente co m p le xid a d e da vida cria a desigual­ dade, im põe a propriedade privada, im po ssibilita a om n ip o tê n cia económica do Estado - estala a armadura da organização co m u n ista . Na Rússia, que é o grande exem plo dos nossos dias, o com unism o d e fo rm o u -se em colossal socialismo de Estado, largam ente remendado, com propriedade in d iv id u a l da terra, com capitais privados, em breve com burguesia, mas, so b re p o n d o -se a tu do, tu d o dominando, apresenta-se a empresa pública, a que corresponde a vasta massa de trabalhado­ res sem liberdade. 0 que fica então de tudo isso? A parte negativa, satá n icam e n te e bárbaramente destruidora, com o a vim os por toda a parte e em Espanha há pou co tempo. É aliás esse prim eiro m om ento de desordem, de negação de toda a disciplina, de ódio, de instintos à solta, que seduz m uitas im aginações. regime consciente não se deixará enganar.

M a s pelo m esm o motivo um

Outro tipo de organização seria o que se praticou com m aior ou menor amplitude nos regimes liberais. M esm o onde se transigiu no reco nh ecim en to da necessidade e

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XXIX. 0 Corporativismo e os Trabalhadores a lei ajudou a associação dos indivíduos e dos interesses materiais ou morais, a orga­ nização ficou esporádica, não ordenada, não sistemática, e a funcionar em planos diferentes. Sobretudo alheou-se do interesse geral para ser dominada pelo interesse imediato das classes, mesmo quando se opunha àquele. Assim é que a organização patronal tinha sobretudo finalidade económica e a operária finalidade social: não admira se não se encontravam. E sobre este facto fundamental e sobre a verificação de que, realizando os homens os seus fins em sociedade, os seus interesses imediatos são no entanto divergentes ou contrários, baseava-se uma organização que vivia da luta e para a luta e nos momentos graves dava à vida social o aspecto de guerra civil. Impelidas pela força da posição inicial, as legislações foram, primeiro, reconhecendo aos principais factores em oposição o mesmo arsenal de armamento e, depois, criando, por considerações sociais, compli­ cados processos de atenuação ou substituição da própria luta. Neste desvairo, que aliás empolgou imaginações e consumiu esforços enormes, perderam-se de vista três coisas: primeira, a organização da economia é uma neces­ sidade nacional, ainda que o trabalho, por hipótese, não precise de ser defendido; segunda, a eficácia dos meios de defesa depende da potência económica dos que têm de usá-los, do que provém ser a igualdade na luta apenas aparente; terceira, há um interesse colectivo tão real como o interesse dos indivíduos e que não pode ficar sujeito aos seus caprichos e irredutibilidades. E assim o regime liberal, quer quando desconheceu o interesse operário, quer quando o impeliu para a luta de classes, nem sempre se encontrou em condições de fazer justiça ou nem sempre conseguiu fazê-la sem prejuízo para a colectividade. Que tipo então preferir? Nós estávamos empenhados em encontrar uma fór­ mula que respondesse às seguintes condições; a) A organização deveria aliviar o hipertrofiado e monstruoso Estado moderno, desembaraçando-o de algumas das suas funções, serviços e despesas e defen­ dendo só por esse facto a liberdade individual e as economias privadas; b) A organização deveria ser decalcada, com prejuízo embora da sua pureza teórica e simetria, sobre a vida real do homem na família, na profissão, na sociedade; e, sendo assim, aproveitar o mais possível as formas conhecidas e espontâneas de organização a integrar em plano de conjunto; c) A organização não deveria dissociar o económico do social, pela razão funda­ mental de que todos os que de qualquer modo trabalham são solidários na pro­ dução e é da produção que todos devem viver; d) A organização deveria não perder de vista as realidades supra-individuais e que, portanto, só é verdadeiramente útil se conseguir satisfazer os legítimos interes­ ses privados e ao mesmo tempo promover o interesse colectivo. E foi por estas razões que pretendemos estabelecer entre os vários tipos possíveis de organização e de corporativismo o organização corporativa portuguesa. 483

Discursos

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Oliveira Salazar Notas Políticas • 1938 a 1943 III.

Esta organização vale pelo que representa com o súm ula ideológica na transfor­ m ação m ental e m aterial do País mas vale sobretu do p á tic a m e n te pelos resultados im ediatos em relação à econom ia e às classes trabalh ado ras; im põe-se pelo seu valor político no Estado e pelo seu valor co ord e n ad o r na econom ia e no trabalho nacional. De form a que antes de criticá -la pelo que não fez, com as mil razões por que o não terá feito, havemos de apreciá-la pelo que já realizou. Ela deu-nos, em prim eiro lugar, a paz, não a paz externa, a paz económica e social no interior e, com esta, não se perder um dia de trabalh o, o aum ento de pro­ dução nacional, o progresso económ ico, a tra n q u ilid a d e fa m ilia r e pública - inapre­ ciável bem para quem viveu os torm entosos anos precedentes. Impôs novo conceito de trabalho e do seu dever social; e fe ctiv o u a solidariedade, teoricam ente e vãm ente proclam ada antes entre o ca p ita l e o trabalho; elevou este pela sua representação nos mais altos órgãos do Estado; cham ou as forças econó­ m icas a participar da responsabilidade na direcção e co n ó m ica nacional, e prestigiou le tal m odo os seus princípios que, a n te cip a n d o -se -lh e ou seguindo-a, muitas Impresas privadas concorrem por suas forças nas m ais ben éficas realizações. Para não ir longe na enum eração de coisas m ateriais, que aliás estão à vista, direi apenas: A organização corporativa dispõe já de 4 0 0 Casas do Povo, com 230:000 sócios e 12:000 contos de rendim ento anual, destinados a assistência m édica e farmacêu­ tica, a subsídios na doença, no parto, na m orte e, quem havia de d izê-lo? na invali­ dez, estando já a pagar-se a trabalhadores rurais in válid os — e é o com eço - 1:200 contos anuais de subsídios. Paralelam ente as 20 Casas de Pescadores dispõem anualm ente de um rendi­ m ento que orça por 3:000 contos, destinados aos m esm os fins. Os acordos colectivos de trabalho e outras conven ções protegem a situação de 200:000 operários, e 150:000 além destes ben eficiam de salários m ínim os fixados superiorm ente. E isto significa que, deixando de lado os trabalh ado res rurais e os pescadores, cerca de metade dos em pregados e tra ba lh ado re s por conta de outrem no com ércio e na indústria se encontram protegidos p or disposições contratuais ou por determ inação do Governo. Em bora incipiente, o nosso tra b a lh o de casas e co n ó m ica s já nos proporcio­ nou 3:200 m oradias, onde se albergam , na e x p e cta tiv a de p roprie dade familiar d e fin itiv a , 11:000 pessoas, su bindo a 42:000 co n to s os se g u ro s de vida dos res­ p e ctivo s b e n eficiá rios. várias empresas.

E não co n to os bairros de a lg u m as câm aras nem os de

Quanto a instituições de previdência social (m uitas v in d o do passado), a organi­ zação dispõe de 40 0 instituições, com fundos no valor de 6 0 0 :0 00 contos e bene­ fício s distribuídos na im portância de 56:000 em cada ano. Estão incluídas nestes globais 12 caixas sindicais de previdência, com 30 :0 0 0 co n to s de fun dos e 10:000 de contribuições anuais, provenientes de 24:000 ben eficiários, e as caixas de

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XXIX. 0 Corporativismo e os Trabalhadores reforma e previdência, com 37:000 beneficiários e 22:000 contos de fundos. As caixas sindicais em organização e reorganização, bem como as caixas de reforma ou de previdência no mesmo estado, irão beneficiar mais cerca de 50:000 indivíduos, com 135:000 contos de fundos. Pelo que respeita a salários, não só a organização não tem obstado ao seu aumento, mas tem-no promovido umas vezes, imposto outras, defendido sempre. Apenas nos últimos meses se fez uma pausa na política de elevação de salários, para que o problema pudesse ser revisto quanto à orientação geral e se contrariasse a tendência de justificar com esses aumentos altas abusivas de preços. E já deixo de lado a melhor fiscalização do trabalho e das suas condições, a realidade da magis­ tratura do trabalho, as férias pagas, as colónias de férias, a obra cultural da Funda­ ção Nacional para a Alegria no Trabalho, o cinema e teatro do povo, muitas outras realizações enfim que por brevidade tenho de omitir.

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IV. E agora, que já fizemos um começo de justiça podemos dizer algum mal da orga­ nização. Apesar da sua vasta obra, ela revela com efeito deficiências de espirito e de técnica; mas ambas as faltas passam à margem dos princípios do sistema para residirem na pessoa dos executantes.

Entendemos por espirito a compreensão

exacta dos princípios e finalidades do corporativismo, a adesão e fidelidade à sua doutrina, a observância da sua ética, a dedicação pela sua obra. Por técnica pode entender-se o conjunto de regras e de processos pelos quais se chega à realização dos objectivos corporativistas, e que vão desde o segredo da chefia ao conheci­ mento da administração e da contabilidade. A falta de um e da outra descobre-as algumas vezes o observador atento e não só de um lodo como de ambos. Se os dirigentes dos grémios supusessem que a organização corporativa devia converter-se em cartel da produção e estivessem convencidos de que, se existe, é para garantir a colocação dos produtos, firmar os preços, assegurar os lucros da exploração, embora destes se houvessem de distri­ buir migalhas como prémio de seguro pelos trabalhadores, esses tais estariam muito longe do espírito corporativo. Mas se os empregados ou trabalhadores tivessem a ideia de que a organização é apenas instrumento para conseguirem aumentos sucessivos de regalias materiais ou morais e que isso é possível fora do sentido de solidariedade económica no seu ramo de produção e de solidariedade social com todos os outros individuos ou classes, alimentavam por igual uma ilusão, além de professarem um erro. Por mim atribuo as faltas verificadas a estes dois factores: primeiro, vivemos um caso em que a revolução mental, em vez de preceder, teve de seguir-se à revolução legal, a qual por isso mesmo encontra, por força da inércia, muitos espíritos descan­ sados em princípios opostos (muitos de nós raciocinam à liberal ou à socialista, mesmo quando pretendem ser corporativistas); o segundo factor é a falta de pro­ paganda formativa para a massa e de cultura apropriada para os dirigentes. 485

Discursos

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Oliveira Solazar Notas Políticas • 1938 a 1943

A boa vontade de que, senão todos, o grande n úm ero tem dado provas nesta d ifícil época de transição não basta; e há m u ito te n h o in te n çã o e sinto a necessi­ dade de retom ar em bases diversas o Centro de Estudos C o rp o ra tiv o s e ampliar os estudos destinados à form ação dos dirigen tes sin dicais. Isto não pode merecer outra crítica que não seja a de se não ter fe ito m ais cedo; e entretanto con­ fie m o -n o s à boa vontade e à excelente in tu içã o com que m uitos, antes mesmo de com preenderem até ao fun do todos os problem as, deram o seu entusiasm o à orga­ nização corporativa. V. Além destas deficiências de espírito e de técn ica e a parte m u itas faltas se deve­ rem ao facto de a organização co rporativa ser ainda in co m ple ta — não nos tendo perm itido nem a escassez do tem po nem a guerra que alargássem os o seu domínio a todos os sectores da econom ia e da a ctivid a d e m oral e e sp iritu a l dos portugue­ ses —, além do que disse, há um elem ento cau sador de fa lh a s em toda a organiza­ do humana e de m uitas falhas numa que toca nos m aiores interesses materiais: é i egoísmo. Há certam ente santos entre os homens, mas os hom ens não são santos. E é pre­ ciso contar com que os seus defeitos, e no caso o seu egoísm o, extravasem do dom ínio interno para a vida e a organização, sobre tu do se podem transform á-la em instrum ento dos seus próprios interesses. A m aneira m ais sim ples e hábil de resol­ ver um problema social é achar-lhe a solução na linha dos egoísm os humanos. Infe­ lizm ente nem sempre é possível, sendo então necessário faze r-lh e s frente e tentar co n d u zi-lo s ou dom iná-los com a m aior energia. Isto nos leva a um problema ainda não aludido — que é a posição do Estado n a o rg a n iz a ç ã o c o rp o ra tiv a . É erróneo supor que só o rico, o patrão, o p ro p rie tá rio são egoístas. Há mendi­ gos avarentos com o se tivessem milhões; há ricos desin teressados com o pobres de pedir. Q ueixam o-n os de assam barcam entos e especulações, mas não é só o pro­ d u to r ou o com erciante que assam barca e especula; é tam bém o consumidor. A tendência — não digo a regra — é vender o que se tem pelo m ais caro e comprar o que os outros possuem pelo mais baixo; tra b a lh ar para os o u tro s o m enor número de horas e os outros para nós o mais que puderem . Há op e rá rio s que vivem na inveja da situ ação patronal e há patrões que se co nsiderariam fe lize s se, em recom­ pensa do seu esforço, preocupações e responsabilidade, pudessem garantir-se um salário m odesto. Seria m uito d ifícil fazer ideia de qual o egoísm o mais co rrente e de qual o mais prejudicial à colectividade. No entanto se no cam po m oral se pode estabelecer igualdade, é natural que o egoísm o dos poderosos, dos grandes e dos ricos seja mais sentido e menos desculpável que o egoísm o dos fracos, dos pequenos e dos pobres. Seja com o for, a existência do interesse co le ctivo e a co lisã o de interesses par­ ticulares imediatos, cada um defendido egoistam ente no seu cam po, exigem um defensor e um árbitro, e estas missões só as pode desem penhar o Estado. Mesmo 486

XXIX. 0 Corporativismo e os Trabalhadores em economia auto-dirigida, quanto à definição das regras a que há-de subordi­ nar-se a produção, o Estado tem de ter a sua palavra de direcção superior em har­ monia com os fins e interesses da política nacional, e de tomar o papel de árbitro supremo nos conflitos de interesses. Uma vez dirá aos patrões que devem ceder; outra aos operários que não podem exigir, e não poucas a uns e outros que legíti­ mos interesses da colectividade se opõem ao seu eventual entendimento. V I. Estamos agora preparados para fazer incidir a atenção sobre o caso concreto dos aumentos de salários. Tem-se acusado a organização corporativa ou o Governo de os não favorecer ou de levantar até dificuldades a que as entidades patronais os concedam. É bom esclarecer o assunto e para isso fazer primeiro algumas distinções. Devemos pôr de lado insuficiências manifestas ou desigualdades flagrantes veri­ ficadas em qualquer sector económico ou escala de salários. Tal situação, se existe ou se se descobre, não tem de ser enquadrada no problema geral das actuais difi­ culdades provenientes da alta no custo de vida. Segundo a nossa doutrina e modo de ver, trata-se de justiça pura a realizar sem perda de tempo. Devemos igualmente pôr de lado os casos em que dificuldades aflitivas de vida provêm da constituição numerosa da família. 0 salário, determinado para o traba­ lhador em harmonia com o seu trabalho, raro tem em mira as necessidades da vida familiar e nunca o número avultado de filhos. Embora a Constituição esteja orien­ tada no sentido do salário familiar, ainda se não julgou oportuno legislar sobre a matéria, e por iniciativa particular poucos casos há no País (salvo os muito recen­ tes) de subsídios de família. O Governo tem-se porém ocupado do assunto e tem preparado o diploma a publicar muito em breve para dar satisfação, na medida do possível, a essa necessidade. O problema mais difícil é o do pretendido aumento geral de salários e vencimen­ tos com fundamento na carestia da vida, pois aí se tem esbarrado com a política do Governo da máxima estabilidade possível de condições de vida durante a guerra. Este ponto precisa de algum desenvolvimento. A nossa posição em face dos salários é considerá-los de um modo geral baixos (ressalvo entretanto o abuso de alguns salários agrícolas, com que a agricultura não pode). Esse baixo nível provém em grande parte da pequena produtividade do tra­ balho, mas esta não está ligada só ao esforço e competência do trabalhador - está em alto grau ligada à organização da empresa, ao seu apetrechamento, ao volume da produção e extensão do mercado. Se pois não se pode distribuir em salários o que não se produz, é por outro lado certo que a produção e o rendimento do tra­ balho podem variar com a actuação de factores estranhos a este último. Uma certa pressão sobre a empresa, exercida pelos salários, pode impulsioná-la no sentido de mais conveniente e proveitosa organização; mas para isso é necessá­ rio que lhe esteja vedada a repercussão nos preços. Se existe a possibilidade de 487

1 Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 agravam ento dos preços, o cam inho do m enor e sfo rço está exactam ente em manter-se a empresa na sua form a in fe rior de organização. Então to d o o agravamento de salários se encorpora no custo de produção e este e m ais algum a coisa são trans­ feridos para a co lectividade no encarecim ento das coisas. C ria-se assim um círculo vicio so de que já se não sai senão pela ruína geral. Ora o período que atravessam os, m ercê do d e s a p a re cim e n to ou restrição dos m ercados abastecedores, não oferece fora da a cçã o repressiva directa meios de co rre cçã o bastantes, isto é, eficazes à elevação dos p re ço s e ao encarecim ento da vida. Nada pois se conseguiria por tal cam in ho. A e xp e riê n cia te m -n o s indicado que, mesm o dispon do-se de m eios de co rre cçã o co n tra as te n dê ncia s abusivas, é necessário o Estado prom over e fa c ilita r as co n c e n tra ç õ e s e rem odelações indus­ triais, a densidade ca pita lista da em presa e o rg a n iz a r o m ercado, para que, sem gravam e para a colectividade, se obtenham os re su lta d o s sensíveis na qualidade do artigo, no preço, nas regalias do operariado. V á rio s exe m p lo s bem conhecidos se poderiam citar. À parte este processo, im possível de exe cu ta r em to d a s as circunstâncias e den:ro do prazo breve que as necessidades aconselhariam , nós não tem os outros camiihos senão - ou tom ar cada qual no en ca re cim e n to da vida o que se pode muito apropriadam ente cham ar a sua co n trib u içã o d c g u e rra ou aum en tar a sua cota parte de esforço, com o a form a mais elem entar de elevar o rendim ento do traba­ lho. Felizm ente em tais casos o tra b a lh ad o r o que deseja é trabalhar, contanto que se lhe aum ente a remuneração, e nós tem os ai, ao m enos n algun s dom ínios e den­ tro de certas proporções, o meio de não agravar despesas de produção, de não ele­ var o custo da vida e de ben eficiar o trabalh ador: para isso se tem de dar maior ela sticid ad e ao dia de trabalho, com pensando-se, q u a n to possível, o aumento de salários com aum ento de trabalho. Repetirei que as ruínas e destruições que a guerra causa m esm o nos que não estão em guerra têm fatalm ente de ser pagas e com pensadas com aum ento de tra­ balho ou agravam ento de restrições ou com uma e ou tra coisa. Trabalhar mais e m elhor ou viver pior é alternativa de que se não pode fugir; poderm os escolher um dos term os é ainda uma felicidade. A nossa preocupação é que esse encargo não seja suportado só por uns, mas partilhado por to dos na ju sta medida. Encarei especialm ente o caso de a ctiv id a d e s que não ganh aram com o facto da guerra; ou tras porém, por m otivos vários que não e xa m in a re i agora, têm o b tid o lu cros a vu ltado s e não será d ifíc il descobrir, e n tre elas, algum as em que a situ a çã o do operariado não m elhorou paralelam ente, a te n d e n d o -se ao aumento do cu sto da vida. Sem esquecer que a d e ficie n te c o n s titu iç ã o das nossas empre­ sas no que respeita a m eios de tra b a lh o a con selh a a fo rm a ç ã o de reservas que em barateçam de fu tu ro a produção, m e lh oran do ainda de m o d o estável a situa­ ção dos trabalhadores, o problem a a p a re ce -n o s aqui no e n ta n to com aspectos de mais fá cil solução, sem por isto entenderm os que se pode ca m in h a r para esse estran ho tip o que seria o o p e rá rio n ovo ric o . A nossa o rie n ta ç ã o é antes evitar o n ovo m iserável. 488

XXIX. 0 C orp orativ ism o c os T ra b a lh ad o res

V IL Em resumo, é intento e orientação do Governo: 1. ° Promover mais intensa e cuidadosamente a formação da consciência corpo­ rativa, a educação dos dirigentes e o progresso dos estudos acerca do Corporati­ vismo português; 2. ° Permitir a revisão de salários, quando neles se verifique injustiça, quer esta provenha da desigualdade ou erro de classificação, quer de insuficiência absoluta do salário para o trabalhador viver. 3. ° Dar maior elasticidade ao horário de trabalho, de modo que, sempre que pos­ sível, o aumento de salários neste período excepcional seja compensado com aumento de trabalho, se o não puder ser por força de melhor apetrechamento ou organização da empresa e do mercado; 4. ° Estabelecer o regime do subsidio familiar, embora a princípio com a prudên­ cia necessária à consolidação e ulterior extensão do sistema.

Considero-me feliz se este vosso apelo vos permitiu verificar que as dificuldades e preocupações que sentem os dirigentes sindicais, por si e pelos seus agremiados, me são a cada momento presentes. 0 Governo não tem a menor dúvida sobre a bondade dos princípios da organização corporativa nem desiste de realizar integral­ mente a revolução económica e social que nela se contêm, apesar das limitações que lhe advêm dos possíveis desvios dos homens e da adversidade dos tempos. Entende que a obra realizada é garantia do muito que há ainda a fazer, e para cuja realização conta com a vossa dedicação e o entusiasmo de quantos têm confiado na justiça do Estado Corporativo e se têm dedicado cegamente, inteiramente, de corpo e alma, sem contar esforços nem sacrifícios, à construção da cidade futura - a Pátria que é a terra, o lar de seus filhos.

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XXX. SÓCIO DOS SINDICATOS NACIONAIS « Agradeço do fundo da alma as palavras que acabais de dirigir-me nesta men­ sagem, o sacrifício que para alguns representa vir e estar aqui e sobretudo a ideia de me considerardes sócio dos vossos Sindicatos. Entendo que estais neles com a convicção profunda de trabalhar numa grande obra de transformação económica e social, e que a organização é a casa, a alma, o centro da vossa profissão. Quero dizer que me destes e trazeis neste dia o mais e melhor que me podeis dar. Sou, felizmente, também trabalhador e um trabalhador que só conhece ao trabalho o limite da própria resistência física: sei por consequência o amor que se deve ter ao título; acreditai que o aprecio. Ter-me feito sócio dos vossos Sindicatos é de algum modo ter-me mais perto de todos e, se isso não era preciso para me enco­ rajar a servir a causa comum, dá-me mais, a mim e a vós, a sensação da presença e da companhia. Isso aumenta a minha fé na vitória final, que é a nossa vitória, mas é acima de tudo a vitória da Nação.

1,1 Em S. Bento, na sala dos Passos Perdidos, em 29 de Julho de 1942, ao agradecer a mensagem dos dirigentes dos Sindicatos Nacionais.

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XXXI. OS PRINCÍPIOS E A OBRA DA REVOLUÇÃO NO MOMENTO INTERNO E NO MOMENTO INTERNACIONAL ™ Faz hoje quinze anos tomei conta da pasta das Finanças e com ela a minha parte de responsabilidade na direcção superior do Estado. A Revolução vinha de mais longe; o seu acto inicial é de 1926 e sabe-se que me não deve nada. Mas os dois primeiros anos gastaram se a bem dizer na arrumação sumária desta desarrumadíssima casa e sobretudo na preciosa conquista de estabelecer a ordem com o mínimo de violência. Sem esquecer o muito realizado na mesma orientação que depois veio a definir-se, podemos pois sem grande erro fixar a partir de 28 a época propriamente reformadora e construtiva. Quinze anos são pouco na vida de um povo mas podem pela seiva dos princí­ pios e pela força criadora das instituições alimentar e marcar um século. Para isso é necessário que tenham consubstanciado as necessidades e aspirações nacionais e que, não tendo a possibilidade histórica ou a potencialidade su fi­ ciente para abrir novas rotas ao mundo, se enquadrem nas grandes linhas que traduzem o sentido geral dos tempos. Por isso me pareceu que um assunto pos­ sível para hoje seria este: os princípios e o obro da Revolução no momento interno e no momento internacional. A obra política é sobretudo obra de resultados. Pelos benefícios materiais e morais que lhes ficam devendo os homens ou as sociedades se costuma aferir o valor das ideias e das fórmulas, por vezes até com desprezo pela sua verdade e jus­ tiça intrínsecas - desprezo excessivo mas compreensível, se aceitarmos que o erro não é socialmente mortífero senão depois de muitas gerações. Seja como for, não se devem confundir os resultados gerais com dificuldades de momento, os sacrifícios individuais com o bem-estar colectivo que os tornou neces­ sários; e para se fazer o balanço exacto da situação devem ainda ter-se em conta correctamente as circunstâncias em que se desenvolveu. Ora o período de 1928 até hoje pode ser caracterizado pela gestação político-mili­ tar da maior guerra que o mundo viu, enxertada na maior crise que os economistas anotaram em todos os tempos. Em quinze anos, quatro derrocadas económicas e financeiras, três de guerra na Península, que nos cortou da Europa por terra, quatro de conflagração, que a bem dizer nos tem separado do resto do mundo por mar. Sobre as economias empobrecidas pela crise tiveram de erguer-se as economias fechadas pelo bloqueio; sobre as moedas debilitadas se lançaram os desequilíbrios

1,1 Na Emissora Nacional em 27 de Abril de 1943.

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das balanças de pagam entos ingurgitados pelos abastecim entos militares; sobre as finanças, que mal aguentavam os d é ficits do tem po de paz, carregam as astronómi­ cas despesas do tem po de guerra. E o grande abalo não se repercutiu apenas nas coisas materiais que se reparam, ou renovam, ou reconstituem , mas em conceitos básicos de ordem política e moral. Tudo parece ter estado sujeito a revisão - pro­ messas e tratados, interesses e amizades, fro n te ira s e soberanias, regras de vida internacional, o próprio direito de viver. E a angústia da hum anidade que não pode viver sem arrimos sólidos de certeza moral ju n to u -se por toda a parte às insuficiên­ cias económicas, filhas da guerra ou do seu receio. Estes traços largos vêm aqui sem o inten to de d im in u ir responsabilidades, mas com o exigência da exactidão histórica ao situ a r no te m po os acontecim entos polí­ ticos. Porque objectivam ente o problem a deve pôr-se da mesma form a e o primeiro ponto será portando — se a Revolução se tem m o stra d o a p ta a compreender,; estu­ d a r e resolver os problem as nacionais.

I. A R E V O L U Ç Ã O E O S P R O B L E M A S N A C IO N A IS 1.

P R O B L E M A S N A C IO N A IS

Eu não me refiro aos mil problem as ou questões que fazem a tram a da vida diá­ ria de um país e exigem soluções de m om ento. Tenho apenas em mente aqueles problemas essenciais que respeitam à existência, à conservação, desenvolvimento e missão histórica do agregado nacional. Desisto, para o efeito, de recorrer às con­ clusões a que nos tenham levado a nossa própria re fle xã o e estudo; o mais simples é servirm o-n os do que durante mais de um sécu lo se escreveu e perorou como defi­ ciências ou lástimas nacionais. Historiadores, pu blicistas, oradores parlamentares, políticos, jornalistas apresentaram, durante cem anos de expansionism o verbal, o quadro pouco lisonjeiro do que a Nação reclam ava e se devia fazer. Preferentem ente, sob o aspecto negativo ou crítico ; aqui e além entremeado de uma ideia construtiva, pouco im porta. Pouco im po rta ainda que uns se deixassem in flu enciar pelo progresso de nações estrangeiras, o u tro s partissem de algum conhecim ento das coisas e circunstâncias locais; que estes atribuíssem aos defeitos da educação e aqueles às más artes da política os m ales do País; que ali se chamasse desordem à miséria e aqui se denom inasse pobreza o que era desleixo, falta de tra­ balho, desorganização. Há certam ente para exam e mais p ro fu n d o m uitos conceitos a corrigir; mas sob o aspecto que nos interessa, as recrim inações, as queixas, as dis­ cussões azedas, as críticas bem ou mal intencionadas, os program as dos partidos ou dos governos fizeram vir ao de cima da consciência pública, co m o espuma em águas agitadas, a enunciação de grandes problem as nacionais. Verdadeiram ente com o espuma. Com e feito não havia em regra mais que a form a verbal de uma aspiração, mas nenhum conteúdo, nenhum fundam ento nem essência concreta — estudo exaustivo de facto s ou causas, processos ou meios de 494

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XXXI. Os Principios c a Obra da Revolução... se satisfazer. Quer dizer, nenhum problema posto em equação, e a regra é: pro­ blema não equacionado, problema não resolvido; no Governo e na vida os expe­ dientes são outra coisa. 0 público teve assim conhecimento, mesmo quando as não podia sentir directa­ mente, de grandes necessidades ou problemas que, pela forma insistente como eram atacados e não resolvidos, se lhe erguiam na frente como as suas verdades primárias e ao mesmo tempo como esfinges de invioláveis segredos, medonhos fantasmas, impossibilidades. E em muitos casos afez-se à ideia, resignou-se, entristeceu. O eterno déficit, o mistério tenebroso das contas e da dívida pública; o espec­ tro da bancarrota, a quebra da moeda; o déficit da balança comercial; a insufici­ ência económica; a miséria agrícola; a irrigação do Alentejo; o repovoamento flo ­ restal; as estradas; os portos; o analfabetismo; o abandono das populações rurais; a pesca; a marinha mercante; a administração colonial; a instrução e rearmamento do Exército; a reconstrução da marinha de guerra; a viciosa educação da gente portuguesa; a emigração; o quadro das nossas relações internacionais; a questão religiosa - tudo isto absorveu literalmente um século de discursos, toneladas de artigos e não deu um passo, salvo sempre o respeito pelos esforços honestos e rea­ lizações parciais úteis, entre as quais se destacam o fomento das comunicações e a ocupação colonial. Não deu um passo - porquê? 2.

O P R O B LE M A DO ESTADO. R EFO R M A POLÍTICA

Ponhamos em primeiro lugar o problema do impulso e direcção central - diga­ mos, o problema do Estado e da sua estrutura. A vida colectiva sobretudo na sua expressão nacional e num plano superior desta não se congrega nem ordena espontáneamente. É ilusão supor que a sociedade busca ou encontra por si própria as suas directrizes; ou mesmo apreende em termos sensíveis as suas próprias necessidades. Um ou poucos, debruçados sobre o ser colectivo, deduzem e esclarecem o que pode encontrar-se vaga e embrionariamente na consciência geral, sentem as necessidades ou conveniências, fixam um objectivo, definem uma direcção, dão o impulso - criaram uma política. Esta, conforme a sua amplitude, esgota-se em anos ou absorve gerações sucessivas, dura séculos; mas as condições de êxito são sempre as mesmas, apesar de não ser igual a empresa. Nestes termos e para o que nos importa, posta de lado toda a pretensão cienti­ fica e mais as luzes da filosofia e do direito político, o que é o Estado?- 0 chefe, o governo, a burocracia ou seja, grosseiramente, um pensamento constante, uma vontade esclarecida, um órgão de estudo e execução. A Nação por sua vez, rece­ bido o influxo das ideias directrizes, é que verdadeiramente realiza, pelo seu esforço, em tudo o que não representa pura acção de Estado, a política nacional. Ela pode aliás e deve fazer ouvir a sua voz, isto é, a voz das suas necessidades, sentimentos e aspirações, por meio de representação adequada. - Vê-se a olho nu a importância da orgânica constitucional. 495

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Nas antigas monarquias, a extensão e força do poder real ligadas a hereditarie­ dade da fu n çã o podiam fazer da dinastia o fie l d e p ositário do pensam ento político. A obra da conquista, form ação e povoam ento do Reino, a em presa das descobertas, o esforço da restauração m etropolitana e ultram arin a são exem plos frisantes do que podem representar dinastias na fidelidade a um pensam ento e na prossecução de urna política. Vê-se também algum as vezes órgãos co le ctivo s, de escol, poderem su bstitu ir ou coexistir com outros na conservação de um pensam ento de Estado e na fidelidade à tradição. Exemplos: o Senado da República na Roma antiga, o Almirantado britânico, a Cúria Romana. No Estado m oderno a excessiva preocupação da defesa dos direitos e liberdades individuais contra os possíveis abusos do Rei e seus M in is tro s pôs por toda a parte em crise a chefatura do Estado: foram a tin gidos o poder, a perm anência, a duração das funções de direcção superior e com elas as possibilidades que em si continham. Os expedientes que se encontram e utilizam qu an do uma em presa vital se cruza e periga com o m andato que termina são fra cos rem édios para profu ndo s males. Com a translação operada nas forças políticas e as deduções porventura apressa­ das dos conceitos correntes acerca da sede da soberania, entraram igualmente em crise a formação, estabilidade e prestígio dos governos. C onform e as qualidades dos povos e a permanência de instintos de defesa, os resultados foram diferentes. Em Portugal porém fez-se tudo quanto era hum anam ente possível e razoável fazer para anular os principais órgãos da soberania, aqueles em que principalm ente reside a força e autoridade do Estado. A vergonhosa estatística que apresentam os com o expressão de havermos passado todas as marcas revela, com o com pleto desprestigio das insti­ tuições políticas, termos criado as condições óptim as em que não se podia governar. Só por si o Parlamento o não permitiria, com seus partidos, grupos e paixões, sua ânsia de impor-se ao Chefe do Estado e aos governos e sua to ta l irresponsabilidade diante de Deus e dos homens. Pela sua origem e constituição, em am bas as Câmaras, não poderia mesmo aspirar a qualquer representação nacional, pois que nenhuma tenta­ tiva se fizera para organizar a Nação dentro dos seus quadros naturais, de que directa ou indirectam ente emanasse e pudesse ser imagem ou intérprete fiel. Podia ao menos ter se salvo a burocracia; mas não. Ela fo i a prim eira vítima da falta de direcção e da desordem política. Na carência do Estado não podia ser-lhe reconhecida utilidade; e assim, roída pelo com padrio e pela incom petência, pôde vir a ser acusada de com pletam ente inútil. Quando chegou a altura de, pela falta alheia ou incapacidade própria, se convencer da sua utilidade, a burocracia, perdido o estím ulo, o zelo, o brio da função, veio a resignar-se com a acusação da parasita­ gem e o desprezo público. M ais de um m ovim ento se inspirara no peregrino intento de libertar o País do funcionalism o, o que dá sim u ltán eam en te ideia da incompre­ ensão dos dirigentes e da consciência geral. Só nós tem os a coragem de afirm a r que a burocracia é in stru m ento precioso e indispensável da governação, com o tem os o dever de dizer que à data da Revolução 496

XXXI. Os Princípios c a Obra da Revolução... - e possivelmente nalguns sectores ainda hoje - a burocracia não estava preparada ou, se se prefere, não estava habituada a trabalhar como se fazia mester. (Fala-se em geral e exceptuam-se sempre os verdadeiros valores). A nossa instrução livresca e formação dialéctica, nada objectiva, movendo-se na abstraeção, com pequeno contacto com os factos, podem engenhar-se em fórmulas vazias que estendem os processos, não cortando as questões, mas não servem, quando precisamente se trata de estudar as realidades e dar solução aos problemas da vida. De modo que um dos grandes objectivos e uma das maiores necessidades era exactamente ree­ ducar a burocracia para um esforço sério. A questão tem mais importância do que se pensa mesmo no aspecto puramente político. Porque na falta de elementos capazes de assegurar a execução do pensa­ mento e planos de governo, os Ministros, em vez de serem simplesmente os «técni­ cos das ideias gerais», como de si próprio dizia o Marechal Líautey, têm de fazer-se os técnicos-chefes dos respectivos Ministérios. E, parecendo à primeira vista boa solução, não a tenho por tal, pela exigência de excepcionais requisitos, o peso sobre-humano da tarefa, a perda da perspectiva em relação aos planos gerais, o desaparecimento do político sob a avalanche das minúcias dos problemas particu­ lares. Mas creio bem que esta geração está condenada a trabalhar pouco mais ou menos assim. Enfim, os homens de quarenta anos viram já duas doutrinas políticas em acção. Os de espírito liberto podem guiar-se pelas lições da experiência, se a evidência dos princípios os não tinha convencido já. Não só se havia chegado a extremo em que parece nada se podia tentar sem a profunda reforma das instituições políticas, como o sentido em que esta se operou foi ao encontro da maior necessidade - dotar a vida da Nação daquela representação orgânica e daquela direcção central estável, forte, eficiente, sem a qual seria impossível formular qualquer plano ou executá-lo, se o houvesse. Só me parece que um alto corpo, como o Conselho de Estado, mas em bases mais largas, poderia ser junto do Chefe do Estado fiel intér­ prete da doutrina e o depositário seguro de uma tradição política. 3.

A N A ÇÃ O E A SUA ECONOMIA

Para além do Estado está a Nação - a vida da comunidade nacional com suas necessidades, o seu trabalho, as suas aspirações. Para ela existe o Estado, isto é, em seu benefício se organiza o poder, se criam e funcionam serviços. Significaria osten­ tação ao mesmo tempo que tentar o impossível trazer para aqui a enumeração dos actos, providências, realizações de toda a ordem que nos últimos quinze anos tem criado ou melhorado as condições de trabalho do País, satisfeito as suas necessidades, fomentado o seu progresso, elevado o seu nível de vida e as manifestações da sua cul­ tura, numa palavra, revigorado o seu ser. Prefiro à crónica que registasse as soluções concretas dadas aos problemas o comentário de um ou outro traço essencial. Julgo que algumas vezes se têm exagerado as nossas possibilidades. Nós somos um país pobre, que tanto quanto se enxerga no futuro não pode na metrópole aspi497

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 rar a mais que è dignidade de uma vida m odesta. A ideia de que som os um país rico por causa da doçura do clima e do puríssim o azul do nosso céu é uma ideia feita... e falsa, com o a dos incultos do A len tejo e a da im ensidão dos baldios. Ao país pequeno e acidentado, as serras, as rochas, as dunas, as terras áridas deminuem-lhe m uito a superfície; a irregularidade das chuvas, o regim e de sequeiro, a exigência e carestia das regas onde isso se pode fazer, tornam ou precária ou cara a produção. A agricultura é falível na qualidade de géneros e o ren dim ento líquido. Temos o mar, mas o subsolo não é com parável em co m bustíveis ou m inérios ao da generalidade das nações europeias. Há um elemento que nos tem porventura fe ito e q u ivo ca r — a qualidade de algu­ mas produções. Os vinhos, as frutas, o peixe são de alta qualidade, preciosos, no rigor da palavra. Para adm itirm os que tivéssem os aí co m pensação era preciso par­ tir do principio de que a vida m oderna de massas, tip o s e p rodu çõ es em série, reser­ vava ainda lugar para o produto fin o em que a m ã e -n a tu re za se compraz, sacrifi­ cando ao perfume, è cor, ao gosto apurado, a a ltas virtu d e s, a banal quantidade. Não estou seguro disso. No acanhado espaço a população em crescim ento constan te procura viver — há-de encontrar trabalho e sustento. Não se dá o u tro fim ao que se tem feito para conhecer de verdade as riquezas do subsolo e a sua m elhor utilização, fixar as dunas, repovoar as serras, dividir e aproveitar os baldios, irrigar os campos, regularizar os cursos de água, enxugar, dessalgar e defender as terras. Tudo é apenas alargar as áreas úteis — propriamente tornar m aior o País. Sem suspensão nem desvios há aí trabalho para duas, três décadas ou mais e gasto de m u itos m ilhões, mas os resulta­ dos hão-de possivelmente revelar-se em atraso relativam ente à população - tanto em disponibilidades alim entares com o em trabalh o exigido: grave dificuldade. V ejo-lhe dois remédios, a aplicar conjun tam ente — a co lo n iza çã o ultramarina, a intensificação do trabalho industrial. A s terras colon iais, ricas, extensas, de valor nulo e fraquíssim a densidade populacional são o natural co m plem ento da agricul­ tura m etropolitana, nos géneros pobres sobretudo, e das m atérias primas para a indústria, além de fixadores de uma população em excesso d a q u ilo que a Metrópole ainda com porte e o Brasil não deseje receber. D efinida a solidariedade económica e política nalgumas proposições do A cto Colonial, a m archa do tem po tem ido reve­ lando a possibilidade e dem onstrando inequivocam ente a necessidade de uma polí­ tica que assente na base imperial a econom ia da Nação. Quando por outro lado e dentro de algum as sem anas se puder fazer conhecer o plano da reorganização industrial do País, co m p o rta n d o apenas, com o é razoável, alguns aproveitam entos e indústrias-base, h arm ónicos com o m eio natural e eco­ nóm ico português, ver-se-ão com mais clareza as grandes linhas dentro das quais se há-de desenvolver a nossa actividade e com o se pensa assegurar o trabalho e o pão dos portugueses por meio de uma econom ia nacional. Em nosso pensar a econom ia nacional deve servir a Nação; é o seu fim; é a sua razão de ser. M as por que m eios se garantirá este destino? Os term os «nacional», 498

XXXI. Os Principios e a Obra da Revolução... «nacionalista», «nacionalização» aplicados á economía prestam-se a mal-entendi­ dos, porque em muitas partes se lhes dão significados diversos; mas nós não temos dificuldade em expor claramente o nosso pensamento. A economia nacional não pressupõe nem exige que o Estado absorva as empresas particulares e dirija os monopólios, mesmo quando a actividade destes é essencialmente um serviço público. 0 nosso nacionalismo é anti-socialista e desadora o estatismo, pela dupla razão de a experiência portuguesa no-lo haver demonstrado anti-económico e fazermos profissão de fé na iniciativa individual e no valor dos grandes campos de acção privada para a defesa da própria liber­ dade humana. A economia nacional não é necessàriamente autárquica, no sentido de insufi­ ciência e de isolamento, orientação que de um lado esbarra com a multiplicidade das trocas e a interdependência da vida moderna, e do outro provoca desvios con­ trários ao melhor aproveitamento e divisão do trabalho no mundo. Finalmente a economia nacional não impõe o exclusivismo em favor do capital ou do trabalho nacionais contra o capital ou o trabalho estrangeiros, que aceitamos pela sincera adesão a princípios de colaboração internacional e pelo convencimento dos seus benefícios. Nós somos entre todas as nações uma das que mais liberais e generosas se mostram para com os estrangeiros; nenhuma legislação ou tradição excedem a nossa em facilidades, atenções, direitos dos nacionais de outros países, em quase tudo equiparados em Portugal aos portugueses. Aos capitais aplicados no País asseguram-se garantias, favores e privilégios de que os nacionais raramente gozarão. Respeitamos por educação e princípio, senão por lhe reconhecermos van­ tagem, ampla liberdade económica. Na última crise já as grandes nações chamadas livres tinham restringido o trabalho estrangeiro, bloqueado créditos, dificultado transferências de dinheiro, proibido a circulação de capitais, alterado por muitas formas as correntes comerciais e financeiras e ainda nós, quase ilha perdida no mar das restrições, conservávamos abertas de par em par as portas da nossa casa e mantínhamos com escândalo do mundo a liberdade de importações, de câmbios, de circulação de capitais. Somos assim. Reconhecemos lealmente dever ao capital, à técnica e à iniciativa estrangeira, designadamente ao capital inglês, parte importante no progresso do Pais, metropo­ litano e colonial. A timidez do nosso capital que tradicionalmente prefere o rendi­ mento fixo do papel do Estado à aventura dos grandes empreendimentos, nos quais a possibilidade de maiores lucros é a contrapartida dos ricos, tem nisso parte de res­ ponsabilidade; a outra parte está na atitude dos governos que receiam por vezes ter para com o capital português as mesmas deferências, cuidados e garantias que mais fácilmente se concedem ao capital estrangeiro. Dados tais princípios e tradições de liberdade e colaboração internacional, como há-de pôr-se o problema da nacionalização da nossa economia? Respondo: em princípio todo o factor económico pertencente ou trabalhando no seio da Nação Portuguesa deve estar integrado na economia nacional, servir primariamente a economia nacional, seguir as suas directrizes, obedecer ao seu comando. Não pode499

Discursos

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Oliveira Salazar Notas Políticas • 1938 a 1943

mos ser ingénuos ao ponto de supor que tais elem entos estrangeiros não fazem tam bém parte da sua econom ia de origem , nem que não seja senão pelos rendimen­ tos auferidos, colocações pessoais, repercussão no co m é rcio extern o - e há muito mais coisas além destas; mas podem os ter su ficie n te e spírito de ordem na nossa casa, já não digo bastante orgulho, para pretender que em Portugal a nacionais e estrangeiros se im ponha em prim eiro lugar o interesse português, a vida da Naçáo Portuguesa. Esta não poderia pretender ter su ficie n te liberdade nem suficiente segurança, se as posições-chave da sua econom ia não obedecessem à ordem nacio­ nal mas ao com ando estrangeiro. À luz destes princípios, que são fru to de sim ples bom senso e de alguma experi­ ência, a lei recente, chamada de nacion alização de capitais, não traduz agressivi­ dade nem sequer falta de apreço ao capital estrangeiro que trabalha ou deseje vir trabalhar no cam po m etropolitano ou colonial, ainda a berto a m uitas e vastas ini­ ciativas; mas antes um convite, in citam en to e até prova de co nfian ça no capital português para que tome, em harm onia com a sua im p o rtâ n cia e disponibilidades, 0 lugar que lhe com pete no progresso e coesão da nossa econom ia. Eu penso que 1 dura lição que recebeu nos últim os tem pos em suas peregrinações por países Istranhos, ju n to à dem onstração da nossa capacidade adm in istrativa, o convence­ rão a valorizar e enriquecer o País de cujo tra b a lh o provém e a Nação a que antes de tudo se deve. 4.

O R G A N IZ A Ç Ã O N A C IO N A L

A N ação P o rtu g u e sa com o ente h is tó ric o e m o r a l

O liberalism o com o grande p rin cípio o rie n ta d o r da e co n o m ia nacional ou inter­ nacional e a confiança na sua virtu d e para uma espécie de ordenam ento espontâ­ neo da vida económ ica m orreram: os a co n te cim e n to s estão procedendo ao seu enterro, por não haver esperanças de ressuscitar. M e sm o qua abstraiamos das grandes necessidades dos novos e das lições que a guerra tro u x e para a condução da econom ia e em geral do conjunto da a ctiv id a d e de uma Nação, aparece a todos os espíritos com o imperiosa qualquer form a de org a n iza çã o nacional. Nós procu­ ram os fu g ir ao socialism o e ao com unism o por m eio das corporações, aplicado o p rin cípio da organização corporativa não só à a g ricu ltu ra , co m é rcio e indústria, isto é, a actividades directa e puram ente lucrativas, mas a a ctiv id a d e s espirituais e m orais que com elas coexistem e têm na vida tan ta im p o rtâ n cia, pelo menos, como o pão do corpo. Na verdade am esquinharíam os o co nceito de Nação quando nela víssemos ape­ nas a com unidade dc agricultores ou com erciantes que exigem do Estado a protec­ ção e desenvolvim ento dos seus interesses m ateriais. Q uando se é velho e se tem, além de alguns séculos, uma História, sente-se que existem ou tro s valores, e estes são ao mesmo tempo patrim ónio e im perativos da vida nacional. A razão manda que um se conserve e aos outros sejamos fiéis. 500

XXXI. Os Principios c a Obra da Revolução... Quando, ao lado da ponte ou da estrada que lançamos para comodidade dos povos, reparamos o castelo ou o monumento, reintegramos a pequena igreja secu­ lar ou o mosteiro abandonado, alguns não vêem que trabalhamos por manter a identidade do ser colectivo, reforçando a nossa personalidade nacional. E é isso que fazemos. Aquelas qualidades que se revelaram e fixaram e fazem de nós o que somos e não outros; aquela doçura de sentimentos, aquela modéstia, aquele espí­ rito de humanidade, tão raro hoje no mundo; aquela parte de espiritualidade que, mau grado tudo que a combate, inspira ainda a vida portuguesa; o ânimo sofredor; a valentia sem alardes; a felicidade de adaptação e ao mesmo tempo a capacidade de imprimir no meio exterior os traços do modo de ser próprio; o apreço dos valo­ res morais; a fé no direito, na justiça, na igualdade dos homens e dos povos; tudo isso, que não é material nem lucrativo, constitui traços do carácter nacional. Se por outro lado contemplamos a História maravilhosa deste pequeno povo, quase tão pobre hoje como antes de descobrir o mundo; as pegadas que deixou pela terra de novo conquistada ou descoberta; a beleza dos monumentos que ergueu; a língua e literatura que criou; a vastidão dos domínios onde continua, com exemplar fideli­ dade à sua História e carácter, alta missão civilizadora - concluiremos que Portugal vale bem o orgulho de se ser português. Sob o aspecto moral e àparte o valor eterno de alguns princípios, aquela política a que chamamos «do espírito», no mais amplo significado, gira toda à volta de uma dupla reabilitação - a de Portugal no ânimo dos portugueses e a dos portugueses no concerto das Nações. Uma e outra eram necessárias; ambas as empreendeu e levou a cabo a Revolução. II. A REVOLUÇÃO NO M O M EN TO IN TE R N A C IO N A L

Falta o segundo ponto - os princípios e o obra da Revolução no momento inter­ nacional. Isto equivale a perguntar se os referidos princípios e obra têm algum valor como elemento de política externa e como factor construtivo no mundo de amanhã. Por mais presunçosa que a pergunta pareça, ousarei explicar a sua razão de ser. 1. OS PRINCÍPIOS E OBRA DA REVOLUÇÃO COMO ELEMENTOS DA POLÍTICA E X T E R N A

Das duas questões a primeira resolve-se por sí. Se a Revolução ordenou a casa lusitana, refez e fortaleceu a sua economia, despertou o patriotismo, provocou a unidade e a coesão das forças nacionais, reorganizou e dotou o Exército e a M ari­ nha, ganhou prestígio pelos princípios que defende, a obra que realiza, a colabora­ ção que se tornou capaz de prestar, nenhuma dúvida pode existir de que não só criou è Nação condições de melhor se determinar como de seguir com dignidade entre as mais o seu caminho. Não vale a pena insistir. Se o País ordenado e ordeiro, liberto de inglórias lutas partidárias e das suas permanentes ameaças ou factos

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 revolucionários, com algum a consciência e segurança de si, respeitado pelo se balho e correcção, não estivesse em m elhores term os para definir, no qu< dependesse, a sua linha de conduta internacional, não sei co m o havia de divi tom á-la ou defendê-la no m eio da desordem p olítica, e co n ó m ica e social, n; presa diária dos governos e dos acontecim entos e no tu m u lto das paixões ai das quais tão difícil é im iscuir-se um pensam ento alheio. Naquelas circun stân cias o governo pôde d e fin ir n o c o m e ço do actual co a sua posição de n eutralidade — n e utra lidade não in c o n d ic io n a l, co m o é evic porque não haveria de esquecer nem im p o siçõe s da d ig n id a d e da Nação, superiores interesses do País, nem a existência da a lia n ça in glesa que em mon tã o escuro e d ifíc il não quisem os d eixar de re a firm a r lealm en te. Não fujo a s ific a r de delicada uma tal situação, não só p orq u e em to d o s os cam pos pc mos am izades, mas porque estão de fa c to e n vo lv id a s na lu ta nações a quen ligam tão estreitos laços de cam aradagem p o lític a e tã o p ro fu n d o s afectos< à Inglaterra e ao Brasil. Nem se pense que a n e u tra lid a d e se m antém sem ia d o , esforço ou despesas, e é com o regato que d e sliza m anso nos prados € :ncontra mesmo algum a pedra que de leve arrepie a co rre n te ou a force a torcer se. É apenas positivo que a n e u tra lid ad e p o rtu g u e sa se tem conser através dos mil obstáculos que se viu obrigada a vencer: salvo, qu an to ao J í o caso, ainda pendente de Timor, ela tem m e re cido o re sp e ito de todos; e j que também nós a tem os respeitado. Além do esforço interno e do respeito alheio, v a lio s o a p o io de ordem ext nos veio da política de am izade com a Espanha, que f r u t if ic o u n o cham ado «b peninsular». Não só a ca ta stró fica e xten são do c o n flito co m o consideraçõe ou tra s ordens levaram a co n c lu ir co m o desejável se m a n tiv esse uma zona de na Península, por nós desde o p rin cíp io defendida, a tra vé s da neutralidadi P ortu ga l e da Espanha. A s a finidade s existentes, as re co rd a ç õ e s da guerra cr com preensão dos interesses m útuos e gerais, p o ssib ilid a d e s fu tu ra s da coop ção peninsular no m undo estão na base dessa p o lític a e devem garantir o ló g ico desenvolvim ento. Vejamos agora o ou tro problema. 2. P O R T U G A L N O M U N D O D E A M A N H Ã

Se estranhos ao co n flito, pareceria natural nos considerássem os alheios aos? resultados. M as não é assim, porque os países que não lutam , estão com o os ou na guerra. A razão encontra-se na extensão desta, no fa c to da solidariedade in nacional e no propósito de os grandes condu tores aproveitarem o m om ento p reform ar o mundo. Reform ar o m undo quer apenas d ize r estabelecer algui regras de vida para a com unidade internacional e fo m e n ta r o dom ínio de id< p o lítico -so cia is aptas a m elhorar a vida dos hom ens e a a ctiv a r o progress bem -estar dos povos. Espera-se uma nova ordem, dependendo precisamente desfecho da guerra saber-se quem a definirá. Por d eclaraçõ es autorizadas ela t 502

XXXI. Os Principios c a Obra da Revolução... aliás de ser aceite de boa vontade ou por meio de coacção. Eis porque em qualquer caso nos respeita e importa. Como é natural, embora a vida de amanhã não dependa em muitos pontos do sinal da vitória e a civilização se vá alimentar de ideias que fermentam já por toda a parte através e apesar do conflito, criando ambientes parecidos em toda a exten­ são dos países da Europa e da América, com sua projecção africana, é certo que os processos, senão mesmo algumas soluções, dependerão dos vencedores e da posi­ ção relativa das suas forças no momento em que o conflito termine. Por este motivo talvez e porque a guerra infelizmente ameaça ainda durar muito, nem de um lado nem do outro se tem ido além de afirmações vagas que deixam no escuro por prudência ou pela força das dificuldades alguns elementos essenciais. Assim, ainda que fosse lícito e conveniente, não se estaria habilitado a discutir. Por mim manifesto o receio, porventura injustificado, de três tendências na arrumação do mundo: a ambição do óptimo, ou seja o domínio do irreal nas aspira­ ções; o vinco da guerra nos hábitos de colectivização da vida; o primado do econó­ mico, isto é, a inteira subordinação das soluções às exigências da economia, o que fará perder à civilização o encanto e valor de grande criação humana e poderá revolucionar o mundo sem encontrar o caminho da paz. Seja como for, tudo há-de partir destas duas bases elementares - a ordem e a colaboração internacional. Salvo o comunismo que há-de continuar sendo elemento de desordem, a ime­ diata preocupação será que a ordem se não altere onde existe e se estabeleça onde se afundou. 0 problema tem tal extensão e gravidade, pelos ódios, o rastro das vio­ lências, a miséria e outros efeitos da própria guerra, que nenhuma direcção sensata dos acontecimentos pode atentar contra a organização interna de qualquer Estado que por si próprio seja garantia de ordem. Só o comunismo não raciocinará assim. Ele constitui, a meu ver, o maior problema humano de todos os tempos, quero signi­ ficar, um problema de conceitos básicos de humanidade e de vida individual e social, e por consequência grave risco para a civilização ocidental ou cristã. Parece não se ter nunca esgotado tão completamente numa experiência social determinado prin­ cípio de vida, nem tão completamente confiado à ciência, à técnica, à organização aquela parte de iniciativa e de espontânea humanidade que faz a doçura, a riqueza, a atraeção de outras formas do compreender a vida e o homem. Verifica-se que pode haver todas as marcas do chamado progresso material - potencial militar, máquinas e indústrias de maravilha - conjuntamente com a diminuição o afunda­ mento de consciências livres. Onde o Estado e a máquina absorvem o homem não há lugar para a liberdade humana. É duvidoso que, sejam quais forem as solidarie­ dades necessárias do tempo de guerra, estes aspectos essenciais possam alguma vez ser esquecidos. A estreita colaboração entre os povos, que a todos se afigura condição necessá­ ria da paz e bem-estar futuro, em que bases assentará? A resposta tem grande valor para nós, cujo nacionalismo económico e político pode encontrar-se por 503

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1938 a 1943 aquele fa c to fora da linha geral da reorganização do m undo, com a correspondente necessidade de ajustam entos futuros. 0 fa c to de as guerras nascerem de conflitos entre nações - e agora lhe com eçam os a ver aspectos in te r-con tin e n tais - induz naturalm ente m uitos espíritos a buscarem rem édio para tã o grandes catástrofes em form as de organização súper-nacional, co n tin e n ta l ou m undial. Não está no meu espírito nem é da doutrina da nossa Revolução negar a interdependência e solida­ riedade dos Estados nem a necessidade de uma fórm u la de organ ização ou trabalho internacional que resolva eficientem ente os problem as co m u n s ou a cooperação a prestar. Digo apenas ser minha sincera co n v icçã o que o hom em do século XX não está habilitado ainda a ver, a resolver os problem as do m u ndo senão através das existências nacionais, livres e independentes. Im aginações exaltadas, políticos de gabinete apaixonados das fórm ulas abstractas e d esp reocu pados das muitas reali­ dades que entretecem a vida das nações acharão que é possível melhor. Os homens prudentes encontrarão porém que a base nacional será ainda a mais sólida, fácil e ;senta de perigos para nela se assentar a co la b o ra çã o dos povos conducente ao lem -estar comum. Nesta orientação, assim com o quanto mais sólida e estável fo r a organização familiar, mais coesa e sólida é a própria nação, assim tam bém quanto mais nítida, mais forte e independente fo r dentro do seu p róp rio te rritó rio a autoridade do Estado, quanto mais ordenada e sólida e nacional fo r a sua econom ia, mais fáceis serão os convénios de interesse internacional, m ais pron ta m e n te tom ados e obede­ cidos os com prom issos ou norm as que im portem a uma co m un idade de nações. Em p olítica os problem as s im p lific a m -s e pela d e lim ita ç ã o de fron teiras e de poderes. 0 p rin cíp io é que nem duas so b e ra n ia s num te rritó rio nem competên­ cia de autoridades para a mesma a ctu ação . A regra a p lic a -s e tam bém aos terri­ tó rio s coloniais, acerca dos quais algum as ideias c o rre n te s e stã o longe de ser cla­ ras e inofensivas. A questão do direito de acesso às matérias primas (tendo-se em mente sobretudo as de origem colonial) nasceu precisamente quando ninguém se lembrava de recusá-las e o único problema era de facto vendê-las. Apuradas as coisas, viu-se bem que, em tempo de paz, dada a existência de países coloniais não industrializados e de nações grandes produtoras de matérias primas que anseiam por lançar no mercado mundial, nenhuma dificuldade real pode existir senão a de deficiência de meios de pagamento, ou seja, a da diferença de meios circulantes, no fundo afinal um problema de sobera­ nia - que era aonde se queria chegar. Há portanto grandes ilusões em se crer que regi­ mes de condomínio, mandato, porta-aberta e semelhantes resolvam qualquer questão, a não ser que o fim a atingir seja apenas com plicar os problemas, tirando a uns o que descobriram, conquistaram, administram e civilizam , para disfarçado traspasse em benefício de terceiros. Por esses motivos e ainda pelo que todos devem à justiça e nós à nossa própria História, e embora a questão não nos respeite, com o supomos, pru­ dente se deve afigurar a linha política que, quanto às províncias portuguesas do ultra­ mar, o A cto Colonial definiu e a Revolução incansàvelmente defende. E mais nada. 504

XXXI. Os Principios e a Obra da Revolução... III. CONCLUSÃO - P A L A V R A S D E SA G R A D Á V E IS

Vou terminar e sinto ter de dizer, antes de concluir, algumas palavras desagradá­ veis e duras. O Governo tem e eu pessoalmente tenho também grandes responsabilidades na falta de preparação do espírito público para as dificuldades inevitáveis e os sacri­ fícios impostos pela guerra. Para poupar o mais possível a Nação na sua vida nor­ mal, não se seguiu o critério, por outros adoptado, do permanente estado de alarme. Porventura se lhe deviam ter feito conhecer em minúcia as dificuldades políticas e económicas que a cada momento se têm de vencer, os atritos, as discus­ sões, os riscos que corre a nossa neutralidade, a crise permanente da paz nos que ainda a conservam. Daqui vem que o português está mimoso deste tratamento paternal, se mostra insofrido, despreocupado, pouco compreensivo. 0 Governo não se irrita se pobre gente que precisa absolutamente de um pouco de carvão ou de azeite se lastima de o não ter ou do tempo que perde para consegui-lo. Mas não pode desculpar àqueles a quem não falta o indispensável a sua intolerância, porque nem sempre obtêm aquilo de que aliás em boa consciência não precisam. A nossa atitude digna perante a imensa desgraça da guerra, os milhões de seres que morrem de fome, de miséria e de dor, não é um vago sentimento ou palavra de comiseração, deixada cair com indiferença real, mas a modéstia, a renúncia, a paciência que ao menos traduzam, na falta de auxílios por vezes impossíveis, a ver­ dade de uma comunhão ou ambiente moral. Como está longe destes sentimentos o egoísmo calculista e ganancioso que pode iludir a lei para meter em cofre a misé­ ria alheia! Outro ponto. A crise do mundo não é imagem literária; a sua gravidade e pro­ fundeza, a sua extensão, os interesses e conceitos que estão em jogo fazem tre­ mer nos alicerces as nações e os impérios mais bem constituídos. Repito uma frase de há pouco: nós não estamos em luta mas estamos na guerra, como os outros. Enquanto o Exército que fez a Revolução ocupa os postos que lhe foram indicados, a Nação tem o dever de mostrar a sua unidade, força e coesão, numa palavra, plena consciência nacional. Devo louvá-la por essa atitude sem prejuízo de censurar alguns portugueses que de uma ou outra forma trabalham por des­ truir a armadura moral do País, quando se sabe ser esta um dos maiores factores da nossa defesa. Alguns alimentam a sua actividade de esperanças que ninguém lhes realizará; outros procuram justificar-se com a sua discordância da política seguida, como se, fora dos ignorantes ou irresponsáveis que não têm elementos para julgar, alguém possa supor que ela podia ou devia ser diferente do que até ao presente tem sido, na defesa do mais bem compreendido interesse nacional. Sabemos que outras grandes crises europeias ameaçaram semelhantemente divi­ dir-nos à volta de interesses estranhos; mas agora o Governo não pode ser acu­ sado nem de falta de lealdade, nem mesmo de esquecer deveres especiais de fide­ lidade a relações criadas por séculos de interesses comuns; o que tem procurado

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Discursos

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Oliveira Salazar Notas Políticas • 1938 a 1943

ao m esm o te m po é ser digno, em bora d e n tro d a q ue la larga e condescendente benevolência que é a a titu d e dos am igos, ainda q u a n d o n ão são m ais fracos. Que entre nós alguns estra n ge iros se queixem , a d m ite -se p o r m al habituados; que portugu eses tam bém nos ataquem , isso só qu er d ize r que a sua m edida de digni­ dade p a trió tica não é a nossa. A nossa to m á m o -la d a q u e le s portugueses que valiam mais do que valem os e fize ra m uma H istó ria e cria ra m uma Nação que som os obrigados, m esm o co ntra alguns, a re sp e ita r e a defender.

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____4 DISCURSOS

E NOTAS

POLÍTICAS

19 4 3 A 19 50 '

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No XXV Aniversário da Revolução Nacional «O povo tomou-o pdo singeleza e afabilidade do trato, a bondade inata, a gen­ tileza do porte, a desafectaçõo total, o desprendimento dos interesses e das situa­ ções, a elegância das atitudes morais. Em ninguém se viu mais perfeito essa difícil e raro conciliação da humildade na pessoa e da dignidade no poder. Tão frágil que a brisa ameaçava tombá-lo, tão forte que uma revolução o não podia subverter nele claramente se via a imensa força dessa coisa delicada e inacessível que nos homens se chama a consciência. Sem mais experiência que a de breve e desagradável passagem pelo Governo e pelo antigo Parlamento, nem outra preparação que a que lhe advinha dos estudos militares e especialmente da história e da estratégia, tão afim da arte política no seu próprio pensar como no consenso geral, deu as provas máximas de chefia pela prudência, a inteira consagração ao dever, o sentido do possível, o firmeza nas posições fundamentais. Naturalmente sujeito à interpretação vário dos factos e dos homens, refugiava-se na independência do seu próprio juizo e, achado o rumo, seguia-o até ao fim. Segui-lo-ia em quaisquer circunstâncias, as mais adversas, porque o dever para com a Nação não comportava para ele atenuantes no seu absoluto. E no entanto eram redutíveis a muito pouco os principios norteadores da sua actuação, afinal recomendáveis urbi et orbi: na administração, o economia e a honestidade; no Governo, a supremacia do interesse nacional; na política, a verdade e a justiça acima das conveniências; na sociedade, a benevolência para com todos, a caridade para com os fracos e desprotegidos da sorte. Com esta couraça moral, a força do poder só podia traduzir-se em acrescida realização do bem comum.» Salazar

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I. NO 7.° ANIVERSÁRIO DA POSSE DE MINISTRO DA GUERRA íl) Resposta aos cumprimentos da oficialidade{2] A V. Ex.a, Senhor General, e aos senhores oficiais que, em seu nome e em repre­ sentação dos seus camaradas, tiveram a bondade de vir aqui, agradeço do coração a sua presença, as suas palavras, o seu aplauso. Não haveria sinceridade em dizer que estas manifestações de apreço me deixam indiferente, e muito menos o poderia afir­ mar em face do Exército, solidário pelas origens e constante apoio com a obra da Revolução, e ao qual nos graves momentos que vivemos estão de modo particular confiadas a honra e dignidade do País e a defesa dos seus maiores interesses. Não

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Em 11 de Maio de 1943. Palavras do general Peixoto e Cunha, governador militar de Lisboa:

«Sr. Presidente do Ministério e Ministro da Guerra: É motivo de satisfação para todos os oficiais do Governo Militar de Lisboa, por mim e por tcdos os comandantes de unidades, chefes de serviços e de estabelecimentos aqui representados, realizar-se no dia de hoje a homenagem que as eloquentes e patrióticas palavras por V. Ex.* pronunciadas em 27 de Abril nos incitaram a prestar-lhe, pois nos permite assim, na pessoa de V. Ex.*, saudar também o Ministro ilus­ tre e clarividente que há sete anos tomou a seu cargo a defesa nacional e iniciou e vem realizando a grande obra do rearmamento do Exército. ■Sabemos bem que ao seu espírito, avesso a exibicionismos e à colheita de aplausos, se não encontraria justificada a nossa vinda aqui.se se tratasse apenas de mais aplausos a juntar a tantos outros que deve ter recebido. Também os não cultivamos e só para isso não me atreveria a vir interromper o seu constante labor. Porém, porquê fazemos parte do Exército que em 28 de Maio de 1926 lançou a Revolução Nacional e desde então não tem deixado de apoiar a sua execução, talvez mais do que quaisquer outros prestamos atenção á sugestiva síntese, tão clara e tão verdadeira, dos «princípios e da obra já realizada». Ela foi por nós todos devidamente apreciada e, queremos afirmá-lo aqui, «compreendida». Compreendemos que muito se fez já, graças à sua inteligência, ao seu saber, à sua energia e tenaci­ dade, que têm permitido vencer tantos atritos, e tantos e tão grandes obstáculos, que têm o seu ponto culminante na guerra, dificultando grandemente a marcha da Revolução, que, em outras circunstâncias, nos haveria já conduzido a um Portugal maior e melhor. Compreendemos que as dificuldades crescentes aumentarão ainda à medida que a guerra se prolongue. Compreendemos a absoluta necessidade de uma forte «coesão» que, fortalecendo a «Unidade Nacio­ nal», constitua, como V. Ex.* disse, a nossa armadura moral e um dos maiores factores da nossa defesa. Para ela tem o Exército contribuído pelo seu trabalho silencioso, mas continuo, de preparação, pela sereni­ dade que tem mantido perante a exacerbação das paixões e as próprias dificuldades materiais do momento presente; contribuindo ainda pela sua isenção, patriotismo e firmeza para que não aumente a desordem nos espíritos, decidido como está a combater enèrgicamente toda a espécie de desordem nas ruas. Esta nossa firme e clara atitude, esta nossa dedicação exclusiva ao «bem da Nação» que, orgulhosa­ mente o dizemos, nos caracteriza, bem como a V. Ex.*, não só nos aproxima como tem ajudado a estabe­ lecer entre nós e V. Ex.* o espírito de compreensão que vimos aqui afirmar. Pode V. Ex* contar com ele, com a nossa Fé, com a nossa Confiança, em todas as circunstâncias, porque saberemos servir sempre a causa sagrada da Pátria, combatendo os seus inimigos externos e internos.»

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Oliveira Salazar Discursos c Notas Políticas • 1943 a 1950 houve qualquer mérito em prever que estes momentos chegariam em breve, mas apenas lógica de governo, ao pressenti-lo, em preparar material e moralmente o Exército para o encargo que a Providência determinasse em seus altos desígnios con­ fiar-lhe para segurança ou maior glória da Pátria. Essa tarefa, em seguimento aliás de trabalhos anteriores, tem-me certamente imposto grandes preocupações e um acrescido trabalho de coordenação no seio do Governo. 0 grande esforço, porém, as continuas vigílias, o maior peso, têm recaído sobre o Sr. Subsecretário da Guerra, a quem o Pais e a força armada são devedores de uma vida que sem alardes se lhes tem sacrificado e de uma obra de engrandecimento e regeneração que só se faz uma vez em cada século e firmemente esperamos perdurará no actual. Devo dizer em abono da verdade que as maiores dificuldades têm provindo da nossa insuficiência industrial e das necessidades de guerra das outras nações - d ifi­ culdades materiais em suma. Porque os homens encontramo-los em geral com a boa vontade de sempre, inteira compreensão e esse espírito magnífico de sacrificar-se e de servir que é a alma dos exércitos e mesmo em momentos cruciais o segredo da força das nações. Eis por que desejo relembrar neste momento o exemplo dos cama­ radas que nas ilhas ou no ultramar português cumprem o seu dever de guardiões da integridade nacional, nos postos avançados em que amanhã os podereis substituir, não sabendo cada qual nunca a hora ou o lugar dos máximos sacrifícios. Longe e dispersos, eles encontram-se em inteira comunhão connosco, e no meio de tantas preocupações é consolador verificar como este pequeno país retempera nas dificul­ dades a sua alma heróica e sempre tira a maior força da sua unidade. E com o lou­ vor merecido pelo que essa unidade vos deve, renovo os meus melhores agradeci­ mentos e votos sinceros pelo engrandecimento e glória do Exército Português.

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II. PROVIDÊNCIAS MILITARES E SUA FINALIDADE Nota Oficiosa 111 A propósito de algumas providências militares recentemente tomadas, notou-se que a especulação adversa se excedeu em conjecturas fantasistas com intuitos que não devem ter sido propriamente manter no espírito público uma séria e salutar preocupação em harmonia com a gravidade dos acontecimentos em todo o Mundo. Por esse motivo e para ulteriormente melhor se poderem definir e tomar responsa­ bilidades, esclarece-se: 1. ° As recentes aquisições e recepção de material de guerra em quantida­ des apreciáveis, de que a revista de 1 de Agosto pôde dar ao povo de Lisboa uma pequena demonstração, permitem aos Ministérios da Guerra e da Marinha encarar problemas de instrução e de defesa com maior amplitude que até ao presente; 2. ° Nesta conformidade, está decidida a realização no final de Setembro e durante o mês de Outubro de exercícios e manobras anuais para instrução dos qua­ dros e adestramento de tropas; 3. ° Na mesma orientação serão simultaneamente executados exercícios de defesa civil e militar do Território, por intermédio da Legião Portuguesa e de outros organismos ou serviços; 4. ° Embora não seja de prever nenhuma alteração na situação do País quanto à guerra, basta o desenvolvimento da situação internacional e os perigos que com­ porta para que se imponham aos povos a maior gravidade e aos Governos a maior prudência e cuidado no desenvolvimento da sua máquina defensiva, a qual, segundo as tristes exigências dos tempos, tanto pode ter de servir contra inimigos externos como contra os veículos internos de desagregação nacional; 5. ° Acresce no nosso caso que pode haver necessidade de reforços nas coló­ nias, em harmonia com a evolução dos acontecimentos que lhes respeitem, e em qualquer hipótese há a de render forças que há muito tempo ocupam postos de vigilância fora do continente, pelo que devem considerar-se naturais certos movimentos militares; 6. ° Contrastando com os receios infundamentados de uns e a ligeireza e despreo­ cupação de outros, o Governo entende que a situação internacional geral, embora nos tenha permitido viver a nossa vida com mais ou menos dificuldades, continua

Na posse da nova comissão executiva da União Nacional, em sessão realizada numa sala da biblioteca da Assembleia Nacional, em 4 de Março de 1947.

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estranha das nossas coisas. Limitam-se a repetir-se uns aos outros e vários reper­ cutem com fidelidade o eco dos obreiros desocupados da oposição. Isto não quer dizer nada senão que o mundo político se alimenta, além da medida, de certo número de clichés e de certo número de frases feitas em que não se consegue encontrar sentido que se entenda, expressão de realidades, vida ou guia para a acção política ou social. Para alguns continuamos, pois, a ser uma «ditadura» apoiada num «partido único», sem embargo da existência de uma Constituição plebiscitada, do Chefe do Estado eleito por voto directo do povo, da função legislativa compartilhada entre o Governo e uma Assembleia eleita, do Poder Judicial independente, do Governo na exclusiva dependência do Presidente da República, como em todos os presidencia­ lismos americanos. E li também em artigos, entre compungidas e sarcásticas, bas­ tas alusões ao embaraço, à perplexidade, às dificuldades «para sairmos da actual situação». Mas não desejamos sair; pretendemos ficar. E somos nós quem pergunta como vai sair da situação em que se encontra a massa dos nossos críticos. Porque o problema é este. A Europa - e podemos dizer com segurança o Mundo tem diante de si duas grandes tarefas: uma a da reconstrução material e moral, imposta pelas ruínas e desperdícios dos anos de guerra, a qual exigirá ordem, traba­ lho intenso, direcção económica; outra, a da integração no Estado de massas a cada momento chegadas à maioridade política ou social, sem prejuízo daqueles valores que dão elevação e sentido à vida da colectividade. Qualquer destas tarefas — e as duas por acréscimo - exige um Estado forte, suficientemente expressivo da cons­ ciência da Nação, independente e sobranceiro aos interesses particulares, de grupo, classe ou seita. É este o caso, e não temos agóra mais que perguntar se, em geral, se está apetrechado politicamente para semelhante trabalho. As monarquias e as repúblicas que se desfizeram ou restabeleceram, as paixões que se desencadearam, as constituições que apenas se esboçaram ou puseram em vigor, as eleições acreditadas ou suspeitosas, os partidos criados ou subdivididos, os programas de compromisso, os elencos de transição, os governos paralisados pelas limitações da sua origem ou formação, as combinações parlamentares ou partidá­ rias à margem ou mesmo contra as indicações eleitorais, a constante substituição ou ausência de conceitos-base são aparelhagem política adequada às novas neces­ sidades ou apenas os sinais de decadência de sistemas que ora a si próprios se con­ tradizem para agir ora se abandonam impotentes aos efeitos da dissolução? Para nós não é duvidosa a resposta, mas a longa permanência de certo quadro político criou hábitos que parecem não permitir à maior parte conceber regimes em que a existência de partidos não seja peça essencial. Daí a estranheza senão as críticas. Reconheça-se o facto sociológico de divergências de opinião ou de oposições — só a Rússia realizou o milagre da unanimidade nacional ao redor dos sovietes; mas do reconhecimento do facto até à possibilidade de sistemática e permanente organização, daqui à formação de partidos como órgãos políticos e depois às ten­ tativas de admissão destes como órgãos constitucionais, é longo o caminho per­ corrido e todo, ao menos nos países latinos, na direcção do enfraquecimento do 608

XXIV. G overn o e P olilica

poder. Em muitos casos o Estado não é detentor de poder; noutros o poder existe fora do Estado, a seu lado ou em competição com ele. Não julgo que tal situação corresponda às necessidades. 0 partido único, conduzindo ao totalitarismo do Estado, está claramente fora da nossa doutrina e da nossa ética política, como é repudiado pela consciência mundial. Por outro lado, a lógica e até a justiça impõem ou uma organização de Estado em que o partido não tem função ou o reconhecimento de tantos quantos os ideais ou inte­ resses, transitórios ou duradouros, que seja possível organizar, com capacidade ou não de entrar na formação de um órgão representativo. Mas esta última conclusão, por mais lógica que se revele, começa já a não ser admitida, em nome da necessidade geral de governos eficientes, pelos mesmos defensores dos princípios que a impõem. Assim vai o Mundo sem atinar com a forma como há-de ser governado. II.

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Nós sentimos em Portugal todas as dificuldades lógicas e práticas procedentes do facto de o regime não ter ainda concluído a sua evolução. Esta exigiria não só o trabalho completo da organização prévia de todas as actividades nacionais como um período de estabilidade interna e externa e a ausência de dificuldades de toda a ordem que têm sido o pesadelo geral. E ainda que a vida interna de cada país não dependa - ou não deva depender — da vida internacional, todos compreenderão como a exacerbação das paixões, a disputa dos interesses e das influências, o tumulto ideológico dos últimos anos não se revelaram propícios ao complemento de certas reformas constitucionais. Isto é assim por força das coisas, mas o facto tem-nos imposto uma espécie de compromisso entre sistemas e lógicas opostos e a necessidade de recorrer mais do que seria de razão a um eleitorado de tipo individualista, sujeito, como todas as massas eleitorais, à influência de factores estranhos à pura consciência do interesse nacional. Não só a eleição do Chefe do Estado, que é na Constituição portuguesa a chave de todo o sistema, se tem de repetir em prazo certo - curto para o nosso desejo, longo para o sacrifício de quem exerce o mandato — como a Assembleia Nacional e outros órgãos da Administração são dependentes do recurso a eleições do mesmo tipo. Nestas circunstâncias, não julgo haver forma de eliminar todos os riscos ou de evitar todas as más consequências da luta nesse terreno. 0 que me preocupa acima de tudo - e deve preocupar-nos a todos - é não se tratar no caso presente de esco­ lher entre pessoas, todas supostas portuguesas e patriotas, mas entre princípios que no fundo são a Nação ou o partido, a Nação ou os interesses, a Nação ou as paixões de que ela mesma seria vítima. Depois de vinte anos de doutrinação e de exemplifi­ cação de um Estado nacional de todos e para todos os portugueses, temos visto como persistem antigos hábitos mentais, velhas posições ou atitudes de partido e guerra civil. No descalabro em que se encontra o Mundo, na falta de grandes orientações doutrinárias que de fora acreditassem outras ideias e processos de governo, 609

D iscu rsos

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nalguns casos por espírito oposicionista apenas, vê-se que alguns portugueses não encontram outro caminho ou actividade possível do que agitar as suas antigas fór­ mulas, esvaziadas de sentido pelo tempo. Não só em Portugal ressuscitam mortos; mas entre nós - e sem qualquer intuito de crítica - parece-me que nem mesmo tem havido o cuidado de renovar o guarda-roupa, isto é, os discursos, as diatribes, as figuras de retórica. E os mesmos, precisamente os mesmos que partiram as cartei­ ras, não puderam governar quando eram Governo nem deixaram governar quando eram oposição, pretendem voltar a S. Bento, se o povo os eleger; ah! mas agora, pés juntos, mãos nos joelhos, olhos baixos, ar respeitoso, muito bem comportadmhos... Os povos não têm memória nem para o bem nem para o mal, e não se lhes dá de repetir as mesmas experiências, na baldada e infundada esperança de que as coisas se passem de outro modo. Por isso nos incumbe avivar até ao cansaço a recorda­ ção dos tempos em que a Nação foi sacrificada à violência das lutas partidárias e convencer a todos de que, se importam os homens, ainda mais importam os princí­ pios e os processos de governo. Os homens reagem em geral da mesma forma em idênticas circunstâncias. Eles ambicionam o Poder e se o Poder é o galardão da vitória, purificada na água lustral das urnas, independentemente de finalidade oatriótica ou limitações morais, a luta pode arrastar a todos os extremos, porque íorá em jogo todas as paixões. A nossa história política há vinte anos para trás exemplifica e abundantemente comprova a minha tese. III. «Regime sem partidos» equivale a «governo sem política»? A pergunta parece ociosa e no entanto a resposta necessita de algum esclarecimento. Quando há semanas chamei a atenção para a relevância do factor político no meio português, pretendi englobar nesse factor o que importa à organização do Poder e às condições de eficiência da actividade governativa: estava fora do meu propósito e do andamento das ideias expressas considerar também a agitação da vida política como essencial ou necessária à resolução dos problemas nacionais. Receio que se hajam tirado deduções extremas num ou noutro sentido e qualquer delas viciosa. Chamaremos «governo» à direcção superior de uma colectividade nacional, direcção que se exerce pela definição dos objectivos a alcançar e pela diária resolu­ ção dos problemas em que os mesmos objectivos pràticamente se desdobram. Cha­ maremos «política» o conjunto de meios de natureza individual ou colectiva pelos quais a consciência pública é levada a um estado de adesão ou simples conformi­ dade com aqueles objectivos e colabora com o Poder na sua realização. Ainda quando o governo trabalhasse exclusivamente com base em conclusões das ciências positivas, não sujeitas a discussão - o que não será jamais o caso - , a política teria sempre o seu lugar na condução das sociedades humanas para obter a obediência voluntária dos homens, a adesão do seu espírito, a força do seu apoio, o contributo dos seus sacrifícios Evidentemente que neste sentido a política seria 610

XXIV. Governo e Politica tanto mais indispensável e activa quanto mais nos aproximássemos do funciona­ mento de um regime ideal de opinião. Esta nota deixa compreender um dos motivos por que desde 1926 os homens do regime se deixaram absorver nas tarefas do governo, e a política foi em geral subalter­ nizada entre nós a outras preocupações. 0 abatimento e decadência do País, o cansaço das lutas políticas, os sucessivos movimentos que revelavam ou estado de insatisfação permanente ou desordem endémica na sociedade portuguesa, a carência da autoridade, a insuficiência da administração, a urgência de solução de muitos problemas, o apoio ostensivo da força armada, tudo se tinha conjugado para tornar possível e querida da generalidade dos cidadãos a acalmia, um período longo de trabalho intenso, de verda­ deiro governo do país desgovernado que éramos. Daqui a actividade febril que fez desta época uma das mais férteis em realizações de toda a história portuguesa - actividade salvadora, exclusivamente prosseguida no terreno nacional, mas bastante desacompa­ nhada de acção política correspondente à sua importância e dificuldade. Era óptimo, se os homens fossem diferentes; não o tem sido por serem como são. E no entanto não havia dúvidas, nem ainda hoje as há, acerca da finalidade da Revolução Nacional, cujo movimento, se alguém pensou poder limitar-se a uma grande arrumação administrativa, cedo deu lugar è convicção de que esta mesma não poderia ficar assegurada sem a reforma política. E temos de confessar que, por demasiadamente absorvidos em resolver problemas, alguns dos quais foram, sem resultado, programa de todos os governos anteriores e aspiração de muitas gera­ ções, não se deu ao trabalho de doutrinação política, de organização e formação da consciência pública aquela atenção que merecia. Posso dizê-lo, porque devo con­ siderar-me um dos principais responsáveis. Acresce que o Mundo vive numa época de sofrimento, mas talvez ainda mais de insatisfação que de sacrifícios. Estes são certamente pesados e o seu peso não recai igualmente sobre todos. Mas os desejos imoderados, a miragem da felicidade pela riqueza, a ânsia de coisas novas ou desconhecidas, a sofreguidão de gozo, a ambi­ ção do inacessível, a instabilidade das ideias e sentimentos - tudo isso parece caracterizar uma época doentia e acarretará dificuldades, para as quais convém estar prevenido. Não falando, porém, de causas gerais, e só do que especialmente nos toca e no presente momento mais nos aflige, sabemos ainda que a nossa legislação de guerra, sobretudo no respeitante ao abastecimento público e ao condicionamento das acti­ vidades económicas, pesa duramente sobre o povo, e nós não temos outro dcscjo além de irmos restabelecendo à medida que for possível uma liberdade saudável. Aguardamos apenas a realização de condições convenientes para que o remédio não seja pior de sofrer do que o mal que se destina a curar. IV.

Aludi às causas permanentes e ocasionais que justificam e impõem como neces­ sário da nossa parte se intensifique a acção política. E, explicados os motivos dc o 611

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não ter sido antes, penso ter deixado compreendido que, sendo a boa política con­ dição de estabilidade e eficiência da governação, se há-de em todo o caso desen­ volver de maneira a não prejudicá-la. É precisa esta reserva, porque os interesses da Nação têm em si mesmos tal valor, deles deriva tão forte imperativo que em con­ corrência não podem deixar de sobrepor-se a outros menos qualificados. À parte isto, sobre que um partidário poderia hesitar, mas que o nacionalista tem como subentendido em toda a acção política, os que temos amor à obra realizada, a noção dos riscos actuais e a perfeita inteligência dos princípios estamos decerto convencidos de que não podemos adiar o momento de dar a esta obra, senão mais carinho, um esforço maior. Não é para aqui explicar como, em que domínios e por que meios vai ser inten­ sificada a nossa acção. Basta dizer que o mesmo pensamento inspirará a todos e guiará os nossos actos. Pretendemos que esta grande frente patriótica que é a União Nacional se alargue e consolide pela boa vontade dos portugueses, aos quais, aliás, se não tem pedido senão o sacrifício do que poderia dividi-los, para trabalha­ rem unidos em prol da Nação. Vinte anos de paz e progresso acreditam o sistema, mau grado as suas deficiên­ cias e imperfeições, e o confronto com os vinte anos anteriores devia ser bas­ tante (se não fora o orgulho dos homens) para demonstrar pela experiência vivida quão fecunda é a unidade e como se serve mal o País reincidindo contra a sua saúde moral no que podemos chamar o pecado da divisão. Que tenebrosas algumas causas, e ligações, e dependências, e propósitos! Que fúteis alguns motivos sobre que se movem pequenos grupos — moinhos de vento que moem areia! Pois temos de dar-lhes batalha, decididamente, decisivamente, pela Nação, por nós e... até por eles.

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XXV. A NAÇÃO PORTUGUESA, IRMANDADE DE POVOS Eu agradeço ao Sr. Ministro das Colónias a iniciativa deste encontro com a mais vasta e completa representação de povos do Império que alguma vez aqui pudemos reunir: se esta visita, na véspera da partida, dá a todos a oportunidade de apresen­ tarem as suas despedidas, também me dá a mim o ensejo de desejar-lhes boa via­ gem e de fazer os melhores votos pelas prosperidades de cada um, das suas comu­ nidades e da sua terra. Avalio o sacrifício - e em todo o caso o incómodo - que para muitos representou abandonar a vida e a família, os seus interesses e activida­ des para empreenderem tão longa viagem até à cabeça do Império e daqui até à capital do catolicismo. Mas se nos aventurámos a tão arriscada e custosa empresa é que tínhamos a peito duas coisas: uma, patentear a comunidade de sentimentos à volta de uma das mais altas expressões da «missão» portuguesa, no momento em que a Igreja entendeu elevar às honras dos altares S. João de Brito; outra, mostrar como nos mantemos unidos, por laços de parentesco, de vida económica e política, de cultura e de fé, à roda da lareira, na velha casa paterna, quando o Mundo parece se esboroa e decerto se divide em irredutibilidades e ódios. No meio das convulsões presentes nós apresentamo-nos como uma irmandade de povos, cimentada por séculos de vida pacífica e compreensão cristã, comunidade de povos que, sejam quais forem as suas diferenciações, se auxiliam, se cultivam e se elevam, orgulhosos do mesmo nome e qualidade de portugueses. Esta ideia de irmandade e de sujeição a um destino comum entre os mais povos da terra não deixámos de vivê-la um momento, nem quando celebrámos festiva­ mente os oitocentos anos da nossa vida independente, nem na hora alta da consa­ gração do esforço missionário português em Roma, nem antes nos tristíssimos anos de guerra em que Macau e, ainda mais duramente, Timor tiveram de sofrer priva­ ções e ameaças ou mesmo as inclemências da invasão e ocupação estrangeira. Mas agora curamos as feridas e muito simplesmente continuamos a nossa vida. Chegam-me de quando em quando os ecos de longínquas e apaixonadas cam­ panhas em relação com os laços que ligam Portugal às suas províncias do Oriente; e entristece-me notar alguma vez envolvidos nelas nacionais que deixaram estiolar no coração o afecto que devia prendê-los à família portuguesa. Se podem desgos-

w Numa sala da biblioteca da Assembleia Nacional, em 11 de Julho de 1947, onde se reuniram para apresentar despedidas delegações de todos os territórios ultramarinos que tinham ido a Roma assistir às cerimónias da canonização de S. João de Brito.

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tar-nos injustiças, aliás um tanto explicáveis pelas paixões desencadeadas neste momento convulso da história do Mundo, elas^nào chegam para inquietar-nos sèriamente. Em primeiro lugar, devemos confiar no espírito de justiça e de respeito pelos direitos alheios sobre que se está procurando construir a sociedade futura; em segundo lugar, são amistosas e leais as relações que nos ligam às nações mais pró­ ximas vizinhas das nossas pequenas comunidades. E não falo em que, sendo nós uma irmandade de povos, como lhe chamei, a todos nos liga, mais que ténue soli­ dariedade política, uma verdadeira fraternidade. Bem vistas as coisas, os princípios de igualdade racial, de independência, de elevação moral e material dos povos, se alguém os pregou e os executa na medida das máximas possibilidades, somos nós. Não temos de iniciar agora viagem com vento de feição, mas de prosseguir caminho trilhado em séculos. Se, por exemplo, nos sentimos indissoluvelmente presos ao Estado português da índia, não é pelos interesses materiais — pequenos para nós e para outros - mas porque constitui, com Macau, um padrão do espírito do Oci­ dente que tivemos a glória, cometemos a audácia, fizemos o sacrifício de implantar ali, tornando possível S. Francisco Xavier e, com ele, a esplêndida floração da mais alta espiritualidade cristã. Esta vossa visita ao continente europeu de Portugal, estas semanas de convívio, ie observação de vida intensa e de exaltação nacional vão cimentar mais ainda, se .*possível, a nossa solidariedade de povos, irmanados já por séculos de história e por muitos sofrimentos e aspirações comuns. Que o fogo não se apague; que o espírito não perca o seu rumo; que não seja nas províncias do ultramar menos fer­ voroso do que é aqui o culto de Portugal. Nós, os que aqui estamos, somos um simples elo na cadeia do tempo; só a Pátria se afirma na perenidade dos séculos. Boa viagem! Boa viagem!

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X X V I. MISÉRIA E MEDO, CARACTERÍSTICAS DO MOMENTO ACTUAL Meus Senhores: Com a ideia de ser menos fastidioso e de me confinar ao que julgasse de maior utilidade para a compreensão do momento político nacional e internacional resolvi redigir uma breve exposição e apresentá-la, antes de se proceder à abertura da ses­ são legislativa. Pareceu-me que, longe da tribuna da Câmara e das suas exigências, nos encontraríamos mais à vontade na apreciação dos acontecimentos e quanto a alguma decisão que se houvesse de tomar. I.

As características do momento actual são, não só na Europa mas no Mundo, a miséria e o medo. Estas duas realidades moldam o pensamento e a actividade dos povos e dos governos; tomam, a par dos delegados, assento nas assembleias; con­ duzem pela mão milhões de seres errantes, de refugiados, de escravos, de famintos; dominam a vida - são a própria vida de hoje. Não sei se me vale a pena - a minha inteligência tacteia na escuridão - separá-los para descobrir-lhes causas indepen­ dentes. Talvez não, porque tudo no fundo é redutível à guerra, de um lado aos seus desacertos, do outro ao imenso consumo de riquezas que representou. Sei bem que é mais fácil criticar o passado que tomar deliberações para futuro, mas dentro de poucos anos já não sofrerá discussão a tese de ter sido errada a polí­ tica de guerra das potências anglo-saxónicas. E o maior número inclinar-se-á a ver que todos os erros derivaram de dois - a tese da rendição incondicional e a prioridade do teatro europeu de operações. (Em parêntese direi compreender perfeitamente que os países ocupados e devastados a ocidente defendessem outra concepção). Daquelas posições proveio o esmagamento da Alemanha para além dos limites em que ainda poderia representar potência produtora, força defensiva e factor de equilíbrio no concerto europeu; e, pior que tudo isso, proveio também a inevitabili­ dade do avanço e ocupação russa até ao coração e posições dominantes da Europa. Tão longe se foi, impelido pela lógica dos principios, que a acção internacional desenvolvida nos últimos dois anos e meio - planos, auxílios materiais, atenuação de regimes e de sanções impostas - para evitar a subversão completa, o caos, o

1,1 Discurso proferido numa sala da biblioteca da Assembleia Nacional em 25 de Novembro de 1947.

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desespero sobre a «abominação da desolação» se tem revelado inútil, pouco se dis­ tinguindo os vencidos de alguns vencedores. Ora, se aquilo que depende da geo­ grafia ou é filho do sangue do povo alemão se pode ainda restaurar, o último facto apontado acima, como de ordem político-militar, pode muito bem impedi-lo, retardá-lo ou fazê-lo jogar em seu exclusivo favor. Está aqui a chave do pro­ blema-base da Europa e um dos grandes problemas do Mundo. II.

Assim a Europa sofre miséria e tem medo. Medo de quê? Medo da Rússia; medo do comunismo. E parece ter razão. Históricamente o germano representa o fronteiro da Europa em face do eslavo invasor; e as lutas para a hegemonia continental não lhe fizeram perder esse carácter nem diminuíram o valor daquela missão. Por seu lado a Rússia, czarista ou soviética, inclinar-se-á a ver o problema em sentido inverso e, tendo perdido a oportunidade em 1918, não há-de querer desperdiçar a actual para dois fins: diminuir ao que possa, no aspecto material ou moral, o potencial alemão e aumentar eventuais resistências intermediárias entre ela e a futura Alemanha. Toda a sua política de guerra a essa nobre nação que é a Finlândia, a incorporação dos estados bálticos, o mgrandecimento da Polónia para oeste, o sistema de acordos com estados vizinhos ou afins, em que as directrizes governamentais se ajustam a um fim comum e as economias se apoiam e completam, as pressões militares e económicas sobre a outra linha mais recuada de estados - essa política desconhece ou subalterniza qualquer solidariedade europeia de base igualitária a uma ideia de defesa ou de domínio. Não é ainda a guerra nem prenúncio de guerra. Vemos, porém, que o único ponto de contacto ou de desenvolvimento pacífico dos dois sistemas euro­ peus está na desistência voluntária da Rússia à sua expansão territorial ou ao alar­ gamento do seu poder relativamente às outras nações europeias. Não duvidamos de que a venderá caro. Em tais termos a Europa está condenada a viver anos em estado de permanente alerta e de sobressalto. Ela está enfraquecida, empobrecida, desmoralizada; ela não pode pensar, mesmo que se unisse sob a pressão das circunstâncias, em resistir sozinha. 0 resultado da última guerra e a decisiva intervenção norte-americana, com o apoio de todo o hemisfério ocidental, tiveram como efeito deslocar para oeste, como já várias vezes tenho notado, o centro de gravidade da política mundial, que não é nem pode já ser europeu, mas quando muito euro-americano. As mesmas razões que atraíram os Estados Unidos às duas últimas conflagrações e acabaram por elevá-los ao acume do prestigio e do poder os solidarizaram e prenderam à Europa - a eles e ao continente americano. De modo que por imposição dos factos e mdependentemente da vontade de dirigentes ocasionais, só há para os Estados Unidos (e direi o mesmo para a Comunidade Britânica) uma alternativa: dividir o Mundo com a Rússia, o que é impossível, além de contrário aos seus interesses e aos seus princípios, ou bater-se com ela, e na Europa, para os salvar.

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XXVI. Miséria c Medo... A fatalidade desta posição não é, a meu ver, a fatalidade da guerra; pelo contrá­ rio, se houver a perfeita consciência da situação, é a razão principal de a não sofrer­ mos. Mas, ao considerá-lo, muitos se interrogam se a Europa do ocidente não estará condenada no próximo século a escolher entre ser americana ou ser russa. III. Eu admiro a largueza de espírito, a generosidade, a prontidão com que a Amé­ rica acorre em auxílio da Europa, quer para protecção individual de necessitados quer com o fim de dar à economia europeia meios de recuperação. E admiro-as tanto mais quanto nem sequer vejo que esse auxílio seja sèriamente condicionado por exigências políticas ou outras capazes de garantirem a sua eficácia. A influên­ cia crescente que deste acto especial e da direcção dos negócios mundiais advirá para aquela nação em face da Europa não é discutível; mas o que isso represente como tendência hegemónica, domínio económico ou político, desvio ou deforma­ ção do espírito europeu não depende de qualquer propósito (aliás certamente estra­ nho às preocupações dos Estados Unidos), mas dos meios de resistência que a Europa possa opor à diminuição do seu ser colectivo, das reservas de força moral e material que ainda possua para continuar a afirmar-se no Mundo. Ora mesmo na pior hipótese, para mim duvidosa — a de a Rússia conseguir moldar pelo seu espi­ rito e pelas suas instituições as nações suas mais próximas vizinhas e de conseguir uma política de conjunto hostil à colaboração com as restantes nações europeias - , eu penso ou ao menos quero acreditar que a Europa do ocidente possui condições suficientes para se restabelecer e reconquistar o seu lugar. Julgo que a crise de alguns países é não só passageira mas superficial e que no fundo, nas raízes do ser nacional, há reservas de energia que podem ser despertadas, uma vez quebrada a crosta de desânimo, de indisciplina, de horror ao trabalho, que as asfixia. A Inglaterra, a França, a Alemanha, a Itália, as duas nações da Península His­ pânica, para só falar dos agregados maiores, e sem esquecer o precioso contributo dos demais, se não venderem a sua alma nem deixarem abastardar as qualidades funda­ mentais do seu carácter, possuem as condições morais precisas para a recuperação. Mas há também condições materiais. Por feliz coincidência ou providencial disposição, os destinos de toda a África são solidários com a Europa do ocidente. Excepto no que respeita ao Egipto e à Abissí­ nia (mas não à África do Sul, membro da Comunidade Britânica), a Inglaterra, a França, a Bélgica, a Itália, Portugal e a Espanha têm, através de regimes políticos ou económicos diversos, a direcção efectiva e a responsabilidade do trabalho, progresso e bem-estar do continente africano. Uma política concertada de defesa e de valori­ zação económica porá ao dispor do Ocidente produtos e riquezas que aumentarão de maneira assombrosa as suas possibilidades de rida e a sua contribuição para o intercâmbio mundial. A África é base suficiente para a política que se deseje fazer. Será escusado dizer que sou sincero, e não oportunista, ao exprimir tais modos de ver, mas não desejo também ocultar que atitudes meramente passivas em face 617

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destes problemas me parecem de todo inoperantes. As lamentações sobre o desas­ troso encaminhamento dos factos passados, os desabafos mais ou menos insultu­ osos contra a Rússia, o desânimo perante as dificuldades, a atitude de mão esten­ dida, que só procura apoio ou esmola - tudo é negativo e estéril, além de que excederia o razoável e o possível como modo normal de vida. Será necessário alguma coisa de decidido e construtivo, se a Europa não quer demitir-se da sua posição: embora diminuída na relatividade das coisas, é ainda capaz de partilhar com o continente americano, filho do Ocidente e felizmente solidário com ele, as maiores responsabilidades. IV. Embora as posições estratégicas e políticas resultantes da guerra denunciem por si mesmas grandes perigos e dificuldades, a consideração do estado geral dos espí­ ritos e a evolução do pensamento político nalguns estados afastam-me de uma visão do futuro excessivamente pessimista. Isto é: eu não prevejo a catástrofe. Os dirigentes soviéticos têm-se revelado duros, tenazes, mas também prudentes. Têm na sua mão penhores preciosos, valores de negociação que lhes hão-de valer ainda grandes concessões das potências suas associadas. Esse é o caminho por onde hão-de tomar e, não arriscando nada, preferirão sobretudo esgotar as possibilida­ des de acção indirecta, através do prestígio do seu regime. Isto me conduz a dizer algumas palavras do outro grande medo que aflige as nações: o Mundo tem medo do comunismo. Qual a razão disso? A principal parece ter cristalizado à volta da ideia e do facto de se tratar de organização que, integrada no jogo das forças nacionais, recebe do estrangeiro a súmula doutrinal do seu programa e a orientação efectiva. Mas a mim não me parece razão bastante. Através da História e ainda nos tempos de hoje, numerosos movimentos se têm verificado de inspiração estrangeira e muitos, apoiados por esta ou aquela potência, têm infelizmente vingado contra a vontade e os verdadeiros interesses da nação que os suporta. A História está cheia destes pecados. De modo que, em face do comu­ nismo, o que sobretudo importa não é saber que é protegido ou apoiado de fora - mas a essência da sua doutrina e as verdadeiras intenções da potência inspiradora. Esta última referência repõe no tabuleiro todo o problema anterior — ou seja a Rússia na Europa e no Mundo, a sua vida de relação com os mais estados, o valor prático para ela e a aceitação voluntária por sua parte daquele conjunto de princí­ pios e de conceitos (uns pura emanação da moral, outros adquiridos e fixados pela experiência) sobre que deve viver e prosperar a comunidade internacional. Quer dizer: independentemente da execução do programa comunista, um problema con­ tinuaria de pé - o de saber-se a constituição da comunidade de nações por ela che­ fiada, que é o mesmo que dizer qual o grau de independência de cada país na ges­ tão dos seus negócios internos e externos. Uma coisa me parece clara - a 618

XXVI. M iseria e M edo...

existência de pressões suficientes para se considerarem privilegiados ou preferentes os interesses da potencia que a si própria teria reservado a posição de quase suserana. Já Hitler ou alguns dos seus sonharam essa construção; não julgo que a Europa no seu todo se pudesse submeter a semelhante fórmula. Concebe-se que a Rússia, por amor de um interesse político seu, se alheie algu­ mas vezes, fora de fronteiras, do comunismo, não como governo, mas como ideolo­ gia. 0 comunismo, porém, não se desinteressará de si próprio. Salvo o caso de par­ tido assim etiquetado para usufruir algum prestígio exterior, mas de facto apostado apenas em conquistar posições de mando, o comunismo, como doutrina integral que é, tenderá a modelar os homens, as sociedades, as instituições públicas e priva­ das segundo as concepções que defende. De modo que ou se contradiz e se anula no puro jogo de forças políticas concorrentes ou há-de por todos os meios fazer a sua revolução. Não cuide alguém que esta se limite a procurar corrigir desmandos, abusos, ilogismos, desacertos ou injustiças - tantos revela a actual organização social contra que temos de lutar sem descanso — nem a provocar a transferência do Poder de uma para outra classe ou legitimar a transferência de bens de uns para outros indivíduos; trata-se de criar um tipo diferente de humanidade, outra civilização (se é que esta forma de me exprimir se pode considerar correcta). Pouco importa saber que o não logra, porque, frustrada a revolução, terá pelo menos conseguido a desordem. Ora, sendo tão graves os perigos, quer de influência externa quer da subversão social, trazidos pelo comunismo, que processos de defesa se utilizam para o contrariar? Se não me engano, na Europa, salvo Portugal, a Espanha e a Suíça (embora esta última por motivos diferentes dos primeiros), e como na Europa, em quase todo o Mundo, o comunismo goza da liberdade de propaganda e organização, bastando-lhe - o que não custa nada — declarar-se integrado no plano das forças políticas nacio­ nais. Por muita parte está representado em assembleias; em numerosos países faz parte dos governos. Este modo de proceder não pode deixar de significar ou que se considera o comunismo tão legitimo como outro qualquer programa partidário e apto à reali­ zação do interesse nacional ou que se espera torná-lo inofensivo num regime de absoluta liberdade política. Todos aliás temos ouvido dizer que os grandes remédios contra a doença comunista são: na Europa, a democracia e o socialismo; na Amé­ rica, a liberdade e o bem-estar geral. Não me proponho hoje discutir estas teses, sobre as quais tenho naturalmente as maiores dúvidas; levar-me-ia longe o exame e ser-me-ia embaraçosa a referên­ cia a casos particulares que parecem contrariá-las. Direi apenas que, a meu ver, há-de ser muito difícil aos diversos estados manter, partindo de tais princípios, uma linha rigidamente lógica: alguns que por ela se encaminharam regressam ao ponto de partida; os que receiam usar da autoridade vêem-se depois compelidos a empre­

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gar a violência e felizes se consideram quando, como é geralmente o caso, não são subvertidos por ela; sobretudo não há confiança na terapêutica, pois que os povos vivem receosos e intranquilos. 0 Mundo tem medo do comunismo e os sovietes servem-se dele para os seus fins. V. Embora a traços muito largos, aí fica a indicação das fontes de maiores preocu­ pações no momento actual; mas, sendo na verdade as maiores, não são as únicas. Acontece muitas vezes sobreviverem à guerra ideias dos vencidos que se diriam condenadas pela vitória; e, pelo contrário, alguns erros ou excessos que servem de razão ou de pretexto à luta parecem até prestigiar-se com ela. Lembro-me da pergunta tendenciosa de Mussolini: é verdadeiramente indepen­ dente uma nação que não tem livre acesso aos grandes oceanos? e de como o seu espírito foi resvalando para a ideia da guerra sobre uma verdade incompleta e, por isso mesmo, sobre uma tese falsa. Recordo as insistentes referências do nazismo à «Alemanha cercada» e à necessidade do seu acesso a outros territórios, como se, jrande ou maior, a Alemanha não tivesse sido talhada pela geografia e pela história :omo nação no meio de nações. Todos têm presente os excessos do nacionalismo, então pregado contra o facto elementar e inelutável da solidariedade internacional, e as pretensões científicas desse nacionalismo, que se estruturava sobre a geografia, a raça e condições de independência económica, paredes meias com a nação suíça - a essa luz o maior ilogismo entre as nações. Não esquecemos como daí se partiu para o princípio de revisão da carta da Europa e para a necessidade de ajustamentos e deslocação das populações. Foram então correntes as ideias que gradualmente se infiltraram do livre acesso às matérias-primas coloniais, da redistribuição das coló­ nias, da internacionalização colonial, que minavam os fundamentos das nações, des­ conheciam esforços e sacrifícios seculares ou simplesmente enfraqueciam a autori­ dade: em benefício de quem? Tudo parecia grave ao ser enunciado, e algumas ideias estavam afinal muito longe do que viemos depois a ver nos factos. É natural a revivescência do nacionalismo que se seguiu à guerra e a ascensão de povos à independência política; e são até compreensíveis alguns excessos, filhos do entusiasmo. Mas, quando se reflecte nos acontecimentos dos últimos anos e em muito do que se pensa e continua a dizer pelo Mundo, há de sobra motivos para per­ guntar se os erros não eram afinal cartas de jogo, e só mudaram de mãos. VI. Os problemas e os conceitos de que procurei dar o ligeiro apontamento não são, como se viu, teses de escola nem objecto de discussões académicas. Desdobram-se e multiplicam-se na vida de hoje em preocupações, ansiedades, desânimos, agita­ ção internacional, com seu quê de desvairamento. Por ora parece faltar um mínimo de unidade de pensamento sobre que se construa com solidez, e mesmo os que, 620

XXVI. Miscria c Mcrio... como nós, têm traçado o seu caminho e o seguem não ficam estranhos à influência de tão graves perturbações. Evidentemente a nossa acção no plano internacional e no plano interno é deter­ minada pelas posições definidas acima ou por aquelas que bem se podem suben­ tender. Separa-nos de outros grande distância no juízo que fazemos do momento presente, mas não constituímos estorvo a qualquer apaziguamento ou ideia de colaboração internacional, e dentro da nossa modéstia pretendemos ser para todos e em toda a parte elemento construtivo e útil. Por isso nos não recusamos a andar em vertiginosas correrias pelo Mundo a tomar parte nas reuniões, conferências e congressos promovidos por numerosíssimas e activísimas organizações. Pelo mesmo motivo apresentámos em devido tempo o nosso pedido de admissão nas Nações Unidas, embora estivéssemos cientes das dificuldades que se nos depara­ riam. No Conselho de Segurança a Rússia opôs o seu veto e inutilizou com esse acto a recomendação patrocinada por mais de dois terços dos votos. Os sovietes estavam dentro da sua lógica, mas não estavam no seu direito. Cumprido o nosso dever e em face do que se passara, não renovámos o pedido nem declarámos a desistência. A assembleia geral retomou no entanto há pouco os pedidos anteriores e fez ao Conselho as recomendações que, segundo a Carta, devia esperar dele. É manifesto que o acto, aliás juridicamente irrelevante, como já se viu, traduz a revolta da generalidade das nações contra o abuso, a prepotência ou chi­ cana duma só. Foi-me, no entanto, agradável ver que nações inimigas durante a guerra tiveram melhor tratamento que os neutros. Estes estão naturalmente ganhos para a causa da paz e, segundo o Evangelho, é certo haver mais alegria no Céu pela conversão de um pecador do que pela perseverança de milhares de justos. Não vale a pena discutir as razões com que nos atacam os oradores soviéticos nem fazer previsões acerca do seu comportamento futuro. Creio que durante bas­ tante tempo continuarão a opor-se a algumas nações qualificadas, no parecer da Assembleia, para ingressar nas Nações Unidas. Mas não há que afligir-nos por isso: os excluídos somos nós, mas os batidos são outros. VII. Outro ponto. Os acontecimentos da guerra e do pós-guerra no Extremo Oriente - as perturbações da Indonésia, a libertação da China, a independência da índia e do Paquistão - têm tido as suas repercussões nos nossos pequenos domínios daque­ las paragens e criado ao Governo algumas preocupações, não obstante a dedicação e fidelidade das populações. No entanto Timor prossegue a sua normalização admi­ nistrativa e restabelecimento económico, e tem-se sido bastante largo nos meios financeiros postos à disposição do governo local para reparar os estragos sofridos pela ocupação e devastação do invasor. Oxalá uma administração cuidadosa apro­ veite a oportunidade para refazer a economia timorense e promover a valorização que podem valer-lhe a situação geográfica, as riquezas do solo e do subsolo e as qualidades dos naturais. 621

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Encostada à China, como ponto de repouso e de refúgio do seus naturais, Macau não gozou sempre, depois da guerra e cumprida a sua missão de presença da Europa no Oriente, a tranquilidade merecida. A China libertou-se, e muito bem, em virtude dos seus sacrifícios e contribuição para a vitória, de todas as limitações que aqui e além durante dezenas de anos puderam ser criadas ao pleno exercício da sua sobe­ rania. Como signatário de tratados que as estabeleciam, Portugal teve o prazer de concordar também com a abolição de instituições ou privilégios que pudessem tocar o prestigio ou ferir as susceptibilidades da nação chinesa no seu próprio ter­ ritório. Por via de informação incompleta ou pela exacerbação de sentimentos alguns jornais chineses tiraram então ilações que não se ajustavam aos factos nem se afiguravam respeitadoras da nossa situação. Mas as excelentes relações de Por­ tugal com a China, a mútua amizade e serviços recíprocos não foram perturbados por estes incidentes. A Índia Portuguesa, porém, tem sido objecto de maiores preocupações. A queda do Império da índia e a constituição dos dois imensos domínios, ainda incorporados na Comunidade Britânica e amanhã possivelmente nações independentes, são sem lúvida grandes acontecimentos do nosso tempo. E mesmo compreensível que o acto se repercuta de certa maneira além-fronteiras e nos domínios estranhos à oberania britânica. Nos flancos da grande índia ficam Goa, Damão e Diu. Deste pequeno Estado emi­ graram através dos tempos centos de milhares de indivíduos que, mantendo a nacio­ nalidade portuguesa ou adquirindo até há pouco a nacionalidade britânica, ganha­ vam na grande índia, à sombra da liberdade inglesa, a sua vida, como os índios na nossa África ou os portugueses do continente no Brasil. Por outro lado, nós possu­ ímos Mormugão, que, como o melhor porto da costa ocidental, dá ou pode dar ser­ ventia fácil e económica a largas regiões do Indostão. Toda esta troca de populações e serviços é corrente na vida internacional e não constitui dificuldade de maior encontrar-lhes solução consentânea com os interesses das duas partes. É sem dúvida grande honra da cultura e do génio civilizador português no Oriente que os portugueses sejam apreciados na índia, aí ilustrem Goa e possam servir até altos cargos da administração local. Simplesmente não se vê como havia de voltar-se contra nós essa nossa mesma superioridade. Se geograficamente Goa é índia, socialmente, religiosamente, culturalmente Goa é Europa. Se ali habitam ocidentais, indo-portugueses e indianos, politica­ mente só há cidadãos portugueses, isto é, membros sem distinção duma comuni­ dade civilizada com alguns séculos de existência, e que a servem não apenas onde nasceram, mas na metrópole e em todo o Império. Compreende-se que o vento que sopra na índia tenha agitado os seus naturais, tenha perturbado alguns goeses que ali trabalham e temeram — aliás sem razão pelo futuro das suas ocupações ou pensaram que ali se lhes abriria rasgadamente um futuro melhor, em determinadas condições. Compreende-se ainda que o zelo dos neófitos inspire certa imprensa, mas já podemos estranhar algumas afirmações de pessoas responsáveis, que, por o serem, devem conhecer os limites do seu direito. 622

XXVI. Miseria e Medo... Nenhum risco correria a índia, cuja independência nós, que há mais de quatro sécu­ los lidamos com ela, podemos saudar comovidamente, nenhum risco maior correria do que invocar um vago racismo e pretender fundar um Estado sobre erros contra os quais ela mesma combateu. Se novas circunstâncias ou anseios da população que deseje aumentar as suas responsabilidades justificam modificações no estatuto ou regime administrativo, isso é problema que à índia Portuguesa e a nós próprios respeita e que, estando já em estudo, terá oportuna solução. Mas nós temos, por outro lado, de confiar no patriotismo da nossa gente, cujo património religioso, cultural e até cívico não pode ser salvo senão na fidelidade ao Estado que, partindo do enlace do sangue, trouxe à Europa um pedaço da índia e o fez parte do Império Português. VIII. Queria acrescentar umas palavras sobre a nossa política interna. Por brevidade e para não me repetir referir-me-ei apenas a três pontos. Primeiro. Há muito tempo que o ambiente político se não afigura tão calmo e compreensivo como neste momento. Há certamente pessoas que, só vendo política activa na agitação dos espíritos e confundindo discussões estéreis com o estudo dos problemas, mal se habituam ao ritmo do nosso trabalho e à ética do regime. Mas os acontecimentos externos têm constituído ilustração tão cabal de muitas afirma­ ções nossas; a instabilidade política tem de tal modo agravado as dificuldades dos governos e as deficiências de vida das populações; os remédios que se aconselham ou prevêem aproximam-se tanto de soluções experimentadas por nós, que mal se descortina campo onde oposições possam ainda medrar: o partidismo, ainda que atenuado sob a precária unidade de «movimentos» e de «forças», tem dificuldade em manter as suas posições. Aos nossos opositores aconteceu o que previmos: o seu liberalismo e vaga ten­ dência social foram ultrapassados pelos factos e por nós próprios. E tendo ido bus­ car ao apoio comunista a novidade e dinamismo que lhes faltavam, apoio tão inde­ sejável havia fatalmente de comprometê-los. A questão está pois como no começo: solução nacional aberta a todos os homens de boa vontade e de são patriotismo, ou nada. E aos que se admiram dos resulta­ dos obtidos diremos que politicamente pouco mais fizemos do que cingir-nos a algumas grandes verdades humanas e compreender o interesse e a alma da Nação. Apesar disso — e este é o segundo ponto descobriu-se há meses um movi­ mento sedicioso. Nada direi sobre ele, porque os acusados estão entregues aos tri­ bunais e temos de respeitar o seu veredicto. Não infrinjo, porém, nenhum preceito ou dever lamentando ver incriminadas pessoas que ocuparam altas posições no regime e Governo da Nação e oficiais que nos tínhamos habituado a ver deste lado da trincheira. Sobre este caso têm surgido interpretações que parece tocarem na própria dignidade do Governo - o primeiro a dever observar a Constituição. 623

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Não tendo eu sido sagrado nem eleito, a origem dos meus poderes não é outra senão a vontade de quem me confiou a missão, por outro lado firmada no que possa realizar em beneficio do País. Quero ser juiz da minha capacidade de servir para o caso do outros serem comigo mais benévolos do que eu, mas todos me devem a justiça de considerar-me escravo dos princípios e incondicionalmente pronto a obedecer à decisão superior. Numa palavra, a dignidade do Governo é suficiente garantia da liberdade do Chefe do Estado, em quem, durante tantos anos da melhor e mais leal colaboração, nunca encontrei senão a preocupação da melhor solução dos problemas e do melhor governo para o Pais. Último ponto. Julgo que não teremos muito sobrecarregada a próxima sessão legislativa com propostas do Governo, assoberbado em dar execução a algumas reformas importantes anteriormente votadas. Empregaremos no entanto esforços para definir as bases gerais do problema da habitação, pelo que talvez conviesse adiar a discussão do projecto, já relatado na Câmara Corporativa, relativo ao inqui­ linato, até estarem definidas linhas mais largas em que os assuntos ali versados se ludessem enquadrar. Seja como for, a forma deficiente como decorreram, no parecer geral, as rela­ t e s entre o Governo e a Câmara nas duas últimas sessões legislativas, levou-me a pensar na conveniência para um e outra da designação de alguém que por mais estreito contacto com ambos pudesse fornecer uma informação mais urgente e tra­ duzir o ponto de vista do Governo nalguma questão de maior transcendência polí­ tica. Isso constituiria um elemento a mais, e quero crer seguro, para a formação da própria consciência, segundo a qual o Deputado deverá sempre querer votar. Eu atrevia-me a sugerir um nome e, se merecesse o aplauso dos Srs. Deputados, com esse se trabalharia. Penso que o trabalho exigirá que o leader - chamemos-lhe assim - seja devida­ mente coadjuvado; mas reputo o assunto mais ligado ao funcionamento da Câmara do que às relações da Câmara com o Governo e considero por isso preferível que a escolha seja feita sem a minha intervenção.

Resta-me agradecer a atenção da vossa comparência e pedir desculpa do tempo que tomei. Sentir-me-ei contente se, na pressa com que tive de redigir esta exposição, não prejudiquei demasiado a clareza nem sacrifiquei ao acidental e secundário as ques­ tões sobre que me propunha falar.

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XXV II. ÀS MULHERES DE PORTUGAL«» Quando, terminado o grande conflito e desanuviada a atmosfera que pesara dura­ mente sobre o Mundo, as mulheres portuguesas quiseram testemunhar-me o seu apreço, viu-se ser impossível fazer chegar a quem quer que fosse, sem injustiça ou melindre, uma palavra de agradecimento. De todos os cantos do País, aos milhares, às muitas dezenas de milhares, nomes ilustres ou ignorados - almas envoltas na humildade do desconhe­ cido - ofertaram-me durante semanas, fizeram cair sobre mim, como chuva de flores, aquelas palavras que eu nào tinha lido até então e só o coração da mulher, liberto de um grande pesadelo, pode de facto encontrar. Por aquele motivo nunca as agradeci. Sei agora que se desejou ir mais longe e, afrontando o lugar comum de os povos não serem gratos, a mesma mulher portuguesa - mãe, esposa, irmã ou filha de todos os que somos em Portugal - fez fixar na história e na arte, com tenacidade bem feminina, ao menos um momento de gratidão. Se devida ou se merecida, não sei. Sei apenas que alguns curtos anos foram como uma longa vida e que vida tão longa e dura não a poderia viver outra vez. Na deliciosa mensagem que há pouco me foi entregue, em nome de todas vós, pela veneranda Senhora, a Condessa de Sabugosa, li um passo ousado - a pretensão de apresentar-me aos vossos filhos como exemplo de grande português. Português, sim, sem adjectivação, sem qualificativo, sem mais nada que não seja a preocupação absorvente de Portugal, cuja honra e grandeza repousam afinal tanto sobre os ombros dos homens de Governo como sobre os vossos - mães e educadoras dos portugueses. Trocarei por isso aquela ideia por outra, e é: quando todos cumprem o seu dever, como os portugueses fizeram, só Deus sabe quem é grande ou quem pode ser maior. As Senhoras presentes e a todas aquelas que estão em espirito connosco e cuja maior contribuição para esta homenagem é porventura o sacrifício de não estarem aqui neste momento, agradeço comovidamente o carinho, a sinceridade, a doçura da sua manifestação.

w Na ocasião da entrega de uma mensagem das mulheres portuguesas e aoós a inauguração do monu­ mento no jardim municipal da Rua da Imprensa, em 11 de Janeiro de 1948. A mensagem era do teor seguinte:

iSalazar! As mulheres de Portugal ficaram-te devendo a vida e a paz dos seus lares. E, porque o não esquece­ ram, quiseram, numa homenagem simples, mas sincera, testemunhar-te a sua eterna gratidão. Por isso vieram aqui, de todas as partes do Pais, desde as mais humildes às de condição mais elevada, apontar-te aos seus filhos como exemplo de um grande português e gritar-te do mais fundo dos seus corações: Obrigado! Obrigado!». 625

XXVIII. À UNIVERSIDADE DE COIMBRA Senhor Reitor e Ilustres Colegas: Não sei como agradecer a alta prova de consideração e estima que a Universi­ dade de Coimbra quis ter para comigo, precisamente quando se completam vinte anos sobre o dia em que fui obrigado a deixá-la e às minhas funções de professor. Vinte anos seriam tempo de sobra para esquecer e para ser esquecido, se não fora concorrerem no caso duas circunstâncias: a primeira, é serem demasiado fortes, para poderem quebrar, os laços da escola a que devemos a nossa formação; depois, é ter procurado não mudar no Governo o sentido da minha vida e tentado man­ ter-me, em tão diverso domínio, fiel aos métodos e à ética dessa escola. Quando tanta coisa que parecia sagrada ou eterna se dispersa e dissolve no mar revolto que é o Mundo de hoje, faz bem atentar no valor de uma instituição que não atraiçoa o seu espírito nem se afasta da missão que lhe foi confiada. Por feli­ cidade rara é-me dado ver aqui os que ainda foram meus mestres e da minha gera­ ção, contemporâneos e discípulos, mas também já muitos, muitos que não encon­ trei e de que apenas conheço os trabalhos e os méritos. E, no entanto, quem está diante de mim é o mesmo ser moral que vem afirmando-se desde séculos: quando estuda, quando ensina, quando se manifesta, é escusado perguntar, porque é Coimbra, é a Universidade. Neste gabinete de trabalho, onde a fraterna camaradagem coimbrã me permite recebê-los, a vida não tem sido fácil, nem doce, nem isenta das maiores preocupa­ ções o desgostos. De vez em quando, um raio de luz brilha e doira o ambiente. Parece então que é diferente a vida, tudo se passou sem deixar vincos na alma, e valeu a pena ter trabalhado, batalhado, envelhecido para gozar plenamente da estima ou da gratidão. Hoje foi assim. Em todo o caso, em todo o caso espero ansioso o momento de regressar...

w Palavras dirigidas aos professores da Universidade de Coimbra que vieram a Lisboa cumprimentar o Presidente do Conselho pelo 20.° aniversário da sua entrada para o Governo, em 27 de Abril de 1ÍK8. 627

XXIX 0 OCIDENTE EM FACE DA RÚSSIA (1) Senhores majores-generais do Exército e da Armada: Senhores oficiais: Eu agradeço profundamente reconhecido a vossa tão sincera e espontânea mani­ festação e as palavras de carinho que me foram dirigidas. Por mais afectuosos e essencialmente pessoais que haja de considerar os vossos cumprimentos, não posso desprendê-los inteiramente dos vinte anos que levo seguidos na gestão da coisa pública e ontem se concluíram. Deve-se esta longa e, a meu ver, exagerada permanência a três factos: em primeiro lugar à confiança do Chefe do Estado, que todos nós nos orgulhamos de considerar o lídimo representante e fiador supremo de um pensamento de renovação nacional, e já hoje teve a suprema gentileza de dizer-me contássemos estaria aqui em espirito junto dos seus cama­ radas; depois à amabilidade dos Chefes do Governo que me precederam nos pri­ meiros anos e devo lembrar aqui com uma palavra de afectuosa recordação; por fim à dedicação e competência dos meus colaboradores, ao claro favor da Nação, ao apoio das suas forças mais representativas e entre todas - porque não abrir claramente esta excepção? - à vossa simpatia e carinho. É meu dever agradecer a todos efusivamente neste momento e formular os mais expressivos e sinceros votos pela prosperidade das forças armadas portuguesas. Por estes votos me ficaria, se, ao formulá-los, não me assaltasse o receio de não ser inteiramente sincero. Pelo menos traduzirei mais fielmente a complexidade dos meus sentimentos se acrescentar que também faço votos porque a força armada esteja a todo o momento pronta e cada vez mais firme ao serviço da Nação e ao serviço da ordem e da nossa civilização cristã. Mas isto obriga-me a acrescentar algumas considerações: porque nada trazem de novo ao debate que se trava no Mundo serão muito breves.

1,1 Discurso aos representantes das forças armadas para agradecer os cumprimentos apresentados por motivo da passagem do 20.° aniversário da entrada para o Governo, proferido na sala nobre do Palá­ cio de S. Bento, em 28 de Abril de 1948.

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Acabada a guerra, uma grande e poderosa nação continuou a aumentar e a con­ solidar a sua força e afirmou, com a presença ou a ameaça desta força, um pensa­ mento que podia até certo momento ser considerado de prevenção e reforço da sua segurança, mas, para além dele, só pode conceber-se como tendência imperialista e de clara hegemonia. Refiro-me è Rússia. Embora a provocação à Finlândia e a declaração de guerra à Bulgária, entre outros actos, tivessem denotado, à margem da agressão alemã, o propósito do ir resolvendo certos problemas através do estado de guerra e num ambiente de vitória, por mais injusta ou artificiosa que fosse, as outras potências aliadas surpreenderam-se com o desenrolar dos acontecimentos. As últimas parece que descansaram na vitória, como se vitória significasse paz. A primeira continuou a desenvolver a sua força e a utilizar as suas posições, como se a guerra houvesse ainda de prosseguir. Deste desequilíbrio material e deste desencontro de conceitos nasce a grande preocupação em que vive hoje o Oci­ dente. Não há para o caso outra explicação senão a seguinte: as potências ociden­ tais consideraram com o esmagamento da Alemanha atingido o seu fim de guerra; a Rússia não, pois que, além do reforço da sua defesa e do aumento do seu poderio, alimenta, para a hipótese de ser possível realizá-lo, o sonho da revolução mundial, de que é o máximo expoente e o mais sólido apoio. Esta a situação. As atitudes que de um modo geral o Mundo, mas muito especialmente o Oci­ dente, podem prever no futuro próximo em relação à Rússia são: a guerra, o isola­ mento, a colaboração pacífica na sociedade internacional. Enumerei-as pela ordem decrescente da sua gravidade, para concluir na única desejável. Não pode oferecer dúvidas a ninguém que a colaboração russa no plano mun­ dial seria grandemente vantajosa. Seja qual for a divergência de princípios funda­ mentais que dela nos separem e o juízo que façamos dos seus processos políticos, a Rússia possui imensas riquezas naturais, o valor do trabalho de numerosa popula­ ção, a sua técnica, a sua ciência, a sua arte. 0 Mundo só poderia ganhar com a cola­ boração que ela pudesse dar à solução de problemas gerais. Com uma condição evidente: que Moscovo deixasse de representar o papel de inimigo de toda a ordem constituída e de fomentador de revoluções. 0 isolamento privaria o Mundo das vantagens que a colaboração russa podia dar-lhe, sem o libertar completamente dos males da sua presença invisível. Acontece que a Rússia é, pela extensão e continuidade territorial, pelo peso da massa demográ­ fica, pela variedade das suas riquezas, pela pequena densidade e modesto nível de vida da população, talvez o único país que pode fechar-se sobre si mesmo e prescin­ dir quase completamente de intercâmbio com outras nações. Esta orientação, embora se possa exemplificar com outros passos da história russa, não se me afigura porém que venha a ser preferida pelos actuais dirigentes da sua política. A grande, porven­ tura insolúvel, dificuldade estaria em conciliarem um isolamento que fosse instru­ mento de defesa e impermeabilidade às ideias e instituições do Ocidente com uma acção de presença internacional, suficientemente vincada, para defender interesses 630

XXIX. 0 O cidente em f a c e da R ússia

ou atingir o objectivo de livre acesso aos grandes mares, que a Rússia tem desde há séculos pretendido. Parece em todo o caso difícil que essa política de ¡solamento, a ser adoptada, como alternativa forçosa, não se estenda também, embora com certas atenuações, aos países que aderirem ao seu sistema. A pior hipótese seria evidentemente a guerra. A facilidade com que a vemos apresentar e a criação de um estado emocional a ela conducente, que pode tirar das mãos dos responsáveis a direcção dos acontecimentos, a mim pessoalmente fazem-me estarrecer. Os conflitos entre pequenas nações vizinhas são hoje como vulgares incidentes de rua em bairros afastados. Uma conflagração das grandes potências com posição no caso de que tratamos é o Mundo em guerra (não se sabe com que pequenas «ilhas» mais ou menos indemnes) e importaria a mobilização inte­ gral dos seus recursos. Nem falo no incomensurável de sofrimentos humanos pro­ vocados por esse conflito e que ele mesmo representa. Refiro-me às condições eco­ nómicas e sociais resultantes do desvio em tão larga escala das fontes da produção para fins de guerra e das destruições que se levariam a cabo. Como a Europa, se houvesse de ser teatro e vítima dessa guerra, não poderia alimentar a população sobrevivente, seria de prever uma catástrofe demográfica sem paralelo na história. Em tais circunstâncias tudo o que o homem ocidental, à força de trabalho e enge­ nho, pode ter criado para conforto, alegria, elevação espiritual da vida - a cultura, a arte, a mesma sociabilidade - seria impossível coexistir com a miséria geral e a sub­ versão das instituições políticas e sociais. Penso que o Ocidente europeu mergulha­ ria então na decadência, na sua longa, trágica e porventura definitiva noite. Não importa deitar contas às probabilidades de vencer, pois julgo as consequên­ cias dessa catástrofe quase independentes do sinal da vitória. Direi apenas que a guerra me parece ser para a Rússia menos trágica que para o Ocidente, cuja densi­ dade populacional, desenvolvimento de centros urbanos, nível de cultura e de vida o torna mais sensível ou vulnerável. Do exposto tiro duas ilações: primeira, o Ocidente não se lançará por deliberado intento em guerra contra a Rússia; segunda, o Ocidente tem de empregar os máxi­ mos esforços para evitar que a Rússia se lance em guerra contra ele. Infelizmente a imaginação dos homens é bastante limitada neste ponto e a experiência de milénios de história humana só tem ensinado um caminho, aliás falí­ vel, que é a preparação da resistência. Na verdade, uma força que se expande não pára nem se limita senão em face de outra que se lhe oponha. (Emprego a expres­ são «força» no mais lato sentido que possa dar-se-lhe, desde os meios de guerra até à organização económica e mesmo até à influência de uma ideologia ou de uma fé.)

A Europa do Ocidente, emendadas na medida ainda possível as piores conse­ quências de erros anteriores no que se refere à Alemanha e à Itália e apoiada na ajuda efectiva da América, disporá de elementos materiais e morais suficientes para a resistência? Já respondi noutro momento afirmativamente a esta pergunta e não 631

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voltarei a ela. 0 aspecto que me interessa agora é saber em que bases e sob que orientação se pode organizar a resistência ou, por outras palavras, saber se a recons­ trução económica e a adopção de uma linha geral quanto ao problema em causa exigem a constituição prévia de um superestado ou de uma soberania do tipo fede­ ral, por exemplo. A organização do mundo interessado em manter as bases da civilização ociden­ tal não pode fazer se integralmente, como é visível, no plano supranacional, mas apenas no do entendimento e concerto de soberanias nacionais. E a parte europeia desse conjunto menos possibilidades que as restantes terá ainda de ignorar as rea­ lidades existentes, embaraçando-se em criações políticas que, podendo crer-se no campo teórico mais coesas, depressa revelariam a fragilidade ou artifício da cons­ trução. A ideia de uma Europa federal parece-me fora das possibilidades de reali­ zação por muitas razões; mas para já o que interessa salientar é que se começaria por tirar aos estados europeus uma das principais razões por que através dos tem­ pos tanto se têm sacrificado em guerras - a garantia de os diferentes povos dispo­ rem de si mesmos. Julgo haver equívoco em pensar que a fase de febril internacionalismo que vivenos é essencialmente contrária à existência de nações soberanas. A lição das duas últimas guerras não é no sentido da extinção dos nacionalismos, mas da sua exa­ cerbação, com a nota de pretenderem agora dispor de uma garantia internacional. É certo que, como toda a vida de relação, a vida internacional comporta limitações, evidentemente no mesmo plano em que essa vida se organiza. Fora disso parece-me só se ter logrado confusão e descrédito com a tendência para limitar através de organismos internacionais a independência ou liberdade interna dos estados no que à vida internacional não interessa. Se pois a resistência do Ocidente tem de aproveitar prudentemente e a luz de um realismo construtivo a base nacional, ou seja a existência de nações independentes, é preciso ser coerente com este princípio e evitar erros prejudiciais ao mesmo fim que se pretende. Por nós somos apenas lógicos afirmando que não servem a defesa do Ocidente as intervenções, directas ou indirectas, nos negócios internos de cada estado. Somos apenas lógicos defendendo a reabilitação da Itália e votando pela admissão da Alemanha na obra da reconstituição europeia, ao mesmo tempo que propomos se estude a maneira de conseguir a cooperação da Espanha naquela obra, tanto mais que a Espanha representa um grande valor económico e a Península é na defesa do Ocidente um todo que não pode por ninguém ser desconhecido. Somos apenas lógicos entendendo que só se prejudica o concerto dos povos europeus com a pretensão de estabelecê-lo em bases pedidas de empréstimo a programas parti­ dários, num sonho ingénuo de estandardização política, cujos malefícios não seriam diminuídos pela bondade das intenções. Trabalhando em tais direcções, parece-me que afinal se prejudicará gravemente a união do Ocidente na única base e para o fim que verdadeiramente importam - o reconhecimento da identidade de origem e a intransigente defesa de certos princípios básicos da civilização. Ora na compreensão que felizmente existe desta 632

XXIX. 0 O cidente em f a c e d a R ú ssia

necessidade comum é possível encontrar suficiente ponto de apoio para os enten­ dimentos precisos.

Este movimento será porém bastante para, evitando a guerra, reconduzir a Rús­ sia à melhor política sob o aspecto dos seus próprios interesses e dos interesses mundiais? Devo dizer que não o considero assim. 0 Mundo está largamente minado por forças subversivas. Não importa avaliar do seu maior ou menor grau de afinidade com a doutrina comunista; tão-pouco a Rússia mede em todos os casos por essa afinidade a protecção que lhes dá. Sabe-se porém que utiliza todos os fermentos de indisciplina e rebelião contra as sociedades organizadas em bases diversas das suas e fora das suas fronteiras tudo faz por divi­ dir e enfraquecer as nações. 0 apoio material, a preparação dos chefes sediciosos, o envenenamento doutrinal através dos mil meios da propaganda moderna tendem a criar em cada país, ao mesmo tempo que um factor de desagregação nacional, pontos de apoio à política externa dos sovietes. Quer dizer, essa suposta frente que o Ocidente tende a organizar é contrabatida, minada, posta em perigo na reta­ guarda por potencial inimigo. Para o entendimento da questão pouco vale discutir até onde o comunismo pode legitimamente apresentar se como produto de injustiças sociais a remediar. Aqui interessa-nos o que acima de tudo é hoje - um «problema político». A com­ paração das erupções comunistas nos períodos subsequentes às duas guerras demonstra que o comunismo fora da Rússia foi, no primeiro, facto esporádico, aba­ fado pelas reacções de vitalidade nacional, que apesar de tudo se revelaram ainda. Mas, depois da última conflagração, ele tem gozado, já não digo da tolerância, mas do direito de cidade. Assim em muitos países, até há pouco, mediante pequeno dis­ pêndio, uma potência estrangeira podia dispor de uma força disciplinada e de uma arma cuja aplicação dirigia. Todas estas situações, por mais anómalas e contrárias à razão e à honra nacional, as tem no entanto largamente defendido e justificado a perversão da inteligência contemporânea. Poucos momentos terá havido através dos séculos de maior pertur­ bação mental do que a vivida no nosso tempo. Não em questões secundárias, mas em tudo o que é essencial à compreensão da vida humana deixou de haver nos povos entendimento comum. Por doentio gosto do ineditismo, da novidade, da oposição, e não pelo sentido e amor da verdade, muitas inteligências se empregam em colorir com as ostentações da ciência os pontos de partida e as conclusões do Comunismo. Para todo o desvio da razão, para todo o erro, para todo o vicio ou crime a inteligên­ cia formula hoje, não uma desculpa, mas uma filosofia. Não o estranho: já não é a primeira vez na história do Mundo que a «inteligência» trai o «espirito». Pelos mes­ mos motivos a política pode atraiçoar o interesse da nação. Ora só a redução à impotência destas forças ou organizações terá esclarecido bas­ tante as posições de todos, para que a Rússia tome a sua decisão. Até esse momento 633

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o realismo e a maleabilidade de que tem dado provas na condução da política mun­ dial hão-de aconselhá-la a não o fazer.

A um auditório que não fosse este eu terminaria por pedir desculpa da crueza com que justifiquei os meus votos. Diante de homens formados na consciência do dever, de corpo e alma consagrados às missões mais nobres e aos mais elevados sacrifícios, até me parece que seria não confiar absolutamente no valor do seu ânimo empregar linguagem diferente. Não pode saber-se o que de nós exigirá o futuro; nem vale a pena consumirmo-nos a desvendar todas as suas incógnitas. Porque uma só coisa verdadeiramente importa: saber-se que em cada momento nos encontramos todos ao serviço da Nação e dos princípios que em oito séculos cimen­ taram a sua história.

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XXX. NO ENCERRAMENTO DA EXPOSIÇÃO DE OBRAS PÚBLICAS (I) Só por se encontrar doente, retido no leito, faltou a este acto o Senhor Presi­ dente da República; e visto que por esse motivo me encontro no seu lugar, tentarei dizer, sem a mesma autoridade embora, aquelas palavras, curtas e simples, com que o venerando Chefe do Estado encerraria a sessão. Parece, em primeiro lugar, que nos devemos regozijar com o êxito da Exposição. Meio milhão de portugueses, e com eles numerosos estrangeiros de diversas nacio­ nalidades, visitaram, estudaram e admiraram o esforço realizado em quinze anos pelo sector das obras públicas. Cada um de nós conhecia aquela parte que mais interessava às suas predilecções ou mais directamente e de perto beneficiava a sua região. Talvez ninguém pudesse ter feito ideia do conjunto, quer pelo volume de obras executadas, quer pela variedade das construções, quer ainda pelo seu enqua­ dramento nas mais diversas necessidades do Estado e do povo português. Debalde se procuraria o traço que denotasse uma preferência de região, uma classe favorecida, o exclusivismo duma necessidade pública ou privada. A quem tiver observado sem prevenções o que se expôs e representa sem contestação o que se fez não se deparará só a nota aristocrática do palácio restaurado, nem só o cas­ telo ou monumento secular, nem só o templo carregado de história e de arte, mas tudo o que é a vida real de um indivíduo ou de um povo no seu mourejar diário, na sua alegria e na sua dor, na sua ânsia de elevação material ou moral, no seu desejo de imortalidade. Essa obra, variada e multiforme, de majestosos edifícios ou pequenas habitações graciosas, de largas estradas e caminhos rústicos, de fábricas e de igrejas, de portos e de barragens, de escolas e de hospitais, de castelos e de quartéis, não nasceu do acaso, mas do nosso próprio conceito do Governo e da sociedade portuguesa, ou seja de uma sociedade hierarquizada sem privilégios, trabalhadora sem servidão, modesta sem miséria, progressiva sem despegar-se do passado de que se orgulha, colectividade em que o povo deixou de ser tropo da literatura política e não é mesmo uma classe, porque é aos nossos olhos a própria Nação. É justo pois que nos regozijemos com ter-se realizado e com ter sido possível esta Exposição. Desejava, em segundo lugar, ter uma palavra de apreço para todos quantos directamente ou indirectamente trabalharam para o seu êxito, e também para a plêiade de trabalhadores, para a inumerável legião que por todo o Pais, continental

•" Num dos salões do Instituto Superior Técnico, em 7 de Novembro de 1948. 635

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e insular, deu o melhor do seu esforço para a floração de obras que ficaram a embe­ lezar e a servir Portugal. Desde o simples operário de fábricas e oficinas, desde os artífices e os empreiteiros, aos que conceberam, planearam e projectaram as obras, aos engenheiros e arquitectos, aos decoradores, escultores e pintores, que as enri­ queceram e embelezaram, a todos o Governo deseja dirigir, por meu intermédio, uma palavra de felicitações e de agradecimento. Penso que todos têm vivido uma hora de íntima satisfação e de orgulho em con­ tribuir com o seu esforço e o seu talento para o esplendor de uma época como a nossa. Nós compreendemos bem as suas ansiedades; eles devem compreender as nossas limitações e sobretudo as exigências do espírito que é a alma da nossa obra. Não me proponho discutir se em tudo atingimos a perfeição — ela não será nunca porventura materializada na obra do homem: seria porém lamentável que não legássemos, não digo orgulhosamente um estilo, mas uma maneira bem portu­ guesa o bem actual, isto é, que através do imenso volume de obras que realizámos não ficasse bem vincado, contrastando com a ameaça materialista, o cunho duma época e duma geração de sacrifício e trabalho intenso, impregnada de naciona­ lismo, de solidariedade humana e de espiritualidade. Resta desempenhar-me da última incumbência do Senhor Presidente da República. Na última década, muito especialmente nesta casa e nesta Exposição, tem pai­ rado sobre nós todos a sombra de um grande morto - o Ministro Duarte Pacheco. 0 seu espírito continua a animar numa onda de entusiasmo todos os que trabalham nas obras públicas. A dedicação febril, o trabalho incansável, a sede de realizações que não chegava a satisfazer-se, a ambição do definitivo e do perfeito, a ideia de grandeza a que nos habituara fizeram escola, são hoje, como ontem, fonte de actividade e inspiração. Depois dele outros levaram a pesada herança e contribuíram com o seu mérito para se afirmar a continuidade da obra. Cabe hoje a chefia deste imenso sector da governação pública ao engenheiro Frederico Ulrich, discípulo e íntimo colaborador de Duarte Pacheco, continuador da sua tarefa e esperamos que da sua glória, como além de tudo mais pôde revelar nesta Exposição. 0 Chefe do Estado incumbiu-me de entregar-lhe as insígnias da grã-cruz de Cristo, com que houve por bem condecorá-lo. Certamente muitas outras condeco­ rações foram igualmente merecidas; nenhuma porém dada com mais prazer.

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X X X I. O MEÚ DEPOIMENTO Minhas Senhoras e meus Senhores: SAUDAÇÀO E AGRADECIMENTOS AO PORTO

Não venho ao Porto em qualidade oficial há cerca de quinze anos. Neste espaço de tempo tenho no entanto sentido muita vez, mirando-a de além-rio, a estranha fascinação da urbe, na força bruta e na severidade do lugar onde se alcandora, na majestade do Douro, que a estreita e defende, nas tradicionais qualidades de traba­ lho e honestidade da sua gente. Conheço alguma coisa dos seus problemas, sigo com interesse os seus anseios e tenho procurado ver com os meus próprios olhos os seus progressos e necessidades. De sorte que aquele facto nada significa, mas nele reside o motivo de só agora poder agradecer o carinho e entusiasmo com que então me acolheram e a mais esplendorosa recepção a que alguma vez assisti e me foi feita nesta mesma casa. Porventura estará aí também uma das razões que levou a escolher o Porto para esta Conferência da União Nacional. FINS D A CONFERÊNCIA

A Conferência destina-se a expor às forças políticas do regime certo número de problemas da actualidade portuguesa nos domínios político, social e económico; e, como primeiro acto duma campanha eleitoral, a fazer solenemente a proclamação do candidato à Presidência da República. Esta segunda finalidade não valería a pena visá-la, tratando-se do Senhor Marechal Carmona, que, há mais de vinte anos na chefia do Estado, é o mais nobre expoente do regime e o mais sólido fiador do pensamento do 28 de Maio. Ela não traduz mesmo fielmente a realidade, porque de facto a próxima eleição presidencial não se limita a escolher um dentre dois can­ didatos, mas, pela força das coisas, a escolher um dentre dois regimes. Por mais estranho que o caso se apresente, por mais objecções que possam levantar-se a esta atitude, por mais contrário a princípios elementares da estratégia, nós vamos desta vez, e por uma vez, aceitar a luta no terreno marcado pelo inimigo. No debate des-

No Palácio da Bolsa, em 7 de Janeiro de 1949, ao inaugurar-se a conferência da União Nacional e a campanha para a reeleição do Senhor Presidente da República.

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vanecem-se necessariamente as figuras dos contendores, seja qual for o relevo dos seus méritos; apenas sobressaem os princípios que representam. Em tão graves cir­ cunstâncias não devia faltar com o meu depoimento. Posso eu fazê-lo sincero, honesto, desinteressado? I. EU POSSO FA Z ER U M D EPO IM EN TO Devo à Providência a graça de ser pobre: sem bens que valham, por muito pouco estou preso à roda da fortuna, nem falta me fizeram nunca lugares rendosos, rique­ zas, ostentações. E para ganhar, na modéstia a que me habituei e em que posso viver, o pão de cada dia não tenho de enredar-me na trama dos negócios ou em comprometedoras solidariedades. Sou um homem independente. Nunca tive os olhos postos em clientelas políticas nem procurei formar partido que me apoiasse mas em paga do seu apoio me definisse a orientação e os limites da acção governativa. Nunca lisonjeei os homens ou as massas, diante de quem tantos se curvam no Mundo de hoje, em subserviências que são uma hipocrisia ou uma abjecção. Se lhes defendo tenazmente os interesses, se me ocupo das reivin­ dicações dos humildes, é pelo mérito próprio e imposição da minha consciência de governante, não por ligações partidárias ou compromissos eleitorais que me estor­ vem. Sou, tanto quanto se pode ser, um homem livre. Jamais empreguei o insulto ou a agressão de modo que homens dignos se con­ siderassem impossibilitados de colaborar. No exame dos tristes períodos que nos antecederam esforcei-me sempre por demonstrar como de pouco valiam as quali­ dades dos homens contra a força implacável dos erros que se viam obrigados a ser­ vir. E não é minha a culpa se, passados vinte anos de uma experiência luminosa, eles próprios continuam a apresentar-se como inteiramente responsáveis do anterior descalabro, visto teimarem em proclamar a bondade dos princípios e a sua correcta aplicação à Nação Portuguesa. Fui humano. Penso ter ganho, graças a um trabalho sério, os meus graus académicos e o direito a desempenhar as minhas funções universitárias. Obrigado a perder o con­ tacto com as ciências que cultivava, mas não com os métodos de trabalho, posso dizer que as reencontrei sob o ângulo da sua aplicação prática; e, folheando menos os livros, esforcei-me em anos de estudo, de meditação, de acção intensa, por com­ preender melhor os homens e a vida. Pude esclarecer-me. Não tenho ambições. Não desejo subir mais alto e entendo que no momento oportuno deve outrem vir ocupar o meu lugar, para oferecer ao serviço da Nação maior capacidade de trabalho, rasgar novos horizontes e experimentar novas ideias ou métodos. Não posso envaidecer-me, pois que não realizei tudo o que desejava; mas realizei o suficiente para não se poder dizer que falhei na minha missão. Não sinto por isso a amargura dos que merecida ou ¡merecidamente não viram coroados os seus esforços e maldizem dos homens e da sorte. Nem sequer me lembro de ter recebido ofensas que em desagravo me induzam a ser menos justo ou imparcial.

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Pelo contrário: neste pais, onde tão ligeiramente se apreciam e depreciam os homens públicos, gozo do raro privilégio do respeito geral. Pude servir. Conheci Chefes do Estado e Príncipes e Reis e ouvi discretear homens eminentes de muitas nações, ideologias e feições diversas sobre as preocupações de governo, os problemas do Mundo ou as dificuldades dos negócios. Pude comparar. E assim, sem ambições, sem ódios, sem parcialidades, na pura serenidade do espírito que procura a verdade e da consciência que busca o caminho da justiça, eu entendo que posso trazer ao debate um depoimento - depoimento sincero e, senão convincente, ao menos vivido e desinteressado. Mas porque outros oradores versa­ rão de modo especial muitas questões que teriam aqui lugar, limitar-me-ei a quase só fazer o apontamento das posições fundamentais. II. O REGIM E E A N AÇÃO Falo só de Portugal e para portugueses, pelo que a primeira realidade política t¡ considerar neste debate e a Nação e o que a Nação representa para o regime. Ques tão talvez ociosa em tempos de unidade espiritual: hoje, questão primacial sobn que do outro lado se não podem tomar com unanimidade as posições que temos afirmado sempre. Possivelmente para alguns associação transitória ou permanente de inte­ resses materiais, a Nação é para nós sobretudo uma entidade moral, que se formou através de séculos pelo trabalho e solidariedade de sucessivas gera­ ções, ligadas por afinidades de sangue e de espirito, e a que nada repugna crer esteja atribuída no plano providencial uma missão específica no conjunto humano. Só esse peso dos sacrifícios sem conta, da cooperação de esforços, da identidade de origem, só esse património colectivo, só essa comunhão espiri­ tual podem moralmente alicerçar o dever de servi-la e dar a vida por ela. Tudo pela Nação, nada contra a Nação - só é uma divisa política na medida em que não for aceite por todos. E de facto não é. 0 comunismo soviético, multiforme na sua identidade doutrinal, perfilha o nacio­ nalismo na Ásia e o internacionalismo na Europa. Os vastos movimentos que no Extremo Oriente irrompem em altas labaredas podem atribuir-se a causas diversas, e certamente as têm na sua eclosão, mas encontram na Rússia, por sistema, simpatia, auxílio, protecção. Se ali triunfa, não tardará muito que deite o fogo à África. No entanto na Europa, a concepção orgânica russa em relação à sociedade internacional não vai, por ora, além da existência de uma suserania tão absorvente que as autonomias nacionais, em teórica cooperação, desfalecem, e com elas se vai sumindo no nivelamento geral o que as nações representavam de cultura, vida cria­ dora e espírito próprio. As destruições morais do comunismo, mesmo no seio dos países que não domina, com a ideia capciosa de debelar as guerras e de firmar a paz, ideia aceite por espíritos simplistas ou inteligências comprometidas, são já tão gran­ des que podem fazer vacilar o Ocidente. 0 comunismo faz a defesa, mais que a

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defesa, a apologia do antinacionalismo, mas, incoerentemente, subordina os inte­ resses da comunidade nacional aos de uma soberania estrangeira que lhes é hostil. Este doce pais que é Portugal - pequeno na Europa, grande e dilatado nos outros continentes, como árvore que, alimentando-se da seiva lusitana, espalhasse longos ramos a sóis diferentes e à sua sombra abrigasse as populações mais diver­ sas, todas igualmente portuguesas —, este pequeno pais não pode, no 9.° século da sua história, duvidar da sua realidade de nação. Esta realidade, em que englobamos a independência, a unidade orgânica e a missão civilizadora, é um pressuposto ou ponto de partida e foge a toda a discussão. E daqui este corolário: quem não é patriota não pode ser considerado português. Gostaria de saber se da Oposição o problema pode ser definido em iguais termos. III. O REGIM E E O G O V ERN O 0 agregado nacional tem necessidades que hão-de ser definidas e satisfeitas através do Estado, que é a sua organização política. A ordem não é produto espon­ tâneo das sociedades mas filha da inteligência e da autoridade. Esta exerce-se por intermédio de vários órgãos especializados, e todos nobres e indispensáveis na sua função; mas não pode haver dúvidas de que o verdadeiro fulcro da autoridade, o centro propulsor de um Estado, a medida da sua eficiência e poder encontram-se no governo. «Não há Estado forte onde o governo o não é.» A função de governo assemelha-se a uma função de seleccionação e de síntese, porque lhe é necessário interpretar as aspirações nacionais, averiguar da sua pro­ fundeza e conveniência, determinar dentre as possíveis a melhor solução dos pro­ blemas e integrar esta no quadro dos princípios gerais que informam a acção gover­ nativa. A acção desenvolvida será tanto mais lata quanto maior for a homogeneidade de pensamento, de doutrina, de moral política que se encontre no governo; e será tanto mais fácil e eficaz quanto mais elevado for o grau de unidade nacional. Até aqui não deve notar-se divergência de vulto com os inimigos do regime. A divergência surge - nós tocamos aí um problema básico — quando se procura definir onde deve colocar-se o que chamaremos, fora de todo o rigor científico mas de maneira compreensiva, a sede da autoridade dominante. A rotura do equilíbrio mais bem concebido é sempre possível e importa a designação da entidade arbitrai. A tendência nos regimes parlamentares é para localizar a sede da autoridade domi­ nante numa Assembleia eleita por votos de tipo individualista e base partidária. A sequência lógica dos acontecimentos tem visto passar esta autoridade da Assem­ bleia para os grupos parlamentares, destes para os partidos, dos partidos para os res­ pectivos directorios, destes para o eleitorado anónimo, em último recurso. A experi­ ência demonstra que de escalão em escalão o poder se degrada, se dissolve e que o governo ou não é possível ou não é eficaz. Quando as dificuldades se acumulam, a desordem cresce, a carência da autoridade torna a vida social precária e as próprias liberdades políticas se transmudam em licença geral, elevam-se do país vozes a recla640

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mar um governo que governe. Costuma ser o fim de um processo; mas parece que era por aí que se devia ter começado: haver um governo que governe. Quando nas legislaturas do período parlamentarista monárquico e republicano até 1926 se verifica terem sido dissolvidas 86 por cento das assembleias políticas - umas vezes pela força, outras por acto do Chefe do Estado - não pode crer-se nem que a instituição se revelasse sempre incapaz da função legislativa nem que houvesse sem­ pre intervenções abusivas ou actos de força condenáveis à luz do interesse nacional; mas que o sistema, ao proclamar o intento de pôr nas mãos do povo ou do eleito­ rado - pobre povo e pobre eleitorado! - o governo da Nação, condenava este à ins­ tabilidade, à agitação estéril, à inópia da autoridade. Por isso o problema do governo é o problema central dos regimes políticos e um problema vital das nações. Vale a pena reflectir mais uns instantes no assunto, examinando-o agora do aspecto partidário. IV. O REG IM E E OS PARTIDOS Teóricamente os partidos representam a agremiação de forças políticas que se constituiram à volta de sistemas de princípios doutrinários ou de conjuntos de inte­ resses quer materiais quer morais, num e noutro caso para efectivação no governo. Teoricamente ainda - o doutor Mário de Figueiredo versará com a habitual profun­ deza este assunto - teoricamente ainda os programas partidários subentendem-se como conjuntos de soluções para problemas concretos nacionais. Isto quer dizer: o partido ao serviço da Noção. Sendo assim, conhecer-se-iam através da formação de partidos as correntes de ideias ou sentimentos que atravessam a alma da Nação, a força das suas aspirações, a importância das suas necessidades. Isto é a teoria. Na prática verifica-se o seguinte: Em numerosos países, e em Portugal sem dúvida, a noção, o espírito, a finalidade dos partidos corromperam-se e as agremiações partidárias converteram-se em clien­ telas, sucessiva ou conjuntamente alimentadas pelo Tesouro. Findo o período român­ tico, ou até antes disso, que se segue às revoluções ditas liberais do começo do século XIX e em que os debates parlamentares revelam com erudição e eloquência preferência pelas grandes teses da filosofia política e as grandes aspirações nacio­ nais, a realização partidarista começou de envilecer-se. Duvido se alguma vez representou o que se esperava; desde os meados do século passado até 1926 - em monarquia e em república - a vida partidária tem seus altos e baixos, mas deixa de corresponder aos interesses políticos e distancia-se cada vez mais do interesse nacional. A fusão ou desagregação de partidos, as combinações políticas são fruto de conflitos e de paixões, compromissos entre facções concorrentes, mas nada têm que ver com o Pais e os seus problemas. Aqui e além tenta-se regulamentar, moralizar, constitucionalizar a vida partidá­ ria. Tudo embalde. Um partido, vários partidos dispõem do poder - são governo; mas não se encontra, como poderia supor-se, relação concreta nem entre os actos 641

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de governo e os programas partidários nem entre os programas e as exigências da Nação. Nós chegámos aos últimos extremos na república parlamentar, com cin­ quenta e dois governos em menos de dezasseis anos de regime. A única conclusão possível é que a forma partidária faliu, e de tal modo que apregoá-la como solução para o problema político português não oferece o mínimo de base experimental que permita admiti-la à discussão. Mas pode ir-se mais longe e invocar para contraprova a experiência de mais de vinte anos de política sem par­ tidos, de política nacional simplesmente. 0 espírito de partido corrompe ou desvirtua o poder, deforma a visão dos pro­ blemas de governo, sacrifica a ordem natural das soluções, sobrepõe-se ao inte­ resse nacional, dificulta, senão impede completamente, a utilização dos valores nacionais para o bem comum. Este aspecto é para mim dos mais graves. Vejo na minha frente os mais variados, numerosos e intrincados problemas. 0 ritmo que a vida nacional atingiu nos últimos anos multiplica-os quase ao infinito; a trans­ formação e a crise do Mundo emprestam a muitas questões alto grau de acuidade e delicadeza. «Todos não somos demais.» Como pensaríamos que bastariam alguns, quando a parte sã da Nação, os seus maiores valores intelectuais e morais já se veri­ ficou exuberantemente não estarem dispostos a imiscuir-se na balbúrdia partidária e a ideia dos «homens do partido» é por si exclusiva dos restantes? Só por esse aspecto a política de partidos seria contrária à unidade nacional. Mas já ví afirmado que é exactamente através da liberdade de organização partidária que melhor se garantirá essa unidade. Há pois diversas maneiras de ver as coisas; duvido se há mais de uma de as ver bem. A experiência portuguesa foi tão concludente e o último século tão desas­ troso; a Nação habituou-se de tal modo a ser tratada como quem é e sem dife­ renciações partidárias; a evolução política fez-se em tal sentido que verdadeira­ mente não há que escolher senão entre organização e política nacional ou organização e política de um só partido. Uma pergunta inocente: e qual seria, dentre os grupos da Oposição? Estas realidades ilustram outro problema — o das liberdades — sobre que dese­ java também dizer duas palavras. V. O REGIME E AS LIBERDADES As liberdades que mais interessam à vida política são: a liberdade de imprensa, de reunião e de associação. Estão inscritas na Constituição em termos correntes, mas o seu exercício está sujeito a condicionamentos que na prática limitam o seu campo de utilização. Isto faz crer a alguns que não há liberdade em Portugal. 0 exercício real das liberdades públicas, como o funcionamento normal das ins­ tituições, pressupõem um nível de educação cívica, um espírito de tolerância, uma noção de responsabilidade e um sentido de justiça que não se equivalem em todos os países. A liberdade não se mede pelos textos, mas pelos costumes. 642

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0 sistema partidário vigente de 1910 a 1926 propunha-se sem dúvida conceder liberdade de associação, e à sombra dela e das leis vivia nesta mesma cidade a Associação Católica. Uma noite em que ali falei sobre o equívoco que então me parecia existir entre a Democracia e a Igreja, juro que não pelo reflexo das minhas palavras, de modo algum incendiárias, mas pelo fervor dos defensores da liber­ dade, esvaziaram estes de todo o recheio útil a sede da instituição. Salvo e indemne daquela prova, tive ocasião de admirar na rua com que zelo a polícia guardava as pernas das cadeiras. Havia o direito de reunião. Sem dúvida. Mas ao iniciar-se um comício no claus­ tro da Sé Nova de Coimbra, para levar ao Governo respeitoso protesto contra a secularização de S. João de Almedina, mal o primeiro orador dissera algumas pala­ vras, logo grupos de liberais invadiam o local e desfaziam a reunião. Surpreendi-me então ao ver num dos grupos o meu sapateiro, que com igual proficiência se propu­ nha amolgar-nos as costelas e consertar-nos as botas. Havia liberdade de imprensa; havia mesmo a excelente liberdade de enxovalhar os Poderes Públicos, injuriar os homens do Governo e denegrir a honra da Nação. Mas, sobretudo nos primeiros anos, quando era possível às oposições fazer ressur­ gir do empastelamento da véspera um tímido número de jornal, era caso grave con­ seguir a sua exposição e anunciar a venda. Neste quadro se vivia em Portugal no que se refere a liberdades públicas, apenas efectivas para os partidários do Governo. As limitações actuais às liberdades enunciadas acima provêm de duas fontes consagradas pelas leis ou pela interpretação corrente: haver casos em que o seu exercício depende de autorização; haver outros em que a autorização não será mesmo concedida. O sistema não é perfeito e pode dar a impressão, inclusive a pessoas de boa fé, de que a liberdade que usufruem não é um direito, mas uma con­ cessão facultativa da autoridade pública. Não defendo por isso as coisas como se encontram actualmente - precisam de ser reformadas - , mas justifico as cautelas que tem sido necessário tomar. A generalidade dos portugueses não teve nunca tanta liberdade como no actual regime, porque, nos limites em que se concede, é igual para todos e efectivamente garantida. Assim se compreende que a vida associativa se tenha multiplicado e intensificado e que não se verifiquem entraves visíveis à vida corrente dos portu­ gueses. Simplesmente a associação para a política partidária, as reuniões para a política partidária, a imprensa para a política partidária sofrem limitações, coeren­ temente com a pretensão de curar do partidarismo doentio que a degradava a sociedade portuguesa. Trata-se em verdade de um «regime de cura» e de legitima defesa, em grau que não pode ser considerado superior às necessidades. É natural que alguns homens educados para a luta puramente política, as espe­ culações demagógicas, as exaltações emocionais das massas populares, e por esse motivo propensos a reduzir a vida da Nação à agitação própria e das forças parti­ dárias que lhes restem, não tenham revelado compreensão nem dado mostras de adaptar-se. Mas a Nação que faz livremente a vida que quer, a Nação viva e real,

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essa, comparando passado e presente, olha com certa desconfiança o zelo destes apóstolos da liberdade. Há no entanto duas dificuldades graves que temos de considerar, embora não tenham recebido solução cabal em qualquer regime. Refiro-me è prevenção dos possíveis desregramentos do Poder e às garantias de comunicação reciproca entre o Poder e a Nação. Não puderam resolvê-las os regimes baseados nos partidos, pelo artificio que representam e pela paixão e acuidade das lutas políticas; e nos regimes de partido único, e especialmente nos estados totalitários, não se descortina, den­ tro da lógica pura, solução capaz. 0 Poder precisa de sentir-se limitado, agir sob limitações — as internas, provin­ das da própria consciência dos governantes, da existência das leis e do regular fun­ cionamento dos outros órgãos da soberania; e as externas, provenientes do juízo público, duma opinião que seja esclarecida e desapaixonada. A necessidade deste juízo pressupõe, porém, a existência de meios e de liberdade suficiente para se exte­ riorizar. E o mesmo se dirá do contacto, da comunicabilidade entre o Poder e a Nação. Simplesmente penso que, se aqueles problemas vêm um dia, apesar da mperfeição que marca toda a obra humana, a ter uma solução satisfatória, esta ão advirá do simples reconhecimento de direitos abstractos, mas há-de enconar-se através da organização das actividades nacionais, cuja representação venha á ser junto do Estado, no Estado, o espelho e a síntese do sentir geral da Nação. V I. O REGIME E OS TRABALHADORES Falando numa cidade que por antonomásia se chama a cidade do trabalho, poderia estranhar-se que não dissesse uma palavra referente à atitude do regime para com os trabalhadores. A mais expressiva prova de respeito que podíamos dar pela liberdade e dignidade dos trabalhadores e de zelo pelos seus interesses pareceu-nos ser não os conside­ rarmos uma classe à parte na sociedade portuguesa nem tentarmos lançar, com o seu apoio, uma política de massas, para apressada satisfação de reivindicações sociais. A primeira ideia não cabia na construção que tem por um dos seus lemas o trabalho como dever social; a segunda não se afigurava conforme nem às origens do regime nem ao conceito que fazemos da Nação e da política nacional. Sendo assim, a massa trabalhadora ou, mais precisamente, o operariado não constitui para nós nem individualmente nem cm conjunto matéria-prima para a vida política. Ele não pode nem deve constituir um partido, porque não há partidos e porque entra, através do regime corporativo, na formação do próprio Estado. Mas esta situação arrasta consigo responsabilidades especiais e exige preocupação constante da nossa parte para obviar às perigosas solicitações a que está sujeito. A crise que parece ter atingido mortalmente, fora da Inglaterra, os partidos socialistas europeus - quer tivessem adoptado um vago socialismo de reivindica­ ções sociais, quer, mais audazmente, defendessem a socialização de alguns meios de 644

XXXI. 0 meu Depoimento produção - , essa crise não se me afigura passageira: ela é, por um lado, reflexo da deliquescência geral da política partidária e, por outro, resultante da própria lógica socialista. A força das ideias e das posições tomadas dificilmente se deteria a meio caminho e optaria mais tarde ou mais cedo pela conclusão final - o comunismo ou o socialismo integral. As muito curiosas cisões ou ameaças de cisão que se verifi­ cam em vários partidos socialistas traduzem a crise provocada pelo conflito entre o espírito tradicional, que se esforça por manter princípios basilares da actual organi­ zação económica e social, e o logicismo revolucionário dos que pretendem chegar às últimas conclusões: todo o poder aos sovietes. De modo que o operariado não tem diante de si senão duas perspectivas, quero dizer dois caminhos - comunismo e corporativismo: o primeiro com posição defi­ nida quanto aos meios de produção, quer esta se verifique mais conveniente quer menos para a riqueza geral e para os mesmos trabalhadores; o segundo livre de escolher os processos de maior rendimento colectivo e de maior beneficio para o operariado; o primeiro obrigado, por força da socialização, a dirigir rigidamente a vida e a suprimir toda a liberdade; o segundo assegurando, dentro do condiciona­ lismo da produção, os interesses materiais e morais do trabalho e respeitando a liberdade do homem, do membro da família, do trabalhador, do cidadão; o comu­ nismo criando a miragem de os trabalhadores serem eles o Poder e o Estado; o cor­ porativismo dando-lhes a realidade da sua comparticipação no Estado e da sua soli­ dariedade com todos os outros portugueses nos interesses da Nação. Nem sequer me permito duvidar da escolha. Mas eu desejaria que da larga massa de reformas sociais realizadas pelo regime, tranquilamente e em tempos não favorá­ veis para a economia nacional, os trabalhadores, a quem nada peço senão compre­ ensão e patriotismo, fixassem o seguinte: primeiro, toda essa vasta obra se empre­ endeu e levará a cabo só por força da política nacional que servimos, sem solicitações de um partido ou pressão de organizações revolucionárias, os quais enquanto existi­ ram ou se impuseram nada conseguiram fazer; segundo, as melhorias alcançadas estão em correspondência directa e em dependência absoluta do ordenamento e produtividade da economia do País em que se integra o seu trabalho. E oxalá que sobre as possibilidades dela, ainda muito limitadas, não tenhamos lançado, impelidos pelo interesse de melhorar a situação dos trabalhadores, encargos demasiados. Não o serão nunca se, partindo daquele facto, nos resolvermos a trabalhar. VII. O REGIME E A IGREJA Portugal nasceu à sombra da Igreja e a religião católica foi desde o começo ele­ mento formativo da alma da Nação e traço dominante do carácter do povo português. Nas suas andanças pelo Mundo - a descobrir, a mercadejar, a propagar a fé - impôs-se sem hesitações a conclusão: português, logo católico. Tiveram o restrito significado de lutas políticas, e não de questão religiosa, os dissídios dos primeiros séculos entre os reis e os bispos e os que mais tarde envolveram os governos e a Cúria. Na nossa histó­ 645

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ria nem heresias nem cismas; apenas vagas superficiais, que, se atingiam por vezes a disciplina, não chegavam a perturbar a profunda tranquilidade da fé. A adesão da generalidade das consciências aos princípios de uma só religião e aos ditames de uma só moral, digamos, a uniformidade católica do País foi assim, através dos séculos, um dos mais poderosos factores de unidade e coesão da Nação Portuguesa. Portanto fac­ tor político da maior transcendência; e por esse lado nos interessa. Em virtude daquela mútua incompreensão a que aludira Garrett — nós não com­ preendemos o frade... - o constitucionalismo recém-nascido destruiu as ordens religiosas, e com esse golpe não só diminuiu o potencial humano de apostolado, mas as riquezas afectas ao serviço religioso e às obras de assistência. Prudente­ mente, decerto para que nem tudo se perdesse, alguns bens apareceram transferi­ dos para o património do Estado e dos políticos, mas a Igreja sofreu com o empo­ brecimento - que aliás ê o menos - e através das restrições do princípio associativo o mais duro golpe do século. E pode dizer-se que não mais se refez. A consquente baixa cultura católica do povo não teve nos nossos dias senão um equivalente na incultura religiosa da massa dos dirigentes. A Lei de Separação de 1911 é na forma e na essência das disposições a tradução de um jacobinismo atraado de cem anos, que desconhecia tanto o fenómeno religioso em si mesmo como importância do factor católico na consciência nacional. A mesma possibilidade da existência das missões católicas no ultramar que mais tarde se admitiu foi, pelo seu cunho de transigência e pela inópia de meios, a confirmação de que era adversa a finalidade geral. Numa Europa que, à parte a Espanha e porventura a Itália, perdera a unidade da fé, mas em que a liberdade religiosa estava legalmente assegurada, o Estado atribuiu-se em Portugal um fim teológico negativo — desenraizar o catoli­ cismo da alma do povo nalgumas gerações. E lá se foi o resto dos bens. Neste montão de escombros materiais e morais a Concordata de 1940 deve ser considerada no domínio religioso como a reparação possível das espoliações passa­ das e a garantia da liberdade necessária à vida e disciplina da Igreja, ao exercício do culto e à expansão da fé. Mantendo o principio da separação como mais consentâ­ neo com a divisão dos espíritos e a tendência dos tempos, ela dá à Igreja a possibi­ lidade de se reconstituir e mesmo de vir a recuperar por tempos o seu ascendente na formação da alma portuguesa. Sob o aspecto político, a Concordata pretende aproveitar o fenómeno religioso como elemento estabilizador da sociedade e rein­ tegrar a Nação na linha histórica da sua unidade moral. Ora bem. A Igreja não tomará, não pode tomar posição num debate político; mas os católicos não podem manter-se indiferentes às suas consequências. Não vi ainda nada que expressamente se referisse ao problema religioso; mas conhece­ mos os homens e as suas ideias; sabemos das ligações e compromissos subterrâ­ neos que mais uma vez pretenderiam impor-se à Nação; vimos escrita a intenção genérica de destruir a obra realizada nos últimos vinte anos. Não era porém neces­ sário anunciar o propósito: nem a questão religiosa seria reposta nos mesmos ter­ mos. Tornou-se hoje corrente em muitos países que se deixam dominar pelas cha­ madas forças libertadoras acusar Deus de conspirar contra o Estado...

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VIII. 0 REGIME E A SOCIEDADE INTERNACIONAL Como as outras nações, Portugal não vive isolado no Mundo; tão-pouco o pode­ ria lograr. As relações que mantém, a colaboração que presta, os apoios de que dis­ põe derivam em parte da sua índole e do conceito da vida internacional e, no mais, da extensão e natureza dos interesses a defender como agregado político autó­ nomo. Os interesses, mesmo os de ordem moral, sobretudo para as pequenas potên­ cias, circunscrevem-se ou definem-se num espaço determinado. E isto quer dizer que, se a política internacional se prende por um lado às exigências da civilização, é por outro determinada por factores geográficos dominantes. Eu não suponho que entre o regime actual e o que passou e se desejaria fazer reviver haja, no que respeita aos princípios morais da ordem internacional, grandes diferenças. Todos nos declaramos amigos da paz. prontos à colaboração entre as nações, sem dependência de regimes ou de ideologias, dispostos a fazer decidir por meio de arbitragem os litígios internacionais. Em principio está certo, mas as aplica­ ções práticas, a solução dos problemas concretos podem variar ao infinito e arrastar as mais graves consequências. Vou referir-me apenas a um ponto — a admissão nas Nações Unidas e as relações com a Rússia. A Oposição dá às duas questões sentido e alcance internos, e nada está mais longe da realidade dos factos, nada se concebe mais contrário aos interesses da Nação. No primeiro momento em que lhe foi possível Portugal requereu a sua admissão às Nações Unidas. Devia fazê-lo em obediência aos princípios constitucionais acima aludidos e que aliás sempre estiveram no espirito e no procedimento histórico da Nação Portuguesa. Isto não representa de modo algum acto de fé na consistência da organização e na sua eficiência prática nem esperança de interesse directo ou indirecto na admissão. É, sim e apenas, a homenagem devida a um pensamento generoso, ainda que, no presente momento e no estado do espirito do Mundo, vagamente ingénuo; é a concordância com o ideal de paz ou de confraternização geral dos povos, ainda que se verifique longínquo e impossível de atingir. Não temos retirado a candidatura por dois motivos: primeiro, porque os nossos deveres subsistem, mesmo se outros não cumprem o seu; segundo, porque nos é agradável ver a Rússia violar a Carta de cada vez que se nos opõe. No meu modesto modo de ver as nações iniciadoras do Pacto cometeram o erro, talvez inevitável, mas previsível depois da experiência da Sociedade das Nações, de considerar as Nações Unidas o fulcro de toda a vida de relação mundial e órgão supremo da política internacional, sem poderem assegurar-lhe a necessária univer­ salidade e meios práticos de acção. Destas esperanças e desmedida ambição deri­ vou outro erro - a política de fazer ingressar e tornar dependentes da U. N. 0. todas as organizações e formas de colaboração internacional existentes, sem se saber como garantir a participação dos estados, mesmo os não considerados membros das Nações Unidas. (Não falamos de nós, que obtivemos o ingresso e colaboramos em quase todos esses organismos.) De modo que os estados vieram a encontrar-se 647

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em face das seguintes perspectivas: organismos internacionais de carácter técnico jungidos à organização política, e desse modo sujeitos às repercussões das suas cri­ ses e das suas conveniências; uma organização unitária de essência política que não pode abarcar e muito menos resolver os problemas do Mundo. Desta verificação se deduziu já — e ainda bem — a necessidade de, sem con­ trariar a organização abertamente, começar a fazer-se a desarticulação de pro­ blemas políticos fundamentais, como os de defesa e os de reabilitação econó­ mica, para os tratar em bases regionais ou de mais estreitas afinidades de interesses ou civilização do que as que podiam encontrar-se no areópago univer­ sal, e até independentemente de se pertencer ou não às Nações Unidas. Mas, se assim é, quando se esboça o pensamento de concentrar toda a política externa portuguesa na aliança com a Inglaterra e na admissão às Nações Unidas, o menos que se pode dizer é que se está completamente fora das realidades e se está dis­ posto a sacrificar a ideologias ou conveniências partidárias os maiores interesses do País. É por outro lado ilusório pensar que podem ter resultado útil os esforços empre­ gados por alguns inimigos do regime no sentido de criar condições internas que permitam a admissão de Portugal nas Nações Unidas, mesmo porque, além do mais, o problema não é esse. Nós temos sido sucessivamente para os representan­ tes russos o país que se desconhece por não haver com ele relações diplomáticas, o pais fascista e por fim a nação semifascista que ajudou a Espanha no seu movi­ mento libertador. Mas, quando o Tribunal de Justiça Internacional decidiu não poder fundamentar-se a exclusão de qualquer país senão em razões constantes da Carta, os delegados russos foram então inteiramente francos: o veto é um instru­ mento político e como tal o usamos. Tu dixisti. De modo que ressuscitar a Cons­ tituição de 1911, com o seu partidarismo tumultuante, restabelecer mesmo rela­ ções diplomáticas com a Rússia — tudo é para aquele efeito inoperante. A questão é outra: fazer ou não fazer o jogo russo para a destruição da Europa e a sovietização do Mundo; trair ou não trair na arrumação das forças os interesses da civiliza­ ção ocidental. IX. O REGIME E A SUA EVOLUÇÃO FUTURA Embora convencido de que a política se faz muito com o sentimento e pouco com a razão, eu não podia deixar de apelar hoje sobretudo para a inteligência dos portugueses, tratando-se de problemas de tão alta importância e que seria desas­ troso confiar ao jogo das paixões. Não há regimes eternos, não há regimes perfeitos, não há regimes universais. Não há regimes eternos, mas há regimes estáveis e instáveis; não há regimes perfei­ tos, mas há os que servem e os que desservem as nações; não há regimes universais, mas há os que consideram e outros que desconhecem a particularidade das circuns­ tâncias e a universalidade do factor humano. 648

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O que se pretende? Que, tendo em atenção as qualidades e defeitos dos homens e da sociedade a que se aplica, o regime realize, no máximo possível de ordem e de liberdade individual, as condições necessárias ao progresso da vida colectiva. Temos de reconhecer que não alcançámos ainda soluções satisfatórias para todos os problemas constitucionais do regime, e só por esse motivo este deve admi­ tir reformas mais ou menos vastas. Isto é uma questão; outra é saber se está sujeito a revisões sucessivas o conjunto dos seus princípios e dos seus caracteres essenciais. Se isso pudesse, ser, é que o regime, em vez de saudável tendência para progredir e aperfeiçoar-se, teria consagrado o princípio da sua mesma instabilidade e desenvol­ vido no seu seio o germe da própria destruição. Todos, porém, estarão de acordo em que este facto criaria à vida política nacional uma série de crises lamentáveis sempre que se devesse recorrer ao eleitorado. Os que. tendo servido nas organizações políticas do passado, têm persistido em não dar ao País a sua colaboração de homens públicos através da actual situação política só pensam no retorno à livre organização dos partidos; e não há dúvida de que o excessivo recurso ao eleitorado de tipo individualista lhes permite alimentar esperanças de regressão. Mas não há também dúvida de que por tal caminho se assistiria de novo à agitação e fragmentação partidária, à mesma desordem parla­ mentar, à mesma instabilidade governativa, à mesma impotência constitucional ou efectiva do Chefe do Estado. E esta seria ainda a melhor hipótese. Não. 0 regime não tem de destruir-se; tem de completar a sua evolução, e a crise actual patenteia a todos essa necessidade. Não tem de admitir ou enxertar na sua estrutura os princípios contrários, mas de desenvolver a aplicação dos próprios. E, não devendo ser precipitada, essa evolução terá de realizar-se sem paragens e sem hesitações. Pelo menos deverá ser esta a última vez em que é técnicamente possível um golpe de estado constitucional.

Sinto que me alonguei demasiadamente e vou terminar. Gostaria de ter-me ocupado de questões de outra ordem, e muitas havia da maior importância para a vida e o futuro da Nação. Mas vi-me obrigado a dar a primazia a problemas de filosofia e organização política, por ser evidente que nas circunstân­ cias presentes relevam a todos os outros. De facto, a sua solução em certo sentido condiciona a possibilidade de solução dos restantes ou, pelo menos, não pode independentemente dela esperar-se sejam salvaguardadas a vida, a ordem e a prosperi­ dade futuras da Nação. A Oposição vai fazer a sua campanha eleitoral, pregar, nos termos mais pacíficos já se vê, a sua guerra civil. Suponho que pouco dirá de questões concretas e instan­ tes da Nação, porque não lho permitem a heterogeneidade dos seus elementos cons­ titutivos, as divergências ideológicas e o cuidado de não pôr a descoberto o apoio dos comunistas. Vai por isso insistir especialmente na campanha da liberdade, como único ponto possível de acordo, aliás provisório. Da liberdade esperará que desabro­ 649

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chem depois espontaneamente a ordem, a prosperidade, as soluções práticas dos problemas. Sendo assim, revelar-se-á que está ultrapassada pelas ideias e realidades do nosso tempo e pertence ainda - sombras vagas, errrantes — a um passado que não pode ressuscitar. E nós? Nós o que prometemos? Nada senão, partindo do muito que fizemos, rea­ lizar o muito mais que temos ainda que fazer. E, sacrificando aos caprichos dos homens algum tempo precioso, esperamos que passe o aguaceiro, para continuar.

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X X X II. NO FIM DA CAMPANHA (I) Não perderão mais de dez minutos os que tiverem a paciência de ouvir-me. 0 debate político a que temos assistido comporta certamente lições e consequên­ cias; mas o meu propósito de hoje é apenas fazer ligeiro comentário a alguns dos seus aspectos mais salientes e dirigir o último apelo nem sei se ao patriotismo se ao simples bom senso dos portugueses. Não é a nós que compete criticar a Oposição pelos seus deslizes. Posta a ques­ tão no terreno eleitoral, só tínhamos que tirar deles o maior proveito. Mas, habitu­ ados, como estamos sempre, a referir tudo ao plano nacional, compreender-se-á que lhes façamos alguns reparos. Todos haverão descoberto — e vários os comentaram - três erros fundamen­ tais da campanha da Oposição: disputar a eleição presidencial; pôr sobre ela toda a questão do regime; aliar-se com os comunistas e quase submeter-se à orienta­ ção destes. Já não é pouco dura, a meu ver, a necessidade de os povos escolherem por este ou aquele processo os seus chefes supremos. Quando o Chefe do Estado não é simultaneamente o Chefe do Governo e responsável directo pela governação pública, o que acima de tudo interessa é a função específica de coordenar as forças políticas e de representar a unidade nacional; e sob este aspecto não deveria ser nunca diminuído. Ora nas circunstâncias que caracterizam o momento político português a candidatura da Oposição não oferecia a menor viabilidade, pelo que apresentá-la só teria, sem compensação alguma, o efeito pernicioso de um factor de divisão entre portugueses. 0 caso foi especialmente grave por se ter colocado sobre a eleição presidencial toda a questão do regime. 0 Supremo Tribunal de Justiça, feito o exame dos docu­ mentos apresentados, decidiu que o candidato da Oposição se encontrava em ter­ mos legais. É muito duvidoso que assim pudesse julgar se junto ao processo o manifesto em que se definiam os trâmites a seguir para levar a cabo o que julgo ter chamado correctamente «golpe de estado constitucional». Mas o Governo nada fez para evitar a consulta eleitoral com aquele propósito confessadamente revolucio-

w Palavras radiodifundidas em 11 de Fevereiro de 1949, ao encerrar-se o período da propaganda eleitoral (reeleição do Chefe do Estado, Sr. Marechal Carmona).

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nário, antes aceitou a questão nos termos em que a Oposição a desejou pôr. Isto ‘ pode fazer-se por excesso de cavalheirismo ou galhardia; pode admitir-se uma vez se com tal se espera sanear o ambiente e acabar de desfazer ilusões perigosas. Mas nem jurídica nem politicamente é prática que se justifique ou recomende, pela ins­ tabilidade que pressupõe na estrutura do próprio Estado. Não sei até que ponto pode o caso ser considerado como táctica de propaganda, visto que esta se desprenderia assim das qualidades dos candidatos e se alargaria à revisão crítica dos fundamentos do regime e apreciação do valor da sua obra. Na ver­ dade, em tais circunstâncias, que davam à discussão a máxima amplitude, a situação derivada do 28 de Maio e o regime estabelecido pela Constituição de 1933 teriam de sofrer o confronto, de um lado, com o regime anterior, do outro, com um futuro riso­ nho ou tenebroso, conforme os pontos de vista - em todo o caso enigmático. Acerca do passado estávamos todos elucidados, sem que a convicção geral se sentisse abalada pelo orgulho com que foi reivindicado por alguns; acerca do futuro houve quem concretizasse em fórmula de inexcedível simplificação o que se dese­ java: «destruir o que aí está; o resto ver-se-ia depois». Foram horríveis de ouvir >stas palavras: destruir... o resto... Mas o resto é tudo: é a vida, a saúde, o trabaho dos portugueses; a segurança da família e dos lares; o progresso da terra; a garantia do direito; as normas de sociabilidade; o anseio da cultura e do bem-estar; a ordem pública e a justiça nas relações sociais. 0 resto? Mas o resto são os inte­ resses, os problemas e a vida da Nação; é a sua alma, o seu tipo de civilização e do cultura; a sua história e projecção no Mundo; o seu prestígio, a sua dignidade, a sua colaboração efectiva na sociedade internacional. O resto... A Nação sobressal­ tou-se, sentiu que se jogavam no ardor de discussões apaixonadas ou levianas as coisas mais sérias e mais graves e assentou na ideia de que muitos homens pareciam não ter a noção exacta das responsabilidades políticas que se propunham assumir. A aliança com os comunistas está possivelmente na origem destes males e cons­ tituiu só por si o mal maior. Para se garantir com o dinamismo dos filiados, a Opo­ sição resignou-se a perder o concurso dos valores que não transigiam com eles, e teve de comprometer-se ao mínimo de assegurar ao comunismo liberdade de pro­ paganda e de organização no Estado futuro. Aliás ele não precisaria de mais nada. As consequências destas posições no que respeita aos interesses externos e á política internacional portuguesa foram já apresentados em termos que não penso em esclarecer nem reforçar. No plano interno, o reconhecimento do comunismo como força política legítima - dado que não podia aspirar a ser governo pela fata­ lidade de circunstâncias insuperáveis - seria a impossibilidade da ordem, a anarquia da vida portuguesa. Quebrar a resistência moral das nações, desorganizar a sua economia, exercer sobre a máquina do Estado acção paralisante é função atribuída ao comunismo em toda a parte onde o governo lhe está vedado. A diminuição até à impotência da força das nações que se lhe entregam é o maior serviço reclamado pelo país estrangeiro que o inspira, o apoia, o subsidia. De modo que sofrer um país a acção do comunismo quando no seu seio irrompeu, devido a causas que não 652

XXXII. No fim da Campanha

puderam ser dominadas, é uma fatalidade contra que tem de lutar-se, fazendo apelo a todas as forças de ordem, para neutralizar-lhe os efeitos, à espera de melho­ res dias. Que se dêem possibilidades de desenvolver e organizar forças tâo virulen­ tas e corrosivas do organismo social, tão contrárias ao espírito da civilização de que somos filhos, onde com atenta vigilância podem ser mantidas em respeito, senão inteiramente neutralizadas, parece-nos cegueira que a paixão política pode expli­ car, mas os interesses da Nação claramente condenam.

Pois sobre estes três erros essenciais se ergueu a campanha da Oposição. Deixa­ rei sem comentário o modo como foi conduzida. Devo apenas dizer que o povo português, pelas suas qualidades de compreensão, de cultura, de bondade, mesmo pela sua experiência e instinto políticos, merecia um pouco mais de respeito. Ver­ dade seja que um senhor nos qualificou de «cafres da Europa», e nessa base deve­ mos confessar que muitos propagandistas, pela palavra oral ou escrita, estiveram perfeitamente bem. É muito difícil conseguir uma síntese da propaganda da Oposição e mesmo da do regime que se lhe contrapunha. Mas, se pusermos de parte os trabalhos publi­ cados sobre dois ou três problemas concretos - finanças, assistência, economia —, nos quais aliás não se discutiram a sério princípios, mas aplicações ou a maior ou menor extensão dos benefícios concedidos, podem talvez sem grande erro dedu­ zir-se da massa da propaganda os seguintes alinhamentos gerais: governo - polí­ tica; Nação - partidos; autoridade e ordem - liberdade. As pessoas menos prepa­ radas ou precavidas não podem ter ficado indiferentes à insistência em certas ideias mestras. Elas traduzem de facto dois processos, duas escolas, dois pensa­ mentos políticos, e é entre eles que terá finalmente de escolher-se. De um lado, reconhece-se a necessidade primordial de um governo que governe, de um governo cujos princípios, força e estabilidade sejam garantia de acção gover­ nativa eficaz. De outro, tornou-se evidente que a política, pura e simplesmente, a política colhia os maiores favores, como se um país pudesse viver, no que depende do Estado, do vazio, da agitação ou da intriga à roda do Poder. E em vez de, quando assim entendida, se considerar actividade estéril, chegou-se ao cúmulo de confe­ rir-lhe virtudes criadoras. De cá, a preocupação absorvente do interesse da Nação, da unidade nacional a sobrepor-se às pequenas ou grandes divisões dos portugueses; de lá, a ânsia de restaurar a vida partidária, a obsessão do partido - do partido que aparece e desaparece, que se fracciona, que se funde, que se transforma, que entra em combinações ou desfaz acordos, que pretende interpretar as correntes de ideias do País e pràticamente pouco mais consegue representar e alimentar que as ambi­ ções das clientelas. Aquém, a autoridade que cria a ordem e a ordem que condiciona a liberdade; além, a liberdade, tomada no vago, no absoluto, e desprendida de todo o condicio653

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nalismo social, a liberdade até aos paroxismos da anarquia. Sem dúvida, os mais cultos temeram o absurdo e de envolta com muita filosofia admitiram restrições. Mas a massa dos oradores e dos ouvintes delirou com um conceito de liberdade ili­ mitada e irresponsável; dizer o que se quiser, escrever o que se quiser, fazer o que se quiser, sem responsabilidade. A estranheza, o alvoroço causados pelo facto de os tribunais incriminarem alguns abusos só pode significar que no geral se pensava não ser logicamente possível abusar da liberdade. E desta incompreensão ou diversa compreensão das coisas resultou o seguinte: 0 Governo concedeu ampla liberdade para a propaganda e preparação do acto eleitoral. Que fez com ela a Oposição? Quanto às realizações, seguiu a conhecida táctica de negar a evidência e exigir o impossível. Quanto às ideias, por detrás da cortina de fumo dos seus intelectuais, o que fez de mais marcado foi o sistemático apelo às paixões, a criação nos seus adeptos de um estado emocional, o despertar de um espírito subversivo já evidente em irreverências, desaf ios, ameaças e nalguns afloramentos de desordem verificados no País. Pareceu mesmo ser este o seu único fim. Um governo prudente e forte pode permitir-se estas experiências, sobretudo se está seguro de que a Nação, curada por longa e dolorosa experiência, está em condições de reagir. E foi isso que aconteceu. As forças políticas do regime tomaram sobre si o encargo de esclarecer a opinião pública, e fizeram-no com superioridade e galhardia. Há mais de uma semana, porém, que, atingido o ponto de saturação, a Nação se sentia habilitada a votar. Porque, a par da luz que foi possível fazer incidir sobro o problema político nacio­ nal, a sensibilidade deste admirável povo português, o agudo instinto ou sentido divinatório do povo tinham-no definitivamente conquistado para a boa causa. E, adiantando-se às mesas das assembleias, votou no Porto, em Coimbra e em Lis­ boa, em lista aberta, à passagem do Sr. Marechal Carmona. A extraordinária e como­ vente manifestação das mulheres de Portugal, a posição tomada pela massa do ope­ rariado, a vibração inexcedível da juventude das oficinas e das escolas são ainda revelações do mesmo estado geral. A Nação sentiu-se ameaçada no seu próprio ser com as doutrinas, os desígnios e até as promessas da Oposição e reagiu de tal modo que nenhuma dúvida é possível acerca do seu pensar ou do seu sentir. Desejamos ardentemente que a Oposição o verifique nas urnas — única demonstração em que parece acreditar — e dos resultados tire, para beneficio do País, a lição que a derrota a todos dará. Se no último momento fugir ao acto eleitoral, dela poderemos então dizer que fez todo o mal que pôde e evitou o único bem que podia fazer. Seja como for, nenhum de nós pode faltar, porque é preciso que no continente, nas ilhas, nas províncias do ultramar, todos os que temos a consciência de estar em jogo o interesse e o futuro da Pátria os entreguemos à guarda e honra daquele que em vinte e três anos de chefia do Estado correspondeu sempre à confiança dos portugueses.

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X X X IIL «A REGAR! A REGAR!» 1,1 Eu não posso fugir a manifestar a minha gratidão pelas palavras amigas e gene­ rosíssimas que foram ditas a meu respeito; mas encontro-me na situação difícil de agradecer com ar prazenteiro uma homenagem de que no íntimo discordo. À parte os Chefes do Estado, que têm, pelo relevo especial de suas pessoas e responsabili­ dades na condução dos povos, lugar sempre destacado na Historia, todos os mais que colaboram de uma ou outra forma no esforço colectivo da grei devem ficar sujeitos - nomes e obras - ao desgaste do tempo. E se, passados séculos, viverem ainda na memória dos homens, uma geração virá consagrar o que deixaram à Nação em nobreza, em bravura, em trabalho, em virtude, em exemplo, em acrescentamen­ tos materiais ou morais, e é, na realidade, ainda uma parcela da sua vida na terra. Pois não estamos nós agora - a geração do sacrifício e do resgate - a saldar velhas dívidas, como as em aberto até ao nosso tempo para com o Infante D. Henrique, o Santo Condestável e D. João I, D. Dinis e o Príncipe Perfeito, D. João III e o Monarca da Restauração, e tantos outros, máximos obreiros da Pátria e da sua glória? Quero dizer que o Ministério das Obras Públicas se antecipou ousadamente ao juízo da História - quem sabe se um pouco desconfiado da sua justiça - , e por este lado não me deixa tranquilo acerca do mérito da causa. Mas nada há a fazer agora, pois que, tendo Leopoldo de Almeida esculpido no bronze e integrado na pedra da bar­ ragem a minha efígie, ficou o nome confiado ao respeito devido à obra de arte.

Há mais de duas décadas, estudando economia em Coimbra, caiu-me nas mãos um livrinho sobre 0 Problema da Água na Agricultura Portuguesa, do Prof. Rui Mayer, que tantos anos depois reencontrei a saborear, traduzir e anotar com profi­ ciência inexcedível de humanista e de agrónomo as Geórgicas de Virgílio. Nunca mais reli o pequeno volume, mas julgo não me enganar referindo que terminava, à laia de conclusão doutrinal, por este convite ou incitamento: A regar! A regar! No espírito do rural que eu sou - de raiz, de sangue, de temperamento - , ape­ gado à terra, fonte da alegria e do alimento dos homens, aquelas expressões fica­ ram, pelo vincado da frase e a insistência da ideia, a ressoar pelos tempos fora,

1,1 Palavras proferidas na inauguração da barragem «Salazar», no vale do Sado, em 29 de Maio de 1949.

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mesmo quando não previa que pudessem de qualquer modo implicar com decisões de governo. A regar! A regar! A minha experiência de minúsculo agricultor a 300 quilómetros de distância e regularissimamente deficitária, contribuição com que pago a paixão da terra - há-as piores e mais caras deu-me, por outro lado, a compreensão fácil e vivida deste problema: o que é e pode ser a água na terra portuguesa. Vivemos secularmente no Pais, salvo raríssimas excepções, conhecidas e anota­ das, da água individual, digamos, em regime individualista na busca, na exploração, na utilização — água no geral precária, ao mesmo tempo desperdiçada e insufi­ ciente e ainda irremediavelmente cara. Assim terá de continuar a ser em muitos casos, por fatalidade das circunstâncias, isto é, por não ser possível outra solução. Mas onde o princípio comunitário possa aplicar-se, com a intervenção de meios financeiros e técnicos adequados, abrem-se horizontes incomparavelmente mais vastos à agricultura e conseguem-se resultados económicos ou sociais que, na pequena escala dos pequenos empreendimentos hidroagrícolas, se devem conside­ rar inatingíveis. Coube a esta geração ter sentido as necessidades do seu tempo e sabido trabalhar nas grandes obras de rega. Para nós, que não queremos ser escravos da riqueza, mas entendemos dever tra­ balhar para que a riqueza sirva o homem, a água não há-de ser só o factor de pro­ dução mais abundante, mais certo e económico, mas, como disse o Sr. Ministro das Obras Públicas, a saúde da gente, a alegria e frescura da paisagem, o trabalho intenso, o sangue e vida da terra. Todos os que a esta e outras obras semelhantes têm dedi­ cado talento, vigílias e canseiras, desde os que as conceberam e orientaram até aos que com o esforço do braço e o suor do rosto as fizeram surgir a desafiar os sécu­ los, podem sentir a satisfação de que por sua indústria é possível haver desde agora mais pão e mais felicidade em Portugal. E pois que os campos estão sedentos da inclemência do ano e o trabalho se con­ cluiu, obedeçamos ao sábio incitamento, que é também o nosso anseio: A regar! A regar!

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X X X IV PORTUGAL NO PACTO DO ATLÂNTICO ll> Senhor Presidente da Assembleia Nacional: Senhores Deputados: A larga discussão que precedeu e se seguiu à assinatura do Pacto do Atlântico ou acompanhou a sua ratificação nalguns países signatários parece-me ter esgo­ tado a matéria e dispensar novos esclarecimentos acerca da razão de ser e alcance do tratado. Demais a Câmara tem à sua disposição o proficiente parecer da Câmara Corporativa e a Comissão dos Negócios Estrangeiros é especialmente qualificada para fazer também o estudo do assunto. A presença do Governo no momento de se pedir à Assembleia a aprovação do Pacto para ser ratificado tem por isso apenas o intento de sublinhar a sua importância, tanto no quadro da política europeia como no domínio mais particular dos interesses portugueses. Serei breve e, se puder, serei também claro. I.

A última guerra terminou com braçadas de louros sobre os feitos das potências ocidentais e o período subsequente tem decorrido entre lamentações sobre os seus desenganos. Teve-se como fim do conflito impedir a constituição de uma forte hegemonia política e económica no centro da Europa, e por esse motivo, numa orientação que denunciámos como perigosa, se decidiu esmagar a Alemanha. Teve-se, para além daquele, outro objectivo ainda: lançar os fundamentos de uma organização inter­ nacional - e para tanto se ressuscitaram velhos ideais da Sociedade das Nações. Não pode haver hoje dúvidas de que ambos os intentos se frustraram: ao simples desígnio da hegemonia alemã substituiu-se a forte e bem estabelecida hegemonia russa na maior parte da Europa e da Ásia; e esta mesma hegemonia, oposta por essência à igualdade dos estados e à universalidade duma sociedade de nações livres, não deixa viver a organização senão nos limites em que sirva os seus fins de influência ou de domínio. Mas há pior. O que vem a ser a vitória? A vitória é a verificação iniludível do desequilíbrio de for­ ças, que permite a um dos partidos em luta impor, dentro da relatividade e das limita­

Princípios e Pressupostos Senhor Presidente: Achou-se vantagem em que a Exposição do Plano de Fomento, a cuja abertura Vossa Excelência vai proceder dentro de pouco, fosse por assim dizer enquadrada num ciclo de conferências em que os oradores viessem desvendar-lhe os principais aspectos e recor­ dar os problemas que suscita a sua execução. 0 meu receio tem sido que se considere o Plano acabado e findo, sem ter de causar mais preocupações, desde que o Governo o elaborou e as Câmaras o estudaram, discutiram e aprovaram, depois de longa aprecia­ ção. Isso foi só acender uma luz e iluminar um caminho que tem agora de ser percor­ rido com esforço perseverante e no meio de não pequenas dificuldades e sacrifícios. Assim as conferências a cargo de alguns dos membros do Governo mais directa­ mente responsabilizados pelos trabalhos do Plano destinam -se a m anter a opinião pública desperta e - porque não dizer? - sim pática em face do trabalho que nos próxim os seis anos absorverá m uitas das nossas energias e a maior parte dos recur­ sos disponíveis da econom ia nacional. Parece-m e necessário que a Nação viva esse Plano na sua inteligência, no seu coração e na sua carne, quero dizer, na perfeita com preensão do que ele sign ifica para a comunidade, na aceitação consciente do que representa com o tarefa colectiva e do que há de exigir de im aginação criadora, trabalhos no gabinete e no campo, incóm odos e renúncias, disciplinas individuais e colectivas, para se realizar. Com tal finalidade, estas conferências têm forçosam ente de desprender-se dos altos problem as da técnica para se confinarem na apresentação das principais ques­ tões políticas, económ icas e financeiras que o Plano enfrenta e dos resultados a que visa. Eu nem mesmo isso tenho de fazer: cabendo me iniciar a série com uma espé­ cie de introdução, podia, a dizer a verdade, ficar-m e por aqui; mas, visto que estou e tiveram o incóm odo de vir, falarei, genericam ente embora, dos prin cíp io s e pres­ supostos do Plano, ou seja das suas grandes linhas de orientação e estrutura, do seu enquadram ento no conjunto das aspirações e necessidades da vida portuguesa, e das condições que se anteviram com o necessárias para se cumprir. Tudo farei ou tudo quereria fazer por form a tão directa e em linguagem tão sim ples que não h ou ­ vesse um português que não pudesse compreender.

Discurso proferido no Palácio Foz, em 28 de M aio de 1953, no acto inaugural do ciclo de co n fe ­ rências m inisteriais e da Exposição do Plano de Fomento.

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I.

PRINCÍPIOS A necessidade de planos na administração e na economia é filha da grandeza e complexidade das tarefas colectivas que os aumentos demográficos e os altos níveis de vida das populações impõem aos Estados modernos. Referi causas econó­ mico-sociais, mas por vezes a necessidade política de atingir determinados objectivos em prazos certos está também na raiz do mesmo fenómeno. Por seu lado estes planos tornaram-se possíveis desde que, ao mesmo tempo e pelas mesmas causas, muitas actividades privadas se vão enquadrando, por evolução natural ou im posi­ ção política, em formas ou processos colectivos de agir. A conclusão é, pois, que um benéfico intervencionismo estatal tem fatalmente de ser aqui admitido. Que não existissem estas razões profundas, haveria para nós sempre a vantagem de corrigir desmandos de imaginação, moderar desejos irreflectidos, disciplinar a nossa actividade. Somos atreitos, por conhecido modo de ser, a construir sobre entusiasmos efémeros e a abandonar, por outras, tarefas mal começadas. Ora na obra em que nos empenhamos, há que ir substituindo nos hábitos gerais a im provi­ sação pelo estudo, a volubilidade no sentir pela fidelidade a um programa. - A ca ­ bada a vigência da Lei de Reconstituição Económica, a necessidade e as vantagens de um Plano de Fomento estão fora de discussão. 1) BASE FINANCEIRA DO PLANO

0 Plano de Fomento foi elaborado tendo como base e ponto de partida o cômputo das disponibilidades financeiras do Estado e de instituições públicas ou particulares que podiam ser-lhe afectas. Normalmente estudam-se as necessidades, seriam-se as maiores aspirações, definem-se as obras e empreendimentos que as hão-de satisfazer, ligam-se pelas suas interdependências, ajustam-se pelos prazos de execução - e nasce um plano. Os custos entram no juízo do rendimento possível, mas as cobertu­ ras são nesse todo uma conclusão e não uma premissa. - Não trabalhamos assim. Embora um quarto de século de finanças bem equilibradas e de saldos de contas pudesse justificar algumas ousadias, a regularidade administrativa e a estabilidade financeira continuam a ser a melhor base da reconstrução nacional e o uso quase exclusivo de meios próprios, como se tem visto, medida salutar para o reforço da nossa independência política. Uma pressão demasiada sobre a economia interna como a criação artificial de meios de pagamento atentariam contra uma estabilidade monetária e um equilíbrio social que temos a peito defender; e o recurso excessivo ao crédito externo, como adiante direi, nem seria conforme à incerteza e precariedade das condições mundiais nem à salvaguarda dos nossos melhores interesses. Com estes critérios se chegou em todo o caso à cifra de 13 milhões e meio de contos, importância enorme, embora insuficiente para as nossas necessidades, e certamente acanhada para as nossas ambições: alguns taxarão a prudência de estreiteza de espírito, lamentarão a falta de horizontes na concepção do Plano e, 760

VIL O Plano de Fomento causados de repassar pelos dedos os seus pobres escudos, acharão estes m ilhões uma quantia perfeitam ente mesquinha. 2) BASE METROPOLITANA E ULTRAMARINA DA ECONOMIA NACIONAL Estes 13 a 14 m ilhões de contos aparecem distribuídos em partes quase iguais pela M etrópole e pelo Ultramar, e, tanto aqui com o lá, afectos em somas substan­ ciais, de um lado, à agricultura e, de outro, às indústrias, nas quais se englobam a produção de energia e os transportes. Embora os planos de fom ento não sejam uma novidade no Ultramar, pois nas grandes províncias, com o Angola e Moçam bique, se está já habituado a trabalhar dentro de planos aprovados para certo número de anos, é a primeira vez que se tenta uma sistem atização de recursos m etropolitanos e ultram arinos e se faz um estudo conjunto e coordenado das aplicações mais urgentes. 0 A cto Colonial teve por objectivo prim ário um esforço de reivindicação nacionalizadora que o povo português com preendeu em toda a sua profundeza e alcance. Em obediência aos novos princípios, a política ultram arina cuidou de cim entar a unidade moral e acreditar-a coordenação das economias, mau grado os atritos ine­ vitáveis de alguns interesses, e trabalha-se de modo que um dia se atinja a sua pos­ sível integração. Aquela unidade moral que por tão claras form as se afirm a entre o Continente, as Ilhas e o U ltram ar não assumiria todo o seu valor senão garantindo uma bem coesa unidade política; e a Nação Portuguesa assim considerada na dis­ persa vastidão do seu te rritório deve tender a co n stitu ir cada vez mais pe rfe ita ­ mente uma unidade económ ica, quer dizer, a form ar no espaço português uma e co ­ nomia nacional. A s dificu ldades que se deparem a este m ovimento, filh as de hábitos mentais nossos ou alheios, e de m uitos interesses que terão dificuldade em com pre­ ender, têm de ser vencidas pacientemente, mas com tenacidade e clarividência. Dá-se agora mais um passo, m uito grande a meu ver, e não se pode estranhar que o trabalho de coordenação não seja ainda perfeito, nem se atine por vezes com a ligação entre alguns m elhoram entos projectados e os resultados do conjunto. Ficam malhas em aberto e há obras sem ligação aparente com a finalidade geral. Não vale a pena atentar nessas coisas secundárias, que umas vezes são exigências da vida local, naturalm ente dotada de certa autonom ia, e outras a necessidade de atender a conveniências que não são só nacionais: Angola e M oçam bique, por exemplo, têm de considerar com o um dos grandes objectivos das suas com unicações servir para os mares as ligações da Á frica Central. M as o que sobretudo im porta é a fidelidade ao mesmo pensamento, são os passos em frente na mesma direcção. 3) CAPITAIS NACIONAIS E ESTRANGEIROSPARA EXECUÇÃO DO PLANO - INTEGRAÇÃO DOS ÚLTIMOS NA ECONOMIA NACIONAL É evidente que no estado actual do desenvolvimento ultram arino não se pode co n ­ tar apenas com os recursos das províncias para os investimentos necessários. Além dos 761

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que ali se possam formar e fiquem livres do desenvolvimento natural das empre­ sas, tem de recorrer-se aos capitais metropolitanos ou aos que possam conseguir-se no estrangeiro, com ou sem intervenção do Governo. Os recursos m etropolitanos serão por ora quase só os do Estado ou que este mobilize e os de instituições quase públicas. A educação que há-de fazer-se de os capitais particulares disponíveis tomarem com frequência e normalidade o rumo ultramarino levará seu tempo. Entre­ tanto e porque também não existem aqui para todas as necessidades, nenhuma dúvida pode existir de que capitais estrangeiros terão cá e lá possibilidades de co lo ­ cação. Os que o Governo utilize têm a sua disciplina política e jurídica e não susci­ tam por isso dificuldades especiais; quanto a outros são convenientes algumas pala­ vras de esclarecimento. Muitos países no mundo precisam de capitais estranhos para se desenvolver e o caso não é específico dos territórios coloniais; outros têm excedentes de capitais que desejariam colocar no exterior. Isto não é uma novidade; novidade é a sua relativa escassez, de estranhar é o tratamento a que por muitas partes têm sido submetidos nos últimos tempos. Diz-se que as feridas de dinheiro são as mais fáceis de curar. 0 dito aplicado à matéria significa que as economias altamente ndustrializadas têm grande poder recuperador, e se, portanto, curadas as feridas Ja guerra, não houver que desperdiçar em preparativos de defesa as somas que no momento se lhe destinam, dentro de pouco haverá de novo capitais em abundân­ cia em busca de colocação. 0 essencial é definir as condições em que podem ou devem trabalhar. Nós estamos a viver uma época de transição ou de crise em que os fenómenos não são redutíveis ao mesmo esquema, e em que se entrechocam com rara violên­ cia princípios e sistemas contraditórios. Assim o nacionalismo. Ao mesmo tempo que este irrompe com rejuvenescido vigor em larguíssimas manchas do mundo, tra ­ balha-se noutras partes na transposição sistemática de problemas nacionais para o plano internacional - ou por convicção de ser mais excelente o sistema ou para obtemperar a dificuldades que a mim se me afiguram restritas e acidentais. Obser­ vados atentamente esforços e resultados, parece dever concluir-se que são até ao presente modestos. Nada me custa a crer que o mundo transcenda o homem e que o homem não tenha capacidade para ver certos problemas em plano mundial; mas mesmo que a possuísse ou venha a possuir, haverá sempre que encontrar o terreno de conciliação entre o internacionalismo e a vida ordenada em moldes nacionais. Por mim continuo convencido de que a Nação é a fórmula de organização das sociedades humanas que melhor corresponde ao seu estado actual e ainda por m ui­ tos séculos no futuro, e de que melhores e mais rápidos resultados se obteriam da estreita cooperação entre as nações que da sua fusão ou confusão geral. Se é tal a nossa convicção, entendemos simplificar por nossa parte os proble­ mas, desejando que a Nação constitua o melhor que puder ser uma unidade econó­ mica. Esta não tem de ser autárcica e pode completar-se com outras economias complementares. Mas convém, para melhor ordenamento das relações internacio­ nais, que seja um todo e tenha unidade de direcção.

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VIL O Plano de Fomento A questão vista agora sob o aspecto da im igração de capitais reduz-se apenas à seguinte exigência: a integração das actividades que alimentam, na econom ia nacional, embora pelos seus rendim entos ou recuperação continuem integrados nas econom ias de que provieram. M al se calcula o que adviria para a paz do m undo e para a facilidade das relações económ icas e políticas entre os Estados, se princípio tão sim ples fosse geralm ente observado. Por outro lado seria trágico para as socie­ dades modernas se tivessem de concluir que o imperialismo económ ico é a única form a de defender a existência do capital. Na estranha confusão de ideias que vai pelo mundo e enquanto não aclaram as águas da corrente, turvadas pelo choque de tantos interesses contraditórios, a p ru - * dência manda que, em vez de seguirm os as ideias da moda, nos governemos com as nossas, que são um princípio de ordem e constituem também a nossa primeira defesa: ter na mão, aqui e no Ultramar, as posições-chave e agir de modo que a econom ia da Nação possa obedecer a um com ando nacional. - Nos podemos falar assim, em face do capital estrangeiro, porque tem os dado suficientes provas ao mesmo tem po de respeito, de gratidão e de capacidade. Estes princípios dominam as nossas concepções económ icas mas não têm repre­ sentação directa no Plano de Fomento. Nas coberturas gerais apenas se prevê o recurso ao crédito externo até um m ilhão de contos, e deste cerca de 500 mil co n ­ tos acabam de ser contratados com a banca americana e destinam-se, através do Tesouro da M etrópole, ao Cam inho de Ferro do Limpopo. 0 mais provável é que, sendo necessário, os outros 500 mil venham a ser pedidos também nos Estados Uni­ dos, com destino a em preendim entos que obriguem a grande dispêndio de dólares. Os países europeus não estão habilitados a fazer operações a longo prazo, e as ope­ rações que se possam efectuar na Europa, representadas sobretudo em encom endas com prazos de pagamento diferidos, têm de ser ulteriorm ente convertidas em ope­ rações que permitam maior desafogo. Não parece assim possível, desde que se queira agir com alguma rapidez, prescindir inteiramente do recurso ao crédito e designadamente ao crédito americano. Isto quer dizer - e v e rifica m o-lo com tris­ teza - que a Europa empobreceu com as suas guerras e o seu socialism o e que Nova Iorque tende a substituir, mesmo para os países europeus e para a África, a Flaia, Paris ou Londres. Simplesmente ao mesmo tem po que a sua Constituição política tem de ir-se m odificando para que os Estados Unidos possam actuar eficazm ente com o potência mundial, também a organização financeira se terá de ir adaptando às necessidades para que está sendo e vai ser solicitada fora do território americano. 4) A INDÚSTRIA E A AGRICULTURA NO PLANO Tenho agora de dizer algum as palavras acerca da distribuição das somas, a des­ pender, pela indústria e pela agricultura. No que se refere à indústria e pondo de lado os transportes, o Plano restringe-se na M etrópole a meia dúzia de indústrias consideradas básicas pela sua im portância própria e repercussão nas demais, e na

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produção e distribuição de energia, esta última medida pelas exigências crescentes do consumo e a necessidade de estender o seu uso aos centros e populações rurais. Quanto à agricultura, pode dizer-se que são atacados apenas o repovoamento f lo ­ restal, a irrigação por meio de grandes albufeiras e a colonização. 0 que se diz da Metrópole pode afirmar-se do Ultramar, com as diferenças impostas pelas circunstâncias, dando-se ali menor incremento à produção de ener­ gia e muito grande à construção de linhas férreas. Nem aqui nem lá se pode afirmar que estejamos em face de um plano de indus­ trialização; também não se pode dizer que se esteja em face de um plano integral de fomento agrícola. 0 facto não é arbitrário e tem a sua explicação. Sabe-se que a indústria tem rendabilidade superior à agricultura e que só pela industrialização se pode decisivamente elevar o nível de vida, como só por ela é pos­ sível atingir sem risco altas densidades demográficas. Sem suficiente industrializa­ ção nem teremos marcado local bastante para algumas produções agrícolas nem poderemos evitar completamente que os excessos de população se expatriem, como estão fazendo, nalguns casos em condições que não consideramos satisfatórias. Temos por outro lado que a agricultura, pela sua maior estabilidade, pelo seu enrai­ zamento natural no solo e mais estreita ligação com a produção de alimentos, cons­ titui a garantia por excelência da própria vida, e, devido à formação que imprime nas almas, manancial inesgotável de forças de resistência social. Aqueles que não se dei­ xam obcecar pela miragem do enriquecimento indefinido, mas aspiram acima de tudo a uma vida que, embora modesta, seja suficiente, sã, presa à terra, não pode­ riam nunca, e muito menos nas precaríssimas condições da vida mundial, seguir por caminhos em que a agricultura cedesse è indústria e em que o solo e a gente não fossem estimulados a produzir o máximo possível. 0 incremento da indústria pelos motivos acima terá de fazer-se e impulsionar-se - e factores tão decisivos como a energia e o ensino são desde já postos em movimento. Mas à parte considerar que a falta de capitais e, em certos casos, de técnica nos não permitiriam andar dema­ siado depressa, nós entendemos que a industrialização maciça do País, a ser exequí­ vel, não deverá ser prosseguida sem que se vá pondo a agricultura em condições de nos dar o máximo das suas possibilidades. Não estamos em face duma tese econó­ mica; encontramo-nos diante da necessidade de definir uma política que tem de atender ao conjunto de circunstâncias que se verificam no mundo. Sei que pagamos assim uma taxa de segurança; mas sei que a segurança e a modéstia têm também as suas compensações. Não nos importa para o caso a permanência de certas produções. É da natureza das coisas que as populações densas tenham de preferir, para poder viver, produtos ricos aos mais pobres. Estes terão de ser sucessivamente relegados para terrenos sobrantes e de menor valor ou sem valor, como são actualmente muitos terrenos do Ultramar. Pouco importa isso ou não importa muito para a vida da colectividade: a conversão na agricultura é felizmente muito mais rápida e fácil que na indústria e o que acima de tudo interessa é a adaptação das terras à cultura e o hábito do traba­ lho agrícola. 764

VIL O Plano de Fomento Infelizmente há problem as que, no meu entender, não tem os ainda bem equa­ cionados, e daí certo receio ou hesitação em prosseguir em cam inho não averiguadam ente seguro. Um exemplo. Nós trabalham os em hidráulica agrícola sobretudo em obra de Estado - grande albufeira e canais de rega - e adm inistração depois pelos interessados - os regan­ tes. Além de que tem os encontrado dificuldades - aliás conhecidas de outros paí­ ses - na adaptação ao regadio por parte das terras e da gente: além de que não tem os sido capazes de m anter um serviço de reembolso regular e compensador, não há, que eu saiba, ideias assentes sobre a possibilidade de melhorar o regadio exis­ tente ou fom en tar pequenos aproveitam entos. Os trabalhos que alguns a g ricu lto ­ res têm em preendido e o Governo tem apoiado técnica e financeiram ente estão a abrir-nos largas perspectivas e nada custa a crer que, além de outras vantagens evi­ dentes, não tenham os aqui um cam inho a explorar. M as a orientação não está reduzida a sistema com o se faz m ister para poder ser incluída em plano. Outro exemplo. Nós trabalham os em repovoamento florestal, também na base do trabalho público, em mata do Estado, e parece que trabalhamos bem: eu diria mesmo que em muitos casos bem demais. 0 serviço não é barato e é lento; alguns milhões de contos se gastarão antes de termos as serras povoadas de arvoredo com o deve ser. Com a atenção dos serviços absorvida no repovoamento público, nada de estranhar se perdesse de vista o facto de que as matas particulares representam 91% do total e que só a diferença para 100 pertence ao Estado. Ora, salvo as excepções sempre veri­ ficadas, a mata particular não oferece a densidade florestal que devia, nem a sua plantação ou sementeira e exploração se subordinam sempre aos melhores critérios técnicos. Temos em estudo as form as directas e indirectas de levar a melhores termos o dom ínio florestal do País na mão de particulares, incluindo arepovoam ento espon­ tâneo, força dadivosa da natureza, quase em absoluto desperdiçada. Também por isso neste capítulo se não pôde planear mais que o que vinha de trás. Nós lançám os a obra da colonização interna - nalgumas partes em terrenos de sequeiro, mas na perspectiva de utilização de terrenos trazidos de novo ao regadio. As realizações num caso e noutro são ainda bastante restritas e a meu ver a preços m uito elevados. 0 caso tem para nós o interesse de uma tentativa de correcção dem ográfica no País, e especialm ente de ilum inar o cam inho para a obra de c o lo n i­ zação prevista em Angola e M oçam bique, por via dos grandes aproveitam entos hidráulicos. Parece-m e m uito d ifícil dar grande increm ento a esta obra aos preços e com a orientação actual; e os estudos já ordenados pelo M inistério da Econom ia, se chegarem a conclusões aceitáveis, deverão co n stitu ir a base do trabalh o fu tu ro e de um desenvolvim ento que se me afigura dever ser m uito grande neste capítulo. À parte o que possa fazer-se, aproveitando a oportunidade da sujeição a regadio de extensas áreas de sequeiro, no sentido de co n stitu ir núcleos de proprietários agricultores, não dispom os ainda de um sistema corrector da extrem a irre g u la ri­ dade com que a terra se distribui no País. É mais que duvidoso que, seja qual fo r o nosso respeito e mesmo o nosso carinho pela propriedade privada da terra, possa o fenóm eno co ntinu ar indefinidam ente entregue a si próprio, sem orientação legal ou 765

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processo de correcçào dos piores males. Está longe do meu pensamento a «reforma agrária», tâo em moda em muitos países, como arma de índole e finalidade predo­ minantemente política e bastante desinteresse pelo rendimento económico. M as não considero sensato que problema que tão fundamente afecta a produção e o equilíbrio social não receba da nossa parte a atenção que merece. Ora bem: quando todos estes problemas forem postos em equação - era esta a conclusão a que desejava chegar - , a expressão orçamental de um plano de fom ento na parte agrícola há-de ser muito diversa da actual. Os meus votos são por que o próximo Plano, daqui a seis anos, possa nestes aspectos dar inteira satisfação. 5) A INICIATIVA PRIVADA

A inclusão no Plano de Fomento de actividades públicas e de actividades particu­ lares e sobretudo a perspectiva de elevados financiamentos assegurados a estas últi­ mas pelo Estado podem suscitar dúvidas acerca da fidelidade a um dos princípios que temos considerado fundamentais - a iniciativa privada. Nós vivemos uma época que sob este aspecto e incontestavelmente perigosa. As ideias que andam no ar, a defor­ mação profissional dos serviços públicos, a averiguada necessidade do intervencio­ nismo, a sedução do mando fazem que por toda a parte, algumas vezes com ju s tifi­ cação e muitas sem ela, os Estados vão escorregando pelo plano inclinado do socialismo. Assisto ao fenómeno com preocupação mas sem surpresa: surpresa tenho-a só de ver as democracias impelir as coisas no mesmo sentido, porque não se me oferecem dúvidas de que, além de tender à corrupção dos governos, o poderio económico do Estado só se cria e mantém com detrimento da liberdade individual. 0 ponto morto em que nalguns sectores parece ter caído a nossa economia, preci­ sada de um impulso sério; a necessidade de investir somas muito elevadas que a pre­ sença do Estado pode afoitar; a indispensável vantagem de dar incentivo e exemplo — criaram-nos a alternativa ou de aguardar que os particulares tomassem a direcção requerida pelas necessidades gerais ou de tomar a iniciativa de empreendimentos que em circunstâncias normais ficariam estranhos à actividade estatal. 0 papel do Governo será, porém, em tais casos o de fomentar a criação das empresas, apoiá-las técnica e financeiramente, ditar-lhes regimes adequados de exploração... e retirar-se, quando não seja necessária a sua presença ou o seu auxílio. Compreendo que nesse momento haverá as múltiplas dificuldades dos interesses criados. Esperemos que os Governos sejam tão fiéis a este princípio que nenhuma consideração de lucro, nenhuma expec­ tativa de valorização de capitais, nenhuma facilidade de comando económico geral os demovam duma linha de conduta que julgo essencial à saúde moral do País. II. PR E SSU PO ST O S OU CONDIÇÕES

Expostos os princípios gerais que inspiram o Plano de Fomento, hei-de ainda dizer uma palavra acerca das condições a que está subordinada a sua execução.

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VIL O Plano de Fomento Poderei re d u zi-la s às seguintes: paz externa, e sta bilida de eco nó m ica, d iscip lin a a d m in istra tiv a . 1) PAZ EXTERNA. ENCARGO FINANCEIRO DA DEFESA. SE É POSSÍVEL A MANUTENÇÃO DA PAZ E EM QUE TERMOS A primeira das condições que significa no fundo poder-se trabalhar é o pro­ blema da paz ou da guerra. Eu devo desde já afirm ar que o Plano de Fom ento representa por si mesmo, e nos acanhados lim ites da nossa actuação, uma a firm a­ ção de paz e um desejo de paz entre as nações, exprime a necessidade de que não se sacrifiquem as econom ias a incom portáveis esforços de defesa, e representa, se mo permitem, um protesto contra a nevrose de guerra em que a sociedade interna­ cional se consome. Esta condição apresenta-se-nos sob duplo aspecto - o fin a n ­ ceiro e o político, e ambos têm de ser considerados. 0 estudo das coberturas do Plano de Fomento reconheceu esta prioridade - a exis­ tência de com prom issos internacionais relativamente ao reforço da nossa defesa no âm bito do Tratado do A tlâ n tico Norte, e teve portanto de ter em conta as verbas votadas com esse fim para os anos de 52 a 54. Considerou ainda que das providên­ cias tomadas em harmonia com as tarefas atribuídas às forças portuguesas hão-de provir encargos de porventura duas centenas de milhares de contos anuais que pesa­ rão no orçamento, sobretudo depois de gasta a verba extraordinária votada. Sempre me pareceu que o esforço pedido à economia e aos orçamentos europeus no período que lhes fora marcado para o trabalho suplementar de defesa era dema­ siado, pela estreiteza do prazo estabelecido, correndo-se o risco ou da inexecução dos planos ou de pressão desmedida sobre economias já depauperadas. A nova orienta­ ção sobre o alargamento dos prazos beneficia sem dúvida, no aspecto da intensidade do esforço, as finanças dos países incluídos na organização, mas, pelo que nos res­ peita, o benefício só existe na medida em que o esforço global previsto não seja por essa form a acrescido. A percentagem de receitas orçamentais que em Portugal des­ tinam os às forças armadas é das mais elevadas entre os países associados, e por outro lado o nível de vida da nossa população é dos mais baixos, de modo que, salvo rápido incremento da riqueza pública, que não é de prever, as somas em que essa percenta­ gem se traduz não nos parecem susceptíveis de aumento. Para serem aumentadas deveriam sacrificar se as aplicações produtivas, com grave, prejuízo futuro, ou agra­ var-se a pressão sobre os contribuintes, o que não poderá fazer-se, atendendo ao baixo rendimento nacional. Daqui esta conclusão: contando com o auxílio da Organização e os acordos de defesa mútua para com pletar a nossa preparação militar, tem os financeiram ente de cingir-nos nos próxim os anos ao volum e dos com prom issos tom ados e àquelas co n ­ sequências que sabemos advirem das reorganizações decretadas. Ir além desses lim ites sign ificaria in u tiliza r ou prejudicar seriamente a possibilidade de reforçar a nossa econom ia através do Plano de Fom ento e do m elhorar um pouco o rendi­ mento e o nível de vida da gente portuguesa.

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Estas considerações valem apenas para o período de paz armada que estamos vivendo, pois, se esta se quebrasse, toda a construção teria de ser revista à luz das novas circunstâncias e necessidades. Mas quebrar porquê? Os dados do problema são conhecidos e não vale a pena demorarmo-nos no seu exame; bastará enunciá-los. No último conflito só a Rússia teve possibilidades de definir e realizar uma grande política de guerra. 0 Ocidente não pôde desembaraçar-se da meada dos problemas secundários e não conseguiu fazer vingar uma atitude nem quanto aos inimigos de momento - aliás o que menos interessava no caso —, nem em relação ao conjunto das questões que pudessem receber ao menos um começo de solução. Não falemos em responsabilidades. Além de que é natural estar cada um conven­ cido de ter cumprido o seu dever, talvez mesmo no princípio se não enxergasse o que se vê agora com certa nitidez. Como a política que a Rússia conseguiu efectivar é contrária à liberdade de umas tantas nações oprimidas, e por isso aos interesses gerais da Europa e do O ci­ dente, e ela não quer perder na paz o que obteve na luta e no período que ¡media­ tamente se lhe seguiu, a paz não será possível senão depois de passado muito tempo e só o será com cedências, que nós ao menos desejaríamos fossem mútuas. A paz próxima é pois uma ilusão e o desarmamento, mesmo relativo, sem a paz, é outra. Se somos interessados em que cedências sejam feitas pela Rússia — são necessárias duas coisas: tempo e força. Neste sentido a linha geral da política d e fi­ nida pelas potências agremiadas no Pacto do Atlântico Norte parece-me ajustada às realidades, e talvez a única possível. Por sua própria conveniência, a Rússia não desejará lançar-se em nova guerra. Seja qual for a sua política no futuro e os meios previstos para efectuá-la, ela tem interesse em curar as suas feridas em longo período de paz e em consolidar todas, se pudesse ser, ou o maior número de posições que conseguiu colocar sob o seu domínio ou debaixo da sua influência. Têm sido tais o realismo e a clarividência dos seus homens públicos que muito me surpreenderia pensassem diferente­ mente. Além de que possuem outras cartas mais fáceis de jogar - o seu co m u ­ nismo de exportação. Na verdade, os problemas político-militares derivados da conclusão da guerra, tal como foi conduzida ou pôde ser levada a cabo, complicam se extraordinaria­ mente com o facto de a Rússia se constituir em fonte, inspiração e apoio do com u­ nismo no mundo. Todo o partido comunista verdadeiramente ortodoxo tem de se confessar contra o seu próprio país e filho ou adepto de Moscovo, com as van ta­ gens inerentes e sem inconveniente algum, dada a maneira como o Ocidente se tem disposto a ver esta questão. 0 problema no que nos interessa reduz-se pois a saber até que ponto o comunismo se pode converter em causa de desavença ou, mais cla ­ ramente, de guerra internacional. Para a Rússia dificilmente o será: ela tem dado provas de não se bater em guerra aberta pelo comunismo, se tem diante de si outros interesses mais substanciais a defender. A questão de saber se o comunismo é compatível com os outros regimes 768

V il. O P lan o d e F o m en to

do m undo ocidental ou não tem sentido ou não vale a pena discutir-se; porque os factos dem onstram que a sua coexistência na sociedade internacional é possível, sempre que há mútua vantagem em coexistirem . E do lado ocidental o com unism o será por si só ou deverá ser um casus b d li, fonte de guerra? Faço a pergunta, porque não podemos dizer que se haja seguido sempre a mesma lógica na apreciação dos casos ocorrentes. Nacionalm ente não é; internacionalm ente há o risco de tender a sê-lo, mas a mim me parece que a posi­ ção defensável e conveniente seria exactam ente a contrária - isto é, bater o com u­ nismo dentro das fronteiras; conviver com ele na sociedade internacional. A pri­ meira atitude é im pecàvelm ente lógica: não só constitui defesa primária da Nação contra doutrinas que a negam e pretendem subverter-lhe a unidade moral, com o tem a vantagem de retirar a um eventual inim igo o seu melhor ponto de penetra­ ção e apoio. Mas intem acionalm ente não só nada há que aconselhe essa atitude de luta, com o esta seria desastrosa, sobretudo não se vendo possibilidade de a levar até às últim as consequências. Não é a primeira vez que uma revolução política, económ ica ou social aspira à universalidade, nem será a últim a que uma potência que prim eiro conseguiu d e fi­ nir-lhe os contornos e realizá-la, mesmo parcialmente, não aproveite para a apre­ sentar ao m undo com o obra sua que lhe impende defender não só no seu território mas nos demais. Não é também a primeira vez que a extensão duma onda de ideias, revolucionárias pela origem ou pela tendência, leva os Estados a armar-se para fazer-lhes barreira em território alheio. 0 pecado russo foi já com etido por outros e cada um pensará que m uito justificadam ente. 0 que im porta por isso é determ i­ nar qual a m elhor linha de conduta no caso que nos ocupa, ou, se não podemos a fe­ rir qualidades, qual a conduta possível. 0 que no com unism o não pode deixar de interessar à vida e convivência das nações é o seu grau de sociabilidade, isto é, a observância por sua parte das regras a que obedece a vida de relações na sociedade internacional, entre as quais o respeito pelas instituições alheias. Não pode descer-se deste m ínim o e dificilm ente se poderá ir mais além, porque tom ar-se com o princípio de acção internacional a luta contra doutrinas políticas ou sociais, que, embora contrárias á razão e à moral, cada um se arroga o direito de fazer adoptar no seu país com inteira independência, não pode deixar de criar atritos e de se converter no fim em causa de guerra. Objectivam ente não parece que possa proceder-se de form a diversa no mundo de hoje; mas ao espí­ rito de cruzada tem de dar-se cabim ento no interior dos países, com o meio de refor­ çar a coesão nacional. (Isto são teses que reputo verdadeiras no sentido pragm ático do termo, mas que na ordem prática exigem naturalmente a reciprocidade). A conclusão a que chego é que, não tendo a Rússia conveniência em fazer a guerra e não podendo o Ocidente fazê-la até por im posição moral, a paz, esta pobre paz, continuará nos próxim os anos e continuará tão mísera e m esquinha com o a temos agora. Ela só se quebrará por um desses acasos trágicos e im previsíveis, apa­ ?

rentem ente ligados a qualquer erro grave de manobra política; mas devemos ter confiança em que a habilidade dos dirigentes fará milagres para o evitar. 769

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 2)

ESTABILIDADE ECONÓMICA

Precisamos pois da paz e precisamos também duma certa estabilidade econó­ mica na nossa zona metropolitana e ultramarina. A possibilidade de execução do Plano está de facto ligada a que preços, comércio externo, balança de pagamentos se comportem dentro da linha geral que tem sido a dos últimos anos. A economia europeia vai-se curando dos desastres da guerra, sem que possa dizer-se que se reconstituiu por completo ou readquiriu já a normalidade. Parece muito duvidoso que, mantendo-se ainda aqui e além certa agitação social e sobretudo verificando-se a persistência de hemorragias graves a que alguns paí­ ses estão sujeitos nos seus territórios de além-mar, é duvidoso, dizia, que o estado actual se pudesse ter atingido sem o generoso auxílio do Plano M arshall e as largas importâncias que pela Segurança Mútua os Estados Unidos têm co n ­ tinuado a derramar, por várias formas e com vários pretextos, sobre a Europa enfraquecida. Os esforços próprios desta para se fortalecer económicamente, através de uma elaboração que não desconhecesse as realidades das economias nacionais, co n entraram-se sobretudo na Organização Europeia de Cooperação Económica, que .onta entre os seus primeiros objectivos liberalizar ao máximo o comércio entre os países aderentes e constituir uma zona cambial livre e já de certa vastidão, para facilitar as transacções. Devido à sua acção, têm-se notado progressos sensíveis, ainda que não se tenham atingido plenamente os fins em vista. Mas o sistema de pagamentos estabelecido a título experimental, tendo chegado ao termo do seu prazo, encontra-se já em regime de prorrogação precária. 0 nosso modo de ver é que, não se tendo encontrado melhor e não estando a generalidade dos países europeus em condições de libertar os câmbios e o com ér­ cio externo sem discriminação - mesmo a última tentativa britânica pare­ ceu-nos extemporânea - , conviria que àquele sistema fosse assegurada a du ra­ ção suficiente para prosseguir na sua missão: afigura-se-nos benéfico tudo quanto seja tornar cada vez mais livre o comércio e cada vez mais extensa a zona monetária dentro da qual se possa operar sem restrições. Por ironia das coisas ou porque de facto não é preciso o sentido de algumas palavras correntes na ter­ minologia política, somos nós - quem o diria - e muito poucos mais os últim os abencerragens da liberdade económica no mundo, designadamente no dom ínio do comércio, dos câmbios e da transferência de capitais, entendendo aliás sem ­ pre que, para além de certos limites, a liberdade terá de ser recíproca ou não poderá manter-se: mais claramente, não respondemos por ela. A interdependên­ cia dos mercados é tão estreita e as circunstâncias tornaram as econom ias tão frágeis ou sensíveis que restrições feitas, aliás sem intenção, na França ou na Inglaterra, atingem duramente as nossas exportações e com estas a nossa ca pa ­ cidade de compra. A crise brasileira, como restrições da Venezuela ou da A rg e n ­ tina, da mesma forma se repercutem no comércio e nas disponibilidades externas do País. 770

VIL O P lano de Fom ento

A outra ten tativa esboçada na Europa para a regularização da vida económ ica anda à roda de organizações supranacionais que dom inem grandes sectores da produção, com tendência a alargar-se às várias form as da actividade humana. Partindo do carvão e do aço, pensou-se em sujeitar a disciplina sem elhante a lg u ­ mas produções agrícolas, os transportes, a saúde, não sei que mais. Pretendem tais organizações substituir-se ou sobrepor-se às organizações mundiais de coorden a­ ção, já existentes, e co nstitu ir-se sob uma alta autoridade, superior à autoridade dos Estados. Com esta feição de cartéis internacionais superiores aos governos dos respectivos países e às suas concepções ou política económ ica, essas organizações são por ora restritas aos Estados da Europa Central, aquém da Cortina de Ferro e além dos Pirenéus. Temos m antido uma prudente reserva em face destas experiências, pelos ele­ mentos que nelas encontram os opostos a conceitos fundam entais nossos, pelo sen­ tido oculto que nelas se alberga de preparar por sectores uma federação europeia em que não vem os utilidade, e porque não estamos inteiramente seguros da form a com o agirão para com os que não têm ainda posição tomada em produções que se organizam. V ê-lo -e m o s quando tentarm os lançar a nossa pequena siderurgia. 0 que se diz da M etrópole pode da mesma forma afirm ar-se do Ultramar. A s altas de preços que se verificaram há três e há dois anos especialmente em produtos ultram arinos não poderão manter-se, nem, a dizer a verdade, é absolutam ente neces­ sário que se mantenham. 0 que é preciso é que consigamos readaptar-nos a outros níveis, embora com menores lucros de ocasião, mas com rendimento líquido no co n ­ junto das explorações e colocação assegurada dos produtos nos mercados externos. 0 caso interessa-nos e toca-n os m uito de perto, porque, embora o Plano seja uno, há uma larga parte de coberturas que se esperam dos saldos de contas das provín­ cias ultramarinas. Sendo lá as oscilações da vida económica m uito mais amplas, dos momentos de prosperidade aos de crise, do que nos velhos países de estrutura mais complexa e consolidada, e sendo mais fundas as repercussões financeiras, m anter altos números na exportação do Ultram ar a preços convenientes é fundam ental para a execução do Plano. 3)

D IS C IP L IN A D A A D M I N I S T R A Ç Ã O P Ú B L I C A E DOS IN V E S T IM E N T O S P R IV A D O S

A terceira condição exigível é a disciplina adm inistrativa, ou seja a disciplina nas despesas públicas e mesmo nas disponibilidades e nos consum os privados. Para o com preenderm os é preciso ter presentes duas coisas - e a primeira é que o Plano não terá na sua totalidade expressão orçam ental. Na verdade, aparecem co n side ­ rados nele em preendim entos puram ente privados em cujo fin an ciam en to o Estado umas vezes intervirá e outras não, por desnecessário, fican do neste caso o custo a ser inteiram ente coberto por disponibilidades que não pertencem nem são a trib u í­ das pelos cofres públicos. Nesta parte estam os em face de um plano de in vestim en­ tos directos de recursos particulares e o seu enquadram ento no Plano, ao mesmo 772

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas ♦ 1951 a 1958 tempo que imprime orientação, importa para o Governo a actuação moral e jurídica necessárias à execução dos empreendimentos. A segunda observação a ter presente é que, ao destinarem-se verbas avultadas para o Plano, se deixaram intactas as despesas ordinárias e se mantêm nos quan­ titativos normais, senão acrescidos, as despesas extraordinárias para aplicações não consideradas ou previstas nele. Esta dupla consideração responde a quantos manifestaram estranheza por não verem dotados todos os melhoramentos, obras ou realizações de necessidade indiscutível e mais ou menos urgente. Espera-se que algumas delas sejam atendidas por outra forma; é porém manifestamente errada a ideia de que podemos ter nos próximos anos o Plano de Fomento e... ainda tudo o mais. A primeira disciplina a exercer é pois nas despesas públicas; a segunda nos investimentos particulares. 0 Plano foi elaborado tendo presente o conjunto de disponibilidades de que o Estado e particulares podiam usar para determ inados fins. Nada se impõe aos particulares, nada se mobiliza forçadamente do que lhes pertença, mas tem de assegurar-se que o caudal dos recursos nacionais tom e certa direcção e acuda a certas aplicações. Respeita-se a iniciativa e a proprielade, mas não se pode esperar que grandes empreendimentos possam ser lan çalos no mesmo período e com os mesmos recursos que se previu deverem cobrir o Plano de Fomento. A acção disciplinados quanto às verbas orçamentais ficará a cargo especial­ mente do Ministério das Finanças; a outra ao cuidado de um órgão interministerial - o Conselho Económico, verdadeiro centro propulsor e coordenador das realiza­ ções planeadas.

Reflecti muito sobre se devia acrescentar às três condições que referi mais uma - a estabilidade da política interna, mas pareceu-me que não havia razão para fazê-lo por não serem de prever modificações de orgânica ou orientação que ponham em risco a execução do Plano de Fomento. Vemos, é certo, por esse mundo, na constituição dos governos e das assembleias, movimentos, uns pendulares, outros esporádicos ou desordenados, todos certamente à busca de solução para os problemas próprios. Procuram-na estes à direita, procuram-na aqueles à esquerda, mas nada disso pode interessar-nos a nós que caminhamos a direito e a buscamos em frente. E é por este motivo que de alguma da nossa gente também nada se pode esperar, nem de apoio - seria pedir demais - nem de crítica construtiva, com o patrióticamente deveria ser. Está ainda onde estava em 1926 e finge desconhecer o mandato que o 28 de Maio confiou à geração presente. Comemora-se hoje esse dia e o notável acontecimento que o Exército criou, aus­ cultando o sentir profundo da Nação. Não podíamos associar-nos mais in tim a ­ mente a essas comemorações do que mostrando poder proclamar com verdade, diante dos vivos e dos mortos, que nos mantemos fiéis ao mesmo pensamento de 772

VIL O Plano de Fom ento

servir a reabilitação pátria e a com unidade nacional. Com atrasos, com falhas, com possíveis desvios de porm enor que tempos difíceis suficientem ente explicam , trilha-se ainda o mesmo caminho, fiel o espírito às verdades de sempre, presa a aten­ ção às necessidades dos portugueses de hoje. Não devemos ser ¡modestos ao considerar, lançar, executar o nosso Plano para os próxim os seis anos. M as podemos sentir orgulho em afirm ar que é filh o dos mes­ mos princípios e se integra no nobre pensamento de alcançar, não com o frases lite ­ rárias mas com o realidades concretas e atingíveis, para cada braço uma enxada, para cada fam ília o seu lar, para cada boca o seu pão.

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V III. OS PROBLEM AS POLÍTICOS E O PRÓXIMO ACTO ELEITORAL "> Com uma sessão legislativa que, pela im portância e dificuldade dos problemas debatidos, fo i sem dúvida das mais trabalhosas e fecundas dos últim os anos, a Assembleia Nacional esgotou o seu mandato, devendo convocar-se o corpo eleito­ ral para o com eço de Novembro, com o fim de eleger nova Câmara. Este é o escopo ¡mediato e, portanto, o acto eleitoral será objecto do nosso estudo e principal m até­ ria das nossas discussões. M as porque bem pode ser que no caso não tenham os apenas de ater-nos a tácticas eleitorais e que a eleição subentenda atitudes ou pro­ blemas políticos mais transcendentes, não será fora de propósito lançar-se uma vista de olhos pelo conjunto da situação interna e externa, que m uito com preensivelmente poderá ter influência nas decisões.

I. Externam ente e no que respeita ao m undo em geral, os principais factos são redutíveis aos seguintes: Dois colossos dem ográficos e económ icos projectam em todo o m undo político a sua sombra; Entre um e outro a Europa — restos da Europa - a despojar-se de hegem onias que já não pode exercer, ultrapassada em potencial financeiro e nalguns sectores industriais, desorientada intelectual e moralmente; A Ásia e em parte a Oceânia a organizarem -se em grandes Estados independen­ tes, mais que independentes, hostis a toda a influência estranha, e, talvez durante largos tempos, à colaboração aberta com o branco da Europa ou da Am érica; A Á frica igualm ente agitada pelos nacionalism os árabes ao norte e por irre d u tibilidades raciais ao centro e ao sul. Pondo de parte o que respeita à evolução dos Estados árabes ao norte, sobre que não desejo pronunciar-m e, a Á frica pode ser mantida em íntim a união e co la b o ra ­ ção com a Europa; e o cham ado «perigo amarelo» parece não disporá durante m u i­ tas décadas de capacidade ofensiva senão dentro do respectivo meio, ou para se emancipar, ou para m elhor assegurar a sua defesa, ou para se co n stitu ir nele um

Discurso proferido na 1.» reunião plenária anual da União Nacional, em 10 de Ju lh o de 1953, na Sala da Biblioteca da Assem bleia Nacional.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 Estado-guia, disputando se por certo esse papel o Japão, a índia e a China, para o que hão-de ter suas dificuldades com a Rússia. Em tais circunstâncias o ponto nevrálgico duma possível conflagração geral continua centrado no espaço euro-americano, e o perigo imediato circunscrito ao embate leste-oeste, funcionando aqui a Rússia como potência europeia. M as o eventual deflagrar do hostilidades deveria ter repercussões em todo o Mundo. Não nos embaraçando nos mil e aliás graves problemas de pormenor, deve co n ­ cluir-se que as nações da Europa Ocidental, ante a ameaça do expansionismo russo, só têm de seguir o caminho que lhes é indicado pela maior afinidade de interesses ou pelo maior parentesco de tipos de civilização, quando não pelas imposições da geografia. Que essa reduzida Europa possa um dia representar uma força indepen­ dente ou de equilíbrio entre os dois blocos, é possível, mas não estão ao alcance da vista nem o prazo nem os caminhos por onde lá pode chegar. De modo que, no momento presente e no futuro próximo, a colaboração com os Estados Unidos, sob a efectiva direcção destes, é, para não dizer a melhor, a única solução que se ofe­ rece para a magna dificuldade dos nossos dias. Quando um problema se apresenta como não tendo senão uma solução, não vale a pena estar a repô-la a cada passo no terreno das discussões políticas, com o se houvesse ainda por onde escolher. É mais útil para a colectividade aceitar a sua quota-parte de encargos ou sacrifícios e determinar-se no mais em conform idade com eles. Isto é, não julgo que a posição de princípio tomada por Portugal nesta questão tenha que discutir-se ou possa ser revista, a não ser por parte daqueles que têm em mente outros interesses diversos, senão contrários aos interesses da Nação portuguesa. Mas não é o nosso caso. Passemos ao Ultramar. 0 surto do Ultramar português está ligado, apenas por uma parte, às condições dos mercados internacionais e maximamente aos princípios políticos e adm inistrati­ vos que deram aqui e lá as suas provas: o progresso ultramarino verifica-se parale­ lamente ao metropolitano e com as mesmas directrizes fundamentais. Seria porém diminuir-nos e diminuí-lo, reduzindo-o ao desenvolvimento económico - à produ­ ção, à exportação, às obras públicas. Se não estamos equivocados, há sobretudo o reflorir duma consciência nacional que se afirma intensamente na vastidão daqueles territórios, por uma identidade cada vez mais perfeita de interesses, pela feição complementar das economias, pela comunicabilidade das populações, pela cooperação dos serviços, pelo sincronism o afectivo do dia a dia e particularmente pela comunhão espiritual em face dos gran­ des problemas que interessam ao conjunto. Nenhuma dúvida há de que ferm entas­ sem há muito tempo ali a alma aventurosa dos descobridores, os sacrifícios dos p io­ neiros, a inquietação dos governantes, o sangue dos heróis. Mas se esta geração criou ou completou as condições materiais e morais, sobretudo políticas, em que a seara pôde começar a romper e a estender-se verdejante pelas terras ultramarinas, ela pode orgulhar-se de ter efectivamente aumentado Portugal.

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VIII. Os P roblem as P olíticos e o Próxim o A cto E leitoral

Esta obra de civilização e increm ento pacífico é sem dúvida meritória, mas gran­ des correntes no M undo lhe são hostis, devido a perversões da inteligência, a des­ vios da sensibilidade, a urna especie de revolta sentim ental contra as origens, com o se a ordem, a organização, a cultura, a língua, o ensino do dom ínio e da exploração das riquezas naturais não fossem um bem altam ente apreciável, e mais conviesse a largas fracções humanas continuarem a vegetar no prim itivism o da sua infeliz co n ­ dição. Em grandes Assem bleias com o a das Nações Unidas, as potências coloniais, o colonialism o das nações europeias é fortem ente agredido, julgado sem piedade, condenado sem remissão. Felizmente não temos territórios sob mandato de que prestar contas, e ainda não fom os adm itidos naquela organização. Felizmente também, depois das primeiras indecisões e de um período de receios e timidez, as nações europeias começaram a dar mostras de não temer tanto o juízo alheio e a defender com mais firmeza a sua obra. Nunca mudámos de opinião a este respeito e encontram o-nos em diversos orga­ nismos internacionais, com o se tem visto e nos últim os dias especialmente se afir­ mou em Lisboa, unindo os nossos esforços aos dos mais no sentido de m elhor cum ­ prirmos os nossos deveres e, bem entendido, também no de mais firm em ente defendermos o nosso direito. Verdade seja que os nossos m otivos são m uito especiais. Os descobrim entos de terras quase ou totalm ente despovoadas e o espírito da nossa obra colonizadora criam -nos uma situação a bem dizer única e com ela uma tradição a que devemos ser fiéis. Que os benefícios económ icos sejam menores, a ocupação mais lenta, os progressos materiais menos espectaculares, não im porta, se a obra com mais fid e ­ lidade se enquadra no intento de amalgamar todos os factores e form ar com eles um Estado, disperso pelos im perativos da geografia e, não obstante, uno pela cons­ ciência da unidade da Nação. Creio que estas posições e estes princípios ultrapassam, porque essenciais à Nação portuguesa, o tran sitório ou acidental de um programa de partido ou de um cartaz de eleições, e que não há que m odificar a linha geral da política seguida. Creio por outro lado que, mau grado as dificuldades dos tempos, havemos de poder prosseguir o nosso caminho. Grandes preocupações vêm nos, porém, do Extrem o Oriente, encontrando-se a nossa índia, M acau e Tim or física e politicam ente nas zonas dos grandes tufões. E m uito especialm ente Goa. Têm os jornais reproduzido as repetidas afirm ações de políticos responsáveis da União Indiana acerca da necessidade de serem integrados nela os territórios p o rtu ­ gueses do Indostão. A mesma imprensa tem dado também conta dos vários actos praticados pelo governo da União, susceptíveis de serem interpretados com o inam is­ tosos para vizinhos daquele Estado. E porque o mundo é bastante velho e parece que já nada se pode inventar nesta matéria, nós temos visto e veremos sucessiva­ mente invocados todos os argum entos já gastos no desenvolvim ento de sem elhantes pretensões e tentados todos os processos clássicos de as realizar. A propaganda pela palavra falada ou escrita contra a soberania portuguesa, as m anifestações de rua, os

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 convites à sublevação ou à desobediência civil, o reconhecimento público da a ctividade de maus goeses, alguns dos quais apenas criminosos de direito comum, a ocupa­ ção do Instituto Luso-Indiano de Bombaim sob os olhos complacentes da Polícia, as promessas que se alternam com ameaças claras ou veladas à integridade territorial portuguesa, as dificuldades comerciais e de fronteira, a desconfiança sistemática, as reclamações sucessivas, a invocação do pretenso direito de proteger populações que, por serem parcialmente da mesma raça, haviam de pertencer por força ao mesmo Estado, o encerramento da Legação de Lisboa - tudo se tem feito ou deixado fazer para abalar o nosso direito, e não tem sequer abalado a nossa paciência. E, no entanto, nós saudámos a índia na sua independência como uma das m aio­ res realidades do nosso tempo, e não temos pretendido mais que regular amigávelmente com ela os inúmeros problemas que uma vizinhança tão apertada natural­ mente suscita e acordar a regulamentação de interesses comuns apreciáveis, tanto na ordem económica como na ordem jurídica. Sacrificámos, concordando na sua edução aos limites do território nacional, o nosso privilégio do Padroado, para que o da União não tivessem jurisdição autoridades religiosas escolhidas com a inter­ venção do Estado português. Temos mantido até ao presente a administração, por parte de serviços públicos da União Indiana, de serviços tão essenciais como os nos­ sos caminhos de ferro e porto de Mormugão, com as maiores dúvidas sobre se a Constituição estará sendo assim inteiramente cumprida. Conservamos aberta a Legação em Nova Deli na convicção duma utilidade recíproca. Tudo isto fizemos; mas não podemos, nem com plebiscito - aliás inútilmente aceite pela França - nem sem ele, negociar a cedência, o trespasse de uma fracção do território nacional e das suas populações. Nenhum governo português o pode fazer por exigência constitu­ cional, primeiro, depois por imperativo da própria consciência de homens, quando não fosse ainda pelo que devemos aos povos daquele Estado, que por tantas formas e tão insistentemente se empenham em mostrar a sua ligação a Portugal. Este caso da índia, ainda que do lado da União Indiana pareça enquadrar-se no preconceito anticolonial, é diferente dos mais e singularmente difícil, por não se pretender libertar um povo mas integrá-lo noutro, porque se trata de retirar-lhe a sua categoria de Estado para o reduzir à de parcela de uma província, de desco­ nhecer os direitos de que tradicionalmente goza para fundir a sua individualidade noutros povos sob estatutos que podem ser aparentemente mais democráticos, mas não são com certeza mais nobres. Nós não podíamos dar prova mais cabal de tratarmos a índia como colónia que negociar a sua entrega à União Indiana. E, sendo assim, também não há senão que prosseguir no mesmo caminho de serenidade e firmeza, com a esperança de que os dirigentes hindus, em harmonia com as suas declarações de paz, não tentarão sacrificar o direito alheio ao geom etrismo das suas concepções políticas. Lancemos agora rápido olhar à situação política interna e aos seus problemas. 0 ambiente político geral ressente-se favoravelmente da repercussão de certo número de factos e providências governativas recentes - entre as quais a cam pa778

VIII. Os Problemas Políticos e o Próximo Acto Eleitoral nha contra o analfabetism o e o Plano de Fomento são sem dúvida as de m aior relevo. 0 m om ento económ ico acusa certa depressão, derivada sobretudo das pés­ simas colheitas do ano findo, que se traduzem por m ilhões de contos a menos no giro interno dos negócios. As dificuldades de certas nações estrangeiras c o n tri­ buem igualm ente para isso, reduzindo as im portações portuguesas. Estou, porém, convencido de que a execução do Plano de Fomento, cujos primeiros em preendi­ mentos com eçam a ser lançados, vai ser elemento fartam ente com pensador destas tendências depressivas e a vida nacional vai de novo animar-se em actividade, o p ti­ mismo, novas riquezas e fontes de trabalho. É precisamente sob estes últim os aspectos que o Plano de Fomento pode constitu ir um foco de polarização política, factor da agregação de valores à roda de objectivos bem nacionais e, sob certos ângulos, transcendentem ente nacionais e profundam ente humanos. Porque se um escol pode apreciar sobretudo os efeitos do desdobram ento do Plano, genérica­ mente, no progresso e engrandecim ento da Nação, o comum dos portugueses não pode deixar de ser tocado no seu íntim o por que este enorme esforço seja prosse­ guido, para ao fim e ao cabo lhes assegurar, com o há dias pude dizer, a enxada, a casa e o pão - no fun do e simplesmente o trabalho, a fam ília, a própria vida. E isto não é para nós imagem literária, flo r de retórica, mas realidade que se nos impõe com o mesmo vigor que fazer progredir Angola ou guardar a índia. 0 outro fa cto r que in flu i favoràvelm ente no nosso ambiente político é o prestí­ gio, ou, se não queremos ir tão longe, a simpatia, o crédito, o louvor de que inter­ nacionalm ente são objecto Portugal, o Governo e a Adm inistração, a vida e a popu­ lação portuguesa. Contribuem decerto para isso a nossa própria política externa e alguns factores de valorização internacional que podemos utilizar. M as há tam bém a consideração objectiva, o facto de uma estabilidade governativa, posta em face dos resultados conseguidos nas finanças, na econom ia, na ordem pública, na tra n ­ quilidade e disciplina social, no progresso material e moral do País. Só a vida política parece suscitar objecções. Seguramente se nota por toda a parte a existência de altos espíritos compreensivos do nosso modo de ser, da relati­ vidade das instituições políticas e portanto da legitim idade com que as nossas o fe ­ recem feição especial: autoridade sem arbítrio, representação sem parlamentarismo, liberdades que, para serem efectivas, não têm de chamar se democráticas. M as não se pode esquecer que a generalidade dos países ocidentais se governa m elhor ou pior com instituições de ou tro tipo e que a opinião pública mundial, com o jo rn a listica ­ mente é interpretada, parece ter a nosso respeito certa prevenção. Os m elhores olham -nos com evidente simpatia e, embaraçados nos seus preconceitos de escola, dão a impressão de pensar: não há dúvida de que é assim que está bem; mas que pena não ser de outro modo! Isto se pensa de nós. M as nós, que nos conhecem os melhor, podem os com mais justeza ajuizar das nossas próprias deficiências, e não fugirei hoje a indicar algumas. A observação atenta da vida do regime denunciará logo duas falhas im p o rta n ­ tes — a suspensão da evolução corporativa e a quase inexistência de d ou trin a çã o 779

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política. Alguns relatórios distritais referem-se a um ou outro destes pontos e com inteira razão. Não pode esquecer-se que o Corporativismo é um dos traços característicos do regime e a base mais segura em que pode assentar a sua continuidade; mas a orga­ nização, que se apresentou com crescimento rápido e começo auspicioso, teve, por circunstâncias especiais, de assumir funções que não lhe competiam e tom ar res­ ponsabilidades que não deviam caber-lhe. Houve em certo momento que fazer alto para proceder a ajustamentos, empreender revisões, cuidar de certos proble­ mas instantes de carácter administrativo. A novidade da construção explica por­ ventura alguns erros e indecisões, mas já não desculpa o desconhecimento, que por vezes se aparenta, da estrutura corporativa da sociedade portuguesa, ao dar solução a alguns problemas em que devia ter-se em conta. 0 problema é para mim tanto mais grave quanto continuo convencido de que só por meio do co rp ora ti­ vismo nós podemos evitar os piores choques da luta de classes no campo social e da tendência para o partidarismo no terreno político. Não completar e não co n ­ solidar a organização, estruturando-a cabalmente, institucionalizando-a, é correr is piores riscos de retrocesso. A própria Câmara Corporativa, que é basilar na )rgânica constitucional, aguarda para completar a sua evolução que se constituam \s corporações. - É pois tempo de reacender o antigo fogo e continuar caminho. Faltaríamos a um grande dever e até a uma boa oportunidade, se, lançadas as bases do plano económico, não aproveitássemos os próximos anos para sim ultáne­ amente levar por diante a cruzada corporativa. A outra falha é a de doutrinação do povo português em tudo quanto interessa à vida política e social. Se atentarmos bem, só uma grande instituição não aban­ donou nunca, e modernamente intensifica por todos os meios, a doutrinação do seu público próprio - é a Igreja. 0 Estado liberal absteve-se, devia abster-se por definição. Mas deixar o terreno sem cultura o mesmo é que dar vantagens às c u l­ turas inimigas. No Estado moderno só o comunismo mostra compreender sob este aspecto as necessidades e aproveita da inacção alheia, criando apóstolos, pregado­ res, se necessário, mártires. De modo que o problema pode pôr-se assim: ou nós assentamos em que a base doutrinal e moral fornecida pela Igreja é suficiente para contra-restar o efeito de toda a doutrinação anti-social e anti-nacional, ou, se não o cremos, temos de tomar sobre nós a que nos cabe fazer. Só por excesso de comodismo e desconhecimento das posições relativas do Estado e da Igreja é que iríamos abandonar a esta tarefas que, sem nos servirem cabalmente a nós, podiam finalmente prejudicá-la na sua acção de evangelização e santificação das almas. Há decerto larga margem de concordância entre os nossos princípios políticos e grandes princípios morais que o Cristianismo perfilha, e nesse ponto nos entende­ mos favorecidos e tiramos vantagem da sua acção. Mas, apesar disso e para além disso, nem a Igreja se arroga competência para resolver problemas que nos in te­ ressam como nação, nem se pode estar seguro, porque o reino de Deus não é deste mundo, de que um povo católico não possa vir a ser presa dos piores regimes, e designadamente do comunismo. 780

VIII. Os P roblem as P oliticos e o Próxim o A cto E leitoral

Não é a propaganda eleitoral que pode preencher esta enorme lacuna: isso é um incidente de carácter tem porário e bem lim itados fins. Ao que me refiro é à d ou ­ trinação do povo no que tem de form ativo em matéria política e social. Leva-se hoje por m uitas form as o conhecim ento dos actos do Governo e de factos essenciais a camadas cada vez mais vastas da população; mas zonas enormes ficam ainda, por circunstâncias diversas, estranhas a este conhecim ento e em qualquer caso aos princípios que os explicam e os informam. Só o contacto pessoal, a acção directa nos vários planos de pensamento que sejam adequados, e adentro das organizações, podem resolver este problema, que é um dos mais sérios e delicados que não só os portugueses mas a sociedade moderna têm diante de si. A firm ar-nos-em os nós capazes de resolver a parte que nos cabe? De todo o exposto queria tirar esta conclusão: não tendo que alterar a nossa posição externa nem que rever a orientação da política ultramarina, os próxim os anos, desde que não haja súbita alteração das condições de vida no mundo, têm de ser fundam entalm ente consagrados à execução do Plano de Fomento no dom ínio económ ico e a com pletar a organização corporativa no terreno político-social, com as consequências que, para a form ação da consciência política nacional, de uma e outra actuação é legítim o esperar. II. É tempo agora de dizer umas palavras sobre questões que, por serem mais pro­ priamente de técnica eleitoral, não deixam por isso de constituir problemas políticos. A lei eleitoral vigente assenta em dois princípios - o do círculo distrital e o de simples maioria. A lista é plurinom inal, mas a vitória é atribuída integralm ente à lista beneficiada com m aior número de votos. Isto quer dizer que nem através do pequeno círculo nem da adopção do sistema proporcional se procurou fa c ilita r a representação a forças políticas m inoritárias. Estas podem conseguir representa­ ção na Assem bleia Nacional através da vitória em algum ou alguns distritos (se em todos não seriam já minorias), mas não por com binações ou arranjos legais em qu al­ quer deles. Dado o volum e das forças eleitorais que apoiam o regime, a hipótese da vitória de quaisquer oposições, sendo legalmente possível, não é por isso de prever. É este fa cto constantem ente verificado que, mais do que quaisquer considera­ ções invocadas ou a invocar, tem levado a desistir do concurso às urnas outras fo r­ ças ou elem entos políticos. A lei estabelece um regime perfeitam ente defensável dentro da lógica dos princípios dem ocráticos e criticável apenas em face de um c ri­ tério p olítico que consistiria em, independentem ente da vontade da maioria do e lei­ torado e mesmo contrariam ente a ela, se garantirem lugares na Assem bleia a repre­ sentantes das chamadas oposições. A questão não é destituída de interesse. Nós tem os pretendido assegurar um antipartidarism o efectivo, co nvictos de que a organização partidária, com suas lutas e incom patibilidades, seus interesses e influências, só nos tinha trazido a paralisia do Estado e a instabilidade governativa, 781

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 a contrafacção da representação nacional, um princípio de guerra civil. A crescente-se que a submissão do deputado a uma disciplina exterior lhe tira, no exercí­ cio da função, toda a liberdade de apreciação ou de critica e sobretudo de voto. A Câmara não seria a Câmara, seriam os partidos; os partidos não seriam as organi­ zações partidárias, mas as suas comissões dirigentes, sendo muito difícil determinar, de degrau em degrau, onde encontrar o ponto de concordância entre a vontade do eleitorado e o voto do seu representante, e da actuação deste com o interesse nacional. A partir de certo momento já estamos na ficção pura. Por este motivo nos temos oposto a que haja na Câmara deputados m onárqui­ cos ou deputados republicanos, socialistas ou católicos. Há evidentemente monár­ quicos, católicos, republicanos, indiferentes, que são deputados, mas isso é to ta l­ mente diverso, pois que todos são apenas representantes da Nação, e só isso: nem representantes de regiões, grupos ou associações, ligas ou causas, nem de interes­ ses gerais ou locais, morais ou económicos, por mais importantes e legítim os que sejam. Quando nos afastamos deste conceito, há toda a probabilidade de a Câmara se dividir, não em virtude das diversas concepções dos homens relativamente ao nteresse nacional, mas em virtude da influência de certos interesses especiais, juando não particulares, que no caso se sobreporão àquele. Sendo por esta forma a actuação de cada deputado o mais livre que é possível ser, porque não sujeita a qualquer disciplina partidária, mas apenas à consciência do interesse nacional que o inspira, o Governo não cultiva nem tem visto fazer-lhe nor­ malmente falta uma maioria incondicional. Também não há de facto uma maioria: há maiorias que se fazem e desfazem em cada problema ou aspecto de problema ou na apreciação de cada providência legislativa. Embora a sorte do Governo co nsti­ tucionalmente não dependa das votações da Assembleia, de facto a estabilidade governativa está em grande parte confiada ao que se pode chamar o sentido nacio­ nal da Câmara, e à sua fidelidade a meia dúzia de princípios fundamentais. Isto é assim, mas pode perguntar-se se esta independência, se esta liberdade dos parlamentares será suficiente para a boa marcha da coisa pública, e não haverá vanta­ gem em considerar bem-vinda, em alentar mesmo uma oposição sistemática, de prin­ cípio e obediência a uma disciplina estranha ao exercício da função parlamentar. Duas coisas são certamente vantajosas, senão necessárias: fazer iluminar os pro­ blemas com a luz vinda de todos os quadrantes, combater a tendência para o endeusamento do poder e anquilose das situações criadas. Por mim receio as paixões, mas não temo a verdade; entendo indispensável o respeito, mas não o sentimento da omnipotência ou da infalibilidade; aprecio a continuidade, não o imobilismo. E a questão estaria como há 25 anos a pus: que o País discuta, critique, reclame, sugira, mas obedeça quando chegar a altura de mandar, porque enfim é necessário que em alguém resida a responsabilidade do mando com o poder das últimas decisões. ... Mas a solução do nosso problema não avançou um passo. Porque se não somos nem temos um partido, como alentar uma oposição? Se o Governo não tem autoridade, directa ou indirecta, sobre a Câmara, como admitir que outros a tenham 782

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de fora sobre uma fracção dela? Se apenas nos interessa descobrir as m elhores soluções para os problemas da Nação, como achar bem perder-se tem po a ou vir as vozes que por paixão ou sistema as encontrarão más a todas? Confesso que não sei resolver a dificuldade nem, pelo que tenho visto, me parece que a tenham bem resolvida outros países no sentido indicado, o que na verdade confirm a não haver em política soluções perfeitas. Que fazer então? Julgo que podemos aum entar ainda, senão de direito ou de facto, ao menos aos olhos do mundo, a liberdade da nossa Assembleia Nacional, convidando maior número de pessoas independentes e desligadas de disciplinas partidárias, com os olhos postos apenas na sua competência, independência de cri­ tério e idoneidade moral, bom senso e espírito patriótico. É aliás assim que se tem procedido, e nem podia ser diferentemente, em relação à Câmara Corporativa, na qual se deve dizer que algumas ausências que pudessem ser notadas não são devi­ das a nossa oposição, mas a falsos respeitos da que se diz existir. Não sabemos neste m om ento prever se haverá em cada distrito ou nalguns dis­ tritos mais que uma lista, concorrendo ao eleitorado. Os que costum am apoiar a lista apresentada pela União Nacional provêm de várias form ações ideológicas e credos políticos, mas têm até agora sobreposto o plano nacional a considerações ou preferências de regime e a interesses de qualquer outra sorte. Só este facto tem perm itido o carácter com que se m anifesta a vida política entre nós, porque se cada um por seu lado tem prosseguido determ inado ideal, é certo que não só o não alcançaria com o prejudicaria a realização de tudo o mais. Mas os sacrifícios feitos por um lado e por outro a permanência do plano genuinamente nacional para a congregação de tantas vontades, em m uitos pontos necessariamente divergentes, têm de ser por nós tidos em conta no acto da eleição. Nós não podemos dar-nos ao luxo de menosprezar quaisquer elementos que estejam dispostos a servir a Nação ou certo número de princípios, em todas as hipóteses, essenciais à vida da Nação, para nos queixarm os depois de que não nos compreenderam, nos abandonaram e dim inuíram por esse fa cto as nossas possibilidades. M uitas coisas de m aior interesse político do que estas serão seguramente tra ta ­ das nas reuniões. Com o por mim nada mais desejo que esclarecer-me co m p le ta ­ mente para m elhor poder acertar, os meus votos são de que com a m aior franqueza sejam trazidas ao debate inform ações, dúvidas, deficiências, críticas - tu do enfim que concorra para exame com pleto da situação, e ao mesmo tem po acredite, pela eficiência, esta novidade estatutária da nossa organização política. Porque nada seria mais oposto à nossa form ação e ao interesse geral que tom ar em política d e ci­ sões ou atitudes que, embora na lógica dos princípios, não assentassem nas realida­ des existentes. Espero que nas minhas anteriores considerações eu próprio me não tenha afastado deste sensato caminho.

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IX. PORTUGAL COMO ELEMENTO DE ESTABILIDADE NA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL (1) Pede-se-m e que escreva duas palavras sobre Portugal considerado com o ele­ mento de estabilidade e de continuidade europeia na civilização ocidental. Serão efectivam ente duas palavras e não mais, por falta de tempo, ainda que o tema se prestasse a longos desenvolvimentos. Em prim eiro lugar não há dúvida de que o que pode chamar-se civilização o c i­ dental é fundam entalm ente de origem europeia. Seja qual for a im portância dos elementos estranhos que o europeu tenha assim ilado através dos tem pos e seja qual for o valor das novas contribuições com que povos não europeus ainda hoje enriqueçam esse patrim ónio comum, o certo é ter de atribuir-se à Europa o acervo de ideias, sentim entos, institu ições que caracterizam a civilização ocidental. Que esta se tenha expandido para além dos lim ites do nosso continente nada mais natural numa civilização que, não só pela força e esplendor das suas realizações, mas sobretudo pela porção de verdade que contém, se pode considerar a única universalista entre as civilizações criadas à face da Terra. Penso que o fa cto impõe aos povos da Europa, herdeiros e garantes desta civilização, responsabilidades especiais: o ponto é saber se e com o poderão desempenhar-se delas. E a prim eira dificuldade está em que o europeu dá a impressão de com eçar a duvidar da in trín ­ seca superioridade dos seus princípios sob a pressão de factores — com o a técnica, a riqueza, o poderio m ilitar - de que não tem já hoje o exclusivo e aparecem a caracterizar os novos tem pos. M as não tem razão na sua dúvida, porque o valor de uma civilização aferir-se-á sempre um tanto pelo dom ínio sobre a natureza, mas sobretudo pela com preensão do estranho ser que é o homem, pela sua d ig n i­ ficação com o de ente portador duma parcela de infinito, pelo grau de s o c ia b ili­ dade entre homens e entre povos que tenha conseguido fazer adoptar. Dc m odo que a chave do problem a está em que a altura moral, a conquista humana não sejam sacrificadas a outros factores, ainda quando estes devam ser encorporados no sentido da vida dos povos europeus. A contribuição que o português deu para o alargamento do espaço sujeito à influência europeia, a expansão que ele próprio realizou da civilização ocidental e a acção que no mesmo sentido continua a desenvolver nos territórios sujeitos à sua soberania fazem deste pequeno país um obreiro não despiciendo da tarefa colectiva

01 Palavras publicadas no iJo urnal de Genève» no número especial de 13 de O utubro de 1953, d ed i­ cado a Portugal.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 da Europa. Posso afirmar que a orientação da acção política, a projecção dos prin­ cípios de ordem moral que professa e se esforça por aplicar nas relações com os outros povos são baseadas na fidelidade a esse espírito da velha Europa cujo desa­ parecimento consideraria como diminuição da sua própria essência. E confesso lealmente que por esse motivo uma das maiores preocupações no domínio em que podemos agir é exactamente a de conservar a frescura, como a das fontes que bro­ tam da terra, a simplicidade natural, a fraternidade humana e cristã do povo portu ­ guês, sem prejuízo de todas as conquistas do progresso, de todos os melhoramentos puramente materiais, de todas as agruras da luta pela vida. E temos fé em que o conseguiremos.

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X. À M EM ÓRIA DE DUARTE PACHECO (1) M eus Senhores: Eu não farei um discurso; peço apenas me seja perm itido marcar a minha pre­ sença neste acto, sim ultaneam ente de saudade, de exaltação e talvez mesmo de desagravo. No fundo, bem no fundo de mim, estimaria não ter de vir, mas pareceu-m e que era ceder a uma espécie de covardia perante a dor, que me aconselhava a não reviver, em público e na dignidade de uma cerimónia oficial, sentim entos que me são fam iliares em horas de íntim o recolhimento. Quando se tem vivido uma vida já longa, e, sobre longa, intensa, de trabalhos, de fadigas, de inquietações, até de sonhos, o cam inho que percorremos fica ladeado de numerosas cruzes - as cruzes dos nossos mortos. E se essa vida foi sobretudo co la ­ boração íntima, soma de esforços comuns, inteiro dom das qualidades nobres da alma, eles não ficam para trás: continuam cam inhando a nosso lado, graves e doces como entes tutelares, purificados pelo sacrifício da vida, despidos da jaça da terra, sublim ados na serenidade augusta da morte. Na verdade há m ortos que não morrem: desaparecem no seu invólucro terreno, na sua figu ração humana, na fragilidade e nos defeitos e nas lim itações da carne; mas o espírito continua a brilhar com o as estrelas que se apagaram no céu há cem mil anos, vincam -se mais na terra os sulcos que o seu exemplo abriu e parece até que os seus afectos não deixam de aquecer-nos o coração. Nem de outra form a se compreenderia que a Providência suscitasse tantas vezes almas extraordinárias, cumes de beleza espiritual, e lhes não conceda mais que uma breve aparição, com o voo de asa que corta o céu, botão que murcha sem revelar ao sol da manhã a graça e o perfum e da rosa. - Há m ortos que não morrem, e nós todos que viem os de longe ou de perto, em saudosa peregrinação, somos os que testem unham os que este n ão m orreu.

Não tenho excessiva sim patia pelos m onum entos com que é de uso celebrar os feitos, as virtudes, a vida dos grandes homens. Correm em geral o risco de ser de

1,1 Palavras proferidas na inauguração do m onum ento a Duarte Pacheco, em Loulé, em 15 de Novem bro de 1953 - X aniversário da sua morte.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 mais ou de menos: de mais, quando a falta de perspectiva não permitiu proporcio­ nar a estatura dos homens à importância real da sua influência nos acontecim en­ tos; de menos, se a arte tem de confessar-se impotente para fixar na pedra ou no bronze aqueles dons que, pela sua riqueza exuberante ou pela infinita distância do espírito à matéria, se subtraem a toda a expressão plástica. A questão não se punha aqui, porque, confiando à História definir e exaltar os méritos dos que a fizeram grande, o que se pretendia não era o monumento que glorificasse o homem, mas um sinal que exprimisse a gratidão de um povo. Na sua terra, no meio da sua gente, no recanto de uma praça tranquila, ansiava-se por alguma coisa - fosse o que fosse - , uma pedra, uma palavra, que traduzissem com simplicidade: eis que este vive na memória e no coração dos Portugueses. Como eu felicito, por acto tão rico de significado, os municípios do País, directos represen­ tantes das populações por mil modos beneficiadas, e como agradeço ao M inistro das Obras Públicas ter animado a iniciativa, tomando-a carinhosamente nas mãos e acompanhando-a com desvelo até à sua materialização final! Muitos artistas se empenharam em colaborar na memória com o apuro da sua irte e extremos de devoção desinteressada. Eles idearam a coluna que se levanta :orte, como o próprio esforço da reconstrução nacional, e se interrompe, quebrada, na altura e no momento trágico em que a vida que a erguia, por demasiado tensa, se parte, abruptamente também. Baixos-relevos ilustram, como breve aponta­ mento, esse trabalho ingente, variado, extenso, multiforme, como seria próprio do nosso maior edificador moderno da «cidade material». Se à minha falta de com pe­ tência pode ser consentida palavra referente ao valor da obra, desejava exprim ir o meu apreço aos artistas que a conceberam e se esmeraram em executá-la no seu tocante simbolismo, e louvores a todos os que, mesmo em tarefas modestas, foram chamados à sua realização.

Meus senhores: creio ter dito o essencial do que se me impunha dizer, mas desejava acrescentar ainda algumas poucas palavras acerca daquele cuja presença invisível nos tem aqui reunidos. Não é este o local nem o momento próprio para prestar, como prometi há dez anos na Assembleia Nacional, «perante a Nação que o perdeu e a História que orgulhosamente o recolheu em seu seio, o depoim ento que lhes devo». Desculpar-se-me-á, por isso, que não vá agora além de ligeiríssimas notas. Um homem como Duarte Pacheco pode ser justamente enaltecido através da massa de realizações materiais, c também, e sobretudo, pela escola que form ou. Uma e outra coisa são de facto a sua obra, mas, enquanto as realizações estavam na dependência do tempo e das circunstâncias, a escola que representa a capaci­ dade realizadora para o futuro dependia apenas da riqueza da sua personalidade. A obra material é imensa: em todos os sectores das obras públicas e das com u­ nicações onde havia que reformar, reconstruir, empreender, abrir novos cam inhos à 788

X.

À Memória de Duarte Pacheco actividade e progresso da Nação, para vencer atrasos, forçar actualizações, satisfa­ zer necessidades crescentes, ele pôde delinear, rasgar caboucos, erguer co n stru ­ ções, firm ar princípios de orientação, com a largueza de horizontes que em raros homens se encontra. Como reformador, com o edificador, o seu espírito im punha-se por essa maravilhosa aptidão do geral e do particular, das grandes linhas e do pequeno pormenor, da justa medida do presente e da antevisão do futuro. Podia ser uma inteligência luminosa e não homem de acção; podia ser um realizador e ter de pedir emprestadas a outrem as ideias, os princípios orientadores, os pontos de partida. M as a rica com pleição do seu espírito tudo lhe permitia - estudar, resol­ ver, impulsionar, administrar, fazer; a passagem da ideia à acção era nele forçosa e parecia-lhe tão natural com o ser um necessário com plem ento da outra. À visão parcelar e desconexa dos factos ou dos problemas, que é a da generali­ dade dos espíritos, opunha-se em Duarte Pacheco a faculdade rara de lhes encon­ trar o nexo essencial, a necessidade quase física de tudo integrar no sistema de relações conveniente que havia de definir as soluções e os programas de trabalho. Cauteloso no estudo, quase o acharíam os lento, era na acção mais que dinâmico, vertiginoso, dilapidando as forças, vivendo e queim ando a vida com afã, com pressa, com ânsia, com o se previsse que esta ia faltar-lh e e o tempo não houvesse de che­ gar para o m uito que tinha no ânimo fazer. 0 que, depois dos seus poucos anos de governo, apareceu m aterialm ente feito ou renovado à face da terra portuguesa - em monumentos, em hospitais, em escolas e e difícios de toda a natureza, em aeroportos, em pontes, em estradas, em cam inhos de ferro, em urbanização, em estádios, em habitações, em hidráulica agrícola, em exposições com o essa esplendente Exposição do M undo Português — constitu i uma obra imensa que ficará m arcando para sempre a largueza das co n ­ cepções, o progresso té cn ico e artístico, a excelência dos sistemas jurídicos, a severidade dos princípios de adm inistração. — Pois mesmo assim toda esta obra que engrandeceria um século se me afigura a mim não valer tan to para o País com o a escola que deixou. A selecção e preparação do numeroso pessoal, a coordenação de esforços oposta à dispersão dos homens e dos meios, o estudo sério contraposto à im provisação, a prévia defin ição de princípios, a exigência de planos, o optim ism o da acção, o clim a da altura e dos largos horizontes são, com o força criadora e am biente de trabalho, mais im portantes que o que fico u feito - só porque foram a garantia da co n tin u i­ dade da obra: todos os seus colaboradores se podem sem desdouro, com orgulho, considerar seus discípulos. E eu não penso dim inuir ninguém dizendo que a este facto se deve não se terem notado afrouxam entos ou desvios na actividade desses departam entos, antes ter sido possível apresentarem um acervo de realizações sucessiva e notavelm ente acrescido. Duarte Pacheco não era um político na acepção corrente do termo, mas homem de governo estreme, com o os permite um regime em que a governação tem podido ser quase tu do e a pequena política quase nada. Com o se receasse as m ultidões, falava pouquíssim o em público (para ele a vida era acção}: os seus discursos foram 78 9

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 raros e curtos, quase só anotação de factos ou números que importava ter bem pre­ sentes no momento. Nas suas declarações públicas dificilmente se encontrará traço ou afirmação acerca da política geral ou de assuntos estranhos ao seu sector da Administração, mas isto não quer dizer que não prosseguisse um ideal. Em dias e noites de trabalho, árduo, esgotante, apesar do prazer espiritual que me dava, debruçados sobre planos, projectos, problemas a esclarecer, ideias a apro­ fundar, soluções possíveis, sucessos e fracassos, largas vias abertas ou caminhos a abandonar, o que em cada momento podia surpreender no seu esforço era a preo­ cupação de semear progressos, criar meios de trabalho, desenvolver as regiões mais desfavorecidas, facilitar e embelezar a vida rude das populações. E nunca falava no povo - para não o diminuir como plebe e poder servi-lo como nação. Depois que a morte submergiu os seus defeitos e deliu as naturais asperezas de uma compleição forte, agora que melhores perspectivas permitem a todos admirar a real grandeza da obra e do artífice, já não se podem invocar ofensas e m uito menos se entende que fosse necessário o desagravo. Todavia a tristeza destes tem ­ pos, em que a mesma evidência pode ser negada, impõe-nos que seja este um dos significados da nossa peregrinação.

Não desejava terminar sem uma palavra especialmente dirigida a esta boa gente. Apesar do apoio do Estado e da contribuição dos outros concelhos, a Câmara teve de fazer um esforço sério que importará para todos alguns sacrifícios, a fim de se preparar condignamente o local e erguer-se esta memória. Longe do meu pen­ samento censurá-la pelo rasgo, pois considero acto sobre todos louvável de educa­ ção cívica render por esta forma justiça a um conterrâneo que pode ser apresen­ tado como o exemplo do desinteresse mais puro, do sacrifício da vida mais completo, da mais alta noção de servir. E não estejais tristes hoje, porque, se Portugal se encontra aqui em comunhão de espírito connosco a celebrar, embora entre as névoas da saudade, a glória de um português, esse português é um dos vossos, é o maior e mais ilustre filho da vossa terra.

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XL NA POSSE DA JU N T A DE ENERGIA N U C L E A R "» Tenho a honra de dar posse à Junta de Energia Nuclear, e as primeiras das m uito poucas palavras que direi são para agradecer a todos a gentileza de terem aceite o convite. Fizemos esforços por que estivessem representados os sectores da Adm inis­ tração mais directam ente interessados no assunto e as Universidades, através daque­ las especialidades que são chamadas a dar, no terreno científico, a principal co n tri­ buição. Alguns dos nossos mais notáveis professores tomam por isso aqui o seu assento. Por nós não poderíamos oferecer maior prova do empenho posto numa organização capaz do que ter sacrificado um membro do Governo, afastando-o das preocupações ministeriais, para pôr à frente da Junta o Engenheiro Frederico Ulrich. Numerosos anos de trabalho eficiente e de inexcedível dedicação ao bem público são garantia de acertada direcção do organismo e de que a este será dado o impulso que nos permita resgatar algum do tempo perdido. Na verdade a organização que vele pelos interesses ligados à energia nuclear surge em Portugal com visível atraso em relação à generalidade dos países, mesmo dos que se interessam acima de tudo pela investigação cien tífica pura e não pelas aplicações militares. Não estaríamos talvez preparados para com eçar mais cedo - e enfim mesmo só para com eçar é precisa alguma preparação; mas o M inistério da Educação Nacional, por interm édio de uma comissão provisória, tom ou nos ú lti­ mos anos o encargo dos estudos e da iniciação indispensáveis. Por esta razão, presa às origens, e para não incorrer em duplicações custosas, pareceu aconselhável que toda a parte de investigações fosse confiada à Comissão de Estudos de Energia Nuclear, integrada no Instituto de A lta Cultura. Não se impõem aos nossos in vesti­ gadores actuais e futuro s tarefas que seguramente estariam dentro da sua capaci­ dade mas talvez não estejam dentro da modéstia dos recursos actuais; um m ínim o porém se lhes confia e exige - acom panhar o m ovim ento cie n tífico m undial no que toca à energia nuclear, em ordem às m últiplas aplicações práticas que possa v ir a ter, e em ordem à defesa dos interesses da grei. 0 que ao pobre bacharel em leis que eu sou é possível entender do que se passa no m undo a este respeito, é que foi descoberta uma fonte de energia quase in c o ­ mensurável e que a mesma é susceptível de aplicação à vida normal e pacífica da

w No acto de posse do presidente e dos mem bros da Junta de Energia Nuclear, realizado no dia 6, o Sr. Professor Dr. Oliveira Salazar, Presidente do Conseiho, proferiu as seguintes palavras - síntese das a tri­ buições do novo organism o e suDerior directriz a seguir quanto à aplicação da energia nuclear.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • J951 a 1958 humanidade, tendo as necessidades prementes da defesa emprestado sobretudo aquele impulso e aquela possibilidade de gastos sem os quais porventura tal fonte de energia, se conhecida, nào viria tão cedo a ser utilizada. Embora a guerra seja uma constante da história, a vida deve organizar-se para a paz, isto é, para o con ­ vívio pacifico entre os povos, a felicidade possível dos homens. Uma vez desanu­ viada a atmosfera de medo que se respira presentemente e atenuado, portanto, o afã das descobertas e aplicações militares, é natural que os espíritos se voltem para as preocupações e necessidades da vida corrente e se esforcem por extrair da nova força os meios de as satisfazer mais fácil ou economicamente. Nisto estamos inte­ ressados como todos os mais. Mas outros interesses possuímos. Ao menos enquanto for reduzida a série das matérias com cuja desintegração se trabalha, ou enquanto algumas das conhecidas mantiverem o predomínio actual, nós temos de preocupar-nos com a m obilização da riqueza potencial que os territórios portugueses, continentais e ultramarinos, parecem possuir. Pode bem ser que a Providência, tendo-se mostrado avara co n ­ nosco quanto a fontes conhecidas de energia - o carvão, os óleos minerais, mesmo a força hídrica - , nos tenha compensado de alguma forma com um pouco de urâ'io e de outros minérios afins, mananciais a explorar no futuro. Seja como for, e ainda que apenas comece a desentranhar-se de densa nebulosa . era nuclear, como nova era do mundo, há já seguramente possibilidades que se oferecem, actividades novas a empreender, interesses a acautelar, aplicações de toda a ordem a integrar na vida. 0 Governo espera que, à semelhança do que por toda a parte se estatuiu, o organismo agora criado seja o principal impulsionador dos estudos e das actividades e o conselheiro na defesa dos interesses. Ficam desde já agradecidos, em nome do País, os esforços que desenvolver e os benefícios que da sua acção possam resultar.

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XII. GOA E A UNIÃO INDIANA "> (Aspectos Económico, Político e Moral) Quando o Prim eiro-M inistro da União Indiana, Sr. Nehru, pode distrair das suas imensas preocupações alguns minutos em cada dia para falar de Goa, que não é sua, não se estranhará que, ao menos uma vez em cada ano, eu me ocupe em público do pequeno Estado que é nosso, e por imposição da História e força do Direito faz parte da Nação Portuguesa. Não se trata de entabular um diálogo, muito menos de princípio de discus­ são. A União é um vastíssimo país, com milhões de quilómetros e centos de milhões de habitantes, que parece apostada em afirmar a sua mocidade de Estado livre em preten­ sões a estender domínios e poderio, e em assegurar a independência, que ninguém ame­ aça, através da consolidação de uma unidade — geográfica, à falta de melhor — e já essa irremediavelmente comprometida. Nós somos, apesar da relativa vastidão do nosso Ultramar, uma pequena nação homogénea e razoàvelmente estruturada, que há bas­ tantes séculos tem consciência dos respectivos limites territoriais e humanos, de onde vem talvez a energia com que procura defender os seus e o escrúpulo com que respeita os alheios. A modéstia não nos inibe porém de falar, porque a razão não depende do número e a justiça não varia com o valor material das causas. A imprensa da União Indiana, que é dem ocrática e constitucionalm ente livre, tem-se revelado bastante uniform e nos seus ataques a Portugal, e geralmente bas­ tante hermética em relação ao restabelecim ento da verdade que tentamos, quando a cada passo a vemos extraviar-se a nosso respeito e a respeito de Goa pelas in for­ mações inexactas e os injustos juízos. Alguns pequenos jornais que, no uso dessa mesma liberdade, ousaram discordar ou apresentar algumas restrições ao m odo de ver oficial foram em pastelados e assim impedidos de acreditar qualquer outra ver­ são. É d ifícil fazer chegar, em tais condições, aos espíritos independentes da União uma palavra desapaixonada. Apesar de tudo, falarei, porque parece indispensável não deixar dissolver-se no azedume das paixões a essência de problem as sérios na vida e relações dos povos, e porque enfim nunca se sabe onde pode ecoar uma voz ainda que sob a impressão de clam ar no deserto. I.

Começarei por uma proposição singela e facilm ente demonstrável: seja qual for o valor moral que representa para nós, o Estado da índia pode dizer-se que não conta dem ográfica, económ ica e financeiram ente no todo português. 0 1

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Discurso proferido em 12 de Abril de 1954, ao m icrofone da Em issora N acional.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 Goa, Damão e Diu têm apenas cerca de 4 mil quilómetros quadrados, que represen­ tam, para o nosso total de aproximadamente 2.200.000, a modestíssima percentagem de 0,18%. A população daqueles territórios anda por um pouco mais de 600 mil habitantes, ou 3% dos 20 milhões quejá contamos no Portugal Metropolitano e Ultramarino. Como a população é densa - uns 160 habitantes em média por quilómetro qua­ drado - e restritos os recursos locais, Goa desentranha-se em emigrantes para a União Indiana, o Paquistão, as regiões marginais do golfo Pérsico, os domínios ingleses de África, o Ultramar Português. As colónias mais numerosas encontram-se em Bombaim - uns 80 mil goeses, noutras partes da União uns 20 mil, no Paquistão à volta de 30 mil, dos quais 10 mil em Karachi, e 30 mil no Quénia e na Uganda. Em Daran, Abadan e em outras regiões do Pérsico devem contar-se também uns 20 mil. Como é da boa tradição portuguesa, o goês é excelente trabalhador, disciplinado, respeitador da sobe­ rania e obediente às autoridades locais. Desempenha geralmente misteres pouco ren­ dosos, e não constitui nunca base ou ponto de apoio para uma política metropolitana de qualquer espécie - aliás não pretendida. A boa aceitação do goês é por isso geral e a única compensação ambicionada para o seu trabalho é a possibilidade de remeter pequenas economias para ajuda do sustento da família que ficou em Goa. Dos números de que dispomos quanto ao valor da produção agrícola, industrial e mineira de Goa, Damão e Diu, pode concluir-se que a indústria transformadora se encontra pouco desenvolvida; a produção agrícola - arroz, coco, castanha de caju, areca e manga - deve orçar por 300 mil contos, e os minérios de ferro e de manganês exportados andaram em 1953 por importância pouco superior a essa (338 mil contos). Em conjunto, as relações comerciais da Metrópole com o Estado da índia representam apenas 0,75 por mil do comércio metropolitano. Em 1953 enviámos para lá 10 mil con­ tos de mercadorias e o que importámos não chegou a 1 milhar. No comércio de Goa, Damão e Diu, não vamos - Continente e Ultramar juntos - além de 10% na importação e de 0,5% na exportação. Como é natural, a União Indiana atinge, respectivamente, à volta de 20% nas importações e mais de 40% nas exportações do Estado da índia. A balança comercial é deficitária, andando as importações por 550 mil contos e as exportações por 350 mil, depois do forte aumento que tiveram nos últimos anos com o produto da exploração mineira. 0 dé ficité saldado por meio de outras rubri­ cas da balança de pagamentos, como serviços prestados, turismo e emigração. Algumas das maiores empresas mineiras são da União Indiana, para onde portanto revertem os lucros mais avultados das explorações. Pode dizer-se que a única empresa metropolitana de relevo na nossa índia é o Banco Nacional Ultramarino. No longo período em que aí tem trabalhado, o Banco teve prejuízos em muitos anos e raras vezes lucros, e estes modestíssimos geral­ mente, da ordem dos centos de contos. No último ano arrecadou o Banco lucros mais avultados, à roda de 10 mil contos, que lá ficaram, constituindo uma reserva de divisas para eventuais dificuldades futuras. 0 orçamento do Estado da índia anda por 200 mil contos em receitas e despesas, ordinárias e extraordinárias: as ordinárias somam 130 a 140 mil contos, o que, sendo bastante para o território, representa pouco mais de 1% dos orçamentos das diversas

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XII. Goa e a União Indiana províncias da Nação. Dado o princípio de autonomia financeira basilar na Constituição portuguesa, as despesas orçamentais são todas aplicadas aos serviços próprios e melhoramentos locais, com uma pequena excepção. Do conjunto das despesas, 800 contos são pagos à Metrópole para custeio parcial de organismos que funcionam em Lisboa em benefício de todo o Ultramar; mas em contrapartida a Metrópole gasta no Estado da índia anualmente uns 7 mil contos e nos últimos tempos, em virtude das medidas de protecção à navegação e outras, muitas dezenas de milhares de contos por ano. Goa representa para a Metrópole, portanto, um encargo orçamental de alguma importância. Em tempos idos, de menor desafogo financeiro, o Marquês de Sá da Ban­ deira podia dizer a Lord Howard que a índia era para nós uma ruína. Parte do encargo m etropolitano é constituída pela garantia de juros a pagar à Companhia do Cam inho de Ferro de Mormugão, que serve a União Indiana. 0 total dos encargos pagos é já de £ 3.261.000 aproximadamente, para cuja compensação o Estado recebeu £ 815.000, de modo que o desembolso real desde 1881 a 1954 é de 2 m ilhões e meio de libras. Não só o total do orçamento, ainda acrescido dos suprim entos m etropolitanos, é exclusivam ente gasto em benefício dos serviços do Estado da índia, com o se pode dizer que dos mesmos só beneficia a população local. Enquanto os funcionários goeses no Estado da índia andam por 4.500, os de origem m etropolitana ascendem a escassas dezenas. Em virtude da não-discrim inação racial que adoptamos, não me é possível neste m om ento dar números exactos acerca dos indivíduos nascidos no Estado da índia e que exercem funções públicas ou profissões liberais na M e tró ­ pole. Mas sabe-se que há magistrados, professores, médicos, notários em número apreciável, e a todos estes acrescem os que trabalham em todas as províncias u ltra ­ marinas, de Cabo Verde a Timor. Os últim os excedem grandemente os m etropolita­ nos que desempenham cargos no Estado da índia. Isto é: Goa não é colocação para o funcionalism o m etropolitano, mas Portugal inteiro está aberto aos filh os de Goa. Os números que aí ficam demonstram cabalmente a tese posta: o Estado da índia não tem pràticamente valor na economia e na demografia portuguesa e é fonte de encargos financeiros para a Metrópole; não pode encontrar-se na sua vida jurídica e na sua administração o menor traço de imperialismo económico ou político, pelo que deve­ mos crer desactualizados, pelo menos, os que de tal nos acusam. Algumas das concep­ ções que nos levaram à índia - políticas ou económicas - desapareceram com o tempo que as fez surgir; mas deram lugar a outras realidades - as que se afirmam hoje. E estas realidades são: constituir Goa uma comunidade portuguesa na índia; representar Goa uma luz do Ocidente em terras orientais. 0 território é apenas o espaço onde essa comunidade vive; a terra, o farol onde essa luz se acendeu. Os nossos interesses são puramente morais — primeiro de portugueses, em seguida de homens do Ocidente. II. Os p o rtu g u e se s fo ra m ao O rie n te com a lto s p e n sa m e n tos re lig io so s, p o lític o s , co m e rcia is.

M a s parece c la ro que essas co n c e p ç õ e s n ão im p o rta v a m a c o n q u is ta 795

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 dos territórios, a sujeição das populações: apenas um pé em terra firme para daí se garantir a segurança dos mares e as novas rotas do tráfego. Nesses minúsculos ter­ ritórios cedidos ou militarmente ocupados, o sangue português fundiu-se genero­ samente com os das gentes locais; mais de quatrocentos anos de vida comum, de uma presença espiritual, da insuflação de uma civilização diferente, da interpene­ tração de culturas, criaram um tipo social perfeitamente diferenciado. Por mais que se queira, um português da índia, um luso-indiano, não se confunde com o natural da União. Todos os que visitam Goa, idos da União Indiana, não atravessam só uma fronteira política, mas uma fronteira humana, uma criação original do Ocidente, orientalizada ao contacto da cultura milenária da índia. Tenho notado contradições na argumentação apaixonada da União Indiana e uma das mais gritantes é esta: para se arrogar o direito de absorver Goa, diz-se que esta é índia, pela raça, pela religião, pela cultura; para se captar a simpatia dos goeses, promete-se-lhes que se respeitarão as actividades religiosas e os elementos culturais distintos daquela pequena comunidade. A verdade está porém no reconhecimento das diferenças e não no paralelismo das semelhanças. 0 pequeno Estado da índia é efectivamente uma província de Portugal e precisamente aquela a que estão ligados alguns dos maiores nomes que a Nação Portuguesa pôde dar à História Universal. Eis porque repugna à sensibilidade dos portugueses - e essa repugnância tem a sua expressão jurídica no texto constitucional - negociar a cedência de Goa e a cidadania portuguesa dos seus habitantes e não curar da sua defesa até ao limite das nossas forças. Estas coisas, de ordem exclusivamente moral, podem parecer estranhas ao m a te ­ rialismo dos tempos e são contestadas pelos que alimentam desígnios co n trários. Mas estes mesmos têm a prova de tais coisas corresponderem a uma realidade viva, no comportamento dos goeses, já não digo dos que habitam Goa, m as dos que vivem nos territórios da União Indiana: devendo-lhe o trabalho e naturalm en te receosos das mais diversas formas de pressão, nem por isso abdicam da sua q u a li­ dade de portugueses. Bem se sabe a dificuldade de arregim entar as poucas d eze­ nas para as manifestações hostis...

É certo que se têm transaccionado através dos tempos territórios ditos coloniais. Napoleão vendeu a Luisiânia; a Espanha ainda em 98 cedeu Porto Rico; há três sécu­ los, nós mesmos fizemos de Tânger e Bombaim presente de noivado de uma Infanta portuguesa; mais de uma vez no século xix, a Inglaterra nos propôs a compra de Goa. Tudo é históricamente exacto, e nada temos a dizer a isso senão que, apesar do pequeno valor económico do Estado da índia, a nossa reacção foi sempre igual e que o elemento do direito de propriedade, transparente nesse conceito de soberania, não existe no direito público português. Ainda que nalgumas partes da Ásia se continue a alimentar para fin s políticos o sentimento de abominação do Ocidente, e fossem quais fossem os excessos praticados por estes ou aqueles em passados séculos, isso não pode im pedir-nos de reconhecer quanto toda ela deve às nações que, com esforço sobre-humano, alargaram as fro n te i­ ras do mundo conhecido e trouxeram a mais íntimo convívio todos os povos da Terra.

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XII. Goa e a União Indiana A mesma justiça devemos prestar ao Oriente pelas contribuições de toda a ordem que dele receberam as nações ocidentais. Apesar de tudo, parece que a Europa se sente hoje envergonhada e repesa dos actos dos seus descobridores e do alto pensamento que os conduzia, e o mais discretamente possível procura apagar os seus vestígios. A verdade, porém, é que o progresso se mede ainda em toda a parte pelo grau de oci­ dentalização que se atinge e as regressões se verificam no sentido contrário. Quanto a nós, parece-nos indiscutível que a índia tem para com Portugal uma dívida — ter-lhe aberto as portas do Ocidente e tê-la posto em estreito contacto com os princípios de uma cultura, benéficos para a sua própria evolução. E ousa­ mos ainda dizer mais: se essa acção espiritual pudesse ter sido mais larga e pro­ funda, a índia, que procura m oldar as suas instituições no cunho ocidental, não encontraria na sua feliz independência problemas tão graves com o os que se lhe deparam agora. Lutamos por que, sem agravo para ninguém, Goa continue a ser o padrão dos descobridores portugueses e pequeno foco do espírito ocidental no Oriente, o qual, para se manter vivo, precisa de estar ligado às origens, com o o fio de água à nascente. III. Estas as nossas razões. Devemos agora exam inar com espírito aberto as razões da União Indiana. Tenho seguido com o possível cuidado os discursos e interpelações parlamentares, as mensagens e afirmações dos comícios e os artigos da imprensa. M uito pouco há que deva reter-nos a atenção. Trata-se de uma campanha conduzida nos termos das muitas que por esse mundo se têm levantado para idênticos fins. A imaginação humana é ape­ sar de tudo limitada e o mundo é bastante velho para não ter experimentado já todas as formas possíveis de, quando nisso há interesse, inverter as situações e contradizer a verdade: a nossa presença em Goa é tida por alguns como uma provocação; e o aban­ dono de Goa como um direito da União Indiana. A campanha é destituída de funda­ mento, como se tem provado a propósito de cada caso, mas tende a criar um estado de espírito excitado e irresponsável em que possam enxertar-se factos sem remédio. A agitação parlamentar e de imprensa - temos de lamentá-lo - é acompanhada por uma acção governamental claramente inamistosa. Não só a União Indiana, em toda a parte onde um goês trabalha - no Quénia, no Paquistão, na mesma União - , se compraz e engenha em mostrar a sua animosidade para com Portugal, com o vai acu­ mulando providências restritivas em relação às pessoas, ao correio, às mercadorias, com o fim de isolar o Estado da índia e tornar aí muito difícil a vida. Estas acções são inúteis, se se destinam a provar que a União Indiana tem o poder material do as pôr em prática. Sempre o reconhecemos, mas não é isso que se discute. 0 que está em causa é saber se tal regime é conforme às normas que regulam a vida internacional. 0 governo da União propõe-se alim entar uma opinião hostil com os seus reite­ rados protestos, as suas acusações infundadas, a sua instigação à revolta nos nos­ sos territórios. E não tem dúvidas sobre o que acontecerá aos que ousarem ali per-

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 turbar a ordem, do que deduzimos pretender vítimas para sobre elas abrir talvez o seu caminho. De tal maneira de agir, que não é só connosco, advém este resultado paradoxal: a União Indiana, oficialmente pacifista, e pacifista ainda pela m entali­ dade confessada dos seus mais altos dirigentes, mantém desagradáveis relações com todos os vizinhos. Serão então destes todas as culpas? Deixemos este capítulo, que só não calo por temer se pense que estamos desa­ tentos ou não sentimos os agravos; e passemos adiante, porque as recriminações não fazem dar um passo à solução do único problema que importa - e este é a coe­ xistência e pacífica vizinhança de Goa e da União Indiana. Do conjunto das declarações podem deduzir-se três pontos que merecem aten­ ção: imperativos da geografia; dificuldades administrativas causadas pelo em brechado dos territórios; e finalmente receios, no domínio da defesa, pela presença de uma soberania estranha. Goa é geográficamente índia, mas esta posição ou facto geográfico não é fonte de direito nem é bastante para definir os limites das respectivas soberanias. Pouco maior que a União Indiana é toda a Europa aquém da «cortina de ferro» e nela exis:em grandes nações, como a Alemanha e a França, e pequeninos Estados, como o Luxemburgo. Quando a terra é livre e a população dispersa e sem tradições, podem definir-se os limites dos Estados pelos largos mares, por paralelos e meridianos, como na América do Norte, como em certas regiões de África. São territórios não afeiçoados pela História e que não podem servir de exemplo quando a terra foi durante séculos ou milénios a fonte da própria vida e as fronteiras são fruto de mil circunstâncias da História/ Essas aparecem-nos então caprichosas e por vezes iló ­ gicas, mas respeitá-las é assisado e justo. Tem-se falado nas dificuldades experimentadas pela administração indiana em virtude da existência de territórios estranhos. Não nego que algumas dificuldades existam e desejaria poder apreciá-las em toda a sua extensão para buscar-lhes da nossa parte o possível remédio. Julgo, porém, que estas não podem ter especial gravidade nos territórios de Goa, Damão e Diu, que são todos confinantes com o mar. Admito, porém, que seja o caso diferente no pequeno enclave de Nagar Aveli, inteiramente rodeado por territórios da União; mas aí, como em tudo o mais, a nossa disposição de sempre é conciliar interesses e não prejudicar a administração indiana, como se verificou com a atitude por nós tomada em relação ao Padroado do Oriente, que aliás em nada interferia com o governo da União. Pertencerem-nos portos como Mormugão, que devia servir a União Indiana mais intensamente do que hoje, não pode ser razão de se nos recusar a legitimidade de estar em Goa. Falando, como é natural, com os olhos postos na Europa, a explora­ ção do argumento sacrificaria a Holanda à Alemanha, o Norte da Noruega a Rússia, os Estreitos aos Sovietes, a Itália à Suíça e à Áustria, o Egipto aos principais u tiliza­ dores do Canal, e com o mesmo fundamento foi a Finlândia sacrificada à Rússia. Por outro lado, a consciência dos deveres do Estado litoral para com os do interior,

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Goa

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XII. a União Indiana

desprovidos de saídas para o mar, mantém eom todo o direito na posse de Portugal Lourenço Marques e a Beira, com plena satisfação dos justos interesses da Á frica do Sul e das Rodésias. Reflectindo sobre Mormugão, notarei ainda que o porto manuseia um milhão de toneladas carregadas e descarregadas por ano, e que a percentagem do tráfego vindo da União Indiana pelo caminho de ferro que serve o porto, e que em 39 atingiu 97%, foi em 50-51 de apenas 69%, e no primeiro trimestre de 52 já só de 55%. A dim inui­ ção das percentagens pode em parte atribuir-se ao aumento do tráfego local; se, além desta, há outras causas, essas devem filiar-se na política da União, visto estar ainda a cargo dos seus serviços a administração do porto e do caminho de ferro. 0 último ponto liga-se a questões de defesa e é o único que parece reflectir preo­ cupações sérias da União Indiana. A União tem a sua política externa. Interpretam o-la com o pretendendo assegu­ rar urna vasta zona geográfica e humana de neutralidade no eventual co n flito entre potencias com unistas e o mundo ocidental. 0 ju ízo que façam os sobre a possibili­ dade actual de a União fazer vingar esta política não interessa; interessa apenas ter presente que no problema não tem os nós e a União Indiana a mesma posição. Quando se diz que a índia tem receio de Goa, é ridículo pensar que pode ter receio dos 2 mil ou dos 20 mil homens que ali pudéssemos manter. 0 que receia é a utilização que o território de Goa pudesse vir a ter por parte de potências mais fortes, adversas à política da União Indiana. Temos de exam inar a dificuldade e pro­ curar dar-lhe solução, se a União sinceram ente a deseja. Nós não temos entre os nossos deveres externos nenhum que im plícita ou explícitam ente se oponha à pos­ sibilidade de, no actual m om ento e quanto a Goa, encararmos dar à União Indiana garantias a respeito da sua segurança. A União faz parte da Com unidade Britânica, e Portugal desde séculos tem tido com o constante da sua política externa a aliança com a Inglaterra. Está assente que a política externa das nações da Com unidade pode ser diversa, mas não é admissível que seja contraditória. E isto significa que nem por esse lado, nem pelo de outros com prom issos gerais da Nação Portuguesa, Goa poderá servir de base a operações hostis à União Indiana. A definição de com prom issos precisos a esse res­ peito parece-m e assim possível e prática. IV. Desejaria ainda esclarecer um últim o ponto, algum tanto afim deste e provocado pelas m uitas perguntas que tenho visto fazer no Parlam ento da União Indiana, com o mal veladas sondagens sobre os tratados anglo-lusos e o Tratado do A tlâ n tico Norte e a eventual interferência das suas disposições com o caso de Goa. A cu rio ­ sidade de saber-se com o funcionariam , na hipótese de ataque à soberania p o rtu ­ guesa naquelas regiões, não poderá ser satisfeita. Mas, porque o P rim e iro -M in istro se referiu à minha opinião sobre esses tratados, devo confessar que não tenho 799

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 interpretação pessoal dos textos que haja de ser seguida ou rejeitada: su po n ho até que pela sua clareza não necessitam de intérprete.

A declaração luso-britânica de 14 de Outubro de 1899 confirmou expressa­ mente não só o artigo 1.° do Tratado de 29 de Janeiro de 1642, mas também o último artigo do Tratado de 23 de Junho de 1661, no qual, «em vista das grandes vantagens e aumento de domínio» por este Tratado atribuídos à Inglaterra, se esta­ belece textualmente o seguinte: Além de todas as coisas... acordadas e concluídas... se conclui e acorda mais por este artigo que Sua Majestade o Rei da Grã-Bretanha... promete e obriga-se pelo pre­ sente artigo a defender e proteger todas as conquistas ou colónias pertencentes à Coroa de Portugal contra todos os seus inimigos tanto futuros como presentes. E o artigo 1.° do Tratado de 1642 deixara estatuído de que «nenhum dos ditos Sereníssimos Reis, seus herdeiros e sucessores fará ou tentará coisa alguma, já por si, já por outrem, contra um e outro, os seus reinos em terra ou no mar, nem co n ientirá ou aderirá em guerra alguma, conselho ou tratados em prejuízo do outro». Pelo que se refere ao Tratado do Atlântico Norte, de 4 de Abril de 1949, deve dizer-se que os seus artigos 5.° e 6.° definem entre os signatários uma zona atlântica de garantia e acção imediata, que manifestamente não abrange a índia. E isso foi já objecto de uma comunicação formal feita pelo Governo Português à União Indiana em Abril do ano findo. Acessoriamente, porém, figura no mesmo Tratado o artigo 4.°, que reza assim: As Partes consultar-se-ão sempre que, na opinião de qualquer delas, e stive r ameaçada a integridade territorial, a independência política ou a segurança de um a das partes.

A definição da zona atlântica constante do artigo 6.° tem talvez feito a alguns cair desprevenidamente na suposição de que o Tratado do Atlântico Norte nada tem que ver com territórios situados fora da zona referida, quando a verdade é que o artigo 4.° contempla quaisquer ameaças à integridade territorial de um dos Estados Membros. A declaração peremptória feita no Parlamento da União de que estes Tra­ tados nada têm que ver com Goa não pode, pois, ser tida por fundamentada.

0 Mundo está cheio de inquietações e de perigos e o Prim eiro-M inistro da União Indiana notou-o bem explicitamente numa das suas últimas intervenções parla­ mentares, para que possa sem razão acrescentá-los ainda. Nós esperamos - e são as minhas últimas afirmações - , nós confiamos em que os actos vão corresponder às palavras e cremos que também aos íntimos sentimentos do Pândita Nehru.

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X III. RESPOSTA À SAUDAÇÃO DOS INDIANOS RESIDENTES EM LISBOA “> Agradeço reconhecido a Vv. Ex.as a sua visita e as palavras da sua mensagem. Fiz para receber hoje uma pequena excepçâo: entendi que devia fazê-la em relação àqueles sobre que têm recaído nos últim os tempos mais directam ente as ameaças, por ser porventura desconhecido de m uitos o seu patriotism o, quando não a sua mesma existência. Quando além -fronteiras se reparar em com o os portugueses da índia se fazem representar em Lisboa por altas figuras do professorado, da m agis­ tratura, das letras, do funcionalism o público, das profissões liberais, ver-se-á ta m ­ bém quão despropositado é o apodo de colónia decretado à índia Portuguesa e às relações desta com as restantes parcelas da Nação Portuguesa. V i hoje que a União Indiana se propõe pedir à conferência de Colom bo um voto de evacuação

(,) Palavras do Dr. Cunha Gonçalves em nome dos portugueses naturais da índia residentes em Lis­ boa, que vieram apresentar cum prim entos a S. Ex.a o Presidente do Conselho, no Palácio de S. Bento, em 27 de Abril de 1954: Senhor Presidente do Conselho, Excelência: Principiarei por agradecer a V. Ex.a a gentileza de nos conceder esta audiência, pois bem sabem os quanto e quão graves são os problemas da governação, que ocupam o alto espirito de V. Ex.a e lhe absor­ vem tempo. Por isso mesmo não serei prolixo. Em prim eiro lagar, e vista a data feliz cujo 26.° aniversário hoje ocorre, querem os apresentar a V. Ex.a os nossos mais calorosos cum prim entos, as nossas sinceras hom enagens e rendidos agradecim entos pelos esforços que V. Ex.a despendeu, durante mais um ano, com sacrifício da sua saúde e da tra n q u ili­ dade do seu espirito, em proveito de toda a Nação, da qual V. Ex.a tem sido tenaz, corajoso e infatigável reconstrutor. Sabem os bem, S en h o r P residente, q u an to talen to, q u an to s co n h e cim en to s, q u a n to tin o a d m i­ n is tra tiv o e p o lític o , q u a n to tra b a lh o e x austivo , q u an to cu id a d o pelo bem co m u m são n e ce ss á rio s a um governante, m orm ente nestes tem po s tão co m p lic a d o s e perigosos, que to d o o M u n d o a tra ­ vessa. E porque de tod as essas raras q u a lid a d e s V. Ex.a tem dado in cessa n tes e e lo q u e n te s provas, trazem os a V. Ex.a os n ossos co rd ia is e m od estos aplausos, as nossas sin cera s fe lic ita ç õ e s e os n o s ­ sos a rd entes v o to s por que V. Ex.\ ainda por lo ng o tem po, perm aneça no Poder à fre n te da N a çã o Portu guesa. Vim os principalm ente apresentar a V. Ex.a o nosso com ovido aplauso, a nossa adm iração e a nossa profunda gratidão pela nobre e patriótica atitude de V. Ex.a no caso da índia Portuguesa, e em especial pela sábia e adm irável mensagem por V. Ex.a há poucos dias radiodifundida a todo o M undo, e em que o problema se encontra posto com clareza, elevação e dignidade. É firm e convicção de todos nós, Senhor Presidente, que a nossa índia continuará para sempre p o rtu ­ guesa e, nesse sentido, form ulam os calorosos votos, seguros de interpretarm os o profundo sentim ento de todos os portugueses da índia.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 dos enclaves estrangeiros. Não deve ser o caso connosco, visto não haver ocupa­ ção nem domínio, nem raça superior que possa ou deva sair. Quando os portugue­ ses houvessem de evacuar Goa, nada ficaria ali senão a terra assolada, deserta, incaracterística, e não qualquer parcela de qualquer nação. Faço convosco um voto e este é que no Mundo se compreenda Goa, porque a simples compreensão a defende e a garante na unidade portuguesa.

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XIV . GOA E A UNIÃO INDIANA (1) (Aspectos Jurídicos) I. Na minha exposição de 12 de Abril tive a intenção de tocar sobretudo os aspec­ tos económ icos, político e moral do caso de Goa. Demonstrei que o pequeno Estado da índia nada pesava dem ográfica, econó­ mica e financeiram ente no todo português, não se auferindo dali quaisquer rendi­ mentos, antes continuando a co nstitu ir pesado ónus para o Tesouro da M etrópole. A afirm ação de não se encontrar em Goa nenhum traço de colonialism o ou de imperialismo económ ico ou p o lítico ’ não pôde ser contestada. Os goeses são cida­ dãos portugueses sem diferenças ou dim inuição em relação a quaisquer outros; cursam as mesmas escolas; fazem livrem ente a sua vida; concorrem para a form a­ ção dos órgãos constitucionais e têm neles assento; ascendem às mais altas situ a­ ções profissionais e aos mais altos postos políticos tanto na M etrópole com o no Ultramar, e não só na sua terra, com o alguns cuidariam. As discussões sobre regi­ mes de maior ou menor autonom ia na adm inistração não passaram nunca de dis­ putas familiares, sem transcender as fronteiras nem atingir a estrutura nacional. De facto, a massa da população, há mais de 400 anos portuguesa, nunca desejou ser outra coisa, nunca repudiou a nacionalidade e em toda a parte se orgulha da que possui, com o nestes perturbados m om entos inequivocam ente demonstra. A constitu ição desta com unidade indo-portuguesa no litoral do Indostão é um fenóm eno que tem, pelo menos, a mesma legitim idade histórica que a União Indiana, aparecida quatro séculos mais tarde. Com o realidade sociológica e política, não se podem fechar os olhos à sua existência nem se encontra fundam ento para preten­ são que lhe recuse o direito de existir, politicam ente enquadrada no pais que lhe deu o ser. Se tem os dificuldade em com preender o pretenso anacronism o da sua base territorial dispersa e longínqua, também não compreenderemos que as ilhas Hawai venham a ser um estado da federação norte-am ericana; e se vemos um óbice em estar a pequena província incrustada no Indostão, teremos de concluir que o Alasca não pode deixar de pertencer ao Canadá. Nos mares e terras do Oriente, a índia Portuguesa representa um tipo bem d e fi­ nido de cultura e de civilização, uma característica expressão ocidental. Pequena e modesta que seja, tem sido e pode continuar a ser ponto de encontro e traço de

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Discurso proferido em 10 de Agosto de 1954, ao m icrofone da Emissora Nacional.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 ligação entre o Oriente e o Ocidente; não serve de apoio a política ou sentimentos hostis para com as populações que povoam o subcontinente indiano; é o veículo de uma chama de fé, o fermento de uma concepção diferente de vida. Por tais motivos, concluía não poder o destino do nosso Estado da índia ser objecto de negociações em que Portugal dele abrisse mão, como coisa a dar ou a vender: seria uma negociação sobre objecto impossível. Mas por afirm á-lo com clareza fomos acusados no Congresso Indiano de revelar mentalidade do século XVI ou XVII. Há na acusação equívoco manifesto, pois precisamente o que então podia fazer-se, e algumas vezes se fez, não poderá hoje ser feito, por contrário aos prin­ cípios do moderno direito público. E ilustro a afirmação com uma frase do inglês Toynbee, na sua História: «uma convenção por força da qual províncias e habitan­ tes fossem transferidos de um possuidor a outro, como terras com seus gados, revolta a nossa sensibilidade formada na escola democrática». (UHistoire, trad. de E. Julia, 1951, pág. 315). Era, pois, imprescindível salvaguardar a soberania portuguesa. Mas, afirmada esta, reconhecia lealmente haver numerosos problemas nascidos da vizinhança e contiguidade dos territórios e que ofereciam largo campo a negociações e a acor­ dos: políticos, como os de segurança, económicos e culturais. Estas sugestões e boa disposição nossa não tiveram, porém, até hoje, seguimento ou resposta. II. Obcecada pela política da anexação a que chama eufemisticamente «integração pacífica» dos territórios portugueses, a União Indiana vem percorrendo fria e per­ sistentemente o caminho que vai das simples ameaças e das manifestações de má vizinhança aos actos agressivos à soberania portuguesa. E, porque parece fazê-lo com certo desconhecimento das suas responsabilidades, será conveniente focar, embora em ligeiro apontamento, alguns aspectos jurídicos da questão. Não se veja nisto pedantismo ou impertinência. 0 Primeiro-Ministro, Sr. Nehru, embaraça-se bastante, a nosso ver, quando pretende enquadrar em princípios jurídi­ cos alguns dos seus propósitos políticos. Não é razão bastante a confissão, que no seu livro de memórias faz, de ter concluído o curso de Direito «sem glória e também sem desdouro» (Ma we et mes prisons, pág. 37). Ter ainda esquecido na sua agitada vida política o que dos mestres aprendeu não é tão-pouco desculpa, quando se tem a res­ ponsabilidade de um grande Estado e se faz alarde de elevadas posições doutrinais. Na sua longa e dolorosa via a humanidade foi pouco a pouco apurando certo número de regras pelas quais se rege a convivência e se regulam as relações recí­ procas das sociedades humanas, assim criando um estado de direito. 0 processo não findou, mas as nações civilizadas entendem do seu dever e interesse subm e­ ter-se a esse conjunto de normas, e todas vêem na observância do direito, as gran­ des boa parte da sua segurança, as pequenas a garantia da sua própria existência. A União Indiana encontrou, ao formar-se, uma sociedade internacional já cons­ tituída, e cuja simples existência impõe a todos, na sua vida de relações externas,. 804

XIV Goa e a União Indiana certa disciplina jurídica. Pelo acto da sua constituição em Estado soberano e m uito especialm ente pela sua entrada na Organização das Nações Unidas, a União Indiana fico u obrigada a mover-se não só no âm bito do direito por ela mesma co n tratu a l­ mente form ado, mas no do direito preexistente e aplicável a todos os membros civ i­ lizados da sociedade internacional. Afirm ar, com o se afirm ou em Nova Deli, que, aparecendo no século XX, a União nada tem que ver com os tratados ou regras de direito anteriores à sua própria form ação, pode ser uma resposta expedita que liberte de em baraços ocasionais, mas não pode sustentar-se em term os de direito. E já agora, antes de exam inarm os com o a União tem cum prido algumas normas desse direito nas suas relações com Portugal, façam os ainda, à margem do pro­ blema, duas ou três pequenas notas. A União Indiana e o Paquistão surgem na história e no direito com o o resultado de um acto de vontade concordante da nação britânica e da população existente em determ inado território - população e território que não podiam deixar de ser os que constituíam o Império das índias. Pensar que esse acto transcendental que deu origem a dois grandes Estados independentes tem alguma coisa que ver com Por­ tugal ou a índia Portuguesa é uma enorm idade jurídica. 0 fenóm eno paralelo, se fosse possível, passar-se-ia com o assunto interno do Estado Português, não entre a União Indiana e Portugal. Outra nota. Este problema dos territórios estrangeiros afirm a-se na União Indiana, umas vezes com o estranha imagem literária, outras com o ponto do pro­ grama revolucionário da independência. As «feias verrugas no lindo rosto da índia» excitam, parece, os oradores políticos que, em idêntica ordem de ideias, têm de considerar o Paquistão e o Ceilão com o chagas repelentes no mesmo form osíssim o rosto, e daí, transposto o caso da literatura para a política, a União Indiana poderá tirar mais tarde algumas conclusões. Sem discutir a propriedade da imagem, é e vi­ dente não constituírem as fórm ulas poéticas suficiente fonte de direito, e tem os de lamentar que na União Indiana a literatura dom ine a política e seja a sua doce poe­ sia a disparar armas de fogo contra pacíficos portugueses. Como ponto de programa revolucionário, a libertação de territórios tam bém não é relevante para os estranhos ao Império Britânico de que a União se desprendeu, pois precisamente o prim eiro dever desta é o respeito pelas soberanias preexisten­ tes que dele não dependiam. Constituída em Estado, a União Indiana encontrou-se, quanto a Goa, em face de uma soberania estrangeira, e por esta razão algum as ingerências abusivas em nome daquele programa não são assunto de política interna e caem sob a alçada do direito internacional. Mas revertam os ao ponto principal: ver à face do direito o com portam ento da União Indiana para com a Nação Portuguesa. III. Por mais esforços que os serviços de imprensa da União tenham desenvolvido em todos os países para apresentar a seu m odo os acontecim entos e a atitude do 805

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 seu governo, a consciência geral está já neste momento formada no sentido seguinte, que corresponde fielmente aos factos verificados: 1. ° - existência de ameaças permanentes, seguidas de actos de execução hostis aos interesses e à vida das populações da índia Portuguesa e dos goeses existentes em território da União; 2. ° - estabelecimento de bloqueio terrestre, realizado administrativamente, em relação aos territórios portugueses; 3. ° - propaganda e permissão da organização, no seu território, de bandos arm a­ dos, pretensamente constituídos por goeses, mas de facto, na sua quase totalidade, por indivíduos estranhos à comunidade portuguesa, para movimentos subversivos na nossa índia; 4. ° - protecção e apoio ostensivo de forças policiais ou outras forças armadas à invasão dos territórios da índia Portuguesa por parte dos mesmos bandos e isola­ mento dos territórios assaltados, de modo que não possam ser assistidos pelas auto­ ridades portuguesas; 5. ° - colaboração em actos de pretensa libertação dos territórios assaltados; 6. ° - propaganda, organização e apoio a demonstrações ou m ovim entos de exteriorização pacífica mas de índole subversiva, para se desenvolverem nos territórios portugueses movimentos idênticos aos que o P rim eiro -M in istro , Sr. Nehru [Mo vie et mes prisons, pág. 264), considera de acção directa e revo­ lucionária e, como tal, passíveis de legítima repressão do Estado desacatado, doutrina que é exacta e, diga-se de passagem, não lhe permite responsabili­ zar-nos pelos resultados. E tudo isto com o fim de anexar territórios em relação aos quais a soberania por­ tuguesa não sofre, nem sofreu nunca da parte da União Indiana, a menor contesta­ ção. A confissão do propósito é de tal modo insistente que não pode ser desconhe­ cido; a maneira «pacífica» de atingi-lo, aquela que indiquei, com os desenvolvimentos possíveis contidos em repetidas ameaças. Tudo são actos que a consciência e a moral das nações reprovam e que, por esse facto e só porque violam o direito de outro Estado, se consideram proibidos pelo direito internacional. Com efeito, neste o princípio fundamental, o ponto de partida aceite e reconhecido pela generalidade da doutrina e jurisprudência internacionais, é o respeito pelos direitos alheios. E não só pela doutrina e a jurisprudência, mas pelas convenções. Pelo artigo 2.° do Pacto das Nações Unidas, de que a União Indiana faz parte, os membros da organização abstêm-se, nas suas relações internacionais, de recorrer è ameaça e ao emprego da força, quer contra a integridade territorial ou a indepen­ dência política de qualquer Estado, quer por qualquer outra forma incompatível com os fins das Nações Unidas; e estes fins são, segundo o artigo 1.° do mesmo Pacto, manter a paz e a segurança internacionais, desenvolver entre as nações rela­ ções amigáveis, realizar a cooperação internacional. 80 6

Goa

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XIV. a União Indiana

No preâm bulo da Carta das mesmas Nações Unidas, através do qual se pode bem ajuizar do espírito que a informa, fala-se na resolução de as Nações praticarem a tolerância e viverem em paz umas com as outras com espírito de boa vizinhança; e a D eclaração do Rio de Janeiro de 1947 definiu «a política de boa vizinhança» com o «a expressão do respeito devido ao direito fundam ental dos Estados». Nenhuma dúvida há de que este direito fundam ental dos Estados, como direito natural, sub­ siste independentemente de convenções particulares e compreende o de conserva­ ção e o de autonom ia e independência. Os chamados princípios fundam entais ou básicos da convivência internacional são tão evidentes à consciência dos povos e impõem-se de tal modo a todos que a União Indiana e a China os enumeraram no acordo acerca do Tibete e os mesmos se referiram expressamente ao fin dar a recente conferência de Nova Deli. Com ênfase e com o quem faz uma descoberta preciosa, lhes atribuem a virtude, na verdade indiscutível, de constituírem sólidos alicerces para a paz e a segurança, se aplicados nas relações internacionais. Vale a pena referi-los: m útuo respeito pela integridade territorial e pela soberania; não agressão; não interferência nos negócios internos da outra parte; igualdade e benefícios recíprocos; coexistência pacífica. Existem, pois, os princípios e, por felicidade, expressamente aceites ou proclama­ dos pela União Indiana. Basta agora cotejá-los com os factos enunciados acima para se concluir que a União indiana se apostou, sobretudo nos últimos tempos, em violar nas suas relações com Portugal os deveres que lhe incumbem como membro da socie­ dade internacional, e muito especialmente como membro das Nações Unidas, por iro­ nia das coisas colocado neste momento na presidência da sua assembleia geral. Do não cumprimento ou da violação dos princípios aludidos deriva serem respon­ sáveis os Estados; a jurisprudência internacional tem considerado sempre como funda­ mento de responsabilidade o não cumprimento das regras do direito internacional e toda a acção ou omissão contrária às obrigações internacionais, seja qual for a autori­ dade do Estado donde provém a acção ou omissão. E sempre vemos considerados como factos determinantes da responsabilidade dos Estados a invasão, o ataque à mão armada, o apoio dado a bandos armados, qualquer uso da força directo ou indirecto. Seja ainda qual fo r no nosso tem po a precariedade e inconsistência de sanções na vida internacional, ju lgo haver vantagem na denúncia de actos tão claram ente contrários ao direito com o os praticados pela União Indiana. Seria verdadeiram ente para desesperar da justiça que organism os internacionais com petentes fugissem, quando instados, a declarar, com o aliás desassombradamente o têm já fe ito várias nações, que, com o seu com portam ento em relação à índia Portuguesa, a União Indiana viola o direito e é culpada de actos de agressão. IV. Pergunto a mim próprio se, no co n flito enxertado na existência dos pequenos territórios portugueses no Indostão, não haverá causas diferentes daquelas que à 807

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 primeira vista se enxergam. A política ocidental tem-se desenvolvido para com a União Indiana amigavelmente, carinhosamente, no plano da expectativa de um comércio intenso, e também no plano mais elevado da preservação de um apoio económico e moral possível em caso de conflito. Seja porém qual for a im portân­ cia que em tais casos represente o imenso subcontinente, não parece que a isso se possa reduzir o problema; antes as atitudes ou serviços entrevistos supõem que a solução de outro problema terá sido alcançada ou pelo menos rasgado o cam inho para se alcançar. A União Indiana, acabada de aparecer na história como entidade política inde­ pendente, parece encontrar-se numa encruzilhada difícil, no mais alto ponto de uma grave hesitação. Do Ocidente tem uns começos de industrialização, a larga túnica dos princípios constitucionais, a ossatura da organização administrativa ins­ tituída pela Inglaterra - tudo isto proclamado, impulsionado, garantido, tanto quanto o pode ser, por uma ténue camada política, cujos principais elementos penso serem ainda os educados pelos ingleses, os formados pelos ingleses. Do Oriente, ou seja de si própria, como a vasta profundidade à superfície da qual a política e os políticos se agitam, a índia possui toda uma estrutura económico-social, e uma for­ mação filosófica e religiosa, que puderam dar carácter a uma civilização, mas não :onseguiram, através de muitos séculos, estruturar solidamente uma Nação e cons:ituir duradouramente um Estado. De modo que a grande ansiedade vem de que ou a índia refunde e caldeia a sua própria alma ou é de recear seja outra vez um dia vítima de novas divisões e presa de novos conquistadores. Dos movimentos desen­ contrados que se verificam nos espíritos dirigentes e nas multidões submetidas nas­ cem as graves discrepâncias entre as afirmações e os factos, as leis e os costumes, os propósitos e as realizações - propósitos pacifistas e realizações inamistosas ou bélicas, liberdades teóricas e odiosas restrições práticas, anseios de progresso humanitário e o peso morto de inúmeras divisões. A maneira de a União Indiana se imunizar dos perigos que continuarão a ameaçá-la na sua estrutura de Estado e na sua vida de nação, afigura-se que não é isolar-se numa política de desconfiança e hostilidade aos países do Ocidente, mas continuar a absor­ ver dele tudo quanto, despido de ambições políticas e de imperialismos ultrapassados, lhe pode facultar em técnica, em instituições jurídicas, em elevação de vida, em prin­ cípios de convivência social. Se a índia, porém, toma o caminho de segregar-se do mundo era ordem a man­ ter íntegros os princípios em que milenàriamente se formou, todo o edifício de democratização ou constitucionalizaçâo à europeia soçobrará e de todo se esvairão as esperanças depositadas na floração daquela independência, como na das liber­ dades apregoadas, designadamente em matéria religiosa. A União Indiana seria bem avisada se deixasse para o momento dessa suprema escolha o prosseguimento de uma política a que, mesmo à parte os agravos ao direito, falta no momento pre­ sente lógica c justiça. Se a algum país ocidental pode a índia estender sem receio a mão em território contíguo ao seu próprio território; se alguém pode, sem fazer agravo ou sombra, 808

XIV G od e a União Indiana nem co nstitu ir fonte de dissídios ou perigos, representar a luz do Ocidente em ter­ ras orientais, esse país é Portugal. As campanhas de ódio de que partem os actos hostis à soberania portuguesa são na União Indiana uma arma de pequena política, de modo algum séria razão de Estado. E é por isto que, mesmo nestes momentos, me custa abandonar toda a esperança e a confiança que tenho depositado na cla ­ rividência dos supremos responsáveis pela direcção daquele país. V. Neste lamentável co n flito que a União Indiana nos impõe temos sem dúvida a razão do nosso lado. Para saná-lo, para evitar que chegue às últimas consequên­ cias, o Governo tem lançado incansavelmente mão de todos os meios - políticos, diplom áticos, m ilitares - de que pode dispor, sem se arredar da prudência que as circunstâncias lhe impõem e da linha de dignidade exigida pela justiça da causa e pelo carácter sagrado de nosso direito. A reacção internacional revela compreensão e simpatia: em numerosos países a questão é seguida com o maior interesse, mais por amor da justiça e pelo prestígio do direito do que pelo peso dos interesses materiais em causa. As provas de apoio e carinho, vindas daqui e dalém, e não só dos países em que existem vínculos p olí­ ticos especiais que os expliquem, com o são os casos do Brasil, da Inglaterra ou da Espanha, representam que, no abatim ento actual, há, apesar de tudo, fortes solida­ riedades morais que despertam, mal se enxerga a iminência de perigos comuns. Em tão grave emergência tudo, pois, se tem m obilizado, menos a consciência da Nação. Essa irrompeu espontânea, fremente, desde o prim eiro momento, com vibrações que não lhe conhecíam os, mas sabíamos existirem no fundo da alma por­ tuguesa. A pequena índia vive no coração de Portugal e nunca tão forte unanim i­ dade se revelou entre todos os Portugueses com o quando pressentiram que podia correr perigo. De toda a parte, do Ultram ar e de países estrangeiros, chega-nos o mesmo apelo, o mesmo grito: guardar-se Goa, com os haveres, as armas, os peitos, os novos e os velhos, as orações e os sacrifícios, com o o mais caro tesouro da fa m í­ lia e da história lusíada. Penso não haver um português que não com partilhe deste sentim ento e não vibre, sejam quais forem assuas divergências ideológicas ou p o lí­ ticas, com uma questão que é, em verdade, uma questão nacional. Quando grandes nações se dispõem a arrastar os pequenos povos para tão gra­ ves conjunturas, de m uitos lados se ouvem apelos à necessidade de ser realista. Sem dúvida, o realismo é uma saudável e equilibrada atitude do espírito, mas aplica-se às coisas e aos factos e não ao dom ínio moral. 0 direito perm anece o direito, mesmo que não haja força bastante para im pô -lo ou que razões g e o g rá fi­ cas impeçam o seu uso em toda a plenitude; o dever permanece dever, mesmo quando cu m pri-lo represente um sa crifício inútil na escala corrente dos valores. Nós seremos realistas em com preender que a União Indiana pode, quando se coloque à margem da moral e do direito, tornar pràticam ente incom portável a vida nos m inúsculos territórios portugueses: tem por ela a superioridade da iniciativa, a 809

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 proximidade, a sua própria grandeza e força material. Mas a União Indiana será por seu lado realista, se tiver em conta a reprovação da consciência geral. Será realista, se vir claro que os seus legítimos interesses de Estado vizinho são conciliáveis com a existência de Goa, e muitos prejudicará sem remédio ali e noutros pontos se a des­ conhecer. Será ainda realista, se compreender que não há do nosso lado o capricho de um governo, mas o inequívoco imperativo de uma Nação que considera dever à dignidade denunciar os agravos ao direito e defender o seu território. Correu já sangue na Índia? A índia conhece bem o sangue português - no mar e em terra, nas veias, nas almas.

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XV. O CASO DE GOA (1) I. Goa e a União Indiana; II. Goa e o Mundo; III. Goa e o Cristianismo na Ásia; IV. Goa e Nós Próprios; V. Goa e o Futuro Senhor Presidente: A Câmara desejará ser informada, por declaração directa do Governo, acerca da questão de Goa, ou seja, do conjunto de problemas suscitados pelas pretensões da União Indiana à integração, debaixo da sua soberania, do Estado Português da índia. São conhecidos os principais factos e mesmo as posições fundam entais e atitudes assumidas pelos dois governos. Não cansarei a Assembleia com o seu relato nem repetirei o que em declarações anteriores pude dizer dos principais aspectos, p o líti­ cos e jurídicos, desta questão. Depois dessas minhas declarações, porém, verificaram -se e estão decorrendo factos da m aior gravidade relativam ente aos territórios portugueses; nota-se excepcional virulência em campanhas conduzidas por elementos mais ou menos responsáveis da política e da imprensa da União Indiana; desenvolve-se toda uma teoria de reclamações e protestos infundados, ao mesmo tempo que chegam a des­ concertar as respostas às queixas por nós apresentadas contra a violação de direi­ tos que se suporiam por toda a parte reconhecidos e respeitados; conhece-se a reacção internacional a este propósito: estamos talvez em condições de form ar um juízo acerca da situação, nascendo a minha dúvida apenas da dificuldade de pôr de acordo, à face da lógica ocidental, o pensamento, as afirm ações e os actos do P ri­ m eiro -M in istro da União Indiana e do seu governo.

I. G O A E A U N IÃ O IN D IA N A

Duas posições parecem nítidas e incontestadas do lado da União: a primeira é a afirm ação do direito da União Indiana a que o Estado da índia se integre nos seus territórios; a segunda é que a mesma integração há-de fazer-se por meios pacíficos, sem recurso, portanto, à violência. A integração de Goa na soberania de Nova Deli não é uma perspectiva ou antevisão da evolução histórica: representa um objectivo político que os actuais governantes supõem dever realizar em cum prim ento da sua missão. M as para que um objectivo político em que tão visceralm ente se encontra envolvida uma soberania estrangeira possa vir a realizar-se sem violência, é neces-

Discurso proferido, em 30 de Novem bro de 1954, na Assembleia Nacional.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 sário que uma de duas circunstâncias se verifique: a possibilidade, jurídica e de facto, de essa soberania ser espontaneamente abandonada ou a existência de uma vontade unânime, firme, irrefragável do povo goês, que tornasse impossível o exer­ cício do poder público em Goa. Estas são as principais ilusões sobre que as constru­ ções político-jurídicas da União Indiana têm procurado erguer-se, sem consistência, porém, para se manterem erguidas. 0 pretenso direito da União Indiana a Goa têm-no baseado os seus defensores na geografia, na história, na identidade de raça, língua e cultura, no princípio da autodeterminação dos povos, ou seja, na vontade dos goeses, e um ou outro no marcado desnível de grandeza ou de força que legitimaria o acto de o mais forte ir alargando, à custa de pequenos Estados, a área dos seus territórios. Esta última tese não é mesmo de discutir; vejamos as restantes. Nunca a geografia legitimou direitos soberanos, nem mesmo, como é clara­ mente visível, na península do Indostão. Apesar da influência que os factores geográficos exercem na história da humanidade, através de dois elementos fu n ­ damentais - as possibilidades de vida e as facilidades de defesa do agregado social - , são sempre os factos históricos e não a configuração geográfica que definem fronteiras, estabelecem direitos, impõem soberanias, E este é o caso português da índia. Pretender a União Indiana que retroceda a história ao século de 500; apresen­ tar-se hoje como existente potencialmente nessa data, ou arvorar-se em legítima herdeira dos dominadores que ali encontrámos, é uma construção de sonhadores estáticos, não de dinâmicos construtores de história, como pretendem ser os que do Reino Unido receberam um Império. Se houvéssemos de aferir a legitimidade das soberanias pelas situações existentes cinco séculos atrás, que Estado, que Nação, que soberania, que fronteiras, na Europa, na América, na Ásia ou na Oceânia, se poderiam manter ou ter direito a existir? Que revisão apocalíptica, ou que ordenamento catas­ trófico não seria necessário? Quantos séculos viriam a exigir-se para a consolidação de tratados, a delimitação de fronteiras, a estratificação de entendimentos e form as de convivência entre os povos? - Referem-se estas teses, não pelo seu perigo ime­ diato para o mundo, mas pelo delírio da sua própria extravagância. Fala-se hoje muito na autodeterminação dos povos, como corolário do direito natural de os agregados humanos dirigirem por si os seus próprios destinos. Fora da afirmação solene de princípios, tanto em moda no fecho das conferências internacio­ nais, aquela invocação aparece-nos feita a maior parte das vezês ao sabor de intuitos políticos ou necessidades de ocasião, e portanto sem o rigor correspondente à trans­ cendente dificuldade do assunto. 0 nosso exemplo pode talvez ilustrar esta. Em virtude da orientação que tomaram o nosso desenvolvimento e agência no mundo, adveio que a Nação Portuguesa se formou, complexa na sua estrutura, dis­ persa nos seus territórios, diversificada nos povos que a constituem, sem prejuízo, 812

XV O Caso d e Goa

antes com bem vincada afirm ação de uma unidade nacional, ¡ntencionalm ente prosseguida e consolidada pelo esforço de muitas gerações. Nestas circunstâncias, Portugal não pode, com a ligeireza corrente, professar princípios que seriam agen­ tes de dissociação e de quebra da sua integridade - no fundo a negação de si pró­ prio, sem vantagens visíveis mais que para terceiros (porque há sempre neste mundo vário quem esteja disposto a colher os frutos das tolas filosofias alheias). Esta pru­ dente reserva não quer, no entanto, dizer que não haja no aludido princípio uma parte de justiça e de razão. De facto, quando um povo, pela sua base territorial e desenvolvimento demográ­ fico, pelos laços e produtos do sangue, por essa misteriosa criação de uma alma colec­ tiva, representa profunda diferenciação, senão antinomia de interesses, e atinge, pela existência de um largo escol responsável, o que se pode chamar a maturidade política - a autodeterminação traduz-se pela constituição reconhecida de um novo Estado independente. Não negamos, pois, o facto nem o princípio, e quem aceitou, depois de três séculos de íntima história comum, a separação amigável e passou a rever-se na independência do Brasil, pode bem discutir problemas desta ordem. Mas é este o caso de Goá? Adiante me referirei ao ponto com mais desenvolvi­ mento. Aqui apenas observo que o princípio não só é mal invocado, com o de modo algum pode sê-lo pela União Indiana. Em primeiro lugar, o Governo da União não pretende a independência do Estado Português da índia, mas a integração dos ter­ ritórios no seu próprio território, a fusão das populações na sua massa de popula­ ção. Em segundo lugar, todos poderão aceitar o princípio de autodeterm inação dos povos, menos a União Indiana. Quando esse princípio pudesse ser pacificam ente invocado e receber satisfação, a União Indiana voltaria rapidamente à poeira de Estados e soberanias e à simples expressão geográfica que, através dos tempos, quase sempre fora. Goa seria ainda Portugal e já as numerosas raças, línguas e re li­ giões do Indostão haviam de co nstitu ir bases de edificações políticas m uito mais diferenciadas que as nossas províncias ultramarinas. Isto me leva à consideração das últimas razões invocadas do lado da União Indiana. Dos numerosos discursos feitos no Parlamento de Nova Deli e das declarações a agrupam entos políticos deduz-se que, ao princípio destes lamentáveis incidentes, os dirigentes da União Indiana pareciam estar convencidos, com o de duas evidências, do seguinte: inexistência de qualquer diferenciação de Goa em relação à índia; v o n ­ tade dos goeses de deixarem de ser súbditos inferiorizados de uma potência c o lo ­ nial, para se converterem em cidadãos de um Estado soberano. Essas populações, am putadas da m ãe-índia, não teriam recebido, com a mistura de sangue, a in flu ê n ­ cia de uma cultura e a cristianização do maior número, os benefícios de uma eleva­ ção social e de uma categorização política. Continuariam párias na sua própria terra, dom inada ainda por estranhos, insensíveis e parados ante o m ovim ento da história. Assim, o caso afigurara-se, em precipitado simplismo, com o libertação de concidadãos e pura questão de política interna. Os factos posteriorm ente verificados, as alegações produzidas, a observação porventura mais cuidadosa levaram, porém, o P rim eiro-M in istro, Sr. Nehru, às

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Oliveira Salazar Discursos c Notas Políticas • 1951 a 1958 seguintes posições, que consideramos benefícios adquiridos em relação aos seus modos de ver anteriores: -

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Goa constitui de facto uma unidade cultural, linguística, racial, diferenciada socialmente da União Indiana pela sua ocidentalização; e essas características diferenciais têm de ser respeitadas e mantidas; a questão de Goa não é de modo algum questão interna da União, mas questão de política externa, por contender com uma soberania legítima estrangeira, sempre reconhecida como tal e garantida por tratados internacionais.

Nós consideramos estas duas atitudes como posições-mestras na questão, das quais muitas conclusões se hão-de tirar, e a primeira é já que a «falta de liberdades democráticas em Goa» não tem de ser rebatida por nós quando alegada pela União Indiana. Podíamos confrontar constituições, textos de lei, práticas de vida, mas não são questões que em princípio possamos discutir com potências estrangeiras a nossa organização política e as prerrogativas dos cidadãos portugueses. Isto é sim ­ ples consequência da não intervenção de um Estado na vida interna de outro, tão solenemente afirmada pela União Indiana no acordo do Tibete. 0 desejo, porém, de nada deixar por esclarecer nesta matéria induz-me a aceitar por momentos a discussão sobre o problema de saber se a falta de certa liberdade em Goa prejudica a prova de uma asserção da União Indiana. Nós afirmamos o seguinte: Goa encontra-se ligada, sentimental e patriotica­ mente, a Portugal, e os goeses não têm mostrado preferir a recente soberania indiana à do velho País que teve, pelo menos, o mérito de, em recuados tempos, abrir à índia os caminhos marítimos do mundo e pô-la em contacto com a civiliza ­ ção ocidental. Do lado oposto afirma-se que, se Goa não se tem levantado a favor da sua integração na União Indiana, é que não tem liberdade para isso. Decido não fugir ao argumento e respondo. É perfeitamente exacto que no Estado Português da índia não podem os cida­ dãos portugueses, sem incorrerem responsabilidade, manifestar públicamente pre­ ferência pela sua ligação à União Indiana e agir em conformidade com qualquer intento desse género. É assim em Goa; é assim em Portugal inteiro; é assim em todo o mundo, porque a cidadania não é objecto de escolha, mas dever natural de que cada um não pode libertar-se à sua vontade, negando-se à pátria. É assim também na União Indiana, com a estranha agravante de, ao contrário do admitido nos povos civilizados, não poderem ali os goeses manifestar sem risco o seu desejo de que continue portuguesa a sua terra. Este o direito ou a negação dele; mas os factos, só os factos, também não per­ mitem a dedução de que os goeses escolheriam como seu futuro a anexação de Goa à União Indiana. Há goeses em território português, há goeses em territórios da União, e muitos sob outras soberanias que não podemos influenciar. E o com por­ tamento da grande massa, por toda a parte, é idêntico - de fidelidade à Nação Por­ tuguesa. Nem as pressões materiais e morais exercidas na mesma União Indiana,

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XV O Caso d e Goa

nem as mil form as de captação ou aliciam ento que estão sendo usadas fora dela com o no Quénia, no Tanganhica, no Pasquistão — têm conseguido demover estes portugueses de confessar o seu portuguesismo. Eu quero deixar aqui uma palavra de com ovida adm iração pela fidelidade patriótica de que têm dado provas, por vezes em bem difíceis circunstâncias, tantos homens, a m uitos dos quais Portugal dá apenas a honra de um nome e o prestígio de uma História. A atitude destes homens perm ite-m e reduzir a nada a im portância do argumento da União de que não há em Goa liberdade para que os goeses se manifestem a seu favor. M as há essa liberdade na União Indiana, e esta não tem sido suficiente para converter à sua causa a centena de milhares de goeses que aí angariam a vida.

Penso ter analisado com inteira objectividade os fundam entos em que se baseiam as pretensões da União Indiana. Espero agora examinar com a mesma objectivi­ dade, nos seus desenvolvim entos efectivos, o método da «não violência» aplicado à consecução dos fin s que a União se propõe. Gostaria de poder determ inar a essên­ cia ou conteúdo daquele conceito estranho e co n fro n tá -lo com os deveres jurídicos que à União incumbem com o membro da sociedade internacional. 0 pacifismo, a neutralidade e a «não violência» pretende a União Indiana que definam internacionalm ente a sua orientação externa. A União tem a consciência de haver conquistado no mundo com o pacifism o uma fama útil: ela é o seu bordão, o seu arrimo, a fonte das suas m últiplas intervenções nos negócios alheios e do prestígio dos seus mais altos dirigentes. É-lhe essencial não destruir esse mito, mas também é necessário que esse mito a não estorve nas suas ambições, para o que, fazendo apelo ao fundo da raça e aos ensinamentos de alguns doutrinadores, criou, também para uso externo, o mito da «não violência». Não podemos duvidar de que o método nos é aplicado com toda a sua pureza, visto que, segundo declaração do P rim eiro -M in istro do Estado ou Província de Bombaim, a política em relação a Goa representa um bom teste - é o caso típico, o padrão, a dem onstração cabal dos métodos especiais indianos na condução dos negócios internacionais (declaração ao correspondente de Christian Science M o n ito r de 23 de Julho de 1954). Factos. Em 21 de Julho, bandos constituídos por cidadãos da União Indiana, par­ tidos desse Estado, m uitos com armas de guerra, e enquadrados por forças regula­ res da polícia e parece que das tropas de reserva da União, sem ifardados ou em traje civil, assaltaram o enclave de Dadrá, dominando, depois de alguma luta, de que resultaram m ortos e feridos, a pequena força policial de que ali se dispunha. Dias depois o mesmo processo foi empregado, com forças mais numerosas, noutro enclave — o de Nagar Aveli — em que a resistência local pôde ser prolongada por bastantes dias, sendo os agentes da nossa adm inistração aprisionados na fronteira, quando parlam entavam com as autoridades indianas. Para estas operações, a União Indiana preparou prèviam ente as condições de êxito, não perm itindo do bastante tem po antes o reforço das pequenas guarnições

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 locais e cercando Damão, de onde poderia ser enviado esse reforço, com tão num e­ rosos efectivos que temos de considera los desproporcionados à simples vigilância da fronteira. Esses elementos, sucessivamente reforçados, mantêm ainda o cerco, o que significa garantir a União com forças suas a situação criada nos territórios por­ tugueses, pois que sistematicamente recusa a Portugal a passagem para que agen­ tes regulares restabeleçam a ordem. Não se sabe precisamente quem é ou quem representa nos enclaves a a utori­ dade; sabe-se, no entanto, que para a União são encaminhados os dinheiros públi­ cos percebidos e altos funcionários seus vigiam e se arrogam a chefia de serviços que, aliás, não funcionam. De facto não há ordem, nem justiça, nem autoridade geralmente obedecida: há o caos na administração; há a insegurança pública, o regime de terror, a miséria na vida privada. Este é o resumo dos factos, tal como os posso extractar dos relatórios oficiais e das informações colhidas. Não podemos duvidar da sua exactidão substancial, desde que se encontram em território português alguns dos que intervieram, resistindo, nos actos de que resultou o esbulho da soberania portuguesa. Evidentemente que farei as correcções que forem devidas, desde que uma observação directa possa ser :eita por qualquer dos métodos oportunamente sugeridos pelo Governo português. Na verdade, em face da situação criada, o Governo solicitou da União: -

que fosse permitida a passagem de forças portuguesas para restabelecer a ordem nos territórios: recusado; - que fosse autorizada a passagem de delegados desarmados das autoridades de Damão, para ao menos investigarem o que se estava passando e poderem infor­ mar das necessidades das populações: recusado; - que fosse admitida a observação dos factos de violação ocorridos nos enclaves e territórios limítrofes por observadores internacionais. Aceites em princípio conversações para negociar a ida de observadores internacionais que verificas­ sem toda a situação no Estado português da índia, enquadramento especioso da proposta portuguesa nas teias de aranha de negociações indefinidas no objecto e ilimitadas no tempo: pràticamente recusado; - que fosse, ao menos, permitida a ida de observadores internacionais e sco lh i­ dos pelo Governo português para examinarem a situação em Dadrá e Nagar Aveli: recusado. Não analiso as alegações em que se basearam as recusas. Estas são apenas filh a s da obstinação e da presunção da força que, cansada de apresentar razões inválidas, desiste mesmo, em certo momento, de se justificar. Nós compreendemos aliás muito bem por que têm de ser mantidos sob rigoroso sequestro, e longe de vistas importunas, os referidos territórios, cujos habitantes anseiam por que se encontre solução para libertá-los da miserável situação em que se encontram. Até aqui o que se refere aos enclaves. No que respeita às relações entre a União Indiana e Goa, Damão e Diu, territórios contíguos à União, mas servidos pelo mar, 816

XV. O Caso d e Goa

os esforços de integração pelo processo da «não violência», têm -se desenvolvido pelos meios seguintes: -

bloqueio com a prática proibição do com ércio entre a União e os territórios por­ tugueses;

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apoio oficial às decisões impostas pelos extrem istas às organizações sindicais dos portos da União, para tentarem alargar o bloqueio em relação a terceiros países, recusando serviços aos navios que demandem Goa; recusa de autorização para o trânsito das pessoas entre os territórios encrava­ dos e os restantes territórios portugueses; dificuldades administrativas, roçando

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pela recusa total, à passagem ou trânsito de estrangeiros ou nacionais dos dois países em qualquer sentido; d ificu ltaçã o ou recusa de transferência das economias dos goeses que traba­ lham na União Indiana para as fam ílias residentes em Goa; dem ora abusiva e censura da correspondência proveniente ou em trân sito pela União; actos de abordagem e mesmo de pirataria contra barcos de pesca ou de comér­ cio por barcos dos serviços da União; preparação e alistam ento de grupos, pequenos à falta de gente para serem gran­ des, constituídos por «satiagrais» — m étodo de perturbação da ordem pública m uito usado na União Indiana e aí severamente reprimido, e que entre nós nem mesmo podia lograr compreensão para a parte do sacrifício pessoal que a oferta do «satiagra» envolve, desde que se verifica não se tratar de rasgos espontâneos e actos gratuitos, mas promovidos, encomendados e pagos a tanto por «mártir».

0 Primeiro M inistro da União declarou em certo momento não ser permitida aos não goeses a saída do território para m anifestações daquele género. Que a decisão foi alguma vez cumprida deduz-se da intervenção que tiveram nalguns ajuntam en­ tos da fronteira comum as autoridades da União Indiana. Que a ordem não é abso­ luta ou rigorosa depreende-se do facto de boa parte dos indivíduos presos em Goa não terem a nacionalidade portuguesa.

a

Temos assim duas ordens de situações e portanto duas ordens de problem as - os derivados da existência de territórios encravados na União e as suas relações com o Estado soberano, e os problemas e relações de simples vizinhança entre a União Indiana e os territórios contíguos do Estado português da índia. Num e noutro caso a política seguida é confessadam ente a da «não violência». É bastante d ifícil a um cérebro ocidental classificar dessa forma os factos ocor­ ridos nos enclaves, quando se verificou a intervenção de forças armadas da União Indiana, com andadas pelos seus chefes; o fornecim ento de armas de guerra e de outros meios de invasão; actos agressivos, com mortos, feridos e prisioneiros, e o impedimento, pela força, ostensivam ente postada na fronteira, do exercício do poder legítim o. E quanto a todos os outros actos que se destinam a estiolar pela 817

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 fome ou a perder por eventual revolta os habitantes dos territórios vizinhos, deduz-se que a «não violência» se concilia com o desrespeito das leis e dos tratados, a violação das imposições do direito natural, o desconhecimento dos simples deve­ res de humanidade, a inteira ausência de cooperação entre os povos, e abrange, por outro lado, todo o comportamento hostil, sem limitações jurídicas ou morais, co n ­ tra as pessoas, as famílias, os povos e direitos de umas e de outros. Numa palavra, a «não violência» compreende tudo ou é susceptível de tudo compreender, menos a guerra, declarada pelos governos e conduzida pelos exércitos. Suponho não exage­ rar, e em matéria tão delicada, dadas as conclusões a que chego, gostaria de ver com exactidão. Ponho agora o problema: tem a União Indiana o direito de se com portar com o comporta? Pode legítimamente prosseguir uma política que, embora chamada de «não violência», se define como deixei dito? A minha resposta é negativa e desen­ volve-se como segue: desde que a União Indiana pretende constituir um elemento da sociedade internacional e designadamente faz parte das Nações Unidas, cujos princípios se obrigou a aplicar e defender, já não são as suas aliás abstrusas noções que ela pode impor arbitrariamente ao mundo, mas os conceitos e as normas de convivência dessa sociedade que é obrigada a seguir e a respeitar. Parece julgar-se na União Indiana que não há enclaves na terra mais que Dadrá e Nagar Aveli. A existência de enclaves de que há numerosos exemplos — a própria União Indiana possuía um nos territórios de Haiderabade antes de anexar esse Estado pela força - não é mais que a aplicação ou extensão do caso dos Estados interiores, tão legitimamente independentes como os outros e tão reconhecida­ mente soberanos como os Estados com ligação directa para o mar livre. Mesmo que as situações não tenham sido expressamente definidas e asseguradas por tra ­ tados, o direito internacional garante plenamente a esses Estados, como inerente ao direito de viver, o direito de se governarem, de trabalharem, de comerciarem com o exterior. Nunca ocorreu que, em aplicação de um regime de paz, a Suíça, o Luxem­ burgo, a Checoslováquia possam ser privados da possibilidade de manter relações comerciais através dos países limítrofes, receber desses e dos outros mercadorias, energia, pessoas que desejam deslocar-se; nem nunca alguém ousou defender a tese de que, para acabar com a categoria de Estados interiores, se deve reconhecer às potências limítrofes anexá-los pela força ou pela «pacífica não violência» da União Indiana. Não se nega que a existência de enclaves pode constituir fonte de algumas d ifi­ culdades para uma ou outra administração: as situações são, porém, análogas e os problemas que suscitam da mesma índole dos dos Estados interiores. É tal a força do princípio do direito natural - a possibilidade de ser exercido um direito que se reconhece - que na prática nunca se houveram por possíveis mais que duas a titu ­ des - ou negar a soberania ou reconhecê-la com o reconhecimento im plícito do direito de passagem aos agentes da autoridade legítima, para o fim de se assegura­ rem as condições de vida legal e a satisfação das necessidades das populações. Só a União Indiana tenta abrir um terceiro caminho, e por isso se encontra na posição

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XV O Caso d e Goa

indefensável e única de nem poder anexar os enclaves para não com provar um acto de guerra contra a soberania que ela própria reconhece, nem deixá-los viver sob a única soberania legítima e possível - a soberania portuguesa. A União não recebeu só territórios, autoridade, interesses, direitos; herdou também as situações jurídicas e de facto, preexistentes à independência, e que a Inglaterra reconhecia: não podia alterar unilateralm ente e a quem lhe sucedeu cumpre fielm ente respeitar. As relações de boa vizinhança consagradas no preâmbulo da Carta das Nações Unidas impõem igualmente à União Indiana, em face de Goa, não só a abstenção dos actos inamigáveis e hostis que ilegitimamente inclui na sua política de «não v io ­ lência», mas a prática de actos positivos de convivência e colaboração. Eu não podia exprim ir-m e melhor a este respeito do que o próprio Sr. Nehru quando afir­ mou recentemente no seu discurso de Pequim: «a paz não é só a ausência da guerra; a paz é positiva e só existe verdadeiramente numa atmosfera de cooperação entre as nações». Para não se poder afirm ar que o Primeiro M inistro só pensa com correcção nos dom ínios do universal, esperemos que rectifique no pensamento e na acção os seus conceitos de não violência, de paz, de boa vizinhança e cooperação fraterna, conceitos que tem m obilizado contra Portugal, mas repugnam à consciên­ cia do mundo civilizado a que deseja pertencer. I I. GOA E O MUNDO

Através das ameaças e actos agressivos de que tem sido objecto e vítim a, Goa atraiu durante os últim os meses a atenção e despertou por toda a parte um m ovi­ mento de ansiedade. E, apesar de serem pràtieamente ilim itados os meios de pro­ paganda de que a União dispõe e intensa a sua actividade, ela não pôde evitar que uma consciência geral se formasse, condenatoria dos seus métodos de pressão e criminosas agressões: o governo da União Indiana comprometeu e desacreditou connosco o seu pacifism o e a sua política de «não violência». Em quase todos os países onde há possibilidades de uma expressão pública, o caso de Goa foi acom panhado e discutido: nos países comunistas, m uito com preensivelmente, com inteiro apoio às pretensões da União Indiana; em Estados recém -constituídos, presos ainda de preocupações e receios, com a circunspecção e prudência que lhes impõem aparentes analogias, a viveza das suas próprias pre­ tensões, a memória de lutas recentes; mas nas outras nações que usufruem estabi­ lidade de vida política e reconhecem o valor do direito nas relações internacionais, Portugal pôde contar com simpatia para as queixas e apoio para a sua causa. A s atitudes ou declarações que em Nova Deli pretenderam dim inuir o número e valor das intervenções e diligências diplom áticas efectuadas, com o o âm bito e sig n ifica ­ ção de garantias e tratados, não obtiveram eco na opinião inform ada. Evidentemente o Governo não podia ter a pretensão - nem era esse o in tu ito do nosso M inistério dos Negócios Estrangeiros - de obter de todos os outros governos que tomassem partido sobre o mérito da causa. Mas, no cansaço da desordem e das 819

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 violações, pela força, dos direitos alheios, a generalidade dos Estados pôde form u ­ lar um voto de que a União Indiana se sustivesse no caminho da agressão, perm i­ tisse a verificação dos factos por olhos imparciais e procurasse dirimir quaisquer diferendos por meios pacíficos. Esta a posição dos governos e nenhuma outra mais precisa ou mais avançada se poderia ambicionar. Alguns, porém, foram mais além. Se os não cito, é que receio ser injusto na apreciação ou incorrecto no esqueci­ mento, referindo-me especialmente a alguns e ainda que me limitasse aos que nos estão mais ligados pela contiguidade ou vizinhança na Península ou em África, pelos laços de parentesco e família ou relações políticas especiais. Passou e sofreu a França dificuldades semelhantes e os acontecimentos segui­ ram quanto a ela orientações diversas; não podemos, porém, esquecer a elegância com que, durante negociações difíceis e designadamente no seu fecho, o governo francês se empenhou em vincar a diferença de condições que não lhe permitiam resistir à União nem a esta tirar do acordo efectuado argumento contra nós. Fora das chancelarias e esferas governamentais, na imprensa e entre os homens de estudo, a questão de Goa foi geralmente compreendida e acompanhada na sua relevância jurídica, valor histórico e simbólica representação do esforço do O ci­ dente em alargar as fronteiras do mundo para benefício comum da humanidade. Muitos se manifestaram contra as cedências sucessivas e as capitulações ante forças que estão longe de ter demonstrado a sua superioridade em qualquer campo, e sustentam que, se a Portugal se deve ter erguido em Goa o glorioso padrão de uma das maiores viragens da história, é falho de sentido e de justiça que se lho arranque das mãos. Mas esta razão é uma razão política sem presa no espírito dos dirigentes da União Indiana, pois precisamente pensam que está no facto a origem das grandes infelicidades da índia na época moderna. Não sig n i­ fica outra coisa a campanha em que se acusa o Estado português da índia de ser um anacronismo histórico e uma expressão de colonialismo. Tais acusações não têm fundamento no caso de Goa, mas o mundo mostra-se extraordinariam ente sensível a essas grandes frases, e nós vemo-nos obrigados a parar uns m om entos para lhes dar atenção. Eu confesso grande medo aos ideólogos que, afeitos às abstracções e concep­ ções geométricas, pretendem refazer séculos de história nas suas mesas de traba­ lho. 0 que é um anacronismo histórico? A vida dos povos é cheia de estruturações do passado e delicados germes do futuro, que pouco a pouco se desenvolvem, sem haver regra ou momento preciso que fixe as mutações na carta política do mundo. Por isso esta se apresenta em cada momento recheada de ilogismos e anacronismos que as vicissitudes históricas criaram e a prudência aconselha a respeitar. Para começar por nós próprios: Portugal separou-se dos outros Estados da Penín­ sula e tem noutros continentes elementos estruturais da Nação: um ilogismo quanto a alegados imperativos da geografia. A Suíça formou-se de alemães, franceses e ita ­ lianos, que conservam os idiomas originais: um ilogismo quanto à língua. Os M agia­ res ocupam há mil anos a Flungria, no seio de uma Europa linguística e racialmente 820

XV. O Caso d e Goa

diferente: um ilogismo quanto à raça. E assim sucessiva mente. Em que é que a exis­ tência de um povo de cultura ocidental no Indostão e fazendo parte de uma Nação europeia pode repugnar mais à inteligência que os outros ilogismos citados? Não. A alegação de ilogismo ou anacronismo histórico não tem sentido senão quando se lhe empresta o significado pejorativo de colonialismo. Existe então este no Estado Português da índia? Eu já demonstrei o contrário na minha exposição de 12 de Abril e nenhum dos factos em que me baseei pode ser contestado. 0 colonialism o exige essencialmente o desnível das raças e das culturas, um objectivo de exploração económica servido pela dominação política, a qual geral­ mente se exprime pela diferenciação entre o cidadão e o súbdito. Não há colonia­ lismo onde nenhum benefício estratégico, económ ico ou financeiro se tira e o orça­ mento m etropolitano suporta ainda pesado encargo com a manutenção dos serviços. Não é possível conceber estatuto ou condição de colónia quando é semelhante o nível de vida, idêntica a cultura, indiferenciado o direito público, igual a posição dos indivíduos perante as instituições e as leis. Não pode haver colonialism o onde o povo faz parte integrante da Nação, onde os cidadãos colaboram activamente na form a­ ção do Estado, em termos de igualdade com todos os mais, onde os indivíduos exer­ cem funções públicas e se movem e trabalham no conjunto dos territórios. E tudo isto não de agora, estabelecido ou legislado à pressa, mas cim entado pelos séculos, quase podemos dizer desde sempre. 0 caso é talvez extraordinário e surpreende pela sua peculiaridade; mas se o mundo está sendo perturbado na justa visão das coisas por afirm ações superficiais e destituídas de exactidão, nós temos de continuar a insistir em que uma consideração mais objectiva e atenta seja dada, fora da poeira das discussões, ao caso da índia Portuguesa. III. G O A E O C R IS T IA N IS M O N A Á S I A 0 Primeiro M inistro da União Indiana, num seu discurso de 26 de Agosto no Con­ selho de Estado, acusou o Governo Português de tentar envolver a Igreja Católica no problema político de Goa, e a mim pessoalmente de estar mal-servindo o catolicismo na índia, porquanto, por aquele modo, o associava ao colonialismo. 0 Pândita Nehru não está bem informado dos factos e daí talvez a errada conclusão a que chegou. Tenho escrupulosam ente evitado em toda a minha vida pública m isturar a reli­ gião com a política ou, o que é o mesmo, fazer política com a religião. Isso não me impede a convicção de que há efectivam ente problemas de ordem religiosa na índia; estes nascem, porém, dos factos e do condicionalism o em que se desenrolam na União Indiana, não das nossas atitudes. A acusação acima obriga-m e por isso a algumas explicações. É em face de um perigo não imaginário, mas real e profundam ente sentido, que o Governo da União se tem visto obrigado, com escassos resultados aliás, a sosse­ gar a consciência católica de Goa: ora lhe promete com solenidade as mesmas liber­ dades que estão consignadas na Constituição; ora exalta as mais em inentes d ig n i821

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 dades do clero católico por interporem no caso a sua confiante autoridade e declararem a sua satisfação com o regime que usufruem; ora acredita e ostenta em altas missões oficiais no estrangeiro personalidades categorizadas do clero e da Acção Católica indiana. Se uns e outros, como cidadãos, servem a União, fazem o que devem; se, como católicos, agem contra a presença de Portugal em Goa fazem o que não lhes é lícito e de que em boa consciência deviam abster-se. Exactamente porque Portugal não faz assentar na religião a legitimidade da sua posição política em Goa, apesar de certa bula papal que traz intrigado o Pândita Nehru, tem o direito de lamentar a atitude assumida contra os seus legítimos direitos, em restri­ tos sectores católicos. E por isso os denuncia. A generalidade dos depoimentos que me foi dado ler e em que o conflito com a União Indiana foi visto à luz de conveniências religiosas e contra Portugal, nascem, além do referido, de duas fontes: dos católicos progressistas e de certos meios da Pro­ paganda Fide. Sabe-se o que são os primeiros: católicos que se deram è missão de baptizar o comunismo. Assim como Roma convertera os Bárbaros e moldara espiri­ tualmente as novas sociedades cristãs, também a Igreja deverá agora abrir os braços e conciliar-se com o comunismo, metendo-o no seu seio ou a si no seio dele, para criar a sociedade futura: a verdade política e social adviria do comunismo; a verdade relijiosa defini-la-ia a Igreja, dentro dos limites consentidos por aquele. Não discuto: noto para dizer que não estranho a atitude hostil para com Portugal. Já o caso da Propaganda Fide - e considero as pessoas que nela trabalham e nos seus colégios se formam e nos seus métodos se educam - merece mais largo comentário. Trezentos anos de incidentes e irritantes discussões leva a Propaganda a mostrar a sua má vontade a Portugal e ao Padroado Português do Oriente, privilégio outor­ gado pela mesma Igreja em cujo seio e para cujo desenvolvimento a Propaganda trabalha: mais realista que o rei, mais papista que o papa. A luta tem sido sobre­ tudo desagradável, e devemos confessar que a evolução das circunstâncias até agora ajudou a dar às pretensões daquela quase completa satisfação: o Padroado é uma sombra do que fora e nos territórios onde existiu viceja sem a nossa concor­ rência a árvore da Propaganda. Examinadas as coisas no fundo, bem no fundo delas próprias, vemos nesta luta tenaz, além daquela triste parte humana com que sempre tendemos a macular a obra divina, dois factores: insuficiente conhecimento da acção do Padroado Portu ­ guês a missionar os povos, no que alguma culpa teremos, e uma diferença de crité­ rios, aliás perfeitamente admissível, acerca da orientação da obra missionária no mundo. Eu creio ter notado, quando da exposição missionária de Lisboa e no que acerca dela se escreveu em Roma, uma admiração sincera - embora um pouco tar­ dia - por uma obra cuja pujança e brilho e pureza e desinteresse não escaparam a ninguém: por toda a parte aonde o português chegou, implantou a árvore da cruz e ela aí se radicou e cresceu, e mantém viva e na vida fiel a Roma. Que interesse tivemos? Que lográmos com os dinheiros despendidos, os esforços empregados, as fomes, as misérias, os maus climas, as navegações ousadas, as lutas em terras lo n ­ gínquas, os martírios que sofremos - que lucrámos? Trabalhar na extensão do reino 822

XV 0 Caso d e Goa

de Deus e com ele na elevação dos homens de todas as raças a maior espiritualidade de vida e fraternidade cristã. A Propaganda tem os seus métodos de acção, filh os de certa interpretação dos factos políticos, ou seja, de uma certa concepção política. E nós temos outra. M as a diferença de critérios não legitima uma hostilidade. A Propaganda pode comparar-se a um grande exército, servido por um quartel general, de com ando concentrado e gozando na Igreja de inteira liberdade de acção. A independência em relação aos governos ou a outras autoridades religiosas parece-lhe essencial, em qualquer caso considera-a útil. Por nossa parte, trabalha­ mos no Oriente - com o trabalham os em todas as outras Províncias do Ultram ar enquadradas as missões na divisão tradicional diocesana, o que está mais de acordo com este jeito do português de reproduzir nas terras distantes as instituições, as artes, form as de vida e costumes que deixou na mãe pátria. Que o nosso sistema não possa desenvolver-se e fru tifica r sem um m ínino de relações e colaboração dos governos que exercem a soberania é evidente, ainda, quando, com o no regime por­ tuguês, o Estado não é confessional, não há união com a Igreja, mas apenas sepa­ ração concordada. Tocamos agora, senão o fundo, um dos aspectos mais sérios do problema. Em face dos nacionalismos que irrompem frementes na Ásia e em África contra as soberanias e as posições que a Europa não cessa de abandonar, a Propaganda entende que deve tentar salvar a sua obra, dessolidarizando-se dos Estados, e por outro lado fazendo tanto quanto possível o recrutam ento do clero entre os conver­ tidos locais: independência política e clero indígena são os traços característicos das novas tendências, em reforço, quanto ao primeiro ponto, do que já vinha de trás. Ora bem: este prim eiro pon to pode ser uma necessidade de ocasião, mas não é uma verdade absoluta, nem den tro dos p rin cíp io s re ligioso s nem à fa ce da sociologia e da experiência p olítica. Do prin cípio verdadeiro — a Igreja pre­ cisa de liberdade - está a passar-se irre fle ctid a m e n te para esta outra p ro p o si­ ção - a liberdade basta à Igreja - , que é m anifestam ente falsa, sobretudo quando form ações religiosas concorrentes entram de qualquer modo com o elem ento de coesão social dos povos considerados e sob esse aspecto recebem protecção espe­ cial, directa ou indirecta, do Estado. E este é que é o grande problema da índia no aspecto religioso. Quanto à form ação de clero local, devemos nós arrogar-nos o direito de prio ri­ dade na matéria. No clero de Goa não chegam a uma dezena os sacerdotes do Con­ tinente e Ilhas e andam à roda de 700 os naturais do próprio Estado da índia. Fora do território português, Goa traz em serviço das missões da Propaganda uns 200 sacerdotes. Que ironia dos factos e que lição! Nós ensaiámos há séculos a novidade - em 1530 já havia sacerdotes indianos - e em Goa pode dizer-se que desde há dois séculos o clero é na sua totalidade goês. E não só para Portugal: generosam ente se dispersava e trabalhava também fora do Estado da índia e fora do Padroado, no exercício de uma missão religiosa, que ainda não pôde ser acusada com verdade de apresentar traço de influência política. Por alguma razão a Goa se tem cham ado a 823

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 Roma do Oriente. É-o de facto pelo esplendor da fé católica, pela abundância das vocações, pelo espírito de proselitismo que anima a Igreja naquelas benditas terras. Por serem da índia? Meu Deus, não! Por serem portuguesas. Humanamente e nos tempos próximos, não me parece que se possa confiar muito na expansão do cristianismo no Oriente. Mesmo sem ter em linha de conta que a retirada europeia pode precipitar o continente asiático por com pleto no comunismo - hipótese em que é escusado buscar soluções para uma questão que deixa simplesmente de existir um progresso razoável do cristianismo naquelas paragens não se afigura possível sem a acção missionária estrangeira que na índia começa a ser dificultada pela distinção entre liberdade religiosa e liberdade m issio­ nária. Fermentarão então ideias de Igreja nacional, condenada, na falta de outros apoios, à desagregação última das cristandades e sua submersão no caos religioso local. E Goa não pode ser invocada como exemplo em contrário, senão quando se compreenda que a Igreja é ali não a única, mas uma das várias instituições que for­ mam a cultura e o espírito ocidental do goês. Concluo estarmos dentro da melhor doutrina e dos interesses da Igreja; concluo que a manutenção de Goa portuguesa é ponto de apoio indispensável á conserva­ rão e difusão do cristianismo na índia. Mas nós não invocamos uma razão religiosa para nela assentar os direitos políticos de Portugal: deixamos essa posição aos que nos hostilizam. Assim, os católicos partidários da União Indiana entendem que, se de Goa desaparecer a soberania portuguesa, com ela desaparecerá a desconfiança em relação aos sacerdotes e missionários estrangeiros, que o não seriam já, sendo goeses. E deste modo, sem a última ligação com um Estado europeu, não só o cristianismo em toda a índia daria grande surto como a mesma Goa consolidaria para sempre a posição de Igreja-mãe das cristandades orientais, crescendo em influência e prestígio. Não fugi a dar todo o realce ao argumento, porque é visível a todos que ele se move fora das realidades conhecidas, pretende que os nossos direitos sejam sacrifica­ dos à falta de condições de liberdade na União Indiana, e é por isso só a demonstra­ ção clara de como do outro lado se procura, contra nós, fazer política com a religião. IV GOA E NÓS PRÓPRIOS A política da União Indiana para com o Estado português da índia criou-nos, além dos de defesa, certo número de problemas, especialmente de abastecim ento e de comunicações, a que procuramos dar remédio tão completo quanto possível. Estou convencido de que as dificuldades presentes podem mesmo ser estím ulo para o revigoramento da economia goesa e para o estreitamento das relações comerciais e marítimas com a metrópole, as províncias ultramarinas e ainda outros países que se substituirão gradualmente à União Indiana. Tanto a a g ricu l824

XV. 0 C aso d e G oa

tura com o a m ineração e a pequena indústria, desenvolvidas e consolidadas, e com suas repercussões na m aior intensidade dos transportes e no com ércio, deve­ rão absorver nos território s do pequeno Estado m aior número de goeses, em nível de vida satisfatório. 0 Plano de Fomento que não fora elaborado para as circunstâncias actuais, mas se casa adm iravelm ente com as necessidades futuras daquelas populações, en con ­ tra-se em plena execução. Das obras hidráulicas para rega, do abastecim ento de águas, dos estudos geológicos, das estradas e pontes previstas, dos m elhoram en­ tos a in trodu zir no porto e no cam inho de ferro de M orm ugão não só hão-de resultar maiores produções e facilidades de vida com o decidido increm ento de outras fontes de riqueza local. Será pena que a União Indiana pretenda com por­ tar-se com o se ignorasse os meios de com unicação que temos ao seu dispor, mas, mesmo sem o tráfego da União, se o mercado internacional continuar a absorver os m inérios goeses, especialm ente os de ferro, cremos que haverá m ovim ento s u fi­ ciente para a sua manutenção. Tudo isto exigiu e continua a exigir atenções e esforços no sentido de alterar os rumos do comércio, substituir as clientelas, m odificar as rotas da navegação, resol­ ver problemas de armazenamento e conservação de produtos alimentares. E quando concluirm os a construção do aeródromo de Goa - o tal que se destina, no pensar da imaginativa imprensa da União, a base americana de guerra — e conseguirm os pequenas pistas em Damão e Diu, teremos a possibilidade de ligar satisfatoriam ente o Estado da índia com o mundo, cessando parte do seu forçado isolamento, que no actual m om ento só podemos quebrar e estamos quebrando por meio das nossas carreiras m arítim as ou de barcos estrangeiros em demanda de Morm ugão. Os pro­ blemas que defrontam os são semelhantes aos que suscitaria um horrível cataclism o que tivesse subvertido a União Indiana. Naqueles vastos mares, Goa, Damão e Diu permanecem com o três pequenas ilhas que é preciso servir e fazer viver. Das dificuldades levantadas só duas estão fora do nosso poder, porque in teiramente dom inadas pela União - o trânsito dos estrangeiros e dos goeses entre os territórios portugueses e os da União e as remessas dos emigrantes — fru to do seu trabalho, gotas da sua econom ia - para as fam ílias que vivem em Goa. Isto pode andar à volta de umas escassas dezenas de milhares de contos por ano, que nas co n ­ tas internacionais da União não representam nada, e não é mesmo difícil com pen­ sar na balança do Estado da índia, mas que na pequena Goa representam a m edia­ nia de numerosas fam ílias. Situação bem diversa usufruem os súbditos da União que vivem nos territórios portugueses, designadamente na Á frica Oriental, onde têm conseguido avultados lucros e disposto da liberdade de transferências e câm ­ bios estáveis, em benefício da balança de pagamentos indiana.

Todos estes problemas, ainda que difíceis e altam ente onerosos vão tendo solu ­ ção dentro, pode dizer-se, do quadro da adm inistração corrente, fortem ente apoiada 825

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 da metrópole. Mas não haverá entre nós e Goa problemas de ordem política que estejam na base da crise entre Portugal e a União Indiana? Quando intitulei o pre­ sente capítulo Goo e nòs próprios, o que tinha em mente era sobretudo esses pro­ blemas políticos e entre eles o que em Portugal se pensa do conflito com a União Indiana. Referir-me-ei em separado a um e aos outros. As afrontas da União Indiana à soberania e integridade dos territórios que cons­ tituem o Estado português da índia foram sentidas por Portugal inteiro como fu n ­ dos golpes na própria carne da Nação. E sob este aspecto não se notaram grada­ ções de sentimentos ou diferenças de reacção, aqui, no Ultramar, nos grupos de portugueses em país estrangeiro, na própria Goa. Sobre a forma, porém, de condu­ zir a questão e de enfrentar os acontecimentos manifestaram-se algumas opiniões divergentes das do Governo, opiniões que convirá registar. As soluções preconizadas para o caso de Goa, se me é permitido reduzir a tipos a variedade das sugestões, foram: -

negociações com a União Indiana;

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resistência militar com empenhamento de todas as nossas possibilidades e as de aliados que conseguíssemos; total independência de Goa dentro de uma federação ou co n fe d e ra çã o portuguesa.

-

0 primeiro caminho, sem ressalva da soberania portuguesa, apareceu definido apenas pelos que a si próprios se intitulam «partido comunista português» e por alguns democratas que os seguem e apoiam. Ninguém mais do que eu está conven­ cido da possibilidade e até das facilidades que se encontrariam nas negociações com a União. Simplesmente o objecto da negociação é nos termos da «aide-mémoire» de Nova Deli de 27 de Fevereiro de 1950, e como se deduz dos textos indianos pos­ teriores, o estudo das condições de integração dos territórios portugueses na União Indiana. Podem discutir-se minúcias de tempo, formalidades de transmissão de poderes, eventuais indemnizações, garantias para os negócios, condições do culto católico, custeio por Portugal do ensino da sua língua, cuidados com a cultura por­ tuguesa, se é que dali se não pretende varrer a sua memória inteiramente - tudo isto se pode discutir. Mas, quando se aceita a negociação, tal como a União Indiana a encara, há uma coisa que está já aceite e assente, e essa é a transmissão da sobe­ rania e a entrega das populações à generosidade da União. Damos ou vendemos pouco importa isso à gravidade do caso - os portugueses da índia, as terras de Afonso de Albuquerque e da epopeia do Oriente, os santos da Igreja, os m ártires da Pátria. Porquanto? Porquanto? Em extremo oposto se colocaram outros que, julgando não serem suficientes as garantias e apoios de que a Nação Portuguesa pode actualmente dispor, entendem se deviam procurar alianças especiais que permitissem organizar uma resistência eficaz aos ataques militares da União. A ideia tem tanto de ousada com o de gene­ rosa: o pior é que o conflito não pode ser militarmente resolvido. A pequenez dos 826

XV O C aso d e G oa

territórios e a fraqueza dos recursos locais, a desproporção das forças, a extensão das linhas de comunicação, a distância das bases ou pontos de apoio, tornariam urna guerra na índia, para nós sem finalidade útil, para a União sem glória - e o que é pior sem termo, quero dizer, sem paz, por não ser concebível Governo português que pudesse algum dia reconhecer a expoliação. A terceira atitude pode apresentar-se com o segue: se dermos plena independên­ cia à índia, dentro de um Estado federativo português, a União Indiana encon­ trar-se-á em face de um Estado soberano, contra o qual não pode ter objecções e que seguramente respeitará. Esse Estado gozaria das garantias internacionais de qualquer outro Estado e, para a segurança da sua independência, se podiam conse­ guir outros apoios ou garantias particulares, incluindo o da própria União. 0 dissí­ dio entre Portugal e a União Indiana resolver-se-ia assim através de um Estado que, embora dentro da federação ou confederação portuguesa, já não era Portugal. Ao mesmo tem po se satisfariam os goeses, cujo descontentam ento pela doutrina do A cto Colonial de 30 se deve considerar como geratriz inicial da crise. Há nesta maneira de encarar a questão, se eu pude ser fiel ao traduzir o pensa­ mento alheio, sim ultáneam ente uma certa dose de ingenuidade e alguns erros de facto. A construção política é inspirada nos moldes dos dom ínios britânicos (do tempo em que estes não se consideravam nações independentes), e em qualquer caso contrária ao pensamento da nossa Constituição no que respeita à estrutura da Nação e do Estado português: por isso mesmo se previa a sua alteração. 0 A cto Colonial foi no dom ínio ultram arino a reacção do actual regime contra uma situação adm inistrativa e uma orientação política que não poderiam perdurar sem graves riscos para o interesse nacional. A sua integração na Constituição Polí­ tica está hoje feita com as alterações, em pontos secundários, que a experiência e as circunstâncias aconselharam, mas, se possível, ainda com maior rigor e precisão do pensamento fundam ental que o inspirava. 0 estado em que se encontrava o Ultram ar Português à data da Revolução de 1926, sem menosprezo dos esforços ali desenvolvidos e do valor pessoal daqueles a cujo patriotism o esteve confiado, era o reflexo dos mesmos males que sofríam os aqui: - lá, porém, com possíveis consequências de m uito maior gravidade. Os remé­ dios haviam de inspirar-se nos mesmos princípios, possivelmente mesmo em m éto­ dos idênticos aos daqui. E assim é que daquele diploma se deduzem três grandes linhas de orientação: maior concentração de poderes, quer dos governos em relação aos organismos locais, quer do governo central em relação aos mesmos governos ultramarinos; forte reivindicação de ordem nacional em relação a interesses que no Ultram ar se incrustaram com laivos de dependências políticas inconvenientes; um pensamento de coordenação e de integração das partes em todo mais coeso, que desse a representação exacta da que se queria fosse, na sua unidade pluriform e, a Nação Portuguesa. E tudo evidentem ente assente sobre aquela ordem fin an ceira e regularidade adm inistrativa sem a qual as queixas teriam sempre razão e os males não teriam nunca remédio. A própria ideia de Império que escandalizou alguns e 827

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 mais tarde se sacrificou, trouxe aos espíritos uma noção de unidade e um senti­ mento optimista de grandeza, indispensáveis para estimular energias e arredar-nos da mornidão e tacanhez que ameaçavam continuar a estiolar pensamentos, planos e esforços. Não se pode negar que a obra ultramarina dos últimos vinte e cin co anos decorre límpida e forte desses princípios e representa a todos os olhos um ê xito como recuperação nacional, progresso económico, força e engrandecim ento do todo português. Que na formulação ou na aplicação prática das regras que deri­ vam daquelas grandes linhas de orientação se vão administração e política adap­ tando às novas circunstâncias, necessidades, possibilidades de pessoas e meios materiais, não há que discutir, e tudo o que é razoável se pode fazer sem a tin gir a essência do que se pretende alcançar quanto à progressiva integração das p ro­ víncias ultramarinas no todo nacional. Aconteceu, porém, que algumas expressões mais vivas do Acto Colonial im pres­ sionaram aquele escol político da índia, receoso de retrocesso em tudo quanto através dos tempos tinha sido reconhecido - mais que concedido - à sua cultura e capacidade para intervir na administração pública e na direcção dos negócios do Estado. Mas as queixas que nos chegaram - aliás viris e desassombradas — não permitem equívocos ou incompreensões: «está aí um problema - cito as próprias palavras - que só a nós e a Portugal diz respeito.» Era a posição exacta que advi­ nha de um portuguesismo incondicional. Quando surgiu a crise derivada da independência da União Indiana - primeiro da sua constituição em domínio e, depois, do estabelecimento da república - nem todos os mal-entendidos tinham desaparecido e certas consciências m antinham -se entre retraídas, receosas e magoadas. Não se pode negar que aquele facto enorme da retirada dos Ingleses e da entrega dos destinos da índia aos respectivos povos trouxe, mesmo à pequena Goa, uma ameaça de crise moral. As inteligências dispersaram-se então à busca de fó r­ mulas para a própria administração e governo do Estado Português da índia, fó r­ mulas que oscilaram entre a linha tradicional, actualizada e fortalecida, e uma organização de domínio à moda britânica. 0 bom senso da generalidade viu, porém, que esta última solução estava fora não só das nossas melhores tradições, mas das possibilidades materiais, dadas a pequenez, fraqueza e dispersão dos ter­ ritórios. Não há dúvida, porém, de que um ou outro que mais tarde viria a revelar-se contra Goa e contra Portugal viu aí a via de uma integração à distância, fácil e fatal, na União, apenas realizada em três tempos e sem dor, como algumas ope­ rações cirúrgicas. Volto à frase que citei como expressiva do mais estreme pensamento goês: «está aí um problema que só a nós e a Portugal diz respeito», e não pode servir de base de solução ao conflito com terceiros. Que o novo Estatuto que neste m om ento se apronta permita em breve intensificar e desenvolver a colaboração de todos os valores de Goa, não é outro o desejo de todos os portugueses; mas a questão não terá dado um passo no que respeita à União Indiana, porque no fundo da sua hos828

XV O C aso d e G oa

tilidade não estão os nossos problemas: estão exclusivamente os déla, do seu am or-próprio e das suas ambições. V. G O A E O FUTU RO

Quereria term inar com urna paiavra sobre a evolução provável deste in feliz caso de Goa. A reflexão mais concentrada, a m editação mais profunda sobre os dados do problema não me perm itiram , porém, chegar a uma conclusão, mesmo m edianam ente segura. E, no entanto, tínham os elementos para concluir, se as c o i­ sas devessem passar-se com o o direito impõe, a razão aconselha e as normas de convivência internacional exigem. Pois de que se trata, afinal? Da pretensão de um país a apoderar-se de territórios pertencentes a outro. Podia esse país ter a convicção de que as respectivas populações estavam ansiosas por ser «libertadas» de um ju go estranho, e, cansadas de ser colônia portuguesa, desejavam integrar-se na União. Está visto que nem Goa é uma colónia, nem as populações querem ser «libertadas», nem lucrariam alguma coisa, económ ica, política, social ou m oral­ mente, em passar a fazer parte da União Indiana. Por outro lado, a União não tira ­ ria vantagens da anexação - nem aum entaria sensivelmente territórios ou rique­ zas, nem arredaria perigos que de facto não existem, nem adquiriria seguranças que por outra form a não pudesse mais concreta e útilm ente conseguir. Trata-se, portanto, de um equívoco: não de uma aspiração razoável ou necessidade im pe­ riosa da União, mas de am bições pessoais ou caprichos partidários, em que o Pri­ m e iro -M in istro se deixou envolver. A União foi levada a atitudes e à prática de actos que não podem ser coon estados pelos fins a atingir. Praticou agressões, abusou da força, desconheceu o direito. 0 caso é especialmente grave para uma independência nascente, a que todos os apoios e auxílios da sociedade internacional são não só preciosos, mas indispensá­ veis. A União não pode continuar a desafiar indefinidam ente a consciência do mundo, mesmo que as vítim as dos seus actos de agressão sejam, na aparência ou realmente, pequenas potências que a sua grandeza esmague. Nestas condições, o que está naturalmente indicado é rever a posição, corrigir a política, desistir do intento. Nós tem os o direito de fazer passar para os enclaves for­ ças que ali restabeleçam a ordem e a autoridade legítima; temos direito ao respeito da soberania portuguesa; e temos direito à coexistência pacífica, que não pode ser só entre a índia e a China, mas também entre a índia e os territórios portugueses do Indostão, com o norma universal que é ou pretende ser. M uitos problemas há que precisam de ser estudados e resolvidos no interesse comum das duas Nações. Pois a conclusão razoável a que chega toda a inteligência esclarecida e toda a consciência recta é, depois de desistir, negociar acerca desses problemas. Não sendo este o caminho, que outros se oferecem à União Indiana? 0 P ri­ m eiro-M inistro, no seu discurso de 26 de Agosto, teve a consciência de estarem a cerrar-se-lhe os horizontes, pois só via a alternativa de negociar ou fazer a guerra. 829

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 E como essa sua negociação é o acordo sobre a transferência da soberania, inaceitá­ vel para nós, não lhe ficaria efectivamente aberto senão o caminho da guerra. A guerra: eis o termo duro, terrível, mas profundamente exacto. Já disse o que pen­ sava acerca dessa saída, e não o repito nem desejo esclarecê-lo agora mais. No entanto, a União receia-a: ela compromete em cheio a sua doutrina política e sai fora dos quadros morais da consciência mundial. Não querendo desistir e não lhe convindo fazer uma guerra declarada, co ndu ­ zida pelo exército, pode a União perseverar na presente atitude? Pode. As mil t r i­ cas administrativas, as notas impertinentes, as reclamações infundadas, as cam pa­ nhas de imprensa e da rádio oficial sobre factos inexistentes ou deturpados, a especiosa interpretação dos tratados e das leis podem continuar a patentear-se, mas nada disso tem dignidade ou grandeza, à altura de um Estado com o a União Indiana. É uma hipótese possível, mas não creio provável, uma vez verificado o fra ­ casso do bloqueio, a eternização da guerra fria que actualmente se nos faz. Por nosso lado, conscientes do direito e indissoluvelmente ligados àquela pequena comunidade por 450 anos de história, pelos laços do sangue e pela cultura que ali levámos, somos livres e estamos prontos a negociar, mas não podemos ceder sobre a soberania portuguesa; e, entretanto, em duas coisas essencialmente nos temos de apoiar e delas não podemos desprender-nos - força e paciência: força suficiente para que uma pseudo-acção policial não possa ser-nos imposta; paciên­ cia que não se altere com a impaciência inimiga e dure tanto pelo menos com o a sua pertinácia. Para tanto, precisamos de não nos exceder no nosso próprio esforço, cuidando antes de o manter sempre proporcionado à capacidade normal da Nação. E se, apesar de tudo, a União Indiana levar a guerra ao pequeno território, o que podem fazer as forças que ali se encontram ou vierem a ser concentradas? Bater-se, lutar, não no limite das possibilidades, mas para além do impossível. Devemos isso a nós próprios, a Goa, à civilização do Ocidente, ao mundo, ainda que este se sorria com ­ padecidamente de nós. Depois de afagar as pedras das fortalezas de Diu ou de Damão, orar na igreja do Bom Jesus, abraçar os pés do Apóstolo das índias, todo o português pode combater até ao último extremo, contra dez ou contra mil, com a consciência de cumprir apenas um dever. Nem o caso seria novo nos anais da índia.

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X V I. SOBRE O TRATADO LUSO-BRASILEIRO DE A M IZA D E E CONSULTA 1,1 S e n h o r Presidente:

A Câmara vai discutir, e seguramente aprovar para ratificação, o Tratado luso-brasileiro, assinado há um ano no Rio. Dispõe para form ar um juízo, além dos conhecim entos próprios, do parecer da Câmara Corporativa, da discussão nas Câmaras brasileiras (que gentilm ente nos precederam nesta apreciação) e de tudo quanto em abono do Tratado se escreveu - e m uito foi - aquém e além -Atlântico. A minha presença não pode pois representar nem o esclarecim ento da matéria, de que a Assem bleia não precisa, nem a declaração de um voto, de que não disponho. Ju stifica-a apenas o empenho de marcar, por parte do Governo, o excepcional interesse que pôs nas negociações, põe agora na rápida entrada em vigor do ins­ trum ento diplom ático e promete pôr no desdobram ento e futura execução das suas disposições.

Não é segredo para ninguém nem novidade dizer-se que o alto grau de a fe c tiv idade das relações luso-brasileiras não tem tid o repercussão equivalente na condu ­ ção dos problemas com uns aos dois países. D ificilm ente se encontrarão laços mais apertados e mais estreita irmandade que a resultante do sangue, da língua, da reli­ gião, da cultura e da vida em com um de Portugal e Brasil. Mas sobre tais alicerces não se tinha ainda erguido a construção que temos agora esboçada diante de nós: o Tratado pode genericam ente definir-se com o a tradução em política internacional da com unidade luso-brasileira — os dois países um em face do outro, os dois países em relação ao mundo. Refere-se o Tratado a essa comunidade. Na verdade, ela não tinha de ser acor­ dada nem definida: existe; é o facto que a história gerou. Mas do seu ostensivo reconhecim ento advém a mesma erguer-se convencionalm ente a fonte de direitos e deveres recíprocos, talvez pela primeira vez transitados das aspirações e anseios comuns para o com ércio jurídico. Recebe neste Tratado solução a firm a tiva o problem a que mais podia in te re s­ sar a Nação Portuguesa - o problem a que cham arei da fid e lid a d e às raízes, de 0 1

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Com unicação feita em 6 de Dezembro de 1954, na Assem bleia Nacional.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 onde ainda hoje e esperamos que sempre se alimentará o Brasil, com o m a gnífica expressão de lusitanidade no continente americano. Que da situação geográfica lhe provenham relações específicas com outras nações e interesses e so lid a rie ­ dades continentais, ninguém poderá estranhá-lo. Que através dos tem pos a alma brasileira queira permanecer fiel à que lhe veio do berço, em balado por mãos portuguesas, é para nós título de orgulho e preito do Brasil a que havere­ mos de mostrar-nos sensíveis. Mas a ter de ser assim, e para que o Brasil pudesse vincar mais e mais a sua personalidade própria entre as nações, sempre me pare­ ceu que as coisas não haviam de ser abandonadas nem às m anifestações a fe c ti­ vas nem aos acasos dos movimentos demográficos e das relações económ icas ou culturais, no geral restritas e mais esporádicas ou incidentais que sistem atizadas, e que uma política se impunha em todos esses domínios para se garantir aquela finalidade. - Este o significado das disposições mais numerosas do Tratado cujo alcance sob este aspecto é escusado encarecer e que no respeitante a interesses que se destina a proteger ou permite criar é já suficientemente conhecido e dis­ pensa o meu comentário. 0 aspecto porém mais importante e de mais vasta repercussão política é dedudr-se da existência da comunidade luso-brasileira o princípio da consulta em todos os problemas internacionais de manifesto interesse comum, em ordem à possível coordenação de atitudes e de esforços. Da nossa banda pode dizer-se que o Brasil tem entrado ao lado da aliança britânica e da estreita amizade peninsular, com o uma constante subentendida da política externa portuguesa. É certo que abusiva­ mente, vista a inexistência de textos que a tanto nos autorizassem; com apoio bas­ tante porém na história comum e nos laços de família que sentimos prenderem-nos indissoluvelmente. Do lado brasileiro a questão pode ser vista à luz das considera­ ções seguintes: É sabido que as Nações Unidas representam uma tentativa ou princípio de orga­ nização da sociedade internacional, em bases de universalidade e de igualdade. A universalidade tendente à admissão de todos os Estados com condições mínimas para garantirem uma útil convivência internacional está longe ainda de realizar-se. A igualdade jurídica dos Estados teve de, na prática, aceitar as conhecidas excepções que se representam na competência exclusiva de alguns órgãos restritos e na hierarquia e diferenciação dos Estados. A estas deficiências - se é que em todos os casos o são - acrescem os perigos, esses reais e verificados, duma perturbante competência omnímoda - tanto na aplicação territorial como relativamente aos problemas debatidos - sem correspondência com meios efectivos de acção. M a n tém-se assim a organização como tribuna livre das nações membros, sendo porém certo que não atingiu, e creio não atingirá nunca, o grau de eficiência que a lvoro­ çadamente se lhe atribuíra. É de considerar se um dos meios mais expressivos de corrigir ou aperfeiçoar a instituição não será completá-la com suborganizações de grandes zonas em que a afinidade de interesses, a similitude de problemas, mais preciso conhecim ento das 832

X V I. S o b r e o Tratado L u so -B ra sileir o ...

condições tornassem as intervenções mais razoáveis e eficientes. Nem custa reco­ nhecer a estas mais possibilidades de êxito nos problemas que respeitam às nações e são particulares dessas zonas que ao actual universalismo das Nações Unidas. Na ordem dos factos é tão flagrante e sentido este estado de coisas que o co n ­ tinente am ericano possui, à margem e sem prejuízo das Nações Unidas, uma orga­ nização própria com suas conferências periódicas e seu alinham ento de orientações gerais em certos problemas - alinham ento em que a solidariedade interamericana joga o seu papel. Ora bem: o Brasil tem o seu lugar nas Nações Unidas e tem -no na O rganização dos Estados am ericanos, mas enquanto nas prim eiras a actividade tem de c o n fi­ nar-se quase só no academ ism o da instituição, entre estes ú ltim os a sua acção e in flu ência desenvolvem -se preferentem ente num plano de continentalidade que, se corresponde à sua situação geográfica e predom inantes interesses e conóm i­ cos, pode bem não corresponder às origens e à parte de interesses universais em que com unga connosco. 0 caso da índia é absolutam ente típ ico e revelador desta concepção, pois que Governo e Povo brasileiros vibraram tão intensam ente com os agravos da União Indiana com o nós próprios e desveladam ente se têm preocu­ pado com a segurança de Goa. Reconhecer e proclam ar esse e xtraordin ário m ovim ento de solidariedade e do mais decidido apoio é dever que me é p a rticu ­ larm ente grato cu m prir neste momento; mas quando busco a razão do facto vejo não poder ser outra senão que o sentim ento geral brasileiro é estar ali parte da história e patrim ónio moral do Brasil. Quer dizer, è margem de tratado que nos vinculasse uns aos outros, a reacção brasileira produziu-se e m anifestou-se espontaneam ente na linha dos interesses político s e m orais comuns, com o a de Portugal por certo se m anifestaria em casos análogos em que o Brasil se visse tão injustam ente envolvido. À luz dos factos pode, pois, perguntar-se se a separação dos dois países não foi no princípio longe demais sob este preciso aspecto, fican do uma e outra nação desprovidas de apoio recíproco e subm etidas a linhas de orientação ou de força que felizm ente nunca foram contrárias mas pelas circunstâncias de ocasião bem podiam ser largam ente divergentes. De certo modo se pode dizer que, em bora a títu lo experim ental, se refaz ou corrige agora a história em benefício com um , fazendo da com unidade luso-brasileira um instrum ento de política internacional de Portugal e Brasil.

s

Espero estar ainda dentro dos cinco m inutos que me propunha falar. Preciso dos últim os segundos para dizer o seguinte: o Brasil é uma grande e esperançosíssima nação, a quarta ou quinta do m undo em extensão territorial, com po ssibili­ dades e riquezas pràticam ente ilim itadas, dentro de décadas com um valor dem o­ g rá fico considerável entre as maiores nações, e im plantada num dos lados do quadrilátero a tlâ n tico em que se localizam m uitos dos nossos mais im po rtantes interesses. Nós som os a velha árvore reverdecida de que o Brasil se desprendeu e que pela sua pujança continua a form ar novas ramagens e troncos, estuantes de

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 força e de viço. Nestas circunstâncias, o Tratado não pode considerar-se com o afirmação gratuita de princípios e atitudes e devemos ter a consciência de que impõe a ambos os Estados enormes responsabilidades. Para além daqueles aspec­ tos sentimentais a que, filhos do mesmo sangue, dotados do mesmo coração, não podemos fugir a render preito, está ai uma fonte inesgotável de inspiração e acção política. Ratificando-o, nós fazemos um voto ao mesmo tempo de confiança recí­ proca e de optimismo quanto ao futuro das duas Pátrias.

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X V II. A QUESTÃO DE GOA (,) Os jornais transcreveram as declarações feitas pelo Prim eiro-M inistro da União Indiana numa conferência de imprensa em Nova Deli. Repetiram-se nela afirm a­ ções anteriores já conhecidas, desta vez porém com alguns excessos acerca de Por­ tugal e especialmente de Goa, que impõem fazer-lhes um pequeno comentário. O Senhor Nehru é sem dúvida uma das individualidades de maior relevo do actual m om ento internacional, pelo seu alto espírito, pelas suas qualidades pessoais, pelo interesse da sua vida de com batente e doutrinador, pelos supostos serviços, espontâneos ou ingènuamente solicitados, junto dos países comunistas, e ainda pelos seus êxitos, que são o grande padrão para medir o valor político. M as o Pri­ m eiro-M in istro da União é também uma pessoa que, à menor contrariedade, se impacienta e ao menor obstáculo aos seus desígnios se exalta e irrita. Nesses momentos, que são aliás numerosos, cham a-nos «bárbaros», apelida de «indecente» a política da África do Sul e profere frases candentes contra o «sórdido imperialismo ocidental», que, através da Inglaterra, lhe serve de principal apoio político e, por interm édio da generosidade americana, subsidia a econom ia da índia com mais de um cento de milhões de dólares em cada ano. Mas porque há-de Portugal - pequeno, modesto e pacífico país, empenhado em colaborar com todos os outros povos — irritar tão fortem ente o Prim eiro -M in istro da União Indiana? Goa é a causa e a fonte da sua perene irritação; tentarem os compreender as razões que há para isso.

Parece que a União Indiana não se considera um povo satisfeito (para usar expressão m uito usada nos anos que precederam a última Grande Guerra) e a li­ menta desígnios pouco tranquilizadores, não só na península do Indostão com o fora e mais longe, que ulteriorm ente se definirão melhor. Goa é uma das fases desse arredondam ento territorial, que pessoas algum tanto malévolas teimam em designar pelo feio nome de imperialismo; e tal aquisição ou conquista, pela sua pequenez, afigurava-se a mais simples e expedita. Ora até hoje o Senhor Nehru tem visto fracassados todos os meios postos em acção para o dom ínio de Goa.

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Com unicado da Presidência do Conselho, fornecido à imprensa em 22 de Julho de 1955.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1959 Pediu a Portugal lhe entregasse o Estado Português da índia, ao que Portugal não acedeu, na impossibilidade, mais que constitucional, humana de ceder, vender e entregar uma massa de cidadãos portugueses com a sua terra, como se fossem terras com o seu gado. Tentou o bloqueio económico, fechou as fronteiras, suspendeu o correio para Damão e Diu e intermitentemente para Goa, e os nossos esforços e sacrifícios pude­ ram tornar o bloqueio inoperante e vive-se ali como se vivia antes. Iniciaram-se actos de violência, ataques à mão armada, incêndio e pilhagem de pos­ tos fronteiriços, com mortes e o assassínio até de crianças não intrometidas na acção. E não se viu que o terror se apoderasse nem da população nem das autoridades. Pôs-se em movimento a chamada «invasão pacífica» do território português, com centos, anunciam-se para breve milhares, de pessoas vindas da União Indiana, arregimentadas para o efeito. Esgotado o recurso aos poucos goeses desnacionali­ zados e que eram aliás essenciais para colorir o protesto, houve que recorrer exclu­ sivamente a indianos, uns fugidos à justiça de Goa, outros, o grande número, gente humilde, desempregada, desprovida de meios, na ignorância mais absoluta do caso de Goa e do pretenso significado do seu acto, empurrada, por chefes geralmente rresponsáveis, para dentro das fronteiras de Goa e friamente entregues à sanção Jas leis portuguesas. Tem-se desejado que os goeses de Bombaim se manifestem favoráveis è integra­ ção de Goa na União Indiana. E as pressões, as ameaças, as promessas, a expulsão daquele Estado de gente pacífica, com a recusa ou a perda dos seus meios de tra ­ balho, os assaltos em plena rua, as prisões, a destruição dos jornais sim patizantes com Portugal - nada tem sido suficiente para levar esses portugueses imigrados, sem apoio em terra estranha de mais que a nossa simpatia, a negar, com a simples assinatura de um manifesto, a sua Pátria de origem. Para de algum modo coonestar a pretensão, acusam-nos de colonialistas e de termos no Estado da índia, como resto de um império, uma simples colónia. Está demonstrado, e não pôde isso ser rebatido, que o Estado da índia foi sempre um encargo para o tesouro metropolitano, que Portugal não tem ali negócios nem faz comércio reservado aos seus nacionais da metrópole, nem tem estabelecidas bases para poderio militar ou naval seu ou de quaisquer outras potências; que, em relação aos goeses, não se revela o menor traço de inferioridade rácica ou de diferenciação de cidadania em toda a extensão do território português. Séculos antes de ao Pri­ meiro-Ministro Senhor Nehru poder ser reconhecida a cidadania britânica, eram já portugueses todos os habitantes de Goa, julgavam os tribunais, presididos pelos seus magistrados, europeus e goeses indiscriminadamente, frequentavam os seus naturais todas as escolas e serviam os funcionários de lá originários todos os postos e carreiras, ali, na Metrópole e em todo o Ultramar Português. 0 P rim eiro-M in istro declara-se disposto a aceitar uma discussão sobre este caso gritante de co lon ia ­ lismo. Podia mais afortunadamente eleger outros, porque ali, por mais que procure, nem colonialismo económico, nem colonialismo militar, nem colonialism o político pode ser encontrado. 836

X V II. A Q uestão d e Goa

Ao alto espírito do Prim eiro-M inistro da União Indiana, em que se vêem aflorar ainda princípios de Gandhi, seu mestre e amigo, à posição moral do chefe de uma grande nação com o a União Indiana, ao nível de dignidade que se atribui, não hão-de passar despercebidas, além do insucesso, a injustiça da causa e a deselegân­ cia dos processos com que pretende ganhá-la. Goa é um teste, diz-se de vários lados da União Indiana. E é. Simplesmente o Prim eiro -M in istro encontra-se enleado entre a verdade, com o primeira necessidade do seu espírito, e a campanha de falsidades dos seus agentes, da imprensa e da rádio oficial; entre as exigências do seu apregoado pacifism o e a guerra aberta na qual prometeu há pouco em Roma não nos dar tréguas; entre o apoio do com unism o internacional e a im posição de ordem interna de não aceitar dele nem serviços nem favores. Eis uma situação incómoda e deveras lamentável quanto à qual estamos perfeitam ente inocentes. Na sua referida conferência de imprensa, o Prim eiro-M inistro afirm ou que, não lhe sendo dada Goa, não só Goa cairá, mas também o regime português que se lhe opõe e a sustenta a ela. 0 Prim eiro-M inistro não está seguramente informado. Em Portugal, à parte uns poucos que têm pensamentos o interesses subordinados ao estrangeiro, todos compreendem que o Estado Português da índia possa ser arreba­ tado pela força esmagadora da União Indiana. Mas ninguém perdoaria aos gover­ nantes que cedessem a pressões injustas e não defendessem os Bens concidadãos de Goa, a sua vida, história e cultura até ao limite das nossas forças. E assim se fará. A ameaça é irrelevante, destituída de base e, sobretudo, é feia.

A nossa total compreensão e firm e desejo de viver em paz e amizade com a União Indiana não têm sido correspondidos nem têm obtido mais favorável resposta que dizerem -nos dever a questão ser pacificam ente resolvida. Entendam o-nos. Se por «questão de Goa» se entende a transferência para a União Indiana da soberania sobre os territórios portugueses da Índia, é seguro que a questão se não resolverá por meios pacíficos. Se por «questão de Goa» se entende o conjunto de problem as derivados da contiguidade ou embrechado dos territórios e das circunstâncias his­ tóricas que os tornam, além de vizinhos, estreitamente aparentados, diremos que não só é possível, mas ainda relativam ente fácil resolvê-la. Temos repetido muita vez - e mantemos essa posição - estarmos sempre dis­ postos a negociar e a procurar por meios amigáveis as soluções convenientes. Não se antolha d ifícil que à volta da mesa os representantes de uma e outra banda sejam conduzidos a um entendimento, se na sua mente não há outra ideia que resolver dificuldades e achar o ponto de convergência dos melhores interesses de am bos os Estados. Que sejam os problemas de segurança, as relações fronteiriças, o trânsito, o tráfego do cam inho de ferro e do porto de Morm ugão, as relações monetárias, o ensino das escolas e respectivos cursos, a actividade da pesca, as próprias águas territoriais, o regime do trabalho num e noutro território - tudo quanto seja sus837

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 ceptível de criar dificuldades ou atritos pode ser amigavelmente solucionado. E esperamos que o seja, quando a União Indiana acabe por verificar a ineficácia dos processos até aqui usados e comece a pôr em prática os princípios de coexistência pacífica, respeito pela soberania, não intervenção nos negócios alheios, pelos quais o Senhor Nehru se tem batido nas suas peregrinações pelo mundo.

Faz hoje um ano que começaram as piores violências indianas contra os te rritó­ rios portugueses, com o ataque a Dadrá. Aí caíram as primeiras vitimas, que, por desígnio da Providência, não foram portugueses da Europa em missão de soberania, mas portugueses da índia, naturais daquelas terras, batendo-se e morrendo por elas. 0 Primeiro-Ministro Senhor Nehru poderia reflectir um momento neste mis­ tério de morrerem por uma terra dominada e escrava aqueles mesmos que os seus homens iam tão generosamente libertar.

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X V III. GOVERNO E PO LÍTIC A (1) Fui solicitado para dar posse aos presidentes das comissões distritais e aos mem­ bros de outros órgãos superiores da União Nacional e fa ço -o gostosamente. Com os actos de designação e eleição realizados nos últim os meses quis-se, em obediên­ cia aos Estatutos, conseguir a renovação dos corpos dirigentes do organismo e fa c i­ litar o acesso à vida política de novos valores. 0 meu prim eiro dever é d irigir a todos uma expressão de sincero reconh eci­ mento - a uns pelo trabalho realizado e pelos sacrifícios que houveram de supor­ tar durante o seu mandato, a outros pela disposição de servir com que ascendem a estes lugares e tom am a sua parte de responsabilidade na condução dos negó­ cios comuns. V erifique i ter havido em todos os actos com preensão das situações e em ulação salutar e que se puderam evitar nas com petições toda a gama de resí­ duos que em geral as acom panham , desde as decepções às ofensas. A legrem o -n os por isso. 0 meu segundo dever é ju stifica r a minha presença aqui e o confessado prazer de ter vindo assistir a marcada reunião de políticos num organismo político - eu que tantas prevenções tenho m anifestado e tão cordialm ente desadoro a política. Esta aparente contradição exige umas palavras de esclarecimento, dado sem pre­ tensões e, se mo permitem, com o em palestra familiar. I. 0 observador atento há-de notar que o que se chama vida política no m undo dos nossos dias é, em boa parte, só agitação e que essa agitação se opera à volta de sentim entos prim ários ou de conceitos imprecisos. Certo número de palavras ou frases fe ita s voam de co ntinen te para continente e levam, na sim plicidade e aparente clareza das fórm ulas, m undos de conceitos duvidosos, senão in te ira ­ mente errados. Por exemplo, as palavras liberdade, dem ocracia, ditadura, dire ito s do povo, antes que os historiadores lhes seguissem o rasto e os filó s o fo s lhes d e fi­ nissem o sentido, já elas puderam despertar torrentes em ocionais, desencadear revoluções, alterar a marcha dos acontecim entos. E não me re firo ao cam po com unista, que pode jactar-se de trazer desvairadas as gentes com a inversão da

1,1 Discurso proferido no acto de posse dos presidentes das com issões distritais e dos m em bros de outros órgãos superiores da União Nacional, em 19 de Janeiro de 1956.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 terminologia política usual, a desafiar a lógica e a realidade com a sua dem ocra­ cia popular, a sua ditadura do proletariado, a sua libertação dos povos, etc. Pois mesmo fora dos domínios da «grande mentira» também se verifica a im po ssibili­ dade de acordo sobre um sentido suficientemente preciso dos termos com que se faz a política. As palavras valem por vezes mais e têm mais prestígio que a essên­ cia das instituições: tanto na ordem interna como na internacional, barragens de fumos chegam a ocultar o sol. Estes factos comportam lições que interessa ter sempre presentes, embora a nossa ética não nos permita aproveitar a maior parte, pela razão de que nos deve­ mos e devemos ao povo a verdade. A actuação do regime que preside há três dezenas de anos aos destinos deste país tem sido, no meu modo de ver, predominantemente governativa e d e ficien te­ mente política - ou, por outras palavras, sacrifica por princípio a política às co n ­ veniências ou necessidades do governo. E apetece pôr duas questões: o que quer dizer sacrificar a política ao governo? Até onde pode levar-se sem risco esse sa cri­ fício da política? Entendamo-nos primeiro acerca do sentido das palavras. A palavra governo significa de uma banda o conjunto de indivíduos d e te n toes do poder de governar e significa da outra a direcção dos negócios públicos em >rdem à satisfação dos interesses comuns. A necessidade do governo é in tu itiva - confunde-se pràticamente com a da autoridade em toda a sociedade humana. Ora os múltiplos problemas desta sociedade resolvem-se segundo determ inadas linhas de orientação e são estas grandes* linhas de orientação, que definem , quanto a sectores especiais do governo, o que se chama a política financeira, a política económica, a política religiosa, colonial, cultural, externa, etc. A d e fin i­ ção dessas políticas é a resultante da existência de um interesse, de um co n d ic io ­ namento de facto, de um princípio doutrinal; ou seja, a resultante de um objectivo definido, da possibilidade de o atingir, do princípio moral ou p olítico a que deve obedecer, segundo a concepção dos governantes, a linha de solução. Salvo o caso, imposto por circunstâncias especiais, de um governo ser co nstitu ído para a resolução de uma questão determinada e circunscrita, a actividade governativa desdobrar-se-á normalmente na definição e realização de tantas políticas quan­ tos os sectores a que se aplica a sua actividade. E tão inconcebível sería que para algum desses sectores o governo não tivesse uma política, como que alguma delas não fosse coerente com as mais. Assim, e dando embora a grandes co rre n ­ tes doutrinais o valor relativo que geralmente têm, deve dizer-se não ser lógica nem pràticamente possível resolver, por exemplo, o problema da propriedade segundo os princípios comunistas e estabelecer ao mesmo tempo uma econom ia liberal. Em muitos casos não há mesmo fórmulas possíveis de com prom isso - os problemas ou se resolvem ou não. Deduz-se do exposto que governar representa, afinal, uma actividade empe­ nhada numa realização política. E nesta primeira acepção a palavra po lítica está já a nossos olhos regenerada. 840

XVIII. Governo e Política

M esm o quando os indivíduos ou grupos sociais não têm de colaborar activa­ mente na solução dos problemas, com o são os casos da educação e da defesa, a razão e o respeito da pessoa humana, que é o sujeito político por excelência, indi­ cam -nos a alta conveniência do assentimento do povo às providências ou im posi­ ções da autoridade. À medida que se desenvolve e radica no corpo social a consci­ ência de um destino ou interesse comum, mais se impõe o conhecimento, a compreensão, a adesão espiritual dos indivíduos que convertam de facto em acção colectiva, em vida nacional, a actividade governativa. Seja mais ou menos pronun­ ciada a participação dos indivíduos ou grupos na form ação do poder, seja mais ou menos extensa a sua intervenção directa na form ulação das soluções ou na respec­ tiva execução - não pode fugir-se a uma das imposições do nosso tempo, que se traduz no alargam ento das zonas que o poder directam ente beneficia e no aumento de interesse que o exercício desse mesmo poder desperta. Ora o outro significado da política que eu desejaria reabilitar também é exacta­ mente o da acção tendente a criar a consciência nacional dos problemas e o con ­ vencim ento geral da bondade das soluções, para que a acção governativa se desen­ volva em ambiente esclarecido e favorável. 0 estudo e discussão das questões, a inform ação dos factos que as originam ou condicionam , a sugestão de soluções possíveis ou convenientes, a defesa dos princípios em causa, a apreciação das lim i­ tações existentes - tudo isso é acção política, tudo isso é política. Em tal sentido, em tais termos, com tal objectivo, a política foi sempre não só útil, mas necessária, e é-o sobretudo no Estado moderno, seja qual for a sua constituição. Se aos governos com pete tom ar conhecim ento dos problemas, equacioná-los, definir as soluções, adoptar as providências atinentes a resolvê-los na ordem prá­ tica, é sobretudo aos organismos políticos que incumbe esta segunda missão. E se falham nela, ou o governo se lhes substitui, com prejuízo da actividade própria, ou a consciência nacional pode deixar de encontrar-se em condições de seguir e apoiar a acção governativa. Quando acima signifiquei ter sido a política sacrificada ao governo, queria exactam ente referir-m e a uma das saídas do dilema angustioso que por vezes se nos tem posto — dim inuir o ritm o da actividade ou arriscar-se a traba­ lhar na incom preensão geral. Nós com preendem os agora bem o dualismo governo-política e com o seria ideal que se completassem sem esta se sacrificar àquele.

S acrifício socialm ente mais oneroso é, porém, o sacrifício inverso do que enun­ ciei - é sacrificar-se o governo à política, e isso me leva ao terceiro sign ificado desta palavra política, à noção mais vulgarizada e à actividade mais critieável. Com o tu d o se corrom pe no mundo, tam bém essa utilíssim a a ctiv id a d e p o lí­ tica se pode corrom per. A política será então, na ordem interna, a a ctiv id a d e 841

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 que se desenvolve para a destruição do governo e a conquista do poder. C o m ­ preende-se que, consoante a divisão dos espíritos, o grau de m oralidade geral, o abatimento da consciência colectiva em relação à vida e interesses da Nação, e sobretudo consoante os regimes políticos, esta actividade que se lim ita a des­ truir para trepar ou a distribuir benesses para manter-se produza m aiores ou menores danos. 0 maior de todos, além do criticismo exagerado, que paralisa a acção e cria nos espíritos estados de inquietação e de dúvida, o m aior dano de todos, dizia, afigura-se-me a mim ser o seguinte: impelir os governos para o plano da defesa da sua própria existência, e absorvê-los nela, levando-os a des­ curar a sua actividade específica. Ora nada pode fazer-se duradouramente contra a verdade e contra a essência das coisas; e assim este sacrifício do governo à política arrasta consigo a ideia da insuficiência ou inexistência de um órgão essencial à vida colectiva e, consequen­ temente, por sucessivas substituições, a sua instabilidade. Disto me parece dever concluir que, se há sacrifícios a fazer, antes a política seja sacrificada ao governo que o governo se sacrifique à política. Mas a boa solução já acima indiquei qual seja. II. Os meus ouvintes que, felizmente, nunca duvidaram da utilidade do seu esforço, estarão porventura a interrogar-se sobre qual a finalidade destas considerações. Pois não é senão o convite formal para uma intensificação bem necessária da actividade política, pelas razões já indicadas e o motivo especial que enunciarei a seguir. Em 28 de Maio passa novo aniversário da Revolução Nacional e faz trinta anos a Situação política que tem a exclusiva responsabilidade do governo durante as três últimas décadas. Esta exclusividade pode ter-se como título de capacidade governa­ tiva e política, mas há-de também ter-se como fonte de pesadas responsabilidades que não podem ser partilhadas nem atribuídas a outrem, ao menos parcialmente. Decerto a acção do governo foi condicionada em bons espaços de tempo por guer­ ras externas e por crises internacionais graves, além das muitas deficiências do nosso próprio ser colectivo. Mas, para além dessas limitações, aliás ponderosas e extensas, naqueles domínios em que o governo se pôde determinar e agir, há que responder perante a Nação ou perante a História pelo que se fez e pelo que se não fez e podia ou devia ter sido feito. Podia ter-se avançado mais? Podia ter-se agido melhor? Não receio as críticas, se apaixonadas, dos adversários nem os juízos de observadores superficiais que tudo aferem, com desconhecimento das circunstâncias de facto, por um padrão ideal: só me interessa o veredicto das consciências rectas. Porque, se houve dificuldades e estorvos, houve também circunstâncias políticas favoráveis, embora estas, se existiram, tenha sido exactamente nosso mérito criá-las. Certamente haverá comemorações festivas e não faltam, apesar de tudo, m oti­ vos para contentamento público. Mas, ao fixar-se para este ano e para as proxim i­ dades daquela data a realização do 4.° Congresso da União Nacional, houve o 842

XVIII. Governo e Politica intento de facultar o largo exame retrospectivo da marcha da coisa pública e criar a oportunidade de apreciar principios e métodos, problemas e soluções, esforços e resultados. Não se pode esperar - nem seria possível - que se faça então a crónica circunstanciada deste período, que já não passará despercebido na historia p ortu ­ guesa. Mas, fixado bem o ponto de partida e os meios ao dispor da máquina gover­ nativa e da administração, é possível ajuizar-se do caminho andado, das condições de progresso, das oportunidades aproveitadas ou perdidas e da bondade dos prin ci­ pios que nos nortearam. Tudo se resumirá em saber se de facto, á sombra deles, a Nação se elevou moral e materialmente, isto é, se progrediu e se se nobilitou. Tem-se ouvido afirm ar que este período, mercê de algumas necessárias lim itações de liberdade de imprensa, marca urna zona escura do pensamento e da cultura por­ tuguesa. A decadência podia ter-se verificado ¡ndependentemente de causas p olíti­ cas. Mas dessas críticas nasceu a ideia de uma exposição cultural, relativa também aos últimos trinta anos. Se a produção literária, científica ou artística e as suas variadas manifestações, impulsionadas ou não pela acção do Estado, se afirmaram em termos comparáveis aos de outras boas épocas, deve a acusação cair por falta de base e o País ter fé no seu espírito rejuvenescido. A mim ser-me-ia particularmente doloroso verificar ter contribuído, embora na defesa de interesses igualmente sagra­ dos, para um eclipse - ainda que passageiro - da inteligência portuguesa. III. Será muito difícil, e em qualquer caso improvável, que os problemas políticos portugueses e as suas soluções não sejam também considerados à luz dos aconte­ cim entos mundiais e das lições que deles emanam. Do conjunto de factos cuja observação se encontra no horizonte de quem quer, podem tirar-se duas conclusões ou ensinamentos. 0 primeiro é a existência de cer­ tos movimentos de im paciência dos povos, e designadamente do seu eleitorado, ante a agitação de actividades políticas excessivamente apaixonadas, vazias e ine­ ficientes, fin s de si próprias e desligadas dos interesses nacionais, ainda que sob a reiterada invocação da sua defesa. Não se trata, a meu ver, de problema que possa ser solucionado pelos apelos da prudência ao concerto das inteligências e à co n ci­ liação das irredutibilidades, quando a base dos regimes for em si mesma in cita ­ mento è luta e ferm ento de paixões. É o fundam ento psicológico que está errado, não as suas consequências. As diversas soluções para que se recorre nos casos em que o apelo à unidade nacional vai de encontro a profundas divisões do espírito público não se revelam em termos de simultáneamente salvar os princípios e satis­ fazer o interesse da Nação: as soluções m inoritárias não têm lógica; as com binações e com prom issos não têm eficiência prática. A o mesmo tem po que as lutas apaixonadas pela conquista do Poder parecem criar no espírito público uma espécie de cansaço ou de enjoo, ve rifica -se — e é este o segundo ensinamento em extensas camadas populacionais, redobrado in te ­ resse pela coisa pública. Não só os problemas sociais e políticos atraem vivam ente 843

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 os espíritos, como se nota em camadas do escol, saídas da grande massa pela v u l­ garização da cultura, o anseio de um sistema de princípios e soluções que responda satisfatoriamente às suas interrogações e necessidades. Um ideal social e político se afigura necessário e o grande problema está em saber quem é capaz de realizar o objectivo. A democracia? o comunismo? Quando ousamos dizer que a democracia é um regime que funciona melhor ou pior, mas não pode por definição constituir, nem de facto constitui hoje, esse a li­ mento espiritual, acusam-nos de antidemocratas e arriscamos as simpatias que, por outros motivos, havemos logrado. E assim se corre o risco de ficar, desoladamente, e à parte o que possa esperar-se de certos movimentos de ordem religiosa, apenas em face do comunismo. E inútil, no domínio que nos ocupa, argumentar com que o comunismo não pôde realizar-se ainda nem jamais se realizará em parte alguma, é contrário à natureza, falso nas suas premissas e nas suas conclusões. Isto não tem grande acção nos espíritos, desde que possa continuar a apresentar-se como dando uma resposta aos problemas do mundo contemporâneo. A superioridade com que se afirma, a solidez das posições tomadas, ainda quando se vê forçado a alterá-las ou substituí-las, a segurança com que despreza tudo o que não seja a sua filosofia e a violência dos seus processos, represen­ tam incontestàvelmente uma força no mundo de hoje, força que, embora politicamente paralisada nalguns países, se mantém ainda perigosa como instrumento de captação. Por mim, estou seguro de que a doença comunista, não tendo podido realizar-se em revolução, mas só em crueldade, acabará por esgotar-se e passar, deixando embora aqui e ali ensaios de instituições, termos vagos de reivindicações sociais, uma que outra solução. Mas interessa vitalmente às nações evitar o alastramento dessa pandemia que, onde minorias audazes conseguem instalá-la, atenta, quase sem excepção conhecida, contra a independência dos Estados, a liberdade dos in di­ víduos, as conquistas da civilização. Esta a razão fundamental da nossa posição e ansiedade no problema, porque, se não queremos que o comunismo avance e nos subjugue, precisamos de eliminar as condi­ ções do seu progresso. Quando nos primeiros Estatutos da União Nacional e depois na primeira parte da Constituição Política ousámos inserir uma parte substancial com as posições ideológicas a firmar quanto aos problemas fundamentais do homem, da socie­ dade e da Nação Portuguesa, não foi outro o intuito que compendiar aquele acervo de ideal necessário ao português de hoje e à permanência dos seus interesses nacionais, acender uma luz que iluminasse o caminho, definir princípios a que se devesse ser fiel e que, pela sua transcendência e perenidade, não tinham que ser sujeitos a contínua revi­ são. Contribuição modesta, mas para nós não desprovida de valor.

Subindo do plano das políticas internas ao da sociedade internacional, estão a verificar-se no mundo dois movimentos que uns consideram complementares, outros um tanto ou quanto contraditórios: afirma-se um movimento nacionalista, 844

XVIlí. Governo e Política base da form ação de numerosos Estados, e, ao lado, intensas m anifestações de internacionalism os e uma vez ou outra mesmo supranacionais: dir-se-ia que alguns países estão fatigados da sua existência como nações independentes. É certo que outros factores, além do anseio de liberdade, se ocultam atrás dos m ovim entos de autodeterm inação dos povos, mas a expressão fin al que estes m ovi­ mentos revestem é de facto a m ultiplicação de Estados independentes na sociedade internacional. 0 maior problema que o fenóm eno suscita, além da liquidação das situações anteriores, é o da capacidade dos novos Estados para se adm inistrarem com real independência e a sua perfeita integração no convívio moral e ju rídico das restantes nações. Quanto ao segundo movimento: o encurtam ento das distâncias tornou o mundo mais pequeno e permitiu a progressiva intensificação da vida internacional. Para­ lelamente, a civilização parece cam inhar no sentido da uniformidade, pelo que se não há-de estranhar um reforço de internacionalism o no direito o nas instituições encarregadas de estudá-lo e de promover a sua aplicação. Nada custa também adm itir que o alargamento de um espaço, por soma de espaços nacionais, possa ser condição favorável à solução de certo número de problemas, pelo que a coopera­ ção entre as soberanias que os partilham e a adesão a estatutos com uns se podem im por com o a forma mais eficaz de os solucionar. - Nada disto nos suscita objecções de fundo. Um aspecto se afigura, porém, mais sério, apesar de alguma obscuridade em que se envolve. Refiro-m e ao m ovim ento de integração europeia que m uitos na Europa defendem e fora dela outros parecem acalentar. Esse vago pensamento começa já a revestir aqui e além form as ju rídicas conhecidas, com o a de federação ou confederação. Se ao meu espírito é suficientem ente nítida a razão por que aTguns Estados defen­ dem para o Ocidente europeu tais form as de integração, não consegui ainda descor­ tinar os m otivos que impelem outros a aceitar, senão a bendizer, esta sorte de liqui­ dação nacional. A constituição heterogénea e dispersa de alguns Estados europeus, a vastidão dos seus interesses fora da Europa, a diversidade das instituições por que se regem, a disparidade de climas políticos e morais que neles se verifica, são aspec­ tos que não consegui ainda compreender com o seriam considerados para salva­ guarda do que há de essencial em algumas destas form ações históricas. Tenho considerado com o favor da Providência term os uma situação geográfica, uma form ação territorial e um regime político que nos permitem aguardar neste canto da Península não só o desenvolvim ento doutrinal da questão, mas algum com eço de aplicação prática, se aí se houver de chegar. A posição prudente que temos tom ado é defender e apoiar intensamente uma cooperação cada vez mai» íntim a e uma solidariedade cada vez mais firm e, sem prejuízo das autonom ias n acio­ nais, que são ainda, tanto quanto pode ver-se no horizonte político, a form a mais simples de progresso e de defesa dos interesses das populações que agremiam. O nosso nacionalismo, construtivo sem agressividade, colaborante sem exclusivis­ mos, mas enraizado na terra e nas almas, pode bem continuar a revelar-se a m elhor 845

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 defesa contra experiências ousadas, do que infelizmente se não haveriam de avaliar os benefícios possíveis senão depois do sofridas as desvantagens reais.

Vou terminar. Falei mais do que desejava; espero não ter dito mais do que devia. Varre o mundo, a par com dificuldades de toda a ordem, um vento de inquieta­ ção e desassossego, que mina as populações e parece desconcertar os governos. Os tempos criaram não só a necessidade como a esperança de modificações profundas na estrutura social, que a economia e a política são as primeiras a reflectir. M uitos supõem não poder operá-las senão por uma revolução. O nosso voto é que todos pos­ sam empreendê-la, a essa revolução necessária, como nós a vamos fazendo - em paz. Demasiado devagar? Talvez um tanto devagar, mas repito e sublinho - em paz.

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X IX . PORTUGAL, GOA E A UNIÃO IN D IA N A (1) Certo número de factos ocorridos nos últimos dois anos chamaram para Goa a atenção do mundo; e não há dúvida de que a repercussão desses factos é despropor­ cionada à extensão dos-territórios em causa e ao seu valor económico. A pretensão da União Indiana de libertar Goa ou de integrar Goa no seu território e sob a sua sobera­ nia - o que é o mesmo - é facto da mesma natureza de muitos outros que se encon­ tram nos pródromos da última guerra e no período de instabilidade que se lhe seguiu. Anexações violentas ou fingidamente plebiscitadas, competições e disputas armadas sobre territórios, violações de fronteiras, organização de quintas-colunas e do terro­ rismo para fins políticos, transferência deliberada e fugas apocalípticas de populações em massa, desrespeito dos direitos elementares dos homens e das nações são do noti­ ciário corrente dos jornais, pelo que a sensibilidade dos povos se devia encontrar embo­ tada. Coisa curiosa! Toda esta agitação e subversão de posições, que é um estado de guerra, se passa numa atmosfera de apelos à paz, de organizações para a paz, de decla­ rações de fins pacíficos e amigáveis. Onde tais apelos são sinceros parece tratar-se de uma luta desesperada dos homens para salvar de entre as ruínas alguma coisa que se entende dever subtrair à força material — o espírito, e uma das suas criações — o direito. Goa não pode suscitar curiosidade ou simpatia senão por se lhe encontrar, política e juridicamente, um conjunto de circunstâncias e peculiaridades que fazem dela um caso talvez único. Esforçar-me-ei por as apontar a traços largos. I.

0 que em Portugal se chama o «Estado da índia» é um conjunto de territórios dispersos, alguns com acesso directo ao mar, outros encarvados na União Indiana, com a superfície total de 4 mil quilóm etros quadrados e uma população de apenas 600 mil habitantes. Os territórios constituem adm inistrativam ente uma província, composta de três distritos - Goa, Damão e Diu. Com o a capital e o distrito mais im portante se chamam Goa, muitas vezes se designa por este nome o conjunto: assim, de form a abreviada, Goa é o Estado Português da índia. Não se com preende a form ação parcelada de Goa, dispersa por uma extensão de 600 ou mais quilóm etros na costa ocidental do subcontinente indiano, sem se

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A rtig o pedido pela revista Foreign Affairs e publicado no seu núm ero de Abril de 1956.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 remontar às origens e sem ter presente a situação política na península do Indostão nos começos do século XVI. Os navegadores portugueses descobriram o caminho marítimo para a índia, fazendo o percurso pelo cabo da Boa Esperança, em 1498. Em face dos documentos coevos, pode assentar-se em que era triplo o objectivo que levara os Portugueses ao Oriente - comercial, político e religioso, este estreitamente ligado ao fim político. Desviou-se deste modo o comércio do Oriente com a Europa, feito por Suez e pelo Mediterrâneo, e traçou-se-lhe uma nova rota pelo Atlântico, fazendo de Lisboa um empório comercial. 0 facto traria a decadência às repúblicas italianas e diminuiria o poderio turco. Por outro lado, enfraquecer o poderio turco, tornando insegura a reta­ guarda no mar Vermelho e no Índico, e aliviar assim a pressão exercida na Europa, consideraram-no os Portugueses da época mais eficaz que a resistência frontal, que foi durante muitos anos a estratégia das potências do Ocidente. Por último, «fazer cristandade», missionar os povos, levar-lhes a mensagem de Cristo era como um impe­ rativo da Nação portuguesa, fielmente traduzido nas ordens emanadas dos Reis. Quando se lêem, por exemplo, as cartas de Afonso de Albuquerque (1507-1515) e de D. João de Castro (1538-1548), mais vivas por sua natureza que os depoimentos dos listoriadores, é-se empolgado pela largueza das concepções políticas, pela audácia e o mesmo tempo realismo dos planos e por essa ânsia de levar a todo o Oriente a fé, cultura, a alma ocidental. 0 empreendimento revela-se, no fundo, mais idealista que utilitário: o monopólio comercial não era, enquanto pudesse manter-se, senão a fonte indispensável dos recursos para fazer face às duas outras finalidades. A conquista de novas terras, a sujeição de novas gentes não estavam nos desíg­ nios dos Portugueses. Decerto a questão foi levada mais de uma vez aos conselhos da Coroa, e aí se debateram modos de ver divergentes; mas a linha geral da política da índia não sofreu variação de vulto a este respeito. Compreende-se que, para os fins indicados, não houvesse necessidade de mais que de ocupar em terra alguns pontos estratégicos para apoio das armadas que vigiavam os mares e garantiam a segurança das novas rotas do comércio, como se compreende também que essa base territorial se obtivesse geralmente por cedência dos pequenos reinos locais em troca de serviços prestados. Na dispersão das soberanias de tipo feudal que dividiam entre si e em cacho o Indostão, eram constantes as rivalidades e lutas entre os pequenos reinos, as dispu­ tas familiares pela sucessão do poder. Precisamente em Goa o Português foi o aliado do Hindu contra o Mouro, cujo domínio e abusos de autoridade pesavam na vida das populações, ansiosas por libertar-se do jugo daquele. Nos tratados nego­ ciados com os soberanos locais, Portugal contentava-se com a licença de erguer fortaleza e com a porção de território necessária à sua defesa; o reconhecimento, à moda do tempo, da soberania do Rei de Portugal, mediante o pagamento de um tr i­ buto simbólico, e a liberdade de prègação da fé pelos missionários. Em troca, a am i­ zade do Rei de Portugal, ou seja, a segurança dos mares e dos portos e a liberdade de comércio, garantidas pelas suas esquadras. Não havia imposições quanto à vida e às instituições locais: estas eram as existentes, sujeitas à sua evolução natural, 848

Portugal, Goa

XIX. e a União Indiana

influenciadas, como é bem de ver, pela presença do Ocidente, cristão e socialm ente mais avançado, naquelas paragens. 0 que se chamou o Império Português do Oriente foi assim um império absolu­ tam ente su i generis: um império de mar que cessaria quando nações concorrentes se apoderassem do comércio e quando enfraquecesse o poderio naval que o cana­ lizava e defendia. Pode dizer-se que terminou quando aqueles dois factores deixa­ ram de pertencer a Portugal em supremacia. Não obstante, Portugal, pioneiro dos descobrim entos e condutor de uma civilização, enraizou-se por muitos modos nos países do Oriente - da índia à Malásia, à China e ao Japão, sem apoio de uma extensa soberania territorial. E pode perguntar-se: com o se perdeu o Império do Oriente e se manteve Goa portuguesa? II. Nas pequenas faixas ou bolsas territoriais que constituíam o apoio e reserva das fortalezas e portos de comércio continuavam a viver os aborígenes, com os seus cos­ tumes, funcionários e até autoridades, mas evidentemente de mistura com número avultado de mercadores, militares, operários e mestres de construção civil e naval, oficiais de vários ofícios, representantes das ordens religiosas, numerosos missioná­ rios, idos da Europa, de passagem uns, estáveis e fixados muitos deles. A «política de casamentos» de Afonso de Albuquerque, execução da ideia de ligar gente à terra por meio de interesses permanentes e da constituição de família legítima, veio a criar pelos tempos uma população em que o sangue português generosamente se cruzara com o de elementos locais, ao mesmo tempo que o ambiente cristão, a cultura oci­ dental, a implantação de outros usos, costumes e instituições, a expansão da língua, as relações políticas com um país prestigiado da Europa ajudaram à formação e enrai­ zamento de um povo perfeitamente diferenciado dos grupos étnicos do Indostão. Estranhamente, os adversários das discrim inações raciais empenham-se às vezes em contar os homens que form am o com plexo agregado populacional que é Goa segundo a cor, a língua, a indum entária ou a religião. Ali uns são cristãos, outros hindus, outros muçulmanos. M as o que na índia Portuguesa sobretudo im porta observar é a mentalidade, as concepções da vida, o ambiente espiritual. Nenhum viajante qualificado, ao passar da União Indiana para Goa, pode subtrair-se à impressão de entrar num país perfeitam ente diferenciado. Pensa-se, sente-se, p rocede-se à europeia. Não há talvez uma fronteira geográfica ou económ ica, mas há indiscutivelm ente uma fronteira humana: Goa é a transplantação do Ocidente em terras orientais, é a expressão de Portugal na índia.

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A marcada evidência e supremacia destes factos tiveram desde longa data co n ­ sequências relevantes sob o aspecto político e do Direito. Desde o século XVI, regi­ mentos, cartas régias e instruções expedidas para o U ltram ar — e tin h a-se em mente, de modo especial, a índia - mandam gastar esforço e dinheiro no sentido de 849

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 integrar na comunidade portuguesa os diferentes povos. D. Manuel, logo em 1505, ao definir as bases da administração portuguesa na Índia, recomendava: «os cris­ tãos, em quaisquer terras onde os houver, vos encomendamos muito que favoreçais em tudo quanto bem puderdes, e os homens os façais honrar e tratar em todas as coisas, e assim mesmo os que novamente se converterem, de qualquer nação que sejam, e uns e outros sejam doutrinados e ensinados nas coisas da fé». Vale a pena citar uma informação do Conselho da índia, logo dos começos do século XVII, apresentada ao Rei sobre a importância daquele tribunal na administração portuguesa. Nela se lê: «a índia e mais terras ultramarinas de cujo governo se trata neste Conselho não são distintas nem separadas deste reino, nem ainda lhe pertencem por modo de união, mas são membros do mesmo reino, como o é o do Algarve e qualquer das províncias do Alentejo e Antre Douro e Minho (...) e assim tão português é o que nasce e vive em Goa ou no Brasil ou em Angola como o que vive e nasce em Lisboa». Várias Instruções daqui expedidas se inspiraram neste conceito, e das mesmas raízes profundas brotou a lei de 2 de Abril de 1761 - ainda os Estados Unidos não tinham alcançado a independência lei pela qual se declararam os naturais da Ásia portuguesa perfeitamente iguais perante a lei aos portugueses nascidos no reino, o jue se entendia tanto para os indianos, cristãos ou não, como para os descenden:es de europeus, como ainda para os muçulmanos. Assim se compreende que os goeses se não considerem nem apelidem em parte alguma indianos, mas «portugueses de Goa»; que cursem lá ou na M etrópole as escolas; exerçam as profissões liberais; desempenhem funções públicas, desde a burocracia à administração da justiça; exerçam comandos e cargos de autoridade; sejam magistrados, ministros e governantes ultramarinos; se representem no Par­ lamento - em perfeita igualdade com os mais portugueses e sem o menor vestígio de discriminação racial, que aliás em muitos casos não teria mesmo fundam ento. Esta a realidade sociológica, jurídica e política que a União Indiana tem diante de si nos territórios de Goa e que explica o carácter e desenvolvimento dos factos ali ocorridos. III. A União Indiana adquiriu a sua independência em 15 de Agosto de 1947, no momento em que a Inglaterra transferiu para os governos dos dois dom ínios ali formados os poderes que até então exercera. 0 processo da independência, ape­ sar das obscuridades que sob vários aspectos possam envolvê-lo, revela com n iti­ dez as duas pretensões seguintes. A primeira era dever ter a índia uma co n stitu i­ ção que comprendesse toda a Índia Britânica, isto é, as províncias adm inistradas directamente pela Grã-Bretanha e os numerosos Estados da índia governados pelos príncipes, considerados súbditos daquela. Estes Estados haveriam de incorporar-se na nova índia por adesão voluntária ou pela força, como veio a acontecer com alguns. A segunda pretensão revela-se na preferência dos chefes do Congresso pela designação de Domínio da índia - e não Domínio do Indostão, como fora sugerido

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XIX. Portugal, Goa e a União Indiana do lado britânico a dar ao novo Estado, decerto para mais fácilm ente poder ser tido com o o herdeiro legal das obrigações contratuais da india indivisa e da sua representação nas Nações Unidas e em outros organismos internacionais, de que passou a fazer parte por força da sua própria criação. Sabe-se como fracassou o desígnio de uma índia politicam ente titulada para representar todo o subcontinente e como surgiram os dois novos Estados - a União Indiana e o Paquistão (o Ceilão e a Birmânia obtiveram, separada e directam ente do Governo Britânico, a independência: Ceylon Independence A c t 1947; Burma Independence A c t 1947). M as a ideia fundam ental da unidade da Índia - expressão geográfica — e da sua representação pela União Indiana continuou a inspirar, à margem dos textos e para além do momento em que deixou de ser uma realidade política e jurídica, a acção dos governantes da União Indiana. Foi partindo deste pressuposto, velado e subentendido, que o Governo da União Indiana se dirigiu a Portugal (memorial de 27 de Fevereiro de 1950) a pedir a aber­ tura de negociações em ordem à transferência de Goa para a soberania da União Indiana. 0 Governo português recusou negociar a cedência dos territórios e das populações do seu Estado da índia, com o fundam ento constitucional de que os ter­ ritórios de Goa, Damão e Diu faziam parte integrante da Nação portuguesa e de que o Estado não podia alienar por nenhum modo qualquer parte do território nacional ou dos direitos de soberania que sobre ele exerce (Constituição, artigo 2.°). Era isto a contrapartida do processo de integração que se desenvolvera e afinara durante 450 anos de vida comum. 0 texto constitucional não representa, afinal, mais que a expressão da im possibilidade política de um Estado se am putar voluntàriam ente, como se não constituísse uma unidade moral. Por outro lado, adm itir as negociações era, independentemente da falta de fu n ­ damento da petição, aceitar com o legítima a representação da índia pela União Indiana. Este aspecto do problema é da maior gravidade, porque, conferindo-se à União Indiana a representação política da expressão geográfica índia, m ina-se a base da existência independente do Paquistão, quando não do Ceilão e da Birmânia, pois todos estes Estados poderiam ser tidos como ilegitim am ente incrustados em território da União. Os perigos de tal conceito não lhes escapam por certo, dado que a sua independência passaria a ter aos olhos da União Indiana a precariedade e a ilegitim idade de que a União acusa Portugal quanto ao seu Estado da índia. E assim nasceu o chamado caso de Goa. Esgotado o processo diplom ático, a questão passou a revestir outros aspectos, todos conducentes a exercer uma pressão externa que obrigasse Portugal a aceder a negociações para a entrega de Goa ou a criar a Goa condições incom portáveis de vida, para que por si se entregasse. IV. 0 caso de Goa é um artifício: não existiu evidentemente durante a dom inação inglesa; não existiu mesmo durante o longo período que vem desde 1885, em que o 851

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 Congresso Nacional da índia votou o governo autónomo como sua principal aspira­ ção. Goa não só passava, pela sua pequenez, despercebida no mesmo subcontinente, como gozava já de mais prerrogativas dentro da Nação portuguesa do que os india­ nos para si exigiam da Grã-Bretanha. Seria incompreensível associar ou associarem-se os goeses a uma acção política que traduziria em relação a Portugal um retro­ cesso, em relação à Inglaterra um contra-senso. 0 caso de Goa, uma questão de Goa, não podia existir: só pôde brotar no espírito de alguns quando o delírio de uma inde­ pendência ambicionada, e mais querida porque longamente duvidosa em se obter, criou a falsa ideia da unidade da índia e do seu possível alargamento territorial, à custa das soberanias preexistentes. Levou tempo e foi necessária uma persistente campanha de excitação para que a reivindicação se estendesse do restrito meio em que se gerara a esferas mais vas­ tas, nas quais a imprensa pôde fácilmente actuar. Os goeses continuaram -lhe estra­ nhos, e equivocar-nos-íamos pensando que, mesmo na União Indiana, os territórios da índia Portuguesa são uma reivindicação consciente e profunda dos povos. Estes, como o escol fora do mundo político, não vêem na questão elementos que interes­ sem. Além-fronteiras, apesar dos esforços desenvolvidos para acreditar e fazer percilhar as suas reivindicações, a União Indiana não conseguiu criar nos espíritos indeendentes uma atmosfera de apoio, de simpatia, nem mesmo de compreensão - e anto quando defende o seu direito a Goa como quando recusa a Portugal o direito de estar com Goa na índia. As posições oficiais da União Indiana, ao defender o seu direito a Goa, têm variado em harmonia com as circunstâncias, o esclarecimento dos problemas e as teses que foram sucessivamente sustentadas. Não para as discutir, mas para as classificar, citarei as mais salientes: -

Goa é uma questão de política interna da União: tese que parece abandonada; Goa é, para a União Indiana, uma questão de política externa e com sérias im pli­ cações internacionais (alusão aos Tratados de aliança anglo-lusos e ao Tratado do Atlântico Norte); - Goa é uma questão interna dos goeses, que devem ser postos em situação de escolher o seu destino, em virtude do princípio da autodeterminação dos povos: ficarem independentes ou integrarem-se na União Indiana, únicas alternativas possíveis, porque, mesmo que o queiram e o votem, a União não tolerará que continue Goa ligada a Portugal, como foi oficialmente declarado. É evidente, aliás, que o alcance da primeira resposta seria igual ao da segunda, porque, des­ prendida de Portugal, Goa não teria possibilidades de vida independente nem for­ ças de resistência que lhe permitissem subtrair-se à absorção pela União Indiana. Acrescentarei, ainda, que a tese é apresentada no terreno das abstracções e fora do âmbito das possibilidades reais, porque, quanto a plebiscitos, sabe-se que a União Indiana denunciou o que havia contratualmente ajustado com a França e não lhe tem sido possível executar aquele a que se obrigou com o Paquistão. 852

XIX. Portugal, Goa e a União Indiana M as o problema tem sido posto também a esta outra luz: não ter Portugal direito a estar em Goa. A tese filia -se na acusação de colonialism o que o caso de Goa — restos de um im pério colonial — representaria. Sabe-se com o m uitos países são sensíveis à acu­ sação e com o na Ásia sobretudo, onde na última década surgiram da base colonial grandes estados independentes, o anticolonialism o é ainda um sentim ento vivo que pode dar alguma coesão aos povos, enquanto se não desenvolvem neles fa c ­ tores positivos de união e solidariedade. Compreende-se o estado de espírito des­ ses países, mas não pode desistir-se de fazer examinar para cada caso a le gitim i­ dade das acusações. 0 colonialism o é um regime económ ico e político susceptível de exame objectivo. Passa-se na ordem real; pode dizer-se que é redutível a números, a factos concretos, a estatutos legais. Tem-se adm itido que subentende um poder soberano, estranho ao território submetido, uma exploração económica em benefício maior ou menor do colonizador, uma vantagem política ou militar, uma distinção entre cidadãos e súbditos, com sua diferenciação de direitos, e sobretudo a inexistência de direitos políticos dos povos coloniais e a impossibilidade de interferência nos negócios m etropolitanos. Mas não há só vantagens, sem a contrapartida de gastos e sacrifícios. Certamente que o país colonizador, quando consciente da sua missão, assegura a paz, responde pela ordem, organiza a vida, fom enta a economia, investe capitais, educa as populações, eleva-lhes o nível de vida e, com o se tem visto, torna-as mesmo dignas da independência e da liberdade. Pode perguntar-se se por outras vias se chegaria mais rapidamente ao mesmo fim. Os elementos referidos acima permitem responder à pergunta — se Goa é ou não um caso de colonialism o. Financeiramente, Goa foi sempre um encargo para o Tesouro m etropolitano, e quase desde o princípio considerada por m uitos uma ruína para Portugal. Parece que através dos séculos se havia de confirm ar o que D. João de Castro escrevia em carta de 1540: nas fortalezas e castelos consum iam -se as rendas da índia e «quanta fazenda vinha de Portugal». A situação não se m odificou nos tempos de hoje, nos quais Goa consome as suas receitas próprias e largos subsídios da M etrópole (não contando com as despesas extraordinárias que a sua defesa em face da União Indiana tem últim am ente obrigado a fazer). Economicamente, não são as gentes nem o capital m etropolitano que exploram Goa, nem a seu respeito existem privilégios especiais. Quanto ao com ércio, tem sido mesmo modesta, devido à distância, a parte da M etrópole na im portação e na exportação do Estado da índia. Juridicam ente, não há distinção entre os portugueses de Goa e os portugueses do continente europeu, das ilhas adjacentes e do restante ultramar. Os goeses gozam de todos os direitos, ascendem a todos os lugares, desempenham todas as funções, fazem a sua vida por todo o território português. Politicamente, não só à face da Constituição Goa é parte integrante da Nação por­ tuguesa e constitui uma das suas províncias, dotada de autonomia administrativa e 853

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 financeira, como os goeses participam na formação dos órgãos centrais da soberania e deles fazem parte, em igualdade de condições com todos os mais portugueses. 0 caso é este e é na verdade estranho. Ele é mesmo dificilmente compreensível, dada a feição corrente da expansão colonial no mundo e em face das noções u tili­ tarias e materialistas que por muita parte dominam a acção política. Os povos têm cada um o seu carácter e não reagem todos da mesma forma. O por­ tugués revelou-se sempre na tendencia para a criação de uma pátria moralmente una, com os territórios e as populações que foram sendo incorporados em a Nação; não viu óbice a esse desiderato na diferenciação das raças ou das religiões nem na dispersão das terras. Inclinação de espírito? Afectividade do coração? Fraternidade humana? A verdade é que esses povos têm demonstrado através da história a sua viva solidarie­ dade com Portugal como os ramos de uma árvore com o tronco e as raízes. No período em que Portugal esteve sob a dominação espanhola (1580-1640), a resistência no Oriente contra holandeses e ingleses foi sustentada quase só pelo Estado da índia com os seus recursos e a sua gente, não com os deficientes apoios recebidos do reino. A luta no Brasil contra os holandeses, não falando na restauração de S. Tomé e Angola, foi obra dos colonos brasileiros, mais que das forças oriundas da Mãe-Pátria. Assim se afirmava e consolidava o espírito de uma comunidade. São factos que origi­ nam problemas, neste sentido de que criam deveres. 0 Governo português tem repe­ tidamente afirmado que o problema de Goa é sobretudo um caso moral. V. Parece dever deduzir-se do exposto a impossibilidade moral e jurídica de o Governo português negociar a entrega de Goa, e consequentemente o seu dever e disposição de defendê-la dentro dos limites das suas forças. Está verificado tam ­ bém que os goeses não desejam ser libertados da soberania portuguesa, por senti­ mento patriótico em primeiro lugar, pela bem ponderada razão do seu interesse, depois. E estas atitudes criaram à União Indiana certo número de dificuldades. A política externa da União é inspirada em confessado pacifismo, por motivos ide­ ológicos e pelas circunstâncias da sua vida interna. No Tratado com a China, conhe­ cido por Tratado do Tibete, ficaram definidos pelos dois países os princípios funda­ mentais que, no modo de ver de uma e outra potência, devem reger a vida internacional e garantir a paz entre as nações: mútuo respeito pela integridade terri­ torial e pela soberania; não agressão; não interferência nos negócios internos da outra parte; igualdade e benefícios recíprocos; coexistência pacífica. São estas normas ape­ nas uma versão das que inspiram a Carta das Nações Unidas, de que a União Indiana faz parte, mas esta prefere, a outras fórmulas, os seus próprios princípios, que suces­ sivamente tem procurado fazer perfilhar pelos países que lhe são mais afins. Ora, não estando Portugal disposto a coonestar, com actos hostis, agressões da União Indiana, uma acção militar, ou simplesmente uma «acção policial», da parte da União contra Goa seria a negação das bases morais da sua posição e o descré­ dito da sua política. De modo que o Governo da União se tem empenhado em 854

XIX. Portugal, Goa e a União Indiana esforço desesperado para conseguir por outros meios a entrega de Goa, mas sem resultado dentro da sua política de paz, porque, mesmo dando ao pacifism o inter­ pretação m uito lata, os seus actos ou os actos dos seus agentes ou das populações por eles industriadas redundam sempre na negação de um ou outro dos princípios do Tratado do Tibete e da Carta das Nações Unidas. Não vale a pena referir aqui esses actos, proclamados pela União como p a cífi­ cos, tidos comummente como actos de agressão a Goa e aos goeses. Lisboa tem feito publicar a lista dos actos mais gravemente lesivos dos direitos e da soberania portuguesa praticados nos últim os dois anos sobretudo; supõe-se que sejam conhe­ cidos de todos. Aliás, salvo as repetidas invasões de satiagrais, que são caso típico da índia e transplantação para Goa de processo muito seguido naquelas regiões de reagir contra a autoridade, no mais não se tem encontrado novidade de maior, nem na linguagem, nem nos actos, nem nos métodos adoptados. A longa história das más vizinhanças e das campanhas levadas pelos fortes contra os fracos de que ambicionam territórios documenta exuberantemente este processo: pouco já se poderá inventar. A todos estes actos o Governo português não tem respondido com o menor acto de retaliação, mesmo onde essa retaliação seria particularm ente dolorosa para a União Indiana; lim ita-se dentro do seu território a organizar a defesa e a contraba­ t ir os efeitos das piores providências tomadas pela União Indiana contra as pessoas, os bens, os interesses dos goeses. Neste momento a esperança da União está em que as medidas tomadas acabem por esgotar Goa e a forcem a entregar-se; a posi­ ção de Portugal é fazer os sacrifícios necessários, sem exceder as suas possibilida­ des normais, para que a situação possa ser indefinidam ente mantida. V I. O cupou-nos até aqui o caso de Goa, com o co n flito que opõe, sobre um te rritó ­ rio restrito, a União Indiana e Portugal. M as os aspectos considerados, aliás com toda a objectividade, não são mais que um primeiro plano em que se desenvolve esta, com o m uitas outras questões da Ásia. Por detrás da pretensão da União Indiana há o pano de fundo de toda a questão asiática em face da Europa e, dentro em pouco, o seu alastram ento ao continente africano. A Europa dom inou econom icam ente e em parte politicam ente a Ásia durante os últim os séculos. Que o tenha feito em seu proveito exclusivo não é possível afirm á-lo com razão; seja com o for, uma reacção de fundo nacionalista, mas ope­ rando na extensão do continente asiático, considerado com o um todo solidário, form ou-se, desenvolveu-se e está pondo fim, nos nossos dias, a um período h istó­ rico em que a condução dos negócios da Ásia foi chefiada pela Europa. 0 processo continua; o Japão perdeu a chefia do movimento, mas este prossegue. 0 objectivo a atingir é a independência dos povos e a sua constituição em Estados livres de ingerência europeia; o sentim ento-base é contra o regime colonial extin to e por extensão contra o branco que o simboliza. Estas reacções não usam m anter a justa 855

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 medida; irão além dos limites que aos homens reflectidos se afigura imprudente ultrapassar. Daqui estão nascendo complicações graves. A primeira é esta: o Oriente não conta no seu seio apenas sociedades ou Estados de exclusiva formação asiática; fazem parte dele, mas de raiz ou form ação europeia, as sociedades que formam a Austrália, a Nova Zelândia, as Filipinas, para só citar as principais, porque Goa também aqui caberia. Essa reacção antiocidental, esse ódio à Europa e de modo geral ao Ocidente, infundamentado que seja, destinge assim em desconfianças sobre alguns daqueles povos. Em qualquer caso, completa solidarie­ dade alicerçada naquele sentimento negativo não é possível estabelecê-la. Os Estados em começo de vida independente não podem oferecer para já a coe­ são ou unidade interna de velhas nações. A sua constituição heterogénea e os des­ níveis de civilização das respectivas populações são por ora uma causa de fra g ili­ dade e fonte de dificuldades internas. As superfícies enormes, as muitas dezenas ou centenas de milhões por que se contam os povos respectivos são seguramente base para grandes potências, mas a força não pode ser ainda proporcional à dimensão das terras e das gentes. Este .estado de coisas cria inibições e receios que são reais, embora infundados em relação a um possível retorno do Ocidente, porque a H istó­ ria não se desfaz nem se refaz, mas nas relações entre os povos o medo funciona oor vezes como o ódio. Nestes termos, enfraquecer por todos os modos o Ocidente ifigura-se à Ásia que é aumentar a força própria. 0 passado colonial destes países não foi suficiente para a organização racional e metódica exploração de todas as suas enormes riquezas potenciais. Abundantes capitais, densidade técnica lhes são indispensáveis, e, para economizar o tem po necessário à formação interna de uns e da outra (tanto mais que o desenvolvimento demográfico é de aterrar os governantes), haveria que recorrer às nações que ainda hoje mantêm a superioridade capitalista e industrial. Mas as garantias obviamente necessárias fazem recear àqueles países que, através de estreita colaboração eco­ nómica, se abram de novo as portas à dominação política. E neste ambiente desenvolvem-se como miasmas os estribilhos das propagandas malsãs. A Rússia, que a restante Ásia teme (talvez por ter presente o colonialism o por ela praticado nos vastos territórios da Ásia Central), oferece-se para ajudar à libertação dos outros povos e chefia a luta contra o imperialismo capitalista, fazendo-se sócio forçado dos que precisariam desse capitalismo para viver. Estes sintomas podem desaparecer, e decerto desaparecerão com o tempo, che­ gando-se a uma colaboração internacional normal, se não intervier um facto r de carácter regressivo. A Ásia foi sempre o mundo das civilizações herméticas. Abrir o continente asiático aos grandes contactos com o Ocidente é tido sobretudo com o violação da vontade dos seus povos: estes são levados a julgar que as vantagens não compensaram os inconvenientes. Houve, é certo, interpenetração de culturas, mais extensa e profunda nuns casos que noutros, mas certos princípios da form ação social e da cultura daqueles povos continuaram, a bem dizer, intactos. O problema é saber: a sós consigo como reagirão perante os grandes problemas da vida? E como organizarão em definitivo a sua própria vida? 856

Portugal, Goa

XIX. e a União Indiana

As camadas dirigentes são de formação europeia, pensam à europeia, importaram instituições europeias na generalidade dos Estados, e estes também se encontram filiados e colaboram nas organizações de âmbito mundial. Por seu lado, o mundo avança no sentido da uniformidade em grandes sectores, ao menos naqueles que se lhe abrem; mas a dificuldade está aí - na possibilidade de um regresso de elementos ancestrais que façam quebrar a ligeira camada que, apesar de tudo, ainda represen­ tam as instituições assimiladas do Ocidente. Põe-se a questão, não se lhe dá resposta. Quase por inteiro liquidadas as posições europeias na Ásia, eis que os novos Esta­ dos se aprestam a incitar um movimento subversivo em toda a África, indiscrim ina­ damente, como se as condições fossem idênticas entre si nas diversas regiões africa­ nas e semelhantes às dos povos asiáticos que obtiveram a independência. A União Indiana chefia ostensivamente o movimento desde Bandung. À parte os quatro ou cinco Estados independentes que se situam em África e a faixa mediterrânea deste continente, a apressar no momento a sua evolução para o regime de governos autónom os ou Estados independentes associados, pode dizer-se que a restante África está e deve, por espaço de tempo imprevisível, continuar a viver sob o dom ínio e a direcção de um Estado civilizado. Não obstante as experi­ ências políticas que a Grã Bretanha tem mais recentemente prom ovido em regiões aliás limitadas, as maiores manchas de África são territórios de dependência euro­ peia sem condições para constituírem nações independentes e de base democrática, como hoje se diz. A adm inistração pública e a direcção do trabalho pertencem, como não tem podido deixar de ser, a reduzidas m inorias de europeus. Estas m is­ sões não podem ser abandonadas nem entregues em globo e sem discrim inação aos elementos autóctones. Concebem -se ali transferências de soberania; não se co n ­ cebe o seu abandono. Está aqui a essência do problema. 0 anticolonialismo asiático pretende, acima de tudo e para já, chamar a si a simpa­ tia e solidariedade dos povos muçulmanos empenhados em soluções determinadas de casos concretos; mas esse mesmo anticolonialismo, ao apresentar-se em termos da maior amplitude, não pode desconhecer aquele estado de coisas nem ter dúvidas sobre a impossibilidade de constituir em muitos ou poucos estados independentes as socie­ dades africanas de cor. Sobretudo a União Indiana conhece bem as situações, embora se equivoque ao supor-se interessada em que se precipitem naquele sentido. Toda a costa oriental de África, incluindo Madagáscar, e a Á frica do Sul co n sti­ tuem territórios de im portante im igração e fixação indiana. Um país a braços com uma população m uito densa, com o a União, parece dever ter interesse nesta deri­ vação pacífica de elementos populacionais seus que haviam de co nstitu ir fontes de rendimento próprio e agentes do progresso local. Para tanto seria, porém, essencial que não pretendesse fazer derivar da estabilidade desses elementos dem ográficos situações em colisão com os direitos ou interesses da potência soberana, nem se propusesse substituir-se ao europeu, mas colaborar confiantem ente com ele. Quer dizer: a emigração da União não devia revestir-se de finalidade política, com o apa­ renta ter. Esta já aqui ou além ameaça provocar uma crise que afectará grande-

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 mente o fenómeno; e toda a subversão que tenda à expulsão do branco é duvidoso respeite as pretensões atribuídas ao indiano. Quando, pois, a Rússia apoia a Ásia a expulsar da África os europeus, sabe que enfraquece irremediavelmente a Europa e anula no mesmo passo porventura as ambições expansionistas da União Indiana. Pode ser que nem todos os que gritam o seu anticolonialismo tenham a consci­ ência do que isso representa em África, quando posto em acção. A Europa, e em geral o Ocidente, não podem ser absolvidos de ignorá-lo. V II. Regressando a Goa. Se este caso de Goa tem de terminar, ao menos com o crise aguda e origem de conflito entre Portugal e a União Indiana, parece não se pode­ rem prever mais que três saídas — uma violenta, duas essencialmente pacíficas. A decisão violenta será a integração pela força, levada a cabo pela União Indiana, ou seja, a União Indiana fazer guerra a Portugal em Goa. Não se duvida de que tenha meios suficientes para se apoderar dos territórios contra a resistência que as forças portuguesas possam ali oferecer. Dada a evidência deste desfecho e o redu­ zido valor, territorial e económico, da província no todo português, muitos se interogam por que iria Portugal resistir. A razão é que tem o dever moral de fazê-lo. Aquele que não defende o seu direito, já desistiu dele a favor de quem pretende tomar-lho, e no íntimo confessa que duvida da sua legitimidade. Uma solução pacífica é a União Indiana desconhecer Goa. É solução antinatural, porque os territórios são vizinhos, as populações afins, os negócios e interesses recí­ procos ou entrecruzados; mas é uma saída possível, embora com violação da Carta das Nações Unidas, por não haver boa vizinhança onde se começa por ignorar a exis­ tência do vizinho. Mas, à parte isto, para a União Indiana não há problema em que os territórios de Goa desapareçam das suas preocupações, como desapareceriam da vida, se um grande cataclismo os houvesse subvertido. Desapareceria o comércio, a navegação, o trânsito, a emigração, as transferências: mas é concebível e possível a situação resultante deste desconhecimento, desta inexistência política de um pequeno vizinho. É evidente que não poderia haver mais assaltos, invasões, terrorismo organi­ zado, ataques de imprensa, marchas, comícios agressivos. Pura e simplesmente Goa não existia: algumas consequências, como as resultantes de viverem dezenas de milhares de emigrantes goeses na União Indiana, teriam de ser enfrentadas. A terceira e única verdadeira solução do problema, na parte em que o problema pode ser resolvido entre dois Estados responsáveis, è uma negociação aberta sobre todos aqueles pontos em que a vizinhança e o contacto constituem riscos ou podem criar atritos ou dificuldades. 0 Governo português tem enunciado alguns; ao Governo da União podem interessar outros. E, sem outro pensamento recíproco que «viver e dei­ xar viver», havia de ser possível encontrar fórmulas de pacífica, senão amigável, convi­ vência, pontos de convergência dos interesses, solução para divergências existentes ou possíveis. Creio que é só por este caminho que a União Indiana pode verdadeiramente engrandecer-se, consolidar-se e acreditar a sua apregoada política de paz. 858

XX APONTAMENTO SOBRE A SITUAÇÃO INTERNACIONAL (1) M eus Senhores: As palavras que se me pedem são para servir de abertura ao IV Congresso da União Nacional, mas não sei se podem constituir para ele introdução apropriada. 0 Congresso tem de fazer, com o balanço da obra de nossa responsabilidade, a crítica das soluções o das deficiências; julgar da adequação dos princípios à resolu­ ção dos problemas que os portugueses enfrentam como sociedade política e com o Estado; rasgar, se quiser, novos horizontes à acção e futuro da grei. Nenhuma des­ tas missões me cabe a mim hoje, mas coisa muito diversa e situada em muito dife­ rente plano. Dada a atmosfera de grave perturbação em que se vive - revolto o mundo, minados os alicerces da civilização, perplexos ou desorientados os defensores da cidade - perguntaram -m e alguns se não seriam de considerar, até com o base das nossas reflexões e atitudes políticas, os riscos que daí podem advir-nos; ou, por outras palavras, se não mereceriam exame, no meio da confusão actual, as razões da nossa confiança no futuro da Nação portuguesa. Há-de parecer estranho, senão ousado, o assunto. Para o tratar conveniente­ mente seria necessário o confronto dos acontecim entos e dos sistemas que se dis­ putam a inteligência dos homens e a direcção da vida dos povos: e eu não me sinto habilitado a ir além de ligeiro apontam ento de factos e problemas do m om ento internacional, sem me com prom eter em soluções, salvo as que nos interessam direc­ tamente. As outras cabem às grandes potências que conduzem o mundo e, pelo cam inho que seguimos, lhe podem com prom eter os destinos.

I. A situação mundial pode talvez definir-se a grandes traços da form a seguinte: Na Europa a política de guerra do Ocidente tornou possíveis à Rússia engrande­ cim entos territoriais importantes, e a imposição do regime com unista a num erosos Estados, que ficaram a constituir, sob a direcção daquela, uma zona de segurança e de reserva económica e militar.

01 Discurso pronunciado na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 30 de M aio de 1956, na sessão de abertura do IV Congresso da União Nacional.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 Na Ásia numerosas nações - tornadas independentes umas, afastadas outras de qualquer influência europeia - afirmam com vigor a sua presença na sociedade internacional, no geral ainda fundamente ressentidas e eivadas de ódios à civ iliza ­ ção do Ocidente e ao branco, que foi dela o generoso portador. Do M édio e Pró­ ximo Oriente às margens atlânticas, por toda a corda do Norte de África, proces­ sam-se novas independências e parece ensaiar-se, ainda hesitante, uma com unidade pan-árabe ou pan-islâmica a definir, conforme as circunstâncias. Assim a restante África começa a agitar-se e a arder ao fogo de m ovim entos que, não podendo ser nacionalistas e muito dificilmente ideológicos, se apresenta­ rão como rácicos, numa larga acepção do termo, aprestando-se, com o na Ásia, a negar ao branco todo o esforço civilizador e os direitos dele decorrentes. Em contraposição, a América, à parte sobressaltos de política interna, apre­ senta-se de fronteiras estabilizadas, amante da paz e dotada de espírito de co la ­ boração especialmente no sistema interamericano. Neste sistema elementos desagregadores, impulsionados de fora, não conseguiram ainda efeitos relevantes, devido sobretudo à estrutura moral dos países, que todos devem à Europa as bases da sua formação. Assim está o mundo. Enquanto a China, quase em silêncio, à parte a intervenção militar na Coreia e no ibete, tenta a sua revolução comunista, para em seguida se impor ao menos ao sul e ao sudeste da Ásia; enquanto o Japão, duramente tocado pela guerra, se recompõe das perdas sofridas no seu território e importância política e tacteia o cam inho entre os novos valores asiáticos; enquanto a União Indiana procura através da sedução do seu neutralismo assegurar-se um dos primeiros lugares de direcção, e as nações recém-chegadas à independência se organizam e consolidam nela — o ponto nevrál­ gico da política do mundo continua a situar-se na Europa: não só porque pela força e riqueza próprias tem tradicionalmente dirigido os destinos mundiais, com o porque nela floresceu e tem estado ameaçada a única civilização universal que a Europa e as nações americanas representam e parece terem obrigação de defender solidáriamente. Europa e América são para este efeito o Ocidente, e os seus problemas por aquelas razões problemas que ainda têm alcance universal. E quais são, em face dos movimentos ideológicos e subversivos enunciados e da nova estruturação do mundo, quais são os princípios norteadores do Ocidente? Não me atrevo a dizer que o Ocidente não disponha de uma doutrina básica - ao menos os princípios essenciais da sua civilização comum. Mas a acção política e económica, as declarações dos dirigentes, as manifestações da opinião, todos sentimos provirem de atitudes mentais ou emotivas cujo acerto - ouso humildemente dizê-lo — não é comprovado pela razão e possivelmente o não será pelos eventos futuros. Poderei chamar-lhes princípios fundamentais, ideias mestras? São talvez antes estribilhos ou slogans, trespassados dos jogos da política interna para a direcção internacional, e em tal imprecisão de conceitos e justaposição de planos, sem hoje nem amanhã, que chegam a perturbar os espíritos mais serenos ou esclarecidos. Exemplificarei, citando apenas o anticolonialismo e o direito de autodeterminação dos povos; as deficiências 86 0

XX. Apontamento sobre a Situação Internacional económicas origem do comunismo; a integração europeia; o remédio universal das Nações Unidas para solução dos conflitos internacionais. Teremos ocasião de topar um ou outro no nosso caminho e de verificar onde apenas foram excessivas as espe­ ranças e onde terá havido mesmo erros de concepção. M as regressemos à Europa e ao seu drama dos últim os anos — o co n flito Leste-Oeste e suas diversas implicações: a divisão da Alemanha, os povos sem ilivres para além da cortina, as fronteiras não fixadas, a paz por estabelecer, países segre­ gados da sua vida normal de relações - são questões que nem a Rússia está co n ­ vencida se tenham estabilizado ou hajam recebido solução conveniente. A Rússia engrandeceu-se, tornou-se mais poderosa. Mas os problemas resultan­ tes do engrandecim ento em território, da ascensão a grande potência industrial, das consequências de um esforço de guerra vitorioso, da força expansionista de um grande império que aproveita inteligentemente a sua hora, com plicaram -se com o facto de a Rússia se ter constituído em pátria do comunismo e activo factor de uma revolução mundial, que teria com o ponto de apoio em cada nação os partidos comunistas. É certo fazer a Rússia parte desde o com eço das Nações Unidas, mas, não parecendo os seus propósitos e política consentâneos com o espírito e os pro­ cessos da instituição, nem eficientem ente lim itados pelos preceitos da Carta, houve que organizar, com um pouco mais de realismo que de costume, um sistema defen­ sivo a Ocidente para entravar o m ovim ento de Leste. Isto se conseguiu porque ao esforço de quase todos os países da Europa livre se juntaram , m ultiplicando-o, o Canadá e os Estados Unidos da América. Acontece agora que uma série de declarações, atitudes e providências se desdo­ bram do lado russo ante o Ocidente, a denunciar mudanças de que não se conhece o alcance nem sabem por ora prever-se as consequências. 0 que se passou no últim o Congresso Comunista de M oscovo, as visitas diplom áticas que o antecede­ ram e se lhe seguiram, a extinção do Kominform, órgão de coordenação da acção com unista no exterior, o emprego de outras modalidades de influência, com o a acção económ ica, m odificaram o plano em que a política ocidental estava sendo conduzida e parecem exigir reajustamento de posições. M as para se determ inar em que sentido preciso, seria necessário com preender o alcance das novas tácticas. Tenho seguido as diversas interpretações e também as construções que aqui e além se têm arquitectado sobre os dados recentes. São tão numerosas que não parece haver inconveniente em arriscar mais uma. Penso que o conjunto de eventos à volta da Rússia e do com unism o partem da verificação de duas realidades: uma, perda de virulência da revolução com unista na Rússia; outra, impotência revolucionária dos partidos comunistas dos diferentes paí­ ses, na altura em que uma guerra ideológica, desencadeada pela Rússia, se tornou claramente impossível a Ocidente. Se não estou equivocado, há m uito que a Rússia operara o máximo de destruição e negação que podia fazer e que um m ovim ento de retorno a fórm ulas mais harmónicas com a experiência e com a natureza das coisas se processa no território e nas instituições. Uma revolução, mesmo quando realiza, 861

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 não pode manter indefinidamente nem a força inicial nem a violência com que eclo­ diu. Mas isto nada tem que ver com o reforço da potência militar, o desenvolvimento da capacidade industrial, a consolidação da força política no interior ou no exterior. Isto só tem que ver com as instituições em que o comunismo se revelou antinatural e tinha mais hoje mais amanhã de ceder diante de outras forças que são as próprias exigências da vida individual ou colectiva. A pequena projecção dos partidos comunistas nos países do Norte e a estabiliza­ ção das forças dirigidas por esses partidos nos grandes países do Centro e Sul da Europa devem ter levado ao reconhecimento da sua esterilidade política e a pensar numa fórmula que lhes permitisse alguma acção. Se a filiação russa e a obediência a Moscovo nitidamente os impossibilitaram de crescer, por incompatíveis com as forças nacionais, a extinção, aliás aparente, dessa obediência poderia favorecê-los. Tornados nacionais os partidos comunistas, seria porventura mais aceitável a sua entrada no jogo normal da vida partidária e mais fácil o seu acesso ao governo dos povos. Das muitas afirmações que se atribuíram aos altos dirigentes russos nos últim os tempos são para nós de fixar duas: a possibilidade de nalguns países o com unism o se instalar no poder pela via democrática; e, mesmo instalada por via democrática, a revolução ser... a revolução. Compreende-se a dificuldade, a impossibilidade de jm alto dirigente russo afirmar o contrário sem quebrar o entusiasmo ou desiludir \s esperanças do comunismo internacional. Nós somos porém obrigados a dar àquelas asserções o significado duma estratégia a desenvolver-se em três fases. Primeira fase: os partidos comunistas devem aliar-se com outras forças políticas mais ou menos afins ou mesmo com afinidades transitórias ou superficiais para conseguirem participação no poder. Segunda: os partidos comunistas e os gover­ nantes do partido ocuparão as posições e desenvolverão o esforço requerido para converter a actual minoria em maioria democrática. Terceira fase: instalados no poder, farão a revolução comunista, tão autêntica, tão completa e brutal com o se o comunismo não houvesse ainda sido ensaiado no mundo. A experiência alheia não tem grande utilidade prática; cada povo, cada movimento pretende, contra todos os ensinamentos da razão e da história, fazer a sua experiência. E «a revolu­ ção é... a revolução». A nova táctica criou problemas que não podemos considerar despiciendos. 0 reconhecimento da impossibilidade de uma luta entre os blocos que se opõem e o abandono espectacular da guerra para extensão revolucionária com unista podem produzir só por si benefícios reais. A diminuição da tensão internacional, uma atmosfera de compreensão e boa vontade, a coexistência pacífica, se não for possível mais, tudo será de utilidade para os povos, cansados de lutas e de ódios e sobrecarregados à conta desses ódios nas respectivas economias. Se não nos dei­ xamos embalar pelo optimismo de alguns, é porque infelizmente esta política não é isenta de dificuldades nem desprovida de riscos. A coexistência pacífica importa o abandono das propagandas hostis, a não intervenção na vida interna dos Estados, o respeito das convenções, inteira recipro862

XX. Apontamento sobre a Situação Internacional cidade nas concessões e nas facilidades, a garantia dos direitos, o abandono dos propósitos de domínio, a colaboração no que seja interesse comum ou geral. Ora tudo isto que é corrente a oeste exige, com a total inversão das atitudes soviéticas, um grau de boa fé recíproca e de crédito que a Rússia terá penosamente de recon­ quistar. Esta a grande dificuldade sem cuja remoção a coexistência se converteria em logro para o Ocidente. E há também perigos. Se desta melhoria por que, aliás, todos ansiamos resul­ tasse uma espécie de am olecim ento ou conform ism o com os acontecimentos, quando do outro lado haverá sempre uma política activa e de fins determinados; se do conjunto das circunstâncias criadas resultasse o desaparecimento, antes de tempo, ou a impossibilidade de manter-se a única barreira que, apesar das suas lim i­ tações, incoerências e fraqueza, se conseguiu erguer em face da expansão sovié­ tica, não poderiamos estar seguros de ter progredido no cam inho da paz ou da defesa da civilização. Foram estas mesmas reflexões que me levaram há anos a concluir pela vanta­ gem da coexistência pacífica com a Rússia — Estado ou Nação — e pela necessidade de prosseguir a luta interna contra o comunismo - ideologia ou partido. A primeira conclusão é evidente; a segunda procede de que a ideia dos partidos com unistas nacionais não foi concebida para os exterm inar mas para marcar o novo cam inho por que poderão chegar ao poder e realizar a revolução. E aqui se suscita um probrema: estão as democracias em estado de defender-se? Todos temos ouvido que a democracia é a melhor defesa contra a ditadura — o que não está bem demonstrado - e os partidos socialistas a melhor arma contra o com u­ nismo. É certo que alguns países nórdicos, de política pronunciadamente socialista, quase não conhecem o comunismo; mas no continente europeu não se verifica que os partidos socialistas tenham impedido o comunismo de se enraizar e progredir até ao ponto de mobilizarem im portantes fracções do corpo eleitoral. Se a Rússia joga com os princípios democráticos propugnados a oeste, toma uma posição contra a qual dentro dos mesmos princípios parece difícil lutar. - Permitam-me que não insista, pela delicadeza que tem para alguns a questão e porque a dificuldade não se entende connosco: é porém claro que um problema internacional põe aqui a nu a precariedade de certos princípios políticos. E passemos a outro capítulo. II. A independência dos países norte-africanos só não constitui grave problema europeu na medida em que seja possível assegurar a sua estreita colaboração com a Europa. Esta não pôde nunca julgar-se segura nem efectivam ente o esteve senão quando a extensa frente afro-m editerrânea se podia considerar, sob qualquer forma, amiga ou aliada. A Grécia, a Itália, a França e a Espanha, nós próprios não podemos ter inim igos ali. E se a actual crise levanta sérias dificuldades e penosíssimos atritos, ninguém entende que não sejam transitórios: solução defin itiva só

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 pode ser a resultante da própria necessidade de conviver e de colaborar. Os inte­ resses criados, as relações estabelecidas, as deficiências ou atrasos que haja ainda que vencer, as consequentes necessidades de apoio traçam uma linha de solução. Se outra vingasse é que se haviam perdido de vista os interesses dos povos e um vento de paixões malsãs impelia estes países para a aventura. É o problema de África que em parte se joga ali. Não nos temos cansado de dizer que a África é complemento natural da Europa, necessário à sua vida, à sua defesa, à sua subsistência. Sem a África, a Rússia pode desde já ditar ao Ocidente os termos em que lhe permite viver. Se os grandes aglomerados humanos estão criando uma espécie de consciência e solidariedade continental, como a americana ou a asiática, não parece fundam en­ tada a ideia em germe ou mesmo em esboço duma África complementar da Ásia, negando-se essas mesmas possibilidades à Europa, que a descobriu na maior parte, a desbravou, a povoa, a trabalha e lhe tem levado com sacrifícios de sangue e de fazenda a sua própria civilização. Mas, se é assim, não basta proclamá-lo; é neces­ sário encarar os problemas decorrentes dessas realidades. Um vento de revolta sopra em várias regiões de África, atiçado por potências conhecidas em obediência a conhecidos interesses e ambições. Esse vento parece ustificar o anticolonialismo em moda, ao mesmo passo que dele se alimenta. A Europa sente-se responsável também, e por uma espécie de cobardia colectiva parece envergonhar-se da obra que ali tem realizado. No fundo, nesta época em que se apela de todas as bandas para a não discriminação racial, o movimento onde se manifesta é sobretudo rácico, de cor, em dimensões continentais, e ameaça erguer-se em globo contra a civilização do Ocidente, que perdeu infelizmente a coragem de afirmar a sua superioridade. 0 princípio da autodeterminação fundamenta e legitima a independência dos povos, quando o grau de homogeneidade, consciência e maturidade política lhes permite governar-se por si com benefício para a colectividade. Mas é indevida­ mente invocado quando não existe, nem aproximadamente sequer, a noção do inte­ resse geral de um povo solidariamente ligado a determinado território. Em tal hipó­ tese a autodeterminação levará ao caos ou à substituição de soberania efectiva mas nunca à independência e à liberdade. Fronteiras marcadas na carta por zonas de influência e ocupação, sem a noção das dependências económicas e com bastante desconhecimento das populações que, aliás, não usam fazer grande caso dessas demarcações políticas, têm servido sobretudo para delimitar tarefas e evitar c o n fli­ tos, mas em muitos casos é bem difícil saber-se quando podem - se puderem um dia - definir o âmbito de uma nação. A desabusada ligeireza com que estes pro­ blemas são hoje encarados, de envolta com a vaga fraseologia das propagandas, a atiçar movimentos passionais e irresponsáveis, choca as inteligências reflectidas e só por isso arrisco estas palavras; porque em boa verdade também este problema nos não diz respeito a nós. 0 ideal que inspirou os descobrimentos portugueses e depois a obra que se lhe seguiu foi o de espalhar a fé e comunicar aos povos os princípios da civilização.

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XX. Apontamento sobre a Situação Internacional 0 m óbil de integrar esses povos na unidade da Nação portuguesa fo i possível rea­ lizá -lo pela não discrim inação racial - exigência do nosso carácter e nervo da obra colectiva - pela larga tolerância usada e a criação do mesmo clim a m oral. Um nativo do Angola, embora com as lim itações da sua incultura, sabe que é por­ tuguês e afirm a -o tão conscientem ente com o um letrado de Goa saído de uma Universidade europeia. Quer dizer, em vez de uma política de dom ínio ou educa­ ção, ainda que paternal, mas toda conduzida no sentido de co n stitu ir uma socie ­ dade independente e estranha, o português, por exigência do seu m odo de ser, previsão política ou desígnio da Providência, experim entou juntar-se, senão fu n dir-se, com os povos descobertos, e form ar com eles elem entos integrantes da mesma unidade pátria. Assim nasceu uma Nação sem dúvida estranha, com plexa e dispersa pelas sete partidas do mundo; mas quando olhos que sabem ver pers­ crutam todas essas fracções de nação, encontram nas consciências, nas in s titu i­ ções, nos hábitos de vida, no sentim ento comum que ali é Portugal. Daqui nos resulta no entanto uma dificuldade: fazer compreender, em face de outros casos originados em orientações m uito diferentes, que, relativam ente a M oçam bique e Angola, por exemplo, não se põe mesmo a questão de saber se são ou não territórios autónom os, porque são mais do que isso — são independentes com a independência da Nação. Os diversos graus de autonom ia adm inistrativa e financeira em que vivem são filh o s das necessidades que as distâncias criam e a grandeza dos te rritório s aconselha, mas não im prim em uma directriz, nem têm sig n ifica d o propriam ente político. Nos meios internacionais onde estes proble­ mas sejam catalogados segundo padrões m uito diversos, eu nem quero pensar na estranheza com que se ouvirá que, por exemplo, Cabo Verde prefere ao seu Esta­ tu to de província ultram arina, com larga autonom ia, o Estatuto adm inistrativo das ilhas adjacentes, de com pleta integração. M as as coisas são assim e não de outra maneira. Lógicam ente não deveremos sentir, salvo por abusivas influências ou pressão exterior, a que aliás seria im prudente não estar atento, elem entos de dissociação nas províncias do Ultram ar. Não se sentiram através da história e essa longa experiência deve ter posto bem à prova o sistema e forn ecido a dem onstração da sua solidez. Sempre que fo i o momento, mais ainda nas crises que nos tem pos calmos, sempre que foi o m om ento essa unidade moral e política da Nação a fir­ m ou-se na solidariedade dos membros, na resistência local ao inim igo, na fid e li­ dade, com os m aiores sa crifício s e riscos, à pátria comum. Goa é o mais recente o decisivo exemplo.

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Este caso de Goa, que tanto nos tem preocupado, é mais um co n flito de noções políticas e regras morais do que propriamente de interesses, tanto para nós como, suponho, para a União Indiana. Economicamente, e salvo o porto de M orm ugão, que é superior a Bombaim e o melhor daquela costa, não parece que a integração de Goa levasse grande contributo à União Indiana; e sob o aspecto da defesa não só sempre nos dispusemos a dar todas as garantias, ainda que razoavelm ente não 865

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 fosse de recear nenhum risco, como não conseguirá nunca qualquer país eliminar, pela integração no seu território, todos os pontos de onde é materialmente possível ser-lhe lançado um ataque. Uma razão destas não pode ser invocada. 0 que, pois, parece estar no fundo do conflito com a União Indiana é uma diver­ gência de ordem política e moral, que afinal se resume em saber se uma nação pode ser constituida por territórios dispersos e longínquos e, quando assim, se ela tem o direito de os ceder ou trespassar. A primeira proposição não tem de ser demonstrada. Numerosíssimas nações não gozam de unidade territorial e são constituídas por territórios que ao acaso da vida e da história se foram agregando sob a acção do mesmo poder. Nem mesmo se ten ­ tou nunca fixar qualquer limite às distâncias para que se aceite a legitim idade da soberania: todas as soluções seriam arbitrárias, possivelmente a n tin a tu ra l. E foi-se conduzido pela força das coisas a não objectar com tais circunstâncias, que não impedem de facto a unidade política. Assim o Paquistão, no mesmo subcontinente da União Indiana; assim a Indonésia, espalhada pelas suas três mil ilhas; assim os próprios Estados Unidos, com o Alasca para além do Canadá. Por outro lado, não há dúvida de que as disposições constitucionais portugue­ sas acerca da cedência de fracções do território nacional, não a perm itindo em :aso algum, se ajustam à moral internacional corrente, à qual repugna o trá fico los territórios com as suas populações. Nem se sabe mesmo de onde se originaria o direito de um Estado decidir do destino de populações que o constituem e têm jus à sua protecção. Mas suposto que ambas estas questões podiam ser resolvidas em sentido co n ­ trário, abalar-se-ia com isso a presença de Portugal na índia; não se teria criado um direito para a União Indiana. As suas pretensões apresentam-se baseadas na co n ­ tiguidade territorial, na interdependência das economias, na afinidade de raça, mas estas circunstâncias, aliás só parcialmente exactas, não têm força para criar esse direito novo e invalidar um direito preestabelecido e históricamente comprovado. Assim, na impossibilidade de uma solução política mais bem ou mais mal enquadrada em princípios de direito, e verificada sem contestação possível a ine­ xistência de colonialismo em Goa, a União Indiana foi induzida a co ncen trar os máximos esforços para a consecução deste objectivo supremo: anular a resistên­ cia moral dos goeses e a sua fidelidade a Portugal. 0 bloqueio económ ico, a p ro i­ bição do trânsito nas fronteiras, a suspensão das comunicações telegráficas e telefónicas, a recusa das transferências de economias e depósitos, a boicotagem dos navios e empresas dc navegação, o corte das ligações ferroviárias, as pressões exercidas sobre os que do estrangeiro comerciavam com Goa, as prisões, os des­ pedimentos, as violências exercidas em Bombaim e noutros pontos da União co n ­ tra os goeses, os actos de terrorismo, os assassínios, os assaltos, os roubos, os sequestros, as sabotagens - tudo sc experimenta e está a executar ali com a frieza e a precisão de um programa fixado. Mas nós não precisamos de melhor argumento para defender a nossa tese. Se tanta violência e tanta injustiça são necessárias para dominar a resistência dos goe866

XX. Apontamento sobre a Situação Internacional ses em Goa, na União ou no estrangeiro e se essa resistência subsiste e a cada momento se afigura mais tenaz, tem de concluir-se que um factor intervém, supe­ rior à vontade dos governos, inacessível à acção do poder, inatingível pela força material: são quatrocentos anos de presença e de história, é a identidade de civ ili­ zação, é a dedicação à pátria comum. Não farei referência aos sacrifícios que suportam os para enfrentar esta luta desigual e injusta, não só porque mais sofrem os que estão ¡mediatamente sujei­ tos às violências e às dificuldades, com o está entendido merecer Goa todos os sacrifícios, prim eiro pelo que é com o parte de Portugal e depois pelo que repre­ senta na nossa história e na história da expansão civilizadora do Ocidente. A acção da União Indiana é que não se mostra coerente com os princípios p o líti­ cos que defende nem com a filo so fia da não violência que os governantes dizem perfilhar. Do nível a que subiu com o potência asiática, da ligação com o Ocidente através da Com unidade britânica, da sua filiação nas Nações Unidas, senão da obediência aos princípios do Tratado do Tibete, anunciados ao mundo com o o código da concórdia e boa vizinhança, tinha de esperar-se outra atitude e a nobreza de outra política.

Sei que muitos discursos foram preparados para este Congresso e muitos mais terão de ser ouvidos por vós. Este é um motivo m uito forte para que da minha parte vos alivie no que puder e sem mais dê por findas as minhas considerações. Tenho a consciência de não ter sido hoje tão claro com o de outras vezes. A lg u ­ mas teses as deixei apenas esboçadas, outras se tanto subentendidas. Nem mesmo tirei a limpo as conclusões que nos respeitam: mas quem quer as pode com fa c ili­ dade deduzir. É evidente que não estamos de acordo com muitas posições e doutrinas e enten­ demos que m uitas teses inconsideradamente aceites estão alimentando a confusão. É também evidente que acerca dos nossos interesses e da sua defesa podemos ter noções mais autorizadas que outros, pois nos cabe o dever de conhecer melhor as peculiaridades da nossa form ação histórica e estrutura política. Se, para além do nosso terreno, nos pronunciam os sobre o comum é que a solidariedade que a todos prende nos não deixa imunes das consequências da política e orientação geral. Bastantes nações estão a surgir à luz da história e se mostram muito zelosas da sua liberdade e independência. Bem é, contanto que a mesma noção de naciona­ lismo que invocam e o mesmo direito à integridade e unidade política sejam por elas reconhecidos aos mais. Ainda cabemos no mundo; apenas o ódio o torna tão aca­ nhado que nem mesmo só os am biciosos parecem poder caber nele. A época de transform ação que o mundo atravessa é não particularm ente para nós mas para todos prenhe de problemas e de riscos. Isso causa apreensões e obriga a cuidados, vigilância e esforços especiais mas não tem fatalm ente de conduzir ao pessimismo. Aos ânimos fortes os maus tempos não destroem, antes redobram as 867

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 energias; e como tanto para as nações como para os indivíduos a vida é luta, os que desistem de lutar são indignos de viver. Mas isto não se dirá de nós. Para que seja assim, exactamente nos momentos confusos como o actual eu desejaria que mantivéssemos o entendimento desanuviado, o coração limpo, a vo n ­ tade decidida e firme. Assim temos possibilidade de ver com nitidez o caminho, res­ peitar com bondade e justiça o interesse alheio, defender com vigor o nosso, co la­ borar activamente com os mais para o bem comum. O que se pede com essa atitude é afinal um exemplo de clarividência e de realismo, de confiança em nós próprios e nos destinos da Nação. Parece-vos que é demasiado pedir?

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XXI MENSAGEM À LEGIÃO PORTUGUESA (1) Embora com algum sacrifício — menor em todo o caso que o de muitos de vós — também eu não quis deixar de estar presente nesta reunião legionária. A Legião festeja o vigésim o ano da sua existência e as poucas palavras que no momento me proponho dizer são a simples reafirmação de que até ao presente não diminuiu a sua necessidade e para o futuro não pode afrouxar o seu alerta. Há vinte anos foi nítido para nós - mas não o foi para muitos em face do caso espanhol, que o que essencialmente se desenrolava no M undo eram co nflitos de civilização; ou mais precisamente que a civilização ocidental estava sendo desman­ telada até aos alicerces e batida nos seus princípios fundam entais e nas suas cria­ ções por outros conceitos filosóficos, outras maneiras de encarar o homem e a vida, novas medidas de valor para as realizações do espírito. Em face destes conflitos deviam considerar-se de menor monta as confrontações das form as de Estado e dos regimes políticos, as divisões partidárias, certas desigualdades sociais, os interesses materiais da vida. Neste intervalo as nações bateram-se por hegemonias, os homens pelas riquezas, os governos pelo dom ínio ou pelo prestígio da sua própria existência. Mas quando nos foi dado viver, ainda que de longe e em segurança, o caso húngaro — a amargura até ao desprezo da vida, a luta sem esperança, o adeus à terra, o abandono dos lares, a dispersão das famílias, a im olação dos fugitivos, a deportação dos inocen­ tes —, todos nós pudemos sentir a precariedade de certas coisas por que m uitos se batem, para só avultar a transcendência de algumas a que estamos — tantas vezes inconscientemente! - presos pelas próprias raízes de que provimos. 0 que significa esse vibrar da consciência nacional? Nós queremos a independência da nossa terra, a inviolabilidade dos nossos lares, a paz no trabalho, a segurança da vida, a liber­ dade de crer. Tudo isto o queremos seguro e bem nosso — não com o falsos profe­ tas n o-lo prometem para o recusarem em ruínas e sangue, segundo todos vem os mas com o o sentim os no mais íntim o da consciência e com o n o -lo revela o nosso coração de portugueses. Ora a defesa desta posição, que é sentim entalm ente de todos ou quase todos, temos de entregá-la à especial vigilância de alguns. E é reconfortante ver que de todos os lados, sem distinção de meios de fortuna ou de modo de vida, sem recom -

(» Palavras proferidas na com em oração do X X aniversário da Legião Portuguesa, no Pavilhão dos Desportos de Lisboa, em 8 de Dezembro de 1956.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 pensa ou escolha de postos, uma multidão acorreu a oferecer-se simplesmente para servir. Na verdade, através das ameias da fortaleza nacional, ameaçada nos dias de hoje como todas as outras e tanto mais ameaçada quanto mais intransigente e mais firme, sobre os velhos muros deste castelo português vós tendes de manter guarda e vigia constante pela segurança de todos, mesmo dos que nos combatem ou atrai­ çoam, sem deitar contas à grandeza do sacrifício pedido. Quando me ponho a reflectir sobre a crise interna e externa por que passa a nossa civilização, não me acode ao espírito duvidar da capacidade universal dos seus princípios, nem desse halo espiritual e humano que lhe permite elevar por sim ­ ples efeito da sua irradiação até a uma fraternidade universal as almas, as raças, os povos. Mas além de ser já grande diminuição do potencial civilizador ter-se aqui e além perdido a fé na sua superioridade intrínseca, eu vejo que nos estamos por vezes comportando como se esses conflitos de civilização estivessem postos só para discussão de filósofos em doutas academias. E o que receio então? Direi francamente que tenho medo... do medo. Esta Europa, que foi berço de nações e agente missionário da civilização que tão esforçadamente servimos e propagámos, afigura-se cansada da sua mesma grandeza, em parte amolecida pelas coisas fáceis da vida. Penso que ela sente lemasiado medo da pobreza e do sofrimento, que são afinal a vida. Ora ter medo la vida e ter medo de bater-se para defender a dignidade dessa mesma vida são a maior causa do nosso abatimento e Deus queira a não sejam da nossa perdição, pois aqueles que se nos opõem, se mostram desprezo pela vida alheia, também estão decididos a jogar a sua. E daí concluo que nenhuma superioridade moral ou intelectual demoverá ou fará recuar os bárbaros do nosso tempo — tão sábios e tão «técnicos» como nós próprios - e que, se quisermos sobreviver, teremos de estar resolvidos a lutar. Estas palavras seriam talvez duras no seio de ideólogos impenitentes, ou mesmo nalguns centros onde os exercícios da oratória, trovejando contra a barbárie, só têm convencido os mais fracos. Mas podem ser ditas entre nós, que, apesar de peque­ nos e pobres, temos a consciência de uma missão a cumprir. A paz é sem dúvida supremo anseio e necessidade de coexistência social, mas a paz é uma posição recí­ proca, pelo que é preciso estar disposto, em face de poderes agressivos que não desarmem, a lutar por aquilo que temos como essencial à nossa vida e à vida da nossa Pátria. Vós compreendeis o que eu quero dizer. Eu creio em vós.

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X X I I. ACTUALIDADE DA UNIÃO NACIONAL (,) Viemos hoje aqui para empossar a nova comissão executiva da União Nacional. Eu pelo menos não devia ter vindo para mais nada do que para agradecer os servi­ ços prestados pela antiga comissão e para cum prim entar os que se dispuseram a tom ar o seu lugar. Ainda que a nossa vida política padeça aos olhos de m uitos de falta de actividade espectaculosa e não seja entrecortada de acidentes, excitantes da curiosidade pública - porque tudo o que houvesse de divergência se subordina­ ria ao espírito de servir - a verdade é que os cuidados constantes pela organização e esta espécie de vigilância permanente a que em tais postos se é obrigado cansam as mais bem dotadas naturezas e é apenas justo que, reconhecido o facto, as situa­ ções se modifiquem. Nem os que saem precisam de louvor meu, nem os que entram de incitam ento ao cum prim ento do dever. Todos podem apresentar a sua larga folha de serviços e .esperar a justiça que se lhes deve, mas eu não posso fugir a endereçar à antiga comissão executiva, na pessoa do seu presidente, o engenheiro Cancela de Abreu, o melhor agradecimento pela inteira dedicação e pela tão completa fidelidade com que todos serviram a causa comum. Aos que entram de novo só posso acrescentar, com votos pelo êxito, que servir é decerto sacrifício, mas é também honra - e não sei qual deles, à face dos nossos princípios, merece ser posto em maior relevo. Os nossos avós disputavam nos co m ­ bates os lugares de maior perigo.

I. Aqui devia ser o ponto final das minhas considerações, mas se tenho de dizer mais algumas palavras, essas hão-de ser ditadas pela ideia central que nos reúne neste momento. Nós temos de fazer o exame do conjunto de circunstâncias e de problemas que estão constituindo a vida do mundo e muitos dos quais se embrecham nos nossos próprios interesses de nação. Mudanças radicais se operaram não só na Europa com o nos outros continentes nos últim os vinte ou trinta anos. As grandes potên­ cias, guias e ordenadoras dos interesses mundiais, não são as que conhecíam os.

,l1 Discurso proferido na sede da União Nacional, na posse da Com issão Executiva, em 4 de Julho de 1957.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 Numerosos países ascenderam à independência e tomam largo assento nos areópa­ gos internacionais, por onde se pretende fazer passar boa parte da vida das nações. 0 comunismo apoderou-se e subjugou grande parte da Terra e pretende prosseguir uma revolução que se revelou impossível nos domínios económico e social, mas continua a ser viável no campo político. Elementos subversivos fermentam, de mis­ tura com interesses económicos à vista, em povos não preparados para a em anci­ pação, que é hoje a fórmula aliciante das novas servidões. Independências alicerça­ das em ódios políticos ou rácicos constituem-se em unidades nacionais desprovidas de apoio económico e técnico, capaz de valorizá-las e fazê-las progredir. N aciona­ lismos imprudentes e excessivos cavam a ruína de povos que só a cooperação am i­ gável podia salvar. A miragem do aumento indefinido das riquezas traz as im agina­ ções em alvoroço: confiantes numa técnica que se afirma de possibilidades ilimitadas, somos batidos por um vento de ambições económicas em todos os graus - nos indivíduos, nos povos, no género humano. E no entanto os homens por toda a parte se mostram desalentados, ansiosos, inquietos, como se a riqueza e as diver­ sões não trouxessem às almas consolação nem paz. Os tão reclamados direitos da pessoa humana (que muitos julgam ter descoberto agora) parece visarem preferen­ temente a massa confusa, desumanizada, despersonalizada, e não o homem na ntegridade e plenitude do seu ser, da sua nobreza e valor infinito. Repito que temos de fazer o exame tanto quanto possível aprofundado destes factos e tendências que são o condicionalismo externo e em parte interno da a ctividade do Estado e da nossa vida de nação. Há em tudo isto posições irreversíveis, tendências de certo modo fatais, choques de interesses, aspirações ilusórias, erros, contradições. Com eles nos temos de haver para preservar o nosso ser nacional, fazê-lo progredir e afirmar-se entre as nações. Simplesmente a ocasião de aus­ cultá-los será mais adiante, quando esteja em perspectiva próxima a escolha da nova Assembleia Nacional. Neste momento queria apenas examinar convosco se a fórmula de união nocional t ainda actual ou se perdeu, ante a feição dos a con teci­ mentos, a sua eficácia política. II. Temos sido acusados de não mantermos um alto grau de algumas liberdades públicas. Embora a acusação seja sob diversos aspectos discutível, muitos aferem por aí a estrutura do Estado, isto é, classificam o próprio regime, que é um problema à parte. É um axioma que as liberdades ilimitadas a si próprias se destroem, e por esse facto são em toda a parte mais ou menos restringidas e condicionadas. A s m aiores ou menores restrições que acompanham a sua formulação jurídica dependem, quando se trabalha em plano de absoluta sinceridade, de diversos factores sociais. A norma que as define, as instituições que a lei encarrega de garanti-las não são o essencial - o essencial é fazê-las viver; as liberdades existem na medida em que são uma prática corrente de vida. E essa prática só tem de ser e é de facto co n d ic io 872

XXII Actualidade da União Nacional nada pelo perigo real que faça correr a outras liberdades ou bens superiores do homem ou da sociedade, entre os quais a segurança, a estabilidade do poder — não confundir com a vida dos governos —, a ordem. Este o traço de ligação entre algumas liberdades públicas e o regime político. Mas daquelas não me ocuparei hoje.

Além do conjunto de instituições que pudessem funcionar com eficiência e regularidade a bem da coisa pública, nós pretendemos criar determinado ambiente político, suposto necessário à marcha regular dessas mesmas instituições. Para tanto foi preciso: primeiro, não reconhecer os partidos como órgãos, co nstitu cio­ nais ou não, mas em qualquer caso indispensáveis à vida política; segundo, pôr de lado todas as questões sobre que os portugueses pudessem estar gravemente d ivi­ didos e cuja solução não fosse indispensável à de outros problemas nacionais; por fim, apelar para todos os homens de boa vontade, com fim de em penhá-los no tra ­ balho de salvação comum, independentemente do seu passado político ou da sua ideologia. Começarei pelo fim. 0 Doutor M arcello Caetano afirm ou há tempos num discurso que, bem vistas as coisas, nos vários governos desde o 28 de M aio têm servido M inistros que em regime partidário estariam por ventura agremiados em sectores ou partidos diversos. Isso parece exacto, mas que me lembre não realçou a diferença, e essa é essencialmente a ausência de disciplina externa ou de representação e mandato expressos de quais­ quer agremiações. Cada qual se encontra no Governo em face dos problemas com a sua capacidade e a sua consciência. Dispõe dos meios burocráticos de inform a­ ção, do estudo dos técnicos, obedece a uma linha geral comum de pensamento político, mas não depende, nem na actuação nem na vida ministerial, de com bina­ ções ou interesses alheios à sua própria função. Os obstáculos que vemos m uitos países enfrentarem seriam facilm ente vencidos só com o apelo ao numeroso escol de que dispõem, se fosse possível libertar esse escol das engrenagens que o enleiam. Para o trabalho nestas condições é necessário encontrar um denom inador comum e este é o interesse nacional, interpretado e servido com o podem fazê -lo pessoas que se libertem de preocupações partidárias, de interesses políticos ou de posições ideológicas. E se os homens lutam pela efectivação delas, há portanto neste sentido que pedir e que fazer sacrifícios. Creio ter já dito uma vez que o Exército, ao criar as condições para o estabeleci­ mento do novo regime, praticou dois actos altamente meritórios e de alcance in vul­ gar: não monopolizou a máquina governativa nem pretendeu que esta funcionasse em seu favor. Em compensação criou um problema: é que, dada a form ação política predominante tanto de monárquicos com o de republicanos, não se encontrariam possibilidades suficientes para a obra a empreender com a colaboração de um dos 873

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 grupos somente. E porque todos o compreenderam, todos têm colaborado, sem res­ trições nem reservas e com a maior generosidade, dentro do regime vigente. Por outro lado, penso que o Governo tem feito o possível para que a Família de Bragança - falo do ramo português desde que admitida no País, fosse c o lo ­ cada no alto nível de dignidade que compete a descendentes directos dos Reis de Portugal. E agiu assim por duas razões: a justiça devida aos que foram co n d u ­ zindo a grei por oito séculos de história, e a previsão prudente de que pode haver um momento em que a solução monárquica seja uma solução nacional. Na sequência deste pensamento está porém que, quer se considere a Casa de Bra­ gança apenas depositária duma herança histórica, quer encarnando a possibili­ dade de futuros serviços à sua e nossa Pátria, ela se encontre afastada duma che­ fia política que em determinado momento, em vez de unir, divida os portugueses. Ora quando noto certas exteriorizações que podem não ser acidentais e por outro alertarem-se receios que sei serem infundados, o menos que posso dizer é estar­ mos fora do quadro em que a questão foi posta e no fundo se ameaça a união nacional estabelecida. É precisa alguma coragem para não perder de vista que esta forma de organiza­ ção política e de trabalho governativo sem partidos políticos, juntam ente com a Constituição que os não prevê, nos têm quase sozinhos no mundo. Acrescentarei porém que, se as aparências são estas, as realidades são muito diferentes. Muito poucas constituições escritas haverá hoje que não se qualifiquem de democráticas. É moda. Os Estados comunistas apelidam-se mesmo democracias por excelência - as democracias populares - mas, dando às palavras o seu sentido corrente, temos de considerá-los como Estados totalitários. Pode dizer-se que aqui e ali nalguns países satélites há pró-memória mais de um partido: a verdade é que um partido único detém o poder, define a acção, declara se o verdadeiro m andatá­ rio do povo e para todos os efeitos se supõe que zela os interesses desse mesmo povo. A existência de qualquer partido além do comunista pode representar opor­ tunismo, mas não é um princípio nem uma prática. - Temos portanto para já que uma larga zona do mundo vive fora do regime partidário. Com os que se intitulam democracias parlamentares ou partidárias, quem quer, examinando o funcionamento efectivo das instituições, pode constituir três grupos. 0 primeiro é daqueles muito raros Estados em que os partidos pouco numerosos permitem a formação de maiorias homogéneas, que se sucedem no poder, sem impedir de agir, quando na oposição, o governo que governa. 0 segundo é o daque­ les em que a vida partidária é tão intensa e intolerante que as m utações governa­ mentais se fazem frequentemente por meio de revoluções ou golpes de Estado, no fundo a negação do mesmo principio em que pretendem apoiar-se. Há um terceiro grupo em que a parcelação partidária e a exigência constitucional da m aioria par­ lamentar se conjugam para ter em permanente risco os ministérios, precipitar as demissões, alongar as crises, paralisar os governos, condenados à inacção e às fór­ mulas de compromisso que nem sempre serão as mais convenientes ao interesse 874

XXII. Actualidade da União Nacional nacional. Assim, uns esperam as eleições; outros, a revolução; os últimos, as crises, como possibilidades de governo. É fácil organizar-se com estes dados uma carta geográfica. Eu não o farei, mas porque estamos em família direi apenas que antes do 28 de M aio alinhávamos gar­ bosamente no segundo grupo: nem a cisão ou fusão dos partidos, nem antes a ine­ xistência e depois a possibilidade de dissolução parlamentar, nem a repetição das consultas eleitorais, nem a boa vontade dos homens e o seu patriotismo, nem o apelo por vezes dramático dos chefes evitaram as numerosas revoluções de que fom os teatro e vítimas. Podem alguma coisa contra esta espécie de fatalidade as boas intenções de pes­ soas que, habituadas a trinta anos de paz interna e à mudança do clima político entretanto operada, pensam que seria agora diferentemente do que foi? Tenho lido bastante do que se tem escrito sobre o caso português e julgo poder depreender de muitas observações a ansiedade, aliás amiga, por que se prepare para futuro uma engrenagem partidária que suceda ao actual regime. A questão para mim apresenta-se em termos diversos: o partidarismo não é um fenóm eno social susceptível em todos os casos de estruturação e disciplina jurídica. Quando os par­ tidos viessem a ser considerados engrenagem essencial da vida política, nós tería­ mos, logo desde o primeiro momento, pela im itação do estrangeiro e as tendências desagregadoras do sistema a actuar sobre o nosso modo de ser, cinco ou seis agru­ pamentos pelo menos, bem fáceis de definir para quem conhece alguma coisa dos homens, das ideias que os animam e das paixões que os dividem. Bem sei que há países com mais: aqueles porém chegavam para regressarmos à desordem anterior e à impossibilidade de nos governarmos.

Estou convencido de que as minhas conclusões não traduzem deformação prove­ niente de longos hábitos e atitudes, mas se harmonizam com a verdade das coisas. Não há dúvida de que a democracia política, sob a sua forma parlamentar e partidá­ ria, entrou há muito em crise de descrédito e em decomposição. E não é só nos fa c ­ tos - o que acima disse seria suficiente para atestá-lo - mas na doutrina, de que os tratadistas se estão encarregando de pôr a nu as contradições e sofismas. Há-de arrastar-se décadas; filosóficam ente pode dizer-se que está já ruindo pelos alicerces. Há mais. Os povos, dominados por preocupações que são hoje sobretudo de natu­ reza económica e social, não manifestam interesse pelos partidos, nem encontram neles satisfação ou o apoio que desejam. A ideia de que pode fiar-se de um princípio abstractamente definido em programa partidário a satisfação de numerosas necessi­ dades reais pôs os partidos à margem dos factos, e a sua expressão eleitoral já não tem correspondência nem com os problemas ou necessidades nacionais nem com as classes da população. M uitos sistemas perderam a rigidez, isto é, a verdade que ostentavam: o liberalismo já não é liberal; o radicalismo deixou de ser radical; o pró875

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 prio comunismo, ao proclamar-se nacional, deixou de ser comunista. E a eleição cada vez mais vulgarizada de parlamentares «independentes», como a sua aglutinação em grupo, não traduzem outra coisa, através duma certa contradição nos termos, que não seja a descrença na política dos partidos e a tentativa da única forma possível de união nacional em assembleias puramente partidárias. Nesta liquidação de sistemas ou padrões políticos há porém uma coisa m uito grave - é a gente aferrar-se a princípios sem efectividade e a instrumentos sem e fi­ ciência. Quando observo a fragilidade orgânica dos Estados, os colapsos e as d e fi­ ciências do lado ocidental, vítima do seu idealismo político, e vejo da outra banda que os dirigentes não levantam a mão da alavanca de comando, tremo pelo futuro destes povos e da sua civilização. Pode ser que tenhamos muita razão para as nos­ sas divergências partidárias e para as nossas reivindicações liberais, mas o essencial pode perder-se nas discussões de Bizâncio. III. Estes modos de ver podiam estar demonstrados por toda a série de razões que ião nos haviam de convencer, se não satisfizessem a dois requisitos: serem as teorias raticáveis e ter servido a prática o interesse nacional. A primeira parte está demonsrada por si. 0 regime constitucionalizou-se, isto é, legitimou-se juridicamente,,e leva trinta anos de vida sem graves solavancos, se exceptuarmos as convulsões que o acom pa­ nharam na infância. Crê que a ordem e o equilíbrio social são uma criação constante do poder, inspi­ rado pela justiça. É pois autoritário no sentido de que a autoridade, sabendo-se necessária e limitada, não pode ser em si mesma discutida, mas não tem de ser v io ­ lenta e não há-de ser injusta na sua actuação. Com mira no interesse pátrio, o regime tem procurado chamar a si, m obili­ zando-os com rendimento efectivo, a maior soma de valores nacionais, na certeza de que nenhum pode ser desperdiçado, e sem exigir mais que a aceitação daquela meia dúzia de princípios que se podem considerar imperativos da Nação, condições ou fins essenciais do agregado nacional. Esses os teriam eles na consciência, mesmo que dispersos pelos partidos políticos. Mas estes princípios não os podemos discu­ tir, porque representam a expressão de uma herança colectiva e o conceito do que desejamos continuar a ser no mundo. Direi, fundado na experiência, que neste sistema o governo não é cómodo, antes altamente gravoso para os que são obrigados a tomar as últimas decisões. Seria muito mais fácil recorrer ao jogo das deliberações colectivas onde o sentido da res­ ponsabilidade, quando existe, tão largamente se atenua que fàcilmente se perde. Isso equivaleria porém a substituir ao Governo a Câmara ou os comités partidários, em condições não desejáveis e com prejuízo colectivo. É certo que este regime difere muito - aliás mais no espírito que nalgumas ins­ tituições - dos que vemos constitucionalizados por muita parte. Nasceu daqui no 876

XXII. Actualidadc da União Nacional passado uma certa desconfiança ou incompreensão; mas as nuvens desfizeram -se e deixaram-se penetrar de luz. Aliás não apresentamos a orgulhosa pretensão de ter criado um paradigma de Estado, nem vaidosamente nos propomos com o exem­ plo de ninguém. Dizemos apenas: em Portugal temos podido trabalhar assim. E terá o regime servido o interesse nacional? Tenho lido que trinta anos é um período longo na vida de um país e que o seu simples decurso se afirm aria por obra de relevo. A asserção parece ingénua, e adim itim os que não tenha intuitos maldosos: fora da natureza, o tem po não cria nada — só desgasta e destrói. 0 problema é outro e consiste em saber: primeiro, se por outros processos se teria ido mais longe do que se foi, e, em segundo lugar, se as bases postas permitem resolver o m uito que ainda falta e faltará fazer. Distingamos o campo da administração, com suas realizações materiais, do domínio da política interna e da política internacional. Tudo o que pôde realizar se, mesmo nos domínios mais afins da ordem moral, é resultado de um esforço e de uma obra de administração. Foi com esta que se criou o progresso do País, em parte a melhoria do nível de vida da população, e se lança­ ram as bases da dignidade, confiança, estabilidade sobre que se alicerçou a política. Parece-me divisar teóricos segundo cujas doutrinas estaríamos ultrapassados, isto é, para os quais a administração, a sua ordem, o seu equilíbrio e os seus rigores não têm o valor que tinham para nós há trinta anos, a braços com um país desmante­ lado, desprovido do essencial, sem dinheiro e sem crédito. Eu aconselharia, com a prudência que uma dura experiência me deu a mim e ao País, que continuássemos a trilhar este caminho, pelo menos até vermos que é possível fazer as omeletas sem ovos ou qualquer outra coisa que os substitua. Vemos porém todos os dias no mundo dolorosos regressos aos princípios, isto é, às du ras‘éxigências do equilíbrio da vida económica. A ordem adm inistrativa que se representa na ordem financeira tem enorm e poder m ultiplicador, mas é sempre a ordem. Desta nasceram as prim eiras possi­ bilidades e os novos alentos que tom ou a vida da Nação, aqui e no Ultram ar. É mais que duvidoso que por outras vias lá se chegasse, porque pela antiga desor­ dem não chegou, mau grado o valor e am bições patrióticas que anim aram m uitos homens. Alguns dos elementos com que se move a política interna são ainda dessa o ri­ gem: a confiança da Nação em si própria, certo orgulho nacional, o aum ento de in i­ ciativa, a fé nas possibilidades do engrandecimento pátrio, o estreitam ento e a fe ctividade das relações ultramarinas. A verdade é que a consciência da inutilidade dos esforços, de dispersão, de desagregação social que a antiga situação provocava ou permitia tornou-se tão geral que uma ordem nova era reclamada por todos, mesmo por aqueles que no futuro imediato lhe seriam sacrificados no cam po político. E tudo nasceu afinal desta ideia simples - que a ordem e uma direcção efectiva seriam o m otor essencial, mas isso era o mesmo que reconhecer e aceitar as disci­ plinas políticas que caracterizam o novo estado de coisas. 877

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 Internacionalmente os países valem segundo a sua população, riqueza natural e potência económica. Podem também valer pelas suas posições estratégicas, e em qualquer caso segundo o que representam como factores de uma política. Nós somos na Europa uma pequena e modestíssima nação, mas com fracções relevantes em várias partes do mundo, suficientes para nos permitir mudar de plano na vida internacional. Se temos consciência de uma missão e vontade de cum pri-la, havemos de consolidar a nossa própria situação interna, tornar bem coeso o nosso espírito e bem sólida a formação moral, como maneira de mobilizar, sem com pro­ missos ou hipotecas indesejáveis, os elementos alheios de interesses coincidentes. Não penso que neste domínio tenhamos dado passos em falso, desde a neutralidade que nos permitiu a paz na Península, ao Tratado com a Espanha para form ação do bloco peninsular, o estreitamento da aliança inglesa, a instituição da com unidade luso-brasileira, tão sentida e entusiasticamente exaltada na recente viagem do Senhor Presidente da República. Se as inclemências do tempo presente nos não embaraçarem as estreitas relações com as nações africanas nossas vizinhas, nem nos impedirem de realizar o nosso programa de África, sobretudo de Angola e Moçambique, essa comunidade luso-brasileira, ao lado da comunidade britânica e da comunidade hispânica que se estruture englobando as Américas de filiação espa­ nhola, podem vir a ser três dos maiores factores de ordem e estabilidade da política internacional. Como o povo não mente nas manifestações do seu sentir colectivo, nós devemos crer que a maneira como recebeu em Lisboa a Rainha de Inglaterra e como acolheu no seu regresso do Brasil o Presidente da República traduz, ao lado da sua perfeita compreensão, o apoio a uma política que só agora a nossa reorga­ nização estabilidade e crédito começam a tornar possível. Julgo que ela é ainda fruto da mesma união nacional que a Nação compreende tão bem como nós.

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X X III. A ATM OSFERA MUNDIAL E OS PROBLEMAS NACIONAIS Segui com a atenção possível a campanha eleitoral. Como das outras vezes, ficou-se sabendo que não há liberdade, nem administração, nem Governo em ter­ mos de responder pelos interesses nacionais. E tudo se ficou a saber porque tudo a oposição pôde livremente afirmar. O povo tirita de frio, morre de fome, sufoca por não poder respirar o ar livre das instituições democráticas. Por causa disso a grande massa, a quase totalidade da população é contra o Governo e o regime, mas tem receio de manifestar-se. E daí pode deduzir-se que, se desmente a oposição, des­ prestigia o sufrágio. Aquelas afirm ações parecem-me exageradas e não corresponder às realidades. A oposição ou as várias oposições que até este ponto se excedem levam tranquila­ mente a vida que lhes apraz, arrecadam e gozam os seus proventos com mais lar­ gueza e segurança que dantes, afirm am -se e progridem nas suas actividades, ela­ boram e publicam os seus trabalhos literários e científicos. Ninguém se expatria nem se mantém em voluntário exílio para além da meta dos seus interesses pesso­ ais. Os estrangeiros entram e saem livremente e não são conduzidos e assim podem observar e ajuizar por si da vida do País. Pelo que a campanha para efeitos de cap­ tação exterior se me afigurou desprovida de utilidade. Não achei também elegante se fizessem repetidas referências com seu ar de apelo a forças ou organismos inter­ nacionais, primeiro porque a regra básica de tais organismos é não intervir na vida interna dos Estados, e não convém a ninguém que dela se afastem; depois porque as vezes que temos tido de defender-nos ali com algum suor não foi de quaisquer pecados contra a democracia, mas simplesmente de sermos Portugal - com o o her­ dámos, o temos e naturalmente todos desejamos conservar. Fizeram-se críticas, apareceram reivindicações, apontaram -se deficiências. Como sou independente, posso dizer que várias as subscrevia eu. Aliás grande parte das discussões facultám o-la nós com os estudos mandados fazer, os relatórios publicados dos serviços, as estatísticas oficiais, as teses dos nossos próprios co n ­ gressos. Assim o que ouvim os e lemos foram sobretudo variações de temas já ver­ sados, mas regozijo-m e de que grande número de problemas nacionais interesse um escol cada vez mais lato da população e esta se habilite a pronunciar-se sobre eles o b je tiv a m e n te e com independência.

(,í

Discurso proferido, em 1 de Novembro de 1957, ao m icrofone da Emissora Nacional.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 Uma coisa me pareceu séria em todo este processo, se bem se encontrasse nos limites da nossa previsão política. Os que a si próprios se denominam dem ocráticos ou democrato-sociais arrecearam-se dos comunistas e não quiseram coligar-se com eles, mas não se sentiram em condições de concorrer às urnas; uns tantos porém dis­ puseram-se a seguir-lhes as directrizes e a obedecer às suas indicações. Daqui resul­ tará que, se a evolução política não favorecer a organização partidária, acabará por liquidar na inacção as forças tidas por democráticas e inutilizar os seus valores que não desejem colaborar. Por outro lado, os comunistas que entre nós não têm pas­ sado, não terão também futuro, desde que externamente as circunstâncias co n ti­ nuem a ser-lhes hostis e internamente a feição nacional e social da política portu­ guesa lhes quebre nas mãos as armas com que pretenderiam bater-se. Nestes termos não é de estranhar nem que açodadamente ofereçam aliança a todos os que têm algum motivo de descontentamento e de oposição, nem a tendência que há-de acentuar-se a encobrirem-se atrás do que pode ser considerado neutro ou hum ani­ tário - a técnica, a economia, o bem-estar social. Havemos de conhecê-los pelos seus frutos; ser-nos-ia, porém, penoso, além de altamente prejudicial ao futuro do País, que com eles se fossem inteligências moças e almas ardentes, não manchadas de pecado contra a Pátria e só de irreflexões ou de inquietações desmedidas.

I. Reconheço impossível apreciar dentro de uma certa linha de pensamento mesmo só os mais relevantes dos pontos apresentados pelos candidatos oposicionistas como aspirações nacionais impostas a futuros governos. E a impossibilidade vem de que esses pontos se me afiguraram díspares, desproporcionados e contraditórios, como aliás era de prever das distintas formações filosóficas ou políticas que estão na sua origem. Mas, porque a desistência que se anuncia quase geral significa o abandono dos programas e é o nosso que tem de ser executado, prefiro então lim i­ tar-me a referir as circunstâncias em que nos tempos próximos vão desenvolver-se a vida e os interesses do nosso agregado nacional. Sumariamente pode dízer-se que a atmosfera internacional é dominada pelo poderio da Rússia e a sua política; a desagregação afro-asiática e o a n ticolon ia­ lismo; o progresso económico e a ânsia do aumento do nível de vida das popula­ ções. Todos os outros problemas são derivados destes e os seus contornos definidos e as soluções fixadas pelas linhas gerais em que aqueles hajam de evoluir. A Rússia de hoje nasceu da revolução soviética mas não é filha do comunismo. Quero dizer com isto o seguinte. Não nego que os fautores da revolução tivessem o intento de criar uma sociedade comunista. Tendo porém as realidades m ostrado que o comunismo é uma doutrina antinatural e irrealizável na prática, os dirigentes aproveitaram a força e engrenagem da revolução para dar o impulso que se verifica em muitos sectores da vida russa. Com bom aproveitamento das circunstâncias favoráveis e também da inabilidade alheia, a Rússia pôde constituir-se no que é hoje 880

XXIII. A Atmosfera Mundial e o s Problemas Nacionais - grande potência militar, política, industrial que desafia e a largos passos intenta aproximar-se das maiores potencias económicas do Ocidente. Sem se poder negar a existência de muitas conquistas de ordem social, a revo­ lução mostrou-se porém nas suas realizações e métodos esvaziada daquilo que seria a sua própria essência e fins. Na verdade, as populações têm pago em sofrim entos indizíveis, em dominações cruéis, em exterminações catastróficas, em fomes ou res­ trições de vida o poderio russo. Se o movimento nasceu para servir o homem, desenvolveu-se afinal para servir e engrandecer o Estado. 0 com unism o-doutrina continua a ser erguido como bandeira, expressão ou esperança de uma revolução social a fazer, sobretudo em países estrangeiros distanciados da verificação local do fenómeno. Mas a inaplicabilidade dos princípios e as experiências, nos países saté­ lites, do dom ínio dos partidos filiados parece terem dim inuído muito senão esgo­ tado a sua capacidade de expansão. Assim nem a vitória m ilitar e a inteligente exploração dessa vitória, nem o desen­ volvim ento das indústrias de base ou de guerra, nem a actividade política do Estado russo e o seu alargamento territorial me parece terem nada que ver com o com u­ nismo; mas tem m uito que ver com a gente que se apoderou do poder, as suas ideias de governo e o regime político em que lhe foi dado trabalhar. A superioridade da orgânica estadual, traduzida na unidade de direcção e no poder de decisão ou de realização, não podem os mais Estados transplantá-la fielmente, por m otivos diver­ sos, para as suas próprias constituições que outras superioridades apresentam; mas não pode ser negada e há-de ter-se sempre presente como lição. Se já não estamos, pois, segundo penso, em face de um credo que se expande, estamos em face de um Império em fase de crescimento, fase como outras que tem atravessado na História. Ora um poder em via de expansão não se limita a si pró­ prio, e só é lim itado pelo jogo de forças exteriores que se lhe oponham. Foi em obediência a esta concepção que grande número de países, largamente apoiados pelos Estados Unidos, resolveram unir as suas forças para se opor à expan­ são russa. Apesar das muitas deficiências das organizações, tornou-se visível que o avanço se encontrava barrado no cam inho do Atlântico. Vemos agora que a tor­ rente o evita e, aproveitando as dificuldades ou fraquezas do M édio Oriente, aí se instala e daí tentará prosseguir os seus avanços. A desintegração afro-asiática, em que os pretendentes à África negra se associam aos esforços russos, com mira na herança africana, trabalha no mesmo sentido. Verificam -se m uitos protestos de fidelidade ao Ocidente e não há que tê-los em suspeição. 0 que se deve ter pre­ sente é que tudo o que a Rússia não puder conquistar representa um ganho se o fizer perder aos outros. 0 espectacular progresso das indústrias de guerra nas grandes nações parece ter tornado inviável a terceira grande guerra, como tentativa de expansão do poder moscovita. Em face destas circunstâncias, os próprios dirigentes russos têm procla­ mado com o extraordinariam ente favorável ao progresso e bem -estar dos povos a redução das despesas militares que esmagam ao presente as economias, a com eçar pela sua. Não há divergências sobre este ponto e todos nesse sentido nos podemos 881

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 proclamar pacifistas. Simplesmente um entendimento militar parece-me distante, porque a Rússia, como já mais de uma vez afirmei, tendo desperdiçado o seu capi­ tal de crédito, dificilmente conquistará condições de negociação: sobretudo só em último caso largará de mão os trunfos de que actualmente dispõe. Com entendimento ou sem ele, a luta pelo poderio ensaiará outros processos. Onde a ideologia falhe e os exércitos não cheguem como veículo do poder hegem ó­ nico, surgirão as combinações políticas, os atropelos do direito, a intriga subterrâ­ nea, a acção económica, a sublevação. A luta encaminhar-se-á — e é visível que se encaminha - para planos diversos. E em tais condições seria indispensável que o Ocidente tivesse uma orientação e estivesse apto e pronto a definir e manter uma política. Este o grande problema. Esperemos lhe dêem solução os homens a quem de facto incumbe dirigir os destinos destes povos. As considerações acima não interessam aos comunistas que têm uma fé, obede­ cem a uma disciplina e recebem do exterior as suas ordens e apoio. Esses, tenham ou não tenham consciência disso, quebraram os elos que os prendiam à pátria e continuarão a agir como se servissem a verdade e o bem de todos nós. Mas há os outros que, conservando a liberdade de pensar e de agir, se sentem ainda presos oelo sangue ao agregado nacional e pela inteligência ou pelo sentimento a determ iíada civilização. Esses devem compreender que um e outra continuam a correr grandes riscos e que não se podem pôr de antemão limites aos esforços a fazer para os debelar. II. Um dos ventos que dominantemente sopra no mundo é o do anticolonialism o. Ele recusa a algumas potências o direito de administrar e civilizar territórios não limítrofes - parece que toda a questão está aqui - e vai até negar os próprios benefícios da acção colonizadora. 0 sovietismo tem a sua posição tomada no problema por motivos que se ligam à estratégia da revolução comunista ou à expansão do império russo. M as o m ovi­ mento concilia o apoio de muitos outros a ele ligados pela invocação de razões his­ tóricas ou pela influência de vagas ideologias. Estes últimos deviam considerar-se, era vez de libertações generosas, não estão nalguns casos a promover a penetração de influências que buscam exactamente a linha de menor resistência das indepen­ dências frágeis. 0 que está em causa no momento é apenas o domínio de certas potências euro­ peias nos territórios africanos, visto poder afirmar-se que a Ásia está quase com ple­ tamente isenta da direcção política europeia. É para ali que sobretudo se voltam as atenções; é com esse objcctivo sobretudo que a campanha se transmuda em orga­ nização estruturada. Ora tomada a colonização como um processo de valorização económ ica de ter­ ritórios submetidos a esse regime, bem como da sucessiva ascensão das respectivas massas populacionais a formas superiores de convívio social e de governo, não se 882

XXIII. A Atmosfera Mundial e os Problemas Nacionais verifica uma solução única dos problemas que o fenómeno suscita, e pelo menos três grandes linhas de acção se podem enunciar. Assim a Inglaterra tem actuado no sentido da independencia completa dos ter­ ritórios, esforçando-se por mantê-los no seio da Comunidade. 0 processo é fa c ili­ tado pelo carácter tradicional da colonização britânica, onde a miscigenação é ine­ xistente e a fixação da população branca bastante escassa. Definidos os quadros da administração, sorvidos pelos elementos aborígenes, a questão da declaração da independência dos territórios não apresenta dificuldade de maior. Não se dirá o mesmo daquelas regiões onde o europeu se fixou em larga escala, organiza e dirige o trabalho e constitui o esboço mais ou menos desenvolvido do governo local. Nesta hipótese a eventual constituição em Estado independente será vista a luz diferente por países como os Estados Unidos e a União Indiana, por exemplo, por­ que aqueles propenderão a olhar para a emancipação do colonizador, enquanto esta não verá no facto a emancipação do colonizado. A França caminha noutro sentido - a formação de estados federados com a M etrópole francesa. Parece ser esta a orientação definida, ainda que neste momento não possa dizer-se que existe aqui ou ali um estado perfeito, membro do Estado federal, tal qual o conhecemos na América ou na Europa. Quanto a nós, o caminho seguido define-se por uma linha de integração num Estado unitário, form ado de províncias dispersas e constituído de raças diferentes. Trata-se, se bem interpreto a nossa história, de uma tendência secular, alimentada por uma forma peculiar de convivência com os povos de outras raças e cores que descobrimos e a que levámos, com a nossa organização administrativa, a cultura e a religião comuns aos portugueses, os mesmos meios de acesso à civilização. Só o nível desta pode ser o meio de diferenciação do regime jurídico atribuível a uns e a outros. Além disso, a equiparação dos territórios a províncias, a representação des­ tas diversas parcelas na única Assembleia representativa e a intercom unicação dos elementos do funcionalism o por todos os territórios independentemente de origem e de raça são traços dominantes do sistema. Este esboço de classificação não pretende fazer confrontos ou críticas, porque só a história poderá autorizar um juízo. Nós cremos que há raças, decadentes ou atrasadas, com o se queira, em relação às quais perfilhám os o dever de cham á-las à civilização - trabalho de form ação humana a desempenhar humanamente. Que assim o entendemos e praticamos comprova-se pelo facto de não existir a teia de rancores ou de organizações subversivas que se apresentem a negar e aprestem a substituir a soberania portuguesa. Este facto conhecido e revelado por todos os observadores deve estar ligado ao convívio fundamente humano estabelecido pelo português com o indígena em toda a parte, e até por certa interpenetração de cu l­ turas, quando se podia dizer que localmente havia uma cultura. Tem-se apresentado contra o conceito português das províncias ultram arinas a objecção da separação geográfica, da falta de contiguidade territorial. 0 argu­ mento não pode ser decisivo, desde que no Atlân tico os Açores são ilhas adjacentes, Cabo Verde aspira ao mesmo regime, e desde que há numerosos Estados co n stitu í883

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 dos por parcelas distanciadas mais do que Lisboa está de algumas das províncias do Ultramar. Trata-se de factos ou criações históricas para as quais se procuram debalde ajustamentos a teorias lineares.

Se uma das mais flagrantes realidades do nosso tempo é a form ação de grande número de Estados independentes, outra é o aspecto que nos oferecem de um nacionalismo por vezes exaltado e exclusivista. Este é certamente filh o da semen­ teira de ódios em que a libertação houve de processar-se, tratando-se de m ovim en­ tos emocionais que esperamos sejam transitórios e de pouca duração. O pior é que por aquele motivo se está a tolher nesses Estados a solução dos seus problemas económicos e consequentemente políticos. Como se trata de mancha extensiva a grandes zonas, valerá talvez a pena dar ao assunto um momento de atenção. Um nacionalismo construtivo e colaborante devia satisfazer-se com uma co n d i­ ção: a integração na economia nacional dos factores - técnica, capital e trabalho — que se disponham a valorizá-la. Salvaguardada esta reserva, todas as mais garan­ tias me parece jogarão contra os interesses do País na mesma medida em que joguem contra os interesses alheios. Estou a raciocinar na base de que os factores da produção que se transfiram para valorização económica de uma região ou nação são de ordem privada ou, sendo públicos, não prescindem de certas garantias. Creio que será este o estado da questão durante muito tempo. A ideia de que os povos considerados ricos devem colocar ao dispor da comunidade internacional gratu ita­ mente os capitais necessários ao desenvolvimento dos vários países está tão longe das bases da organização e espírito geral que não constituirá por ora solução prá­ tica. Os fundos destinados a melhoramentos, investimentos, etc., de organism os internacionais são tão diminutos em relação às necessidades existentes que mais se devem considerar gestos de boa vontade, representando o que a dádiva representa na vida, do que meio eficaz de resolver as dificuldades. Ora o recurso a capitais e factores privados arrasta consigo o problema das garantias e das compensações. Os novos nacionalismos reagem violentamente a exi­ gências económicas e a compensações políticas que diminuam ou atinjam a plena capacidade de determinação dos seus governos. Não seremos nós quem estranhe o facto ou lhes recuse o direito de se oporem a essas condições, mas há um mínimo para além do qual se não recuará - é o limite representado pela eficiência e serie­ dade da administração pública, sobre as quais assentam a estabilidade de condições económicas e a rentabilidade dos capitais. Isto no fundo significa a existência de uma soberania que por elas responda. Fora desta linha, ou nada se há-de realizar ou não se fugirá a novas formas de imperialismo, mas com este ou outro nome o fe n ó­ meno reaparecerá. Parecem-me por isso inconsistentes muitas aspirações ou requerimentos tra zi­ dos aos organismos internacionais, ilusórias muitas esperanças, desmedidas m uitas ambições. Dois ou três países podem no momento competir entre si nas liberalida-

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XXIII. A Atmosfera Mundial e os Problemas Nacionais des concedidas neste domínio - a Rússia com mais possibilidades práticas do que outras nações de diferente estrutura económica. Isso se pode continuar a fazer com fins especiais; mas as exigências da economia mundial quando se lhe dá preci­ samente por alvo o aumento indefinido do nível de vida da população do globo não podem ser razoàvelmente satisfeitas dentro dos limites naturalmente restritos des­ tas competições. Eis porque a emancipação não pode deixar de representar maioridade e consciên­ cia, aptidão para organizar o trabalho, condições para cumprir internacionalmente os deveres assumidos, senão nelas teremos a origem de novas servidões. A economia é bem a vida para que possa julgar-se que pode desprender-se da política ou esta daquela como se queira. Não. As grandes realidades que são as necessidades huma­ nas, o trabalho, a produção impõem limites à acção dos homens, e as ideologias não bastam para matar a fome dos povos. A França continua a ser a mais im portante abastecedora de capitais e técnica dos países a que se estende a sua soberania, ou que, libertos dela, vivem ainda dos laços de um passado recente. Tudo o que é ainda Comunidade Britânica ou é sujeito da soberania britânica, continua a ter em Londres o possível apoio econó­ mico e financeiro. E bem é que assim seja, porque, quando se viu que a rotura de laços políticos im portou a estiolação dos laços económ icos e financeiros ou por ter desaparecido toda a garantia de solvabilidade ou pelo despertar de sentim entos agressivos que tornaram impossível a colaboração, não se viu com o a situação pudesse ser remediada. Há tantos exemplos recentes que decerto cada um os tem debaixo dos olhos. Quero dizer, em resumo, que todo este vento de agitações ou de subversão que vai pelo mundo e não atende à maturidade e condições de vida dos povos que visa arrisca-se a satisfazer apenas em muitos casos ambições, mas não postula por si a satisfação das necessidades daqueles. Desperta movimentos emocionais que podem até apresentar-se invencíveis mas deixam no seu rasto problemas que não podem por si resolver.

Voltem os ao anticolonialism o. À parte a ressaca da vaga mundial que possa atingir o Ultram ar português e contra a qual temos de defender-nos, as campanhas que específicam ente nos a tin ­ gem provêm da União Indiana, secundada por alguns Estados comunistas. A União Indiana visa essencialmente Goa, mas as suas atitudes e ambições conhecidas vão m uito além do pequeno Estado da índia. Há m uito tem po que não falo deste problema: ele foi já suficientem ente escla­ recido para se tornar necessário repisar o assunto, e o Prim eiro-M in istro da União Indiana prefere certam ente inspirar-se na fantasiosa imprensa e na não menos fa n ­ tasiosa rádio do seu país a beber nas nossas fontes a verdade. A questão pode co n ­ finar-se no actual momento ao seguinte esquema: internam ente o governo da 885

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 União Indiana concentrou e tem procurado conduzir através dos seus agentes a acção, no começo dispersa, da propaganda e do terrorismo nas fronteiras de Goa; internacionalmente, como isto não bastasse, há muitos meses que a União se empe­ nha em dois objectivos - demonstrar que são os goeses que se revoltam contra a suposta dominação portuguesa; pôr o mundo a seu favor contra a presença de Por­ tugal na índia. Todos se recordam de que o chamado movimento de libertação de Goa nasceu e se expandiu de fora para dentro até à triste liquidação dos satyagrahis. A dem ons­ tração da existência de um movimento interno vasto e irreprimível tem encontrado os obstáculos seguintes: as vítimas são cidadãos da União Indiana; os atentados são preparados na União Indiana; é na União Indiana que têm o seu ponto de partida; é ali que se acolhem, sob a protecção oficial, os terroristas falhados ou bem sucedi­ dos, com seus feridos e mortos. As últimas apreensões de material já no interior do território significam porém que a União conseguiu aliciar pelos métodos conhecidos alguns goeses; mas o que lhe convinha aparecesse aos olhos do mundo como uma explosão violenta dos ódios reprimidos em Goa durante séculos contra Portugal são pequenos fogachos acendidos de além da fronteira. Não só Goa se manifesta hostilmente contra a v izi­ nhança incómoda dos que se dizem irmãos, mas pretende a deixem continuar a viver a sua vida pacificamente à sombra da bandeira portuguesa. Há além disso uma prova esmagadora dos sentimentos de fidelidade a Portugal: tem -na a União Indiana no seu próprio território, nos 80 mil goeses de Bombaim. Sabe-se que foram e como foram despojados da sua pequena imprensa e como sobre as suas associações e os seus pequenos interesses se tem desdobrado toda a gama de for­ malidades burocráticas arrelientas e hostis. Perseguem-se, agridem-se e pren­ dem-se; fazem-se-lhes comícios; multiplicam-se as tentativas de captação; paga-se aos tránsfugas. E a massa mantém-se fiel como no primeiro dia. Por toda a parte onde um goês trabalha, um emissário da União age para o dis­ suadir do seu patriotismo, e nós sabemos que com muito pequeno resultado. A cam ­ panha da União nos Estados onde está representada prossegue persistentemente para angariar apoio moral e proclamar a nossa sem-razão e teimosia. Há poucas semanas o sr. Menon apelou mesmo para a boa vontade de algumas grandes nações que deviam ajudar a convencer-nos. 0 apelo não me pareceu hábil, porque os Esta­ dos Unidos, a Inglaterra e a França são precisamente países para quem a vida inter­ nacional assenta no reconhecimento de um estado de direito e na sua observância. Sendo assim, eram os que menos podiam fazer no caso, porque não há dúvida de que nos encontramos em face de uma soberania claramente estabelecida e que todos sentem ter o dever de respeitar. 0 apelo a um Tribunal Internacional, como fizemos, para que defina uma situa­ ção jurídica, todos o compreendem, e será seguramente um serviço à paz que órgãos desta categoria não se eximam a exercer a sua jurisdição própria. Mas os ataques insistentes no Parlamento e comícios da União, nas Nações Unidas, junto dos gover­ nos e noutras tribunas não podem senão mascarar uma hostilidade pouco segura 886

XXIII. A Atmosfera Mundial e os Problemas Nacionais do seu direito e contrária aos princípios incessantemente defendidos da coexistên­ cia pacífica. As declarações repetidas dos responsáveis são que a província de Goa será um dia libertada por meios pacíficos. A espécie de libertação subentendida é porém um pouco obscura, porque os discursos onde a libertação é independência se têm alter­ nado com aqueles em que é integração pura e simples na União Indiana. Para já sabemos que os meios pacíficos são compatíveis com o bloqueio económico, a proi­ bição de transferências, o corte das ligações ferroviárias, a boicotagem dos navios que demandam os portos, o encerramento das fronteiras, o aprisionamento nas nossas águas territoriais dos barcos de pesca e mesmo com o não pagamento das pensões de invalidez ou de guerra, tidas em toda a parte por dívidas sagradas. Por nós temos agido de modo a não agravar o conflito, organizando a vida de Goa e dos outros distritos, nas novas circunstâncias, melhorando a sua economia, desenvolvendo os seus meios, não irritando por qualquer forma o debate. Conven­ cidos de que o Prim eiro-M inistro se deixou enlear num problema que não pode resolver dentro dos seus princípios e sem prejudicar os interesses da União Indiana, estamos em dizer-lhe que se esqueça de nós, porque, apesar de tudo o que se vê, as suas insistências e as dos seus delegados não podem convencer o mundo duma razão que lhes falta. Ser Goa uma colónia ou uma província, gozar de mais ou menos liberdades, pode criar-nos a nós deveres, mas não faz nascer direitos em favor da União Indiana. III.

A outra grande corrente que forma o ambiente mundial de hoje é a do progresso económico e do aumento de nível de vida das populações, o que traduz o intento de produzir cada vez mais riquezas e de distribuir cada vez melhor as riquezas criadas. Posta assim a questão, nós menos que todos podemos fazer reparo aos fins em vista. Os filósofos hão-de vir dizer que esse ambicioso progresso económico e o objectivo de indefinidamente elevar o nível de vida correm o risco de pôr às aspirações huma­ nas um alvo inatingível e de criar um estado de insatisfação permanente, fonte de desequilíbrio moral, o que aliás está longe de ser apenas suposição ou receio. Não entro no debate, porque no seu aspecto mais geral o que no momento importa é saber se pode dar-se forte incremento à exploração das riquezas mundiais e satisfa­ zer as necessidades de imensas populações ainda desprovidas do indispensável à vida. Nós atravessamos uma época de tais progressos técnicos que os prodígios reali­ zados nos habituaram às maiores audácias e contagiaram fortem ente os econom is­ tas. A vida usa correr mais devagar e trazer alguma correcção às nossas ambições; demais a questão não é só técnica, mas económica e política, com m uitos dados fora do nosso alcance. M as eu quero ser optim ista e fazer um acto de fé em que os entusiasmos se não hão-de inteiramente frustrar. Restrinjam o-nos ao nosso caso que é um pequeno ponto apenas dessa econo­ mia do mundo mas que, pequenino que seja, para nós é a vida. 887

Discursos

e

Oliveira Salazar Notas Políticas • 1951 a 1958

A verificação estatística e aquela que cada um de nós está apto a fazer pelos seus próprios meios de observação confirmam o avanço económ ico das últim as dezenas de anos aqui e no Ultramar. Viu-se das discussões que ninguém se consi­ dera satisfeito com o que se fez, o que pode traduzir até excelente estado de espí­ rito, mas para se responsabilizar um governo é preciso saber se, pesadas todas as condições do meio, ele poderia fazer mais. A restrição aplicável ao passado é igual­ mente de aplicar ao futuro. Nós movemo-nos num círculo de interdependências que não podemos desco­ nhecer nem somos livres de eliminar. No mundo não haverá mais que três países que em caso de necessidade se poderão isolar e construir a sua economia, com o lhes apraza. Nestas condições não vejo senão os Estados Unidos, a Rússia e a China que têm possibilidade, não olhando em todo o caso a restrições e a sofrim entos das populações, de ordenarem a economia nacional na independência dos factores externos. Os outros, pequenos e grandes, não estamos nesse caso, pelo que nos atingirá mais ou menos duramente toda a actuação dos sistemas com que havemos de estar relacionados. Quer dizer, a independência económica sofre bastantes limitações e nem mesmo üspondo da técnica e de todos os capitais necessários nós poderíamos vangloar-nos de fixar e atingir livremente os nossos fins e de lograr os resultados econólícos e sociais que almejamos. A economia pode mesmo sofrer entorses ou influên­ cias contrárias aos nossos desejos. A técnica e a ambição de maior produtividade estão provocando a criação de gran­ des espaços económicos, à semelhança dos referidos acima, assentes sobre grandes bases nacionais. É assim que, independentemente das razões psicológicas e dos inten­ tos políticos que estão na base da sua criação, se acaba de formar uma pequena Europa económica, ou o mercado comum das seis potências além-Pirenéus. Ainda que leve seu tempo e apresente suas dificuldades a constituição integral e perfeita deste mercado, tal como o visionaram as potências fundadoras, a verdade é que a criação do mercado comum ou, melhor, o seu começo de funcionamento rompe desde logo o equilíbrio das relações existentes com os outros países que dentro ou fora da Organização Europeia de Cooperação Económica (0. E. C. E.) trabalham e comerceiam com cada um dos que o constituem. A ideia de criar uma zona de comércio livre que abranja o mercado comum e a cadeia de países que de certo modo o envolve deve considerar-se como uma tenta­ tiva de salvaguardar os interesses destes países, sem destruir os progressos adquiridos quanto à liberdade de trocas e de liquidações internacionais em bases plurilaterais e monetárias estáveis. Longas, difíceis negociações se hão-de seguir para encontrar o ponto de conciliação dos muitos interesses em jogo. Será possível? Nestas discussões bravas a que deu lugar a propaganda eleitoral um engraçado acusou-nos, falando a sério, de não sabermos ainda precisamente qual a atitude a tomar perante o mercado comum. Pois não. Temos cuidadosa e afincadam ente estudado todos os aspectos da questão, com os números e os factos que lhe dão vida, mas sabermos bem quais são os nossos interesses não equivale a ter garanti­ dos aqueles que em boa parte dependem da vontade alheia. 888

XXIII. A Atmosfera Mundial e os Problemas Nacionais Para já urna coisa é certa. Não podemos sujeitar-nos a ter um mercado aberto se os outros oferecerem restrições ou dificuldades especiais à entrada dos nossos produtos, nem será possível agir de modo que nos fique vedado o desenvolvimento económ ico exigido pelas necessidades e vida da nossa gente. De qualquer modo, para acompanhar o movimento em marcha, fora ou dentro de qualquer organização, há-de ser necessário revolucionar alguns sectores econó­ m icos atrasados ou adormecidos, enriquecer o apetrechamento industrial, m od ifi­ car muitos aspectos do nosso regime de trabalho. Conhecendo alguma coisa das nossas possibilidades, incluindo o recurso possível ao crédito externo, não penso que os planos de fomento, o próximo ou outros que se lhe sigam, dêem inteira satis­ fação a todas as aspirações que, em alheamento das circunstâncias, deixemos medrar em nós próprios. Depois de tudo, continuará a haver pobres e ricos, países pobres e países ricos, aspirações por considerar, necessidades que não foram satis­ feitas convenientemente. Mas a ânsia de progresso é estímulo que não julgo de desprezar; e as deficiências darão matéria para outras campanhas. Só falta uma palavra. 0 desenvolvimento da riqueza poderá teoricam ente favorecer apenas ou quase só o Estado — há exemplos disso; apenas ou quase só os que já dispõem de meios de fortuna; ou a todos, mormente aos que menos têm. Na nossa ética, que aceita desigualdades mas não privilégios, um programa econó­ mico só por si não tem valor, independentemente da aplicação da riqueza e da sua justa distribuição. Nós havemos de ter presente que as duas maiores preocupações do tempo de hoje, o que especialmente inquieta e tortura os espíritos, é a falta de segurança do trabalho e a falta de segurança da habitação. Este segundo problema não se a fi­ gura de muito d ifícil solução, desde que consigamos equacioná-lo conveniente­ mente. Mas a segurança do trabalho é quase impossível de garantir, se ao mesmo tem po se quer salvaguardar, em benefício do trabalhador, a liberdade de escolher a sua actividade, restringir as suas habilitações e escolher o local de trabalho. Nenhum sistema conhecido conseguiu resolver todas as dificuldades no mundo livre, mas não há dúvida de que, quando a actividade económica é intensa, a insegurança não existe pràticamente e desaparecem a este respeito as inquietações. Por isso a intensificação da vida económica nos trará por via indirecta o que directam ente nos sintam os inseguros de alcançar.

O apontam ento que aí fica, embora a m uitos se afigure ligeiro ou superficial - e em m uitos pontos o será - queria eu ajudasse a convencer o País da seriedade do m om ento que se vive e do ambiente geral em que os seus interesses terão de ser defendidos. Fazem-se os maiores esforços para esclarecer os problemas, mas a época é por demais perturbada, a velocidade dos acontecim entos tão grande e a confusão das ideias tal que não se pode estar seguro nem da concordância dos 889

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 espíritos nem sequer de terem sido compreendidas as nossas posições. São tem pos difíceis estes, e alguém da oposição, reflectindo o seu juízo sobre a transcendência dos problemas, entendeu que era o momento de confiar a solução deles a um governo nacional. Na técnica e terminologia partidárias este governo sai da contribuição que este­ jam dispostos a dar representantes dos vários partidos ou agrupamentos políticos, sem poder garantir-se-lhe, como está exuberantemente demonstrado, nem unidade de orientação nem confiança nacional. E estes são os dois atributos que conviria assegurar a esse governo, antes do mais. Eu tenho muita dificuldade em compreender estas combinações, porque não foi assim a minha formação. Para mim todo o governo há-de ser nacional ou não é: nacional porque não pode ter outro fim senão servir a Nação; nacional porque nem mesmo os grupos de interesses materiais ou morais que nela se movem os conhece ou defende senão com vista á sua coordenação ou subordinação ao interesse comum; nacional porque está suficientemente seguro da confiança e do apoio que lhe presta, pela sua compreensão e espontânea obediência, a própria Nação. Evi­ dentemente que se verificam discordâncias incidentais, ideologias inconciliáveis, iectores irredutíveis e não convencidos da população. Isto obriga a reflectir mas .iâo a parar, desde que se possa dizer que a Nação no seu conjunto sente a corres­ pondência da acção governativa e do interesse da colectividade. Para que assim seja porém, para a demonstração viva desta aprovação ou desta confiança - se as há - nâo se deve considerar bastante a segurança da vitória elei­ toral porque, com este ou aquele pretexto, a oposição deserta das urnas. Se o jogo das instituições leva a uma consulta periódica, é necessário responder de modo expresso, votando. Há muitas pessoas que não estão contentes? Mas nem eu, e vou votar.

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X X IV . RESPOSTA À SAUDAÇÃO DOS PORTUGUESES DO BRASIL E DAS PROVÍNCIAS ULTRAM ARINAS (,) Eu devia fugir, quando de todo as não pudesse evitar, a todas as manifestações com que a bondade dos portugueses quisesse celebrar os meus trinta anos de governo, discutíveis apesar de tudo, menos no doloroso esforço despendido através de tão longa caminhada. Mas uma coisa não desejava fazer, e essa era não receber pessoalmente as mensagens dos portugueses do Brasil e as de que são portadores quantos vieram das províncias ultramarinas com uma palavra de aplauso ou de cari­ nho. A recepção quer dizer apenas que houve a intenção de dar especial valor aos sacrifícios e às dificuldades da distância, porque o portuguesismo de todos não tinha de ser louvado nem agradecido. Existe; eis tudo. Temos várias vezes afirm ado constituirm os vasta família de povos cujas ligações afectivas, criadas em séculos de história, e cujos vínculos de parentesco espiritual se revelam como elementos de coesão e base de comunidade política mais sólidos que os interesses económicos, a força e todos aqueles elementos à sombra dos quais se estão afinal levantando uns contra os outros os homens e os povos. Mantemos, por­ que cultivamos, uma fraternidade realmente vivida não só nos territórios portugue­ ses mas nas pessoas que a vida obriga a afastar-se da pátria e conservam no entanto vivos os laços que os prendem à comunidade de origem. Quanto enternece receber, em datas festivas, de homens por vezes isolados no vasto mundo, entre raças dife­ rentes, mergulhados em meios estranhos, o grito de alma que lhes sai das profunde­ zas dos mais íntimos sentimentos: trabalho aqui; sou português; estou com Portugal! Temos na verdade de orgulhar-nos de uma Nação, agregado de numerosos povos, que tendo-se espraiado pelo mundo e caldeado no seu seio culturas e raças, conserva a identidade do seu ser, a linha recta da sua história e tão grande a fe ctividade entre todos os seus filhos. Esta singela cerimónia exem plifica e corrobora as minhas palavras. Eu só desejaria que no regresso todos fossem emissários e porta ­ dores fiéis de uma mensagem de saudação e de agradecimento aos que nestes dias levaram a peito fazer-se especialmente lembrados.

(,) Palavras proferidas no Palácio de S. Bento, em 29 de Abril de 1958, em resposta às mensagens de saudação trazidas por portugueses residentes no Brasil e nas Províncias Ultram arinas, em com em oração do 30.° aniversário da entrada de S. Ex.a o Presidente do Conselho para o Governo.

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XXV. A OBRA DO REGIME NA CAM PANHA ELEITORAL "> Entendi que não devia evitar este encontro: os homens bons dos concelhos, conscientes do momento que se atravessa, vieram, como em outros lances históri­ cos, marcar perante o Governo a sua posição. Porventura a esta mesma hora, em todos os municípios do País, as pessoas comissionadas para os encargos da adm inis­ tração fazem saber aos seus convizinhos como interpretam o sentir dos povos e como exprimem a sua vontade. Têm capacidade e competência para fazê-lo. Pés firm es no solo pátrio, braços e mentes dados ao trabalho, longe das ambições polí­ ticas e perto da vida como realmente é vivida, não se pode negar a autenticidade da vossa representação. Apenas faço reparo ao excesso das referências pessoais, visto que não sou nem faço mais que outros; sou apenas aquele que circunstâncias imprevistas designaram como o que devia conduzir a bandeira dum m ovimento de unidade e renascença nacional. Nem herói nem sábio nem santo: «um qualquer» que trabalha quanto pode pelo seu País no posto que lhe foi designado e está sem­ pre ao dispor de quem lho confiou.

I. Não se sabe porquê a propósito duma eleição presidencial, encontram -se no presente momento portugueses que proclamam a vacuidade desse esforço, negam a existência ou o valor de qualquer obra, afirmam o mal fundado da política que lhe serve de base. É fruto da paixão que desvaira os melhores espíritos e lhes não per­ mite reconhecer a evidência das coisas. Se tendes um momento, vamos co m ­ prová-lo no ambiente calm o e desapaixonado que temos o dever de não abandonar. Na abundante prosa, dita e publicada, em nome, por ordem ou ao sabor das oposições, atropelam -se as críticas ao que se realizou nos últim os 30 anos e são sem conta as promessas do que há-de fazer-se com melhor governo e mais atilada orientação no que toca aos problemas essenciais da nossa vida colectiva. Tirante porém faltas, desvios, mesmo erros, inevitáveis mas corrigíveis, todos os programas giram afinal à roda da política externa, da política ultramarina, da política econó­ mica, da política social e da falta ou defeituosa institucionalização do regime. Exa-

w Discurso proferido em 31 de M aio de 1958, no Palácio de S. Bento, em resposta à mensagem dos m unicípios portugueses.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 minemos ponto por ponto as posições; fá-lo-emos rapidamente, porque as m inú­ cias são muitas mas o essencial é pouco. Quanto a política externa, deduz-se da documentação produzida que nada foi achado mal. Não houve coragem de atacar a política da aliança inglesa, nem a do bloco peninsular, nem a da comunidade luso-brasileira. Tão-pouco se quis criticar a neutralidade portuguesa durante a última guerra, que aliás funcionou a favor dos aliados - neutralidade colaborante, como lhe chamei uma vez - nem a correcção ou excelência das relações mantidas com os outros Estados, nem as amizades conquista­ das nem os apoios conseguidos. Tudo foi bem, tudo está certo, não há que tocar-lhe. Tenho porém visto suscitar dúvidas sobre se as nossas instituições são co m patí­ veis com os princípios das Nações Unidas. Mas é exactamente princípio fundam en­ tal destas que a organização nada tem que ver com o regime interno das diferentes nações. Fomos admitidos sem qualquer insistência da nossa parte pela unanim i­ dade de 56 votos, sem um voto contra e sem uma abstenção. Quer dizer, fom os considerados elementos úteis e hábeis para cumprir as normas de convivência que jão fundamento da instituição; é pelo menos estranho que no meio interno se possa íegar uma idoneidade tão insuspeitamente reconhecida. Para além das posições tomadas há também sugestões. Li que se sugere de um dos lados uma política independente e relações com todos os países. Aquela pala­ vra «independente» não significa terem de criar-se as condições da livre determ ina­ ção do País na vida internacional. Se alguém se pode ufanar de sem agravo ter que­ brado laços e servidões desagradáveis, e ter dessa forma reforçado a independência nacional, somos nós. E não poderiam fazê-lo aqueles que através dos anos vêm esperando de potências estrangeiras auxílio à sua investidura no poder. Aquela palavra significa no vocabulário comunista o mesmo que neutralismo ou neutrali­ dade activa, isto é, não participação em alianças ou blocos ideológicos ou políticos. É o que a Rússia pede aos seus amigos quando não lhes pode solicitar a adesão. Eu não sei se quando um candidato se dispôs a desistir em favor do outro, se somaram com as respectivas forças os respectivos programas. Neste ponto seria impossível, porque a concepção geopolítica que inspira um é inconciliável no momento presente com a política «independente» que outro deseja. Pelo contrário, é necessá­ rio reforçar, eu diria, é necessário nalguns casos ampliar os blocos defensivos, sob pena de se arriscar a própria independência; isto é, tem de alicerçar-se a independên­ cia nacional nas interdependências políticas. É a lei do momento que vivemos. Outra referência soprada da mesma banda pretende relações com todos os paí­ ses. Se se trata de relações comerciais, e se a alusão visa os países para além da cor­ tina de ferro, devo dizer que temos já relações regulares com a Polónia, C h eco-Eslo váquia, Alemanha Oriental e Hungria, e comerciamos mesmo com a Rússia, antigo cliente das nossas cortiças. Às outras relações, a começar pelas diplomáticas, depa­ ram-se obstáculos graves que dificilmente serão vencidos enquanto forem meio privilegiado de um proselitismo inadmissível. Temos assistido ao fazer e desfazer de experiências neste campo, para se lamentarem em seguida os resultados. Todos os 894

XXV. A Obra do Regime na Campanha Eleitoral homens isentos entenderão que a questão só pode ser resolvida sob estas duas con­ dições: inocuidade proselítica das missões estrangeiras; reciprocidade completa das regalias habitualmente concedidas. Mas isto nada tem com o problema da paz. Nós, como a generalidade dos paí­ ses, também pretendemos a paz, só nos separando de muitos a ideia que se forma do caminho a trilhar para que a mesma se garanta ou se consolide. Quem nos dera chegar a uma plataforma de desarmamento! Quem nos dera poder empregar em benefício da colectividade as somas que se empregam na defesa. Mas a paz, o desarmamento são noções ou situações recíprocas entre Estados independentes. E quando se fala de paz sem esta prévia exigência, é que se está disposto a aceitar no plano nacional a servidão.

Vejamos agora a política ultramarina, entendida esta como o conjunto de princípios que regulam as relações entre as várias partes constitutivas da Nação Portuguesa, as normas que regulam as relações raciais, a finalidade que se propõe a obra coloniza­ dora. Encontrei referências à necessidade de alguma «actualização» e à necessidade de plebiscito nacional para definir a situação de Goa. Ainda que não pudesse atingir bem a ideia, não faço reparos ao primeiro ponto, porque o crescimento das províncias do Ultramar, sobretudo de Angola e de Moçambique, a sua extensão, as suas necessida­ des, o seu progresso hão-de ir reclamando revisões da estrutura do governo e da admi­ nistração, sem alteração aliás da sua posição básica no todo português. Ao definir-se o projecto do próximo Plano de Fomento, em que aquelas províncias partilham tão substancialmente, com prejuízo de muitos empreendimentos necessários aqui, nós tivemos mais de uma vez a sensação de que verdadeiramente tirávamos da boca o pão que ia ajudar o Ultramar, mas fazíam o-lo sem sacrifício e com pena de não ser ainda mais. Aquela alusão não parece portanto constituir problema. 0 mesmo não direi de Goa, acerca da qual a posição enunciada tem marca conhecida. Quase se deve ter dó dos comunistas. M andaram -nos ser aqui germ anófilos no começo da guerra, e foram; m andaram-nos ser aliadófilos depois, e foram. M andaram -nos adm itir a independência das repúblicas soviéticas, e adm iti­ ram-na; mandaram -nos aceitar a absorção das mesmas repúblicas, e aceitaram -na. São colonialistas para engrandecer o Estado socialista russo e anticolonialistas para dim inuir o seu próprio país. Não procuremos lógica, mas obediência; não esperemos patriotismo, mas serviços a uma política estrangeira. A ideia do plebiscito para definir nova situação para Goa é um derivado de declarações soviéticas a favor da União Indiana, e só não foi estendido pelos nossos com unistas a todas as outras províncias porque de momento isso agravaria a irredutibilidade do povo relativa­ mente à voluntária am putação da Nação Portuguesa. Goa é pois o m áxim o que os com unistas ousaram jogar; a reacção provocada dispensa-me a mim de mais uma vez afirm ar a política do Governo em relação ao Estado da índia. É clara: não nos negamos nem repudiamos os nossos. 895

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958

Quanto ao problema económico a campanha eleitoral das oposições desenvol­ veu-se desde a negação formal de qualquer progresso, aliás à vista de todos, até à simples insuficiência das realizações públicas ou privadas que lhe dissessem res­ peito. Ou nada se fez ou não se fez tudo o que se devia fazer. De modo que o atraso económico do País, com a sua repercussão no nível de vida das populações, não teve de ser confrontado nem com os níveis anteriores nem com a pobreza do meio nem com as possibilidades financeiras e técnicas. Fora de um período com o este, as próprias responsabilidades intelectuais de alguns que vieram ao debate deviam inibi-los de pôr assim a questão. 0 problema económico devia apresentar-se da forma seguinte: 1.° - Está bem equacionado de modo que o desenvolvimento da economia nacional se faça orde­ nada e progressivamente a partir das premissas postas? 2.° - O que se realizou está enquadrado nessa grande linha ou compreende desvios ou entraves ao progresso ulterior? 3.° - Se podia ir-se mais longe do que se foi, quais os meios de que podia dispor-se, sem risco ou maiores prejuízos, e não foram utilizados? Com seriedade ião pode sair-se daqui; e os números estatísticos a que se fizeram dar voltas e revi'avoltas não são susceptíveis de alterar estas posições. Nós lamentamos como todos não nos encontrarmos na primeira linha dos povos mais ricos ou desenvolvidos. Nunca será esse o nosso lugar, e muito profunda­ mente desconhecem os dados da questão aqueles que acenam com tal possibili­ dade. Sem solo, sem subsolo, sem mar litoral ricos, a nossa maior riqueza na M e tró ­ pole é ainda o homem e o seu trabalho. Mas para se elevarem estes ao nível desejado terão de empregar-se grandes esforços e dar-se tempo ao tempo. O capi­ tal e a técnica não se inventam: importam-se ou formam-se. Por mim preferia ir um pouco mais lentamente no âmbito de uma vida modesta que sujeitar o País a novas formas de colonização estrangeira. É estranho que, não podendo haver descontinuidade na vida e na economia, não se tenham feito referências pertinentes ao Plano de Fomento que irá seguir-se ao actual. Era exactamente na coordenação ou descoordenação dos planos que se encontrariam as melhores razões de critica, se disso se tratasse. Levou o Governo algumas semanas a examinar e a decidir sobre o que levou anos a elaborar e agora está submetido à apreciação das Câmaras e publicado para conhecimento de todos. É lamentável que as oposições, tão interessadas no rápido progresso económ ico do País, não se hajam sentido em condições de analisar um Plano de que aquele vai essencialmente depender nos próximos seis anos.

Resta-me dizer uma palavra sobre o problema social. Em manifesto dirigido aos trabalhadores do País, as oposições incluíram grande número de reivindicações sobre condições de trabalho, salários, horários, habitações, férias, assistência, acesso à cu l896

XXV A Obra do Regime na Campanha Eleitoral tura e outros, como prova do seu carinho pelas classes operárias. Nada disto nos impressiona nem constitui para nós dificuldade, desde que tudo se integra nos prin­ cípios que defendemos. Quer dizer, para nós são mais que promessas eleitorais, por­ que de algum modo constituem a essência do regime que servimos. A diferença está apenas em que a realização prática de certas aspirações vai sendo determinada pelas possibilidades e progresso económ ico do País, enquanto que para as oposi­ ções as promessas se apresentam libertas do condicionalism o económ ico que tem de servir-lhes de base. M uito antes que fossem form uladas ou sonhadas sequer determinadas reivindicações, nós afirmámos, em nome dos nossos princípios, não pormos qualquer limite à ascensão económica, política ou cultural das massas, e assim se vem realizando em bases sólidas o que de outro modo não passaria de a rti­ fícios ou enganos. Compreende-se que no manifesto em causa não se pudesse pôr a n u a ideologia que o inspirava. Uma ideia de socialização dos meios de produção afastaria simpa­ tias ambicionadas: sobretudo era preciso que a pequena burguesia esperasse ser poupada. Mas a reclamação de ser reconhecido o direito de greve põe neste com ­ plexo de questões a nota da luta de classes, quando nós nos batemos pela manu­ tenção do ambiente da mais franca e amiga cooperação. Aqui nos separamos. Nós não aceitamos a ideia da incom patibilidade de interesses entre o patronato e o operariado, mas a da sua solidariedade permanente. Se uma incom patibilidade de momento põe as duas forças em risco de chocar-se, é necessário que o defensor do interesse colectivo arbitre a contenda de acordo com a justiça e o bem comum. Quando se destina a um ferroviário o duro trabalho nocturno; quando se impõe aos correios ou às telefonistas o serviço permanente, não é o interesse patronal ou ope­ rário que está em causa, mas o interesse da colectividade. Como, pois, se esquece esta que é um terceiro no co n flito e se há-de deixar resolver a contenda pela luta das outras forças em presença? Se o liberalismo pôde chegar a este equivoco, o com unism o varreu-o das leis e da prática. Nisto tem inteira razão. Nós não podemos perder uma hora de trabalho; nós não podemos dim inuir o ritm o do nosso esforço; nós não podemos adm itir que o espírito de luta e o ódio se enxertem onde só a cooperação amiga pode triunfar. Não esquecemos os egoísmos humanos, nem os abusos, nem mesmo a pobreza ou a miséria material ou moral que daí possam derivar; digo que há form as mais correctas e mais seguras de dom iná-los, com beneficio geral. II. Julgo portanto podermos concluir que nestes sectores da vida da Nação e nas suas grandes linhas, descontadas assim deficiências ou erros ou atrasos admissíveis, tudo o que se fez se destinou a servir e serviu efectivam ente o bem comum. 0 que vim os da outra banda se sugere ou não se pode ou não se deve fazer. Mas não será isto o pior. 0 pior é pensar-se que se pode realizar qualquer po lí­ tica social com qualquer política económica; que se pode erguer qualquer política 897

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Oliveira Salazar Notas Políticas ♦ 1951 a 1958

económica com qualquer política financeira; e que uma política económ ica ou financeira qualquer pode servir de base è política internacional ou ultramarina que nos apraza realizar. Se um dia os que. alguma vez disseram que iriam buscar o dinheiro onde o houvesse, pudessem dispor do poder; se o alcançassem aqueles que se jactam de ter aprendido não ter importância nem a solidez nem o valor da moeda mas a sua quantidade; se pudessem algum dia influenciar o poder aqueles que pre­ tendem garantir-se da distribuição de riquezas antes de serem produzidas, devemos estar certos de que seria impossível executar qualquer plano e pôr de pé qualquer política que tivesse simultáneamente estes objectivos: consolidar e manter a inde­ pendência e a integridade nacional; aumentar a riqueza pública e privada; distribuir mais equitativamente o rendimento nacional por todos, com benefício dos mais necessitados; assegurar o trabalho dos portugueses, melhorar-lhes as condições de vida, assegurar-lhes a ordem, permitir-lhes viver em paz. 0 que aí está — im perfeito e inacabado que se considere e por certo é - foi preciso erguê-lo não descosida­ mente mas com a unidade de um edifício sobre alicerces onde se verteu m uito suor deste pobre povo; e foi com o seu trabalho e as suas privações que se pagaram dívi1as, se libertou de usurários a Fazenda, se restaurou o crédito, se instaurou uma dministração, se adquiriu prestigio e se tem defendido a Pátria e a integridade do Jltramar português. Infeliz povo se, confundindo promessas vãs com realidades, vier a convencer-se um dia de que o trabalho é sinal de servidão e a desordem atmosfera saudável de vida!

Tudo o que dissemos não dever ser feito ou não poder fazer-se, com o pretendem realizá-lo as oposições? Por meio de um ditadura educativa a que se seguiria a for­ mação de partidos políticos. Atrevo-me a dizer que essa ditadura que se anuncia bastante forte para contrapor a outra que nos piores dias nunca foi violenta é ta l­ vez dispensável para formar democratas. Os que nos últimos trinta anos nos con ­ tentámos em progredir, vivendo em paz e em ordem sob uma autoridade que nos garantiu as liberdades que podíamos usufruir, não aprenderemos nada. E m uitos dos outros que se têm sentido oprimidos durante o mesmo período já dem onstra­ ram em discursos, em jornais e em outros actos públicos estar em condições de começar a gozar dessas liberdades e com tão grande amplitude que não chegarão para mais ninguém. E não se receie pela formação dos partidos. Basta que, ao regular o direito de associação, se permita a associação para fins políticos, para que da noite para o dia apareçam mesmo mais do que se desejaria: um partido do centro, um ou dois par­ tidos monárquicos, um partido das esquerdas democráticas, um partido socialista e naturalmente um partido comunista, sem falar no da democracia cristã, visto haver quem julgue que em tais circunstâncias por esse caminho mais assegurada fica a defesa da Igreja. Estes são os chamados partidos de base, porque o nosso in dividu ­ alismo, as irredutibilidades pessoais, as ambições e as vaidades dos homens se enear-

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XXV. A Obra do Regime na Campanha Eleitoral regariam de fazer saltar todas as disciplinas e dividir o que já se encontraria assaz repartido e disperso. E por todos esses grupos se haviam de dividir os 120 deputa­ dos da Assembleia Nacional. Há alguma ingenuidade em supor que por força de leis, constitucionais ou não, se pode chegar à limitação numérica dos partidos, com eficiência duradoura e sem atropelo dos princípios democráticos. Aceites os princípios, têm de aceitar-se as consequências, só nuns casos piores que noutros. Tendo tão longamente reflectido sobre estes problemas e seguido a sua evolu­ ção nos diversos Estados, nunca pude compreender três coisas que se apresentam a legitim ar o sistema: a maneira mais expressiva de form ar e representar a unidade nacional ser a divisão partidária; haver uma relação necessária entre a existência de partidos e as liberdades públicas; a proliferação de partidos ser um sistema capaz de evitar a explosão revolucionária das facções. Pelo que nos toca, a experiência de muitos anos foi que os partidos é que promoviam as revoluções e foram incapazes de assegurar as liberdades. Sem qualquer prurido dogmático, mas de olhos postos nas nossas necessidades e modo de ser, o movimento de 28 de M aio deu origem a um regime não partidário ou antipartidário, se se quiser. Alguns o consideram coisa retrógrada; melhor ou mais justamente nos deviam considerar precursores. As dificuldades que se atra­ vessam por toda a parte são tais que os regimes políticos vão evolucionando influenciados sobretudo pela eficiência dos métodos de governar. As discussões das assembleias constituídas por numerosos grupos e o hipercriticism o consequente vão sendo sacrificados à necessidade fundamental de governar, e as assembleias não podem fugir a definir uma política ou evitar que os governos prossigam a polí­ tica que eles próprios definam. Assim temos seguido o nosso caminho, fazendo apelo incessante àquele denominador comum que é o interesse nacional. É possível que, para defender este ou não deixar extraviar a opinião pública acerca da sua essência, se tenha exagerado um tanto e coarctado liberdades que ao menos sem perigo grave poderão ser de outro modo regulamentadas. M as nós pre­ cisávamos de entender-nos primeiro sobre certos conceitos fundamentais, que das últimas discussões e apelos demagógicos ficaram mais obscuros que dantes. Das oposições ouviu-se um rebate prudente a dizer que alguma coisa mais era necessária, porque com a liberdade não podia fazer-se tudo. Pois não. Direi que não se pode fazer tudo nem se pode fazer nada, sobretudo quando a nossa tendên­ cia é para dar-lhe o sentido por onde temos visto extraviar-se. Há muitos anos já um sociólogo francês que bastante se debruçou sobre os nossos problemas e defei­ tos da nossa form ação tinha concluído que esta qualidade excelente da gente por­ tuguesa - a sua docilidade - representava no fundo um grave perigo para a esta­ bilidade política e social. Bastaria que alguém dispusesse da audácia de prom eter e de m entir para criar à sua volta zonas de adesão mesmo entusiásticas, que aliás mais tarde o bom senso neutralizaria. Mas porque as deixamos criar? Porque, não constituindo um risco mortal, se espera que o fenómeno chamará à reflexão muitos outros que parecem cansados da ordem e da paz e se inclinam a crer 899

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • J951 a 1958 nas virtudes criadoras da agitação política, da variedade dos programas e da sucessão de soluções mal ensaiadas e logo postas de banda, do espectáculo de egoísmos e de ambições a que o País pode assistir mas não pode assistir sem pagar. São os que ao trabalho metódico e segundo planos preestabelecidos apelidam de imobilismo. Mas a estes mesmos eu quero prestar a justiça que mereçam, não porém sem começar por uma declaração em certo modo brutal. Se se está convencido de que se esvaiu o conteúdo ideológico da Revolução ou, o que é pràticamente o mesmo, que os princípios não são já eficientes nem os homens já creem neles ou são capa­ zes de aplicá-los, é evidente que eventuais transferências de poder não têm rele­ vância senão na medida em que possam ou não preservar o que através de tanto esforço se conseguiu a bem da Nação. Mas, se essa mesma Revolução tem ainda numerosos e devotados fiéis e se sente com vigor para impor-se, é então necessá­ rio que prossiga na pureza do seu ideal e primeira fé, expurgada do que o tempo tenha trazido de impuro às suas realizações e simultaneamente corrigida no que o mesmo tempo a tenha revelado imperfeita. É evidente que, se se houvesse mais cedo institucionalizado completamente o regime T. 3 eleição fosse de outra forma ordenada, a Nação não sofreria o desprestigio da actual ampanha. É evidente que, se a experiência corporativa estivesse mais avançada e alar[ ada a todos os sectores económicos, culturais ou morais, nós estaríamos habilitados a formular um juízo mais completo sobre as suas virtualidades e defeitos. É evidente que, se as ideias mestras do regime fossem levadas com persistência até à mocidade das escolas, das oficinas e dos campos, não haveria o menor receio de entregar-lhe, chegada a hora, a todos sem excepção, a herança pátria que infelizmente corre perigo em certas mãos. Há ainda o imobilismo das pessoas e das instituições, mas acerca deste assunto falaremos em época mais calma, quando pudermos situar o problema fora do domínio das paixões para o examinar à luz fria da razão. III. Queria ainda acrescentar umas palavras, por não saber se me faltará a o p o rtu ­ nidade para dizê-las. 0 Regime instaurado pelo Exército em 28 de Maio de 1926 e constitucionalizado depois pela aprovação plebiscitaria da Constituição Política gozou da inapreciável vantagem de se desenvolver até agora sob apenas dois Chefes do Estado, de cujas qualidades e serviços a Nação pode sentir-se orgulhosa. Acaso ou resultado de uma orientação política? Os que entendem não poder dar e os que não sabem dar à vida dos povos na sua direcção superior uma orientação qualquer estarão inclinados a concluir que apenas tivemos sorte. Eu direi porém que tanto no respeitante à estabilidade da chefatura do Estado como aos méritos pessoais dos que a ocuparam se trata na verdade do fruto dos princípios que professamos. Nem todos os regimes despertam ou fazem florescer nos homens públicos as mesmas qualidades; nem todos se equivalem na criação de um estilo de chefia ou no espírito de servir.

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XXV A Obra do Regime na Campanha Eleitoral 0 Senhor General Craveiro Lopes, cujo mandato terminará dentro de poucos meses, tem servido o seu cargo com tão exemplar dedicação, com tão elevada dig­ nidade, com tal fidelidade aos princípios fundam entais do Regime que os sete anos da sua magistratura seria ingratidão não guardá-los na nossa memória e no nosso reconhecimento. Além do mais, constituíram serviço do maior relevo as suas via ­ gens às Ilhas e a quase todo o Ultram ar português; sob o seu mandato o País teve a alta honra de receber e o prazer de retribuir as visitas de Soberanos e grandes Che­ fes de Estado cujas relações de amizade consideramos preciosas e factor im por­ tante da nossa política externa. 0 Senhor Presidente pôde ainda levar ao Brasil entre aclamações inesquecíveis o calor das nossas almas no abraço fraternal dos portugueses de todo o mundo. E não houve sobressaltos, nem hesitações, nem equívocos, porque tudo decorreu com naturalidade e nobreza, na ordem e na calma a que já nos habituáramos. - Ainda sorte ou política? Quase a fin dar o mandato presidencial, a União Nacional procurou um candidato na mesma linha em que das outras vezes se situou: escolheu o homem probo, digno, prudente, pronto a servir, capaz de interpretar e defender em momentos de crise os interesses da grei. Não será necessário tom ar de assalto uma fortaleza, mas pode bem haver necessidade de defendê-la. A nossa orientação tem sido sempre contra o reacender de lutas políticas, atra­ vés de cuja violência e trágicos desfechos vemos outros procurarem a sua fe lic i­ dade. A política só em sentido deturpado se pode confundir com agitação estéril, referver de ódios, estadear de ambições pessoais ou de grupos para a conquista e usufruição de altos lugares. Nada do que afirm o se opõe evidentemente - vê-se que não se tem oposto — à livre discussão dos problemas. Mas quer dizer que a consciência pública se há-de sobretudo form ar na reflexão de argumentos sólidos, sobre o conhecim ento de factos certos e bem interpretados, è luz de posições desin­ teressadas: não na excitação das paixões e na adulteração da verdade. A s minhas palavras de hoje pretenderam ser um contributo para que se form e e venha a agir correctam ente a consciência da Nação.

• Meus senhores: penso ter respondido ao vosso voto. 0 Regime pensa poder contar, para prosseguir, com a compreensão e lealdade do povo português.

SOI

X X V I. NÃO TENHAMOS RECEIO "> Cinco minutos bastam para o que devo dizer. Chega ao fim a campanha eleitoral, não como desejáramos mas como pôde ser. Caracterizou-se esta por manifestações, dispensáveis para a apresentação dos can­ didatos e confronto dos seus méritos ou mesmo para a comparação de ideologias e programas, se tem de sofrer-se em cada eleição presidencial uma sorte de plebiscito sobre a estrutura do Estado e todos os problemas da Nação. Esta revisão enciclo­ pédica a que tão liberalmente nos temos submetido foi desta vez acompanhada de atentados à ordem pública que perturbaram a tranquilidade habitual do nosso viver e podem ter deixado nalguns espíritos uma sombra de dúvida ou de receio. Perde­ mos um pouco no bom nome penosamente granjeado em m uitos anos; ganhámos em podermos interrogar-nos à luz dos factos sobre se se tratou duma campanha eleitoral à portuguesa ou à americana ou da preparação à sua sombra de m ovi­ mento sedicioso à russa. 0 espírito de subversão que surdiu aqui e além está segu­ ramente em todos os países civilizados fora das regras do jo go eleitoral. Nós temos trabalhado e continuarem os trabalhando na consolidação de um sis­ tema de vida e de governo em que a ordem resulta sobretudo da disciplina espon­ tânea de cada um e do respeito pelos outros, e por isso nos abstemos de agitar pai­ xões malsãs que entre os portugueses espalhem a divisão. Não fazemos apelo à violência, não diminuímos ninguém e a todos queremos prestar justiça. Pois agora teremos de pacientemente varrer a sementeira de ódios com que por acto de outrem a atmosfera do País se envenenou. Mas quero afirm ar com a fria serenidade habitual que dessa ou de outra form a se há-de restabelecer e rápidamente o ambiente de calma essencial à vida colectiva, quero dizer que o faremos em todas as circunstâncias e pelo emprego de todos os meios ao dispor da autoridade. Apesar de tudo, regozijam o-nos com o facto de as oposições se terem disposto a concorrer à eleição presidencial, e o Governo tem feito os m áximos esforços e lutado com as maiores dificuldades para possibilitar-lhes a actividade e levá-las até às urnas. Pela primeira vez, suponho, temos de enfrentar em cerrada coligação todos os que por qualquer m otivo - de doutrina, de sentim entos ou de interes­ ses - se conjugaram não para a renovação, com o alguns pensaram, mas para a

1,1 Palavras proferidas na sessão de propaganda da candidatura do Senhor Contra-A lm irante A m é­ rico Tomás, no Palácio dos Desportos, em Lisboa, em 4 de Junho de 1958.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 subversão do Regime. Seja qual for a sua representação, larga ou restrita, a pre­ sença nas urnas contradiz, e clamorosamente - como aliás já aconteceu com toda a propaganda - um dos lugares-comuns desta, o medo, contra cujo fantasm a se fingiu ter de lutar. A eleição será assim uma prova de força que podemos perm itir-nos no próprio campo do adversário. Nós estamos por demais habituados a um com odism o fácil em que a uns tantos incumbem as duras tarefas não só de conceber e realizar o que importa ao bem da Nação como de sacudir os inertes, alertar os descuidados, pro­ teger os tímidos. Eu vejo aproximarem-se tempos em que maiores sacrifícios do que o voto hão-de ser exigidos a todos para defesa do bem comum e mesmo do interesse legítimo de cada qual. Podem vir tempos em que é preciso estar disposto a lutar duramente; e felizes aqueles que tiverem quem os congregue, os conduza, lhes indique o caminho e assegure com o seu concurso a vitória. Não está no meu temperamento fazer apelos fáceis ao trágico, nem esse é o alcance destas palavras. Acho porém oportuno lembrar que nestes tem pos difíceis nenhum dos bens que usufruímos está seguro, se nós mesmos não quisermos co n ­ tribuir para a sua segurança. Nem a independência e integridade da terra pátria, iem a paz, nem a ordem, nem as comodidades e bens, nem o recato dos lares, nem j liberdade das consciências, nem a economia, nem o trabalho, nem os m elhora­ mentos ou empreendimentos públicos - nada é seguro senão na medida em que nós próprios defendemos os princípios de que tudo isso dimana ou em que tudo isso assenta e estamos prontos a bater-nos por eles. Mas eu queria afastar de mim hoje - e deploro não tê-lo conseguido inteiramente - toda a severidade e dureza, pois que o meu propósito era apenas fazer um apelo final, alegre e confiante, à vossa lealdade e, se for preciso, também à vossa coragem, para a eleição do novo Presidente da República. Há decerto numerosos descontentes e os governos têm de activar ou corrigir a sua acção no que im porte para desfazer esses descontentamentos. Há muitos incrédulos de alma vazia, que temos a obrigação de tentar converter à nossa fé patriótica. Haverá portadores de convicções muito afastadas das nossas e que devíamos esclarecer. Há todos esses e talvez por nossa culpa. Mas nós somos todos os mais. Somos tantos os que comungamos no mesmo ideal, somos tantos os que estamos ligados pela mesma compreensão do interesse pátrio, e temos trabalhado e sofrido para m aior prestígio e engrandecimento da Nação que ela não hesitará sobre que podem servi-la e, como até aqui, dignamente representá-la. Não tenhamos receio.

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X X V II. CAMINHO DO FUTURO 01 M eus Senhores: Esta reunião destinava-a eu ao exame de certo número de problemas políticos que as últimas eleições trouxeram ao debate e penso interessarem tanto às oposi­ ções como a nós próprios. Mas antes de ocupar-me deles cumpro o dever de reno­ var os agradecimentos à Comissão Executiva e a todas as comissões da União N acio­ nal pelos esforços empregados e os sacrifícios que houveram de fazer para assegurar a vitória, não obstante ter-se notado aqui e além alguma falta de zelo ou excesso de boa fé. As Senhoras e o movimento que organizaram merecem uma palavra especial, e ainda mais se alguns de nós chegámos às urnas pela sua mão. Decerto não houve lugar para receios mas o dever pode ser correctam ente cum ­ prido com frieza, enquanto a fé e o entusiasmo são com unicativos, criam adeptos, arrastam os tíbios, m ultiplicam as forças. Sejamos pois gratos às que nos deram tão largo apoio e tão proveitosa lição. 0 Supremo Tribunal julgou já definitivam ente o pleito eleitoral e não há pois dúvida de que ganhámos as eleições: no entanto estarmos bem convencidos disso é o ponto de que havemos de partir. Foi evidente a todos que a campanha das opo­ sições não foi propriamente de propaganda de candidatos à Presidência da Repú­ blica, mas o desenvolvimento de um processo subversivo e tal que se tem tentado protelar para além da eleição e se eternizaria e agravaria se, com espírito fraco e mão débil, o deixássemos alastrar. A aparência é pretenderem as oposições manter de pé a sua queixa de que as eleições não foram livres e lhas roubaram. Nunca ouvi dizer coisa diferente em Portugal às oposições que perdem. A diferença de votação é tal que ninguém pode crer seja possível obtê-la com baixas manigâncias, de que aliás fom os grandemente vítim as por muita parte. . Apesar de tudo, creio ter sido grande serviço prestado ao País a realização das eleições e a concorrência das oposições às urnas. Não que a designação do Chefe do Estado deva continuar a fazer-se por esta forma, mas porque é essencial criar e radicar para m anifestações semelhantes hábitos de tolerância e civism o de que o acto em si próprio, mau grado os precedentes, foi dem onstração exemplar. As críticas que em catadupa e com a violência dos grandes tem porais desabaram sobre o Governo e as pessoas intervenientes na Adm inistração perturbaram alguns

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Discurso pronunciado na sede da União Nacional em 1 de Julho de 1958.

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 espíritos que terão mesmo chegado a duvidar das virtualidades do regime e a si mesmos se interrogariam sobre a segurança do caminho trilhado. Esses não repa­ raram em que os gritos subversivos teriam então mais valor que os votos entrados nas urnas e a clara afirmação de fé que se destinavam a exprimir. Independentemente da atenção que a todas as críticas se deve, é, pois, em face da vitória, ç não das recriminações, que há-de definir-se o caminho do futuro. I.

Na situação em que nos encontramos, só duas vias se nos oferecem — e aliás nenhuma outra surgiu, por qualquer forma, do debate: uma, que pode exprim ir-se por completar, renovar, prosseguir; outra, fazer evolucionar o regime para um regime diferente e esse não pode ser senão o regime partidário. Quando falo em regime não faço alusão à Monarquia; esta não é um regime mas uma instituição que pode fazer beneficiar do seu contributo próprio regimes bem diversos. Mas para falar utilmente no problema é preciso que pudéssemos fazê-lo ó à luz da razão e do interesse nacional uniformemente compreendido. Não é prulente nem necessário para o meu fim remexer em paixões ainda vivas que certa­ mente turvariam o nosso juízo. Regressemos então ao regime dos partidos. Muitos países dos que nos são mais afins pela formação espiritual adoptam o fi­ cialmente o regime democrático e em muitos deles a democracia tomou a form a parlamentar. Mas enquanto que os regimes democráticos favorecem a floração partidária, as exigências da governação impõem pelo menos a redução dos partidos: o bipartidismo concertado parece ser em tais regimes a expressão menos inconve­ niente, mas para o momento só os países anglo-saxónios conseguiram radicar esta fórmula que nós já aliás conhecemos do rotativismo monárquico. Esta é a razão por que de fora nos chegam de quando em quando sugestões discretas no sentido de que é Governo devia suscitar, favorecendo-a, a sua própria oposição; cá dentro muitos aderem à ideia, julgando-a viável. 0 que vou dizer serve para dem onstrar que é possível criarem-se partidos políticos - o que era aliás o confessado objectivo das oposições depois de nova ditadura - mas que não é possível nem conve­ niente fazer um partido de oposição. Desde o começo do século XIX até ao presente nós fizemos em Portugal num e­ rosas experiências políticas, semelhantes, senão iguais, às que vemos fazer noutros países. Tivemos a monarquia não partidária, as guerras civis, os pronunciamentos, o caudilhismo dos marechais, o rotativismo de dois partidos, a fragm entação parti­ dária, a república sem partidos de 1910, de novo a divisão após a Constituição de 1911, as tentativas de aglutinação, o presidencialismo de Sidónio, enfim o 28 de Maio. No período anterior a este movimento havia na realidade um forte partido, solidamente estruturado, e em face dele pequenas patrulhas políticas ou, com mais propriedade e respeito, estados-maiores políticos sem forças im portantes que os seguissem. Nunca me pareceu que a relativa fraqueza destas fosse a resultante da força do partido democrático mas apenas da impossibilidade de se co n stitu ir um

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XXVII Caminho do Futuro partido conservador forte nas circunstâncias de então: a questão monárquica não permitia o recrutamento à direita de forças numerosas; e o processo revolucionário que de vez em quando interveio para estabelecer um sonhado equilíbrio pode dizer-se que se frustrou inteiramente. A ideia porém de que estaria aí a solução do problema político português era perfilhada por alguns que intervieram no 28 de Maio, e ter-se desviado desse trilho foi considerado uma traição e vemos que con ­ tinua a ser considerado um erro. Isso nos obriga a rever o problema em 1958. Como poderá formar-se uma oposição válida e que características poderia ter? Para m obilizar 23% do eleitorado, as oposições fizeram a maior coligação e a mais completa conjunção de esforços de que há memória e tiveram de aceitar a cooperação, senão a preponderância directiva, dos elementos comunistas. Os que sobrevivem do chamado partido democrático, monárquicos liberais ou integralistas desgarrados, socialistas, elementos da Seara Nova, o directorio dem ocrato-social, vestígios dos partidos republicanos moderados, alguns novos, sedentos de mudança, e os comunistas — todos poderiam unir-se, como fizeram, mas só podiam unir-se para o esforço de subversão, não para obra construtiva. Não se pode ser liberal e socialista ao mesmo tempo; não se pode ser monárquico e republicano; não se pode ser católico e comunista - de onde deve concluir-se que as oposições não podiam em caso algum constituir uma alternativa e que a sua impossível vitória devia sig­ nificar aos olhos dos próprios que nela intervinham cair-se no caos, abrindo novo capítulo de desordem nacional. De todos os agrupados para o assalto só uns, embora pouco numerosos, têm uma doutrina, uma fé, métodos próprios de acção: são os comunistas. De modo que, desintegrando-se ao mesmo tempo, a U. N., como seria lógico, a tal alternativa con­ funde-se com o aparecimento de uma poeira de partidos, dos quais o partido com u­ nista clara ou encapotadamente reconhecido seria o inspirador e guia e finalm ente a única força dominante. Há por aí fora muitos exemplos em que se devia atentar. A tendência que vai fazendo no mundo o seu caminho, imposta pelas d ificu lda­ des dos problemas internos e externos dos Estados, já se afirma com suficiente relevo no sentido não partidário e antipartidário; a meio caminho está o esforço de aglu ti­ nação ou mesmo o concerto dos partidos para dividirem entre si o poder, com o se fossem um só. Trata-se porém de organizações cujos fundamentos filosóficos e éti­ cos são idênticos ou afins e cuja separação é devida mais a incom patibilidades ou preferências pessoais do que a divergências doutrinárias. Não é porém isso o que se nos depara em Portugal; além disso, quando os outros se encaminham penosamente para a unidade, nós que pudemos conquistá-la recomeçávamos a dispersão. De todas as experiências políticas em que fomos fecundos, a dos últim os trinta anos constitui sem sombra de dúvida a que melhor se ajustou ao nosso m odo de ser, a que tem assegurado mais largo período de tranquilidade e paz pública, a que se desentranhou em maiores benefícios para a colectividade. Foi preciso im por sacri­ fícios, sem dúvida; é natural haver erros, injustiças, deficiências, atrasos, abusos - tudo isso o podemos admitir, porque nada é suficiente para destruir o valor da comparação. A ordem, a tranquilidade pública, o decoro da vida política, com

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Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 excepção dos períodos eleitorais, o prestígio conquistado, o progresso geral, o for­ talecimento da coesão nacional aqui e no Ultramar, aceitamos que com outras pes­ soas se pudessem conseguir: com outros princípios não. Não devemos confundir oposições e partidos, nem crer que, sem partidos expres­ samente admitidos ou pressupostos na Constituição e tidos como organizações indispensáveis à vida política, as vozes discordantes não podem fazer-se ouvir nem, por numerosas que sejam, ter peso na governação. Ao contrário. Só governos inde­ pendentes das organizações partidárias, abertos e nacionais, podem, sem se negar, satisfazer ou incorporar nas suas realizações e até na sua doutrina aquela parte de verdade e de interesse nacional que pode surpreender-se aqui ou acolá, sem depen­ dência de filiações partidárias, de credos ou de grupos. Mas os partidos não podem fazê-lo sem abdicar ou sem concorrer para a sua própria destruição. Se a Nação se comportar com bom senso e não sacrificar em demasia à abstracção dos sistemas e às ambições pessoais, o que está indicado não é regressar à desordem parlamentar e fraqueza dos governos, não é destruir a experiência que se acreditou pela sua eficácia, mas renová-la, se necessário, em pessoas e métodos, e prosseguir. Este o segundo caminho enunciado acima. II. Tem de reconhecer-se que algumas das dificuldades actuais provieram de se não ter completado mais cedo a organização corporativa e de consequentemente a Câmara Corporativa não se apresentar como a emanação directa dos interesses económicos, espirituais e morais, corporativamente organizados. Assim que isso suceda - o que deve ser em poucos meses - a Assembleia Nacional poderá alterar a Constituição no respeitante à designação do Chefe do Estado, porque haverá então possibilidade de encontrar base mais larga para o efeito do que a Câmara dos Deputados. De facto, aos que tomaram a iniciativa da Constituição de 33 não pare­ ceu razoável confiar a escolha do Presidente da República a uma assembleia tão limitada, quando os poderes que se lhe atribuíam e a sua situação no cume dos órgãos da soberania e independente de todos eles postulavam fosse designado pelo conjunto da Nação. Eu devo esta explicação àqueles que lembraram a promessa feita há anos de não dever mais ser possível um golpe de Estado constitucional. Surgem-nos daqui porém duas dificuldades: uma referente à viabilidade da experiência corporativa; outra à existência da própria Assembleia Nacional. Comecemos por esta. Pode discutir-se se, existindo uma verdadeira e autêntica Câmara Corporativa, se deverá manter essa forma de representação inorgânica e o sufrágio directo que lhe dá origem. 0 rigor dos princípios poderia levar à sua e xtin ­ ção; mas as conveniências práticas e a necessidade de conhecer-se e exprím ir-se por seu intermédio o interesse geral podem aconselhar que se mantenha e porventura se alargue na sua composição. 0 hibridismo do sistema não repugna nem é em política coisa de rejeitar. E se os homens independentes de qualquer formação partidária ou representantes de oposições esporádicamente constituídas aí tiverem assento, atra­

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XXVII Caminho do Futuro vés de vitórias eleitorais sempre possíveis, nada disso acarretará prejuízos ao fu n cio ­ namento do regime e à sua evolução. Apesar de a própria União Nacional se dever conservar aberta a todos os que professam um são nacionalismo, talvez se encon­ trem vantagens em que a vida política fique patente aos mais por outros caminhos. Agora a organização corporativa. 0 liberalismo económ ico morreu e nós não somos portanto livres de ter ou não ter uma organização. Havemos de adoptar uma. Fomos para a organização corpo­ rativa, porquê? Porque nos pareceu que ela nos daria a síntese desejável dos inte­ resses, o ponto de encontro dos representantes qualificados, a possibilidade de entendimento a substituir-se à luta de classes. Se partimos do princípio de que os interesses patronais e operários são essencialmente contraditórios e não solidários e de que, além desses interesses, não há um interesse geral a salvaguardar — o da sociedade ou o do consum idor — nós podemos reconhecer num e noutro campo a organização e podemos adm itir a luta entre ambos, sem nos im portar das conse­ quências. Mas esta concepção é tão claramente oposta ao interesse geral que o comunismo, partindo aliás da luta de classes, o que pretende é chegar à destruição dos antagonismos, fundindo no Estado a propriedade dos meios de produção e negando ao mesmo tempo a iniciativa da empresa e a liberdade do operário. Se estes querem manter-se livres, têm de repudiar o socialismo ou o comunismo, mas têm de compreender então que ao Estado se impõe promover uma organização em que a luta seja substituída pela colaboração e pela conciliação dos interesses. Está nisto a razão de ser da organização corporativa. Acontece porém que nos surgem montes de queixas acerca de alguns organis­ mos, o que pode ser causado ou pela deficiência geral de dirigentes com que lu ta­ mos em todos os sectores, ou porque a alguns pareceu que a organização corpora­ tiva havia de servir como meio de m ultiplicar intermediários, de anular a concorrência e de salvar, contra todos, as posições adquiridas por alguns, o que não está no nosso espírito nem é do interesse geral. É impossível tom ar neste momento qualquer posição porque a questão não está suficientem ente aprofundada e é preciso esclarecê-la completamente, verificando se o descontentam ento atinge os princípios ou a má aplicação destes. Há porém queixas quanto ao pessoal de muitos organismos, que a mim me não surpreendem, embora me surpreenda que se repitam sem se lhes dar remédio. O português que é generoso e bom transform a-se às vezes nas repartições atrás das mesas de traba­ lho, esquecido de que a pobre gente que pede um conselho, deseja um esclareci­ mento, se ju stifica duma falta é a que trabalha e paga para que nós defendam os os seus interesses. Por esse m otivo há m uito tempo que eu próprio deixei de trabalhar à minha secretária. III. Seja qual for a sequência dos acontecimentos, penso haver para qualquer governo uma tarefa árdua nos próximos seis meses. Se a Assem bleia Nacional

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a ¡958 aprovar, como esperamos, a lei do Plano de Fomento, e a Câmara Corporativa apro­ var, como igualmente se espera, esse Plano, o próximo orçamento terá de reflectir já o peso dos empreendimentos públicos e dos auxílios que ao Estado cabe prestar. Mas como isso representa apenas uma parte e não a maior, é evidente que a Previ­ dência, a Banca, as Companhias de Seguros e em geral os empresários têm de viver a mesma ânsia de financiamentos e realizações e preparar-se para eles. Tem ainda de lançar-se nos meses próximos o projectado banco de investimentos, para que esteja em condições de trabalho efectivo na mesma altura em que o II Plano de Fomento comece a executar-se. Ele será para a indústria privada um colaborador não só precioso mas indispensável, como fornecedor de crédito e talvez sobretudo como conselheiro e guia. Falou-se muito durante a campanha eleitoral dos pequenos vencim entos do funcionalismo mais modesto, e com isso se fez grande especulação; mas todos com ­ preenderão o seguinte. Não seria trabalhar com seriedade tomar providências ou compromissos a tal respeito, por maior que fosse a justiça e premente a necessi­ dade, nas vésperas de se lançar um vasto Plano de Fomento, sem se conhecerem as necessidades e se fazer o cômputo das possibilidades para uma e outra coisa. E só guando se definiu o conjunto de meios disponíveis e se fixaram as responsabilidaJes do Estado é que pôde dar-se andamento ao assunto dos vencimentos e ordena­ dos do funcionalismo civil e do pessoal militar. Em discurso sem responsabilidade especial pode falar-se mais despreocupadamente e fixar aumentos ou percenta­ gens, mas quem conhece a questão sabe que há aí três problemas a resolver e de grande melindre ou dificuldade: uma nova estruturação das classes de fun cion a­ lismo e respectivos vencimentos, visto a desactualização da actual; a actualização dos vencimentos em relação pelo menos com o custo da vida; o beneficiam ento das classes mais modestas em harmonia com as diferenças que se notam no próprio nível que a vida hoje tem. 0 adiantado dos estudos preparatórios perm ite-nos a fir­ mar que é possível a reforma a tempo de entrar em vigor com o novo orçam ento e o novo Plano, ou seja em Janeiro de 1959. Não deve esquecer-se que em relação ao funcionalismo um dos problemas mais prementes é o da habitação e também o da assistência na doença e que ambos já tinham sido considerados na lei de meios do corrente ano. Nós não podíam os porém prever que a campanha eleitoral até no preenchimento de boletins tivesse influência, pois se fez constar que não se seguiria nenhum acto de execução, e que apenas se tratava de propaganda do Governo. Mas as coisas retomaram o seu curso e hão-de cumprir-se como as mais. IV .

A renovação ou vivificação do regime, se por este caminho se entende seguir, imporá mudanças de pessoal em vários escalões. O poder cansa, gasta e desgosta os que o suportam, mesmo quando não há razão. Estes são como os doentes: v o l­ tando-os no leito, ficam com as mesmas dores e parece-lhes que estão melhor. 910

XXVII Caminho do Futuro Sabe-se que tenho sido um tanto refractario a mudar por mudar, e isso provém de duras lições da experiência e de um certo conceito de serviço público que sei não é o corrente. Compreendo porém as impaciências ou as necessidades políticas para cuja criação não desejo contribuir. Estou aliás convencido de que não devem ser sempre os mesmos os canais humanos por onde se exercem influências de qualquer ordem. No fundo têm de ponderar-se a cada momento vantagens e inconvenien­ tes, muitos dos quais nascem da nossa defeituosa formação. Se não fora assim, diríamos que a Suíça não é um país modelar, só porque vários dos seus ministros chegam a ter dezenas de anos de serviço e morrem na função. Esta questão foi posta sob o nome de imobilismo e o caso respeita em maior grau ao próprio Presidente do Conselho. De facto, passados trinta anos, nós podí­ amos já dispor, à moda antiga, de uma trintena de Chefes do Governo, a cuja inte­ ligência e honestidade faríamos justiça, sobretudo depois de mortos, sem que se lhes evitasse em vida um sentimento pessoal de frustração por falta de tempo de porem em prática as suas ideias de governo. Atrevo-m e a dizer alguma coisa mais sobre este assunto, apesar da sua delicadeza, porque mesmo entre os nossos não se possui ideia exacta da questão. Sou o primeiro a compreender que não se devem barrar, além do necessário, os caminhos por onde os maiores valores ascendam aos altos postos: além de que as forças diminuem e a capacidade de trabalho deixa de corresponder às exigências, a Nação só terá a lucrar com o alargamento de tais possibilidades. Simplesmente, embora o tenha proposto, não tenho forçado uma saída, na esperança de atingir um grau de estruturação e consolidação do regime que lhe permitisse singrar sem d ifi­ culdades de maior. M uitos por certo o fariam tão bem, melhor que eu, mas nós encontrám o-nos em face de um sentimento que originou o que podemos chamar a visão catastrófica dos acontecimentos, e essa trouxe aos espíritos uma sorte de in i­ bição. Este modo de ver não é ju stificado mas tem agido com o pesada realidade política que nos devemos esforçar por modificar, deixando ao sentim ento a parte que lhe toca mas perm itindo à razão discernir como lhe cumpre. Em resumo, sou um homem que está sempre preparado a partir, não digo que sem desgostos mas sem desilusões. M uito desejara eu que todos os que são guindados às culm inâncias das honrarias e do poder, e o julgam sua pertença e direito, ou alguma vez gozaram dos favores da multidão, meditassem um pouco a Paixão de Cristo com o é descrita em qualquer dos Evangelhos. Há sobretudo dois pontos dignos de reparo. Nurn domingo Jesus entra em Jerusalém triunfalmente. Aquela m ultidão que atra­ íra a si deixando cair sobre as suas misérias uma palavra de consolação ou luzir o raio de uma esperança estendia as vestes, juncava de plantas o caminho, seguia-0 em apoteose. Pois em quatro dias, que tantos são os que vão de domingo a quinta-feira, secaram as flores, murcharam as palmas e os louros, calaram-se os hossanas e os vivas e até as gentes miraculadas não consta que tornassem a aparecer. 0 outro ponto refere-se ao Chefe dos Apóstolos. S. Pedro aparece-me com o pura emanação da natureza, filh o da terra ou do mar, aberto, simples, leal, firm e na am i-

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 zade como uma rocha e tanto que Cristo quis fundar sobre ela a sua Igreja. No Jar­ dim das Oliveiras ainda teve uma reacção viva; depois foi colhido pelo pavor geral; ainda assim meteu-se no meio da turba, errava por aqui e por ali, seguia com o estra­ nho as diligências do processo, tentando penetrar o que podia sair do julgamento. Eis então que uma criadita que por ali andava em serviço reparou na fala de Pedro, pela qual lhe pareceu que teria algo que ver com os acontecimentos, e Pedro não só nega mas jura e torna a jurar que nem sequer conhecia o Mestre. Diz o Evangelho que a seguir saiu do pátio e chorou amargamente. As lágrimas devem ter lavado a fealdade do acto e o arrependimento foi tal que a chefia da Igreja não lhe foi retirada e nem sequer discutida. Mas aquela negação ficou para sempre como o protótipo da trai­ ção, a traição pura, quero dizer, sem fim, sem razão e sem proveito. A acusadora não tinha categoria ou representação oficial; a imputação não tinha gravidade; demais o momento foi para o Mestre o da tristeza infinita que deve inundar uma alma acusada sem provas e condenada inocente. Ainda se pode admitir que a amizade houvesse diminuído, que a fé se entibiasse, que o futuro se deparasse incerto quanto à aceita­ ção da nova doutrina. Mas o conhecimento pessoal do Mestre esse era um facto incontroverso, não podia ser negado, e só o foi de facto naqueles momentos de misé­ ria em que a alma humana se afunda e atinge a última degradação. É claro que o facto é único na história pelas circunstâncias e pelas pessoas, e não e repetirá mais como se passou. A nós, pobres de Cristo, só podem acontecer-nos pequenas coisas que sem motivo nos espantam - haver quem esqueça as mercês recebidas, não corresponda aos serviços que se lhe prestaram, não se contente com todas as satisfações do interesse ou da vaidade — coisas que não significam nada e são apenas expressão de fraqueza desta pobre humanidade. V. Ninguém pode dizer com verdade que foram escassas as liberdades concedidas na última campanha. Foram precisamente até àquele ponto em que a ordem am e­ aça subverter-se e, quando não há ordem, verifica-se que as mesmas liberdades continuam a não ser bastantes para alguns, e deixam de ser garantidas a todos os demais! Há gente para quem a liberdade tem um sentido essencialmente agressivo. Vi sustentar a tese de que o fenómeno se verificou exactamente porque não é aquele o regime normal e existem limitações que se desejariam ver desaparecidas. A conclusão parece-me simplista; mas não a discuto. As liberdades ilim itadas a si próprias se destroem, e os limites em que as leis as confinam dependem das possi­ bilidades de serem usadas sem dano, as quais possibilidades estão mais dentro de nós que na vontade do legislador. Mas adiante. Desde alguns extremistas monárquicos até aos democratas e aos com unistas - é delicioso ver como neste País os comunistas acamaradam com aqueles e recla­ mam liberdades, decerto para as exportarem depois para além da cortina de ferro, onde parece fazerem alguma falta - a actual lei de imprensa e, senão esta, a exis­ tência da censura prévia foi considerada como contradizendo o princípio co n stitu 912

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cional da liberdade de expressão. Isto não é exacto, mas a questão tem-se deixado como questão aberta, digamos a ser tratada e discutida livremente, porque, sendo de tão grande interesse, pode ser que a discussão a esclareça e nos permita retom á-la èm mãos de modo que se conciliem os diversos interesses. Reparemos desde já em que a censura é entre nós tão benévola que se deixa discutir a si pró­ pria, não já nos erros que cometa mas nos seus princípios e na sua função. Por ora só tenho visto mais desenvolvidamente tratado o aspecto da dignidade intelectual do jornalista, supostamente atingida pela interferência de organismo estranho à empresa em que trabalha. Mas o assunto é muito mais complexo do que parece. Ou de facto a imprensa com as suas irmãs mais novas — a rádio e a televi­ são - não exercem influência alguma na form ação da opinião pública, e não vale a pena gastar tanto tempo com estas discussões, ou exercem, e então os governos para os quais, como entre nós, à opinião é atribuída constitucionalm ente uma fu n ­ ção de força social têm de evitar a sua perversão. E têm também de defender o interesse nacional. 0 direito reconhecido ao jornalista ou ao escritor não pode aspirar ao absoluto e tem de ser enquadrado naquelas duas necessidades essenciais. 0 problema é extraordinàriamente difícil e não se lhe encontrou em parte alguma solução satisfatória, porque, além de um aspecto subjectivo que não se pode elim i­ nar - a m inha verdade, a tua verdade - há interesses económ icos e interesses polí­ ticos vastíssimos e perturbadores na form ulação e venda da inform ação e da dou­ trina, distribuídas depois ao domicílio, e de que os países têm por vezes de acautelar-se, se quiserem salvar a alma e sobreviver. Eu compreendo que a Censura molesta um pouco os jornais, mesmo indepen­ dentemente de quaisquer deslizes ou falhas de apreciação, mas não há dúvida de que a sua existência tem permitido uma segurança de trabalho e até uma liberdade de acção - o que parece contraditório mas não é - que não vemos noutros regimes supostamente mais liberais. Não há um caso de apreensão, muito menos de assal­ tos ou empastelamentos como outrora, e pode dizer-se que nem suspensões de publicação ou delitos a julgar em tribunais. Há jornais monárquicos e republicanos, católicos e protestantes, políticos ou simplesmente noticiosos, neutros, favoráveis ou pertinazmente inimigos, e todos sabem que só podem ser o que são porque não estão dependentes do Governo nem por qualquer forma, já bem com penetrados dos limites, se sentem coactos na sua actividade. A imprensa deve saber que há num e­ rosas formas possíveis de actuação administrativa através das quais «inocente­ mente» se pode negar na prática, dim inuir ou distorcer a sua liberdade legal; mas esse é um campo que nos está vedado, pelo que o interesse público tem de ser defendido sem que obrigue a tais intervenções. É preciso reconhecer que quem governa tem em relação ao interesse nacional responsabilidades graves que não pode trespassar a outros e nos casos duvidosos tem fatalm ente de prevalecer o seu juízo. Nesta espécie de interinidade que decorre até à posse do novo Chefe do Estado, não se pode ir mais além; mas se vier a ser possível chegar a um texto legal que suprima ou diminua as razões de queixa apresentadas, ressalvando, com o cum pre, o interesse público, ninguém por capricho ou teimosia se lhe oporá.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 Isto quanto ao ponto central da questão, porque relativamente a coisas de importância secundária, como as críticas à administração geral ou local ou de orga­ nismos económicos, nunca se viu motivo para não se permitirem. Eu sou grande ledor de jornais e testemunha dos benefícios que se podem tirar, conhecendo por eles as aspirações ou reclamações dos povos e os motivos dos seus descontenta­ mentos. Muitas vezes posso sobre esse noticiário pedir informações aos serviços, activá-los, tirar algum bem da intervenção. Os jornais devem porém com preender as suas limitações próprias, derivadas de muitas causas, mesmo estranhas à sua boa vontade e sacrifícios económicos, que algumas vezes são nestas apreciações invo­ luntários veículos de animosidades pessoais e não poderão fugir a uma espécie de empolamento que sofrem as coisas em letra redonda, quando comparadas com a nossa observação ou com a documentação oficial. Parece-me que haverá grande utilidade em estudar formas de contacto que ajudem a imprensa a estar opo rtu na­ mente informada da política e da administração pública, mas, por mais esforços que se façam, parece-me que ela não poderá ir fácilmente, em relação aos grandes pro­ blemas, além de um plano de certa aproximação. Para aligeirar um pouco a exposição, contarei o episódio seguinte. Há muitos anos, no velho Convento dos Grilos, em Coimbra, discutia-se, a propósito de uma notícia de jornal que me dizia pessoalmente respeito, o valor informativo da imprensa, iu não tinha saído naquele dia, não tinha viajado naquele comboio, não fora àquela cerra, não estivera ausente aquele tempo. Onde a verdade da informação? O Senhor Cardeal-Patriarca que sempre foi de espírito mais liberal do que eu, concluiu que a verdade, a essência da notícia estava em que tinha saído de Coimbra. Não fiquei convencido, mas a vida ensinou-me depois que mesmo essa pequena fracção de ver­ dade pode ser útil, porque por ela se pode vir a conhecer e a afinar o resto. V I. Eu quero concluir com duas notas apenas. Alguns agitadores têm procurado arrastar operários industriais e trabalhadores do campo para greves de protesto político. As eleições acabaram e a greve é entre nós um crime. Nós não podemos permitir que por tal forma se tente eternizar um processo findo, e mesmo com o coração a sangrar por causa das consequências que daí advêm para pessoas geralmente desprovidas de bens, somos obrigados a enfren­ tar esses acontecimentos com a maior dureza. Parece-nos absolutamente essencial que o trabalhador viva na salutar convicção de que só a ordem lhe pode assegurar trabalho e que dessa convicção tire a força de ânimo - outra não é preciso - para resistir às imposições escravizadoras dos condutores duma agitação social que ju l­ gamos sem esperança e sem futuro. 0 mundo está a sofrer sob todos os aspectos uma grande e rápida transformação. A gravidade dos problemas que enfrentamos não vai por isso diminuir, mas aumentar cada vez mais. E a tarefa é tão grande que não sei como haja quem a não sinta e a não queira servir. Além disso somos um pequeno país, de reduzida população, modes914

XXVII Caminho do Futuro tas forças e certas debilidades estruturais. Duas coisas nos serão sempre necessárias: um governo forte e uma nação unida no pensamento de se perpetuar e engrandecer. Daí a minha intransigência para com todo o regime, toda a actividade, toda a agita­ ção política que esterilizem os governos, sem distinção de pessoas, ou cavem divisões profundas no agregado nacional. Penso que desservirão o nosso interesse de nação e o todo tenderá a desagregar-se, sem recuperação possível. Não há leis, nem constituições, nem regimes políticos, nem organização de força que por si garantam a finalidade nacional a atingir, se os espíritos a não partilham, a não prosseguem e defendem, cada qual em seu sector. Haverá sempre algumas incompreensões e descontentamentos em coisas secundárias. Contrapõem -se-lhes porém as dedicações fiéis e os espíritos desinteressados, capazes do sacrifício e da luta por causas superiores. Os votos entrados nas urnas e os muitos milhares de apelos, angustiados ou vibrantes, recebidos nos últimos tempos dos portugueses de Portugal e dos que andam pelas mais longínquas regiões do mundo não me parece poderem ter outro sentido que o expresso aqui.

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X X V III. NA POSSE DA COMISSÃO EXECUTIVA DA UNIÃO NACIONAL (,) Realiza-se com bastante atraso esta pequena cerimónia da posse de uma nova Comissão Executiva da União Nacional, visto que a anterior apresentou há muito a sua exoneração. Convidada para trabalho de poucos meses, ela teve de presidir a fi­ nal a dois actos eleitorais que as circunstâncias tornaram agitados e mesmo difíceis, mas apesar de tudo plenamente vitoriosos. Não é meu intento fazer declarações de importância sobre a vida política e os problemas do Governo - essas ficarão para outra oportunidade. Mas não quero fugir a dizer as duas palavras que reputo no momento indispensáveis. A primeira é para agradecer os serviços prestados pelos que, abandonando embora a direcção efectiva da Organização, hão-de continuar connosco, em espírito de dedicação e pura lealdade, como nos promete, e de acordo com o que esperávamos, o seu antigo Presidente. A segunda não é tanto para saudar os membros da Comissão agora nomeada, como também para agradecer-lhes disporem-se ao sacrifício que as fu n ­ ções comportam. Não posso dizer-lhes que são risonhos os tempos ou leves os encargos que vão recair sobre os seus ombros. Serão ao contrário bem duros, pelo menos até que possamos despertar os adormecidos, incitar os tíbios, reacender por toda a parte a fé. Não foi a última campanha eleitoral, não foi a eleição presidencial que nos co n ­ venceu da persistência ou reaparecimento de um mal conhecido - as nossas dis­ sensões políticas. É mal antigo, senão crónico por triste infelicidade. Em face deste mal pode seguir-se um de dois caminhos: o primeiro, o caminho indicado pela pró­ pria divisão, aceitando-a como irremovível, alargando-a pelo próprio facto de se reconhecer, concedendo-lhe direitos, fazendo-a entrar na orgânica estatal. Assim se viveu durante muitos anos, a desperdiçar valores, a incendiar ódios, a enfraque­ cer os governos até à impotência, a amesquinhar a Nação até ao descrédito. Outro caminho será não dar valor a divergências ocasionais, pôr de lado os dis­ sídios ideológicos sem repercussão válida na vida da colectividade e tentar cham ar à colaboração a máxima parte das vontades e das inteligências, através da d e fin i­ ção do que tenho chamado o denominador comum do interesse nacional. Porque no fundo de todos os que recebemos uma herança de oitocentos anos de vida inde­ pendente e dura, de ideais vividos, de tradições morais comuns, sempre me pareceu que seria possível encontrar, admitidas umas tantas excepções, o sentim ento de

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Discurso proferido na sede da União Nacional em 6 de Dezembro de 1958.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1951 a 1958 fidelidade a meia dúzia de princípios incontroversos, de linhas de acção indiscutíveis no que respeita ao futuro e portanto ao Governo da Nação Portuguesa. A s divisões políticas tenho-as julgado na máxima parte artificiosas, como a história da dem o­ cracia a cada momento revela: o povo, como povo, sobretudo se está na raiz de uma velha nação, tende para a unidade, apreende quase por instinto o interesse co lec­ tivo e só aspira a ser bem conduzido e governado. Com este pensamento e sobre esta base se tentou uma frente nacional, para cuja constituição foi necessário pôr de banda as questões de regime, alguns pre­ conceitos, particularismos políticos, resolver a questão religiosa. M as as paixões que foram desencadeadas no último período eleitoral devemos reconhecer que ameaçaram abrir brechas nesta frente, da qual se retiraram até alguns dos que sem­ pre estiveram connosco. Essa frente uns tantos, poucos, monárquicos a quiseram romper; alguns católicos se jactam de a haver rompido e com tal desenvoltura que lograram o aplauso não só de liberais com quem se irmanaram pela sua pretensão partidária como dos com u­ nistas que diríamos estarem no pólo oposto aos princípios e interesses da Igreja. Este último facto considero-o da maior gravidade, não pela perda de elementos que indi­ vidualmente se afastem da frente nacional, mas pela perturbação lançada em muitas :onsciências, até agora tranquilas, acerca da legitimidade das suas posições religio­ sas e políticas. Hoje pelo menos não me ocuparei do assunto: ele oferece tão graves implicações no que respeita à Concordata e mesmo ao futuro das relações entre o Estado e a Igreja que tenho entendido dever manter para público com pleto silêncio. Conhecemos a doutrina da Igreja e não duvidamos de que as autoridades com peten­ tes, repetindo-a aliás quantas vezes forem necessárias, a farão seguir com inteira fidelidade nos organismos onde se têm verificado desvios. Ser-me-ia sumamente penoso, a mim que alguma coisa contribuí para a pacificação religiosa e a liberdade da Igreja em Portugal e para o regime de prestigioso carinho de que a mesma tem sido cercada nos últimos trinta anos, ter de apresentar reparos, e, em nome de um poder igualmente legítimo na sua esfera de acção, dizer quais os limites que de todos os modos se fariam respeitar a bem do interesse nacional. Estes fenómenos e outros do mesmo género podem traduzir apenas desvairos transitórios de origem emocional ou estar ligados ao clima de transform ações que à nossa vista se estão operando no mundo político, económico e social. Essas mutações trazem perturbada e como que enlouquecida pela sua vertiginosa rapidez a pobre humanidade. Tudo tende hoje a pôr-se em termos de revolução e mesmo de revolução catastrófica, e muitos que aspiram a dirigir a coisa pública estão im bu­ ídos desse espírito e sacrificam a essa deusa. E podem então verificar-se solidarie­ dades estranhas, senão criminosas cumplicidades. Como é que aqueles para quem o homem é o centro e a chave da criação e por uma ou outra forma querem respeitada e dignificada a pessoa humana podem associar-se aos que a não reconhecem nem respeitam por exigência da sua tese revolucionária? Como podem aqueles para os quais qualquer revolução política ou

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xxvni Na P osse da Com issão E xecutiva da União N acio nal

social tem de mover-se e adaptar-se ao quadro nacional conciliá-la com o interna­ cionalism o de outros? E como é que se manifestam contra nós, porque julgam insu­ ficientes as liberdades que usufruem, aqueles mesmos que acamaradam com os que redondamente as negam todas? Estas incongruências não podem ser duradouras, pelo que a reconstituição e consolidação de uma frente nacional é tanto imposição da lógica como exigência do interesse colectivo. E com este fim nos incumbe trabalhar.

Como? Não é segredo para ninguém que nem a Comissão Central nem a Comissão Exe­ cutiva têm podido dar em todos os momentos à Organização aquele impulso e directrizes que se fariam mister. Uma criação excelente — o Centro de Estudos Polí­ ticos e Sociais - pode realizar um esforço de esclarecimento e investigação no cume mas não tem estado em condições de fazer chegar à periferia as conclusões dos seus estudos. Nem porventura tais conclusões interessariam à grande massa dos filiados, para os quais os problemas concretos, com as soluções encaradas pelos governantes, têm no dia a dia outro alcance e muito maior interesse. Se conseguir­ mos que a Comissão Executiva despenda todo o tempo necessário à reorganização dos corpos anquilosados ou descrentes, à orientação política de todas as comissões, ao desenvolvimento do Centro de Estudos e, noutro plano, até por meio de um pequeno boletim, ao esclarecimento constante e actual dos problemas e das suas soluções, julgo que nova seiva percorrerá todos os ramos e a União Nacional se apresentará rápidamente com nova vida. Tendo fugido a qualquer parecença com as actividades e influência de um par­ tido político, a União Nacional padece de uma inferioridade visível e não dispõe mesmo de elementos de acção eficientes. Nós temos insistido em que no fun cion a­ mento dos serviços, no provimento dos cargos, na concessão e distribuição de benefícios não há política, não se faz política. Isto exige uma contrapartida - que os mesmos beneficiados com a nossa renúncia não façam política contra o regime que os favorece. Mas fazerem-na tem-se visto com uma insistência e até um des­ caro que não podem deixar de notar-se e, quando notados, reprimir-se. 0 conceito de não se fazerem favores pessoais ou benefícios com fim de captar influências nada tem que ver nem com a audiência das entidades políticas que deve fazer-se, nem com o trabalho segundo planos determinados de que a Adm inistração com dificuldade se afastará. Eu digo que não se pode invocar a técnica e só a té c­ nica quando temos diante de nós homens e necessidades humanas a satisfazer; nem a técnica se há-de sobrepor à política, pela simples razão de que sem a política ela não existiria ou não poderia trabalhar. Todo o M inistro é um político, mesmo quando se tem a felicidade, como geralmente acontece, de ele ser ao mesmo tem po técnico de alto mérito. E a valorização da obra realizada é dever de colaboração com quem em nome dos interessados a solicitou e no meio deles a defende e a 919

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louva. Não compramos dedicações, não sei mesmo se temos direito ao reconheci­ mento; mas, dentro daquele meio termo justo em que devemos trabalhar, tem os de fazer compreender a todos o valor dos benefícios e até nalguns casos a razão de adiamentos ou recusas. Não confundamos a política com o governo: este pode ser excelente e, com o se tem visto, ser péssima aquela, por falta de compreensão ou por falta de fé. A União, como suporte político do movimento, não é responsável pelos actos do Governo, mas tem seguramente de ser responsabilizada pela não integração do espírito público no pensamento que conduz os governantes e na obra que serve a Nação. É por isso preciso levar a toda a parte uma dupla crença - nos fins e nos métodos, fazer que a Nação colabore naqueles e tenha a convicção de que só por estes ú lti­ mos os pode atingir.

É preciso também interessar a Juventude na grande obra colectiva. Não falo da 'ossa Mocidade que estará decidida e pronta, mas da que lhe passa ao lado. Tenho ouvido que alguma juventude de hoje, especialmente universitária, sofre e uma espécie de angústia, se lamenta de sentir a alma vazia e que bastantes jovens procuram preencher esse vazio absorvendo as doutrinas comunistas. Espero que essa angústia seja mais uma atitude do que sofrimento de alma. Em qualquer caso não vejo razão para ela. É certo que estamos assistindo a grandes transformações na vida do mundo. 0 período que aí vem passar-se á sob o signo do económico e do social - isto é, vai assistir-se a um esforço gigantesco para o desenvolvimento e criação de novas riquezas e um esforço igualmente sério para uma distribuição equitativa. Estas perspectivas que se verificam por toda a parte não podem, independentemente das suas repercussões morais, ser causa de ansiedade; se estamos despegados de todos os privilégios, teremos apenas de preparar-nos, estudando e praticando, para traba­ lhar mais e produzir melhor. Mas tais tarefas que encherão plenamente a vida não podem desagradar à Juventude, fazê-la sofrer, torná-la triste; antes lhe darão pos­ sibilidades de orgulhosamente nos ultrapassar. Também nós os que chegamos agora ao fim da jornada vivemos em jovens épo­ cas de tristeza e de amargura, menos por motivos de ordem mundial do que pela situação em que se encontrava o País. Alguns de nós foram ainda empolgados pela euforia que então despertava o regime republicano e pela esperança depositada nos seus homens de governo. Mas, se bem me recordo, depois de perdidas m uitas ilu­ sões, o ambiente geral da juventude universitária de 1910 a 1930 também não era optimista, mesmo depois de passada a guerra, que podia aliás ser um estímulo, e para pequeno escol o foi. No entanto os que pertenciam a essas gerações, quando tive­ ram de responder pela coisa pública, tomaram-na corajosamente nas mãos e, porque tinham ainda fé, podem orgulhar-se de transmitir a essa Juventude que me dizem angustiada uma situação mais esclarecida, uma actividade mais intensa e uma nação

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X X V III. Na P o sse d a C om issão E xecutiva da U nião N a cio n a l

mais prestigiada do que a que lhes fora entregue. Por mais que certos confrontos nos entristeçam, por mais que certas deficiências nos deprimam ou denunciem que talvez pudesse ter-se feito mais, o surto da vida nacional nos últimos trinta anos deve causar-nos satisfação. E tanto na pequena casa lusitana, como na vastidão dos territórios ultramarinos apesar dos temporais que os ameaçam e devemos estar pre­ parados para enfrentar de todos os modos, as relações são mais límpidas, as situa­ ções mais claras e sólidas, o caminho para o futuro é mais aberto e mais livre. É evidente que se partiu duma premissa - a pátria e os nossos deveres para com ela. Penso que a Juventude não estará em crise sob este aspecto; porque se essa angústia começa por desconhecer que nós só somos porque os nossos antepassa­ dos foram e só continuando o seu esforço e os seus sacrifícios somos senhores da nossa terra e do nosso destino, então verdadeiramente estamos em face, não de uma Juventude angustiada, mas de ramos mortos da árvore nacional. Esses tais não farão nada nem para o progresso ou grandeza da Nação nem mesmo da humani­ dade, ainda que alguns nos acenem com este eufemismo. Eu temo a intensificação materialista que aí vem com todo o esplendor das suas riquezas e a repercussão que hão-de ter na alma dos povos, se desacompanhada de conveniente actuação moral. Mas à parte esta incidência, porque terá a Juventude a alma vazia? Não lha encherá suficientem ente o amor da pátria, a dedicação fam i­ liar, a história dos antepassados, as crenças herdadas ou adquiridas, as ambições lançadas sobre o futuro, o trabalho, os estudos, as preocupações presentes, a ale­ gria dos 20 anos, os inevitáveis desgostos, o sofrim ento próprio e até alheio? 0 que pode encher estas almas jovens que não sejam sentimentos generosos, amizades e camaradagens fraternas, dedicações até ao sacrifício, o amor da vida, a co ntinu i­ dade dos lares paternos pela constituição de fam ília própria? Que pode cum ulá-los mais do que um grande sonho, a tranquilidade da consciência, a honra, o brio, o cumprimento dos deveres? Algum a coisa não está certa na nossa obra de educa­ ção, se os vinte anos, vigorosos e sãos, dão à Juventude uma alma desesperançada e lânguida, em vez de um espírito viril, e lhes não inspiram uma palavra de singela mensagem a transm itir ao seu mundo. Mas suposto que se abriu esse vazio nalgumas almas, poderá o com unism o enchê-lo? Julgo podermos responder negativamente. Por mais fascinadores que sejam até ao presente os triunfos e aliciantes as conquistas do comunismo, ele não pode preencher as almas dos neófitos pela simples razão de que deixou vazias as dos velhos combatentes. 0 seu materialismo condena-o; ele não foi construído à escala humana, porque para o fazer triunfar é preciso rebaixar o homem até caber dentro dele. É um sistema que responde a todas as perguntas e ansiedades do nosso tempo, diz-se. Entendamo-nos: responde na medida e no plano puramente m ate­ rialista em que o próprio homem é apenas o animal representativo de uma força de trabalho e de uma capacidade de consum o às quais se submetem as forças da in te­ ligência. E para além disso é ainda admissível certa expressão de arte, mas a fé e a liberdade não podem coexistir com ele.

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Na ordem prática o comunismo é na verdade a maior revolução e talvez a maior experiência político-social de todos os tempos e, se não fora a enormidade dos sofrimentos que tem causado, quase poderíamos regozijar-nos de que um grande país fizesse essa experiência para lição da humanidade. Mas está porém longe de se apresentar uno ou lógico, à nossa maneira. Quem lhe segue atentamente o curso vê como avança, muda, retrocede, inutiliza o já feito, para se entregar noutra direc­ ção a novo esforço. E toda essa imensa revolução só pôde fazer-se dim inuindo de facto o homem a que se destina. Ele próprio, omnipotente e avassalador, sente lim i­ tações tanto quando o homem russo por acaso se recupera como quando enfrenta homens cuja personalidade não pode adulterar ou vencer. Veja-se a Polónia; lem­ bre-se a Hungria; não se esqueça Berlim. É possível que a generosidade das almas moças se deixe seduzir por alguns aspectos sociais que o comunismo lhes oferece, sobretudo em contraposição a aspectos de injustiça, de esbanjamentos desrazoáveis, ao lado de misérias im ereci­ das. Chocante, sem dúvida; injusto muitas vezes; mas é essencial não perder de vista que um movimento austero, implacável, ousado, pode ser caminho mais seguro e preço mais módico das transformações desejáveis. Se alguma desta juventude de que falo deixou secar a alma, porque perdeu a fé e o amor da pátria, não estranho se refugie nos mistérios do comunismo. 0 que não pode é esperar que ele substitua os valores morais permanentes que definem a nossa civili­ zação. É assim preciso não a deixar perder se e chamá-la, interessando-a na acção. Nós podemos indicar-lhe uma grande tarefa; e esta tarefa pode salvá-la para Portugal.

Afirmei que apenas me interessava dizer duas palavras e já cumpri. Elas deviam ser suficientes para dar ideia do esforço que a todos nos incumbe no dom ínio polí­ tico e no futuro imediato. Colectivamente a Nação precisa de crer em alguma coisa e em alguém. Se não, pode fácilmente correr desvairada atrás de mitos, cerrarem-se-lhe horizontes de névoa, despenhar-se em abismos. Simplesmente a recuperação é dolorosa e difícil e os tempos presentes não permitem experiências que podem ser decisivas para a integridade da Pátria e viver futuro da gente portuguesa. Daqui vem que as nossas responsabilidades são maiores do que em tem pos mais calmos e fáceis, em que podia brincar-se com a política, agitando paixões e alim en­ tando a consciência pública com promessas ilusórias, em vez de lhe serem presen­ tes os dados dos problemas nacionais. Faço votos por que a Comissão Executiva consiga pelo seu esforço manter a atmos­ fera de compreensão, de entusiasmo e de fé, precisa para a obra que nos propomos. E também um pouco de espírito combativo necessário para certas ocasiões...

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6 .°

DISCURSOS

E

NOTAS

POLÍTICAS

19 59 A 19 6 6 l .A EDIÇÃO, R EV IST A

I. PANORÂMICA DA POLÍTICA MUNDIAL (,) PRESIDENTE SALAZAR Li o que o General Franco lhe disse. Escrevi-lhe para lhe dizer que ele fora muito indulgente, demasiado indulgente comigo. De onde veio para Lisboa? SERGE GROUSSARD De Bona, Excelência. Encontrei-me lá com o Chanceler Adenauer. PRESIDENTE SALAZAR Adm iro-lhe o equilíbrio intelectual e físico. Um homem excepcional. Falou-lhe da Alemanha Oriental, não é verdade? SERGE GROUSSARD Sim. PRESIDENTE SALAZAR Que tragédia!... E como acabará tudo isso? Quando leio os apelos dos russos a favor do desarmamento e os oiço proclamar o seu desejo de apaziguamento, gosta­ ria de me sentir co n fia n te ... Mas não tenho o direito de esquecer as lições do pas­ sado. Quem ousaria hoje pedir a demolição do sistema de protecção do Ocidente? Nunca procuraremos desencadear uma guerra, mas a nossa única esperança é que do outro lado não se lancem numa horrível aventura. Quanto à confiança recí­ proca, neste momento nem falar nisso é bom.

Por constituir uma visão panorâmica da política mundial da época, inclui-se no presente volum e a tradução da entrevista concedida ao jornalista francês Serge Groussard, publicada no jornal Le Figaro, dos dias 2 e 3 de Setembro de 1958. Serge Groussard faz anteceder a entrevista duma pequena biografia do Presidente do Conselho a cuja passagem final se refere a primeira resposta inserida no texto.

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SERGE GROUSSARD Como explicar este sinistro clima? PRESIDENTE SALAZAR 0 evangelho marxista-leninista é muitíssimo claro! Trata-se de instaurar progressiva­ mente o marxismo-leninismo em todo o Mundo. E tudo obedece a esta determinação. SERGE GROUSSARD Em vez de um propósito agressivo, não existirá entre os actuais senhores da União Soviética o medo do capitalismo? Julgo que eles fazem com frequência o raciocínio seguinte: o capitalismo está historicamente condenado; a sua decadên­ cia é constante; a única possibilidade de deter temporàriamente o curso im p la cá ­ vel da história consiste em se lançar contra o seu futuro vencedor. PRESIDENTE SALAZAR Não creio. Esse raciocínio, que aliás parte de uma base falsa, levá-los-ia a ter confiança e de modo algum a ter medo e a fazer uma política que, apesar dos ganhos já adquiridos, lhos pode comprometer, a esses e a tudo o mais de maneira definitiva. SERGE GROÜSSARD Não existirá entre eles, também, o receio de uma nação em especial: a A le m a ­ nha? Dá a impressão que, acima de tudo, receiam a sua reunificação. PRESIDENTE SALAZAR É evidente que, depois do armistício de Maio de 1945, os sovietes julgaram que a Alemanha ficaria durante séculos esfacelada. Seria de uma grande segurança, e tam ­ bém de uma grande vantagem para os seus planos, este vácuo formidável no coração da Europa! Os aliados ocidentais têm - é conveniente dizê-lo - uma parte de respon­ sabilidade nesta situação tão perigosa. Em primeiro lugar porque exigiram a capitu­ lação incondicional do III Reich. Em seguida, porque após a vitória aceitaram que fosse dividida em duas uma Alemanha dilacerada. A Alemanha unificada seria uma barreira quase intransponível. Se a Alemanha não existisse era necessário inventá-la. 0 germano é tradicionalmente o escudo da Europa perante a pressão eslava. SERGE GROUSSARD Com a condição de que ela se contente com as suas fronteiras.

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/. P a n o r â m ic a d a P o lít ic a M u n d ia l

PRESIDENTE SALAZAR As lições são mais bem compreendidas pelas nações do que pelos homens... Ao dizer-lhe isto penso no que se passou depois da vitória de Novembro de 1918... Os aliados teriam podido salvar a Áustria-Hungria. Este país, na sua heteroge­ neidade, era factor primordial de equilíbrio. Ajudava a Alemanha a preservar o Oci­ dente da pressão russa e obstava às tendências prussianas para o Anschluss. Era o cão de guarda ideal, tanto mais que a diversidade dos seus povos e as suas rivalida­ des a impossibilitavam de aspirações territoriais. Isso não impedia, aliás, devido à sua população, às suas riquezas, à sua extensão, às suas tradições administrativas e militares, de impor respeito a eventuais provocadores. Ora o que fizeram os aliados em Versalhes? Suprimiram do mapa a Áustria-Hungria. Erro confrangedor, um dos que podemos colocar na origem da Segunda Guerra M undial e das nossas actuais dificuldades. SERGE GROUSSARD M as Portu gal esteve presente em Versalhes! E assinou o tratado de paz. PRESIDENTE SALAZAR Que podia fazer uma pequena nação nessas discussões de gigantes! Como sabe, só as vozes das três grandes potências ocidentais desse tempo conseguiam fazer-se ouvir. A própria Itália só era escutada com impaciência. SERGE GROUSSARD Julgo que as pequenas nações j á nõo ficam silenciosas nem ignoradas nos debates internacionais. PRESIDENTE SALAZAR Crê nisso? Elevar a voz não sig n ifica que se tenha influência. As pequenas nações não são hoje mais capazes do que ontem de im por os seus pontos de vista. Elas podem, quando m uito, evitar, «boicotar» a p olítica alheia; mas não podem im por uma. E isso é humano, talvez irrem ediável. 0 Conselho de Segu ­ rança da ONU nasceu desse pensam ento e assentava na esperança do e n te ndi­ mento de um pequeno grupo co ndu tor de povos, até que a divisão dos grandes paralisou o seu fun cion am en to e entregou à Assem bleia, isto é, tam bém por­ ta n to às suas divisões e aos seus grupos, indiscrim inadam ente, interesses que nem sempre estará em condições de garantir. Q uanto a nós, conhecem os a nossa dimensão, ou seja a nossa pequenez, sem prejuízo de estarm os atentos aos nossos direitos.

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O liveira S o la z a r D iscu rso s e N otas P o lític a s • 1959 a 1 9 6 6

SERGE GROUSSARD Portugal, um país pequeno? Mas o seu império é vasto e está presente em qu a­ tro dos cinco continentes; e o quinto, a América, recebeu, com o Brasil, um cunho português indestrutível. PRESIDENTE SALAZAR Sabemos que não é a superfície que dá o poderio. Éramos bem poucos quando descobrimos e formámos o Brasil. Mais tarde as forças aí criadas colaboraram valiosamente na obra comum e Portugal teve o maior orgulho em poder convidar, nas comemorações centenárias de 1940, a grande Nação brasileira a celebrar em conjunto connosco séculos de história pátria. Hoje seguimos com desvanecim ento a ascensão gloriosa da nação brasileira de que tive a grande honra de conhecer em Lisboa o ilustre Presidente Kubitschek, na visita à «pátria da sua pátria». SERGE GROUSSARD Portugal constitui o tipo da potência colonial. PRESIDENTE SALAZAR Precisávamos de entender-nos primeiro sobre o significado de palavras que parece se degradaram e fazem estremecer tão bons espíritos. Para já aceitem os que somos uma pequena potência colonial. SERGE GROUSSARD Quanto a superfície, o seu conjunto não é assim tão m od e sto ... Portugal, p ro ­ priamente dito, incluindo a Madeira e os Açores, tem 92 m il quilóm etros quadrados e nove milhões de habitantes - arredondando os números — ao passo que as suas possessões ultramarinas se elevam a 2 160 000 quilómetros quadrados, com 12 500 000 habitantes... PRESIDENTE SALAZAR Não há possessões portuguesas, mas pedaços de Portugal dissem inados pelo mundo. Em Lisboa, em Cabo Verde, em Angola ou em Moçambique, em Goa, na Guiné, em Timor ou em Macau é sempre a Pátria. SERGE GROUSSARD Evidentemente que a Constituição Portuguesa é formal: Portu gal é um a Repú­ blica unitário. Todas as terras onde flutua a bandeira encarnada e verde fazem

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/. P a n o r á m ic a d a P o lít ic a M u n d ia l

parte de provincias que vivem em plena igualdade de direitos e deveres. M as é contudo certo que em M oçam bique, p o r exemplo, o estatuto da população negra não é pràticam ente o mesmo que o dos portugueses da metrópole. A s sobrancelhas espessas do Prof. Solazar franziram -se oo de leve. Dizem que é m uito nervoso, como aliás todos os pensadores que amam a solidão. Contudo, até este momento nada denunciara nele uma quebra de serenidade. D ir-se-ia que algo de hermético se oculta através da sua aparente im passibili­ dade. O seu olhar sombrío parece frio e um pouco enovoado. PRESIDENTE SALAZAR A cada um segundo o seu grau de evolução. Um iletrado não pode votar, tanto faz em Lisboa como em Lourenço Marques. Para nós a palavra colonia no seu mais puro significado continua respeitável. SERGE GROUSSARD Colónia, em latim, significava «estabelecimento criado em terra estrangeira»... PRESIDENTE SALAZAR E colonus - que deu colono - queria dizer cultivador! De que se tratava? De que se trata ainda? De criar. De cultivar, na ampla acepção do termo, os seres e as coisas. 0 vocábulo tinha nesse tempo um nobre significado. Marinheiros, que sem­ pre fomos, exploradores e grandes caminheiros através do Universo, figuram os entre os primeiros colonizadores do mundo e, apesar de pouco numerosos, a nossa obra neste domínio é incomparável. SERGE GROUSSARD Noto que a sua afirm ação corresponde a uma convicção profunda. PRESIDENTE SALAZAR Deus assim o quis. Guia-nos a nossa tradição. Descobrir terras longínquas, des­ bravá-las, metamorfoseá-las. Fazer progredir, sem atritos - pacientem ente!- as popu­ lações indígenas; ter em conta todos os factores concretos e abstractos que em toda a parte são sempre a imagem do homem, espírito e carne, tudo isso nós conhecemos. SERGE GROUSSARD Ergueu-se no mundo uma grande e avassaladora onda de anticolonialism o, que s

tende a avolumar-se.

Atinge já as colónias m ais isoladas.

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A s duas prim eiras

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 nações do mundo erigiram o onticoloniolismo em doutrina, apesar de uma e outra terem feito e continuarem a fazer ainda colonialismo. PRESIDENTE SALAZAR Assiste-nos o direito de enjeitar as lições dos fariseus. Eles querem ignorar que nada de grande se forja sem o tempo, que permite às civilizações brilhar cada vez mais, como um sol que se eleva no horizonte sobre populações incultas, e espalhar entre elas, em vagas ritmadas, lentas, contínuas, as suas tradições - estas tradições que são o único instrumento de progresso. Com firmeza, serenamente, as suas mãos alongadas sincronizam as afirm ações. Não basta saber pilotar um avião de reacção ou utilizar uma bomba de hidrogé­ nio, para ser um civilizado. É necessário, além disso, ter atrás de si o patrim ónio acumulado por uma longa teoria de gerações, sem o que haverá desequilíbrios e negras sombras. E o bárbaro científico de amanhã, que nós teremos insensataiente deixado utilizar, na íntegra, as descobertas sucessivas e espirituais criadas ela nossa civilização, apoiada em milhares de anos - esse bárbaro sem patrim ónio pode ter-nos à mercê dos seus erros e dos seus excessos. SERGE GROUSSARD Cioso de tentar interpretar, em toda a sua plenitude, o pensamento de Vossa Exce­ lência, eu direi que, em seu critério, o Ocidente - com mais clareza: o cristandade oci­ dental - monopoliza a verdadeira civilização e deveria, por esse facto, continuar a dirigir o mundo durante alguns séculos. Há, porém, que assinalar a existência de outras civilizações - penso ao falar assim, nas da China, do Japão e do Islão. PRESIDENTE SALAZAR Eu não afirmei que o Ocidente Cristão disponha do exclusivo da civilização. Existem outras famílias humanas que têm história e luzes próprias. A minha opinião é esta: de uma parte, a civilização ocidental é a mais completa, a mais profunda, a única que pôde criar e implantar valores de alcance universal. Por outro lado, seria loucura que o Ocidente abandonasse as populações que por si próprias não pude­ ram elevar-se de estados primitivos e ele está em vias de educar e fazer progredir. SERGE GROUSSARD A situação é diferente no que respeita às antigas colónias, de im igração, com o os actuáis Estados Unidos ou a Austrália. Nestes países, foram os colonizadores que se separaram do mãe-pátria; botões que desabrocharam noutros céus. A f i930

1.

Panorámica da Política Mundial gura-se-me, em casos desta natureza, que a nova seiva obtida pela transplantação tenha compensado o desenraizamento do solo ancestral. PRESIDENTE SALAZAR É por essa razão que me assombro ao ouvir descendentes de pioneiros combater sinceramente o colonialismo! Analisemos os Estados Unidos: no seu fulgor actual quem são? Dos nossos: é a Europa conquistadora que neles brilha! E o Brasil? Perm itim o-nos dizer: o «nosso Brasil»! Lá, como em toda a América, são os coloniza­ dores do passado que dominam, através da sua descendência. Constituem a per­ feita justificação da colonização cristã. SERGE GROUSSARD Nas regiões em que a presença ocidental é contestada não há colonização de povoamento, mas, se mo permite, colonização de autoridade. Estas regiões criticas constituem vastos territórios da Oceânia e uma p arte im portante da África, terras em que o clim a e as conjunturas históricas impediram até à data a im igração m aciça de europeus. Pioneiros se sucederam, de geração em geração, p or pequenos grupos, para assumirem um papel de educadores e guias. A propaganda inter­ nacional proclam a que estes representantes do Ocidente chegaram ao fim da sua missão. E as massas indígenas que até este momento aceitaram esse ju g o parece desejarem lib e rta rs e das suas cadeias. PRESIDENTE SALAZAR Não se trata de cadeias mas de laços férteis. Esses propagandistas teriam razão se a obra colonizadora não se houvesse transform ado em obra de educação e de progresso material e moral. A rotura de tais laços operará um retrocesso, sejam quais forem os apoios técnicos ou financeiros que países estranhos ao trabalho rea­ lizado e às actuáis soberanias se prontifiquem a prestar. Mas não podemos genera­ lizar a tendência para a revolta cega. Enfim, vós pronunciastes a palavra propa­ ganda. Há, de facto, uma propaganda, muito bem orquestrada, que espalha ideias falsas e mentirosas. É ela que causa as gangrenas. É por seu intermédio que os o ci­ dentais contribuem para a sua própria perda. Que os comunistas procurem por todos os meios, neles incluída a propaganda anticolonialista, entravar o progresso e semear a discórdia, é normal e isso corres­ ponde às suas intenções: provocar por conflitos e pelo caos o aniquilam ento da c iv i­ lização ocidental. Que diversos imperialismos se conjuguem para tentar destruir as posições do Ocidente onde eles as possam atacar, com o pretexto do anticolon ia­ lismo, é também natural. Mas que os filhos da nossa civilização se prestem a esta obra de destruição, ainda mesmo com o fim reservado de obter lucros pessoais, constitui um crime. 931

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 SERGE GROUSSARD

E se a propaganda anticolonialista, arbitrária ou não, triunfasse? O direito dos povos a dispor de si próprios... Salazar encara-me, um momento, atentamente. Uma pausa, e depois: PRESIDENTE SALAZAR Se um filho seu de tenra idade quisesse abandonar o tecto paterno para correr mundo, consentir-lho-ia? Que hipocrisia o direito dos povos! A Hungria de 1956 gozou desse direito? É certo que na Universidade de Coimbra, tal com o na Sorbona, na Universidade de Moscovo ou na de Bogotá existem muitos negros africanos, mongóis ou indianos, que assimilaram notavelmente o ensino moderno e que pare­ cem ter suprido uma ignorância secular. Em Portugal grande número dos nossos compatriotas de origem africana, asiática ou oceânica integraram-se com êxito nas profissões liberais. Há entre eles altos funcionários e até personalidades que exer'em funções ainda mais importantes. Este escol trabalha integrado numa nação, io caso particular a nação portuguesa, e tem no seu seio mais possibilidades do que as que lhe adviriam duma criação nacional que tinha de ser em numerosos casos artificial e débil. 0 futuro pode evidentemente indicar e até impor outros cam i­ nhos; mas no mundo em que vivemos, ao mesmo tempo que novos impérios se for­ mam e se preconiza a aglutinação de várias nações independentes, prega-se em relação a povos já integrados em grandes aglomerados nacionais a sua fragm enta­ ção e dispersão. Reflectindo nestes dois movimentos contraditórios, não posso fugir a pensar que o fundo do problema está, afinal, mais na pretensão a substituir soberanias do que no interesse das populações. Que existia em quase todos os territórios descobertos pela Europa Ocidental desde o século XVI? Tribos primitivas, pobres e rudes! A exploração racional dos recursos naturais, a organização, a cultura, o progresso espiritual: eis, em síntese, a obra dos Cristãos. Mas não se recupera nalguns séculos um atraso de milhares de anos. Salazar nunca se excita. Jantais improvisa. Nem sequer nestes instantes, pois, sendo por temperamento um reflectido, medita profundamente os problem as que aborda. Em nada se revela um retórico. Por hábito, na intenção de ser claram ente compreendido, dá um cunho especial a cada frase, sem procurar, de nenhum modo, efeitos espectaculosos. L im itase a modelar o seu pensamento. SERGE GROUSSARD Vozes candentes proclamam que as noções tradicionalmente colonizadoras, tor­ nadas secundárias, já não dispõem dos meios adequados às suas ambições, pelo que paralisam a ascensão das suas possessões exteriores. Estas para escapar a uma 932

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Panorámica da Politica Mundial estagnação funesta, devem, o mais depressa possível, libertar-se, para poderem recorrer a outros auxílios mais poderosos, mais modernos e isentos de tirania. PRESIDENTE SALAZAR Conheço o argumento que não me impressiona. Em primeiro lugar o raciocínio confunde lamentàvelmente civilização e progresso material. Em segundo lugar julgo partir-se da suposição de que há no mundo duas grandes potências que podem tom ar sobre si o encargo de financiar o desenvolvimento económico de todos os países em atraso. Todos podem observar que isso não corresponde às realidades. Refiro-m e ao desenvolvimento harmónico e integral de um país e não ao enrique­ cimento de um feudal que faz concessões, enriquecimento compatível com a pobreza geral. Para que esse desenvolvimento seja viável, é necessário dispor-se de uma soberania bem assente e de uma administração responsável, quer dizer, duma maturidade política das populações em causa. Só sobre estas bases o financia­ mento externo se pode conseguir, postas de lado, evidentemente, as operações financeiras de fim político, limitadas por natureza, interesseiras e estranhas a qual­ quer progresso moral. Acrescentemos que o tempo e o trabalho próprio são facto res indispensáveis a toda a obra de elevação humana e que o dinheiro não basta para resolver tais problemas. Repare em como se encontra recheada de erros e deficiências esta argumentação que está aliás longe de ser desinteressada. Sem desconhecer nem menosprezar os perigos que nos rodeiam, a nós e às nações em circunstâncias semelhantes, estamos firmemente resolvidos a continuar o nosso trabalho segundo os nossos métodos tradicionais. Nós formamos, através do Mundo, uma só alma e um só corpo. Não há nenhuma possibilidade de separar uma alma de um corpo. Que se nos deixe o que é nosso. SERGE GROUSSARD Nacionalism o sem ambiguidade. PRESIDENTE SALAZAR Sou nacionalista. SERGE GROUSSARD Aceitaria, apesar de tudo, a integração num a eventual federação europeia? PRESIDENTE SALAZAR Não é um problema a encarar neste momento. A Europa só há pouco deixou de virar as armas contra si mesma. Está dividida em dois blocos hostis cujas fronteiras 933

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 vão ao ponto de dividir uma das suas principais nações em dois cortes opostos. A pró­ pria Europa Ocidental é tão heteróclita! A história, as línguas, as possessões fora do antigo continente, os interesses económicos, as instituições, não vejo como tudo isso que separa os seus Estados, pudesse fundir-se numa união efectiva. Há quem veja doutro modo o problema. Aguardemos e fiquemos atentos. Creio que uma velha nação é análoga a um ser humano. Pode fraternizar com outro, mas o seu espírito e o seu corpo ficam intangíveis, e não há um ser humano que não sinta, no decurso do tempo, necessidade de solidão e de originalidade na acção e no pensamento. SERGE GROUSSARD É, contudo, evidente que as nações da Europa Ocidental têm — com o o acen­ tuou - por património comum a civilização cristã. Além disso têm os mesmos interesses vitais e devem fazer face às mesmas ameaças. PRESIDENTE SALAZAR Estou disso firmemente convencido e foi a consciência da solidariedade ociden­ tal que nos levou a aderir à OTAN. SERGE GROUSSARD «Organização do Tratado do Atlântico Norte»: mas Portugal, pela sua posição geográfica e pelos seus laços fraternos com o Brasil, não estará m ais interessado no Atlântico Sul, que os Portugueses gostam de designar «p o r m ar lusitano»? PRESIDENTE SALAZAR Evidentemente. Mas não levemos o exagero da divisão ao ponto de fragm entar os próprios oceanos! 0 Atlântico, na sua unidade, é, ou deve ser, a chave do Ocidente. Uma luz fugitiva iluminou o perfil de Salazar, quando se voltou pa ra me m os­ trar um grande mapa-múndi colocado na parede. Repare neste mapa. 0 Pacífico é um campo cerrado, em cujas margens colossos rivais se enfrentam. A ocidente: a União Soviética com os seus prolongam entos siberianos e a China; a oeste: os Estados Unidos. 0 Oceano índico é flanqueado de nações neutralistas e de nações amigas. Sem falar dos oceanos glaciais, pouco pra­ ticáveis e pouco seguros, nem do Mediterrâneo, que, em caso de crise, não deixaria de oferecer perigo, apenas o Atlântico pertence, de facto, ao Ocidente até nova ordem! Constitui um indispensável, um formidável traço de união entre a Europa e o continente americano. Um ideal instrumento de vigilância que se prolonga até os dois pólos. Mas se neste mar se criassem bases comunistas, se uma única das 934

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Panorámica da Política Mundial nações litorais fosse hostil à nossa concepção de civilização, o A tlântico em vez de uma ligação capital transformava-se numa barreira. SERGE GROUSSARD Entre os países do litoral atlântico a América pode ser considerada segura. 0 Oeste da Europa, também. M as as costas africanas... PRESIDENTE SALAZAR É um problema importante. Não pode haver segurança no Atlântico sem existir segurança em África. Quando por mais não fosse, o Ocidente devia agarrar-se a este continente. Lembre-se do encerramento do canal de Suez em 1956. Os oci­ dentais puderam então desviar as suas frotas pela rota do Cabo e receber, de novo, tranquilamente, o petróleo da Arábia e do Irão. SERGE GROUSSARD Houve, contudo, alguns incidentes nos portos m arroqu in os... PRESIDENTE SALAZAR Nada de gravidade. Mas certamente que a situação se tornaria séria se M arro­ cos se afastasse do Ocidente. Falou de integração europeia. Na minha opinião é necessário ter uma visão mais elevada e ampla. A Europa entregue à solidão seria estrangulada. As suas garantias principais são, de um lado, a vitalidade das nações que a compõem, do outro lado, o Atlântico e a África. A África é o maior, talvez o últim o recurso da Europa. A Bélgica, a Espanha, a França, a Grã-Bretanha, a Itália e Portugal continuam a orientar uma grande parte da África. Quanto às nações africanas que já atingiram a independência, a maior parte, como a Etiópia, o Ghana, e a Libéria, compreendem ser do seu interesse o entendimento com a Europa. E não esqueçamos a União da África do Sul. Estão deste modo reunidas as condições de uma colaboração em grande escala para a valorização entre essas nações de um continente novo que, apoiando-se na Europa Ocidental como a Europa Ocidental se apoiaria nele, nos asseguraria uma grande e firm e prosperidade, isto é, noutros termos, nos faria reencontrar uma real independência que decuplicaria as possibilidades de paz. As novas nações subdesen­ volvidas da África negra aproveitariam, elas também, plenamente deste esforço. SERGE GROUSSARD Tudo dependeria de os anticolonialistas não conseguirem destruir, uma a uma, as posições que a Europa ainda conserva em África. 935

Discursos

e

Oliveira Salazar Notas Políticas • 1959 a 1966

PRESIDENTE SALAZAR Tudo depende dos meios psicológicos e materiais que empenhemos ali. Se as Nações europeias interessadas directamente em África se revelarem cansadas do seu esforço e não estiverem dispostas a prossegui-lo; se essas nações não acredi­ tam já nem na superioridade dos seus princípios civilizadores nem no valor dos sacrifícios que as gerações passadas fizeram para os acreditar e impor, a construção acima não terá viabilidade e a história não só da Europa como da Am érica seguirá rumo diferente. Assistir-se-á de facto a uma viragem da história e penso que a civ i­ lização retrogradará em vastas zonas. Se temos juízo, não separemos as co le ctivi­ dades africanas dos seus guias seculares que pouco a pouco, e não com o torrente devastadora, lhes vão transmitindo a sua civilização. SERGE GROUSSARD As possessões africanas portuguesas estão tranquilas? PRESIDENTE SALAZAR Completamente. E estes territórios continuarão a progredir em plena harmonia se não houver manejos estrangeiros... Referi-me, então, à circunstância de terem aparecido delegados de A n g o la e Moçambique nas últimas conferências de propaganda anticolonialista e evoquei, em especial, o violento discurso que pronunciou o «representante» de Angola, no Cairo, recentemente. 0 Presidente Solazar murmurou:«Pelo que vejo, já está informado». Ergueu leve­ mente os ombros. Lembrei-me que um dos seus intimos me tinha dito: «em toda a parte se encontra um exaltado ou um louco». O único índice visível de im paciência: distendeu um pouco as pernas. Então o meu olhar fixou-se nas suas botas negras e usadas. Recordei-me das evocações da sua juventude que um dos seus condis­ cípulos me havia feito esta manhã. Já aos vinte anos era desprovido de afectação. Era um homem silencioso, consagrado aos estudos. SERGE GROUSSARD Depois da guerra as perturbações mais sérias que se produziram nas p rovín cias exteriores de Portugal não tiveram por teatro a Índia Portuguesa? PRESIDENTE SALAZAR Sim, mas as dificuldades vieram de fora - da União Indiana. Penso que o Pri­ meiro-Ministro Sr. Nehru foi mal informado acerca do que chamamos ainda, por força de velha tradição, Estado Português da índia, e de facto é apenas uma pequena pro936

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Panorámica da Política Mundial víncia, de território parcelado e pequena população (3 400 km2 e cerca de 600 mil habitantes). Falamos às vezes de Goa, mas é de facto Goa, Damão e D i u - e nenhum escapou às dificuldades da pressão exterior. Além de que os pequenos territórios nenhum valor têm, nem nenhum perigo representam para a União Indiana, os dirigen­ tes desta deviam ignorar o sentimento real das populações, a decisão portuguesa de defendê-las e as possibilidades dos territórios que deitam sobre o mar livre. Estes três factores não permitiram que a situação evoluísse como se esperava na União Indiana. Depois das campanhas de satiagrais - Verdadeiras invasões de multidões desar­ madas, mas nem por isso menos atentatórias da soberania e autoridade legítimas a União Indiana lançou mão de todos os meios de pressão possíveis: não permitiu mais as transferências de economias ou de pensões, proibiu a circulação de pessoas, atingindo moralmente a numerosa colónia portuguesa de Bombaim, fechou as fro n ­ teiras à importação e exportação de mercadorias, cortou as ligações ferroviárias, telegráficas e telefónicas, não deixou que os barcos que tocavam a União Indiana servissem a índia Portuguesa, através do porto de Mormugão (Goa). E não me refiro às violências exercidas em relação a todos quantos na União Indiana e originários de Goa se mostravam fiéis ao seu país de origem e tiveram de sair ou eram expulsos. Penso que nada do que se podia fazer para levar a sucumbir moral e econom ica­ mente um pequeno território se deixou de fazer. Resultado? Quanto aos territórios principais de Goa, Damão e Diu, e especial­ mente do primeiro, o mais im portante de todos, operou-se uma inversão das suas relações económicas e uma intensificação de aproveitamento dos seus meios natu­ rais. A riqueza das minas de manganês e de ferro, em crescente e intensiva explo­ ração, permitiram com facilidade e felicidade que a índia Portuguesa se destacasse em absoluto da economia da União Indiana e em grande parte se voltasse para os outros países e para o Ocidente, para onde se intensificaram ou instituíram de novo as relações marítimas e aéreas. E a área em cultura há-de dar dentro de alguns anos alimentos suficientes para a população: bastará que se aumentem as áreas irrigadas e se actualizem os processos de cultura. Esta inversão das relações económicas e humanas de Goa, causada pela situação que lhe fora criada, tem sido fomentada, dirigida e paga em boa parte pelos nossos recur­ sos; mas ela não seria de facto possível sem que a população tivesse desde começo afir­ mado na índia e no estrangeiro a sua firme vontade de continuar portuguesa, e se o Governo não tivesse mantido uma política de, na medida das suas forças, a apoiar e defender. Desde que a alta envergadura moral do Primeiro-Ministro e as suas ideias sobre a regulação pacífica de todas as questões internacionais não lhe permitiam a inte­ gração violenta de Goa na União Indiana, a nós competia de facto assegurar a ordem e dentro desta trabalhar na resolução dos problemas postos. E foi o que fizemos. Sei que há pessoas que, inclinadas a reduzir a questão a contas de cfeve e haver, criticam a atitude do Governo de Lisboa ou pelo menos a não compreendem in te i­ ramente. Em suma a operação seria ruinosa. Mas não se trata disso. Trata-se de saber se os povos têm ou não o dever de manter o seu patrim ónio histórico e moral, mais que as riquezas materiais, e se os que são filh o s da Nação podem ser 937

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 alienados ou deixar de ser defendidos. Ninguém contesta a soberania secular de Portugal em Goa que é uma fracção de Portugal também. Mas se se insiste em querer que a sociedade internacional se organize em termos de direito, é Portugal quem tem razão. Sou assim levado a pensar que a situação se irá pouco a pouco m odificando e melhorando w. Nos últimos tempos várias disposições foram tomadas pelo Governo da União Indiana nesse sentido. Resta o litígio relativo aos enclaves de Dadrá e de Nagar-Aveli, inteiramente incrustados nos territórios da União Indiana e por isso facilmente isoláveis. A questão foi por nós posta ao Tribunal Internacional de Haia: esperemos a sua justiça. 0 Presidente Solazar falou-me das dificuldades passageiras que conheceu o minúsculo território portuário de Macau, na China; incidente rápidam ente sanado porque, declarou-me,«a velha cultura chinesa não tem interesse em tentar fechar a primeira porta aberta no Extremo-Oriente». Falámos, depois, de Timor, esta metade do Ilha de Sonda onde Portugal cravou a sua bandeira. Os japoneses in vadirom-na violentamente durante a última guerra. PRESIDENTE SALAZAR A ocupação japonesa de Timor não teve senão uma desculpa formal: é que, com receio do desembarque e da ocupação da ilha pelos japoneses, as forças ocidentais tinham ali desembarcado primeiro e feito uma primeira ocupação. À parte isto, nunca compreendi o carácter violento, destruidor, da ocupação japonesa, ao co n ­ trário da forma como os australianos se comportaram, tanto mais que o Japão estava em boas relações connosco. SERGE GROUSSARD Causou admiração a vossa neutralidade na última guerra m undial. A velha aliança com a Inglaterra (Tratado de Windsor, 13741), o drama de Timor e as suas consequências nos Açores envolviam-vos no conflito. PRESIDENTE SALAZAR A razão essencial é que a nossa beligerância só podia ser a do Ocidente; a da Espanha que desde 40 tinha os alemães nos Pirenéus podia não ser a mesma. 0 desastre duma rotura deste bloco peninsular era tão grande para as potências ocidentais, especialmente para a Inglaterra com um pé em Gibraltar, que desde logo se viu ser a neutralidade do conjunto a situação mais favorável para todos. Mas

1,1 0 que não aconteceu, como veio a verificar-se em Dezembro de 1961. 938

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Panorâmica da Politica Mundial v¡u-se igualmente e com clareza que urna era condição da outra. Os nossos acordos com a Espanha permitiam e conduziam a essa situação; tínhamos de apoiar-nos reciprocamente para que a Península pudesse ser urna zona de paz no mundo con­ vulsionado e a Espanha pudesse ir sarando as feridas da sua guerra civil. (Declarei, então, ao Professor Solazar que graças a M. Bernard Menthon, nosso em baixador em Lisboa, tinha lido o Livro Branco que o Governo português p u bli­ cara depois da guerra, leitura esta que me revelou o estreito entendimento lu so-b ritônico durante o conflito.) Apesar desta situação se manter na Europa, entendíamos do nosso dever reocu­ par Timor e agrupámos em Moçambique as forças necessárias para a operação. As potências aliadas porém não se manifestavam favoráveis a uma iniciativa m ilitar portuguesa que tinha de ser pela força das coisas independente naquela zona, e havia para essa concepção razões de sobra. Depois de uma conferência do Presidente Roosevelt com o Prim eiro-M inistro Churchíll foi-nos dito que a melhor colaboração que poderíamos dar aos aliados não era reocupar Timor - que logo faria perigar Macau dado que as forças japonesas ocupavam o Sul da China — mas pôr uma base à disposição da aviação para a luta anti-submarina que a Alemanha mantinha activamente dentro de uma malha não defendida e que só podia ser dominada dos Açores. Fez-se então o acordo de 1943 com essa finalidade e em poucos meses os aliados conquistaram uma segurança no Atlântico que até aí não puderam ter. SERGE GROUSSARD M eu pai, o coronel Groussard, recordava-m e ainda recentemente, como fo i e fi­ caz e pronto o apoio das autoridades portuguesas quando em M aio e Junho de 1941 passou por Lisboa, donde seguiu para Londres, a avistar-se com Churchill e Eden, e depois do seu regresso. PRESIDENTE SALAZAR 0 nosso coração estava com o Ocidente. SERGE GROUSSARD A s relações de Portugal com a Espanha são m uito cordiais. PRESIDENTE SALAZAR Seguramente. Encontrei sempre no Generalíssimo uma tal lealdade, um tal sen­ tido dos interesses comuns de Portugal e da Espanha na Península, tão profunda amizade por Portugal, que sobre esses sentimentos se pôde erguer uma política 939

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 benéfica para os dois povos e alicerçar uma cooperação a substituir-se com van ta­ gem a antigas rivalidades. SERGE GROUSSARD Os Portugueses reconheceram o seu Governo em plena guerra civil. PRESIDENTE SALAZAR Sim e aliás contra princípios que temos defendido sempre sobre o reconhecimento de novos governos ou situações. Houve para isso uma razão séria. Como vizinhos nós pudemos ver, talvez melhor que outros, que a República espanhola fracassou por cir­ cunstâncias diversas no cumprimento do primeiro e fundamental dever de todos os gover­ nos - garantir a segurança dos espanhóis, independentemente das suas convicções. 0 levantamento do General Franco apareceu-nos como a reacção das forças que a nação espanhola ainda conservava contra a anarquia generalizada. Havia que apoiar esse esforço e evitar o contágio aparentemente contra alguns, no fundo a )em de todos. A triste história que estamos vivendo seria mais dolorosa e mais riste se os acontecimentos tivessem seguido outra marcha. Nós temos aliás outro motivo de prevenção em face das repúblicas espanholas. 0 republicanismo espanhol é essencialmente federalista ibérico, quer dizer que tenderá sempre a englobar Portugal na república espanhola. Houve tam bém em Portugal quem defendesse a mesma tese. Os responsáveis actuáis pela política portuguesa e pelos interesses de Portugal desejam uma Espanha próspera, amiga, colaborante na independência das duas nações peninsulares. SERGE GROUSSARD Poderíamos agora falar acerca da política interna portuguesa? A nossa entre­ vista já vai lo n g a ... Solazar tem um sorriso discreto. PRESIDENTE SALAZAR Estou pronto a ouvir tudo o que me queira dizer. SERGE GROUSSARD Considera-se um ditador? PRESIDENTE SALAZAR Não sou nem posso considerar-me tal. Não é essa a situação política nem o direito constitucional. Nós temos um Chefe de Estado, eleito por sete anos, perante 940

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Panorâmica da Política Mundial quem é responsável o presidente do Conselho, nomeado e exonerado por ele, se assim o quer ou o interesse geral o aconselha. 0 poder legislativo está dividido entre uma Assembleia Nacional, eleita por sufrá­ gio directo dos cidadãos eleitores, e o governo, o qual desta forma também pode legislar. Pràticamente o estabelecimento dos grandes princípios gerais pertence à lei, ou seja, à competência da Assembleia. 0 desenvolvimento desses princípios faz-se em decretos-leis, da autoria do governo. A iniciativa da lei pertence à Assembleia e ao Governo, mas aquela raramente a utiliza. As leis têm hoje um tal grau de tecnicidade que é ilusório supor que os deputados desprovidos do concurso dos serviços podem ter a iniciativa das leis. 0 poder legislativo das assembleias diminui por esse motivo por toda a parte. 0 decreto por autorização da Câmara, o decreto-lei, o decreto regulamentar tomam o primeiro lugar. Reduzida a função parlamentar, por exigência das coisas, à discussão dos grandes problemas políticos, e à fiscalização da administração pública, compreende-se que não se imponha o seu funcionamento permanente. A nossa Assembleia Nacional reúne por direito próprio três ou quatro meses no ano, mas o Presidente da República pode prorrogar sem limites a sua a ctividade. Pràticamente temos tido entre 5 a 7 meses de funcionamento anual, se há leis importantes pendentes por cuja aprovação o governo se interesse. Uma certa limitação, aliás tão razoável e justificada, do tempo de fu n cion a ­ mento da Assembleia eleita e o facto de o governo não ser responsável perante a Câmara mas perante o Presidente da República — o que aliás è regra nos regimes presidencialistas - não basta para que se apelide de ditadura o regime português. Ele é apenas uma experiência de tornar independente o governo das lutas p a rti­ dárias e parlamentares, assim o robustecendo, e com o tal devia ser apreciado. Em face das dificuldades da vida contem porânea e de Estados cuja organização lhes dá notável poder de decisão e execução das deliberações tom adas - m uitas co n ­ tra o Ocidente — ou há que ceder e desistir ou há que procurar form as de conse­ guir governos fortes, capazes de definirem uma posição e responderem com os seus povos por um com prom isso internacional. Pois o que vemos é o seguinte: sempre que Surge uma fórm ula constitucional em busca de um ponto de apoio forte para uma política — digamos Portugal, a Espanha, mesmo a França do Gene­ ral De Gaule, surge das esquerdas mundiais, através dos seus órgãos, uma cam pa­ nha de desconfiança e de hostilidade. Pergunto a mim mesmo se sabemos verda­ deiramente para onde vamos ou se vamos inconscientem ente para onde nos querem levar. No seu rosto sereno a idade desenhou, ao de leve, algum as rugas. Destacam -se no tom róseo da sua epiderme a p alidez das narinas e o queixo voluntarioso. SERGE GROUSSARD A sua doutrina, a pa rtir dos primeiros momentos em que assumiu as responsa­ bilidades nacionais, tem sido nítida. Poderia definir-se assim: nacionalism o a utori941

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 tárío. Com desassombrado franqueza tem sempre declarado que era antidem ocrata e antiliberal. PRESIDENTE SALAZAR Se a democracia consiste no nivelamento pela base e na recusa de adm itir as desigualdades naturais; se a democracia consiste em acreditar que o Poder encon­ tra a sua origem na massa e que o Governo deve ser obra da massa e não do escol, então, efectivamente, eu considero a democracia uma ficção. Não creio no sufrágio universal, porque o voto individual não tem em conta a diferenciação humana. Não creio na igualdade, mas na hierarquia. Os homens, na minha opinião, devem ser iguais perante a lei, mas considero perigoso atribuir a todos os mesmos direitos políticos. Se o liberalismo consiste em construir toda a sociedade sobre as liberdades in di­ viduais, então eu considero mentira o liberalismo. Não creio na liberdade, mas nas liberdades. A Liberdade que não se inclina perante o interesse nacional cham a-se anarquia e destruirá a nação. Pelo mesmo motivo um Estado de soberania não limitada pela moral e o direito é totalitário e nós não o admitimos. 0 Estado Português tem o encargo de respeitar os direitos e as garantias do indivíduo, da família, das corporações, das administrações locais. Garante o direito ao trabalho, à propriedade, ao capital. Defende a liberdade das crenças. Permite a todos recorrer contra os abusos da autoridade e proíbe a pena de morte. Breve pausa. 0 Professor Solazar pergunta-me se tive tempo pa ra visita r Lis­ boa. Respondi-lhe: ao princípio da tarde, à luz crua do sol, estive no velho bairro de Alfama, admirei os palácios brasonados, com os seus pátios interiores, os e stra­ nhos templos, junto dos quais passavam freiras de toucas brancas e pontiagudas. Falta-me dizer que a nossa entrevista foi feita em francês. SERGE GROUSSARD A cultura francesa mantém a sua tradicional influência em Portu gal? PRESIDENTE SALAZAR Certamente, não só porque a língua francesa é obrigatória no nosso ensino secundário, mas também porque ela é em geral o veículo das traduções das obras cientificas e literárias publicadas noutras línguas. Eu próprio devo à cultura fra n ­ cesa uma grande parte da minha formação. Num relógio próximo soam oito horas e tenho a impressão de que o Professor, ao ouvi-lo, se apercebeu de que anoitecera. Alguém, silenciosamente, ilum in o u o aposento e desapareceu. Preparei-me para as últimas perguntas. 942

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Panorámica da Política Mundial SERGE GROUSSARD P ortugal está consigo? PRESIDENTE SALAZAR Em Junho realizaram-se as eleições à Presidência da República. Em face da can­ didatura do almirante Américo Tomás - que mantinha a política exercida pelo Pre­ sidente que chegava ao fim do mandato, o general Craveiro Lopes — surgiu urna alvoroçada candidatura de oposição. Ora sucede que quatro quintos dos cidadãos portugueses se pronunciaram livremente pelo almirante Tomás. SERGE GROUSSARD Creio, Excelência, que nõo reconhece o direito à greve. PRESIDENTE SALAZAR Somos pobres de mais para perm itir-nos esse luxo. Quando se admite o direito de greve admite-se que há incompatibilidade absoluta entre o interesse patronal e o interesse operário e que a questão não pode resolver-se senão pela luta. Vencerá o mais forte, o que não significa que a justiça vencerá. Quando não se admite o direito à greve, tem de admitir-se ao mesmo tempo que os interesses patronal e operário são no final coincidentes e não contraditórios; que tem de atender-se a um terceiro interesse que também está em causa - o interesse da sociedade —, e que deve aceitar-se uma organização através da qual os interes­ ses possam definir-se e conciliar-se, reconhecendo ao Estado a posição de árbitro. Nestas condições o direito de greve pode deixar de ser reconhecido sem risco e com vantagem. Assim, entre nós, ele já não é um meio de conseguir maiores vantagens para os trabalhadores, mas só uma arma da política comunista. SERGE GROUSSARD Quando suprime a Censura? PRESIDENTE SALAZAR A vossa pergunta significa que há para garantia da liberdade de pensamento uma panaceia universal. 0 conceito não é exacto. Uns, com o nós, têm procurado antes de tudo evitar preventivamente que os meios de publicidade causem dano social; outros procuram reprimir o dano causado, através dos tribunais; ainda outros m ultiplicam as medidas de carácter adm inistrativo que dão a impressão de não tocar no direito mas limitam de facto o seu exercício. Não há no mundo um sistema 943

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 inteiramente satisfatório; o problema em parte alguma está resolvido. Quem, com o nós, aceita constitucionalmente que a opinião pública é elemento fundam ental da política e administração do País, não pode deixar de atribuir ao Estado a incum bên­ cia de defendê-la de todos os factores que a desorientam contra a verdade e a ju s­ tiça. 0 grande problema está em saber qual a melhor defesa, dado que a Imprensa, principal meio, com a rádio e a televisão, de formação da opinião pública representa e funciona como a empresa capitalista, em que os interesses privados podem ter primazia sobre o interesse público, sem que este disponha de tribuna própria onde possa ser defendido. Se nesta colisão ou coalizão de interesses houvesse que defender acima de tudo o interesse legítimo da empresa, não resta dúvida de que o sistema que temos adoptado não deve ser tido como o pior. Já não se pode afirm ar o mesmo com segurança quando se trata de garantir o direito de expressão do pensamento e até o interesse público que pode ser atingido pela ausência de crítica aos actos da Administração. Se, porém, a censura não intervier na apreciação da vida adm inis­ trativa e política, e se limitar a evitar as campanhas de excitação, os insultos pesso­ ais, os ataques injuriosos, então podemos dizer que ela trabalha, sem prejuízo para o bem público, na profunda dignificação da inteligência. Mas eu não desejo ir igora mais longe, porque ao fim e ao cabo a liberdade depende do grau de form a­ d o cívica e moral de quem tenha de utilizá-la. V. terá dificuldade de com preender algumas restrições existentes, se não tiver presente o passado de que vimos. Desde a queda da monarquia em 1910 ao movimento de 28 de Maio de 1926, nós tivem os constitucionalmente um regime democrático e liberal. Em dezasseis anos desse regime houve 52 governos, nove Chefes de Estado, sete parlamentos. Legalmente a imprensa era livre, mas os jornais eram apreendidos, as oficinas desmanteladas, empastelado o tipo, presos os jornalistas. Somos um povo sentimental, emotivo, crédulo. É possível em semanas criar estados de espírito - e alguns jornais o fizeram - de onde surdiram revoiuções, pronunciamentos, golpes de Estado. Desordem na rua e nos espíritos, e ao mesmo tempo na administração. 0 desequilíbrio orçamental era uma tradição venerável; o atraso dos pagamentos coisa corrente. Em 26, falhos de recursos, apelou-se para a Sociedade das Nações com o fim de esta nos patrocinar um empréstimo. 0 economista francês, M. Jacques Rueff, estu­ dou a situação e reclamou condições que pareceram incompatíveis com a dignidade nacional. Os negociadores voltaram de mãos vazias, mas o povo, orgulhoso da sua intransigência, acolheu-os triunfalmente. São assim os pobres que já foram ricos. Apesar de tudo, o dinheiro faltava, era necessário dispor de fundos. O que pare­ ceu mais avisado foi voltarmo-nos para nós próprios e criarmos com suor do rosto os nossos próprios meios. Foi nestas circunstâncias e com esta doutrina que, for­ çado, vim ter a Lisboa e deixei a minha cadeira de Finanças em Coimbra. Para co m ­ preender muito do presente, aliás não findo mas em plena evolução, há não só que saber algo desse passado de paixões exacerbadas, lutas partidárias, revoluções a prazo, como conhecer também o nosso temperamento, as nossas virtudes e defei944

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Panorâmica da Política Mundial tos. Não se governa no espaço e para anjos, mas na terra e para homens que são como são e não como alguns queriam que fossem. Solazar consultou rápidamente o relógio e murmurou um «oh!» discreto, la para me desculpar de Ihe ter tomado três horas e meia da sua vida tão sobrecarregada, quando ele, erguendo-se, me disse: Nâo quero tomar-lhe mais te m p o ... 0 Professor S alazar estendeu-me a mão com um sorriso discreto que parecia dirigir-se não a mim, mas ao estudo que havia interrompido para me receber.

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II. AGRADECIMENTO À S MULHERES PORTUGUESAS "> Pediu-se que nenhuma manifestação se realizasse nestes dias, para que pudes­ sem ser, como todos os outros, dias normais de trabalho. Solicitaram -se absten­ ções, negaram-se facilidades, fizeram-se esforços para evitar deslocações incóm o­ das, ajuntamentos, ofertas, mesmo para que os jardins não fossem sacrificados a tão grande desperdício dos seus primores. Tudo inútil. Não só vós estais aqui, como trazeis, com as vossas flores, ricas ou modestas, pouco importa, a abundância de vossos corações. Isto quer dizer que não é possível lutar contra o coração feminino, se portador de um ideal, dedicações firmes e amizades desinteressadas. Eu igno­ rava que não vos deixarieis vencer. Mas não estão bem as coisas assim. Deviam inverter-se as situações e havia de ser eu a ofertar-vos as mais lindas flores, não tanto como recordação desta hora, mas em reconhecimento de quanto se deve nesta cruzada nacional à mulher portu­ guesa. São as mães, as esposas, as irmãs, as filhas dos portugueses que com o calor do seu afecto e a fortaleza do seu ânimo nos amparam na luta. Elas servem de apoio aos que são tentados a descrer e hesitam e se perturbam com dificuldades que vós não receais e nós estamos seguros de vencer. Agradeço do fundo da alma a todas as Senhoras que tiveram a bondade e o incó­ modo de vir, e a todas as que sentem o pesar de não estar aqui, o carinho e os senti­ mentos de fidelidade de que desejaram dar neste dia tão tocante demonstração. Bem hajam.

1,1 Palavras dirigidas às senhoras portuguesas que, de todos os pontos de Portugai, forarn a residên­ cia do Presidente do Conselho levar-lhe flores, no dia 28 de Abril de 1959, data do seu 70.1' aniversário.

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III. A POSIÇÃO PORTUGUESA EM FACE DA EUROPA, DA AM ÉRICA E DA Á FRICA “ M eus Senhores: Julguei que podia ser útil aproveitar a presença em Lisboa dos presidentes das comissões distritais da União Nacional para dizer-lhes uma palavra sobre o momento político e sobre alguns problemas de governo.

I. De política, ou, melhor, da pequena política doméstica, falarei pouco, além do mais porque os meses que temos passado, de agitação, exacerbação de paixões e incitamento à sublevação e à desordem social devem ter sido suficientes para con­ vencer o maior número da sua esterilidade ou do seu risco. Se o Governo estag­ nasse, deixando-se desviar dos seus planos de acção, e as instituições fraquejassem na sua estrutura e no seu labor normal, e as autoridades não estivessem atentas na defesa da ordem e do trabalho, e todos nos engolfássemos em discussões sem fim nos termos que nos têm sido apresentados, ver-se-ia como sob todos os aspectos se ressentia a vida nacional: perdidas as certezas sobre que havemos tentado reer­ guê-la, a Nação deixar-se-ia minar da dúvida acerca dos seus próprios interesses e destino, e por este mesmo facto se diminuiria. A serenidade com que o Governo tem encarado os sucessos dos últimos meses, por mais desagradáveis, provém em primeiro lugar da segurança dos princípios que defende e, depois, da força de que dispõe para sustentá-los. Com efeito nos dois campos em que tais divergências costumam esclarecer-se e decidir-se - e se tentaram esclarecer e decidir - nenhuma dúvida subsistirá de que lado esteve o sinal da vitória. Isto não significa estarem vencidas todas as dificuldades. Há muito tempo já foi o Governo prevenido de que neste ano de 1959 se desencadearia internacional­ mente, e contra os dois Estados da Península, uma campanha da maior latitude e violência. Que, quanto a nós, tal campanha se tenha aproveitado de acontecim en­ tos internos ou em parte mesmo os tenha preparado ou dirigido, pouco im porta ao caso. Temo-la visto desenvolver-se em numerosos órgãos comunistas da imprensa mundial, nos que lhes são afins e até naqueles que, apesar de tantos exemplos pouco encorajantes, fazem no comunismo o seu seguro de vida.0 1

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Discurso pronunciado na sede da União Nacional, em 23 de M aio de 1959.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 Tenho seguido com curiosidade o fenómeno. Um qualquer, sem valor pessoal ou categoria política, preme aqui um botão e o que deturpa ou inventa de injurioso ou infamante para o seu próprio país aparece publicado nos mesmos term os e com idênticas ilações em muita parte por esse mundo. Há portanto ligações subterrâ­ neas e certamente poderosas que explicam e aproveitam estas conivências e cum ­ plicidades. Abrangem áreas muito vastas nas sociedades modernas e, salva a parte que na acção se deve ao comunismo, sempre desperto e actuante, pendo a adm itir que são geralmente estranhas à actividade normal dos Estados. Com a mesma sin­ ceridade devo porém afirmar que esses mesmos me parecem cometer no caso sérios pecados de omissão. Há pessoas simples que raciocinam assim: Nós somos uma modesta Nação que não se atribui os índices altos da riqueza, da produção, ou dos níveis de vida, mas tem em dia as suas contas, m antém livre o comércio internacional e os câmbios com todas as nações, segura o v a lo r da moeda e sustenta com suficiência a sua população. Não pretende im por as suas concepções ou instituições políticas, não levanta dificuldades à vida alheia, não perturba a paz e colabora com lealdade nos organismos internacionais. Nenhum Estado tem contra nós reivindicações, queixas fundam entadas, pretensões a que por justiça devamos satisfação. Trabalhamos duramente e procuram os p ro ­ gredir o mais possível, sem explorarmos abusivamente auxílios alheios para ele­ var o nosso povo e sem prejuízo da solidariedade que nos une aos demais. Q u a l­ quer estrangeiro nos pode visitar, percorrer livrem ente o território, ver, indagar, informar-se, fazer por si mesmo uma ideia correcta da nossa vida. E, se ele p ró ­ prio é insuspeito e livre, não devia deixar contam inar as suas co n clu sõ e s dos ódios políticos que escorrem pelas valetas de todos os países, nem re co rre r a eles, muito menos albergá-los e considerá-los expressões objectivas da vida alheia. Porque então estas campanhas que a olho nu qualquer vê d e stitu íd a s de sinceridade e de verdade? É ingénua esta maneira de pensar nos tempos de hoje e no que im porta ao caso português. Na base da nossa vida colectiva, tal como a com preendem os, a organizamos e pretendemos viver, existe um forte substracto ideológico de que ela dimana, que a explica e sustém, e sustém mesmo em larga medida a própria realidade geográfica que é a Nação portuguesa. Tocamos assim o ponto essencial à compreensão do assunto: este abraço mortal que se desenha e mais e mais se aperta em relação ao Ocidente não pode fechar-se, sem que a Península seja nele envolvida e desfeitos todos os valores de coesão e criação dos respectivos povos - de coesão para se mar terem íntegros, de criação para se projectarem no futuro. Quem pensar que se trata de preferências por doses maiores ou m enores de democracia ou de liberalismo, de mutações de pessoal governante, do interesse de classes ainda desfavorecidas ou injustamente tratadas, não vê a questão em toda a sua latitude. Esses podem ser meios; não são os fins. O que se in tenta é desintegrar valores eficientes de uma civilização e libertar posições essenciais para avanços necessários noutras direcções. 950

III. A Posição Portuguesa em Face da Europa... Apetecia-me fechar este capítulo com uma frase do Evangelho: «e quem tiver ouvidos de ouvir, ouça»; mas não posso concluí-lo sem chamar a atenção para o seguinte. Este género de guerras que chamam psicológicas substituem hoje as lutas armadas mas só podem conseguir os mesmos objectivos, se a Nação não tem tem ­ perados os nervos, como se faz mister. Não digo que não sejam também precisas as armas, mas é necessário começar por ter um ânimo forte, seguro da sua verdade; quer dizer, uma doutrina, uma consciência, a decisão de não se deixar vencer. Habi­ tuados como Nação, desde séculos, a mandar em nossa casa, não julgamos possível serem bem sucedidas interferências estranhas que apoiam antinacionais do interior. Aguentar! aguentar! e nada mais é preciso para que amaine a tempestade e se nos faça justiça. II.

Um dos sucessos dos últimos meses - e vamos esquecer outros semelhantes, um pouco estranhos - um desses sucessos merece pela sua relevância referência espe­ cial. Aludo às dificuldades que pretenderam criar-nos com o Brasil a propósito de um mais que simulado refúgio político. Notarei em especial duas coisas: uma, a ligeireza com que conhecidos sectores procuram transplantar para a vida de rela­ ções internacionais as suas irredutibilidades na política interna, e fazem apelos a governos estrangeiros para os colocarem no poder; outra, a ideia de por aquele caminho suscitarem um conflito entre Portugal e o Brasil, como se o afecto que liga os dois povos lhes permitisse alguma esperança. Opunha-se, como disse, o afecto de irmãos; e também vastos interesses recíprocos. Quando reflicto na grandeza, pujança e futuro do Brasil, como dos mais países da América Central e do Sul, de que o Brasil pode ser sem qualquer espécie de melindre uma sorte de conselheiro e guia, parece-me o seguinte: 0 maior mercado da produção destes países é e terá de continuar a ser pelo poder económico e proximidade territorial, a América do Norte. À parte dificuldades que surjam de quando em quando relativamente aos preços das matérias-primas e géne­ ros primários de proveniência centro e sul-americana, dificuldades que aliás não podem ser resolvidas senão no plano mundial em virtude da concorrência comercial e política existente, é aos Estados Unidos que naturalmente incumbe dar o principal apoio económico e financeiro a toda aquela área. No estado actual da economia dessas nações, e mesmo atenuada a pressão existente no sentido de rápida e intensa industrialização, a maior fonte de capitais e as maiores possibilidades de absorção dos produtos estão por ora na América do Norte e não noutras partes, ainda que a Europa esteja longe de desinteressar-se daqueles mercados. Acontece porém que, se economicamente pode dizer-se que a supremacia per­ tence ali aos Estados Unidos, a form ação espiritual, a religião, a língua daqueles paí­ ses é latina e mais precisamente portuguesa, quanto a um, e espanhola quanto aos mais. Se a alma também em relação aos povos vale alguma coisa, e se a form ação se liga ao sangue que corre nas veias, há assim um vasto sector de relações que 951

Oliveira Salazar Discursos c Notas Políticas • 1959 a 1966 deverá estabelecer-se noutro sentido, e este é o da Península Ibérica, aliás ponto obrigado de passagem para a restante latinidade. Sem prejuízo de um mercado comum, se vier a ser estabelecido, e das mais apertadas relações políticas no co n ti­ nente americano, nem o Brasil nem as repúblicas sul-americanas desejarão tão cedo - e será de lastimar que um dia o façam - desligar-se das suas origens, esquecê-las ou menosprezá-las. E, dada a tendência e necessidade da formação de grandes blo ­ cos, uns de interesses económicos, outros de afinidades espirituais, nada mais cla ­ ramente se impõe que o planeamento duma larga política ibero-americana que aliás está delineada triangularmente na comunidade luso-brasileira, no bloco peninsular, nas íntimas relações da Espanha com as repúblicas sul-americanas. Para nos cingirmos ao que especialmente nos respeita pode ser que haja alguns portugueses e também alguns brasileiros não perfeitamente conscientes do valor desta política, mas aqueles que no Brasil elaboraram o Tratado que criou a com u ­ nidade - porque veio de lá a primeira fórmula - esses sabiam bem que larguíssima acção estava aberta aos dois povos, se, prestando-se mútuo apoio, se lhe quises­ sem dedicar. Quanto ao Brasil, parece-me que mantida, como deve ser, a unidade política, refrescado a miúde o sangue pela incorporação de elementos dem ográficos idênti­ cos aos dominantes na sua população, consolidada a formação espiritual que vem das origens, estão criadas as condições para um desenvolvimento a que não podem prever-se limites. E da parte de Portugal - que Portugal interessa ao Brasil? Quando se olha a imensa costa brasileira e se avalia o seu peso e dom ínio poten­ cial no Atlântico Sul, tem de compreender-se que não é só o Portugal continental e as suas pequenas «poldras» atlânticas que podem bastar á segurança de vida e de expansão do Brasil; mas o Portugal, tal como é, com a vasta extensão das suas cos­ tas africanas, os seus portos e bases, a sua presença e peso no Continente negro. Só assim nos surge um vasto espaço marítimo em que o ascendente luso-brasileiro é inegável pelas extensões terrestres que o delimitam e os meios defensivos de que dispõe. Mas é evidente que quaisquer reticências em relação ao Portugal ultram a­ rino já não se enquadram nesta construção. Há ideias que levam seu tempo a amadurecer na consciência dos povos para.se lhes pesar o alcance e se ver até onde chegam as consequências. Quando me lembro de que estamos há anos embaraçados em minúcias do acordo ortográfico, e de que muitos problemas culturais, jurídicos ou económicos não puderam ainda ser resolvidos, apesar da inegável boa vontade de todos, tem de reconhecer-se que ou se lhes empresta a conveniente base política ou não se conseguirá para eles solução que valha.

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III. As últimas considerações levam-me a encarar, embora sumarissimamente, pro­ blemas de África. Literalmente a África arde; arde mesmo nas adjacências das fro n ­ teiras portuguesas. E porque arde a África? Não pensemos que é por com bustão interna, digamos, pela fatalidade de um movimento histórico que arrasta as suas 952

III. A Posição Portuguesa em Face da Europa. . . populações para a rebeldia, a subversão, a forçada dispersão e independência; arde porque lhe deitam o fogo de fora. (Na época calamitosa que vivemos, parece aliás que já ninguém tem reparos a fazer à acção subversiva de certos Estados que ao mesmo tempo se afirmam pacíficos e pretendem viver em paz com outros na com u­ nidade internacional. Tudo lhes é levado à conta de contribuição útil para a form a­ ção de um novo mundo). Ao referir-me à África, não falo dos Estados norte-africanos nem dos de antiga independência como a Etiópia, que são um problema à parte. Refiro-m e à África ao sul do Equador cuja soberania tem estado confiada a Estados europeus. Os problemas que se suscitam podem alinhar-se assim: Primeiro. Repetirei uma velha ideia, hoje, ao que parece, generalizada: a África é o complemento da Europa, imprescindível à sua defesa, suporte necessário da sua eco­ nomia. Isto quer dizer que grande parte da potência europeia se pode perder com os territórios africanos, ou o que é o mesmo, a Europa pode ser batida em África. Segundo. A economia, a instrução, a organização administrativa de muitos des­ tes povos africanos vão seguramente progredindo. Mas, pondo de parte o alto valor intelectual de alguns dirigentes que se têm revelado, esses povos não apresentam, se formados só da população nativa, nem quadros, nem técnicos suficientes e não dispõem de capacidade económica própria, para sustentar uma independência sol­ vente ou progressiva. Isto significa, em terceiro lugar, que esses povos, se não puderem contar com o eventual apoio das antigas nações soberanas, têm apenas diante de si duas alterna­ tivas - a regressão ou a submissão a novos dominadores. Económica e politicamente o problema envolve as mais graves consequências. Como os capitais privados se não sentirão atraídos por situações precárias e instá­ veis, e os fundos internacionais gratuitos serão naturalmente escassos, estes novos Estados podem sentir-se tentados a resolver as dificuldades pelo recurso à sociali­ zação geral dos meios de produção e ao trabalho escravo. E embora as condições sejam muito diferentes das da Rússia e da China em que porventura se inspirarão, os mesmos processos poderão ser por eles tentados. Então à regressão e à submis­ são a outros dominadores temos de acrescentar, ao menos como perspectiva possí­ vel, uma África comunista com as mais ilações políticas que daí resultariam. 0 papel que os Estados comunistas têm desempenhado nesta campanha de África não precisaria senão do primeiro ponto acima referido para ser explicável. Tudo que seja diminuir, enfraquecer, desintegrar as forças do Ocidente está dentro do seu objectivo e imediato interesse. Mas se, com o se tem visto, podem utilizar o novo estado de coisas para instalar-se e instalar os seus poderosos meios de acção, fom entar outras desintegrações, dominar até onde seja possível a economia e a direcção política, o comunismo estende de facto o seu dom ínio e cria novas form as e zonas de colonização. É pena que, tendo a Rússia e diversos Estados asiáticos uma política de África, os Estados Unidos não se tenham encontrado em condições de definir a sua, tão cla ­ ramente como eles, porque não é uma política seguir os acontecim entos mas 953

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Oliveira Salazar Notas Políticas • 1959 a 1966

evitá-los ou dirigi-los. Essa definição, no caso de não se opor à Europa Ocidental de que a América é aliada, seria só por si factor decisivo de aquietação no C o n ti­ nente africano. E, sendo possível que nestes termos os Estados Unidos tivessem de desagradar a muitos, acrescentarei que para os povos como para os indivíduos há momentos na vida em que é preciso escolher. Estas reflexões são para nós; não julguemos que convencem os agitadores dou ­ trinados para os quais uma independência mesmo nominal e a im portância de uma chefia política sobrelevam todos os bens da Terra. Não tem de respeitar-se quando infundado, mas tem de reconhecer-se a força deste idealismo, se ajudado de fora, como é, e não contrariado de dentro, como deve ser. Nos termos em que as coisas se encontram, os problemas que certo número de paí­ ses com responsabilidades em África aí enfrentam, não são pois já só os da direcção de uma economia o mais próspera possível, da educação de populações chamadas a par­ ticipar justamente das riquezas criadas e da administração dos interesses colectivos, da possível integração em fortes agregados políticos que sejam por si sós a garantia da continuidade dos progressos conquistados. Não. Do que se trata, e ¡mediatamente, é de salvar a África do assalto combinado dos interesses a que me referi e de evitar a sua destruição através de fórmulas que sabemos lhe seriam fatais. Uma política ajustada dos territórios da África Central e Meridional pode facilitar a acção.

Na campanha de descrédito a que aludi no princípio das minhas palavras, já se sabe que a parte ultramarina portuguesa é também visada e com especial acrimonia. A nossa pretensa incapacidade colonizadora, a deficiência de capitais, a falta de dinamismo na produção, a lentidão da difusão do ensino, os baixos salários pagos, a deficiência da pro­ tecção sanitária e muitas coisas do género se lêem hoje, não já nas críticas ligeiras da imprensa diária mas em discursos formais, conferências, teses de universitários e relató­ rios de institutos internacionais. A indevida generalização de casos individuais que nós próprios relatamos para escarmento de autoridades subalternas ou de particulares res­ ponsáveis, é um dos métodos seguidos; as comparações estatísticas, desaconselhadas pela disparidade das condições e dos elementos confrontados, é outro. Nenhum dos estudos que pude compulsar analisa porém certo aspecto da vida ultramarina portu­ guesa ou lhe atribui qualquer significado. Esse aspecto é o seguinte: Nós não pensamos em negar o relativo atraso de algumas regiões e a deficiência de alguns serviços. É evidente faltarem estradas e pontes, faltarem hospitais, fa l­ tarem escolas, e faltarem até, senhores, elementos de polícia e forças de defesa. Por que milagre então, de Timor a Cabo Verde, há paz e todos podem notar o tranquilo viver das populações? Porque pode atravessar-se de lés a lés Angola ou M oça m b i­ que, não se contando senão com a boa disposição do nativo, a sua fraterna ajuda, no fundo o seu portuguesismo? Porque diz o nativo de Angola ou M oçam bique em qualquer país estrangeiro em que se encontre que é português? Ou, porque não tendo saído do seu torrão natal, sabe que é português e que ali também é Portugal? 954

III. A Posição Portuguesa em Face da Europa... Este facto significa que nâo é assisado pretender reduzir a índices económicos toda a obra colonizadora; significa que há uma obra de compreensão e afectividade humanas que através dos tempos e das gerações vai criando uma convivência inter-racial de valor inapreciável, convivência que é a base de resolução dos proble­ mas africanos, e sem ela nenhum terá solução capaz. É esta a nossa convicção; mais do que convicção, é esta a nossa maneira de ser; e é por isso, que, embora os valores espirituais estejam a ser depreciados por uma civilização que se esvazia do seu conteúdo, nós continuaremos contando com eles. Mas temos de contar tam ­ bém com as circunstâncias exteriores, se forem capazes de alterar a calma das populações e a ordem e o trabalho nas parcelas ultramarinas do território nacional. E contra elas se tem de lutar por todos os meios apropriados. No fim da guerra nós tínhamos em Angola e Moçambique forças de alguma importância. Nunca me consolei de se haverem evacuado. 0 meu empenho que circunstâncias do momento não deixaram vingar, era que passassem muitos m ilha­ res de jovens portugueses por aquelas terras. M uitos se teriam fixado ali, aumen­ tando com a população activa as possibilidades de defesa, e uma parte importante da oficialidade teria feito o complemento da sua formação em territórios que chei­ ram ainda ao suor dos pioneiros e ao heroísmo dos homens da ocupação. Sob a influência da grandeza da terra e da gente, viriam e voltariam depois maiores e, se possível, mais portugueses. Estamos revendo as bases de solução destes problemas em harmonia com as con­ dições actuais e necessidades que possam sobreviver. Ainda que a defesa mais e fi­ caz seja a confiança recíproca e solidariedade das populações do mundo português, temos de estar presentes como sempre e agora mais vigilantes que nunca. 0 carác­ ter de acontecimentos recentes e vizinhos pode ter destruído algumas ilusões mas deixou de pé um facto que podemos considerar permanente na nossa história ultra­ marina: na ausência de influências estranhas, os portugueses de qualquer raça e cor não usam desvairar-se e seguem em paz o seu caminho. IV. 0 tempo que me destinara está findo e por isso não versarei já um ponto que tinha intenção de tratar. 0 momento económico que atravessamos apresenta tanto na ordem interna como na internacional dificuldades que nos preocupam e teria sido vantajoso fazer-lhes referência. Além disso nos anos que se dedicarão ao II Plano de Fomento é fácil desenvolver-se uma argumentação de tendência demagógica que conviria prevenir. As dezenas de milhões de contos em que se traduz não beneficia­ rão em boa parte os portugueses, mas indústrias estrangeiras. Em todo o seu volume não assegurarão aqui trabalho, nem devem provocar alta sensível dos salários, nem darão, salvo no seu termo, possibilidades de distribuição de terras irrigadas. A maior parte dos empreendimentos destinam-se ainda a dotar o País das infra-estruturas necessárias a mais correcta e produtiva organização do trabalho, e com esta à dis­ tribuição mais equitativa do rendimento nacional. Apesar dessas necessidades, fize 955

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 ram-se esforços para equilibrar as aplicações de modo que houvesse desde já u tili­ dades ou comodidades a incorporar em boa medida na vida dos portugueses, mas isto não altera grandemente a resultante aludida acima. Se eu pudesse m entir-lhes não diria isto, mas isto é a verdade. A indecisão em que hoje corre a vida das nações, conscientes da necessidade de dis­ tribuir pelos povos maiores quinhões de riqueza mas paralisadas ante a perspectiva de haverem de consumir em gastos de defesa boa parte dela, embaraça a vida de todas e portanto a nossa. Se destas reuniões internacionais pudesse sair a perspectiva de solu­ ções pacíficas, o mundo as bendiria; infelizmente, como vimos há pouco, vão mudando os teatros de guerra ou de agitação, mas a paz está longe de nós. Quer hajam de bater-se quer não, as gerações presentes são gerações sacrificadas, e é certo que mais o seriam ainda, se os governos descurassem a defesa das nações. Mas em tais proble­ mas não são livres os governos que têm consciência das suas responsabilidades. Pela pressão destes ou daqueles problemas, alguns dos quais atingem acuidade desconhecida em épocas passadas, a vida dos governos é atormentada e a co ndu ­ ção dos povos muito difícil. À medida que as dificuldades se m ultiplicam ou agra­ vam, a organização política e os processos de governo evoluem, à procura de uma linha de adaptação a essas dificuldades e a mais seguro rendimento. Um Estado forte, um governo forte tornam-se cada vez mais instantes. Se repararmos na parte lo mundo, fiel, teórica e pràticamente, às instituições que nos legou o século XIX, 'eremos como é reduzida em face daqueles Estados que por aqui ou por ali procu­ raram caminhos, uns de salvação, outros de progresso. Ao verificá-lo não devería­ mos ser apelidados de teimosos, improgressivos, agarrados às primeiras fórmulas, mas de avisados e prudentes por tê-las descoberto e aplicado a tempo. É evidente que este conjunto governo-povo exige para a boa marcha da vida nacional compreensão e confiança recíprocas. E exige também tom ar cada um sobre si a parte de sacrifícios que lhe cabe na tarefa colectiva. Há m uitos anos em Braga, indicando as difíceis tarefas que tínhamos de enfrentar para poder realizar a obra de valorização nacional, perguntei quem tinha coragem de nos acompanhar. A imensa multidão que me escutava respondeu em uníssono — todos. Desde essa hora alguns porventura terão achado demasiado o fardo que se lançava sobre os seus ombros, longínqua a esperança de melhores dias, excessiva a confiança outor­ gada, e decidiram suspender ou alterar a sua rota. Mas a grande massa dos p o rtu ­ gueses, conscientes do que representa a integridade material e moral da Nação, têm vindo, muitos mesmo com o sacrifício de sentimentos ou soluções por que mais convictamente se bateriam, têm vindo, dizia, a dar-nos o seu apoio e colaboração. E se a todos esses perguntasse agora se desertamos ou prosseguimos, com o mesmo entusiasmo responderiam: prosseguimos. - É bem assim: a nossa marcha não poderá nunca comportar nem paragens nem regressos.

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IV. NO ALMOÇO OFERECIDO AOS PARTICIPANTES NA REUNIÃO MINISTERIAL DA E. F. T. A . "> Senhoras e Senhores: Prometo não acrescentar um discurso mais aos muitos que, pela exigência dos trabalhos, os membros da Associação Europeia de Comércio Livre se terão visto obrigados a fazer e a ouvir nestes últimos dias. 0 meu intento é apenas apresentar a todos e às nações que representam as mais efusivas saudações do Governo por­ tuguês e apresentar-lhes as mais sinceras desculpas por faltas que as circunstâncias um tanto ou quanto embaraçantes em que a reunião foi obrigada a desenvolver-se não nos tenham permitido evitar. Este não é cumprimento protocolar mas a expres­ são dos nossos melhores sentimentos. Fazer votos pela eficiência dos trabalhos parece-me inútil, visto que os mesmos nos interessam a nós próprios em alto grau e em boa verdade grande parte dos seus resultados dependem da aceitação alheia de algumas posições fundam entais a que se tenha chegado. Nós somos dentre os Estados europeus o mais afastado do centro de gravidade política e económica da Europa. A quem nos examina no mapa, o país pode até dar a impressão de querer separar-se da terra firm e e de tentar lançar-se pelos oceanos fora. E esta foi de facto uma característica da nossa história nos oito séculos que levamos. Podemos considerar-nos, pelo maior peso de territórios e populações noutros continentes, quase uma nação extra-europeia, e somos pela modéstia do nosso viver e dos nossos recursos aqui um dos factores de menor peso nesta orga­ nização. Donde nasce então o nosso interesse na Associação de Comércio Livre, interesse que é real e vivo? Quando Portugal, em África ou no Oriente - e o mesmo podemos dizer de outros - faz à sua maneira obra de civilização, apresenta-se como representante ou expressão do espírito europeu, convicto de que a secessão que se operasse bem como a diminuição de vitalidade da velha árvore faria secar a seiva dos rebentos que intentamos fazer vicejar nos trópicos. E concluím os simplesmente pela neces­ sidade de uma política conduzida de modo que as questões económ icas não atinjam a unidade moral europeia.

w Palavras proferidas no Palácio de Queluz, em 20 de Maio de 1960, no alm oço oferecido aos par­ ticipantes na reunião ministerial da E. F. T. A., realizada em Lisboa.

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Discursos

c

Oliveira Salazar Notas Políticas • 1959 a 1966

Há quem julgue mais fácil garantir a unidade moral pela unidade política e esta pela unidade económica. Há quem não pense indispensável - e nalguns casos não seria possível - sacrificar a independência política para se chegar a uma plataform a de entendimento económico, e entre estes estamos nós. Isto o compreendemos. O que nos custaria a compreender é que entre os grupos formados a oeste, por força de algumas realidades insuperáveis, não seja possível encontrar bases de acordo em termos justos, se os procurarmos sem impaciência, com persistência e boa vontade. Quanto a nós, estamos no terreno económico a pretender salvar alguma coisa mais que a economia, ou sejam interesses materiais dos homens e dos povos. Pretendendo salvaguardar altos interesses morais, ninguém assumirá a res­ ponsabilidade de enfraquecer e dividir ainda mais, sem uma razão superior de ju s­ tiça ou de vida, o pouco que as calamidades das guerras deixaram intacto. É neste entendimento que tenho a honra de saudar todos e de dirigir os meus agradecimentos ao Senhor Ministro Lange, a cuja inteligência e infatigável energia se deve muito daquilo a que se pôde chegar. < Bebo pela vossa saúde e formulo os melhores votos pela prosperidade dos países aqui representados.

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V. PORTUGAL E A CAMPANHA ANTICOLONIALISTA01 Senhor Presidente da Assembleia Nacional, Senhores Deputados: Tenho seguido com a atenção possível a campanha anticolonialista em que se pretendeu envolver Portugal e mesmo, para bem operar a divisão das forças adver­ sas, quase só Portugal. Em jornais, manifestos e discursos, incluindo os proferidos em altas assembleias políticas, não encontrei porém nada do que me interessava saber, ou sejaiem que se pensa consistir o problema e as linhas gerais da sua solu­ ção. Aliás, o que menos preocupou foi esclarecer as questões; e como a discussão parece ter abandonado o domínio da inteligência para tentar criar em certas regi­ ões estados emocionais propícios à subversão, não há propriamente a quem respon­ der. Desta forma me surgiram dificuldades por não saber como redigir e a quem endereçar algumas palavras que por outro lado reputava necessárias. Lembrei-me de que os portugueses de todos os continentes, aí fixados ou filhos da terra, têm o direito de saber o caminho por onde pensamos que devemos conduzir-nos nas graves circunstâncias actuáis. E todos os mais interessados na contenda talvez também possam tirar daí alguma conclusão e avaliar o peso das suas próprias responsabilidades, pois não vão supor que a sorte de milhões de homens, a ordem e paz do seu viver, o fruto do seu trabalho, os princípios da civilização que adoptaram, podem ser entregues à vacuidade dos discursos de com ício e à anarquia dos anun­ ciados movimentos libertadores. I. Tirante a Etiópia, alguns países da África mediterrânea e as províncias portugue­ sas ultramarinas a que adiante me referirei, podemos dizer que de um modo geral se nos deparam naquele Continente duas espécies de território. Das suas diversas situações e características é que haviam de decorrer as directrizes em conform idade com as quais os seus problemas podiam ser correctamente equacionados e resolvi­ dos. Sujeitos como todos foram ao trabalho de colonização, encontraremos o traço fundamental de diferenciação desses territórios na atitude política dos Estados soberanos, ou, o que é o mesmo, na finalidade da sua obra colonizadora.

1,1

Discurso pronunciado na sessão da Assembleia Nacional de 30 de Novembro de 1960.

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 Por vezes terá esta consistido tão-sòmente na exploração económica do solo ou do subsolo, através de empreendimentos que não exigiam a fixação permanente da gente branca. Os Estados responsáveis declararam ou alimentaram sempre o pro­ pósito de educar, de elevar as populações autóctones até estas atingirem a indepen­ dência. A este propósito deve ter correspondido uma política, e a independência dos territórios não é senão o reconhecimento de que foi atingida a meta am bicio­ nada. Isto se passa neste momento e se passou nos últimos anos, tanto na África como na Ásia. Se os Estados detentores da soberania cometeram qualquer erro de apreciação e precipitaram as concessões que elevaram tais territórios ao plano de Estados independentes, não hei-de apreciá-lo aqui. Vamos admitir que viram bem e pro­ cederam em todas as circunstâncias como deviam, nem cedo nem tarde. Vamos admitir que os territórios dispunham e outros estão em vias de dispor, no m om ento em que ascenderem à independência, do escol necessário para orientar a política, dirigir a administração, gerir as finanças, administrar os empreendimentos econó­ micos. Para que estas soberanias não sejam fictícias e estas independências sejam inteiramente responsáveis, em termos de se constituírem membros da com unidade internacional e de conviverem pacificamente com os outros Estados, todas aque­ las condições são indispensáveis. Não é elegante sublinhar qualquer deficiência, e por isso atribuiremos certas atitudes, alguns propósitos e ameaças a pretensão de expansões imperialistas, à euforia de espíritos plenamente felizes, porque co n vic­ tos de ter descoberto o mundo e de estar na posse de todos os segredos da co n ­ dução da humanidade. Em geral nestes territórios, hoje ou amanhã Estados soberanos, para o que se diz virem sendo preparados desde longe, podem não obstante surgir co n flito s raciais, mesmo dos homens de cor entre si - tradicional flagelo da África antes da co lo n i­ zação europeia. Como na hipótese o branco é elemento de passagem, não fixado nem portador de outro pensamento político que não seja exactam ente o da reti­ rada e do abandono, não haveria razão para que certas mutações a que tem os assis­ tido suscitassem as violentas explosões de racismo contra o homem branco, credor dos progressos realizados e suposto não necessário já à evolução económ ica e social dos territórios. Há factos a desmentir estas previsões; apesar disso este caso é o mais simples dos que a África negra nos apresenta.

A questão é de facto muito mais intrincada quando os territórios são povoados por brancos e por negros, sobretudo se o branco ocupou espaços livres, desbravou as terras, estabeleceu as explorações agrícolas ou industriais, fin an cio u os em pre­ endimentos, organizou a administração, manteve a ordem e a paz. A descoberta, a conquista, o trabalho incorporado no solo, a sucessão das gerações são títu lo s de legitimidade, contra os quais a frase explosiva corrente - o Á fric a é dos a fric a ­ nos - pretende nada menos que refazer a história, sem dispor de força para dar

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V Portugal c a Campanha A n ticolon ialista s o lu ç ã o ao p roblem a.

Esses te rritó rio s e n c o n tra m -s e p re m id o s e n tre o v a lo r da

q u a lid a d e que é a a d m in istra çã o , a d ire c ç ã o do tra b a lh o , a posse dos m eios e c o n ó ­ m ico s, e o peso do núm ero, p o r si só in s u fic ie n te para asse gu ra r o p rog re sso geral. P re te n d e -se d e m o c ra tica m e n te re solve r o prob lem a c o n fe rin d o ao m a io r n úm e ro a d ire cç ã o to ta l da co m un id a d e .

D evem os te r a co rag e m de a firm a r que estes

casos não têm so lu ç ã o possível - d ig o so lu ç ã o p a c ífic a , e q u ita tiv a , prog re ssiva d e n tro das ideias correntes; não têm so lu ç ã o nenhum a no q u ad ro do ra cism o negro nem do racism o branco.

0 ú n ico ca m in h o seria enve re d a r no se n tid o de

so cie d ad e s p lu rirra cia is em que as raças se m isturassem ou convivessem , v in d o a p e rte n ce r a d ire cç ã o e o m ando aos m ais h ábeis e m elhores; m as este p roce sso nem sem pre é e sp o n tâ ne o e não pode em q u alqu e r ca so disp en sar a tu te la e guia da soberania tra d icio n a l. A tra vé s das nuvens de poeira que a cam panha a n tico lo n ia lista levanta, não se atenta nem com preende o dram a das sociedades deste tipo, com o, entre outras, a A rgélia, as Rodésias, a Á fric a do Sul. Q uando vejo cegos ataques desferidos co n tra as soberanias responsáveis e contra as p rovidências n aturalm en te h e sitantes ou até c o n tra d itó ria s dos seus governos, em vez de m ostras de com preensão e de p acien ­ tem ente se ajudarem a vencer as dificu ld a d e s, pendo a cre r que a razão e a ju stiç a são sa crifica d a s a ideo log ias sem base e a paixões in stin tiv a s ou que há o u tro s in te ­ resses em jo g o que não são p ropriam ente nem os interesses dos p retos nem os in te ­ resses dos brancos que com eles convivem .

Todos os te rritó rio s a frica no s de um a ou de ou tra com p osição d em ográfica, ta l­ vez com excepção da Á fric a do Sul, se consideram correntem ente subdesenvolvidos. A cerca das possibilidades de progresso e co nó m ico e social andam no ar m uitas ilu ­ sões e há esperanças que ta lv e z jam ais se convertam em realidades, dadas as c a ra c­ terísticas do co ntinen te africano. M as de qualquer m odo m esm o nos te rritó rio s m ais avançados por obra e graça do branco, há longos cam inhos a percorrer q u an to à saúde, à educação, à produção de riquezas, ao em prego, ao nível de vida das p o p u ­ lações. Esse tra b a lh o cic ló p ico e in g ra to exigirá largos espaços de tem po, e, além de tem po, capitais, técnica, direcção adm inistrativa. Quem os fornece? Os te rritó rio s de que m e ocup o não criam cap itais su ficie n te s para a sua cre s­ cente valorização, não dispõem de té cn ico s bastantes nem da d ire cção necessária. Os problem as raciais que estão sendo avivados e su scitad os m esm o onde não e xis­ tem, im portam a in u tiliza çã o dos valores de org a n ização e fin a n cia m e n to que o branco representa. Então form u la m -se sugestões, um as ousadas e inviáveis, o u tra s ingénuas e ineficazes, para que o vazio criad o seja de q u alqu er form a preenchido, em hom ens e em dinheiro. A necessidade de realizar essa tarefa é evidente; mas m ais prem ente será antes a de planear, em harm onia com as necessidades da pop u lação e as d ire ctrize s e e x i­ gências da econom ia m undial, o co njun to do tra b a lh o nos te rritório s. 961

E verem os

Oliveira Solazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 então surgir algures a sede desses cérebros, a central desses técnicos, a banca dessa finança, estranhas aos territórios, mas encarregadas de ocupar-se deles, com o que teremos inventado uma nova forma de colonialismo - o colonialism o internacional. Temos exemplos à vista. Quanto aos capitais necessários, o problema é redutível a saber se se caminha no sentido do subsídio dadivoso ou no do capitalismo. As pessoas que têm alguma experiência de governo sabem que mesmo nas nações de mais antiga estrutura, as marcas de solidariedade da população podem revelar-se com exuberância, mesmo com entusiasmo, mas sempre acidentalmente; não é essa a forma normal de nos ajudarmos uns aos outros. A intervenção da autoridade é que indica as rotas, define as necessidades e distribui os sacrifícios. Mas na sociedade internacional não só estamos muito mais longe dos sentimentos de coesão fraterna, com o não existe a organização que disponha de autoridade para impor a todos a sua contribuição. Eu quero significar que o subsídio gratuito, mesmo de carácter e fim político, será sempre insuficiente, e que só o investimento de feição capitalista, mais ou menos interessado, permitirá resolver as dificuldades. Mas quer este investim ento seja privado quer seja público ou estadual, da parte de quem o fornece ou de quem o utiliza, ele exigirá, além da ordem e do trabalho das populações locais, as garan­ tias mínimas que só uma soberania responsável pode assegurar. E toda a d ific u l­ dade estará aqui: a necessidade de uma soberania responsável, exercida por um Estado devidamente organizado; ora é duvidoso que possam consegui-lo, no meio de tribos desavindas, os regimes importados da Europa e da América. Que para fugir à possível influência política exercida por via financeira, se quei­ ram adoptar métodos de financiamento confiados às Nações Unidas ou a outros organismos apolíticos, se os há neste mundo, é indiferente, porque na situação actual não se poderão obter capitais sem a segurança de que serão aplicados repro­ dutivamente e não se sumirão na voragem das populações em desordem e das a cti­ vidades anarquizadas. Não se conhecem fontes de rendimento públicas ou privadas capazes de aguentar tais esbanjamentos. Concluiremos que essa onda de odiento racismo que se levanta contra o branco em África, e será também lá contra o amarelo amanhã, não é moral mas sobretudo não é inteligente; e que o abandono, se precipitado, de muitos territórios por parte das potências europeias se me afigura um crime mais contra o negro que se preten­ dia elevar do que contra o branco, mesmo que ameaçado de expulsão e despojado de todos os seus haveres.

Não haverá então outra alternativa? Sim, e começam a despontar exemplos. Uma economia dc Estado pode arrancar para a produção e o com ércio externo, apropriando-se gratuitamente de todos os meios ao serviço da econom ia privada. Esta não se desenvolverá mais nos termos anteriores, mas o rom pim ento da estru­ tura económica e social existente, a negação violenta do direito de propriedade e a 962

V.

Portugal e a Campanha Anticolonialista formação duma economia socialista são suficientes para definir a política do Estado e atrair-lhe os apoios necessários ao desenvolvimento ulterior. Para compensar a falta de capitais ou a baixa produtividade do trabalho será condição essencial a mobilização da mão-de-obra existente e porventura outras servidões. Mas a inde­ pendência continuará a ser a liberdade do território, e é compatível com a escravi­ dão dos indivíduos. - Há quem não acredite no comunismo em África. Pois ele entrará por muitos meios e um dos meios é este.

A campanha anticolonialista desconhece estes factos, e as dificuldades e as con­ sequências da política prosseguida? Permito-me exprimir a tal respeito a maior dúvida. Na campanha concorrem duas forças não forçosamente solidárias, salvo quanto ao objectivo final. 0 comunismo, na sua luta contra o Ocidente, previu, estu­ dou, montou toda a máquina com que espera dim inuí-lo ou vencê-lo, desintegrando a África e subtraindo-a à sua direcção e influência. Não lhe importam quaisquer outras consequências, exactamente porque sobre o caos construirá melhor. Por outro lado, aqui e além, pequenas mas activas minorias, agitando as massas, parecem esforçar-se por dar uma pátria a povos que a não tinham; mas os novos nacionalismos, ao abandonarem as antigas dependências, correm de mãos dadas atrás de uma esperança vã - a de que, sendo da mesma cor, podem sustentar-se mútuamente ou entender-se melhor. Que ilusão! Os interesses não têm a mesma cor dos homens. A solidariedade que se revela na actual frente de ataque não é uma solidariedade de fundo; ela empenha-se na destruição das actuais estruturas mas é incapaz de construir outras novas. A unidade de África é afirmação gratuita que a geografia e a sociologia desmentem. E, ao contrário do que aconteceu na América, a Europa não se deu o tempo de definir mais racionalmente fronteiras, pacificar em definitivo raças e tribos, formar nações que fossem verdadeiros substractos de Esta­ dos. Quem serão então os futuros organizadores? Façamos uma pergunta mais directa: quem serão os futuros colonizadores? Esta a incógnita que pesa sobre grande parte de África. II. Para nós, nação compósita - euro-africana e euro-asiática - as considerações acima não têm apenas interesse especulativo; é possível derivarem do movimento actual consequências graves e talvez se nos levantem problemas de soberania e vizinhança. Debrucemo-nos por isso sobre nós próprios, para averiguarmos sob que ângulo os temos de enfrentar. Quando a Nação portuguesa se foi estruturando e estendendo pelos outros con ­ tinentes, em geral por espaços livres ou desaproveitados, levou consigo e pretendeu imprimir aos povos com quem entrara em contacto conceitos muito diversos dos que mais tarde caracterizaram outras formas de colonização. Às populações que 963

D is c u r s o s e

Oliveira Salazar Notas Políticas • 1959 a 1966

não tinham alcançado a noção de pátria, ofereceu-lhes uma; aos que se dispersa­ vam e desentendiam em seus dialectos, punha-lhes ao alcance uma form a superior de expressão - a língua; aos que se digladiavam em mortíferas lutas, assegurava a paz; os estádios inferiores da pobreza iriam sendo progressivamente vencidos pela própria ordem e pela organização da economia, sem desarticular a sua form a pecu­ liar de vida. A ideia da superioridade racial não é nossa; a da fraternidade humana, sim, bem como a da igualdade perante a lei, partindo da igualdade de méritos, com o é próprio de sociedades progressivas. Em todos esses territórios a mistura das populações auxiliaria o processo de for­ mação de uma sociedade plurirracial; mas o mais importante, o verdadeiramente essencial estava no espírito de convivência familiar com os elementos locais; nas possibilidades reconhecidas de acesso na vida económica e social; nos princípios de uma cultura mais avançada e de uma moral superior que, mesmo quando violada, era a regra do comportamento público e privado. Se através destes meios, de acção forçosamente lenta, conseguia formar-se uma comunidade com certo grau de coe­ são, pode dizer-se que a tarefa estava vingada: a independência e a igualdade dos povos integrados com seus territórios numa unidade nacional. Mais de 300 anos trabalhámos no Brasil, inspirados pelo mesmo ideal, e o que ali oassou a observar-se é verdadeiramente extraordinário: o Brasil tem as portas aber­ tas a gente de quase todo o mundo, caldeia-a na variedade dos seus elementos demográficos, absorve-a, assimila-a e não diminui em lusitanidade. Entre os países para cuja formação contribuíram raças diferentes, nenhum com o ele apresenta tão completa ausência de traços racistas na legislação, na organização política, na con ­ duta social. Ele é a maior experiência moderna de uma sociedade plurirracial, ao mesmo tempo que exemplo magnífico da transposição da civilização ocidental nos trópicos e no Continente americano. Pacífico, estável, dinamicamente progressivo, o Brasil, mesmo ao rever-se nas suas criações próprias, não tem que m aldizer das origens nem renegar a sua pátria. A sociedade plurirracial é portanto possível e tanto de cepa luso-am ericana como de base luso-asiática, segundo se vê em Goa, ou luso-africana, em Angola e Moçambique. Nada há, nada tem havido que nos leve a conclusão contrária. Sim ­ plesmente essa sociedade exclui toda a manifestação de racismo — branco, preto ou amarelo e demanda uma longa evolução e trabalho de séculos, dentro dos prin­ cípios que estão na base do povoamento português. Mal avisados andaríamos agora a inovar práticas, sentimentos, conceitos diversos dos que foram o segredo da obra realizada e são ainda a melhor salvaguarda do futuro. Estamos em África há 400 anos, o que é um pouco mais que ter chegado ontem. Levámos uma doutrina, o que é diferente de ser levados por um interesse. Estamos com uma política que a autoridade vai executando e defendendo, o que é distinto de abandonar aos chamados «ventos da história» os destinos humanos. Podemos admitir que a muitos custe compreender uma atitude tão estranha e diversa da usual; mas não podemos sacrificar a essa dificuldade de compreensão populações portuguesas cujos interesses na comunidade nacional consideramos sagrados. 364

V Portugal e a Campanha Anticolonialista É possível encontrar muitas deficiências no nosso trabalho, e somos os primeiros a lamentar que a limitação dos recursos não nos tenha permitido ir mais além. Espe­ cialmente nas comunicações, na divulgação da instrução, na organização sanitária temos diante de nós largos caminhos a percorrer. Mas, mesmo nesses como em m ui­ tos outros domínios, quando nos comparamos, não temos de que envergonhar-nos. As nossas cidades e vilas, os nossos caminhos de ferro, os portos, os aproveitamen­ tos hidroeléctricos, a preparação e distribuição de terras irrigadas por brancos e pre­ tos, a exploração das riquezas do subsolo, as instalações dos serviços têm seu mérito. Mas o ambiente de segurança, de paz e de fraternal convívio entre os muito diversos elementos da população — caso único na África de hoje — é a maior obra, porque a outra quem quer a podia fazer com dinheiro, e esta não. 0 trato fam iliar de sucessivas gerações foi forjando e consolidando a unidade entrevista no começo. Esta unidade não é por isso uma ficção política ou jurídica mas uma realidade social e histórica traduzida nas Constituições, e levanta obstá­ culos muito sérios aos que pensam dedicar-se agora à tarefa de emancipar a África portuguesa. Vêm tarde: já está. É que essa unidade não comporta alienações, cedências ou abandonos; as figuras jurídicas do plebiscito, do referendum da auto­ determinação tão-pouco se quadram na sua estrutura. Aos inclinados a supor que teorizamos, opomos as espontâneas e vibrantes reacções da consciência nacional, ao pressentir o mais leve perigo. Aqui e no Ultramar, em território nacional ou estrangeiro, o Português de qualquer cor ou raça sente essa unidade tão vivamente que toma as discussões como ameaças e as ameaças como golpes que lhe retalham a carne. De modo que não há mais a fazer do que pro­ clamá-la a todos os ventos e, na medida do possível, vigiá-la em todas as fronteiras. Aliás a ligeireza com que temos visto falarem uns, calarem-se outros sobre pro­ blemas desta transcendência - o destino de milhões de seres humanos — faz-m e crer que não foi ainda devidamente apreciada a gravidade das implicações possíveis de tão grandes desvarios. No domínio do direito internacional, das realidades prá­ ticas, das relações convencionais e dos interesses em jogo há ainda, pelo que nos toca, muita matéria a esclarecer no debate.

Os aspectos que venho referindo acerca da unidade da Nação na pluralidade dos seus territórios importam a unidade da direcção política, com a colaboração de todos, mas não têm nada a ver com certos problemas que apenas respeitam à orga­ nização administrativa e a maior ou menor descentralização e autonomia, problema acerca do qual vejo muitas pessoas manifestarem-se altamente interessadas. Não se trata para mim de problema de princípio mas sobretudo de possibilidades. Nas últimas décadas a economia do Ultramar, designadamente em Goa e nas provinciais de Angola e Moçambique, tem tomado grande desenvolvimento, e a par do progresso económico e dos progressos da instrução vai surgindo um escol cada vez mais numeroso de pessoas aptas para a administração dos territórios. É, aliás, 965

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 fenómeno natural a tendência para o alargamento de funções em correlação com necessidades acrescidas e os meios de que se dispõe. Por outro lado, a vastidão dos territórios e até as distâncias que os separam, ao mesmo tempo que as particu lari­ dades de alguns dos seus problemas hão-de ir impondo que mais vastos sectores da Administração sejam confiados aos órgãos locais, com o que pode ganhar-se em tempo e até, teoricamente ao menos, na justeza de apreciação das circunstâncias de lugar; no entanto, nada pode dispensar a competência de um largo escol com que os serviços se enriqueçam. Um único ponto me pareceria contrariar o espírito de unidade: seria pensar numa espécie de exclusivo ou privilégio que negasse a um português o direito de trabalhar ou de servir em qualquer fracção do território, segundo as suas aptidões. Não temos goeses e moçambicanos em Lisboa? europeus e cabo-verdianos na Guiné? angolanos ou guinéus em Moçambique? m oçam bicanos em Timor? Pois assim penso deverá continuar a ser. 0 Governo tem o espírito aberto a todas as modificações da estrutura adm inis­ trativa, menos às que possam atingir a unidade da Nação e o interesse geral. III. Temos de dizer uma palavra acerca do quadro em que vem desenvolvendo-se a campanha contra Portugal e os seus territórios de além-mar. Esta foi por assim dizer oficializada nas Nações Unidas, mas dispõe fora delas dos seus órgãos de divulgação e de acção subversiva. Afigura-se-me que as Nações Unidas se encontram num passo crucial da sua vida, não porque tenham avançado no sentido da universalidade — foram criadas para albergar em seu seio todos os Estados independentes — mas porque se vão afastando do espírito que presidiu à sua criação, ao mesmo tempo que substituem os processos de trabalho. E visível a tendência para converterem-se em parlam ento internacional, a que não faltam mesmo sessões tempestuosas, partidos ideológicos e rácicos, arranjos de corredores. Para que a solução por que alguns anseiam se completasse, seria no entanto necessário sobrepor-lhe um executivo responsável da confiança da Assembleia, o que oferece dificuldades, na medida em que os Estados Unidos se não disponham a custear a política aventurosa de alguns novos Estados ou a Rússia não esteja resolvida a trabalhar com um parlamento que não seja in tei­ ramente seu, e esse não é ainda o caso. Mesmo sem governo e sem capacidade de impor normas obrigatórias para os Estados membros, esse parlamento pode criar - está já criando - através das suas tribunas e da ressonância que emprestam às afirmações produzidas, vagas de agitação, ambientes subversivos, estados de espí­ rito que funcionam como meios de pressão sobre as nações estranhas aos grandes clãs da Assembleia. E tendo sido instituídas para a paz, já ali se ouvem em demasia vozes que a não pressagiam. M uitos Estados recém-vindos às Nações Unidas mostram-se convencidos de que só ali podem ter apoio e defesa. 0 resultado é que, junta a essa convicção a d e fi­ ciência natural das suas representações diplomáticas, a via bilateral para a solução 966

V Portugal e a Campanha Anticolonialista dos problemas vai sendo abandonada e é fatal nas Comissões e na Assembleia a tendência para a internacionalização de todas as questões e conflitos, mesmo que em nada interessem ao resto do mundo. A distância que vai do direito de voto à capacidade de decisão, ou de uma m aio­ ria votante à força efectiva das nações faz que soem um pouco a falso as grandes objurgatórias, mas não anula o seu perigo. Revela em todo o caso um desequilíbrio que ou desaparecerá ou de alguma forma terá de ser compensado. Para mim, sem o dom da profecia, o carácter parlamentarista excessivamente intervencionista e internacionalizante das Nações Unidas marcará o próximo futuro, até uma crise grave que as porá à prova. Temos de tê-lo presente, visto que não nos dispomos a aceitar a intervenção abusiva de terceiros na nossa vida interna. Todos os nossos territórios estão abertos à observação de quem quer e o Governo e os Serviços publicam dados suficientes para se saber em cada momento como mar­ cha a administração. A posição que havemos tomado, e manteremos, não vem pois de pretendermos ocultar seja o que for mas de que nos é impossível aceitar para as nossas províncias ultramarinas, que fazem parte da Nação, situação equivalente à de territórios tutelados pela 0. N. U. e destinados a subsequente secessão, bem como prestar contas ali de como os Portugueses entendem governar-se na sua própria casa. É ilegítimo da parte das Nações Unidas resolver discriminatoriamente contra Portugal; a Assembleia Geral não tem competência para declarar não autónomos territórios de qualquer potência. Esta é a interpretação juridicamente correcta e que sempre foi dada aos princípios da Carta. Nesses termos fomos admitidos e, se outro fosse o entendimento dos textos, é certo que não nos teríamos apresentado a fazer parte da Organização.

Qualquer pessoa de boa fé pode verificar existirem paz e inteira tranquilidade nos nossos territórios ultramarinos, sem emprego da força e apenas pelo hábito da convivência pacífica. Mas fora delas, no Congo, na Guiné, no Ghana e nalguns outros, não falando já dos países comunistas ou sob a sua direcção, sabemos que se organizam comités, ligas, partidos contra a unidade portuguesa, ao mesmo tempo que emissões radiofónicas de vários lados e servindo-lhes de apoio, tentam pertur­ bar o viver da nossa gente. Estes agitadores dispõem, ao que parece, de fundos importantes e de protecções especiais, e com uns e outras se publicam ainda m ani­ festos e pequenos jornais para exploração da credulidade pública. A gente é pouca mas desdobra-se, para parecer muita, mudando de nome; em todo o caso apresenta-se mesmo em capitais qualificadas e consegue meter pé em imprensa de categoria mundial e considerada responsável. Este ponto é digno de atenção, tanto mais quanto a essa grande imprensa lhe era fácil mandar informar-se localmente da verdade dos factos. As coisas mudaram muito e mudaram muito em pouco tempo. Havia dantes certo número de regras que pautavam a conduta dos Estados e de certo modo co n967

Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 dicionavam a sua admissão na Comunidade internacional. Era admissível asilar p o lí­ ticos em desgraça, mas não se admitia organizar bandos de guerrilheiros, para inter­ vir em território alheio, alimentar programas de difamação, financiar a sublevação de populações pacíficas, fornecer armamento, preparar científicam ente revolucio­ nários. Pois tudo se faz hoje e se apregoa com a altiva segurança de estar servindo grandes causas, ao mesmo tempo que se tem como norma sagrada a boa vizinhança e a não intervenção nos negócios internos dos Estados. Está a abusar-se da h ipo­ crisia e do cinismo; com eles desaparece na sociedade internacional o m ínim o de confiança e de respeito mútuo, indispensável à vida. Mas é esta vida que vamos viver alguns anos. Como vamos proceder? A unidade nacional alicerçada na amiga fidelidade e convivência dos povos espalhados pelas várias províncias de Portugal, é a base indispensável — a única ver­ dadeiramente eficiente - da nossa defesa. A consciência dessa unidade há-de ser o mais forte escudo contra a acção das propagandas externas, mas não constitui só por si toda a defesa. Esta temos de organizá-la — temos vindo a organizá-la — nos planos correspondentes à multiplicidade de métodos usados contra nós. Entretanto temos de continuar a nossa vida, executar os nossos program as, promover os nossos empreendimentos, tão firmemente, tão serenam ente com o se não fosse já escândalo para o mundo a pretensão de continuarm os a defender o que muitos vêem ameaçado e alguns julgam mesmo perdido, na esteira de acontecimentos recentes que, aliás, se processaram em linhas m u ito diversas. Não vejo que possa haver descanso para o nosso trabalho nem outra pre ocu p a ­ ção que a de segurar com uma das mãos a charrua e com outra a espada, com o durante séculos usaram nossos maiores. Esta nova tarefa cujo peso nem sequer podemos avaliar é desafio lançado à geração presente e vai ser uma das m aiores provas da nossa história. É preciso ter o espírito preparado para ela; exigirá de nós grandes sacrifícios, a mais absoluta dedicação e, se necessário, tam bém o sangue das nossas veias, como já foi em Goa e noutras partes. Esta é a nossa sina, isto é, a missão da nossa vida, que não se há-de am aldiçoar mas bendizer pela sua elevação e nobreza. Daqui a poucos anos - dois? três? quatro? - uma de duas coisas se observará em África: o progresso paralisado em muitas das suas extensões, com a to tal ruína das economias, a degradação das populações e o horror das lutas intestinas; ou então tentativas ou experiências de colonialismo internacional, irresponsável e só por isso inumano, diante do qual o preto, diplomado ou não, será apenas uma unidade estatística. Então muitos dos que no alvoroço do m om ento exigem a emancipação dos territórios portugueses, sem outra vantagem que d esin tegrá-lo s da mãe-pátria e com isso diminuir a resistência da Península, pensarão que pres­ támos grande serviço à humanidade com o nosso exemplo e às populações u ltra ­ marinas de todos os credos e cores com tê-las defendido e poupado a novas fo r­ mas de escravidão. 968

V. Portugal e a Campanha Anticolonialista IV. Há já muito tempo que abandonei a controvérsia com a União Indiana a propó­ sito de Goa. Pareceu-me que nos inferiorizava este como diálogo de surdos e nada se adiantava em repetir indefinidamente as mesmas recusas às mesmas pretensões. O Prim eiro-M inistro da União Indiana é, ao mesmo tempo que figura internacio­ nal de grande relevo, chefe de partido e de uma maioria parlamentar. Inventou a questão de Goa que não existia; multiplicou depois os meios com que obtivesse satisfação às suas ambições, e não foi feliz. Vê-se, porém, obrigado a cada momento na imprensa e nas Câmaras a dar explicações, a reiterar promessas, a alimentar o fogo sagrado. A sua tese básica é que a geografia dita o direito político, cria, define e auten­ tica a soberania. É evidente que o nosso Estado da índia pertence geográficamente ao Indostão, mas, se por esse facto devesse fazer parte da União Indiana, outros Estados ora independentes estariam condenados a ser absorvidos nela. Em certo momento a China perfilhou a doutrina, aplicando-a, ao que parece, a regiões india­ nas do Himalaia; mas Caxemira continua privada de se integrar, como é sua von­ tade, no Paquistão, com certo escândalo mundial. Isto significa que a doutrina do Prim eiro-M inistro não é segura nem domina todos os casos, e que para cada inte­ resse tem de formular uma tese que o proteja ou sirva de base às suas reivindica­ ções. É evidente que a situação criada não acredita uma nação como a índia nem os seus mais altos dirigentes. Verificámos então que a União Indiana, para se refazer do prestígio abalado, tomou afincadamente na 0. N. U. a chefia da oposição afro-asiática contra Portu­ gal, na esperança de, m ultiplicando as dificuldades pelos vários territórios portu­ gueses, sentir maiores facilidades para as suas pretensões quanto a Goa. E não só quanto a Goa mas quanto ao leste africano em que tem postos os olhos. E quer também entregar Macau à China e o Timor português à República da Indonésia que mais de uma vez tem afirmado não lhe pertencer. Foi no entanto para nós grande satisfação verificar que as dezenas de milhares de goeses do Quénia, mau grado os aliciamentos e pressões de agentes indianos e apesar da situação delicada em terra estranha, ainda há poucas semanas revelaram na inauguração do Forte de Jesus, em Mombaça, e da estátua de Vasco da Gama, em Melinde, com a presença do nosso M inistro da Presidência, como era vivo e profundo e sincero o seu portuguesismo. Nós respeitamos como grande potência asiática a União Indiana e, ao pretender­ mos manter relações de boa vizinhança, não cumprimos senão o nosso dever. Não fazemos estendal nem das revoltas, nem das fomes, nem das epidemias, nem das vítim as de todas as insuficiências. Nós temos obrigação de crer que o governo faz os máximos esforços por não deixar morrer de fome o seu povo, por elevar-lhe o nível de vida, por dim inuir as diferenças sociais. Mas não nos parece bem - e é sobretudo contra a justiça - que a União Indiana pretenda amesquinhar, co nfro n ­ tando-se em conjunto com o nosso Estado da índia, a civilização luso-indiana que ali se respira. É sobretudo chocante que os governantes da União Indiana declarem

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Oliveira Salazar Discursos e Notas Políticas • 1959 a 1966 não reconhecer o direito histórico de Portugal, ou o considerem perempto pela sua mesma antiguidade; não respeitem a vontade expressa da população, para insistir em anexações ou integrações dos territórios alheios. É chocante sobretudo a d ifi­ culdade que tem confessado sentir em compreender bem o alcance do acórdão do Tribunal Internacional de Justiça sobre o trânsito para Dadrá e Nagar Aveli, acórdão que, havendo sido dado a nosso favor, temos agora de saber como se executará. Porque por ora estamos convencidos de que a Comunidade internacional precisa de desenvolver-se em termos de direito e não em termos de força, é nossa obrigação fazer tudo para que assim seja. Goa é uma pequena jóia que não interessa à União Indiana pela sua extensão, e só nos interessa a nós pelo mandato da História e a todo o Ocidente pelo que repre­ senta de uma ideia de confraternização ou de convivência mundial que ali im plan­ támos, que dali irradiou e muito depois de nós outros pensam ter inventado desejar impor. Eis porque, se foi infeliz criar a questão, muito mais infeliz seria criar um conflito, visto que não podemos negociar nem podemos transigir.

Penso ter exposto os dados essenciais dos problemas suscitados pela campanha anticolonialista e demonstrado que deles se não podem tirar, quanto a nós, co nclu ­ sões diversas daquelas a que o Governo chegou. Em pequenas coisas de porm enor é muito possível não estarmos todos de acordo, mas, exactamente porque são de pormenor e suposta pequena importância, não vale a pena fazermos com elas co n ­ trovérsia e muito menos campos de batalha. 0 que mais nos importa é m ostrar em actos a unidade que é real no fundo das consciências, porque não vejo de fora senão olhos postos em dissidências ou desuniões possíveis; estas facilitariam jogos de interesses que penso não serem os da Comunidade portuguesa. Longe de nós, porque alheio à consciência nacional, haverá quem pense deverem aplicar-se aos nossos territórios as fórmulas e processos que vimos redondam ente fracassar noutras partes; e outros, talvez sem tão más intenções, revelam alguma ansiedade por aproveitar este caso nacional - o grande problema da pátria p o rtu ­ guesa no nosso tempo — para verse lhes é possível enxertar aí agitações ou m udan­ ças políticas do seu agrado. Noto a grande desproporção entre os fin s e os meios. Seja porém qual for a evolução dos problemas internos a Nação é uma herança sagrada e a sua integridade não poderá ser sacrificada a ódios, compromissos, ambições insatisfeitas. E para quê, meu Deus? É tão fácil ser governo e é tão d ifí­ cil governar!

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VI. NOTA OFICIOSA SOBRE O CASO DO PAQUETE «SANTA MARIA»