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Portuguese Pages 413 Year 2018
Everton Rangel Camila Fernandes Fátima Lima (Orgs.)
(Des)Prazer da norma
(Des)Prazer da norma
As tensões que se entrelaçam nas fronteiras entre o público e o privado nestas nossas sociedades modernas ensejam inúmeras teorias e modelos interpretativos. Muitos deles se entrecruzam nesta coletânea, votada a perseguir, com base em pesquisa empírica sistemática, as vozes, ecos, ressonâncias, que instituem, desafiam, soerguem e abatem os sujeitos, na prática desse “paradoxo da subjetivação” e dessas “artes da existência” a que se referiu Foucault – e que perpassam a filigrana dos artigos aqui reunidos. A ambiguidade do título remete justamente aos jogos complexos em que a norma e o desejo se engatam – redivivo Jano – pelas vias fascinantes das experimentações com a vida e suas pulsões multiformes. Não à toa têm preeminência na obra os temas da sexualidade e do gênero, cada vez mais aguçados numa cosmologia que, por um lado, pro-cura petrifica-los em fórmulas normativas naturalizadas e, por outro, exalça as virtudes da liberdade, da criatividade, da singularidade – da transgressão, no limite.
A categoria de dissidência, que atravessa parte das contribuições, certamente permite apontar para esse impulso ambivalente, trabalho contínuo da experiência vital, em que a autoafirmação enfrenta o desafio inquietante da Esfinge. Ali onde mais viva reponta a des-ordem ou a anti-ordem, também se desenha uma ordem, mais reveladora do que a aparente, que se expressa no senso comum cotidiano. A coletânea é ainda testemunho da eficiência desse coletivo dinâmico que é o NuSEX – Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidade, lócus universitário de enfrentamento das adversidades que nunca cessam de crescer neste país, instado a avançar na produção de um conhecimento sobre as dimensões mais invisíveis, sutis – subterrâneas tantas vezes – da vida social; essencial para argumentar com propriedade e autoridade na defesa de uma “sociedade livre de discriminações de raça, gênero, classe, sexualidade, entre outras formas de injustiça social” – como dizem os organizadores, de forma mais que oportuna. Luiz Fernando Dias Duarte Museu Nacional/UFRJ
Everton Rangel Camila Fernandes Fátima Lima (Orgs.)
(Des)Prazer da norma
© Everton Rangel, Camila Fernandes, Fátima Lima, 2018 © Papéis Selvagens, 2018 Coordenação Coleção Stoner Rafael Gutiérrez, María Elvira Díaz-Benítez Projeto gráfico e diagramação Martín Rodríguez
Arte de capa Aline Besouro, Bendita Gambiarra, 2017 Edição de imagem Nathalia Ferreira Gonçales
Revisão Brena O’Dwyer e Carolina Maia
Conselho editorial Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP) Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG) Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá) Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ) Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
D473 (Des)prazer da norma / Organizadores Everton Rangel, Camila Fernandes, Fátima Lima. - Rio de Janeiro (RJ): Papéis Selvagens, 2018. 412 p. : 16 x 23 cm - (Stoner; v. 8) Bibliografia: p. 387-410 ISBN 978-85-85349-06-6
1. Identidade de gênero. 2. Minorias sexuais - Condições sociais. I. Rangel, Everton. II. Fernandes, Camila. III. Lima, Fátima. IV. Título. V. Série. CDD 306.76 [2018] Papéis Selvagens [email protected] papeisselvagens.com
Sumário Prefácio Governo, Desejo, Afeto Maria Elvira Díaz-Benítez, Everton Rangel, Camila Fernandes
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Governo Gestão de corpos, regulação de integridades: uma reflexão sobre direitos e intersexualidade Barbara Pires 45
Dos limites de uma promessa: reflexões sobre a “terapia de mudança de sexo” Lucas Freire 67 Das ruínas do corpo sudaca: marcas de vulnerabilidade em performances artísticas Nathalia Ferreira Gonçales 93 Aleeegreeem-se!!: sabores negros, paladares brancos Samara Freire
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Raça, gênero e sexualidades: interseccionalidades e resistências viscerais de mulheres negras em contextos bio-necropolíticos Fátima Lima 141 Desejo O “princípio da putaria” nas orgias masculinas: diferença e singularidade no corpo orgiástico Victor Hugo de Souza Barreto 161 Entre pecados e mercados: gênero, religião e práticas pedagógicas no consumo de artigos eróticos Lorena Mochel 183
Bombom: esse escuro objeto do desejo Michel Carvalho
207
Matérias, corpos e lugares: o trabalho no barracão de escola de samba e a construção de homossexualidades masculinas Lucas Bilate 223 As muitas faces de um livro: sexualidade e moralidade no mercado editorial brasileiro Nathanael Araújo 247 Afeto Descasadas. Ruptura conjugal e individuação Carolina Castellitti
275
O tempo do cuidado: batalhas femininas por autonomia e mobilidade Camila Fernandes 297 Escritas lésbicas, construções afetivas: uma análise do boletim Um Outro Olhar Carolina Maia 321
Em meio a sonhos e normas: amor, família e futuro entre três mulheres trans/travestis Oswaldo Zampirolli 345 Amores Censurados: sobre gritos, olhares, tapas e fissuras Everton Rangel
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Referências bibliográficas 387
Governo, Desejo e Afeto María Elvira Díaz-Benítez, Everton Rangel e Camila Fernandes1 Este livro é parte de um esforço coletivo iniciado no ano de 2013 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS/MN), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Naquele ano, uma série de fatores confluíram para a criação do NuSEX – Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidade. A chegada da professora María Elvira Díaz-Benítez ao programa veio de encontro aos trabalhos desenvolvidos pelos professores Luiz Fernando Dias Duarte e Adriana de Resende Barreto Vianna, cada qual com um longo histórico de pesquisas nos campos dos estudos de gênero, sexualidades, moralidades entre outros temas correlatos. Além deste cruzamento fecundo de interesses e trabalhos, outra linha de força veio adensar pontos estratégicos de convergência; a afinidade e a aproximação dos alunos dos respectivos professores do núcleo, que a partir de diferentes pontos de intersecção, estabelecem pesquisas, diálogos e inúmeras pontes de comunicação entre matrizes teóricas e metodológicas das mais variadas vertentes. É neste contexto híbrido de encontros, proximidades e diversidades que nasce o NuSEX, porém, é crucial ressaltar que este agenciamento não se limita a estes professores, nem tampouco a seus respectivos alunos, mas é parte de um processo histórico em que lutas, pesquisas, militâncias e ativismos foram travados em busca de uma sociedade livre de discriminações de raça, gênero, classe, sexualidade, entre outras formas de injustiça social. Com esta afirmação, queremos dizer que nossa existência enquanto grupo é resultado do trabalho relacional de muitos outros pesquisadores que estão dispersos ao longo das páginas dos 15 artigos que compõem esta coletânea, além daqueles que se encontram registrados nesta María Elvira Díaz-Benítez é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional (MN), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Everton Rangel é doutorando e Camila Fernandes é doutora pelo mesmo Programa. 1
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apresentação. Portanto, o emprego da palavra “coletivo” na primeira frase desta introdução não é de mero recurso descritivo, mas diz respeito ao espírito de um grupo que ao longo de seus cinco anos de existência tem agregado um esforço consistente em manter viva as trocas acadêmicas, afetivas e intelectuais mesmo em um contexto político tão adverso para a produção do conhecimento. Ao falar das adversidades, estamos nos referindo a momentos críticos em que a Universidade Pública têm sido alvo de processos políticos brutais de precarização que atingem frontalmente a maneira de produzir, sustentar e compartilhar o conhecimento. Registrar este processo de fragilização é parte fundamental das forças políticas que atravessam um livro deste porte. A partir de 2014 até os dias atuais, inúmeros cursos de graduação e pós-graduação em várias partes do país sofreram cortes orçamentários avassaladores no repasse de verbas do governo. Desde então, os humores e engajamentos que possibilitam a manutenção das atividades acadêmicas têm sofrido impactos significativos. O investimento em Ciência e Tecnologia foi reduzido consideravelmente, sobretudo aquele voltado ao campo das ciências humanas. Ademais, a intensificação de um discurso sobre a “crise do Estado” acirrou um clima de penúria econômica em que diversos auxílios, projetos, bolsas e pesquisas foram diretamente afetadas e/ ou canceladas. Este é o caso do Edital APQ4 da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) que em 2015, mesmo sendo aprovado, foi inviabilizado devido aos cortes orçamentários para publicações, o que impossibilitou a viabilidade deste livro naquela ocasião. Os artigos produzidos foram engavetados, enquanto um aprofundamento de crises, cortes e faltas se intensificou nos programas de pós-graduação em todo o país. Além dos muros da universidade, durante o ano de 2015, acompanhamos tentativas contundentes de ataque aos direitos das mulheres, a exemplo da discussão sobre o “PL 5069/2013” de autoria do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, na tentativa de alterar garantias consolidadas às mulheres vítimas de violência sexual, sobretudo no acesso a profilaxia e no direito ao aborto legal. No ano de 2016, sofremos o impedimento da primeira mulher eleita como presidenta do Brasil, em meio a gritos conservadores que enalteciam os valores das “famílias de bem” enquanto clamavam o
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fim da “ideologia de gênero” nas escolas. Logo no início de 2017, Dandara dos Santos foi espancada até a morte de maneira brutal por um grupo de homens na cidade de Fortaleza. As imagens deste crime atroz foram divulgadas por um dos participantes, fato que desencadeou a repercussão internacional deste episódio assombroso de transfobia. Estes e outros episódios fizeram parte do campo de “golpes” e “embates” no cenário das discussões de gênero e sexualidade na política brasileira, conforme analisam DíazBenítez e Gonçales (2018) em ensaio que discute as transformações relativas a este panorama. Neste ano de 2018, perdemos Marielle Franco, mulher, negra, mãe, favelada, quinta vereadora mais votada da cidade do Rio de Janeiro e militante de Direitos Humanos, brutalmente executada em um crime bárbaro e infelizmente ainda não resolvido pelas autoridades do Estado. Se evocamos a presença de Marielle nesta introdução, é porque sua atuação como parlamentar representava uma grande inspiração aos ideais de mundo que o NuSEX acredita. Seguir adiante sob o canto da sua luta é uma obrigação central que nos constrói como sujeitos políticos. Como se tais processos não fossem suficientes para atingir o cotidiano acadêmico, no domingo 2 de setembro de 2018 o palácio do Museu Nacional foi consumido por um incêndio devastador, uma perda sem precedentes para a história dos povos que foram vítimas do imperialismo colonial, aqueles que hoje revisitavam esse passado de apagamento e esquecimento procurando possibilidades de imaginar um futuro alternativo às lógicas autoritárias e aniquiladoras da diferença cultural. Na sucessão de todos estes eventos, vividos em um espaço tão curto de tempo, fomos todos de diferentes maneiras forçados a caminhar em meio às perdas, faltas, ausências, ruínas e dores nem sempre simples de serem enunciadas e tornadas dignas de luto, como escreve Judith Butler (2015). Em seus trabalhos, a antropóloga indiana Veena Das (2007) acompanha suas interlocutoras frente a inúmeras violências que “descem ao ordinário”, mostrando os esforços contínuos feitos pelas pessoas para que os seus respectivos mundos sejam habitados em meio às dores, traumas e feridas de guerra. Guardadas as devidas proporções, não é exagero dizer que a reunião destes artigos vai além das discussões que cada um se propôs a realizar, é parte desta universidade que entre trancos e barrancos procura se manter ativa, reunindo pessoas, agregando discussões e se esforçando
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coletivamente para que o sentido da luta pela educação pública e de qualidade não se perca em meio a tantos desmandos exercidos em tempos sombrios, obscurantistas e em pleno avanço da extrema direita em diferentes regiões do mundo. Por todos esses motivos este livro celebra a capacidade de atravessarmos contextos adversos de maneira conjunta. Cada pessoa envolvida neste projeto acreditou que era possível seguir adiante, escrevendo, revisando, doando tempo, trabalho e escuta, mesmo em meio à produção da descrença e ao desmonte das nossas instituições. Aqui, encontram-se trabalhos que partem de diferentes momentos acadêmicos, alguns de dissertações de mestrado já defendidas, outros de projetos de doutorado que estão em curso e alguns são produto de teses de doutorado concluídas. Entre todos artigos há um ponto comum que se destaca: todos os autores apresentam etnografias consistentes e caminhos originais, perseguidos de modo a evitar conclusões generalizantes. Ao longo destas páginas procuramos agregar discussões que adentram territórios existenciais plenos de ambivalências, nos quais o (des) prazer e a norma andam em conexões íntimas, profundamente reversíveis e intensamente conectadas. Finalmente, com esta publicação comemoramos 5 anos da existência do NuSEX e os 50 anos do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do Museu Nacional (MN), que, neste fatídico ano, completa os seus 200 anos. Percursos e questões O NuSEX carrega desde sua conformação a marca da categoria dissidência, não apenas pela fertilidade dessa noção nos estudos e políticas queer que muito nos interessam, mas também porque a mesma remete a uma agenda de pesquisa bastante específica que ficou materializada no livro Prazeres Dissidentes (2009), do qual María Elvira foi co-organizadora. Naquele livro, indagávamos sobre experiências que no território do sexo/gênero estariam operando nas fronteiras das eróticas normativas e também sobre as configurações de corpos ininteligíveis, que, por tal, constituiriam expressões, desejos, prazeres e práticas perturbadoras. Como se constituem? Como são vivenciadas? Anunciam novas categorias
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sexuais e identitárias? Como agem os diferentes marcadores sociais da diferença na conformação de subjetividades e de identidades coletivas alternativas? Como se reorganizam normatividades e hierarquias em meio a apelos transgressores? Foram questões discutidas naquele momento. Assim, variados universos receberam atenção etnográfica, dentre os quais se destacaram os espaços de sociabilidade de homens homossexuais, os de mulheres lésbicas e os diversos contextos do mercado do sexo (online e off-line). Foi indiscutível a interlocução do livro Prazeres Dissidentes com a produção de Michel Foucault, Gayle Rubin, Judith Butler e outros autores vinculados aos estudos queer, além de antropólogos que têm sido fundamentais para a conformação do campo de estudos em gênero e sexualidade no território nacional: Néstor Perlongher, Peter Fry, aqueles associados ao CLAM (Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e ao Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, da Universidade Estadual de Campinas. Naquele momento, estávamos movidos por um ímpeto político, teórico e metodológico claro: contribuir para uma teoria radical do sexo (Rubin, 1984), que viesse a ajudar na criação de um pensamento libertador sobre o sexo. Para tal teoria, diz Rubin (1984, p. 149), faz-se preciso “identificar, descrever, explicar e denunciar a injustiça erótica e a opressão sexual”. Esse “espírito” do que chamamos de dissidência foi vital na criação do NuSEX e continua a inspirar muitas de nossas reflexões. Isso é perceptível neste volume, por exemplo, no trabalho de Victor Hugo Barreto que descreve festas de orgia entre homens no Rio de Janeiro, perguntando-se, dentre outras questões, como a visitação de corpos por outros corpos provoca nos picos de intensidade sensorial arranjos não previstos, práticas e encontros inusitados do ponto de vista normativo. Inspirou também, neste volume, as reflexões que Nathália Gonçales elaborou sobre performances, bem como sobre as experiências daqueles que as produzem. A autora examina práticas que vazam aos imperativos sociais na medida em que agenciam o potencial da crítica, tanto feminista quanto racial, articulada em circuitos artísticos. Não obstante a dissidência se apresente como uma importante ferramenta, as preocupações fundamentais desta coletânea escoltam vários caminhos. É oportuno entender este
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livro como um reflexo das diversas trilhas temáticas e teóricas que o NuSEX tem seguido desde o curto tempo de sua formação. Esses percursos muito devem à influência acadêmica dos professores que orientam os trabalhos aqui apresentados, assim como ao vigor com o qual o coletivo tem recebido e assumido premissas da agenda feminista, a saber, os modos de regulamentação do gênero. Como sugere Judith Butler (2003), as normas existem através da prescrição e reiteração contínua de comportamentos, gestos, discursos e atos, fundados em uma matriz heterossexual. O gênero requer e institui o seu próprio regime de inteligibilidade. Com Butler compreendemos que, se o gênero é o aparato através do qual tem lugar a produção e normalização do masculino e do feminino, ele é também o aparato a partir do qual esses termos se desconstroem e desnaturalizam, isto é, o fato do gênero estar radicalmente condicionado não significa que esteja radicalmente determinado. A norma se abre ao deslocamento e à subversão desde o seu interior. Nesse sentido, a performatividade pode ser entendida como inextrincável ao processo de (re)fazer e/ou deslocar o sujeito de gênero e a própria ordem social. Os artigos aqui reunidos discutem os diversos modos como os sujeitos vivenciam os paradigmas do gênero: o âmbito dos afetos (casamento, divórcio, cuidado dos filhos e amor romântico); o âmbito dos desejos, do erotismo, da fantasia e da violência; e o âmbito em que saberes e poderes atuam de modo mais vertical no exercício de regulamentações. Em outras palavras, nosso interesse é discorrer sobre como persistem e são atualizadas certas gramáticas de gênero, interseccionadas por raça, classe e sexualidade, em meio a governos, desejos e afetos, tríade que utilizaremos como fio condutor da narrativa. Várias etnografias apresentadas neste livro não necessariamente manifestam uma preocupação com as formas como os sujeitos resistem às regulamentações ou as subvertem, pois visam pensar sobre as artes da vivência por entre normas. Esta perspectiva é enormemente inspirada em Saba Mahmood (2005), autora citada em diversos artigos desta coletânea e cujas reflexões apontam a necessidade de explorarmos os modos pelos quais os sujeitos agem de forma a habitarem com empenho, esforço, luta e engajamento as mais diversas normas sociais. A discussão proposta pela autora coloca em cena o paradoxo da subjetivação (Foucault, 1982): o sujeito é habilitado por relações de subordinação
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específicas e apenas através das mesmas se torna apto a agir de uma dada maneira. Não se trata, portanto, da conceituação da agência como livre escolha e nem mesmo da suposição de que os sujeitos são aqueles que somente seguem ordens. Em sua crítica à teoria da performatividade proposta por Butler (2003), Saba Mahmood infere que há uma inclinação dualista na forma de pensar as normas: ora a partir de sua atualização, ora através de sua subversão. O problema estaria no fato da agência ser localizada por Butler expressivamente nos momentos de ressignificação das normas. Mahmood defende que seria preciso não delimitar a priori os modos de agência, já que estes revelamse não apenas na capacidade de resistir ou subverter, mas também como algo que se realiza de múltiplas maneiras. Partindo desse ponto de vista, a autora demonstrou em seu livro, Politics of Piety, como mulheres adeptas a um movimento político religioso no Egito trabalhavam sobre si mesmas de modo a constituírem as suas condutas como virtuosas. A agência foi entendida como manifesta no exercício cotidiano de fazer de si uma muçulmana melhor. Mahmood mostra a capacidade de agência possível no interior de relações de subordinação historicamente específicas e também como essas ideias sobre subordinação são vividas no âmbito do cotidiano. Pode-se dizer que está em jogo no trabalho da autora a possibilidade de formular uma teoria da agência que leve em consideração noções de sujeito que nem de longe se esgotam na imaginação liberal que alimenta as políticas feministas. Levado ao limite, o projeto de Saba Mahmood não é apenas o de nos ofertar uma antropologia do Islamic Revival, mas também o de fazer seu material etnográfico falar sobre a normatividade dos projetos emancipatórios. Em contrapartida, deveríamos nos perguntar sobre os efeitos políticos de uma análise centrada no habitar às normas. Se a empreitada de Mahmood pode ser pensada como uma crítica antropológica aos ideais de fundo que norteiam as mais variadas práticas feministas, cabe-nos atentar para o risco da aposta de analisar o engajamento dos sujeitos com as normas se enrijecer a ponto de enfraquecer o compromisso feminista com a transformação social. Os aspectos perversos da vivência das normas não podem ser obliterados, bem como não podemos perder de vista que, ainda que discordemos quanto ao que idealizamos como
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transformação, a própria teoria social pode ser transformadora Butler (2004). As proposições analíticas sugerem ângulos de visualização dos fenômenos sociais que não necessariamente correspondem às doxas disseminadas e que podem informar as práticas de figuras públicas que ocupam posições estratégicas de poder. Não estamos sugerindo que o analista pode ou deve per se definir o sentido da transformação, e sim que as formulações antropológicas fazem parte dos cenários políticos nos quais os antropólogos, como sabemos, são atores que, tais como outros, ocupam lugares sociais a partir dos quais disputam e acionam significados, recursos, agendas, pessoas e redes. É deste ângulo que a teoria social pode ser vista como transformadora, mesmo não sendo sozinha suficiente à realização das mais variadas demandas dos mais variados feminismos. O trabalho de Mahmood, ao mesmo tempo em que guarda o potencial de nos chamar atenção aos contornos e às fronteiras da nossa imaginação política, nos obriga a pensar sobre como as nossas etnografias circulam e como, por intermédio delas, nos colocamos contra a injustiça social e defendemos certos mundos possíveis, mas não outros. Parece suficiente sinalizar que o que estamos tentando dizer é que se inicialmente abjeção e dissidência nos permitiam ressaltar que existem regras, vidas, prazeres e relações nas margens do social, agora desejamos explorar também os modos como os sujeitos movimentam seus mundos dentro das normas e governos que os constituem. Seria, no entanto, bastante limitado entender este movimento como uma simples mudança de ênfase. Estamos, na verdade, interessados na combinação de perspectivas e em refletir sobre a dissidência não apenas como discursos/práticas desveladas por sujeitos que se querem transgressivos, como também por aqueles que, distante deste tipo de motivação, realizam em suas vidas cotidianas “pequenos” gestos que deslocam o mundo a duras penas. Nesta coletânea, tal ênfase é particularmente clara no artigo de Camila Fernandes. Pode-se dizer que a aposta mais generalizada se centra então na ideia de ambivalência, demarcada já no título do livro que claramente convoca à percepção de que tanto prazer quanto desprazer confluem na experiência daqueles(as) que habitam normas, que, por vezes, conflitam umas com as outras. Sujeitos que cultivam a adesão a projetos de vida normativos no quesito religioso podem em certos registros da vida, em certos
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contextos, adotarem práticas que contorcem o conjunto de práticas e saberes que lhes servem de referência e que os mesmos tendem a cultivar no plano ordinário. Os leitores encontrarão neste livro descrições minuciosas de processos que revelam deslocamentos, inconsistências, ambiguidades, incertezas e vacilações em torno das normas que articulam o horizonte das ações e das expectativas sociais. Encontrarão formas de fracassar, que, sempre de maneira singular, atentam para os limites das normas e para os limites da possibilidade dos sujeitos forjarem a si mesmos de acordo com desejos individuais, atravessados pelas coletividades, e de acordo com os modos bons e belos de ser e de se portar vigentes em cada contexto, em cada situação da vida. A crítica de Schielke (2009) à etnografia de Mahmood enquanto produto intelectual revelador de “histórias de sucesso” aponta justamente a necessidade de percorrermos o caminho que diversos autores nesta coletânea seguiram: descrever e analisar práticas sociais que constituem, demarcam e sugerem a ambivalência das normas no cotidiano. Se há vitalidade – luta, dor e prazer, se vinculando continuamente –, quando alguém efetiva uma conduta virtuosa no interior de certas normas, pode existir também uma aposta radical no desfazer de si no interior das prescrições sociais. Falência, autodestruição, passividade e negatividade são vistos, por Jack Halberstam (2011), como possibilidades analíticaspolíticas que se contrapõem à ênfase na formação dos sujeitos e que requerem a caracterização do deixar de ser, pois o vir a ser é encarado como entranhado ao modo capitalista de produção e às promessas de sucesso e reconhecimento sempre escassas, desiguais e excludentes. Trata-se da deflagração da urgência dos modos de evasão. Sabemos, porém, que os sujeitos que habitam normas podem se sentir repletos de tédio, insatisfações e mágoas, e, concomitantemente, podem imaginar um futuro outro, dias melhores, a felicidade por vir e o sucesso ainda a alcançar. O desfazer dos sujeitos não está necessariamente em oposição ao fazer. Se as normas existem em dinâmicas sociais passíveis de serem descritas, tanto a estabilidade quanto a instabilidade das múltiplas respostas individuais devem ser consideradas. O questionamento das fórmulas de sucesso e de felicidade atravessa a compreensão das formas de participação dos sujeitos. Não se busca aqui simplesmente contrapor uma agenda
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de pesquisa a outra, como se proposições teóricas e políticas se anulassem, mas sim realizar um trajeto em busca das várias portas de entrada e de saída que permitiram aos autores desta coletânea descreverem esperanças, negatividades, prazeres, perigos, desprazeres, mortes, expectativas e realizações, sempre a partir de relevos distintos e do realce de aspectos específicos. A ambivalência é uma aposta etnográfica na complexidade da vida ordinária que demanda dos(as) antropólogos(as) o reconhecimento dos marcos a partir dos quais certas práticas são categorizadas como agência, resistência e dissidência. Laidlaw (2002, p. 315) desconfia que “apenas as ações que contribuem para o que o analista vê como estruturalmente significativo contam como agência. Sem rodeios, nós somente as marcamos como agência quando as escolhas das pessoas parecem ser corretas para a gente”.2 Por isso, insistimos: qual é a abrangência e quais são os limites dos repertórios políticos e antropológicos? Não se trata de denunciar a veiculação de discursos políticos e morais através da pesquisa acadêmica. A neutralidade axiológica é uma falácia. O perigo existe quando não estamos atentos às conformações histórico-culturais que nos permitem enquadrar os fenômenos. Para além da explicitação das nossas modalidades de enquadramento, devemos questionar os processos de conformação e sedimentação dos quadros disponíveis. Através desse tipo de trabalho reflexivo contínuo, infindável, podemos deslocar as nossas perguntas e ver as nossas próprias modalidades de enquadramento sujeitas a uma transformação contínua. O esforço do NuSEX tem sido, portanto, o de não trabalhar com a pressuposição de um único e adequado frame, para novamente lembrar Butler (2015). Governo: corpos e formas de habitar as experiências de vida Que governos são esses que criam corpos generificados e que os submetem a verificações? Como os corpos são fixados por meio do que Foucault chamou de dispositivo? Quais são os roteiros morais e emocionais que certos indivíduos e instituições acionam No original: “Only actions contributing towards what the analyst sees as structurally significant count as instances of agency. Put most crudely, we only mark them down as agency when people’s choices seem to us to be the right ones”. 2
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em situações de poder e decisão? Barbara Pires e Lucas Freire, autores desta coletânea, perseguem essas questões analisando modos de gerenciamento da intersexualidade e da transexualidade; respectivamente, discorrem sobre modelos de governança – médica e jurídica – de normalidades e verdades sobre sujeitos e vidas. Seus trabalhos iluminam a compreensão do que é sexo e gênero, categorias que aparecem como indissociáveis na construção dessas experiências, ao mesmo tempo que discutem sobre o direito ao corpo. Corpo pensado como o arcabouço da existência humana, como carne através da qual os sujeitos pertencem a grupos sociais e se relacionam, e que é fundamental na conformação de uma compreensão de si e dos demais. Lembremos Merleau-Ponty (1945) quando disse que o corpo é o veículo do ser no mundo: ter um corpo é juntar-se a um meio definido. Os saberes, tanto médico quanto jurídico, ocupam posições estratégicas na definição do que são os corpos, procuram seus enquadramentos técnicos nos parâmetros da normalidade e da inteligibilidade que foram culturalmente estabelecidos. Para assim fazer, recorrem a algumas metáforas: bem-estar (e as ideias sobre reprodução que acompanham o bem-estar), felicidade, liberdade, adequação, não-sofrimento: dispositivos que criam cultura, que enunciam o sexo verdadeiro e simultaneamente o produzem, impondo modelos dicotômicos como norma para a compreensão das existências. O que os autores nos mostram são chaves de compreensão da regulação de corpos e vidas que não deixam de lado a consideração da experiência dos sujeitos: dores, felicidades, expectativas. Barbara Pires recorre à análise de três casos de atendimento a pessoas intersexo: Gustavo, Wagner Luis e Marcos/ Marta. O leitor perceberá como dinâmicas familiares, inscrições nos corpos de certos marcadores sociais da diferença e crenças relativas ao modo como determinados corpos podem ser ou devem “fazer sexo” atuam na configuração de modalidades específicas de atendimento de pessoas intersexo no espaço hospitalar. Os modos intrincados em que os marcadores sociais da diferença geram efeitos nas interações no território biomédico permitem que Bárbara olhe para como opera o consentimento e questione: o que significa consentir e quais são os limites do consentimento em condições de desigualdade e vulnerabilidade? E quando se trata de menores, isto é, sujeitos tutelados pelo Estado? Esta etnografia
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aborda a hierarquia no governo da normalidade levantando uma crítica ao privilégio do discurso médico e a suas técnicas de veridicção da sexualidade que visam a construção de humanidades e de corpos sexuados coerentes segundo um regime de verdade específico. A noção de integridade, tal como trabalhada pela autora, guarda em si o potencial de atentar para o modo como a imaginação social quanto ao que pode ou deve ser uma totalidade corporal consistente, precisa, pura, autêntica e única afeta a vida daqueles que estão sujeitos a travar longas batalhas pela afirmação da autonomia e do direito de autodeterminação. Pode-se dizer que são os modos de governar e ser governado em horizontes modernos, informados por preceitos liberais, que estão sob escrutínio nesta análise de notória envergadura conceitual. São os critérios que definem as existências, bem como os futuros possíveis dos corpos dos interlocutores de Pires, que estão sendo disputados por famílias, militantes, antropólogos, médicos, juristas e pessoas intersexo. Lucas, ao se debruçar sobre as petições iniciais de “requalificação civil” de pessoas transexuais no âmbito do Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos (NUDIVERSIS) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ), examina os recursos argumentativos acionados para que tais pedidos sejam avaliados como procedentes. Nesse processo, são colocadas em prática diversas estratégias que relacionam compromissos políticos a apelos emocionais, morais e médicos. Na dinâmica ao redor da “requalificação civil”, a vulnerabilidade dos sujeitos transexuais tem um peso simbólico efetivo: experiências de discriminação e violência são utilizadas como técnicas de vitimização, meios de criar mecanismos que permitam o acesso a direitos, cidadania e dignidade – terminando, em tese, um ciclo de sofrimentos. A dramática história de Raissa opera como fio condutor de uma etnografia dedicada à análise dos limites da dita “terapia da mudança de sexo”. Como as promessas de uma nova vida, de felicidade e de sucesso em torno do “processo de requalificação civil” e da cirurgia de “redesignação sexual”, são frustradas? Como documentos pelos quais se batalhou tornam-se “presentes envenenados” (Vianna, 2005)? Como a gratidão passa a operar como mecanismo de produção de hierarquia entre quem dá o presente e quem o recebe? O que atravessa a tristeza e o suicídio de Raissa? Lucas Freire mergulha na difícil tarefa de etnografar
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as ambiguidades das normas sociais, demonstra-nos práticas de administração de sujeitos e corpos que não necessariamente acompanham as expectativas dos administrados, nos termos das variações dos seus desejos. O autor, reconhecendo a qualidade domesticadora de qualquer tentativa de explicação sobre o que torna o mundo insuportável, nos oferta uma fértil aproximação entre a teoria da magia de Mauss e as tecnologias de governo. Foucault é perspicaz ao sugerir a possibilidade de pensarmos não apenas em relações de poder positivas, isto é, em técnicas, estratégias e táticas capazes de constituir os sujeitos e os corpos que governam, como também de atentar para o trabalho que efetuamos sobre nós mesmos de modo a nos constituirmos enquanto determinados sujeitos histórico-sociais. Isto foi chamado pelo autor de artes da existência: práticas a partir das quais os sujeitos tanto esculpem códigos a partir da conduta quanto investem na fabricação e modificação de quem são. É fundamental, nesse sentido, perceber como o sujeito reconhece a sua relação com as normas sociais que o atravessam, afinal, “existem diferentes maneiras de ‘se conduzir’ moralmente, diferentes maneiras, para o indivíduo que age, de operar não simplesmente como agente, mas sim como sujeito moral dessa ação” (Foucault, 1998, p. 27). As práticas de produção e governança dos corpos sexuados e generificados assumem no artigo de Nathalia Gonçales um caráter mais pulverizado, dada a ênfase na arte da existência. A autora percorre as performances de corpos “sudaka”, categoria de acusação usada por espanhóis e outros europeus para identificar pessoas da América Latina. A partir das experiências de dois artistas brasileiros, Michele Matiuzzi e Kléper Mendonça, Gonçales descreve os sentidos e significados que tais usos dos corpos mobilizam em performances realizadas na cena política contemporânea. As trajetórias desvelam corpos marcados pelas violências raciais e de gênero, seja no corpo que é embranquecido ao longo da vida e que se descobre negro em um processo de constituição racializado de subjetividades, seja no corpo de “bicha nordestina”, nascido em um contexto familiar religioso, no qual a simples aparição deste corpo desviante causa escrutínio público. A partir de uma escuta atenta e tratamento analítico refinado, Nathalia Gonçales mostra como Kléper e Michele questionam duas normas que se complementam entre si, por um lado, a matriz do embranquecimento e por outro, a matriz
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da heterossexualidade compulsória, ambas ancoradas em raízes colonialistas e operadoras da homogeneização das diferenças. Ao analisar as trajetórias e as performances desses artistas, a autora mostra como os corpos são acionados e como eles surgem como instrumento de interrogação artística e política. Se uma das pedras angulares da formação das ciências sociais no século XIX foi justamente a invisibilidade de determinados corpos, tais como, o apagamento das mulheres, o silenciamento dos negros e a patologização dos homossexuais na literatura do estudo do “homem”, os interlocutores de Gonçales questionam a partir de suas performances, o quanto esse apagamento produzido pelas ciências modernas como episteme privilegiada pode ser deslocado. A autora mostra que, quando artistas oriundos da periferia escolhem conscientemente trabalhar seus corpos em espaços públicos, não há qualquer inocência nesses atos, mas antes de tudo, está presente a motivação em trazer à tona os que sempre foram objetos de estudo das humanidades, para, agora, situá-los como sujeitos produtores de conhecimento. Ao final do texto, Gonçales defende que a prática das performances pode ser um lugar para habitar as feridas da violência institucional e cotidiana que pesam sobre determinados sujeitos, mostrando como é possível dar lugar a estratégias de cuidado e de ressignificação da dor. Ainda no tocante a produção dos corpos, suas subjetividades e cartografias de mobilidades, veremos a partir do trabalho de Samara Freire, de que maneira mulheres negras moradoras de San Basilio de Palenque, no caribe colombiano, produzem sua sobrevivência em meio a um contexto de pobreza e profundas desigualdades sociais. A partir de trajetórias femininas, Freire acompanha os trânsitos e as formas de agenciamento de um trabalho informal vital para manutenção destas famílias: a venda de doces. Em sua análise, vemos como a venda dos doces demanda um “saber fazer” tradicional, que articula tanto a história das diásporas nesta localidade quanto o conhecimento no tempo presente; as rotas boas para se vender, a permanência no local de moradia e a migração de demais parentes da família. No percorrer das mulheres dulceiras e seus trajetos, Samara Freire desvela os sentidos e significados de um trabalho que mescla a alegria ao cansaço advindo da venda dos doces. O preparo, o planejamento, as caminhadas e os ganhos obtidos com esta produção intercalam momentos de esperança,
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sonhos, expectativas e sofrimentos, bem como permitem que filhas e filhos possam habitar espaços aos quais essas mulheres não tiveram a oportunidade de trilhar, a exemplo da escolarização universitária. Nos caminhos descortinados, vemos como raça, gênero e trabalho apresentam-se articulados na vida de mulheres batalhadoras que, ora se situam como mulheres em busca da liberdade e da autonomia, sendo “donas de seu próprio destino”, ora podem ser capturadas enquanto “escravas dos doces”, ao terem que sustentar um trabalho que cansa, que leva à exaustão, que prende e produz adoecimentos no futuro e, ao mesmo tempo, permite que a família negra se mantenha viva. A partir do protagonismo feminino, Samara Freire nos mostra de que forma mulheres negras se atualizam como sustentáculo da família, confirmando observações descortinadas pelo feminismo negro, a exemplo das análises de Angela Davis (2016) e bell hooks (2000). Não por acaso para as feministas negras dos Estados Unidos o trabalho foi justamente uma questão fundamental que serviu para reivindicar outras diferenças sociais, para além do gênero, dentro do movimento feminista. Estas autoras demonstraram que a insatisfação que as mulheres brancas manifestavam por se sentirem confinadas e submetidas à vida do lar como donas de casa era, na verdade, uma crise para apenas um grupo de mulheres, porque as negras, chicanas, operárias e outras mulheres de cor já trabalhavam fora dos seu lares como alternativa de subsistência. Patricia Hill Collins (2012) argumentou que as longas horas de trabalho das mulheres negras em troca de salários baixos aglutinava-se à responsabilidade de cuidar de seus próprios filhos e do trabalho doméstico em suas próprias casas. A ideia feminista de “sair do lar” como forma de libertação não era uma utopia que as contemplava. Em resumo, o que essas autoras denunciavam era o quanto o feminismo, por meio da invisibilização das experiências racializadas, estaria dando as costas também à feminização da pobreza, de tal modo que lutas concretas contra as práticas de governo que estariam criando políticas prejudiciais para as mulheres dos guetos e para mães solteiras, ou o desmonte de programas de bem-estar, não estariam sendo privilegiadas. Se trabalhos domésticos e outros trabalhos precários, a segregação racial e espacial, a vida nos bairros, etc., são experiências compartilhadas que criam pontos de vista coletivos entre mulheres
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desfavorecidas, esses mesmos espaços lhes permitem compartilhar um corpo coletivo de saberes positivado e passível de se converter em meios de ação. Estamos fazendo alusão à sabedoria relativa a “como sobreviver como mulheres negras”, nas palavras de Hill Collins (2012). Pode-se dizer que a etnografia de Samara atravessa a compreensão da conformação desse sentimento coletivo, sem pressupor que os marcadores sociais da diferença se interseccionam exclusivamente em termos de desigualdade. Tal como os demais autores desta coletânea procuram trabalhar, a autora entende que as relações de poder, no sentido foucaultiano do termo, não podem ser homogeneizadas e nem os marcadores simplesmente sobrepostos, pois o poder não é algo que uns têm e outros não. As categorias sociais da diferença articulam-se de modo a facultar também agências, certas modalidades de ação e certos modos de sobreviver. A questão, como demarca Brah (2006), é saber não somente “como as fronteiras da diferença são mantidas ou dissipadas”, mas também como “a diferença diferencia”, se lateral ou hierarquicamente. Porque estamos nos deslocando entre distintas proposições feministas, sem um grande aprofundamento de contextos históricos, analíticos e políticos, cabe-nos sinalizar que as abordagens interseccionais se diferenciam entre si de acordo com os modos como é pensado o poder, a própria noção de diferença e na medida em que tais abordagens oferecem importância, maior ou menor, à agência dos sujeitos (Piscitelli, 2008). O investimento do NuSEX em abordagens interseccionais reclama que os seus membros se perguntem, cientes da multiplicidade das formas de opressão e de produção da desigualdade, como tais processos se dão: em que contextos, quais agências se tornam possíveis, onde, em relação a quais grupos sociais, em que momento da vida, de que forma diferenças se convertem ou não em desigualdades. Tratam-se de mandamentos etnográficos que nos permitem não congelar as intersecções, como se operassem sempre da mesma maneira, e também nos permitem não reduzir a complexidade dos fenômenos sociais apelando a entidades monolíticas de poder. O que, entretanto, não quer dizer que estejamos deixando de lado a compreensão em torno da maneira como os nossos interlocutores, por vezes, em circunstâncias precisas, constroem e/ou mobilizam unidades – a sociedade, a família, o patriarcado, etc. – que permitem que
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certos campos de lutas, dores, violências, prazeres e afetos sejam explicitados. O artigo de Zampiroli neste volume é especialmente claro nesse sentido. Já o de Fátima Lima, sustenta uma proposta de leitura em torno da pergunta: o que é interseccionalidade e a que ela nos serve? Desafia-nos a repensar as relações raciais no Brasil. A autora propõe descortinar como a perspectiva interseccional vem dialogando com as ficções raciais à brasileira, bem como com o modo como tais ficções são atualizadas, seja no cotidiano, seja nas práticas estatais. Para tanto, o genocídio do negro brasileiro (Nascimento, 2017), a luta das mães que perderam os seus filhos em confrontos com a polícia (Vianna & Farias, 2011), o governo das mortes (Farias, 2014), dentre outras análises, são costuradas às reflexões de Crenshaw (2012), às proposições de feministas negras, como cada uma das anteriormente citadas, e ao pensamento decolonial de Aníbal Quijano (2000). Fátima Lima percebe o mito da democracia racial, aliado ao imperativo do embranquecimento, bem como aos preceitos da cordialidade, enquanto relações que se tornaram visíveis e dizíveis de maneira bastante específica, isto é, ocultando violências, desigualdades e assimetrias. A autora defende que a crítica à modernidade está inacabada, depende de uma revisão sistemática do modo como o colonialismo e a invenção da raça, da figura subalterna do negro e da mulher negra, permitiram ao Brasil se construir enquanto nação. A escravidão seria a espinha dorsal da compreensão de como gênero e sexualidade não somente se interseccionavam, como podem, ainda hoje, conformar as relações sociais de maneira singular. Nesse sentido, pode-se dizer que o fim do domínio colonial não interrompeu a projeção de certa armação das relações sociorraciais. Esse fim que nunca se concretiza, essa marcha dos discursos e das práticas que se dá no cotidiano dos diferentes contextos latino-americanos, pode ser chamado de colonialidade. O ponto alto da análise de Lima está justamente no esforço de intercalar essa discussão com a da biopolítica (Foucault, 2008), enquanto governo da vida e dos vivos, e a da necropolítica (Mbembe, 2018), enquanto política de matabilidade e economia de morte. Na colonialidade, o bios da biopolítica precisa ser racializado, precisa ser compreendido nos termos da história do Brasil, e não exatamente da Europa. Se o racismo é o corte que divide a linha entre o fazer viver e o deixar morrer nas sociedades normalizadoras,
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não seria necessário contrabalancear essa concepção levando em consideração as formas excessivas, mas ao mesmo tempo rotineiras, de fazer morrer corpos de raça, idade e gênero notavelmente marcados nas favelas e periferias? Fátima finaliza nos convocando a pensar sobre uma bionecropolítica. A proposta vem se somar ao conjunto de autores que, recentemente, realizam movimentos analíticos que, ora se aproximam, ora se distanciam, na maneira como articulam as ideias de Foucault às de Mbembe – a citar por Bento (2018), Vianna (2018) e Fernandes (2017). Desejo: prazeres dissidentes, prazeres normativos Aquilo que chamamos de desejo em relação à sexualidade tem sido objeto de árduas interpretações. Desde Sigmund Freud e Wilhelm Reich, para os quais a sexualidade (desejos e comportamentos) estaria moldada por fatores biológicos e ambientais que encontrariam canais de desenvolvimento nas dinâmicas familiares; passando por Alfred Kinsey e suas polêmicas visões naturalistas em que a sexualidade se define em relação à mensuração do prazer; ou sexólogos como William Masters e Virginia Johnson que dedicaram suas pesquisas às práticas terapêuticas dirigidas às disfunções sexuais ainda a partir de uma concepção biologizante da sexualidade e do desejo; a Helen Kaplan que teve um ímpeto pioneiro de análise científica do desejo, interpretando-o como “apetite ou impulso produzido pela ativação no cérebro de um sistema neural específico” (Kaplan, 1979, p. 9). Impulsos, motivações, ausência, excessos ou transtornos têm sido fundamentais para o conhecimento do desejo via sexologia, psicanálise e terapêutica, seguindo uma necessidade de mapear o desejo e suas várias manifestações no corpo, porque é justamente no corpo que, acreditavam, o desejo se localiza. Dessa crença pulsante do século XVIII, como analisa Jeffrey Weeks (1991, p. 70), de que “o desejo era uma força perigosa preexistente ao indivíduo, arrebatando seu corpo (geralmente do homem) frágil com fantasias e distrações que ameaçavam sua individualidade e sanidade”, chegou-se às ciências e saberes do século XIX que encapsularam desejos em diagnósticos e colocaram a sexualidade em discursos como modo de apreendê-la, nos ensinou
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Foucault (1980). Assim, corpos, desejos e prazeres se tornaram objetos de normas e perspectivas morais. Partindo de um ponto de vista construcionista, William Simon e John Gagnon reivindicam a conduta sexual como um campo de análise sociológico alheio à biologia e a psicologia. Para os autores, desejo é roteiro, sexo é roteiro, o que implica dizer que demandam uma aprendizagem e “que somente por estarem inseridos em ‘roteiros’ sociais é que os atos físicos do corpo se tornam possíveis” (Scoffier, 2006, p. 21). Apesar das diferenças de enfoque entre Foucault e Gagnon e Simon, os autores têm em comum a ideia de que a sexualidade é regulada por processos de categorização e imposição que guiam as possibilidades do corpo, do sexo e de suas expressões, o que, por sua vez, “deve orientar nossa atenção para as várias instituições e práticas sociais que desempenham esse papel de organização, regulação e categorização” (Weeks, 1980, p. 14). Weeks menciona a família, a regulamentação jurídica, as práticas médicas e as instituições psiquiátricas. Nesta seção do livro, atendendo o chamado do autor, queremos adicionar a literatura, o carnaval, a pornografia e outras arestas do mercado do sexo. Os autores aqui presentes se perguntam de diferentes maneiras sobre produção de corpos e desejos e sobre modos como estes se atrelam a diferentes formas de produção de normativas de gênero, sexualidade e raça, assim como sobre a relação entre fantasias e mercado em sua fabricação de enunciados de transgressão. Os trabalhos de Victor Hugo Barreto e de Lorena Mochel chamam atenção a agências que os sujeitos empreendem no caminho de se deleitarem com experiências-outras no domínio das práticas sexuais, ambos sendo ricos para pensarmos a respeito dos mecanismos e dos territórios que abrem suas potencialidades para erotismos que, pelo menos em seu apelo inicial, estariam desafiando as convenções da tradição. As questões de ambos os autores acompanham preocupações chaves da agenda do feminismo pró-sex dos anos 1980: a indagação sobre o que há de transgressor no erotismo e o sentido dessa transgressão no que concerne à liberdade sexual. Victor e Lorena encontraram respostas para suas ponderações sobre erotismo e prazer no âmbito do mercado do sexo e de modos diversos, tentaram responder um questionamento proposto por Maria Filomena Gregori em Prazeres Perigosos: por quê estudar
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convenções de erotismos e sexualidades no âmbito do mercado, e não apenas em relação a universos institucionais e suas maquinarias de poder e produção de saberes como foi inaugurado por Foucault? Porque “para as novas alternativas eróticas o mercado é significativo (...) ele constitui atualmente uma das figuras mais paradoxais. Nesse cenário reúnem-se experiências que alternam, de modo intrincado, esforços de normatização e também de ressignificação e mudanças de convenções sobre sexualidade e gênero” (Gregori, 2010, p. 78). Victor Hugo adentra festas de orgias entre homens nas quais o principal marcador social da diferença que atua na valorização dos sujeitos é a masculinidade. Se nos picos altos do prazer durante o sexo grupal outras diferenças (raça, classe, estilo, beleza, idade) tendem a ser borradas em prol da importância de uma potência ou atitude do sujeito: sua capacidade para ser puto, o autor nos lembra como o gênero está ali para tensionar as diferenças. Nessas festas, as formas de subjetivação vividas em gramáticas de intensidade estariam refletindo a putaria como “modo singular de engajamento no mundo”, argumenta o autor: agenciamentos onde o êxtase marcaria o descentramento de si, uma experiência no plano do sensorial percebido pelos sujeitos como “desafiante” de outros aspectos de suas vidas. A transgressão se daria, para esses sujeitos, não apenas pelo exercício de práticas sexuais relativas à orgia, mas pelo próprio movimento em relação à deriva. Esta última, apreendemos com Perlongher (1987), implica uma maneira específica de habitar a rua (imaginemos a festa como rua), uma disponibilidade para o novo e uma vontade de nomadização. O desejo sexual é chave na deriva e, como estilo de sexualidade, ela não existe como resultado do vazio ou da solidão, e sim como uma defesa da mobilidade e da fugacidade. Lorena Mochel, por sua vez, nos convida a caminhar por outras trilhas. Após realizar trabalho de campo em uma boutique erótica no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, a autora discute significados e experiências relativas ao erotismo, especificamente ao uso feminino de toys sexuais e outros objetos criados pelo mercado para a sedução. Se, por um lado, sua etnografia mostra os percursos que os sujeitos empreendem em meio a uma sensibilidade contemporânea marcada pela procura dos prazeres em uma ética de cuidado de si e pela valorização da experimentação dos gozos sensoriais; simultaneamente, seu trabalho mostra as tensões e
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limites acionados – traduzidos em uma linguagem de gênero – presentes nesses percursos. As protagonistas desta etnografia não recorrem a derivas nem a experiências baseadas na fugacidade, ao contrário, seus movimentos se dão para dentro do lar, como autogoverno do prazer, gestos de alargamento e estreitamento da sexualidade no interior de um campo de normativas relativas ao casamento, à heterossexualidade, às gramáticas de gênero e, mais recentemente, à religião. A esse respeito, o novo mercado gospel, voltado para mulheres e casais evangélicos, reflete não apenas como se efetivam deslocamentos no sentido da antiga ideia sobre transgressão associadas aos sex shops, nem apenas a flexibilidade do mercado para se adaptar “dentro da palavra divina”, mas também impulsiona a produção e reinvenção de engajamentos femininos e, sobretudo, os modos como as mulheres realizam agências dentro de marcos normalizadores, isto é, habitando normas. Há por detrás dos trabalhos de Victor Hugo e de Lorena uma noção que é também rentável analiticamente no trabalho de Michel Carvalho: a fantasia, dispositivo fundamental na pornografia. A fantasia, sabemos, faz parte do que não é visível na sexualidade, devido a sua capacidade de criar significados não apenas por intermédio daquilo que as coisas são, mas também via aquilo que evocam. O artigo de Michel fala da fantasia sexual a respeito de corpos negros. Bombom, Nego Catra, Capoeira, entre outros nomes de porn stars nacionais, junto a enunciados de legendas e sinopses, tais como “buceta de preta”, “cu preto”, “rabo da mulata”, integram a face explícita da fantasia em seu regime de visibilidade. E, a seu turno, tudo o que os corpos negros evocam – luxúria, selvageria, desenfreio sexual –, permanece na pornografia como marcas que obrigatoriamente antecipam a compreensão dos mesmos. Dissemos obrigatório porque essa é a força do estereótipo racial, é a sua qualidade stickness, diz Michel em consonância à proposta de Juana Maria Rodríguez (2014): aquele código ou gesto que se cola e toma contornos morais, demarcando e restringindo a produção e vivência do desejo. Se no trabalho de Victor Hugo não há consumação apenas de um corpo másculo, mas de uma fantasia de masculinidade, e no de Lorena há não apenas o consumo de toys, mas da fantasia de suas proezas e sensações picantes, com Michel podemos perceber como a pornografia não apenas vende corpos negros, mas tudo
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o que a eles se associa: hiperssexualização e, simultaneamente, subalternidade. É nessa via que o autor afirma: “um corpo negro dentro da pornografia é sempre um corpo negro”, representação sempre atravessada por uma “economia racializada do desejo” (Pinho, 2012), em que se conjuga a fascinação com a diferença racial e suas variações. Por meio de uma etnografia nos prêmios da indústria do pornô brasileiro e do acompanhamento da única atriz negra presente nesse universo no curso da pesquisa, Giovana Bombom, o autor pensa ao redor dos limites desse fascínio que, se pode permitir que ela transite por esses mundos, simultaneamente lhe recorda que há fronteiras para seu sucesso, pois ali impera uma política erótica da branquitude. Segundo Michel, a raça opera, nos termos da experiência de Bombom, por um lado, facultando o acesso à visibilidade via filmes pornôs que, embora paguem pouco a ela em comparação ao cachê de atrizes brancas, auxiliam-na a forjar uma frequentação da prostituição de luxo, que, por mais instável que seja, rende dinheiro para ir tocando a vida. Por outro lado, a raça que a faz ser convidada para certas produções é a mesma que a faz não ser escalada para filmes que não precisam de uma negra que faça o papel de negra. Bombom, escuro objeto do desejo, não somente sente-se preterida, como também vive relações de trabalho precárias. Michel, ao mesmo tempo em que faz do fracasso um modo de descrever o desfazer do sujeito, e não exatamente a sua formação, aponta em direção às práticas, quase singelas, de reelaboração de si. Os interlocutores da pesquisa de Lucas Bilate, por sua vez, fabricam fantasias, literalmente. São jovens que trabalham a cada ano durante vários meses no barracão de uma famosa escola de samba carioca criando as cores e vestes do carnaval. Roupas, adereços e alegorias cheias de glitter e lantejoulas, ao mesmo tempo que fazem do carnaval um universo de glamour, inventam o brilho e o próprio glamour como uma fantasia que cria corpos e subjetividades. A etnografia de Lucas não economiza detalhes sobre como o barracão de uma escola de samba é um universo de trabalho pesado onde os corpos se fazem em relação aos objetos com os quais interagem na labuta. Seu esforço foi interpretar como no âmbito do carnaval existem trabalhos, personagens, materiais e performances que fazem gênero: um cabelo comprido (imaginário ou não), uma pistola de silicone, glitter, o uso de um martelo, de fibra
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de vidro ou de uma ferramenta de grande porte. Na etnografia, os materiais se tornam extensões dos corpos, “corporeidade pessoaferramenta-material”, diz o autor. O trabalho de adereçamento se relaciona com uma dimensão simbólica chave para a compreensão das homossexualidades nesse mundo, via brilho, requinte e beleza. Assim, enquanto os trabalhos de base estariam ligados à brutalidade e à força, pressupondo a heterossexualidade de seus executores, a sutileza/delicadeza do adereçamento se enquadraria na dimensão dos sonhos – categoria que faz parte dos modos locais de construção do gênero. O interessante é que enquanto o autor mostra como o gênero e o corpo são construções sociais que encontram formas de fazimento e de vazão no carnaval (e no barracão), os interlocutores manifestam pontos de vista naturalizantes sobre a relação carnaval/ homossexualidade, isto é, visões que estabilizam corpos, gêneros e sexualidades. “Porque é assim” e “porque viado gosta disso” são expressões utilizadas pelos agentes para explicar, sem sombra de dúvidas, os motivos pelos quais o barracão e o glitter que nele existe estão inextricavelmente associados à homossexualidade, especialmente àqueles estilos mais próximos do feminino. Por essa via, o trabalho se torna vital para a formação de subjetividades, “os trabalhos manuais fazem subjetividades e as subjetividades emolduram os trabalhos manuais”, argumenta Lucas. E o espaço é fundamental também nessa construção. Não por acaso o autor cita Linda McDowell, geógrafa feminista que pensa o gênero em relação à espacialidade. Se há “naturalmente” um “monte de bichas” no barracão é porque este é um “portal mágico”, e o portal é aquilo que promete um atravessamento, que implica uma diferença em relação aos espaços de fora. Se ele é um lugar em que “todos liberam seus demônios”, em que aqueles poucos que não entram viados se tornam viados, é porque se revela para seus agentes como um espaço propício para a construção de subjetividades, sexualidades e erotismos, conclui. Desprendemos uma pergunta deste artigo inspirados nas questões que acompanharam Michel. Sabemos pela descrição etnográfica que os mesmos rapazes que criam a magia são as bases da hierarquia do carnaval, sendo mal pagos, em condições de trabalho pouco favoráveis. O fato de que seja um trabalho mal pago tem a ver com o tipo de pessoa que é recrutada para fazê-lo?
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De alguma forma isso, e não só a boa “predisposição” para o brilho, explicaria a presença de rapazes do barracão que possuem as características sociais no artigo descritas? Propomos que o trabalho de Lucas Bilate seja lido como uma análise crítica das formas de se fazer homossexual/heterossexual no mundo contemporâneo. A construção das sociabilidades e subjetividades homossexuais está presente também na discussão de Nathanael Araújo. O autor segue a trilha do romance Águas Turvas de Helder Caldeira para discutir os modos como o amor entre homens é representado em literatura que se pretende de consumo maciço para além de sujeitos LGBT. Araújo parte do princípio que “textos não são necessariamente livros”, mas fazem parte de um trabalho coletivo que influenciam não apenas os leitores, como parte considerável do mercado literário. De forma articulada e inspiradora, acompanhamos as múltiplas fases e processos que tornam um livro possível, a saber; a produção, publicação e a circulação da obra são mais do que meros momentos sucessivos da composição de um produto, mas engendram redes de sociabilidade, estas que por sua vez possuem a capacidade de transformar os próprios símbolos e termos que estão em circulação, a exemplo da questão homossexual na literatura e seu suposto lugar minoritário de dissidência. Na sua análise, entretanto, vemos de que forma os estigmas relacionados à homossexualidade são negociados dentro das narrativas e ficções, uma vez que percorrermos formas de vivenciar e habitar a homossexualidade que não são homogêneas, nem possuem roteiros estáveis, mas que ainda assim podem girar em torno da ficção de um “final feliz”. No seu plano analítico, ao lado do exame dos itinerários homossexuais, que podem incluir erotismos bem ou mal sucedidos (o protagonista sofre um estupro e é também o desejo de esquecimento desse fato traumático que o leva à procura de relações afetivas benéficas), Araújo persegue também os desdobramentos das relações afetivas-sexuais heterossexuais, mostrando como estes pólos mantêm paralelos e pontos de ruptura em um processo de espelhamento mútuo e reificação de categorias normativas. O artigo de Nathanael convida ao leitor a indagar sobre a relação entre as estratégias literárias de construção de personagens e as estratégias de mercado. O “final feliz” não é uma aposta a um só tempo moral e econômica?
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Afetos: amor, cuidado e controle na vida cotidiana As práticas de cuidado e os engajamentos continuados com o outro, seja através de relações heterossexuais, seja via relações homossexuais, revelam camadas ambivalentes das gramáticas de gênero e sexualidade que povoam o cotidiano de casais, amantes, mães, pais, filhos e amigos. Nos artigos destacados nesta seção, veremos como a “negociação da intimidade”, tal qual formulada por Viviana Zelizer (2011), se realiza em diferentes contextos de vida, mostrando o “trabalho relacional” de gerir as fronteiras entre afeto, dinheiro, cuidado, controle e interesse. Neste sentido, cabe lembrar dos ensinamentos de Marcel Mauss (1979[1921]) quando se refere ao plano obrigatório dos sentimentos, criando perspectivas para a compreensão das diferentes expectativas presentes nas inúmeras posições de parentesco, namoro ou casamento. Estes textos nos alertam para as cargas afetivas presentes nos itinerários examinados, bem como atentam às ambivalências contidas na expressão dos sentimentos e na negociação dos mesmos no fluxo da vida ordinária. Na medida em que nos dedicamos à análise das emoções em termos passíveis de serem identificados como micropolíticos, somos tributários da perspectiva aberta por Claudia Barcellos Rezende e Maria Claudia Coelho, que, a partir de diversos trabalhos (Coelho, 2006; Coelho & Rezende, 2010), nos incitam a pensar a gratidão, o amor, o carinho, a vergonha, o medo, a solidão, entre outras emoções, em interface com moralidades. Os caminhos percorridos pelos autores alternam-se: nem sempre eles se dedicam a uma descrição exaustiva de dada emoção ou um dado complexo emocional, mas costumeiramente atravessam os sentimentos enquanto campo de conflitos, tal qual estabelece Georg Simmel (2006). Cabe, portanto, destacar que as relações afetivas, quando pensadas sob o signo do cuidado, não são antagônicas ao controle – postura analítica que desloca uma perspectiva essencialmente romântica e idealizada das relações de proximidade. Ao advertirem as prerrogativas e as vicissitudes do dia a dia, Carolina Castellitti, Everton Rangel, Carolina Maia, Oswaldo Zampiroli e Camila Fernandes neste volume demarcam uma plêiade de trabalhos, empenhos e vigores afetivo-reflexivos indispensáveis à formação dos sujeitos. Eles demarcam as práticas através das quais nos tornamos aquilo que somos e nos deslocamos a outros mundos
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possíveis. Pode-se pensar que nesses artigos a preocupação com o cotidiano reverbera em uma análise do processo de conformação das disposições dos sujeitos generificados ou, melhor dizendo, na descrição do florescimento lento de potencialidades, capacidades ou sensibilidades individuais e coletivas. O artigo de Carolina Castellitti é uma artesania com fragmentos de histórias de vida de diversas mulheres argentinas capaz de revelar dimensões tão íntimas quanto aquelas que remetem às expectativas de uma vida a dois e às tristezas oriundas do desamor. A autora descreve processos de desconjugalização, suas etapas e os recursos mobilizados para vivenciá-lo e superálo. Trata-se, de fato, de um longo processo de negociações com o outro e consigo mesmo. A ruptura conjugal deriva na reconquista de si de um tipo muito particular: é uma “individualidade forçada”, uma aquisição de autoridade sob a casa, os filhos e sobre a vida, que, mesmo quando reivindicada, é vivenciada como um fardo, especialmente nos casos em que essa autonomia se transforma em “solidão”. Carolina está questionando, então, como as experiências de divórcio e separação denotam ambiguidades relativas aos papéis de gênero. Se hoje em dia existem mais rupturas conjugais, refletem algumas de suas interlocutoras, é porque as mulheres passaram a “tolerar menos” ou a ter “menos paciência para aguentar”. O caráter positivo das mudanças sociais que permitiram uma melhor inserção social das mulheres e, por tal, maior independência econômica, se vêm tensionadas pelas experiências a partir das quais tais mudanças estariam jogando as mulheres para fora de seus ditos “papéis naturais”: um feminino ligado às virtudes da paciência, da compreensão, do cuidado e da entrega. A oposição entre Susanita e Mafalda, personagens da popular história de quadrinhos de Joaquín Lavado (Quino), permitem que Castellitti compreenda as trajetórias e expectativas de suas interlocutoras em um plano que remete às transformações sociais pelas quais a Argentina passou nas últimas décadas. A autora nos faz ver como questões macrossociais são dramatizadas no plano micropolítico; em outras palavras, a dimensão subjetiva da vida social é trabalhada neste artigo a partir dos seus vínculos nevrálgicos com a dimensão sociológica. Paciência, cuidado e entrega requerem tempo. E o tempo é, como ressalta Camila Fernandes, “uma das marcas mais radicais da assimetria de gênero”. Em seu artigo, a autora analisa trajetórias
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de sujeitos e rupturas conjugais que mostram como nas disputas em torno do tempo dedicado ao cuidado dos filhos convergem disparidades que revelam as expectativas sociais generificadas em relação a pais e mães. O tempo, que geralmente pensamos como sucessão de acontecimentos, adquire o seu sentido preciso nas relações interpessoais, nas experiências do cuidado dos outros e de si. O tempo que a criança toma, quando contado, é descontado, sobretudo, do tempo que os pais, as figuras paternas, teriam para si mesmos. Para eles, usualmente, o “tempo para si” acontece sem a necessidade de sistematicamente disputá-lo, sem que um grande peso afetivo-moral sobre eles se abata. O mito ao redor da “maternidade correta”, aquela propagada a partir da figura da mãe sacrificial, é acionado nas relações para justificar abusos, para provocar o assujeitamento das mães à conversão contínua do “tempo para si” em tempo dedicado ao cuidado do outro, dinâmica que opera com maior eficácia nos casos dos sujeitos atravessados por vulnerabilidades sociais. Essas assimetrias que reverberam no interior de territórios existenciais podem tanto ser negociadas quanto se cristalizarem como desigualdades. As múltiplas possibilidades de uso do tempo, quando facultam às mulheres movimentos no sentido da agência e da mobilidade social – tais como o de “cuidar menos”, o de partilhar o cuidado dos filhos com terceiros e o de cuidar de si –, configuram-se como uma política dos pequenos atos que (re)estruturam no cotidiano relações e afetos, ou como preferimos dizer, tratam-se de pequenos gestos que movimentam o mundo a duras penas. O que não quer dizer que a figura da mãe sacrificial deixe de resistir no interior desses movimentos gerando constrangimentos, encargos de consciência e avaliações de cunho moral. Debora, principal interlocutora de Fernandes, ao reivindicar o “tempo para si” se viu obrigada a mobilizar justificativas, como se a aquisição de “tempo para correr atrás” fosse moralmente questionável. A autonomia relativa que ela angariou está longe de ser simplesmente individualista, pois permanece relacional. Assim, a autora discute a usurpação do tempo feminino, as “prisões” instauradas pelo cuidado das crianças, os gestos de partilha do cuidado entre mulheres, os diferentes valores atribuídos ao trabalho realizado em casa e na rua, os alívios acompanhados de sofrimento. Tempos generificados nas batalhas do dia a dia.
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Ao lado das rupturas relacionais, encontramos o poder do desejo por encontros amorosos. O artigo de Carolina Maia aborda publicações feitas a partir dos anos 1980, produzidas por mulheres lésbicas e voltadas para um público lésbico. A construção e consolidação do boletim “Um Outro Olhar”, publicação veiculada durante os anos 1980 e 1990, parte da ação do Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF). Tais periódicos mostram a força da escrita e da apresentação de si como importantes formas de fortalecimento das subjetividades homossexuais. A partir dessas escritas, em suas variadas estratégias discursivas, as sujeitas presentes nos textos analisados mostram que episódios de isolamento, solidão e violências cotidianas podem ser reelaborados a partir do compartilhamento das vivências em comum. Seja nas experiências de amizade, afeto ou amor, os textos produzidos pelas leitoras compõem um corpus de vivências que uma vez reunidas e sistematicamente publicadas, descortinam um universo no qual as sociabilidades lésbicas conviviam frente às normas heterossexuais, produzindo a invenção de novos amores, linhas de desejo e afeto em um universo pautado por valores patriarcais. Carolina Maia mobiliza documentos, cartas e registros textuais, mostrando com habilidade etnográfica um rico instrumental analítico presente nestas fontes. A partir de um processo de desvelamento de lembranças, memórias da luta dos movimentos LGBTs vem à tona, demonstrando a batalha pelo reconhecimento da humanidade de seus sujeitos, na busca do direito ao amor e de viver uma vida digna e plenamente reconhecível enquanto tal. Por outros caminhos, seguindo as continuidades entre o amor e o conflito, Oswaldo Zampiroli discute a trajetória de mulheres trans/travestis em seus relacionamentos afetivos e amorosos. Se por um lado, tais trajetórias se situam nas sociabilidades entendidas como dissidentes, tais como o trabalho na prostituição, ao mesmo tempo, suas interlocutoras buscam no casamento monogâmico a promessa da realização de si enquanto mulheres “de verdade” e apostam na formação da família como uma grande expectativa de futuro. A união com homens “cisgêneros” é feita a partir da luta diária pelo amor, categoria esta que se mistura à perspectiva do “sonho”, ambas condensadas na idealização de um projeto de vida. O casamento e o amor monogâmico se apresentam como ideais importantes de serem alcançados, demonstrando a força da norma
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em, para usar uma expressão do autor, “transbordar” também sobre as rupturas e comportamentos dissidentes. Assim, Zampiroli articula de forma coexistente a transgressão e a norma, em um processo que ativa uma premissa antropológica fundamental, a saber, que a margem e o desvio são parte das regras estabelecidas em cada sociedade, e que ambos são co-criados uns em relação aos outros em um processo de espelhamento mútuo; tal premissa é tributária de análises promovidas por diferentes autores, tais como, Howard Becker, Erving Goffman e Gilberto Velho. A etnografia feita por Zampiroli é fina e sensível ao acompanhar de que maneira mulheres trans/travestis podem negociar os signos dos desvios e ao mesmo tempo buscar relacionamentos reconhecidos como padrões legítimos na nossa sociedade, mostrando de que maneira o “fazer família” opera como um valor precioso e central. O amor se apresenta como possibilidade política, em meio a tantas batalhas, normas e moralidades. Habitar um casamento é uma forma de cultivar uma existência digna. Neste aspecto, destacamos as contribuições de Luiz Fernando Dias Duarte, que em suas reflexões sobre carreiras, trajetórias de vida, famílias e universo popular produziu um conjunto de trabalhos acerca das moralidades e emoções, postas em relação aos valores modernos, igualitários ou hierárquicos das camadas médias e populares (Duarte, 1988, 2008, 2009, 2011). Ao lado da sua contribuição, situamos também autoras, tais como, Claudia Fonseca (1995, 2000), Tania Salem (1989, 2006) e Maria Luiza Heilborn (2004, 2006), que conferiram atenção especial às diversas configurações e experiências de classe, acompanhando determinadas sociabilidades, práticas e discursos, bem como seus usos sociais e políticos. Em suma, esses trabalhos nos inspiram a apreender os significados produzidos em torno de diferentes trajetórias, considerando a produção de teorias sobre o universo popular e das classes médias que alimentam muitas das reflexões do NuSEX sobre gênero, sexualidade e família. Em continuidade às reuniões e encontros amorosos, Everton Rangel discute as justificativas e práticas acionadas pelos sujeitos para manterem seus relacionamentos apesar das adversidades. Um circo estadunidense que percorre o país em dois enormes trens é o pano de fundo de sua etnografia. Em um cenário caracterizado pela interação de pessoas de diversas nacionalidades, o autor se
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preocupou em refletir sobre os laços afetivos, bem como sobre a própria noção de amor, entre mulheres brasileiras que atuavam nesse circo como dançarinas e seus namorados. Amores imantados de conflitos, que persistem em meio a possíveis e iminentes separações em função de decisões empresariais e diante dos olhos de um coletivo que fabricava sentenças sobre a legitimidade das demonstrações de afeto. Após presenciar episódios de acusações, brigas, tapas e choros, Everton indaga sobre o modo como as gramáticas de gênero atuam nas situações de confronto marcadas pela veiculação do ideal do amor romântico. Pelo menos na temporalidade do trabalho de campo, certas práticas podiam ser consideradas abusivas, mas não podiam, nem deviam serem chamadas de violência do ponto de vista dos mais diversos atores envolvidos. Aqueles momentos em que os conflitos chegavam a instantes de excesso e de aparente extrapolação de limites do tolerável, o autor chamou de fissuras, pequenas fendas que eram logo submetidas a pequenos gestos da reparação que denotavam o quanto as moralidades podem ser contorcidas e esticadas frente às expectativas do cuidado, da duração e do desejo. Trata-se de um deslocamento semântico das considerações de Díaz-Benítez (2015) sobre as fissuras; estas deslocam-se do terreno das práticas de fetiche extremo e passam a habitar também as dinâmicas conjugais. Ao problematizar a ideia de violência nas relações íntimas, Rangel não pretende relativizá-la nem minorá-la, mas mostrar de que maneira a enunciação da violência cria um impasse na manutenção das relações, obrigando os atores a se posicionar e eventualmente limitar chances de ação dentro de um contexto de escassez, no qual, acessar um relacionamento é aceder a possibilidades de futuro e recursos sociais. A gramática da violência não está descartada, ela pode ser acionada caso seja necessário, mas, antes disso, os agentes mostram que viver o amor é aceitar negociar relações de poder. ***
Para concluir, gostaríamos de fazer um último comentário. No prefácio de 2009 do já mencionado livro Prazeres Dissidentes, a antropóloga Adriana Piscitelli chamava atenção ao diálogo restrito com os referenciais feministas tanto na coletânea em questão como dentro do campo de estudos a um nível mais amplo no Brasil entre
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as últimas gerações. A essa ausência, somava-se a pouca atenção concedida a experiências de e entre sujeitos heterossexuais para além do mercado do sexo. Nesse sentido, esperamos que os esforços empreendidos para refletir sobre esses outros marcos permitam que (Des)Prazer da Norma faça uma contribuição ao nosso cenário acadêmico. Impossível finalizar este texto sem mencionar as pessoas que integram o NuSEX e que de diversos modos tem alimentado nossas reflexões temáticas, teóricas e políticas: Natânia Lopes, Felipe Magaldi, Rodrigo Coelho, Vinicius Mauricio-Lima, Brena O’Dwyer, Aymara Escobar, Jefferson Scabio, Montserrat Valle, Annelise Campos, Natalia Maia, André Souza, Rafael França, Ricardo Caramillo, Thiago Soliva, Nicolas Wasser, Helmut Kleinsorgen, José Ramón Díaz-Benítez, Erica Sarmet, Letícia Ribeiro, Hugo Prais e Raquel Oscar. Outros colegas têm sido fundamentais pela parceria intelectual ou pela sua participação nos eventos organizados pelo coletivo: Sérgio Carrara, Jorge Leite Jr., Isadora Lins França, Guilherme Almeida, Peter Pál Pelbart, Stephanie Lima, Vinicius Ribeiro, Laura Lowenkron, Maria Filomena Gregori, Jane Russo, Regina Facchini, Peter Fry, Horacio Sívori, Paula Lacerda, Silvia Aguião, Martinho Tota, Marco Martínez, Luisa Belaunde, Carlos Guilherme do Vale, Angela Donini, Rodrigo Vianna, Camila Bastos Bacellar, Tedson Souza, Gleiton Bonfante, Alexandre Oviedo, Bianca Arruda, Martinho Braga, Claudia Carneiro da Cunha, Magareth Gomes, Aureliano Lopes, Nelson Mugabe, Amana Mattos, Lívia Reis, Isabela Rangel, Abgail (Bibi) Campos, Mario Carvalho, Kaciano Gadelha, John Comerford, Renata Menezes, Laura Murray, Raphael Bispo, Leonardo Hincapié, Eric Fassin, Matthew Guttman, Carla Rodrigues, Carla de Castro Gomes e José Miguel Nieto Olivar. A vocês, assim como a Luiz Fernando Dias Duarte e a Adriana Vianna, muito obrigado.
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Gestão de corpos, regulação de integridades: uma reflexão sobre direitos e intersexualidade Barbara Pires1 Falar sobre “integridade” pressupõe a imaginação de uma unidade, que se associa intimamente com noções de totalidade, consistência e precisão. O modelo de ética do íntegro reitera a etimologia da palavra: buscamos aquele que age de acordo com uma veracidade interior – que se pauta, por sua vez, segundo uma verdade estendida em culturas, contextos e valores coesos. De tal forma, quando falamos da qualidade do que é inteiriço também observamos a sistematização de noções sobre o que é autêntico, puro, único, verdadeiro. Dentre os domínios possíveis de representação, a linguagem tem certa primazia sobre o movimento de circunscrição do que é mais íntegro e, portanto, também do que seria mais completo e ideal. Em Bodies That Matter (1993), Judith Butler analisa a teoria lacaniana sobre o Simbólico para explicar como a “integridade corporal” efetiva-se na medida em que um determinado corpo é nomeado e inscrito no regime do parentesco que possibilita esta linguagem. Neste registro psicanalítico, a materialidade de um corpo seria atingida dentro de uma estrutura patriarcal de classificação generificada, em que versões de integridade corporais seriam acionadas e sustentadas segundo enunciações, ações performativas e repetições ficcionais de modelos baseados no dimorfismo sexual. Em minha dissertação (2015), inspirada pelas reflexões de Mauro Cabral (2005) e Paula Sandrine Machado (2008), discorri sobre a contínua normalização do corpo intersexo em face aos saberes e práticas que ainda qualificam o dimorfismo sexual como um valor do humano. Pensar a intersexualidade a partir dessa construção de um corpo íntegro segundo versões binárias do sexo/ gênero pode ajudar a entender suas classificações e manejos para além dos maniqueísmos de uma biomedicina costumeiramente qualificada como violadora. Assim, o peso deste gerenciamento estaria na compreensão de que a ética dos atendimentos às Barbara Pires é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1
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pessoas com variações intersexuais se pautaria mais em uma noção de direitos humanos enquanto “direito à saúde” do que como “direito sexual”. Em outras palavras, as conhecidas práticas de normalização seriam pensadas como garantias de direitos fundantes para as pessoas intersexo justamente porque essa autonomia e integridade corporal estão diretamente vinculadas à necessidade constituinte de sujeição dos indivíduos ao regime de inteligibilidade do dimorfismo sexual. Seja por uma inscrição no imaginário patriarcal, seja pela linguagem generificada, seja por limites da lei ou seja pelos sentidos que imbuímos e repetimos no cotidiano, a construção de sexos e gêneros distintos, particularizados e essencialmente desvinculados opera como uma retórica significativa em diversos segmentos científicos, políticos e sociais. Rastrear essa valoração do dimorfismo sexual a partir da ideia de integridade e seus efeitos me parece um caminho produtivo para interpretar os saberes e práticas implicados nos atendimentos de pessoas intersexo. Dentro desta trama, acredito ser possível iluminar um de seus principais movimentos, a saber: a produção de integridades corporais específicas ao tencionar as múltiplas relações de vulnerabilidade e consentimento presentes na gestão e no gerenciamento da intersexualidade na medida em que se busca encapsular as ambiguidades desses corpos e vidas. A regulação dessas “zonas de ininteligibilidade” constitui não só os limites de sujeição, mas também a própria capacidade de garantir “autonomia” e “agência” dentro das normas que possibilitam a existência humana (Butler, 1993). Destarte, podemos inferir que ao acompanhar as produções de integridades, funcionalidades e modelos a partir dos manejos de um corpo intersexo, é possível potencializar as estratégias discursivas colocadas em jogo para sanar ou corrigir o que se compreende enquanto precário – sejam essas diferenças fisiológicas, psicológicas, afetivas ou sociais. Veremos este minucioso trabalho de moldar corpos, gêneros e relações a partir de três casos que integram minha etnografia de mestrado. As histórias de Gustavo, Wagner Luis e de Marcos/ Marta2 ilustram não só movimentos de produção de integridade e vulnerabilidade de corpos tidos como ambíguos e/ou ininteligíveis. 2
Para manter a confidencialidade e o anonimato, todos os nomes foram ficcionalizados.
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Suas histórias também exprimem a capacidade dos gerenciamentos médicos, dos protocolos científicos e das expectativas sociais de reinscrição de corpos, constituição de gêneros, mobilização de afetos e recomposição de dinâmicas familiares. Atendimentos emergenciais, desconfortos sociais e limbos existenciais Antes de narrar essas histórias, importa dizer que entendo a maleabilidade do sexo/gênero na mesma medida em que compreendo a ciência médica e o diagnóstico como um fenômeno socialmente construído (Latour, 2000; Bonet, 2004). Em outras palavras, interessa neste fazer antropológico “como” se mediam e desenrolam os caminhos para que um enunciado científico, um atributo legal, ou um diagnóstico seja incorporado como consensual, legítimo e normalizado. Dito isto, não significa que alterações genéticas, disposições anatômicas e tratamentos médicos não tenham relevância para a diferenciação e sustentação material de um corpo. A biologia importa, ainda que não de modo essencialista (Haraway, 2000; Fausto-Sterling, 2000). O que aponto, antes de tudo, são as inscrições, os efeitos e as apreensões desiguais que cada biologia, cada diagnóstico, e cada vida terá segundo noções culturalmente hegemônicas e cientificamente predominantes sobre esses assuntos. Durante o trabalho etnográfico que realizei em 2014 em três hospitais da cidade do Rio de Janeiro, pude acompanhar algumas histórias de atendimentos hospitalares de pacientes intersexo. Uma dessas histórias ajuda a compreender que nem toda vontade de coerência entre sexo, gênero e papel social se inicia e se perpetua na clínica, ao contrário, muitas das demandas de normalização partem do senso comum, dos familiares e dos próprios indivíduos. Essa intensificação das demandas e dos problemas de saúde/ doença pode ser inserida em uma discussão mais abrangente sobre a “medicalização” da vida (Conrad, 2007). Dentro deste registro, a história de Gustavo, um menino de 7 anos de idade com a variação cromossômica 47, XXY, começa para mim quando ele chega no ambulatório de endocrinologia pediátrica de um hospital na Zona Norte do Rio a partir da reclamação materna de que ele teria uma
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genitália muito pequena. Gustavo já havia passado por duas cirurgias, uma com 3 anos e outra com 5 anos. A primeira aconteceu para tratar uma fimose, condição em que o prepúcio dificulta ou impossibilita a exposição total da glande do pênis, e a segunda cirurgia para tratar uma hipospádia, condição caracterizada por um posicionamento atípico do meato urinário (isto é, o orifício por onde sai a urina pode se localizar na parte de baixo do pênis ou mais raramente na bolsa escrotal). Ainda assim, durante os atendimentos registrados em prontuários a mãe relatava seguidos desconfortos com a genitália atípica do filho e também com sua “obesidade”. Pessoas com a “Síndrome de Klinefelter” normalmente apresentam hipogonadismo, em que as glândulas sexuais produzem menos hormônios do que o considerado padrão para um desenvolvimento masculino. É uma variação intersexual bastante comum, com incidência de 1 para cada 500 a 1.000 nascidos vivos do sexo masculino (Lee et all, 2016, p. 3). Sua aparência, portanto, será menos virilizada. A pessoa também será infértil. No entanto, apesar do pouco desenvolvimento dos caracteres secundários masculinos e a infertilidade, a pessoa não terá nenhum risco de vida. O desconforto, como se nota, é estritamente social. O incômodo materno com a genitália pequena do filho foi, então, traduzido no atendimento médico. O protocolo para esses casos é a reposição de testosterona. Não existe possibilidade de recuperar a fertilidade da criança, mas é possível ajustar suas taxas hormonais para minimizar a “deficiência” androgênica. Com 7 anos, o menino recebeu doses de testosterona sintética, uma injeção por mês durante três meses, para promover estímulo fálico, virilização e desenvolvimento dos caracteres secundários tipicamente masculinos. A equipe médica estava desconfortável em realizar este procedimento, pois era uma antecipação da puberdade da criança. De todo modo, os profissionais de saúde cederam ao desconforto maior, familiar e social, e sanaram por hora as demandas maternas. Depois dessas aplicações de hormônio, Gustavo foi encaminhado para a nutrição para tratar seu sobrepeso. Uma outra história que acompanhei foi a de Wagner Luis, um bebê de apenas 2 meses de idade. Ele foi transferido para o mesmo hospital na Zona Norte porque os médicos responsáveis pelo parto não conseguiram identificar o sexo da criança no momento
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do nascimento. Com a impossibilidade de designar um sexo ao nascimento, os médicos não produziram a “Declaração de Nascido Vivo”, documento necessário para que qualquer bebê seja registrado civilmente em cartório. Os domínios de produção e administração da intersexualidade são múltiplos – sem este documento médico atestando o sexo da criança, ela não terá registro civil aos olhos do Estado. Este, por sua vez, distribui aos profissionais de saúde a responsabilidade de determinar o diagnóstico e o sexo do bebê. Neste sentido, Wagner Luis foi encaminhado para o hospital porque precisava ter seu sexo averiguado e designado por especialistas. Somente assim poderia ter um registro, um prenome, produzir outros documentos, tomar as vacinas no posto de saúde, ser socializado na gramática de gênero coerente ao seu sexo designado,3 enfim, começar uma vida de fato. Ele só foi registrado 4 meses depois, quando já tinha 6 meses de idade. Neste tempo, passou por várias anamneses, exames e procedimentos, entre eles a reposição de testosterona também citada no caso anterior. Aqui a prática não tinha a finalidade de virilizar o bebê – que mesmo assim tornou-se mais virilizado pela quantidade de testosterona sintética injetada em seu corpo4 –, a finalidade O bebê era chamado de Ana Luisa pela família. A mãe e a prima levavam a criança ao ambulatório com vestidinhos, saias, sempre em tons rosas e roxos. Com a continuidade do atendimento e os procedimentos feitos, a família passou a chamar Ana Luisa de “bebê”. Começaram a vestir a criança de outras cores mais “neutras” – uma das vezes, o bebê estava com um vestidinho amarelo. No final do atendimento, após os testes de virilização feitos pela equipe médica, a família se convenceu de que a criança era mesmo um menino e modificou o nome para Wagner Luis. Foi registrado com o mesmo nome do pai. 3
“Um endocrinologista disponibilizou uma caixinha de Deposteron através da farmácia do serviço de atenção especializada para pacientes transexuais do hospital, contendo três ampolas de 2 ml com 200 mg de cipionato de testosterona cada, exatamente para os três meses do teste de virilização. A aplicação foi custosa para a médica responsável. O líquido da testosterona era oleoso, de tal forma que essa viscosidade dificultou a aplicação imediata. O bebê chorava muito. Parecia doer bastante. Na bula do remédio, aponta-se os efeitos colaterais: possibilidade de ginecomastia; alterações cutâneas, como alopecia, seborreia e acne; aumento da retenção de água, sódio, potássio, cálcio e fosfatos inorgânicos; náusea, dor de cabeça, ansiedade e depressão; inflamação e dor no local da administração intramuscular. Por fim, um aviso que alerta para o contrassenso desse manejo médico frente ao guideline científico, cuja prioridade é a preservação da funcionalidade gonadal – o tratamento com altas doses de testosterona pode reduzir ou interromper a 4
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do procedimento era, antes de tudo, testar se seus receptores de hormônios androgênios (isto é, hormônios ditos masculinos) estavam funcionando corretamente. Com esse teste, sua genitália, que era ambígua, também se virilizou. Ainda assim, Wagner Luis foi encaminhado para a urologia pediátrica para realizar cirurgias corretivas, ou seja, cirurgias normalizadoras que tem como objetivo tornar mais masculina a aparência da genitália da criança.5 Essa busca em readequar o que seria o funcionamento lógico e correto do corpo humano se torna uma busca por precisão. A retomada de uma integridade perdida – uma vontade que embasou, ao longo do tempo, o trabalho científico de descobrir a “localização do sexo”. Ainda hoje, a literatura médica discute sobre qual seria o melhor marcador biológico para diferenciar homens e mulheres (Lee et all, 2016, p. 11). De modo que essa totalidade corporal não é estática, não é natural, ela é sempre revista e requalificada. A interpelação e o reforço dessas gramáticas generificadas pressupõem a exclusão de variações corporais que são “recusadas à possibilidade de articulação cultural” (Butler, 1993, p. 8). Neste sentido, a sedimentação da primazia da diferenciação sexual passa tanto pela regulação das condições e dos efeitos da materialização de corpos segundo modelos de uma integridade funcional específica como pelo governo das atribuições articuladas com a noção de integridade em jogo (Ibid., pp. 134-135). Essas atribuições seriam rastreadas pelos diversos marcadores sociais da diferença (gênero, sexualidade, raça, classe, idade etc.) em que as estruturas de poder espermatogênese, como também pode agir na redução dos testículos. Afinal, qual seria a dose “correta” para um recém-nascido?” (Pires, 2015, pp. 85-86).
No exame físico de cada consulta, a genitália do bebê também é examinada. No primeiro exame físico, media 2,1 centímetros, abaixo da média definida pela literatura médica, na qual a medida infantil para um norte americano do sexo masculino seria de 3,4 centímetros com desvio padrão de 0,3 centímetros, ou seja, abrangendo um intervalo de normalidade entre 3,1 a 3,7 centímetros (Lee et all., 2006, p. 490). No segundo exame físico, a genitália diminuiu ainda mais, a medida foi de 1,5 centímetros. As gônadas estavam palpáveis bilateralmente, com cerca de 1 milímetro, mas as saliências labioescrotais apareciam como pouco pragueadas e pigmentadas. Na escala médica, considera-se tal genitália um Prader III. No prontuário, entre as opções “pênis”, “clitóris” ou “falus”, assinalaram a última opção na definição da genitália. Nas discussões clínicas do caso, referiam-se ao bebê como um DDS 46, XY com falus indeterminado/ambíguo. Para os médicos, se tratava de um menino pouquíssimo virilizado (Pires, 2015, p. 81). 5
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e o simbólico se constituem. Para Butler, apreender as formações dessas normas, que são generificadas e racializadas, e estão em constante articulação, permite entender como a autodeterminação corporal está implicada nessas formas de poder hegemônicas.6 A última história que compartilho é de um bebê com risco de vida. A “Hiperplasia Adrenal Congênita” é uma das poucas condições de intersexualidade que constitui uma emergência médica. Em sua forma clássica a “HAC” é perdedora de sal, a pessoa com a condição desidrata de forma grave que se não tratada resulta em risco de morte. A “HAC” é definida por mutações genéticas autossômicas recessivas que provocam alterações enzimáticas que modificam a biossíntese de hormônios na suprarrenal.7 Essa alteração transforma todo o quadro de conversão e secreção hormonal, de modo que desenvolve a hiperplasia na glândula e gera a superprodução colateral de hormônios androgênios.8 Acontece em pessoas 46, XX, ou seja, cromossomicamente tidas como mulheres. Dessa forma, essa alteração e desregulação hormonal, que ocorre desde a vida intrauterina, acaba por virilizar o feto e posteriormente continua a virilizar o bebê. Então, um bebê com cromossomo sexual feminino vai nascer parcialmente ou completamente masculinizado. A história que descrevo agora ilustra essa condição. Além da discussão sobre autodeterminação, o livro de Butler é fundamental para entender a complexidade da categoria “agência” e o uso da “performatividade” para descrever a contestação e a produção de outras modalidades de poder. Ver também Mahmood, 2005. 6
A mutação mais clássica, que altera a função da enzima 21-hidroxilase, gera uma desregulação na produção de hormônios esteróides como a aldosterona e o cortisol, responsáveis (entre outras funções) pela homeostase de sódio e potássio no corpo, o prejuízo dessa produção desregulada que leva aos sintomas de desidratação e vômitos. 7
Hormônios androgênios, ditos masculinos, são tipos de hormônios esteróides. Funcionalmente, eles são agrupados em certas classes, como os corticosteroides (glicocorticoides e mineralocorticoides), os esteróides sexuais (progestogênios, androgênios e estrogênios), hormônios derivados da vitamina D, entre outros. Todos derivam do metabolismo do colesterol. Com a desregulação enzimática da síntese desses hormônios, alguns ficam com taxas mais ou menos elevadas. É o caso da 17-hidroxiprogesterona, esteróide intermediário na biossíntese do cortisol, usado para a avaliação da “HAC” em teste laboratorial, que se converte alternativamente em di-hidrotestosterona e contribui para o excesso de andrógenos da condição (Witchel, 2017). 8
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O bebê foi internado na emergência de outro hospital de alta complexidade na Zona Norte do Rio sofrendo uma desidratação acentuada, com mal-estar e vômitos. Na época, ele tinha 1 mês de vida. No acompanhamento de seu caso os médicos notaram se tratar do modelo clássico de “HAC”, a forma perdedora de sal. Tratado e monitorado para a desidratação, a equipe médica voltouse para a designação sexual do bebê. Entretanto, o bebê já estava registrado com sexo e prenome masculino. Era chamado de Marcos pela família e usava roupinhas azuis quando estava internado na enfermaria do hospital. Ainda assim, o protocolo médico para esses casos é de acompanhar o sexo cromossômico da criança, ou seja, o sexo feminino. A controvérsia aumentava porque a aparência da genitália da criança era completamente masculina.9 A virilização que acontece é forte e age bastante no corpo do bebê. Nesses casos de 46, XX muito virilizados ainda não se sabe pela literatura médica como a incidência de hormônios andrógenos durante a gravidez pode impactar no desenvolvimento da psique e da identidade de gênero futura da pessoa.10 Como era um caso delicado, a equipe médica se reuniu para decidir o melhor encaminhamento. Profissionais da “Segundo os relatos em prontuários, a aparência da genitália dele não era ambígua. Ao contrário, o pênis estava no tamanho padrão para uma criança do sexo masculino e daquela idade, com o meato urinário na ponta e fusão lábio escrotal completa. Sua bolsa escrotal era pigmentada e pregueada. Ainda assim, sua genitália não podia ser inteiramente masculina, já que não possuía os testículos. A bolsa escrotal estava vazia” (Pires, 2016, grifo original). 9
Várias publicações médicas discutem esses impactos a longo prazo. Alguns consensos se delineiam na medida em que meninas ou mulheres 46, XX com “HAC” que vivenciaram uma grande virilização durante a gestação e a infância (Prader IV ou V) parecem ter comportamentos menos tradicionalmente femininos e/ou orientação sexual não-heterossexual. Por exemplo, um artigo de pediatras sul-coreanas diz: “Exposição excessiva aos andrógenos durante o período pré-natal influencia o desenvolvimento cerebral de mulheres com HAC clássica; elas podem apresentar mais preocupações sexuais e comportamento masculino do que mulheres não afetadas” (Choi & Yoo, 2017). Outro artigo de urologistas pediátricos alemães também reitera que “aquelas com maior grau de exposição aos andrógenos durante o período prénatal (Prader IV e V) criadas como mulheres passam a se identificar como mulheres, mas experimentam um comportamento mais masculino na infância, também possuem uma taxa maior de homossexualidade e sentem mais dificuldade com a penetração vaginal e a manutenção da gravidez” (González & Ludwikowski, 2016). Para uma abordagem crítica sobre essas análises e consensos, ver Jordan-Young, 2010. 10
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pediatria, genética, urologia cirúrgica, endocrinologia, psicologia e residentes, todos participaram do debate. A família, por outro lado, estava convencida de que sua criança era um menino. Estavam confusos e, pelos relatos dos prontuários, eles não sabiam como processar a informação dada pelos médicos de que seu filho era, na verdade, uma menina. A mãe, que sempre acompanhava o bebê durante a internação, sofreu com constrangimentos no momento em que informaram a família da condição de Marcos. A psicologia foi acionada para auxiliar no atendimento. Uma profissional relata que a mãe “ficou mais angustiada com o fato de terem dado essa notícia no meio da enfermaria pediátrica, onde todas as outras crianças e familiares ficam internados” (Pires, 2015, p. 69). O desconforto associado a ambiguidade ou a falta da designação sexual, como já vimos, gera um grande impacto familiar. Reorganizam-se expectativas ou há um investimento em sanar essas incongruências, como surge na história de Gustavo. Nesse caso a situação se agravou pela exposição da vulnerabilidade e da limiaridade do bebê, fazendo com que a família tenha que lidar com essas informações, consentimentos e encaminhamentos em um ambiente cheio de gente e notadamente desigual.11 A resolução do caso acontece em duas etapas. Primeiro, receitaram a aplicação de uma medicação que se assemelha aos hormônios esteroides do tipo “glicocorticoide” para restabelecer o metabolismo da suprarrenal. Essa medicação é receitada durante toda a vida do paciente com “HAC” clássica. Somente assim a alteração enzimática será regulada e evitará outras crises de desidratação. O segundo encaminhamento relaciona-se à designação sexual de Marcos. Depois de muito debate, a equipe médica decidiu seguir o protocolo e redesignar o bebê de acordo com seu sexo cromossômico. A família aceitou e consentiu esta mudança com a promessa de que a funcionalidade reprodutiva da criança seria assegurada. Uma das endocrinologistas do caso afirmou durante a reunião multidisciplinar que “a marca da fertilidade é imprescindível”.12 Para uma discussão mais detalhada sobre as relações entre consentimento, vulnerabilidade, sofrimento e bem-estar neste atendimento hospitalar de Marcos/ Marta, ver Pires, 2016. 11
A virilização pode afetar de algum modo a funcionalidade das gônadas, por exemplo, mulheres com HAC clássica possuem ciclos de menstruação 12
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Mais uma vez, vemos que essa garantia de funcionalidade implica uma noção de integridade e de bem-estar associado à reprodução heterossexual. “Em termos psicanalíticos, a relação entre gênero e sexualidade é em parte negociada através do relacionamento entre identificação e desejo” (Butler, 1993, p. 183).13 Neste sentido, a preocupação com o bem-estar do paciente é diretamente associada com a possibilidade de manter o corpo fértil justamente porque a funcionalidade reprodutiva prescinde da funcionalidade sexual. A lógica médica que guia esses protocolos toma como norte funções heterossexuais para a manutenção de capacidades reprodutivas. A necessidade de coerência entre essas esferas é um sinal, tal como Butler apontou, que a materialização do “sexo” nunca está totalmente completa. Essas instabilidades apontam para o trabalho de reinscrição de corpos tidos como ininteligíveis, que constituem de forma exclusiva a própria noção de integridade corporal prezada enquanto valor discursivo. Neste sentido, o bem-estar pode ser lido como efeito de uma qualidade de vida generificada em normas, saberes, práticas e moralidades desta totalidade binária. Por isso, entre as indicações médicas para a família, duas são fundamentais para entendermos esses manejos como materializadores de corpos, relações e subjetividades: os médicos pediram para os pais vestirem a criança com roupas rosas nas próximas consultas e também definirem um novo nome para o bebê. Marta surge desta indagação. “Em casos assim, um dos profissionais de saúde me confessou, não adiantava de nada a decisão médica de designar para o sexo feminino se a família não reforçasse este sexo social cotidianamente” (Pires, 2016, p. 18). Ainda assim, serão necessárias múltiplas cirurgias ao longo do tempo para que a genitália de aparência masculina se altere para uma genitália tipicamente feminina. Marta foi encaminhada para a urologia pediátrica do hospital, pois a primeira genitoplastia reparadora14 teria que ser
irregulares e em alguns casos podem ser inférteis. Ainda assim, dentre muitos fatores e desconsiderando a forte alteração anatômica que a variação produz, principalmente na genitália do bebê, as gônadas femininas existirão e serão completamente formadas (Witchel, 2017). No original: “In psychoanalytic terms, the relation between gender and sexuality is in part negotiated through the question of the relationship between identification and desire”. Tradução da autora. 13
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Um conjunto de cirurgias feminizantes que englobam reconstruções clitorianas
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realizada antes dela completar 1 ano de idade. Não há garantias nem previsões de que os procedimentos feitos melhorem a qualidade de vida atual ou futura da criança. A importância do “sexo social” é tão qualificada e reforçada pela equipe médica justamente porque é impossível dar certeza sobre o desenvolvimento psicológico e social de um indivíduo baseado apenas em uma suposta coerência entre o que seria o sexo cromossômico e a aparência física da pessoa.15 Em relação à “HAC”, alguns dos objetivos cirúrgicos são a abertura de um canal vaginal para manter o fluxo menstrual, o uso de absorventes e a penetração durante o sexo, bem como a preservação das terminações microvasculares para minimizar a perda da sensação do clitóris reconstruído. Em muitos casos, há a necessidade de cirurgias complementares para dilatar o canal vaginal durante a adolescência (Witchel, 2017, p. 25). Esses procedimentos invasivos e controversos ainda são realizados porque há uma necessidade de normalização dessas diferenças. A materialização de corpos “homens-masculinos” e “mulheres-femininas” está atrelada a uma noção de pessoa moderna e ocidental construída a partir de uma humanidade sexuada. Na Antiguidade, por exemplo, a noção de diferença sexual não era pensada de maneira tão distinta. Homens e mulheres eram compreendidos enquanto semelhantes, possuindo uma única carne que se distinguia em termos de calor e de fluidos, a variação era entendida em seu grau de desenvolvimento e de potência. A diferença era explicada de modo relacional, ou seja, se dava no nível das coisas, das palavras, da posição e do papel generificado que cada um ocupava em sociedade (Laqueur, 2001). O dimorfismo sexual como entendemos hoje, ou e vaginais, como a clitoroplastia e a vaginoplastia. A informação me foi dada pelo endocrinologista responsável pelo caso. Ainda assim, esse procedimento é protocolar para a condição: “bebês do sexo feminino com ambiguidade genital podem ser submetidas a cirurgia de genitoplastia feminilizante durante o primeiro ano de vida” (Witchel, 2017, p. 25, tradução da autora).
Como já pontuado em notas passadas, em alguns estudos médicos existem indícios de mulheres com “HAC” clássica, especialmente as que sofreram muita virilização, que apresentam comportamento “atípico” em relação ao modelo hegemônico de feminilidade e/ou possuem “inclinações homossexuais”. A endocrinologista pediátrica Selma Witchel aponta algumas referências da literatura médica que relaciona essas identidades e comportamentos com a “severidade” da mutação do gene CYP21A2 – principal variação genética da hiperplasia adrenal congênita (2017, p. 24). 15
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seja, segundo uma noção de homens e mulheres essencialmente diferentes, em suas biologias, mentes e papéis sociais, começou a existir e ser reforçado principalmente a partir do século XVIII. Descrever essas experiências de intersexualidade me parece fundamental para a compreensão do processo repetitivo que é a regulação de integridades corporais específicas através da gestão desses corpos marginalizados. Dor, insensibilidade, cicatrizes, estenose, falta de lubrificação, ansiedade, estigma, constrangimento – esses efeitos pouco abalam a contínua necessidade de sujeitar pessoas intersexo à materialização de uma humanidade sexuada. O que existe é uma reavaliação crítica dessas demandas, circunscritas enquanto “direitos à saúde”, através de um atendimento mais holístico, com participação de movimentos sociais, familiares e grupos de suporte. Conforme indica a atual revisão do Consenso médico sobre os avanços dos manejos da intersexualidade:16 Grupos de suporte [peer support (PS)] são componentes fundamentais do Plano de Ação para Saúde Mental da OMS para 2013-2020 (…) Ao invés de uma abordagem monolítica do tratamento, membros de várias comunidades agora pedem por intervenções baseadas em evidências, pela inclusão consistente de evidências e de controvérsias nos processos de consentimento informado e pela identificação criativa de estratégias alternativas, incluindo apoio psicossocial e grupos de suporte como modos de intervenções primárias (...) A colaboração com os grupos de suporte existentes se torna crucial para o desenvolvimento de um maior apoio para condições específicas, tanto para integrar os grupos de suporte nos modelos de cuidado e de saúde, como para incentivar pesquisas centradas no paciente (Lee et al, 2016, p. 3).17
Importa notar que a literatura médica atual ainda utiliza a terminologia “distúrbios do desenvolvimento sexual” para se referir às variações de intersexualidade. Para saber melhor sobre as controvérsias desta terminologia e os impactos de etiologias cada vez mais descritivas e específicas, ver Machado, 2008b. 16
No original: “Peer support (PS) is a key component of the 2013–2020 WHO Mental Health Action Plan. (…) Rather than the monolithic approach to treatment, community members now call for evidence-based interventions, the consistent inclusion of evidence and of controversies in informed consent processes and the creative identification of alternative strategies, including psychosocial support and PS as primary interventions (...) The collaboration with existing PSGs is crucial for developing more support for specific conditions, for integrating PS into the model of healthcare and for encouraging patient-centered research”. Tradução da autora. 17
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Em outras partes do artigo,18 os autores indicam que o bem-estar do paciente intersexo, ainda que definido por escalas de qualidade de vida gerais (QoL), deve ser pensado segundo múltiplos fatores externos e intrínsecos ao sujeito, incluindo “saúde física, idade, valores sociais, acesso a recursos incluindo trabalho, educação, relações de suporte e experiências de cuidado médico” (Ibid., p. 10). Também pontuam que os guidelines não devem ser aplicados em todos os casos, pois há a recomendação de avaliar cada caso individualmente de acordo com o diagnóstico, a severidade da condição, os impactos psicológicos, o suporte familiar para cada designação sexual, os riscos cirúrgicos, o potencial de fertilidade e a antecipação da qualidade da função sexual. Ainda assim, há uma desconexão profunda entre os modelos de cuidado propostos e as práticas observadas em contextos hospitalares de saúde pública. Como as histórias narradas indicam, os procedimentos cirúrgicos (mesmo sem consenso sobre suas indicações, avaliações e tempo de intervenção) ainda são práticas usuais que muitas vezes esbarram em tensões entre a responsabilidade familiar de consentir e o direito individual de autonomia. Nos casos de crianças com variações intersexuais, o respaldo para essas intervenções se torna cada vez mais escasso a medida em que governos e organismos internacionais questionam o marco ético e legal deste tipo de cuidado clínico e cirúrgico. A regulação dos direitos sobre a intersexualidade: tensões entre integridade, autonomia, consentimento e vulnerabilidade Publicado em 2007, os Princípios de Yogyakarta19 foram
Além dos 17 autores principais, o artigo teve revisão e colaboração de mais de 60 especialistas que trabalham com o tema, da área médica, da bioética, dos direitos humanos e alguns ativistas intersexo, compondo o que chamaram de “Global DSD Update Consortium”. O único especialista brasileiro que contribuiu para o documento foi o Dr. Gil Guerra-Junior do Departamento de Pediatria da UNICAMP. 18
Os princípios não foram assinados como um tratado, isto é, não tem caráter vinculante como lei internacional. Contudo, os 29 juristas e especialistas signatários que representaram estados-nações, organizações internacionais, sociedade civil e escritórios da ONU consideram o documento como uma normativa universal para guiar legislações e tratados específicos. Os princípios inspiraram, por exemplo, 19
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propostos com a finalidade de servirem de parâmetro para a aplicação da legislação internacional dos direitos humanos sobre orientação sexual e identidade de gênero. Sua construção é importante pois busca sistematizar algumas normas universais sobre questões de soberania individual, identidade e abuso no que tange pessoas LGBTI. Frente ao paradigma da sociedade de direitos que vivemos (Gregori, 2014), torna-se fundamental a compreensão dessa linguagem política, bem como suas aplicações, restrições e atualizações em relação às experiências de intersexualidade. Mauro Cabral, filósofo argentino e ativista trans e intersexo, participou da organização dos Princípios de Yogyakarta. Em 2016, em entrevista para a Heinrich Böll Foundation, ele comenta sobre o desenvolvimento do documento, os impactos com governos, organizações e grupos de advocacy, e os avanços na área. Um ponto interessante da entrevista é quando assinala que a intersexualidade aparece implícita no texto.20 No princípio 18, “Proteção contra abusos médicos”, indica-se que sejam tomadas medidas legislativas e administrativas para assegurar que
(...) nenhuma criança tenha seu corpo alterado de forma irreversível por procedimentos médicos, numa tentativa de impor uma identidade de gênero, sem o pleno e livre consentimento da criança que esteja baseado em informações confiáveis, de acordo com a idade e maturidade da criança e guiado pelo princípio de que em todas as ações relacionadas a crianças, tem primazia o melhor interesse da criança (2007, p. 26).
As práticas normalizadoras feitas em crianças com variações intersexuais se enquadram, portanto, dentro do marco da “identidade de gênero” assegurada enquanto direito sexual e reprodutivo. Os deslocamentos entre esses direitos, como os direitos à saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, podem ser
documentos e resoluções apresentadas na Assembleia Geral das Nações Unidas em 2008, 2011 e 2014. Ver, http://www.un.org/press/en/2008/ga10801.doc.htm, http://www.ohchr.org/Documents/Issues/Discrimination/A.HRC.19.41_English. pdf, e https://documents-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G14/177/32/PDF/ G1417732.pdf?OpenElement. Link para a entrevista: https://www.boell.de/en/2016/05/13/we-need-intersexversion-principles. 20
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entendidos seguindo as linhas argumentativas propostas por autoras como Lowenkron (2015), Díaz-Benítez (2012) e Gregori (2014). Em outras palavras, dentro desta análise sobre o paradigma discursivo contemporâneo sobre violência e direitos, acredito que seja possível enquadrar o processo de sujeição e subjetivação que atravessa os saberes e os gerenciamentos da intersexualidade ao relacionar algumas categorias, sendo elas: integridade, autonomia, consentimento e vulnerabilidade. Neste sentido, é preciso pensar como essas categorias aparecem em ambientes hospitalares, nas apreensões familiares, em representações midiáticas, nos ativismos contemporâneos, em discussões acadêmicas, em suma, nos variados registros capazes de mobilizar esses saberes, práticas e experiências. O argumento que proponho se desenvolve, afinal, de duas maneiras. Primeiro, de forma complementar ao debate sobre a regulação da sexualidade a partir de ideias e ideologias liberais, que em suas constituições formariam não só os modelos normativos e valorizados de identidades e práticas sexuais, mas produziriam, ao mesmo tempo, resíduos e/ou fissuras em subjetividades e relações. A inscrição e repetição de integridades corporais específicas dentro do manejo da intersexualidade demonstra esse duplo processo de marginalização e acolhimento. O ponto nevrálgico que esses documentos internacionais,21 bem como os ativismos e os próprios guidelines médicos mais atuais,22 buscam acionar é a centralidade da autonomia da pessoa com variação intersexual. A categoria tem lastro em tradições da filosofia política e moral, com base tanto em Immanuel Kant quanto em John Stuart Mill, que qualificam a pessoa de acordo com uma capacidade de agir segundo seus próprios valores e razões. Essa habilidade de governar a si mesmo, tomada como um valor moderno, teoricamente coloca Alguns escritórios das Nações Unidas, como o Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR), já produzem documentos mais explícitos sobre os manejos, os direitos e as violências envolvidas nos atendimentos de variações intersexuais. Ver, por exemplo, a campanha UN Free & Equal lançada pelo OHCHR – https://www.unfe.org/. 21
A revisão do Consenso finaliza o artigo com a indicação de que “os médicos que trabalham com essas famílias devem estar cientes de que a tendência, nos últimos anos, tem sido para que os órgãos legais e de direitos humanos enfatizem cada vez mais a preservação da autonomia dos pacientes” (Lee et all, 2016, p. 20, tradução e grifo da autora). 22
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em igualdade todo ser humano – independente dos contextos e das contingências de cada ordenamento político e social. Tal concepção de autonomia individual é “um princípio processual”, como assinala Saba Mahmood (2005), e não uma característica ontológica ou substantiva do sujeito, pois delimita a própria “condição necessária para a promulgação da ética da liberdade” (Ibid., p. 11).23 A autonomia está ligada, por sua vez, a noção de escolha e de consentimento do sujeito liberal no debate jurídico contemporâneo. A categoria é traduzida, “na maioria das teorias do direito, como uma aprovação mútua que contempla sujeitos capazes de poder expressar conscientemente e com responsabilidade que consentem” (Gregori, 2014, pp. 53-54). Neste paradigma de direitos, as crianças são vistas como sujeitos de direitos especiais, isto é, “sujeitos que devem ser tutelados e protegidos pela sociedade, a família e o Estado” (DíazBenítez, 2012, p. 258). Essa diferenciação ocorre porque se atribui às crianças uma condição de vulnerabilidade visto que elas “não possuem maturidade nem psicológica nem física” para consentir plenamente de acordo com a noção de sujeito autônomo e liberal. A possibilidade de consentir, portanto, vincula-se à idealização de uma autonomia individual que tem clara relação com a construção da soberania moderna e com a própria possibilidade de governabilidade (por exemplo, Foucault, 2008 e Mbembe, 2003 – uma relação que aproximaremos a seguir). De todo modo, a dimensão da “vulnerabilidade” não aparece aqui concentrada nas interpretações dos atributos individuais, em que a categoria (associada com a menoridade, a “doença mental” e a incapacidade de oferecer resistência) é entendida como uma contaminação da autonomia pela redução da capacidade de agência, seja por uma falta de discernimento racional, seja por uma relação de desigualdade, que impossibilita o consentimento pleno do sujeito liberal (Lowenkron, 2015). Ainda sobre as dinâmicas de reconhecimento e consentimento, especialmente nos ambientes hospitalares, de fato há uma formação de vulnerabilidade (associado com marcadores sociais da diferença) que surge das relações de constrangimento e/ou assimétricas em contextos de atendimento e tratamento. Como Gregori apontou sobre o trabalho de Cynthia Sarti, No original: “necessary condition for the enactment of the ethics of freedom”. Tradução da autora. 23
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às vezes o discurso médico vincula de modo restritivo condições de vulnerabilidade com uma noção de proteção integral, o que transforma marcas “de diferenciação social e de desigualdade em atributos individuais, dificultando o fluxo e dinâmica dos processos de mudança” (2014, p. 56). Contudo, seria a partir das dinâmicas relacionais que a vivência da vulnerabilidade se expõe e se intensifica, alterando os processos de autodeterminação e consentimento dos roteiros que aparecem nos guidelines científicos e documentos políticos internacionais. A estratégia de Butler em Undoing Gender (2004) é produtiva para pensar a vulnerabilidade “sem presumir as ideias de irracionalidade, inocência e passividade bem como imaginar a possibilidade de agência sem associá-la imediatamente ao ideal político liberal de autonomia ou resistência e nem às noções jurídicas de responsabilidade e culpa” (Lowenkron, 2015, p. 253). A vulnerabilidade aqui surge de uma readequação estratégica da própria condição humana, afastada do paradigma liberal, para pensar a relacionalidade e interdependência dos corpos na medida em que todos seríamos suscetíveis a ação de outrem. Essa exposição compartilhada exige que a autonomia seja concebida como imanente aos dispositivos de poder. Assim, como a integridade está associada às formas hegemônicas de pensar o corpo humano, o que o constitui e os seus limites, a vulnerabilidade também está implicada nesta regulação dos corpos e das vidas possíveis de serem reconhecidas. Nas palavras de Butler, “nosso próprio senso de pessoa está ligado ao desejo de reconhecimento”, de tal forma que esse “desejo nos coloca fora de nós mesmos, num reino de normas sociais que não escolhemos completamente, mas que fornece o horizonte e o recurso para qualquer sentido de escolha que podemos ter” (2004, p. 33).24 Essa interdependência e relacionalidade, que caracterizam a vulnerabilidade, esclarece bastante a disputa de direitos, na qual o que está em jogo é a transformação da própria noção de humanidade a partir da discussão de modos de existência e não mais da atribuição e qualificação do que é o humano fora dos processos políticos e No original: “our very sense of personhood is linked to the desire for recognition, and that desire places us outside ourselves, in a realm of social norms that we do not fully choose, but that provides the horizon and the resource for any sense of choice that we have”. Tradução da autora. 24
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sociais que o articulam. Neste sentido, as experiências de atendimento e tratamento de pessoas com variações intersexuais podem ser consideradas violações no quadro de direitos contemporâneo, mas essas experiências não se restringem ao debate sobre autonomia e consentimento em relação à identidade de gênero (direito sexual) nem sobre abusos de autoridade e prática médica (direito à saúde). Outras linguagens surgem e se complementam para compreender os movimentos de sujeição aos protocolos e às práticas normalizadoras – como a busca por visibilidade e reconhecimento de organizações sociais, de reparação e resistência por alguns ativismos, a sistematização de novas legislações e tutela em alguns países, e a ampliação do debate para outros registros, como princípios de proteção ligados ao combate da tortura. O advogado e ativista argentino Juan Méndez, atual especialista independente da ONU sobre “Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes” publicou um parecer, em 2016, no qual relaciona as práticas normalizadoras feitas em crianças e pessoas intersexo aos procedimentos esterilizantes, práticas prejudiciais e também às mutilações genitais. Em suas palavras, Em muitos Estados-nações, crianças nascidas com características sexuais atípicas são frequentemente submetidas a designações sexuais irreversíveis, esterilizações involuntárias e cirurgias genitais normalizantes, que são realizadas sem o consentimento informado dos pacientes ou seus pais, deixando-as permanentemente inférteis, causando severos sofrimentos mentais e contribuindo para suas estigmatizações. Em alguns casos, o tabu e o estigma levam a morte desses bebês intersexo (OHCHR, A/HRC/31/57, p. 14).25
A linguagem que centraliza a autodeterminação e a
No original: “In many States, children born with atypical sex characteristics are often subject to irreversible sex assignment, involuntary sterilization and genital normalizing surgery, which are performed without their informed consent or that of their parents, leaving them with permanent, irreversible infertility, causing severe mental suffering and contributing to stigmatization. In some cases, taboo and stigma lead to the killing of intersex infants”. Tradução da autora. 25
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integridade volta a aparecer neste documento. Nota-se como a garantia da integridade, física e mental, parece estar articulada com o exercício de soberania segundo essa determinada tradição moderna de pensar o sujeito liberal e autônomo. Tal como Achille Mbembe aponta em Necropolitics (2003), a capacidade de razão é central para a liberdade, que é também elemento constitutivo da noção de autonomia gestada pela filosofia moral e política. Neste sentido, a soberania torna-se um processo de autoconstituição e autolimitação, “consiste na capacidade de autocriação da sociedade através do recurso a instituições inspiradas por significados sociais e imaginários específicos” (Ibid., p. 13).26 No que tange as significações e atribuições ligadas à diferenciação sexual, bem como as implicações destas especificidades, vemos um processo que condiciona vulnerabilidades às pessoas com variações intersexuais na medida em que elas não podem consentir sobre seus atendimentos e tratamentos, nem ter a garantia de autodeterminar um corpo íntegro e uma identidade de gênero como sustenta o marco ético e político de direitos na atualidade. Dito isto, o segundo ponto que o argumento deste paradigma de direitos potencializa é o gerenciamento da intersexualidade a partir de um modelo de doença crônica. Como estou falando de sujeição, da condição de pessoa e das possibilidades de concepção do que é humano, é evidente que a construção e sustentação da humanidade sexuada se transforma a medida em que esses corpos, experiências e demandas se tornam cada vez mais visíveis. As políticas “da vida em si”, como sintetiza Nikolas Rose (2007) sobre as negociações políticas, éticas e morais relativas de um mundo paulatinamente mais tecnológico, descritivo e medicalizado, atravessam campos sociais dos mais diversos, reorganizando as vidas em tramas cada vez mais biossociais, as quais, por sua vez, expandem as relações globais de saúde, política e direitos. É preciso atentar, portanto, como esta busca por integridade e autonomia embasa processos de governo de corpos em segmentos de mercados terapêuticos específicos. Similar à conjuntura de HIV/aids acompanhada e descrita por João Biehl (2008, 2011), quando se trata dos “distúrbios No original: “consists in society’s capacity for self-creation through recourse to institutions inspired by specific social and imaginary significations”. Tradução da autora. 26
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do desenvolvimento sexual” existe um processo semelhante de articulação entre diferentes atores gerindo o atendimento e tratamento da intersexualidade. Há uma vinculação entre organizações não governamentais, movimentos políticos intersexo, instituições privadas (de pesquisa e/ou biomédicas) e agências estatais de saúde, na tentativa de padronizarem seus discursos a fim de garantirem parcerias no atendimento e na intervenção clínico-cirúrgica das pessoas intersexo. O Consenso médico de 2006 sobre o manejo da intersexualidade garantiu “suporte educacional irrestrito” concedido pela Pfizer Endocrine Care, Novo Nordisk, Ferring e Organon (Lee et all., Ibid., p. 497). Sua atualização, dez anos depois, somente indica os apoios institucionais, são eles: European Society for Pediatric Endocrinology (ESPE), Pediatric Endocrine Society (PES-NA), Australian Pediatric Endocrine Group (APEG), Asian Pacific Pediatric Endocrine Society (APPES), Japanese Society of Pediatric Endocrinology (JSPE), Sociedad LatinoAmericana de Endocrinologia Pediatrica (SLEP), Chinese Society of Pediatric Endocrinology and Metabolism (CSPEM). Neste registro, é interessante ecoar o questionamento de Biehl: Como obrigar doadores a prestar contas a longo prazo, especialmente nesta época financeiramente volátil? Como as tendências de saúde global afetam o papel dos governos e suas obrigações com os direitos humanos? Além disso, como estão sendo tratadas as outras doenças mortais da pobreza que têm menos apoio político? Que projeções e sistemas de valor subscrevem as decisões políticas e a triagem médica? Problemas e questões que não eram necessariamente previstos e que agora têm de ser tratados como imperativos para salvar vidas foram transformados em novo capital geopolítico e farmacêutico (2011, p. 265).
Trocando “doenças mortais da pobreza” pelas variações intersexuais, que se transformam cada vez mais em condições crônicas segundo o modelo de cuidado médico gestado atualmente (atravessado por desigualdades e tensões entre integridade, autonomia, consentimento e vulnerabilidade), podemos também pensar, assim como fez o autor, sobre as projeções e os sistemas de valor que tangenciam as negociações políticas desses “corpos ambíguos” enquanto biocapitais.
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Não espero formular respostas para tais questões, mas apontar para o fato que a cidadania e a vida dessas pessoas se restringem sobremaneira quando a ética e a política, em suas múltiplas camadas, se reduzem às “emergências biológicas e sociais” (CFM, Resolução nº 1.664, 2003). Por fim, o risco de escrever que uma variação corporal não é necessariamente um problema médico, isto é, de se posicionar criticamente e não apenas indicar as atribuições médicas e as implicações sociais dos atendimentos das condições de intersexualidade, vem da vontade de participar de um fazer antropológico que demonstre politicamente as desigualdades e as tensões de categorias básicas para a compreensão científica, ética e ideológica da condição humana. Considero fundamental relacionar esses saberes e práticas, pois é possível demonstrar não só novas enunciações e dispositivos para conceber e gerir esses “corpos ambíguos” dentro do paradigma de direitos, mas também indicar como esses sujeitos não questionam necessariamente suas violações justamente porque buscam afinar suas agências e subjetividades de variadas maneiras a fim de habitar as gramáticas e as normas vigentes.
Dos limites de uma promessa: reflexões sobre a “terapia de mudança de sexo”
Lucas Freire1
Introdução O conjunto de concepções e “sintomas” que compõe a atual definição da “disforia de gênero” – que já recebeu o nome de “transexualismo”, “desordem da identidade de gênero” e “transtorno da identidade de gênero” – possui uma longa e complexa genealogia, marcada por tensões, disputas e consonâncias entre atores ligados a distintos campos do conhecimento, tais como a endocrinologia, a psicanálise e a psiquiatria. Como sugerido por Castel (2001), esses embates podem ser divididos em quatro fases que estão ligadas ao desenvolvimento e especialização de saberes sobre corpo, sexo e gênero: a primeira, relacionada às origens da nascente disciplina da sexologia; a segunda, marcada pelo avanço da endocrinologia na compreensão não só do funcionamento corporal, mas também do seu papel preponderante no comportamento humano; a terceira, na qual se dá a entrada de concepções mais sociológicas sobre o que seria o “gênero” – e como esse se distingue do “sexo” – nas teorias acerca da transexualidade; e a quarta fase, iniciada nos anos 1970, na qual o debate sobre o “problema da transexualidade” começa a se deslocar da pessoa transexual para as normas e discursos que produzem o dimorfismo sexual, dando início a luta pela despatologização.2 A primeira aparição da transexualidade no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais da Associação Americana de Psiquiatria – conhecido pela sigla DSM3 –, se deu em Lucas Freire é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ). 1
Para uma cronologia mais detalhada do desenvolvimento das múltiplas teorias sobre a transexualidade consultar Castel (2001), Arán (2006), Leite Jr. (2011) e Lima (2011). 2
Cabe destacar que o DSM é adotado como guia para os profissionais de saúde mental em diferentes lugares do mundo, inclusive no Brasil. Junto com a Classificação Internacional de Doenças (CID), estes dois documentos fornecem uma espécie de padronização da categorização de problemas de saúde no âmbito global utilizada 3
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1980, com a publicação de sua terceira edição. Neste momento, a transexualidade era classificada como uma “desordem da identidade de gênero.” Em sua 5ª e mais recente edição – publicada em maio de 2013 –, a transexualidade é descrita como uma experiência que marca a vida dos sujeitos com um “sofrimento clinicamente significativo ou prejuízo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo” (APA, 2014, p. 453). Esta última edição do DSM trouxe importantes mudanças em seu capítulo sobre transexualidade em relação às versões anteriores: a retirada da “disforia de gênero” da categoria de “doença mental” e a inclusão de critérios diagnósticos para a “disforia de gênero” em crianças. Antes de entrar na discussão propriamente dita, quero destacar que é preciso ter em mente que os critérios diagnósticos daquilo que é considerado um “transtorno mental” se diferenciam radicalmente de outros tipos de doenças. Enquanto o aumento da temperatura corporal e a indisposição física podem indicar uma gripe, por exemplo, a “disforia de gênero” é diagnosticada através da patologização de gostos, desejos, experiências e comportamentos. Esta “patologização da vida” se torna ainda mais clara com a inclusão de um tópico específico para a identificação da transexualidade em crianças, de modo que condutas como preferir brinquedos, jogos, roupas e atividades que são consideradas como parte do estereótipo do sexo oposto, ou preferir brincar com colegas do sexo oposto, passam a figurar como indicativos de uma ruptura com o sexo/ gênero designado no nascimento do sujeito. Neste sentido, mais que descrever certos critérios diagnósticos, as formas pelas quais a “disforia de gênero” é identificada prescrevem também modos específicos de subjetivação e de compreensão das experiências vivenciadas pelas pessoas transexuais. Acredito que ao elencar determinadas características como critérios diagnósticos da “disforia de gênero” em crianças, os médicos não visam identificar um tipo específico de “transtorno mental”, mas sim assegurar um desenvolvimento “correto” do sexo/gênero ao produzir meninos-masculinos e meninasfemininas, ditando como, com o que e com quem as crianças devem conviver e brincar. Conforme sinaliza Bento (2004), no caso da por médicos, pesquisadores, planos de saúde, companhias de seguro etc.
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transexualidade, os médicos não tratam terapeuticamente nem o corpo nem a mente, mas sim realizam uma função moral de manutenção do padrão de normalidade. Autores como Leite Jr. (2011), Bento (2006), Ventura (2010), Arán (2006) e Castel (2001) apontam que o surgimento de um discurso sobre a “patologia” da transexualidade foi simultâneo à formulação do “tratamento” indicado para sua “cura”, conhecido popularmente como “terapia de mudança de sexo” (Ventura, 2010) ou “terapia de redesignação sexual”. Esta “terapia” inclui uma série de procedimentos como a utilização de hormônios, o acompanhamento psicoterápico, as intervenções corporais sobre as gônadas e os caracteres sexuais secundários – tais como a raspagem do pomo de adão, a retirada de mamas, ovários e útero, entre outras – e aquilo que é tido como seu ápice: a cirurgia de transgenitalização ou de “redesignação sexual”. Para além dos consultórios médicos e psicológicos, esta terapia estende-se para o âmbito jurídico ao incluir como parte do “tratamento” a aquisição de um determinado bem social: a alteração de nome e/ou sexo no Registro Civil, ou, como chamada no jargão jurídico, a requalificação civil. Apesar de aparentemente problemática, opto por utilizar a expressão “terapia de mudança de sexo” não apenas no título, mas também ao longo do texto, por quatro razões. Primeiro, porque meu objetivo é justamente discutir os limites da ideia de “mudança de sexo”. Em segundo lugar, porque o desejo de “mudar de sexo” constitui um dos principais “sintomas” que indicariam a “disforia de gênero” em uma pessoa e ele foi recorrentemente mencionado tanto por várias/os das/os interlocutoras/es ao longo do meu trabalho de campo, quanto por sujeitos ouvidos em estudos sobre transexualidade empreendidos por Zambrano (2005), Bento (2006), Ventura (2010), Teixeira (2013), entre outros. Em terceiro lugar, a expressão “terapia de mudança de sexo” aparece não apenas nos escritos de Ventura (2010), mas também em um texto publicado na página de comunicação institucional do Governo Federal brasileiro cujos objetivos eram explicar o que é uma “cirurgia de mudança de sexo” e noticiar que estas vêm sendo realizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2008 (Brasil, 2015). Por último, mas não menos importante, é preciso destacar que o caráter “terapêutico” da “mudança de sexo” – seja ela fenotípica e/ou registral – possui um enorme peso na argumentação em favor da efetivação dos desejos
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e direitos de pessoas transexuais nas esferas médica e jurídica. Sobre este último ponto, é fundamental recordar que, ao passo que cirurgias com fins estéticos como a implantação de próteses de silicone ou de redução dos seios dependem apenas da vontade da pessoa, procedimentos como a retirada total das mamas, do útero ou de qualquer outra parte do corpo só podem ser realizados em função de um tratamento para uma determinada patologia, como, por exemplo, o câncer de mama. Isto é, no caso de pessoas transexuais, é o diagnóstico da “disforia de gênero” que autoriza médicos a efetivarem certas intervenções corporais sem sofrer sanções éticas e criminais (Freire, 2016). De modo bastante resumido, a “terapia de mudança de sexo” traz consigo uma promessa de “transformação de homens em mulheres” e vice-versa, que é fabricada como a solução para os “sofrimentos e conflitos inerentes à transexualidade”. Uma vez que, como destacado por Teixeira (2013), há uma hegemonia do discurso médico-jurídico no processo de reconhecimento da legitimidade e inteligibilidade das experiências transexuais, seria essa “transformação” o que oferece aos “portadores da disforia de gênero” a oportunidade de “renascer” e “viver dignamente”. Em outras palavras, é através de um conjunto de prescrições que potenciais ambiguidades são eliminadas e as possibilidades de significação, inteligibilidade e interpretação dos desejos e comportamentos dos sujeitos são restringidas. Tal movimento acaba por reforçar a construção de uma imagem única e coerente para a pessoa transexual produzida pelo “dispositivo da transexualidade”: a/o “verdadeira/o transexual” (Bento, 2006). Além disso, a fabricação e consolidação de um modelo uno de compreensão das experiências transexuais é uma condição fundamental para o estabelecimento de um “protocolo de tratamento” que não permite “desvios” daquilo que está previsto, seja no sentido de “parar” no meio do caminho, retroceder ou propor alternativas. Ao pesquisar os pedidos judiciais de requalificação civil de pessoas transexuais no Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos (NUDIVERSIS)4 da Defensoria Pública Geral O NUDIVERSIS é classificado na estrutura de instituições que compõem a Defensoria Pública como um “núcleo especializado de primeiro atendimento”. O termo “especializado” indica que as atividades do núcleo são direcionadas às questões e demandas apresentadas por uma determinada “população” ou grupo, 4
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do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ), pude perceber como os diferentes tipos de “documentos” – fotografias, laudos, certidões, atestados, declarações, relatórios etc. – mobilizados nesses processos são, ao mesmo tempo, produtos e produtores do “dispositivo da transexualidade”, visto que funcionam como tecnologias que engendram e sedimentam determinadas “verdades” sobre os corpos, cérebros, subjetividades, experiências e trajetórias destes sujeitos (Freire, 2015 e 2016). Ou seja, é por meio destes papéis que as pessoas conseguem se constituir como “verdadeiramente transexuais” (Bento, 2006), condição imprescindível para o acesso aos procedimentos médicos e legais previstos na “terapia de mudança de sexo”. Ademais, a crença na capacidade destes documentos de fabricar a realidade é um dos elementos que sustentam a ideia de transformação contida em tal “terapia”. Entretanto, se, por um lado, estes documentos produzem classificações que são tidas como indispensáveis à gestão e administração do acesso ao direito de requalificação civil; por outro, tais papéis não dão conta das complexidades experimentadas pelos sujeitos na realidade cotidiana. A partir da narrativa de um caso vivenciado durante o período em que empreendi minha pesquisa etnográfica, busco refletir sobre os limites e o alcance tanto da promessa contida na “terapia de mudança de sexo”, quanto da requalificação civil enquanto uma tecnologia de governo e de cuidado que tem por função minimizar o sofrimento das pessoas transexuais. A história de Raissa5 Raissa era uma jovem mulher transexual de 24 anos. Nascida no interior do Ceará, ela conta que se mudou para o Rio de Janeiro na busca por “melhores oportunidades de vida”, mais “liberdade” e “opções de lazer”. Ela iniciou seu acompanhamento com profissionais da Defensoria Pública em 2010, quando o NUDIVERSIS ainda não no caso, as pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT). Já a expressão “primeiro atendimento” aponta para o fato de que o núcleo atua, ao menos oficialmente, somente em uma etapa pré-processual.
Apesar de ser de praxe nas pesquisas antropológicas a utilização de pseudônimos, escolhi manter o nome verdadeiro de Raissa ao longo do texto como forma de demonstrar respeito pela sua história e de dar visibilidade ao seu caso. 5
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existia e o atendimento a pessoas transexuais era realizado por funcionários do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH). Raissa fazia parte do programa de assistência a pessoas transexuais do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) desde 2009. No início de 2012, ela deu entrada no processo de requalificação civil e em dezembro de 2013 obteve o direito de ser reconhecida oficialmente pelo seu nome feminino, modificando assim seu registro civil e seus documentos. Meu primeiro contato com sua trajetória ocorreu de modo indireto, quando uma das estagiárias relatou, um tanto perplexa, que a pessoa que estava ao telefone queria “reverter seu processo de requalificação civil”, gerando assim um diálogo sobre os possíveis motivos que levariam alguém a tomar tal atitude. A hipótese principal era de que Raissa teria se convertido a alguma religião que condena a transexualidade. No dia seguinte, 3 de abril de 2014, a expectativa em relação ao caso de Raissa dominou as conversas entre as profissionais do núcleo, das quais eu usualmente participava. Muito se falou sobre os motivos que teriam levado a assistida6 a “desistir” da modificação do registro civil e os impactos que uma ação deste tipo poderia causar tanto nas teorias sobre a transexualidade quanto nas reivindicações e argumentações utilizadas por movimentos militantes pelos direitos de pessoas transexuais. Raissa retornou ao NUDIVERSIS para solicitar que seu processo fosse “desfeito”, ou seja, para que ela pudesse ter seu nome masculino novamente. Ela disse que estava passando por momentos muito difíceis nos meses anteriores e alegou que a mudança de documentos não alterou sua vida de forma significativa. Ela contou ainda que estava em acompanhamento pelo programa de assistência a pessoas transexuais do HUPE, mas que, por possuir alguns problemas de saúde que a impediam de obter bons resultados com o tratamento hormonal prescrito para as pessoas transexuais, ela ainda possuía uma série de “características masculinas” que a incomodavam e faziam com que ela não se enxergasse “plenamente como mulher”. Além disso, ela também contou que não passou pela “Assistida/o” é a categoria utilizada para fazer referência às/aos usuárias/os do serviço da Defensoria Pública no Rio de Janeiro. O termo permite uma dupla apreensão: por um lado, uma/um assistida/o é alguém que recebe algum tipo de assistência ou ajuda; por outro, ser assistido remete ao ato de ser observado por terceiros. 6
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cirurgia de transgenitalização, sem explicitar exatamente os motivos. Raissa dizia estar insatisfeita com seu trabalho e enfrentando dificuldades financeiras devido ao aumento do custo de vida na cidade do Rio de Janeiro. Ela trabalhava há quase dez anos como caixa de um café localizado em um cinema na Zona Sul da cidade. Ela relatou ter sofrido alguns assédios morais em seu emprego, uma vez que seu chefe, por vezes, a escalava para trabalhar sem folgas e quando ela protestava, ele dizia a Raissa que ela deveria agradecer, pois nenhum outro lugar “daria emprego para uma travesti”. Contudo, Raissa não abandonava o trabalho por não ter encontrado outra oportunidade até então. Além de um baixo nível de escolaridade – Raissa não concluiu o ensino médio –, a assistida dizia que enfrentava muitos problemas na busca por vagas no mercado de trabalho devido ao preconceito vivenciado por pessoas transexuais. Segundo ela, a alteração apenas de seu nome e não do “sexo” em seu registro civil produziu uma situação de confusão e ambiguidade. Raissa relatou que muitas pessoas não entendiam quando ela entregava seu currículo com o nome feminino e o sexo masculino. Neste sentido, ela sentia que era associada à travestilidade e seu currículo era descartado quase que imediatamente. Raissa relatou também que tinha um namorado, mas que a relação não estava boa, pois seu parceiro já havia terminado o relacionamento algumas vezes alegando que gostaria de ter filhos biológicos com ela e que isso era algo ela nunca poderia fazer. Segundo Raissa, a atitude do namorado contribuía de forma substancial para que ela não se enxergasse como uma “mulher completa”. De acordo com a própria assistida, o somatório de todos esses problemas gerou um quadro de depressão. Ela estava fazendo acompanhamento com um psiquiatra no HUPE, mas disse não estar tendo bons resultados. Diante disso, Raissa explicou que não queria somente “reverter” o processo de requalificação civil, mas também pretendia desfazer as modificações corporais realizadas, como, por exemplo, retirar as próteses de silicone e cortar o cabelo. Raissa dizia que não era assim que ela gostaria de viver, mas que acreditava que essa atitude seria a solução para muitos dos problemas enfrentados. De um modo um tanto ressentido, Raissa falou que os gays sofrem menos preconceito que as travestis e transexuais. Assim, ela acreditava que sua vida seria mais fácil caso ela “voltasse a ser menino”.
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O atendimento de Raissa consistiu, basicamente, em uma tentativa de fazer com que ela avaliasse melhor seu pedido e, até mesmo, desistisse de alterar novamente seu registro civil. A recepcionista7 contou diversos casos de pessoas transexuais que obtiveram sucesso em suas vidas profissionais e se prontificou em acionar sua rede de contatos para tentar arranjar um novo emprego para Raissa. A estagiária, por sua vez, contou uma série de casos de preconceitos vivenciados por ela e por pessoas próximas por conta de machismo, racismo, homofobia etc. como forma de “naturalizar” a discriminação e mostrar para Raissa que ela não está “sozinha no mundo” e que é preciso enfrentar certas situações. A estagiária também argumentou que por conta do estado depressivo, Raissa não estaria em condições de tomar uma decisão tão importante e que qualquer juiz entenderia a questão dessa forma, extinguindo o processo. Neste sentido, a estagiária recomendou que Raissa continuasse em acompanhamento psiquiátrico e que só retornasse à Defensoria Pública com uma decisão quando ela estivesse se sentindo melhor. Raissa se manteve firme, disse que trocou de nome a primeira vez de forma precipitada e que se trocasse novamente, não se arrependeria, pois sabia que alterar o registro civil “não era brincadeira” e ela também não teria condições financeiras de colocar e retirar próteses de silicone tantas vezes. O atendimento de Raissa durou ao todo quase três horas. Na maior parte do tempo, a assistida foi ouvida e questionada pela estagiária e pela recepcionista. Dentre as soluções alternativas oferecidas estavam a tentativa de processar o Estado com base no direito à saúde para que este fosse obrigado a realizar a cirurgia transgenitalizadora; e a tentativa de alteração do sexo no registro civil para que a ambiguidade descrita pela assistida se dissipasse. Nos meses que se seguiram, a situação de Raissa foi muito discutida. A assistida teve os atendimentos agendados diretamente com a Defensora Pública e foi chamada a comparecer no NUDIVERSIS algumas vezes. Em uma destas ocasiões, Raissa teve que buscar um ofício que a encaminhava para a realização de um novo Estudo A recepcionista não era uma funcionária do quadro oficial do NUDIVERSIS. Entretanto, ela adquiriu uma posição singular no caso da Raissa, pois era também uma mulher transexual. 7
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Social8 com psicólogos e assistentes sociais da Defensoria Pública. Em maio de 2014, Raissa foi atendida por uma psicóloga da DPGERJ, que se recusou a fazer um relatório recomendando uma nova alteração no nome de Raissa. Este episódio fez com que o caso se tornasse novamente pauta das conversas entre as funcionárias do núcleo. Um dos assuntos deste dia foram as alegações que poderiam ser apresentadas para que o NUDIVERSIS se recusasse oficialmente a atender a demanda de Raissa. Após alguns debates, chegou-se à ideia de que esta ação poderia, a longo prazo, trazer certos danos para a assistida e que, portanto, não era recomendável fazê-la. Em meados de julho, período em que eu começava a me preparar para deixar o campo, o caso de Raissa voltou a circular intensamente pelos corredores do NUDIVERSIS. No início do mês, a Defensora Pública pediu que as estagiárias marcassem um atendimento para que a situação fosse resolvida em definitivo. Neste dia, a Defensora comentou que Raissa já havia conversado com a psicóloga e com a assistente social da DPGE-RJ três vezes e que em todas as vezes a assistida insistiu em dizer que “já não via mais sentido em ser mulher”. A Defensora pediu que o agendamento fosse feito com urgência, pois ela estava preocupada com Raissa, uma vez que a psicóloga comentou que a assistida relatou ter comprado chumbinho9 para cometer suicídio, mas que não tinha tido coragem. Perto do fim do mês de julho, Raissa foi atendida novamente, desta vez pela Defensora Pública. De início, ela apresentou uma declaração dada por uma psicóloga do HUPE dizendo que ela não fazia mais parte do programa de assistência a pessoas transexuais e que não tinha mais intenção de fazer a cirurgia de redesignação sexual. Ela elencou as mesmas razões que havia mencionado na primeira vez que retornou ao núcleo: insatisfação com o próprio corpo, dificuldades financeiras devido ao aumento do custo de vida no Rio de Janeiro e dos gastos necessários para a “manutenção da feminilidade” – compra de roupas, maquiagem, cuidados com o cabelo, depilação etc. –, problemas no relacionamento e dificuldades O Estudo Social consiste basicamente em entrevistas realizadas com assistentes sociais e psicólogos servidores da Defensoria Pública. Seu objetivo é avaliar a procedência do pedido de requalificação civil da pessoa transexual. 8
Chumbinho é o nome dado a um produto químico clandestino popularmente utilizado como raticida e que figura como um dos meios pelos quais as pessoas tentam e/ou cometem suicídio no Brasil. 9
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no ambiente de trabalho. Ela também reiterou que a mudança de documentos não efetivou nenhuma grande mudança em sua vida, como ela acreditava que faria, dizendo que de nada adiantava ter um documento feminino se as pessoas continuavam tratando-a com diferença e discriminando-a onde quer que fosse. Além disso, Raissa acrescentou que pretendia voltar para sua cidade de origem, mas que só poderia fazer isso após “se tornar menino novamente”, pois sua família não a aceitaria utilizando próteses de silicone, cabelos compridos e com nome feminino. Durante todo o atendimento, Raissa se referiu à alteração do nome como “resolver isso”, indicando a existência de um “problema a ser solucionado”. Ela reclamou também das dificuldades que enfrentava para ter sua demanda atendida e do tempo despendido em conversas repetidas com assistentes sociais, psicólogos, advogados e médicos. Após ouvir Raissa, a Defensora explicou à assistida que não era possível reverter um processo judicial deste tipo. O que poderia ser feito era a abertura de um novo processo de requalificação civil, no qual a primeira alteração do nome não poderia ser omitida. A Defensora enfatizou que queria que ela solucionasse suas angústias, mas que ela, enquanto operadora do Direito, não poderia perder de vista o horizonte jurídico. Deste modo, a Defensora reiterou que compreendia os motivos pelos quais Raissa desejava viver novamente com um nome masculino, mas que estes não poderiam ser juridicamente sustentados em uma nova ação de requalificação civil. Assim, a única estratégia possível era a mesma dos outros procedimentos de alteração de nome e sexo no registro civil: convencer o juiz de que Raissa era, na verdade, um homem e que seu documento, do jeito que estava, não “refletia a realidade” e era, também, uma verdadeira fonte de aflição e sofrimento. Para isso, Raissa precisaria entregar, do mesmo modo que as/os outras/os assistidas/os, laudos afirmando sua condição masculina e também fotos suas retratando sua vivência do gênero masculino. Ao ouvir isso, uma ideia passou pela minha cabeça. Curiosamente, antes de conseguir ser reconhecida oficialmente por um nome feminino, Raissa precisou comprovar sua feminilidade “apesar de ter um pênis”; agora, para recuperar o nome masculino, a assistida precisaria provar que é homem “mesmo tendo um pênis”.
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Uma semana depois desse encontro na Defensoria Pública encerrei oficialmente o campo no NUDIVERSIS. O relativo isolamento imposto pelo processo de escrita fez com que meu contato com as pessoas do campo se tornasse reduzido, limitado à troca de mensagens. A última vez que encontrei Raissa foi no dia 11 de outubro de 2014, em seu local de trabalho, durante o expediente. Ela utilizava o crachá com o nome feminino, os cabelos loiros compridos e ainda não havia retirado a prótese de silicone, como dizia sentir vontade alguns meses atrás. Perguntei como ela estava e quais eram as novidades sobre seu processo de requalificação civil. Raissa reclamou que nada havia sido feito até então, que ela já não aguentava mais ir e voltar nos psicólogos e assistentes sociais da Defensoria Pública para dizer e ouvir as mesmas coisas e que ela já não sentia mais ânimo em fazer nada. Pouco tempo depois, um dos funcionários do café começou a chamar seu nome enfaticamente e eu entendi que poderia estar atrapalhando-a, afinal, ela estava em horário de trabalho. Um mês depois, no dia 06 de novembro de 2014, estava escrevendo a dissertação quando recebi uma mensagem de uma das estagiárias do NUDIVERSIS noticiando que, ao que tudo indicava, Raissa havia se suicidado há alguns dias. Naquele momento a informação ainda não havia sido verificada por nenhuma das profissionais do núcleo. Uma rápida busca na internet através da rede social Facebook confirmou a história. Uma página dedicada aos mais diversos assuntos relacionados a travestis e transexuais postou uma nota sobre o falecimento de Raissa no início da tarde daquele mesmo dia, a qual reproduzo um trecho:
Raissa era funcionaria no Espaço Itaú de Cinema, e há pouco tempo foi notícia por vencer na Justiça o direito de ser reconhecida pelo nome conforme a sua identidade de gênero. Mesmo com todas as conquistas Raissa estava insatisfeita com a vida em continuar não sendo aceita mesmo depois da cirurgia de readequação sexual e passava por problemas de depressão, e tirou sua própria vida (suicídio).
O registro no Facebook continha um link para outra nota publicada na versão online de um dos mais importantes jornais que circulam no Rio de Janeiro. Tomo a liberdade de copiar o conteúdo desta na íntegra:
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CRIME Travesti que mudou de nome é encontrada morta no Catete A travesti Raíssa, que trabalhava no Espaço Itaú de Cinema, em Botafogo, foi encontrada morta pelo seu namorado, ontem, no apartamento dela no Catete. Há pouco tempo, Raissa ganhou na Justiça o direito de ser chamada pelo nome.10
Esta pequena nota consegue, em apenas três linhas, reproduzir as violências que as pessoas transexuais vivenciam cotidianamente. Sem se preocupar em informar corretamente o leitor nem sobre Raissa e nem sobre o acontecido, a nota, escrita de forma extremamente ambígua, permite uma multiplicidade de interpretações. A primeira violência se faz ver quando a despeito do modo pelo qual Raissa se identificava, o autor da nota diz que “a travesti Raissa foi encontrada morta”. Localizada em uma coluna cujo título é “crime”, o texto reforça um estigma que associa travestis à criminalidade. Além disso, ao tratar a morte de Raissa como um delito, sugere-se que sua vida tenha sido tirada por alguém – possivelmente o próprio namorado? –, e não que ela tenha se suicidado, como aconteceu. Uma via de mão única: sobre a dificuldade de quebrar um protocolo A nota de falecimento publicada no Facebook descreve Raissa como um tipo de “modelo exemplar” ao enfatizar uma série de “sucessos” que ela obteve ao longo de sua vida, os quais não são tão comuns nas biografias de pessoas transexuais: um emprego formal, um relacionamento estável, a cirurgia de transgenitalização e o direito a ser reconhecida oficialmente pelo nome e sexo com os quais se identificava. Entretanto, o discurso de Raissa sobre a própria vida era diferente, afinal: 1) uma das soluções propostas pela Defensoria era tentar obrigar o Estado a realizar a cirurgia de transgenitalização; 2) em diversos momentos Raissa disse que seu
Disponível em: . Último acesso em fevereiro de 2016. 10
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relacionamento não era tão estável, o que ameaçava sua moradia, pois o apartamento pertencia ao namorado; 3) Raissa reclamou das condições de trabalho e relatou estar em busca de outras oportunidades; e 4) ela adquiriu somente a modificação de seu nome de registro, não do sexo, o que, segundo seus relatos, gerou uma situação de ambiguidade e confusão “pior que a anterior”. Em outras palavras, as declarações contidas na postagem do Facebook não levam em consideração a visão que Raissa tinha da própria vida. Contudo, ao fazer uma afirmação deste tipo – extremamente perigosa entre antropólogos – não pretendo oferecer uma explicação que torne o suicídio de Raissa compreensível ou determinar aquilo que ela considerava como “mais importante”. Como Kleinman (2006) sugere ao se questionar sobre o que “realmente importa” nas vidas dos indivíduos, os sujeitos buscam viver “vidas morais” e viver uma “vida moral” significa agir de acordo com aquilo que se considera o mais correto. Deste modo, as pessoas constroem o sentido de suas vidas de formas particulares e, assim, sempre existirá algo inapreensível a todos os demais. Ressalto, então, que ao trazer o caso de Raissa para o centro da discussão, não pretendo oferecer uma narrativa que domestique este “inapreensível” ou que a apresente como um caso exemplar, mas sim tento objetivar os acontecimentos através do enquadramento das complexidades de sua vida a partir das indexações disponíveis, isto é, com base naquilo que tive acesso enquanto um pesquisador atuante em um núcleo da Defensoria Pública. Assim, busco descrever Raissa como mais do que um sujeito absolutamente definido por questões ligadas ao sexo/gênero – como a “terapia de mudança de sexo” tenta enquadrar as pessoas transexuais –, ainda que boa parte de minhas reflexões estejam relacionadas a este aspecto de sua vida. A imagem construída pelas informações mencionadas na nota encontrada na página do Facebook representa aquilo que se espera do cumprimento de uma promessa de transformação radical da vida e solução instantânea dos problemas que é amplamente disseminada e consolidada entre as pessoas transexuais. Como mencionado na introdução, tal promessa é promovida pelo discurso que constrói a “terapia de mudança de sexo” enquanto uma espécie de “cura” para os sofrimentos que podem estar envolvidos nas experiências de pessoas transexuais: o incômodo em relação ao próprio corpo, a discriminação vivenciada cotidianamente etc.
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A incorporação subjetiva desta promessa de resolução mágica das atribulações pode ser percebida não apenas nos relatos de Raissa, mas também de muitas/os outras/os assistidas/os do NUDIVERSIS, que descrevem tanto a cirurgia de transgenitalização quanto a alteração do registro civil como uma espécie de “renascimento” e recomeço da vida. Visões muito semelhantes acerca da “mudança de sexo” e da alteração dos documentos foram encontradas nas investigações empreendidas ao longo dos últimos anos por Zambrano (2003), Bento (2006), Ventura (2010) e Teixeira (2013). Além disso, esta crença também ficou visível no teor da nota de falecimento publicada na rede social, que faz questão de ressaltar a insatisfação de Raissa mesmo com todas as conquistas. As/os usuárias/ os do Facebook que acessam a página responsável pela publicação, na sua grande maioria travestis e transexuais, deixaram comentários que expressam, ao menos implicitamente, certo ressentimento por Raissa ter tirado a própria vida mesmo após ter conseguido coisas que outras pessoas transexuais – possivelmente elas/es mesmas/os – ainda buscam. Alguns destes sujeitos se manifestaram no espaço virtual através de uma pergunta aparentemente retórica: “como Raissa poderia estar em depressão e insatisfeita com a vida mesmo após ter conseguido a alteração de seu registro civil e a cirurgia de transgenitalização?”. Uma pergunta deste tipo só faz sentido em um contexto no qual os “direitos” são construídos como “bens escassos” concedidos somente àqueles que provam serem merecedores legítimos de tais “benefícios” (Vianna, 2013). O cenário brasileiro é marcado pela precariedade e pouca oferta de instituições públicas de saúde que possuem serviços específicos para o atendimento de pessoas transexuais,11 bem como pela inexistência de uma lei de identidade O processo transexualizador foi instituído no SUS em 2008, com a publicação da portaria nº 457/2008. Até meados de 2013, apenas quatro hospitais públicos estavam habilitados a oferecer a cirurgia de transgenitalização, concentrados na região centro-sul do Brasil: o Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); o Hospital de Clínicas de Porto Alegre da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); o Hospital de Clínicas Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP); e o Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Goiás (UFG). Em novembro de 2013, o Ministério da Saúde acatou uma ordem judicial e publicou uma nova portaria (Portaria nº 2.803/2013) que criou o Serviço de Atenção Especializado no Processo Transexualizador, o que 11
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de gênero que permita que travestis e pessoas transexuais acessem o direito à alteração do registro civil de forma legalmente prevista.12 Uma vez que os procedimentos não estão uniformizados e nem mesmo a “jurisprudência está pacificada”,13 o processo de definição dos “sujeitos de direitos” acarreta a construção da “terapia de mudança de sexo” – e, consequentemente, da requalificação civil – como um tipo de “privilégio” conferido a poucos. Assim, é preciso atentar para os perigos que um determinado ganho traz, ou, em outras palavras, para os “possíveis venenos que os presentes guardam” (Vianna, 2005, p. 49). Ao ser considerada como merecedora do direito à requalificação civil, a pessoa é inserida em um tipo de relação de “dívida moral”, cujo pagamento deve ser feito por meio da expressão redefiniu e ampliou o acesso à serviços de saúde voltados para o atendimento de pessoas transexuais, incentivando a criação de novos centros especializados em unidades públicas de saúde. Segundo informações divulgadas pelo Governo Federal brasileiro, há atualmente nove serviços que realizam o processo transexualizador no SUS (Brasil, 2014).
No cenário contemporâneo, temos a tramitação do PLC 5002/2013, também conhecido como Lei João Nery, proposto pelos deputados federais Jean Wyllys do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL/RJ) e Érica Kokay do Partido dos Trabalhadores (PT/DF), que visa estabelecer uma “lei de identidade de gênero”. O projeto tem por intenção regulamentar não só o processo de alteração do registro civil de travestis, pessoas transexuais e intersexuais, como também modificar as condições de acesso à serviços de saúde, tais como a hormonização e a cirurgia de transgenitalização, as quais não seriam mais encaradas como parte de um “tratamento” para uma patologia e, portanto, não dependeriam mais de um diagnóstico e/ou autorização judicial. Entretanto, o projeto parece caminhar a passos lentos. Após ter sido desarquivado no início de 2015, o PLC está atualmente na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados e recebeu parecer favorável à aprovação com emendas do relator deputado Luiz Albuquerque Couto do Partido dos Trabalhadores (PT/PB). Apesar da lei de identidade de gênero ainda não existir, a utilização do nome social por instituições públicas e privadas tem se constituído enquanto um mecanismo que tenta minimizar os constrangimentos enfrentados por pessoas transexuais em situações em que os documentos de identificação são solicitados. Neste sentido, uma série de manobras políticas foram acionadas por instâncias como o Ministério da Educação (MEC) e Ministério da Saúde (MS), para que as/os usuárias/os do Sistema Único de Saúde (SUS) e de instituições públicas de ensino possam ser identificados pelo nome utilizado publicamente. 12
Jurisprudência ou entendimentos “pacificados” são expressões que designam a consolidação da jurisprudência sobre um dado assunto, ou seja, é quando concluise que uma determinada interpretação é a mais adequada para julgar casos semelhantes. 13
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da gratidão. Como demonstrou Coelho (2006), nas relações de troca entre pessoas de status desiguais, a demonstração da gratidão figura como forma possível de retribuição da dádiva, pois opera para a manutenção da hierarquia. Entretanto, se existe uma dívida, se faz necessária a pergunta: se deve a quem? No caso de Raissa, quando ela renuncia tanto ao direito à requalificação civil quanto à vaga no programa de assistência a pessoas transexuais do HUPE, ela não retribui as “dádivas” que lhe foram concedidas. Pelo contrário, Raissa, de certa forma, “ofendeu” um amplo conjunto de sujeitos: as profissionais da Defensoria Pública, que despenderam seu tempo e energia realizando os procedimentos de assistência para que ela pudesse protocolar a ação de requalificação civil; os juízes e promotores – os quais representam o “Estado” através do Judiciário – que deram procedência ao pedido de alteração do registro civil, abrindo assim uma “exceção” à regra de imutabilidade do prenome; e, até mesmo, as outras pessoas transexuais que ainda aguardam na fila para terem seus desejos atendidos. Isto é, a renúncia de Raissa foi vista, ao menos em um primeiro momento, como uma forma de “ingratidão”. Com relação ao ressentimento manifestado pelas/os leitoras/ es da página do Facebook, acredito que a resposta mais honesta para o questionamento feito por elas/es pode ser encontrada na própria nota de falecimento publicada pelas/os administradoras/ es da página. Como o texto expõe de modo claro, apesar de – supostamente – ter passado por todos os procedimentos previstos na “terapia de mudança de sexo”, Raissa continuava não sendo aceita socialmente como mulher e, de acordo com suas constantes reclamações apresentadas nos corredores do NUDIVERSIS, essa era uma das fontes de sua insatisfação. Outras frustrações, não menos importantes, eram oriundas das dificuldades econômicas enfrentadas, das condições de trabalho, da situação de habitação etc. Assim, há uma característica da “terapia de mudança de sexo” que precisa ser urgentemente discutida. Esta, do modo como se encontra construída discursivamente, invisibiliza críticas e não admite interpelações. Ao comparecer no NUDIVERSIS para solicitar a “reversão de seu processo”, Raissa se deparou não apenas com uma série de obstáculos, mas também com muitos apelos para que desistisse da ideia de alterar seu registro civil novamente. Nenhuma das propostas oferecidas como “solução” pelas funcionárias do
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núcleo – processar o Estado para garantir a realização da cirurgia de transgenitalização; abrir um novo processo solicitando a alteração do sexo no registro civil; ou passar pelo mesmo procedimento para obter um registro no masculino novamente – escapam ao roteiro previsto pela “terapia de mudança de sexo”. Deste modo, concordo com Ventura (2010) quando a autora argumenta que a “terapia de mudança de sexo” impede o exercício de uma ampla autonomia, uma vez que a única liberdade que o sujeito tem é a de “procurar o tratamento”, e não decidir por quais procedimentos e intervenções quer passar. Além disso, como observou Mauss (2003) muitas décadas atrás, quando a magia dá errado, a crença protege a magia de ser questionada e atribui ao mágico a responsabilidade pela falha. Quando a “terapia de mudança de sexo” não funciona, a autoridade médico-científica impede que o “tratamento” seja contestado, pois, uma vez que o “problema” se encontra no indivíduo transexual, somente o próprio pode ser responsabilizado pelo insucesso da “terapia”. Logo, mais do que proteger sujeitos supostamente vulneráveis – como descrito no documento que fundamenta a necessidade de criação de um núcleo especializado para o atendimento da “população LGBT” –, esta construção tem por função resguardar os aparatos do Estado e a manutenção do dispositivo da transexualidade (Bento, 2006). No caso de Raissa, tal preservação do Estado fica clara na medida em que a patologia é retransferida para ela – não mais a “disforia de gênero”, mas sim a “depressão” – e o “problema” é novamente localizado apenas nela. Dos limites da promessa: os trânsitos de gênero e suas (im) possibilidades De acordo com Bento (2004), a experiência transexual é caracterizada por uma série de deslocamentos, principalmente no que diz respeito às normas de gênero. Para a autora, uma afirmativa do tipo “eu sou uma mulher/um homem que nasceu em um corpo errado” revela a maleabilidade dos corpos ao lançar luz sobre as constantes tensões entre o gênero e o corpo-sexuado nas vidas de pessoas transexuais. Mesmo concordando com Bento quando ela faz coro com a teoria da performatividade de gênero de Butler
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(2003) e destaca o caráter notoriamente plástico dos corpos a partir das experiências transexuais, acredito que é preciso prestar maior atenção aos limites e possibilidades desses trânsitos de gênero, de modo a fomentar uma urgente discussão sobre o tema que se mantenha distante da dicotomia natureza versus cultura e que, sobretudo, esteja alerta ao perigo de resvalar em uma (re) essencialização do sexo. Questionar os limites dos trânsitos de gênero – ou da performatividade, se preferirmos – não é uma novidade nos debates sobre a temática. A própria Butler (1993 e 2004) já ofereceu uma série de considerações a partir das críticas que foram feitas ao seu livro Problemas de Gênero. Para a autora, uma leitura apressada e simplista de suas proposições fez com que muitos acreditassem que ela defendia o gênero como uma escolha livre e autônoma, baseada apenas na performance dos sujeitos. Assim, seu pensamento era visto como, de certa forma, alinhado com teorias construtivistas que colocavam o gênero – que estaria ao lado da “cultura” – em oposição ao sexo – que seria parte da “natureza”. Butler responde a essa leitura e busca afastar sua teoria de abordagens construtivistas enfatizando o processo de “materialização” dos corpos, pois, segundo ela, o construtivismo elabora um discurso sobre o gênero como um elemento cultural, o que posiciona o sexo em um lugar de natureza que é pré-discursivo e inquestionável.14 Para Butler, a distinção entre sexo e gênero não faz sentido, uma vez que não existe um sujeito prévio ou exterior aos mecanismos de regulação que operam simultaneamente a sujeição e a subjetivação dos indivíduos. A materialidade dos corpos, por sua vez, é efeito de um poder produtivo e é governada por normas culturais que determinam a possibilidade de reconhecimento da existência do sujeito. Assim, o limite da invenção da performatividade é o olhar do outro, já que é esse olhar que confere a materialidade dos corpos. Logo, os “corpos importam”, pois, é o corpo que oferece a matriz da performatividade de gênero possível, uma vez que este é visto como uma espécie de “lugar” no qual as normas sociais são Butler apresenta duas críticas principais ao construtivismo: por um lado, ela aponta um paradoxo inerente a esta abordagem, uma vez que o pré-discursivo é delimitado justamente por um dado discurso; e por outro, argumenta que o conceito de “natureza” é histórico e ligado à emergência dos meios tecnológicos de dominação. 14
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incorporadas e atualizadas (Butler, 1993). Se questionar a possibilidade dos trânsitos de gênero não representa um grande avanço na discussão, apenas atentar para a existência dos limites da promessa da “mudança de sexo” também não é inédito, uma vez que isso foi sinalizado por Zambrano (2005) há mais de dez anos. Segundo ela, após a cirurgia de transgenitalização,
(...) os transexuais deixam de pertencer ao sexo de nascimento, mas não passam a pertencer inteiramente ao outro. Quero chamar atenção para o fato de a medicina continuar classificando transexuais como tais, reafirmando que serão sempre transexuais, jamais homens ou mulheres (Zambrano, 2005, p. 109).
Contudo, acredito que ao trazer para a discussão a história de Raissa, posso contribuir com algumas reflexões e propor certas perguntas ainda não formuladas ou que não receberam a devida consideração. Quando Butler (1993) aponta o “olhar do outro” como elemento constitutivo da materialidade dos corpos, entendo que ela está tentando chamar atenção para a importância da dimensão do “reconhecimento social” na definição do sexo/gênero dos sujeitos. No caso de Raissa, a negação de sua identidade fica evidente quando lemos na nota publicada no jornal que ela era uma “travesti que mudou de nome”, cuja morte, quase que obviamente, não pode estar relacionada a outro fator que não um crime. Suas dificuldades em transicionar15 foram relatadas em inúmeras ocasiões e situações, como descrito ao longo do texto. Dito isso, quero deixar claro que meu objetivo não é, de forma alguma, “provar” que a “mudança de sexo” é algo impossível porque o “sexo” é, no fim das contas, imutável. Um posicionamento como esse implicaria em tomar o “sexo” como algo dado, natural e essencializado. Minha intenção é formular críticas acerca da “terapia de mudança de sexo” ao trazer para o primeiro plano da discussão a questão do “reconhecimento social”, tendo em vista que é o não reconhecimento das formas pelas quais as pessoas transexuais se identificam que revela as fragilidades do discurso sobre a “terapia de mudança de sexo” e da promessa de O verbo “transicionar” tem a ver com fazer uma transição. Entre as pessoas transexuais, o termo é utilizado para descrever o processo pelo qual os sujeitos fazem a transição de um gênero para o outro. 15
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reconstrução da vida que a acompanha. Em primeiro lugar, considero fundamental destacar que as tensões entre diferentes mundos sociais não se esgotam com a aquisição de um documento, que é perigosamente fetichizado como aquilo que resolverá o “problema” das pessoas transexuais através da fabricação de uma suposta coerência entre corpo, mente e identidade. Como já abordado por autores como Goffman (1975 e 1988), a identidade não é fixa e sem contradições, de modo que seu reconhecimento faz parte de jogos relacionais e interativos complexos, dos quais os documentos de identificação, apesar de extremamente importantes, figuram apenas como mais um elemento. No caso de Raissa, foi justamente a aquisição dos documentos devidamente alterados que significou a disjunção insuportável e o desencaixe absoluto. A figura da travesti, reiteradamente apagada pelos procedimentos que compõem a “terapia de mudança de sexo”, reapareceu nas suas interações cotidianas como, por exemplo, quando ela foi buscar um novo emprego e até mesmo após sua morte, quando a nota publicada no jornal a descreveu como uma “travesti que mudou de nome”. Além disso, o Estado, enquanto produtor de categorias que regulam e dão significado à vida (Bourdieu, 1989), não é capaz de dar conta das complexidades vivenciadas pelos sujeitos. O caso de Raissa revela a ilusão da homogeneização e estabilização das múltiplas formas de experiência da transexualidade que são pretendidas pelo aparato administrativo estatal e construída através da série de mecanismos e tecnologias de gestão. Neste sentido, o ruído provocado pela “denúncia” de ineficácia dos serviços e pelo desejo de propor uma solução própria para o que Raissa julgava serem seus problemas, ilumina o efeito de “naturalização” – e, consequentemente, de apagamento das relações de poder envolvidas neste processo – promovido pelos inúmeros discursos que circundam a “terapia de mudança de sexo” na medida em que estes tentam equalizar procedimentos políticos, administrativos e morais, todos produzidos para serem vistos como os únicos “corretos” e indiscutivelmente eficientes. Dito isso, acredito que seja possível afirmar que a promessa de “mudança de sexo” nunca poderá ser efetivamente cumprida16 16
Da mesma forma que a “mudança de sexo” nunca poderá ocorrer efetivamente, as
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enquanto as normas que regulam os gêneros se mantiverem em uma oposição binária que não apenas reproduz, mas também está a serviço de uma noção restritiva de sexo (Butler, 2003). A não aceitação da identidade relatada por Raissa e descrita na nota publicada no Facebook sugere que há uma determinada concepção de sexo, marcada pelo essencialismo, disseminada no senso comum. Ainda que não vincule o sexo à presença das genitálias, esta concepção pode ser considerada essencialista na medida em que o sexo é tomado como algo natural e certamente biológico, mas cuja essência é difusa e não localizável, acarretando assim a sua imutabilidade, ou, como aponta Butler (2004) ao analisar o caso de David/Brenda,17 há algo na experiência de gênero vivenciada por David que possui um significado profundo, algo como uma verdade interna e necessária, a qual nenhum tipo de socialização ou intervenção corporal é capaz de alterar (Butler, 2004, p. 62). Ou ainda, como discute Foucault (1980) ao comentar os diários de Herculine Barbin, parece existir uma necessidade das sociedades ocidentais modernas em desvendar o “sexo verdadeiro”, o qual é “primário, profundo, determinado e determinante da identidade sexual” (Foucault, 1980, p. viii). No caso das pessoas transexuais, tal inalterabilidade do “sexo verdadeiro” pode ser percebida através das máximas que podem ser ouvidas cotidianamente, tais como “fulano nasceu mulher”, “fulana nasceu homem”, “nunca será mulher porque nunca gerará filhos”, “mulher/ homem de fábrica”, entre tantas outras. normas de gênero também nunca poderão ser plenamente satisfeitas por um sujeito e, portanto, ambas serão sempre violentas, como já salientou Butler (2003 e 2004).
David/Brenda – ou caso John/Joan, como ficou mais conhecido – foi um rapaz que teve seu pênis severamente lesionado durante um procedimento de circuncisão nos anos 1960. Após terem contato com as teorias de John Money sobre o sexo/gênero como algo que depende muito mais da socialização do que da fisiologia, os pais de David resolveram criá-lo como uma menina, sob o constante acompanhamento de Money. Contudo, David passou por uma série de conflitos identitários na adolescência, pois não se via como uma menina. Quando seus pais lhe contaram que ele havia nascido menino, David adotou uma identidade masculina e passou pelo processo cirúrgico de reconstrução do pênis. Ele se suicidou aos 38 anos, período em que estava enfrentando um quadro depressivo. Esse caso é até hoje polêmico e alvo de disputas. O psicólogo John Money o utilizou exaustivamente para provar suas teorias sobre a “socialização do sexo”, ao passo que o jornalista John Colapinto (2000) escreveu um livro sobre a vida de David denunciando os abusos cometidos por Money e sua equipe. 17
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Uma série de críticas já foi feita por outras pesquisadoras à ideia da “terapia de mudança de sexo”. Segundo Teixeira (2013), a definição de “disforia de gênero” que consta no DSM pressupõe que a causa do sofrimento vivenciado por pessoas transexuais é o “transtorno” ou a “perturbação”, enquanto a verdadeira fonte destas dores – as normas sociais – não são problematizadas. Na mesma linha, Bento (2004 e 2006), salienta que a construção desta “terapia” reforça uma lógica que aloca a fonte dos conflitos que perpassam as experiências transexuais nos “indivíduos transtornados” e não nas normas de gênero. De acordo com a autora, é esta localização do conflito única e exclusivamente nos sujeitos que atua para a naturalização e despolitização da questão e reproduz os mecanismos operativos do dispositivo da transexualidade. Em suas palavras, (...) o que antecede aos conflitos com as genitálias são aqueles com a própria construção das verdades para os gêneros, efetivadas nas obrigações que os corpos paulatinamente devem assumir para que possam desempenhar com sucesso os designíos do seu sexo (Bento, 2006, p. 164).
Partindo das proposições das autoras citadas, minha contribuição para as discussões acerca da “terapia de mudança de sexo” se concentra na problematização da promessa de transformação de homens em mulheres e vice-versa. A construção de uma única forma legítima de apreensão das experiências transexuais – o diagnóstico da “disforia de gênero” – e, consequentemente, de uma única possibilidade de “tratamento” – a “terapia de mudança de sexo” – impõe uma única forma de reconhecimento destas nos marcos daquilo que é considerado como “humano”, o que, por sua vez, pode inviabilizar não somente o exercício da cidadania, mas a vida como um todo. Ao apreender as pessoas transexuais como sujeitos unicamente do sexo/gênero – ignorando assim uma série de outros fatores preponderantes, tais como raça, classe, idade etc. – e localizar o “problema” exclusivamente na pessoa, a “terapia de mudança sexo” passa a ser vista como um “protocolo de tratamento”, como a única forma possível de resolução dos diferentes tipos de conflitos e sofrimentos. Em outras palavras, tal promessa extrapola a dimensão do sexo/gênero ao promover a ideia de um “renascimento”, como
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se através da “mudança de sexo”, questões relativas ao racismo, discriminação etc. pudessem ser magicamente solucionadas. A incapacidade da “terapia de mudança de sexo” de resolver todos os “problemas inerentes à transexualidade” é exposta de um modo visceral nos relatos de Raissa. Contudo, até mesmo no que diz respeito ao sexo/gênero, a possibilidade desta “terapia” falhar em algum ponto é grande – ainda que todas as suas etapas sejam executadas como previsto – e, assim, a promessa de transformação radical da vida pode nunca ser efetivamente cumprida. Considerações finais Antes de mais nada, é preciso reiterar que ao partir do caso de Raissa como eixo central das discussões aqui expostas, não tenho como objetivo oferecer uma narrativa que de algum modo “justifique” ou “explique” seu suicídio, muito menos questionar a legitimidade das demandas de pessoas transexuais por determinados bens de cidadania. Saliento que ao descrever e discutir as práticas administrativas e interações entre as profissionais da Defensoria Pública e Raissa, não pretendo me colocar na posição daquele que pode fazer uma “denúncia” sobre a desigualdade das relações de poder entre administradores e administrados; “revelar a verdade” sobre o funcionamento do Judiciário e suas instâncias anexas; ou oferecer uma “fórmula correta” de realização dos procedimentos no interior do NUDIVERSIS. Minha intenção é tentar iluminar algumas questões sobre como tal gestão implica um processo complexo de constituições múltiplas de “sujeitos de direitos”, políticas públicas e aparatos de Estado, que é perpassado por inúmeras contradições. Dito isso, gostaria de terminar esse texto com algumas reflexões. Butler (2003 e 2004) demonstra que as condições de inteligibilidade das figuras humanas são compostas por normas e práticas que são tomadas como pressupostos lógicos. No que se refere ao sexo/gênero, essas normas e práticas conformam o que a autora denomina de “matriz heterossexual”, na qual apenas as equações “homem-pênis-masculino” e “mulher-vagina-feminino” produzem seres humanos inteligíveis. Partindo da percepção de que a ordem heteronormativa se impõe e estabelece formas muito específicas de significar os corpos, penso na “terapia de mudança
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de sexo” como um conjunto de procedimentos que tenta fazer com que determinados corpos e sujeitos se enquadrem nessa matriz por meio de promessas baseadas nos possíveis ganhos que essas pessoas terão se elas “habitarem as normas”, para utilizar a expressão cunhada por Mahmood (2005). Contudo, ao me deparar com histórias como a de Raissa, que de modo algum é uma exceção quando falamos de pessoas transexuais, parece-me imperativo questionar: o que acontece quando a única “solução” que é oferecida não surte o efeito prometido? O que fazer nas situações em que os sujeitos só podem habitar as normas de forma ambígua ou quando não há a possibilidade de habitar as normas de uma maneira satisfatória? De que modo é possível produzir respostas para os problemas enfrentados por pessoas transexuais sem cair em uma armadilha que acaba por reforçar a heteronormatividade? Como tratar as histórias de vida de pessoas transexuais em seus próprios termos e anseios, e não apenas como alegorias de uma luta política contra o binarismo de gênero? Ou, simplesmente, como questiona Butler (2004), como fazer justiça a alguém ao analisar um caso tão dramático quanto o de um suicídio? As respostas para essas perguntas são inúmeras e extremamente complexas, de modo que não pretendo oferecer aqui conclusões definitivas, mas apenas algumas pistas para pensarmos essas questões. Primeiro, é preciso lembrar que, como mencionado anteriormente, as normas nunca serão plenamente satisfeitas por uma pessoa e é isso que as torna permanentemente violentas (Butler, 2003 e 2004). Além disso, a situação vivenciada por Raissa faz com que as condições desiguais de possibilidade de habitar as normas que certos corpos e sujeitos possuem sejam drasticamente explicitadas. Ao discutir as ideias de “sucesso” e “fracasso” propagadas em regimes capitalistas e heteronormativos, Halberstam (2011) pergunta: o que vem depois da esperança quando os sonhos e ilusões são despedaçados? Com esse questionamento, o autor não intenta reordenar ou substituir os critérios que definem as vitórias e as perdas, mas sim desmontar as lógicas que sustentam tais conceitos. Assim, ao escrever sobre uma “arte queer do fracasso”, ele propõe que o fracasso seja encarado como um “modo de vida” que exigiria menos esforço e que traria outros tipos de “recompensas”,
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não inseridas em uma lógica de consumo. Isto é: se, para Halberstam, a adoção do fracasso enquanto perspectiva se configura como um caminho possível para “escapar das normas punitivas que disciplinam o comportamento” (2011, p. 3) e das promessas de sucesso que são inalcançáveis para determinados sujeitos, é fundamental que questionemos etnograficamente de que maneiras um projeto político como este adquire concretude nas vidas e nas formações subjetivas. Para Raissa, eu ousaria dizer que as reiteradas tentativas frustradas de fazer da sua vida algo melhor a levou a um esgotamento brutal, de modo que o não cumprimento da promessa e a impossibilidade de habitar as normas tornou o mundo um lugar insuportável.
Das ruínas do corpo sudaca: marcas de vulnerabilidade em performances artísticas
Nathalia Ferreira Gonçales1 Este trabalho pretende analisar práticas corporais dissidentes na elaboração de um projeto artístico-político sudaca. O exercício performativo do termo sudaca, uma expressão depreciativa de uso comum na Espanha e em outros países da Europa para se referir a pessoas de origem latino-americana, ganha outra indicação de sentido ao fazer da injúria uma proposta de enfrentamento aos processos históricos de dominação colonial. A partir das performances “Merci Beaucoup, Blanco!”, de Michelle Mattiuzzi, e “Cu é lindo”, de Kleper Reis, traço quatro linhas de afetação para pensar determinadas manifestações contemporâneas vinculadas ao corpo: a heterossexualidade, a branquitude, a colonialidade e a tradição cristã. Em seus trabalhos, Kleper e Michelle vão compondo um movimento pessoal de cura diante das marcas de inúmeras experiências de violência inscritas em seus corpos. É precisamente essa dimensão devastadora dos processos históricos de assujeitamento que permite a criação de uma narrativa na busca de instrumentos para uma recomposição particular. O compromisso de identificar as dores, recolher os danos e aprender com eles é propulsor da força que possibilita outros modos de habitar as feridas desse corpo em ruínas. Sendo assim, procuro mostrar como tais práticas artísticas produzem e reinscrevem as políticas do corpo ao disparar uma tomada de reconhecimento do caráter precário impresso sobre algumas vidas. Merci Beaucoup, Blanco! Ex-bancária, ex-recepcionista, ex-operadora de telemarketing, ex-auxiliar de serviços gerais, ex-dançarina, ex-mulher, ex-atendente de corretora de seguros. É assim que Michelle Mattiuzzi define a si
Nathalia Ferreira Gonçales é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1
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mesma, em um olhar que lança perspectiva à sua trajetória enquanto artista negra. Atualmente, Michelle se ocupa em fazer e tentar viver de performance, embora sua fala pontue a todo momento a instabilidade da sua escolha. Após graduar-se em Comunicação das Artes do Corpo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, elege a cidade de Salvador como possível destino para viver. O interesse na mudança de residência acontece em função de uma busca pelo seu lugar de pertencimento dentro de relações raciais, discussão que chegou tardiamente nas suas inquietações como mulher negra. “Salvador para mim é o meu amor, porque aqui eu começo a saber quem eu sou, em que corpo eu vivo”, perceber-se negra em Salvador, onde “ser uma pessoa negra é uma divindade”, ela diz, permite um outro panorama de circulação pela cidade e de entendimento de si. É precisamente no trânsito entre essas duas metrópoles brasileiras que Michelle forja territórios afetivos capazes de fazer emergir marcas raciais não como características originárias, mas como experiência de pertencimento. O questionamento sobre raça chegou tarde, entre outros motivos, pela “criação correta” de seus pais, que Michelle acredita ter estreitado as possibilidades de problematização da sua existência racializada no espaço social. Ser correta tem o peso de se enquadrar em um sistema hegemônico branco que, inevitavelmente, anula uma sorte de questões e outras possibilidades de habitar o corpo. “Eu fui criada pela minha família para não pensar sobre isso”, ela diz. Quando Michelle sai do Brasil para viver no exterior percebe e experimenta diferenças culturais e uma escala sem fim de estereótipos sobre o corpo negro que, na volta para São Paulo, trazem diversas indagações. Assim, questões relacionadas à racialização do corpo aparecem de modo latente em sua vida e, pouco a pouco, ganham contorno em seus trabalhos: E aí quando eu saio de São Paulo e volto de novo eu vejo todos esses questionamentos que o movimento negro trazia que para mim não fazia efeito (...) Aí surge uma revolta, pois fiz tudo para ser uma ‘pessoa de bem’ dentro das expectativas sociais e de repente era nada.
No ano de 2012, Michelle se torna Musa de dois coletivos importantes na cena artística brasileira: coletivo GIA, da Bahia,
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e coletivo Opavivará, do Rio de Janeiro. Ser musa lhe concede participações especiais nas intervenções públicas dos coletivos como, por exemplo, distribuir marmitas ao público na abertura para convidados da Bienal de São Paulo, trabalho realizado em conjunto com o Opavivará. Do Sudeste em diáspora para o Nordeste, Michelle acessa uma elite da arte contemporânea da cidade de Salvador e passa a integrá-la, ainda que de modo marginal, “A Musa é uma negação, eu nego ser Musa, mas ali eu aceito para poder entrar. Eu aceito para poder distorcer e negar totalmente tudo isso”. Ao chegar na Bahia, estabelece residência no bairro de Santo Antônio Além do Carmo, centro histórico intelectualizado ocupado por artistas e permeado por um contexto político alternativo, embora seja, ao mesmo tempo, precário. Perambulando pelos becos de seu bairro, o olhar de Michelle vasculha um pequeno número de sinais. Indícios reais das fronteiras que partem a cidade: recai sobre o corpo negro a precariedade de habitar as ruas. O trânsito de corpos e o acesso aos territórios nunca foi possibilidade irrestrita para todos. Ao se perguntar quem são as pessoas que a representam e que lugar elas ocupam no fluxo da cidade, Michelle percebe que seus pares são aqueles que “estão sempre no lugar do açoite, no lugar do subalterno, sempre pedindo uma moeda, estão sempre semi-nuas na rua, estão sempre no lugar mais desgraçado”. Nesse balanço de inquietudes, Michelle lança perguntas que se conectam definitivamente ao seu trabalho artístico. O começo de sua composição com performance foi definido na faculdade, espaço de criação artística por excelência, estabelecido como o lugar irrefutável da formação em artes. Esses marcos canônicos não fizeram sentido para Michelle, que buscou na performance uma possibilidade de feitura artística que a deslocasse das tradicionais representações do ofício. A escolha pelo uso do corpo decorre de um fracasso com a instituição artística e com a representação das artes cênicas, apostas pelas quais Michelle afirma não poder disputar no interior da estrutura que constitui seus fluxos de mercado. Operar dentro do fracasso da arte significa abraçar a rua como zona de produção, trabalhar sem ateliê, apostar em espaços desinstitucionalizados, romper com a linguagem cênica, mas ao mesmo tempo usá-la sem nenhum compromisso ou respeito em relação ao que seria rigorosamente adequado. “Para mim, performance é justamente isso: a minha desculpa para viver o
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fracasso”, ela me conta. No jogo das ambivalências, Michelle tece produções criativas através de um uso específico do próprio corpo. Em uma altura imprecisa de nossa conversa, falo principalmente sobre sua relação com a cena pós-pornográfica e com as manifestações queer no campo da performance. Michelle não vacila em afirmar que seu envolvimento com essas linhas de experimentação só pode se dar a partir de um movimento de negação: “Eu fico me vendo dentro desses espaços, e eu me aproximo deles por negação”. Ao localizar um tipo de prática e produção discursiva sobre modos de vida dissidentes que “vem de um lugar europeu”, Michelle reivindica para seus trabalhos uma marca irrevogável do lugar de fala que tanto custou construir para si. É essa dimensão de mulher negra sudaca que ela tangencia, perpassando as ruínas da colonialidade, para elaborar sua própria narrativa sobre os processos históricos de assujeitamento e embranquecimento traçados de forma concreta em seu corpo. “Eu já alisei cabelo, eu nasci embranquecida. Por isso que meu trabalho é violento para caralho. Porque eu preciso liberar a violência que recebo”. Negar uma filiação ou pertencimento a movimentos do Norte Global, como as ondas de performances queer e póspornô, ao mesmo tempo em que habita esses espaços em posição ambivalente, implica provocar ressentimento no modo pelo qual tais produções inscrevem suas propostas de desestabilização corporal, revisando o exercício de poder da supremacia branca em função de seus privilégios geopolíticos de pertencimento. Por isso, Michelle reivindica penetrar esses espaços para distorcer sua estrutura. “Eu não vou entrar nesses espaços e ser pacificada, com esse discurso de ‘vamos empoderar’ só para ficar pacificada. Não, não!”, a branquitude se torna alvo de crítica sobretudo na performance “Merci Beaucoup, Blanco!”, na qual as práticas artísticas ganham outros contornos ao serem reescritas na cena brasileira. Cidade de Malmö, Suécia. “Merci Beaucoup, Blanco!”. Muito obrigado, branco. Como cenário, um palco totalmente escuro, com um pequeno banco giratório, uma lata de tinta branca e um pincel. Michelle invade a cena sem roupa, com o corpo nu em pelo, montada em um salto alto, tendo a boca tapada por um pedaço de metal colocado na frente do rosto e preso detrás da cabeça por meio de duas cordas. Extensamente usada no período colonial com intenção
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de impedir a ingestão de alimentos, bebidas ou objetos de valor, a “máscara de flandres” submetia pessoas escravizadas à privação, dor e humilhação, sendo implementada como instrumento concreto de um projeto brutal de conquista e dominação. No seu livro “Plantation Memories: Episodes of Everyday Racism”, a escritora e artista interdisciplinar Grada Kilomba narra, a partir de uma memória familiar, o uso da máscara como um instrumento de tortura inseparável das políticas coloniais de silenciamento do corpo negro. A boca enquanto lugar de enunciação e de fala por excelência torna-se, por esse motivo, o principal órgão a ser controlado e repreendido pelas pessoas brancas. De tal modo, a boca também serve como uma metáfora para a posse. Na fantasia branca, supõe-se que o sujeito negro ambiciona possuir algo que pertence ao senhor branco – os frutos, a cana-de-açúcar, o ouro –, forçando um movimento que intenciona desapropriar o mestre de seus bens (Kilomba, 2010). Representando o colonialismo em sua plenitude, a “máscara do silenciamento” tinha como principal função implementar um senso de mudez e de medo. Caso a boca dos negros escravizados não estivesse tapada e o silêncio cedesse lugar à fala, o que poderia ter acontecido? Tal dispositivo de metal teria como função impedir a fala, fechar a boca, guardar a verdade a respeito de uma incômoda relação de violência cuja base foi o apagamento da voz dos sujeitos negros para a ascensão de uma fantasia branca de poder. É a respeito dessa memória viva enterrada que Michelle Mattiuzzi ousa contar em sua performance. No momento em que a máscara é retirada da boca, a ação performática desponta. A cada pincelada de tinta em seu corpo, Michelle evidencia como a branquitude só existe através de um processo de negação de um outro definido como racialmente diferente de si. A dor de se encontrar presa nessa ordem colonial reflete o impacto corporal de um imaginário branco que evita a todo custo uma confrontação desconfortável com as verdades do outro. Ao pintar seu corpo nu de branco, Michelle traz para a cena uma série de incômodos: Eu comecei a pensar nesses constrangimentos. [Na performance,] esse corpo nu vai ter que fazer situações constrangedoras que o outro que vai estar vendo esse corpo nu, ele vai se constranger. Então as posições que eu escolho fazer com o corpo nu é um lugar
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de provocação e constrangimento para o outro.
Nesse momento, a artista reverte a posição de enunciação ao posicionar o corpo branco no lugar do outro, do diferente em relação a um eu negro como medida da alteridade. É como se ela apontasse o dedo para cada pessoa branca da plateia dizendo – o racismo é um problema de vocês –, interrogando a aparente neutralidade e falta de reconhecimento da identidade branca na perpetuação de uma hierarquia racial. Desta forma, a performance sugere que a opressão racial não é uma vicissitude na qual apenas as pessoas “oprimidas” estão implicadas. Expor a branquitude enquanto modelo universal de construção racializada sobre o corpo desvela uma espécie de pacto, de acordo tácito entre um grupo de pessoas que não precisam reconhecer suas diferentes dimensões de privilégio como parte essencial na permanência das desigualdades raciais no Brasil. Se, por um lado, Gayatri C. Spivak (2010) conclui que o subalterno não pode falar, referindo-se ao fato de que a fala de grupos marginalizados ou oprimidos é sempre intermediada por uma voz hegemônica que se coloca em posição de reivindicar algo em nome do outro, de modo complementar, Kilomba (2010) mostra como os atos de falar e silenciar emergem de um projeto político bastante semelhante. Nesta dialética, alguém só pode falar quando sua voz é ouvida, estabelecendo assim uma negociação entre o sujeito que escuta e o sujeito que fala. A máscara utilizada no início da performance de Michelle simboliza este projeto de silenciamento que busca controlar a possibilidade de que corpos não-brancos possam falar e, consequentemente, sejam ouvidos. São aproximadamente vinte minutos de performance. Na ação de pintar-se de branco, Michelle vai compondo imagens com o corpo em movimento em um gesto mínimo que pouco a pouco adquire intensidade. Uma série de posições sensuais e provocativas envolvem aquele sexo agora travestido de branco, as mãos acariciam seus seios e coxas até adentrarem seus orifícios não penetrados pela tinta. Da cavidade vaginal, retira um extenso colar de pérolas que esteve presente durante toda a ação e, no final, arranca um texto escrito2 em um pedaço de papel: “Qué ficar bunitu?”. O fragmento descreve os serviços que um salão imaginário oferece 2
Texto do artista Paulo Nazareth.
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para embelezar seus clientes: alisamento de cabelo, clareamento de pele, estreitamento de nariz, etc. Desde sua concepção, “Merci Beaucoup, Blanco!” foi apresentada inúmeras vezes. Em uma das primeiras execuções da performance, a interpretação do texto não sofreu nenhum tipo de tradução ainda que estivesse sendo exibido na Suécia. “Eu leio em português, bem garota. Quem não entendeu, vai no Google. Vai se virando aí, eu também tô me virando aqui com o inglês”, me diz Michelle gargalhando. Em março de 2016, seu apartamento é acidentalmente queimado por incidência de um curto-circuito devido à má manutenção do sistema público de energia elétrica no centro de Salvador. Enquanto o apartamento se torna ruína, Michelle está no mar. “Eu poderia ter morrido, poderia estar toda queimada porque com certeza eu ia ficar tentando apagar o fogo em relação às minhas coisas. Queimou, acabou, não tem mais nada. E o nada tá aqui”. De repente, o impacto de perder tudo o que havia acumulado na sua casa, materializações de tempos dilatados, e perceber que ainda está viva, que seu corpo perdura no presente. Caminhando entre as ruínas concretas de seu apartamento, Michelle escava memórias e afetos que permanecem enterrados ao abrigo dos escombros. A ruína que importa aqui não é apenas a destruição efetiva de todas as suas coisas, mas a precariedade agravada em consequência dessa situação de perda. Revendo nossa conversa para a elaboração deste texto, me deparo com a seguinte frase de Michelle: “A ruína do que é a colonialidade me coloca como um corpo de fracasso, um corpo de subalternidade, um corpo que não é pra viver, praticamente, é um corpo para definhar”. Impossível não traçar um paralelo entre os resíduos de violações e destruições deixados pela colonização e o episódio trágico na vida de Michelle. As ruínas de sua subjetividade, como efeito de uma ressaca devastadora após um evento crítico, ganham sentido na busca de instrumentos para uma recomposição pessoal. Ela me pergunta como lidar com esse drama de uma maneira que inevitavelmente não a deprima. Medito ideias soltas e permaneço em silêncio. Como bem disse Jota Mombaça no artigo The Embodied Margins (2016b), o posicionamento de Michelle em relação a suas ruínas é de preservá-las ao máximo, aprender com elas, reconhecer os danos e, em um movimento quase poético, extrair forças para traçar outras perspectivas. Deste modo, a ruína torna-se
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corpo precisamente no gesto de escavar feridas íntimas circunscritas por um conjunto de violências sofridas nos processos históricos de colonização. Refletindo sobre o que mobiliza essas experiências, tanto no nível pessoal como em seus trabalhos de performance, se é que posso distinguir esses dois planos com precisão, Michelle reivindica o lugar da dor como um trajeto possível para a cura de questões que se transpõem no tempo. Verás que um filho teu não foge à luta RIO - Num intervalo de sete meses no ano passado, o professor e performer Kleper Reis, de 31 anos, foi vítima de duas agressões físicas motivadas pela homofobia, que o levaram a crises de pânico e o forçaram até a mudar de endereço. Na primeira, três amigos e ele foram espancados por cerca de 20 homens na Lapa. Na segunda, Kleper e seu companheiro deixavam uma festa em Pedra de Guaratiba quando foram abordados por dois homens, um deles com um pedaço de madeira na mão. Eles arrancaram a saia que o professor vestia, aos gritos de que ali homem não andava daquele jeito.3
A escrita deste texto está povoada por memórias de encontros e pequenas histórias. Abro essa passagem com a matéria de jornal sobre o espancamento homofóbico sofrido por Kleper e seus amigos, que eu talvez não pudesse recontar sem dissimular sentimentos mistos de raiva e pavor. No mesmo movimento, ele me conta sobre essas violências como algo disparador para a tessitura de seus trabalhos acerca do corpo, ou “tecnologias de vida”, maneira como Kleper delicadamente elabora suas imersões de criação cotidianas. O temor da agressão covarde e as marcas rasgadas nesse corpo de bicha mestiça do Nordeste vivendo na cidade do Rio de Janeiro convergem em processos de isolamento, alimentação viva, jejum e zonas de silêncio. Pouco a pouco, os aniquilamentos profundos de quem apanhou e tem medo da rua cedem espaço para as composições de um corpo em cura. Trecho da matéria do Jornal O Globo de 27/07/2013. http://oglobo.globo.com/rio/ homofobia-odio-que-cresce-sombra-da-impunidade-9224591#ixzz4JKNEOT6d. Acesso em agos. 2018. 3
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Conheci Kleper por intermédio de um relato contado por uma amiga no ano de 2013. No decorrer de uma festa que acontecia atrás do instituto no qual conclui minha graduação, em uma praça pública situada entre o colonial prédio do Real Gabinete Português e a estátua de D. Pedro I, Kleper enfia a bandeira do Brasil no cu enquanto executa o hasteamento do símbolo nacional em cima de uma enorme cruz fincada no centro da cidade, sustentando com rebolados cadenciados a constelação do cruzeiro do sul e a imponente ordem e progresso cravada em sua bunda ao som do hino cantado por Vanusa.4 Dois anos se passam e estou em outra festa. Me dou conta, como em uma experiência de retorno quase palpável a algo que não vivi, que assisto a mesma performance de Kleper que me foi narrada com minúcia há algum tempo atrás. Prestando atenção ao entorno, procuro rapidamente afastar as pessoas da minha frente para conseguir ver com mais horizonte a execução amariconada do hasteamento. A costura da continuação que me vem à memória conduz imprecisamente para meu primeiro encontro com Kleper, resultando numa conversa de poucas palavras entrecortada pelo barulho da festa. O hasteamento da bandeira faz parte de um projeto maior chamado “Cu é lindo”, que se estende por capítulos e versículos em forma de pichação e pintura nos muros da cidade. Sobre o hasteamento, performance realizada após os reflexos do primeiro espancamento, Kleper, filho de pai militar e mãe evangélica, me conta que busca pensar as violências infligidas ao corpo desde sua infância, quando ainda garoto vivia com os pais e irmãos em uma vila militar no estado de Natal, Rio Grande do Norte. Tem a dimensão desse ato de amor, desse casamento entre a religiosidade e o Estado. A questão do Estado, da coisa do meu pai militar, de um nacionalismo muito forte com a coisa da religiosidade, minha mãe é muito evangélica. Essa coisa sensual na cruz e a bandeira no cu, esfregando o pau. Tem toda a dimensão desse casamento e têm essas memórias da infância (...) O que acontece: quando eu nasci, comecei a me entender no mundo, fui crescendo... eu sempre me identifiquei com o universo feminino.
A cantora Vanusa faz uma apresentação desastrosa ao cantar o hino nacional na Assembleia Legislativa de São Paulo. https://www.youtube.com/watch?v=lOhJ-TIKTg. Acesso em agos. 2018. 4
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Eu queria andar como menina, vestir roupa de menina, e gostava muito de planta, de bicho. Eu sofri muita violência quando criança, muita repressão, eu cresci numa vila militar, então eu apanhei muito nessa vila militar dos outros meninos que eram tudo machinho.
Ao mapear a trajetória de Kleper, sua infância compartilhada com os pais e as principais questões em diálogo com a presença da religiosidade materna nas suas performances, percebe-se, por um lado, sua crítica aos códigos morais do conservadorismo religioso e, por outro, a legitimação por parte do Estado a uma série de interdições impostas no plano da sexualidade, da feminilidade e do corpo. Assim, a performance desloca o discurso religioso do lugar da transcendência, como uma espécie de reino metafísico abstrato, para enfatizar seus desdobramentos no plano da imanência, ou seja, na experiência humana de habitar o mundo. O que Kleper denuncia são os efeitos de numerosos dogmas e condenações sobre condutas consideradas desviantes pela Igreja, que não apenas maldiz prazeres dissidentes, relações homossexuais e pessoas transgêneras, como também afirma publicamente que as mesmas são o mal da humanidade, uma deturpação do ser humano e uma ameaça ao heterofuturo.5 A sexualidade renegada pelas regras morais religiosas volta encarnada na erotização da cruz para reivindicar a existência de corpos, desejos e gêneros em dissonância com a normatividade hétero e com o pensamento conservador. Em território conquistado e colonizado por uma moral cristã com amplitude nas mais longínquas dimensões da vida, o hasteamento da bandeira na cruz ativa um processo de profanação do sagrado, misturando elementos religiosos e eróticos para expurgação do empreendimento de cristianização sobre o corpo de Kleper. Ao fazer uso de uma dimensão pornográfica como tática de subversão e deboche da ordem social, tal projeto vai ao encontro de uma tradição performática latino-americana anterior, como o polêmico trabalho de Marcia X. ou a apropriação da imagem da Proponho a categoria heterofuturo para me referir à retórica de família, reprodução e heteronormatividade sob a qual a civilização ocidental está fundada. O problema do futuro, que Lee Edelman (2004) evidencia claramente no livro No Future: Queer Theory and the Death Drive, é que quando pensado como desenvolvimento linear e coerente do passado e do presente, monopoliza a imaginação política, impedindo de ressignificar de maneira criativa conceitos como comunidade ou parentesco. 5
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Virgem de Guadalupe por artistas feministas chicanas. A trajetória artística de Marcia X. é marcada por censuras. A última delas, em abril de 2006, ocorre em função da obra “Desenhando com terços”, na qual a artista realiza desenhos de pênis com terços no chão. A obra foi considerada ofensiva por misturar religião e erotismo e, após diversas manifestações de católicos, finalmente retirada da mostra “Erótica – Os sentidos na arte”, exibida no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro. Esta tradição encontra na blasfêmia uma estratégia política e estética de questionamento da moral sexual cristã no contexto latino-americano. Neste caso, a blasfêmia, o insulto a algo divino ou sagrado, cria lugares de enunciação a partir da reprovação ao conservadorismo religioso que opõe o sagrado às dimensões mais ordinárias da vida, especialmente à sexualidade. A violência que ritmou incansavelmente todo o arranjo colonial vem à tona na representação da cruz, um dos símbolos de domínio durante o projeto de expansão dos jesuítas nas Américas. No ato de cruzar fronteiras proibidas capazes de macular o objeto sagrado, o trabalho de Kleper propõe outro sentido ao valor monástico da cruz por ironicamente conjugar religião e sexualidade. Ao destituir o caráter sagrado do objeto religioso, utilizando-o em uma interação erótica com seu corpo, Kleper profana a valorização cristã do auto-controle, da culpa e da contenção através de uma paródia exagerada da libertinagem e do embaralhamento entre múltiplos elementos, como a bandeira do Brasil representando a pátria, o Estado e sua associação pouco discreta com o fundamentalismo religioso. Pouco a pouco, o desconforto causado pelo deboche aos códigos morais cristãos cede lugar ao entendimento da opressão que o discurso religioso habitualmente suscita a esse corpo de bicha sudaca submetido a históricas violências de colonização e catequização (Sarmet, 2015) Longe das narrativas festivas de liberação sexual exaltadas pelas políticas anais, “Cu é lindo” busca revelar as forças que inscrevem sobre determinados corpos uma combinação das marcas indistintas de exotismo, ódio, desejo e vigilância. Se o corpo é a superfície marcada pelos acontecimentos de uma vida, o registro da experiência de “Cu é lindo” nasce de um drama, desponta de uma sequência de evocações da dor na trajetória desse indivíduo. Este processo autobiográfico desperta com o impulso do dia em que Kleper vai para a rua trajando uma saia e, no caminho de volta, é
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agredido e insultado verbalmente. Chegando em casa sufocado, se retira para o quarto e pinta na parede a frase: cu é lindo.
Me tranquei no quarto e escrevi num momento que não sei nem explicar exatamente o surgimento dessa imagem. Mas é uma imagem que tá possuída de dor, de sofrimento. Na verdade, o cu é lindo não tem nada de bonito, é muita dor, velho (...) Meu corpo foi construído na base da violência. Eu apanhei muito na rua, fui muito humilhado no colégio. É um processo de vida que nunca acabou. Nunca acabou! Nunca deixaram de me bater, desde muito pequeno até... Só em 2012 eu fui espancado duas vezes. Então, são trinta anos de história de porrada e eu tenho muitas marcas de medo.
Um corpo impresso de um sem-número de violências que cria para si pequenas ações para enfrentar o medo dessa ferida histórica. “A horta me ensina muito”, ele me diz. Observo sua horta no exterior da casa, a germinação das sementes através da técnica de compostagem de sua própria merda. Elaboro essa passagem excrementícia enquanto momento de abertura no qual o interno devém externo, borrando com ironia a frágil fronteira que reveste e assegura a impermeabilidade dos corpos dotados de coerência dentro da matriz heterossexual (Butler, 2003). Tal fissura forçosamente nos recorda que alguns modos de permeabilidade corporal invalidados pela ordem hegemônica constituem, nesse sentido, um lugar ameaçador ao evidenciar a luta pela inalcançável estabilidade que pressupõe tal corpo provido de coerência. Consequentemente, a elaboração de contornos corporais estáveis repousa sobre zonas mediadas por fronteiras reguladoras de sua própria permeabilidade. Diante da iminência de perigo anunciada nos persistentes assédios e ataques homofóbicos, Kleper rebate com o perigo que as fronteiras permeáveis de seu corpo, em particular, representam para o regime heterossexual. Pensar o cu como uma das fronteiras do corpo, e reivindicá-la como potencialmente penetrável ao deslocála de seu locus exclusivamente abjeto, sugestiona a vulnerabilidade dos sistemas que regulam e demarcam os lugares somáticos de poluição e perigo. Em relação a outras zonas corporais, o cu só pode ser considerado poluído e poluidor se for tomado como constitutivo do sistema simbólico heterossexual. Mary Douglas (1976) afirma que sujeira é, essencialmente, desordem. A sujeira do cu pode ser pensada, a partir de Douglas, como subproduto de uma
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ordenação e classificação sistemática da heteropartição do corpo e do estabelecimento de determinados órgãos como inteligíveis para o uso do sexo, do desejo e do prazer. O orifício de Kleper, cuja permeabilidade escapa à validação da norma, denuncia a construção de um modelo corporal regido pela exclusão e negação da porosidade de seus contornos. Em outras palavras, ele contradiz um corpo marcado por ausências e camadas estancadas. Judith Butler (2003) afirma que o corpo não é um “ser”, mas precisamente uma fronteira variável, uma superfície politicamente regulada através de sua permeabilidade. No momento em que Kleper reinscreve a fronteira de seu orifício anal ao dramatizar sua unidade fabricada, tanto em suas performances e penetrações públicas como em práticas cotidianas – ou “tecnologias de vida”, sejam elas eróticas ou excrementícias –, ele produz para si uma desagregação corporal capaz de deslizar na ficção reguladora de adequação hétero. Em setembro de 2015, aconteceu na cidade de Salvador, Bahia, o II Seminário Internacional Desfazendo Gênero. Com uma programação intensa ao longo de quatro dias integrados por simpósios, palestras e minicursos, o seminário teve como objetivo celebrar a aliança entre teoria e prática com o tema “ativismo das dissidências sexuais e de gênero”. Compondo a numerosa lista de oficinas oferecidas, o primeiro dia de seminário trouxe a ativista espanhola Diana Torres e suas práticas pornoterroristas. O espaço da oficina é uma sala fechada dentro da Universidade Federal da Bahia. Chego atrasada e de imediato localizo muitas pessoas conhecidas e amigos, percorro cada um dos rostos e logo distingo o de Kleper sentado na minha direção. Diana fala lentamente, se esforçando para que seu castelhano seja compreensível aos nossos ouvidos. Algumas pessoas arriscam fazer uma tradução improvisada. A proposta da oficina é descomplicada: cada uma de nós deve escrever no papel um medo bem assombroso e depois compartilhá-lo coletivamente. A partir da exposição dos medos, pensaríamos uma performance onde todos pudessem colaborar de alguma maneira. Entre segredos, confissões e zonas cinzentas, vamos tecendo com nossos próprios corpos em sintonia uma expurgação pública dos mais íntimos temores. Um rápido intervalo é proposto por Diana, que logo em seguida convida todos para descer até o pátio externo do campus.
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Concordamos com a ideia, afinal, fazia calor no interior da abafada sala universitária. Aos poucos, as pessoas vão se instalando no gramado e tirando suas roupas sem pretensão. Completamente nus, sentamos em círculo debatendo como seria a performance, programada para a noite do dia seguinte em uma rua nas imediações da Universidade. Entretida com o excitante clima de proposição, não me dou conta que um grupo numeroso de pessoas nos cerca pelas costas, registrando cada detalhe do acontecimento em seus celulares como se assistissem a um espetáculo. Percebo a situação no momento em que Diana levanta, visivelmente incomodada, e pede para que eles parem de fotografar nossos corpos nus sem autorização. Interrompemos a oficina lançando um olhar de desinteresse para aquelas pessoas que, em uma mistura de voyeurismo erótico e aversão, riem e fazem piadas sobre nossos corpos tão à vontade espalhados pela grama. No dia seguinte, uma das manchetes estampadas em quatro dos principais jornais do Estado da Bahia anuncia com surpresa: “Estudantes são flagrados assistindo palestra pelados na UFBA”. Fatalmente, as fotos vazaram e foram expostas no Facebook, criando “burburinho nas redes sociais”, conforme informa a matéria. Na postagem que veio à tona, a pessoa se mostra escandalizada com a situação e questiona o motivo da nudez explícita no pavilhão de aulas. Manifestando total desaprovação, o texto dispara: “Só falta afirmar que estão gastando a grana suada e sagrada do contribuinte pagando bolsas de ‘pesquisa’ a essa galera. Esse povo não tem mais o que inventar”. No momento em que caíram na Internet e se multiplicaram viralmente, as fotos da ação serviram de inspiração para o arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba, Dom Eduardo Benes de Sales, escrever sobre a vergonha e o perigo da ideologia de gênero no imaginário das crianças, localizando o pornoterrorismo como um instrumento repugnante de destruição de símbolos cristãos. O arcebispo se mostra preocupado: Por sentir vergonha de publicar outras fotos que esclarecem um pouco mais o que significa pornoterrorismo, apenas sugiro que você as encontre na internet pesquisando; “Pornoterrorismo, Diana J. Torres”. (Clique em Imagens, mas prepare seu estômago). E cuide bem de seus filhos.6
Para ler a matéria completa: http://www.jornalcruzeiro.com.br/materia/643558/ pornoterrorismo. Acesso em 20 jan. 2017. 6
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Fazia tempo que Kleper desejava produzir uma intervenção do “Cu é lindo” versão culetiva, como ele gosta de brincar. Em colaboração com Diana Torres e os demais participantes da oficina, ele concretiza sua ideia em uma foto. Na verdade, trata-se de uma recordação para todos aqueles que, perturbados diante de nossos corpos nus, não obtiveram sucesso em nos constranger. Algumas pessoas agachadas acomodam-se de quatro na grama, outras inclusive afastam suas nádegas com a ajuda das mãos. Assim, formamos uma fileira de corpos sem troncos, apenas pernas e bundas oferecidas ao olhar atento da plateia improvisada. Na parede ao fundo pode-se ler em fonte rosa fúcsia a sentença: cu é lindo e geralmente tem cabelo. Expondo os cus a céu aberto na presença de eventuais voyeurs, nossos corpos encenam uma espécie de conquista e sexualização de um espaço restrito a determinados usos, colocando em prática uma estratégia de reviravolta das fantasias regulatórias que separam o público do privado.
Oficina de Pornoterrorismo com Diana Torres. Intervenção realizada por Kleper Reis e colaboradores durante o Seminário Internacional Desfazendo Gênero em Salvador, 2015.
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Rumo a uma ética menor Tentei evidenciar, por meio de violências sofridas a contragosto, a vulnerabilidade que atravessa a construção dos corpos aqui narrados. Situações de exclusão e violência sistêmica compõem parte da vida diária de pessoas trans, sapatonas e bichas, principalmente as racializadas e empobrecidas, assim como outros corpos dissidentes sexuais e desobedientes de gênero. Nesse sentido, a violência sexual e de gênero funciona para lembrar que os corpos dissidentes perturbam as normas sociais ao traírem a permeabilidade das próprias fronteiras e categorias que mantêm essa visão de mundo (Mason, 2002). Dito de outro modo, a violência pode ser lida como lembrança e reforço das regras rompidas pelos modos de vida nãonormativos. Como Jota Mombaça (2016) propõe, nomear a norma seria o primeiro passo para desmantelar esse monopólio irrestrito da brutalidade que se abate sobre nossos corpos. Principalmente porque deve-se entender que a norma é aquilo que não se nomeia e é nisso que consiste o seu privilégio. Ao marcar a branquitude, a colonialidade, a heterossexualidade e as tradições cristãs como parte de um projeto histórico de assujeitamento, tentei deslocar essas posições de seu conforto ontológico insuspeito, expondo os mecanismos que asseguram o seu funcionamento e garantem suas técnicas de poder. Minha escolha por manifestações artísticas contemporâneas no campo da performance tem a ver com a utilização do corpo como matéria e suporte de investigação e exploração da ordem social. Os atos corporais disruptivos de Michelle e Kleper visibilizam a vulnerabilidade de seus corpos, disparando uma tomada de reconhecimento do caráter precário impresso sobre suas vidas. Julia Kristeva (1988 apud Seligmann-Silva & Nestrovski, 2000) aponta que onde não é mais possível representar, o que resta é a experiência da ferida. Não é preciso passar por uma violência para reconhecer as contingências traumáticas dessa experiência. Os acontecimentos na vida de Kleper e Michelle deixaram marcas profundas. Aproximandome do pensamento de Seligmann-Silva (2000), mostro como as performances narradas buscam expor, através do contato com o real, as violências às quais esses sujeitos veem sendo submetidos ao longo de suas vidas. Seja na repetição das pinceladas de tinta branca espalhadas pelo corpo, nas pérolas arrancadas de dentro da
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vagina, ou na bandeira do Brasil cravada no cu e hasteada na cruz, a representação da violência imputada em vida e evocada nos atos performáticos provoca uma retomada da memória da carne como forma política de resistir às experiências de sofrimento. É certo que o monopólio da violência não se configura apenas pelo controle efetivo de ferramentas e dispositivos para performá-la, mas acima de tudo pelo manejo sobre os limites de sua definição. Talvez a olhos desavisados, as performances de Kleper e Michelle possam chocar por manifestar um certo grau de ferocidade – que muitos vão enquadrar como uma expressão proponente de violência. No entanto, o que pode ser reconhecido em ambas as experiências partilhadas é a tentativa de devolução, como um presente a contragosto, das sistemáticas violências sofridas ao longo de suas vidas. O uso da raiva como resposta às violências que formam parte inevitável e estruturalmente integral da configuração social pode fazer sentido para aquelas pessoas que nunca tiveram a possibilidade de diálogo como opção. Constitui uma virada reflexiva o entendimento de que “há formas de violência que estão destinadas a se contrapor ou a deter outras violências” (Butler, 2015, p. 235) – e que esses dois tipos de manifestação estão, fatalmente, em diferentes graus de perspectiva. A partir do momento que Michelle retira a máscara do silêncio em sua performance, aquele corpo que foi historicamente emudecido pelas políticas coloniais assume o lugar de enunciação para proferir seu desacato mais indomável. Me lembro de um episódio narrado pela escritora negra e lésbica Audre Lorde (1984) no livro Sister Outsider. Em uma situação vivida ainda na infância, a escritora conta que está com sua mãe no metrô a caminho do Harlem em pleno inverno, o trem cheio balança em alta velocidade e de repente sua mãe a empurra de golpe para que ocupe o assento há pouco vago. De um lado do banco, um homem lê os jornais. De outro, uma mulher com um casaco de pele a olha fixamente. Sua boca se contrai enquanto a luva de couro puxa seu casaco lustroso para perto de si. Lorde pensa que a mulher vê algo terrível no assento entre as duas – provavelmente uma barata. Acompanhando a mirada, a criança não consegue notar qualquer coisa terrível no assento, mas a mulher comunica seu horror. Deve ser algo muito ruim pelo jeito que ela está olhando. De repente, Lorde percebe que não há nada rastejando no assento entre elas, e entende que a mulher não quer
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que seu casaco de pele a toque. Nenhuma palavra é dita. Lorde tem medo de demonstrar qualquer coisa à sua mãe por não saber o que havia feito. Olha secretamente para sua roupa de inverno. Será que há algo nela? Alguma coisa acontece e ela não entende, mas nunca esquecerá. Os olhos daquela mulher, as narinas abertas em repulsa. O ódio. Para Lorde, falar sobre a intensidade da raiva das mulheres negras é antes falar sobre o ódio venenoso que alimenta essa raiva e sobre como suas vidas foram profundamente marcadas por crueldades muito antes de saberem de onde procedia tamanha ira. Ao defender o uso legítimo da raiva como resposta ao racismo, Lorde retorna às pessoas brancas o horror da exclusão, do privilégio inquestionável, dos silêncios e dos inúmeros maltratos sofridos. Vejo as performances narradas não somente enquanto possibilidade de representação artística, mas igualmente como alternativa de partilha de modos de existência que se colocam em risco quando anunciam sua própria visibilidade. As ações performáticas tensionam, no limite, quais são os corpos que podem ser visíveis sem que paire sobre eles a força da violência nas relações sociais. A performance de Kleper notoriamente confronta esta impetuosa dimensão do poder. A partir das marcas deixadas por agressões homofóbicas sofridas na rua, é possível compreender como determinadas dinâmicas da heteronormatividade são capazes de produzir a precariedade de algumas vidas e a integridade de outras. A violência homofóbica, dentre outras expressões de hostilidade, é uma forma de inferiorizar e desumanizar os sujeitos que vivem práticas sexuais e afetivas fora da heterossexualidade e que manifestam performances de gênero distintas aos padrões hegemônicos de masculinidade e feminilidade. Em uma releitura de Monique Wittig, Butler (2003) propõe o conceito de matriz heterossexual como uma formulação fundamentada no suposto alinhamento entre sexo, gênero e desejo, e implicada na pressuposição da heterossexualidade como princípio dado da estrutura social. A homofobia seria então uma expressão de desconforto moral causado pela ruptura desse alinhamento ou, dito de outro modo, pela provocação da suposta naturalização da ordem do desejo e das posições de gênero (Borrillo, 2010). A violência não é tão somente uma punição justa aplicada a alguns, tampouco uma vingança acertada pelo incômodo de uma existência. Ela delineia uma vulnerabilidade física da qual, segundo
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Butler (2015), não se pode escapar. Porém, afirmo categoricamente que as vulnerabilidades não são nem nunca foram proporcionais. Ao longo da nossa conversa, Michelle denuncia como a violência presente no racismo de Estado funciona nos intervalos da lei ao permitir que parte da população seja livremente assassinada e outra seja ferozmente protegida. A partir da experiência de vulnerabilidade e das diferentes formas de exposição de algumas populações a violências arbitrárias, Michelle demarca precisamente qual é o corpo que está em risco num regime de abusos legais que afeta, sobretudo, a vida de pessoas racializadas: “pergunte a um policial, ele sabe definir pessoas negras”, ela me diz como quem lamenta uma tragédia já anunciada. Judith Butler (2006) também indica um caminho para pensar como a vida pode tomar dimensões de existência e de distribuição de vulnerabilidade física de modo drasticamente diferentes. A autora radicaliza a construção ontológica ocidental ao questionar uma certa concepção restrita do que poderia ser considerado como humano. Quando Butler (2015) reflete sobre os diferentes frames que operam para demarcar as vidas que podemos apreender, em oposição às vidas que não podemos, ela está reivindicando o lugar da ontologia como parte de uma estrutura fundamental na construção do ser, que em nada difere de outras organizações sociais e políticas. A ideia de ontologia não poderia, portanto, existir fora da sua organização e interpretação política pois ela se refere à existência de um determinado corpo circunscrito e entregue aos outros e às normas sociais. Assim, esses frames que atuam na diferenciação das vidas, fabricam também ontologias específicas do sujeito, sendo capazes de reconhecê-lo como uma vida concreta. Se há sujeitos que não são reconhecidos como sujeitos, suas vidas não são reconhecidas como vidas. Com essa sugestão, não existe a possibilidade de determinadas vidas serem perdidas se desde o princípio elas não são apreendidas. As vidas que tocam o extremo da precariedade são designadas como dispensáveis, pessoas que podem ser presas, detidas ou até mesmo mortas ao caminhar na rua (Azevedo, 2016). Retomo mais uma vez as experiências de violência narradas através das performances para chamar atenção a uma ética do cuidado de si através da necessidade de cooperação e aliança com o outro como um modo de tornar a vida mais vivível. Agir em manada, produzindo novos modos de cooperação e coletividade, torna-se estratégia de
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resistência, forma de sobrevivência. As vidas precárias precisam manter em alerta o cuidado de si e do outro. Quando falo em aliança, não pretendo evocar uma identidade comum entre um grupo de pessoas. Seria antes uma proposição de conexão política na afirmação da diferença que não é tão só unificada identitariamente – apesar de reconhecer a relevância das identidades políticas estratégicas. Assim, pensar que outro gesto político é possível implica um modo particular de estar junto e de fazer a minha vida e a vida do outro mais vivível, um movimento que se dá através da transformação da dor da vulnerabilidade em potência de vida. O estar junto, para os modos de vida desgarrados da norma, torna-se necessário e político no sentido de criar outras formas de existir no ordinário. Partindo da leitura de “Ética Marica”, livro de Paco Vidarte (2007), proponho o estabelecimento de uma ética menor como parte constitutiva da singularidade de pertencer a uma coletividade de sujeitos vulneráveis. Aqui, menor não é empregado na acepção quantitativa do termo, mas no modo proposto por Deleuze e Guattari (1997): como princípio de uma praxis política alternativa. O devir-menor se desenvolve no sentido oposto às lógicas organizativas arborescentes dos movimentos políticos tradicionais, uma vez que as linhas de fuga fazem rizoma com o mundo, agenciam outros devires, entrecruzam singularidades para criar territórios políticos e existenciais fugazes, tecem mapas abertos, conectáveis, dobráveis, cartografias suscetíveis de serem modificadas a qualquer momento, por qualquer natureza, contendo múltiplas entradas e múltiplas saídas. Uma ética menor deve recuperar a solidariedade entre aquelas pessoas que são oprimidas, discriminadas e perseguidas pelas forças que servem à manutenção exclusiva de algumas vidas em detrimento de outras. Toda ética que intenciona ser universal é, no fundo, absolutamente particular: é uma ética de classe, de raça, de gênero e de performatividades hegemônicas, de uma maioria que pretende impor um modo de vida a todos ao seu entorno para benefício próprio e em prejuízo àqueles que não pertencem ao seu projeto violento de poder. A fundação ou proclamação de uma ética sempre é uma operação de poder, de opressão, de controle social. Exceto talvez no caso de que dita ética sirva aos interesses de um devir-minoritário, então sua proposta ética será uma ética do cuidado, uma ética libertária, uma ética de luta contra situações de
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subalternidade e privilégios alheios. Às voltas com essa vivência ética, seria preciso recuperar o corpo naquilo que lhe é mais particular, na sua dor, no seu encontro com o outro e na sua possibilidade de ser afetado como uma maneira de construir uma contra-narrativa ao poder sobre a vida. Talvez seja questão de tratar a vulnerabilidade precisamente como algo que antecede as ruínas que intitulam esta escrita. A vulnerabilidade ocupa esse lugar que oscila entre o desmoronamento total de uma condição que ainda está, por assim dizer, inteira. Seria esse justo meio que se mantém em suspensão, em frágil equilíbrio, e que possibilita estabelecer uma conexão com a transitoriedade do corpo. O entendimento de que uma vida é vulnerável, passível de dano ou que pode ser perdida a qualquer momento implica remarcar a sua finitude e também sua precariedade. Tal precariedade demanda, em certo sentido, encarar o fato de que as nossas vidas estão sempre expostas aos outros, entregues nas mãos dos outros e que essa revelação afeta a todos. O corpo pressupõe mortalidade, vulnerabilidade e, de algum modo, todos nós vivemos com essa particular ameaça de dano. Partilhamos essa condição de precariedade, ainda que algumas de nós sejam mais precárias que outras. É um gesto ético fundamental, portanto, reconhecer as diferentes condições de precariedade que nos atravessam e, a partir desse reconhecimento, transformar essas condições em um trabalho político e existencial de refazer as nossas próprias vidas.
Aleeegreeem-se!!: sabores negros, paladares brancos Samara Freire1 Esse artigo busca refletir sobre a especificidade do trabalho de fazer doces realizado por mulheres negras da comunidade Palenque de San Basílio, localizado no município de Mahates, no departamento2 de Bolívar, na Colômbia, distante 45 quilômetros da capital do estado, Cartagena de Índias. O que me interessa e possibilita essa escrita é a vivência desse tipo de trabalho informal, de mulher negra, de agência, e os desdobramentos dessa experiência. A tentativa é a de acompanhar o movimento das mulheres palenqueras em circulação com os doces e assim pensar nos fluxos, nos deslocamentos, nas interações e nos significados desta atividade em termos de relações de gênero, trabalho, raça e classe social. Assumindo que a raça e o gênero estão inexoravelmente conectados à oportunidade ocupacional (Branch, 2007), pretendo articular como gênero, raça/cor e classe são vivenciadas através dos corpos dessas mulheres; ao final, busco ponderar sobre o entendimento das interlocutoras em torno da especificidade dos seus trabalhos com os doces. San Basílio de Palenque é um território negro rural que foi formado por cimarrones, negros e negras que fugiram do processo escravocrata e foram estabelecer comunidades em territórios distantes. Essa comunidade se destaca por apresentar uma língua própria, um jeito peculiar para lidar com o território; suas famílias são predominantemente endogâmicas; destacam-se em sua lógica interna os ritos fúnebres que somente existem nesta localidade, em que se faz o uso de tambores como forma de evocação da vida e da morte. Ao refletir sobre os meandros da atuação das mulheres negras, em especial as dulceras, moradoras do San Basílio de Palenque, acredito que estas passam a desempenhar papéis e posicionamentos Samara Freire é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1
Departamentos são as regiões político-administrativas nas quais a Colômbia está dividida. A noção é equivalente a “estado”, relativa à divisão do Brasil. 2
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cruciais dentro e fora da comunidade. Esse movimento está inserido numa configuração maior na problematização da luta pela sobrevivência da população negra na América Latina, com um olhar voltado para a peculiaridade do agenciamento das mulheres negras em contextos de luta pela existência social. Embolando Alegrías São oito horas e quarenta minutos da manhã de um domingo ensolarado, numa comunidade negra rural na Colômbia. Ao caminhar pelas ruas de terra batida, já é possível perceber a movimentação de pessoas. São mulheres, homens e crianças que vão para o espaço da rua para providenciar o que é necessário para o dia. Saem para comprar mantimentos, trabalhar, visitar familiares. Em uma dessas, percebe-se o intenso fluxo de pessoas, de carros e mercadorias; domingo é um dia, por excelência, de efervescência na localidade. É dia de receber os turistas que chegam para conhecer un rincón de África na Colômbia,3 é dia dos parentes distantes se verem. É dia de festa, bebida e de champeta.4 Na praça principal, nota-se o deslocamento de diversas mulheres palenqueras que vão até os municípios vizinhos para trabalhar e retornam no final do dia para suas casas. Elas trabalham vendendo doces de diferentes tipos, em diversas cidades pela Colômbia e em países fronteiriços. São reconhecidas em Palenque como comerciantes e desbravadoras. Caminhando mais um pouco, às nove horas da manhã, encontro-me na casa de uma comerciante que está prestes a iniciar sua rotina de venda. Ela termina de tomar seu café reforçado, à base de peixe, macaxeira e banana da terra, junto com uma sopa, para logo calçar suas sandálias, passar um óleo corporal nos seus pés e pernas Um pedaço de África na Colômbia, é assim que tanto os moradores locais quanto os meios de comunicação evocam e referenciam a comunidade. 3
Champeta é um ritmo musical presente desde a década de 1960 na região do Caribe colombiano. Ganhou notoriedade nas áreas de concentração da população negra no país, principalmente em Cartagena e Barranquilla, assim como em San Basílio de Palenque. A champeta foi influenciada por meio de diversos gêneros musicais do continente africano. Esse universo musical diaspórico foi ressaltado por Claudia Mosquera e Marion Provenzal (2000) e também por Luis Gerardo Martinez (2011). 4
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e dispor seu avental em sua cintura. Pega a sua porcelana5 carregada de doces e leva alguns instantes para colocá-la sobre sua cabeça. Para aliviar a pressão dos vinte e cinco quilos que ali se equilibram, coloca-se um pedaço de trapo em forma de rodilha antes de alojar a bacia de alumínio. A moto que nos conduzirá até a saída de Palenque já se encontra posicionada em frente à sua casa. A bacia com os doces é disposta na parte dianteira da moto, e na parte de trás a senhora carrega, em uma de suas mãos, o banquinho de plástico que servirá para apoiar os seus produtos em alguns momentos. É chegada a hora de subir na moto e sair de Palenque. A feitura dos doces é a base da renda familiar e, na maioria dos casos, a principal fonte econômica do grupo doméstico. Esta atividade vem de um saber-fazer tradicional das famílias, que é transmitida de geração em geração. A comercialização dos produtos pode ser feita em San Basílio, em outros municípios da Colômbia e até mesmo em países vizinhos, como a Venezuela e o Equador. Em Palenque, as mulheres costumam vender diariamente seus doces pelas ruas e na praça da comunidade; nos municípios que circunscrevem a comunidade, comercializam principalmente nos finais de semana, nos bairros, nos comércios e em escolas; e nas cidades mais distantes elas costumam ficar de um a três meses morando e trabalhando no ofício da venda dos doces, para então retornar os lucros para a comunidade. Para localidades mais distantes viajam e lá residem em grupo de três a sete mulheres. Os produtos elaborados, em sua maioria, são: cocadas brancas (somente com leite), cocadas negras (com leite e rapadura), cocadas de goiaba, cocadas de abacaxi, os doces de mamão, doce de tamarindo, doce de gergelim, bolo de macaxeira, as alegrías (doce à base de milho, coco e rapadura). Há também doces em forma pastosa. São doces cujos componentes principais são o coco, o leite e o açúcar.
Porcelana, palagana e ponchera são sinônimos para se referir às bacias de alumínio usadas por essas mulheres negras palenqueras. 5
118 | (Des)Prazer da norma Los dulces
Nos finais de semana, é possível ver as mulheres em Palenque de saída para trabalhar nos municípios vizinhos, a caminho de Turbaco, Cartagena, Carmen de Bolívar, Sincelejo e Malagana. Até as 10h30 do sábado podemos ver o deslocamento delas para estas localidades. Nas sextas-feiras, como declarou a comerciante La Burgo, em Palenque todas as mulheres que vendem doces estão fazendo os seus: “hoje é dia de embolar alegrías”. As idades dessas empreendedoras variam. Há mulheres que a trabalhar desde os dez anos, outras na adolescência. A maioria é de mulheres que aparentam ter de 20 a 60 anos. Muitas delas são mulheres mais velhas que já têm filhos e netos, ou outras mais jovens que saem para acompanhar suas mães e depois passam a vender sozinhas. A rotina de trabalho começa em casa, ou antes, quando elas saem em direção aos municípios vizinhos a fim de comprar os insumos para os doces. São elas que realizam o trabalho da negociação e compra dos produtos necessários para a feitura destes. Durante a permanência em San Basílio de Palenque, pude acompanhar com proximidade as rotinas de trabalho e venda de três mulheres: Andrea Simarra, Sol Maria e La Burgo. Fora de Palenque (para além da cidade de Turbaco), fui até a cidade de Bucaramanga, no departamento de Santander, e acompanhei as rotinas de outras sete mulheres durante um mês neste outro estado colombiano.
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Andrea (55 anos), La Burgo e Teresita (gêmeas de 54 anos), todas casadas e com filhos, são aquelas poucas mulheres que trabalham vendendo os doces em Palenque e, em algumas ocasiões, quando a venda em Palenque não é satisfatória, saem para exercer seu ofício em municípios vizinhos. Essas três mulheres usualmente trajam vestidos coloridos e turbante nos cabelos como estratégia de venda de seus doces, ofertados aos turistas que diariamente visitam Palenque. No período de meu trabalho de campo, raras vezes as vi vendendo para os palenqueros. O cliente é sempre o outro, de fora; a sua grande maioria é de pessoas brancas de estados colombianos, mas também de países vizinhos, como Argentina, México, Chile, Uruguai e dos Estados Unidos. De vez em quando, presenciam-se pequenos fluxos de turistas negros provenientes deste último país. Casera, ¡cómpreme a mí! Descemos de um micro-ônibus na pequena cidade de Turbaco, primeiramente eu, depois Sol Maria, que, com ajuda do cobrador, consegue descer as escadas do veículo com sua porcelana. Vamos adentrando pelas ruas da pequena cidade, chegamos a parar alguns instantes. Na primeira vez, fomos para a casa de um senhor, onde costumávamos parar para prosear um pouco, para beber refrigerante e para Sol me apresentar às pessoas, com a principal motivação aparente de vender suas cocadas. E de lá seguimos pelas ruas de barro quanto asfaltada de Turbaco, ao longo de um percurso que perfaz cinco horas de caminhada. Quando parávamos nas residências dos clientes, era notável o reconhecimento destes, demostrando familiaridade com Sol: uma vez ou outra, diziam que queria conhecer San Basílio, ir para as festas que lá aconteciam, mas ao que me parece essas pessoas nunca chegaram a conhecer a localidade da mulher que vende doces para elas há décadas. O que se conhece de Palenque é o estigma do homem preguiçoso e da mulher trabalhadora, que por vezes escutávamos na cidade em questão e em Bucaramanga. O município de Turbaco fica próximo a San Basílio de Palenque, distante 45 minutos de ônibus. Acompanhei Sol Maria Cassiani, de 49 anos e comerciante desde os 19. Ela trabalha nas quartas-feiras, sábados, domingos e feriados. Nas quartas-feiras,
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costuma vender em um colégio, na hora do intervalo, para alunos e funcionários, e só depois sai a caminhar. Nos sábados e domingos, as mulheres passavam o dia todo caminhando, sem paradas, das 9h40/10h até as 16h30/17h. Eu a acompanhava sempre aos domingos. Sol tem o hábito de pegar folhas de arruda, que ela coleta durante as caminhadas, e colocar atrás da orelha. Segundo ela, esse ato atrai sorte para as vendas. Outro gesto que Sol realizava era a prática de se benzer, fazendo o sinal da cruz em sua face assim que saía de sua residência. Sol Maria já é reconhecida em Turbaco, e uma referência para as mulheres que vendem cocadas. As pessoas a chamam de “Case”, que é uma abreviação de “Casera”, pessoa que vende comidas caseiras. Éramos convidadas para entrar e tomar suco ou refrigerante em suas casas, e nós aproveitávamos esses momentos para fazer uso do banheiro. Entrei nas residências de diversos clientes que se mostravam atenciosos. Sol me contou que já recebeu ajuda de algumas clientes, por exemplo, quando do nascimento de sua primeira filha, ela recebeu roupas de recém-nascido e sapatos, e, recentemente, uma cliente deu uma roupa de formatura para a sua filha. Sol, mesmo estando grávida, saía para vender. A maioria delas trabalha até mesmo faltando poucas horas para o filho nascer. Comumente fazia a minha apresentação da seguinte forma: “essa é uma amiga brasileira que veio aqui para conhecer Turbaco, e está aqui caminhando comigo para saber como eu trabalho”. E continuava: “ela quer saber como é o trabalho das palenqueras”. Algumas pessoas falavam: “coitadinha! Está fazendo-a caminhar nesse sol tão quente!”. Nas primeiras idas, Sol solicitava que eu caminhasse à sua frente. Creio que seu intuito era ter uma visão das coisas, ou melhor, de mim, para que nada de ruim me acontecesse. No momento de cruzar a rua, ela pegava na minha mão e falava: “pare aí! Agora vamos, cuidado com a moto”. E sempre pedia que eu ficasse atenta aos veículos e às pessoas, sobretudo me recomendava não pegar a minha câmera fotográfica nos bairros populares muito movimentados, porque poderia sofrer um assalto. Se nessa pequena cidade eu poderia sofrer um assalto, em outra localidade, no caso a cidade de Bucaramanga, com um contingente populacional maior, ao circular com a minha câmera entre os bairros de classe média fomos alvo dos olhares desconfiados dos seguranças particulares de suas ruas.
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Elas me recomendavam não tomar fotos delas em atividade nesses locais, pois seria junto a elas alvo de suspeição em caso de assaltos a residências. Seis horas de trabalho. Na região do Caribe Colombiano, a temperatura varia entre 34 a 36 graus, mas a sensação térmica é bem maior. Somando ao peso que carregam, é necessário ter uma boa voz para anunciar o produto em tom alto: Aleeegreem-se!, grito alusivo à alegría, um dos principais doces comercializados, depois das cocadas. Quando circulava em ruas onde havia a presença de crianças brincando ou dentro de suas casas, quase sempre estas as imitam verbalizando a mesma frase. A rotina de venda começa com uma pequena parada em uma tenda que vende os papéis de seda com os quais se agarram os doces. Em seguida, vamos até um mercado para recolher sacolinhas plásticas, a fim de ensacar os doces comprados pelos clientes. No final do trabalho, ela passa nesse mesmo mercado e realiza pequenas compras para sua residência, sobretudo de verduras e cereais. Também costuma passar em outro mercado para comprar carne, ou em outro estabelecimento que vende frangos assados que leva para comer em casa, após a jornada de trabalho. Por volta das 15h, começa o horário mais emblemático, pelo menos eu assim senti. É nesse momento que o corpo pede descanso e ela tenta “ludibriar” a mente, dizendo que não está cansada e que pode aguentar mais duas ou três horas de caminhada no sol intenso. Na caminhada disputa-se o espaço com os carros, com as motos, com os caminhões, com os animais na pista, com os transeuntes. Algumas ruas da cidade são pavimentadas e outras são de barro e íngremes, exigindo esforços a mais para quem carrega pesados doces sustentados na cabeça. Sol Maria já conhece os bairros onde as pessoas compram e os diferencia daqueles onde não há clientes. Há outras mulheres que vendem em Turbaco, e cada uma delas fica responsável por percorrer uma determinada área. No trajeto, passamos nas ruas residenciais desses bairros e circulamos na frente de supermercados, postos de gasolina, centros comerciais, farmácias: qualquer lugar onde existissem aglomerações poderia ser uma boa oportunidade para as vendas. O dia da venda é também o dia da compra de insumos para fazer mais doces. Compra-se cocos secos, mamão, abacaxi, em sua maioria fiados e que serão pagos na semana seguinte, em pequenas tendas próximas às residências dos seus clientes.
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O momento em Turbaco, para além do trabalho, é aproveitado para realizar ligações telefônicas. Nessa localidade há uma maior oferta de ambulantes que alugam os telefones celulares vendendo minutos.6 Com o dinheiro arrecadado das vendas dos doces, Sol paga as chamadas realizadas. Nos raros momentos de pausa das caminhadas, Sol Maria realiza ligações para o seu marido, que hoje vive na Venezuela, para onde foi há pelo menos três anos em busca de trabalho e não retornou mais para casa, e para sua filha, que vive em Cartagena, pois recentemente passou no vestibular para o curso de Comunicação Social. Sol Maria é quem custeia a faculdade da filha com a venda dos doces, porque, apesar de estudar em uma universidade pública, não há isenção de custos para o semestre letivo. Durante uma tarde na sua casa, entre conversas e feituras das suas cocadas, aliadas às cenas de touradas que ela insistia me fazer assistir, uma frase durante o intervalo das cenas em que homens eram arremessados para o alto pelos chifres do boi despertou-me a atenção. Sol, olhando para seu instrumento de trabalho, afirmou: la fuerza de la porcelana,7 e completou: “tudo que está dentro dessa casa foi possível devido à força disso daqui [já pegando em suas mãos a bacia de alumínio e mostrando-a a mim], isso daqui tem força e poder”. Acreditando no efeito da frase, este objeto, que é um dos seus instrumentos de trabalho, assume a materialidade da energia, do ânimo que ela deposita no seu dia a dia ao lidar com suas diversas responsabilidades. Uma força que a fez estar ali naquele espaço falando comigo. Foi esta força que fez com que construísse a sua nova residência e mantivesse a sua existência social. Sol reside hoje em um bairro dentro de Palenque que reúne pessoas vítimas do desplazamiento forçado.8 A força é transmutada da porcelana para Na Colômbia é muito comum a comercialização de minutos para ligações telefônicas. As antigas cabines que se encontravam espalhadas especialmente pelo centro das cidades foram substituídas por pessoas que possuem celulares de várias operadoras e que por preços módicos vendem minutos de ligação. Assim, “vender minutos” é uma expressão comum na Colômbia, entendida pelos colombianos, mas que pode causar estranhamento nos forasteiros. 6
7
Em português: “a força da porcelana”. Tradução da autora.
Na história da Colômbia se fazem presentes os diversos casos de desplazamiento forçado, decorrentes do conflito armado interno, de pessoas campesinas, sejam elas de grupos indígenas ou negros, que por imposição tiveram que deixar seus 8
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a sua pessoa, permitindo buscar soluções e alternativas por longos anos para a sobrevivência. Da materialidade dos objetos vão se criando formas e funções, a porcelana por si só não possui essa força, mas o corpo da mulher que se utiliza dele vai tecendo a construção de si como potência criadora da vida e da luta. Por outro lado, a brincadeira, o riso, as piadas e certas frases compõem o universo de estratégias facilitadoras da comercialização dos produtos. As dulceras constantemente fazem usos de frases que chamarei aqui de apelativas. São frases que apelam, convidam, incitam e chamam a atenção do público comprador. São estratégias persuasivas de venda. As frases apelativas como “¿No me quieres? ¡Venga a comprar de la negrita que está caminando en el sol caliente!”9 ou até mesmo o “¡Aleegreeen-se!” são frases chaves na interação entre a vendedora e o cliente. O ¿No me quieres? geralmente é anunciado para possíveis compradores masculinos. ¡Venga a comprar de la negrita que está caminando en el sol caliente! faz com que o possível cliente tenha piedade da condição dessa mulher que caminha horas a fio sob sol intenso, sustentando uma bacia de alumínio extremamente pesada. E outra, mais comumente usada nas ruas de Palenque, Turbaco e Cartagena, como mencionei anteriormente, é o ¡Aleeegreeense!10 Algumas dessas frases apresentam uma certa poesia em sua enunciação. Sol Maria costuma usar parte de uma frase que é conhecida entre aquelas que comercializam em Cartagena: Alegría con coco y aní, casera, cómpreme a mí, que vengo del barrio Getsemaní11 [bairro da cidade de Cartagena]. Há também aquelas frases de duplo sentido, quando se usa o “¿Mi amor, que vas a comprar?”12 e a complementação: “¿Mí amor, territórios migrando para outras localidades. Assim, em Palenque há um bairro com presença de indígenas conhecido como bairro “chino”, e “La Bonquita”, onde reside Sol, que também concentra um outro contingente populacional. Em português: “Não me queres?”, “venha comprar desta neguinha que está caminhando no sol quente”. Tradução da autora. 9
Na cidade de Bucaramanga, as mulheres utilizam outras frases enunciativas para a venda. O ¡Alegrem-se! deixa de existir nesse contexto. 10
Em português: “Alegria com coco e anis, caseira, compre-me a mim, que eu venho do bairro de Getsemaní”. Tradução da autora. 11 12
Em português: “Meu amor, o que vai comprar?”. Tradução da autora.
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que vas a chupar?”,13 ou então “le traigo el redondo, el grande y el peludo, no se burle niña, yo hablo del coco”.14 Assim como professam que, ao comprar determinado tipo de doce, a “atividade em casa” (numa conotação sexual) vai melhorar. São frases que compõem duplos sentidos, demostrando a comicidade dos enunciados e utilizando essa comicidade como modo de criar empatia com as pessoas de seu entorno. Podemos dizer que cada uma dessas frases tem como efeito criar relações, as quais podem ser efêmeras e circunstanciais, mas efetivas no sentido de possibilitar as interações com os desconhecidos e em alguns casos permitir o acréscimo nas vendas. Para além das frases acionadas, outra estratégia que possibilita a venda é a criatividade estética dos produtos, outro gradiente que desperta a curiosidade e interesse dos clientes. As porcelanas são minuciosamente arrumadas, todas as comerciantes dedicam vários minutos na preparação destas no intuito de encontrar uma melhor forma de apresentar e dispor os doces na bacia de alumínio. Cada doce é organizado de uma forma específica dentro desta: após a acomodação, os doces são envolvidos por um papel filme ou envoltos por um saco plástico transparente, assim protegendo-os da poeira, insetos, fumaças ou qualquer outro objeto externo que possa inferir na qualidade, higiene e aparência do produto. Lançando o olhar desta vez para os preços dos seus produtos, estes podem variar de acordo com a localidade da venda e do perfil do consumidor. No Palenque custam em torno de mil a dois mil pesos colombianos.15 Nas saídas para Turbaco, as cocadas custavam mil e quinhentos pesos colombianos, embora para os clientes antigos Sol Maria vendesse a mil pesos. Quando os clientes novos reclamavam do preço, ela passava a cobrar mil pesos e tentava recompensar esse déficit de renda nas próximas transações, vendendo ao preço normal ou oferecendo vários por um valor em que o lucro compensasse. Por vezes, vendia fiado para ser pago na próxima semana. Já em 13
Em português: “Meu amor, o que vai chupar?”. Tradução da autora.
Em português: “Lhe trago o redondo, o grande e o peludo, não ria, menina, eu falo do coco”, tradução da autora. 14
1.000 pesos colombianos (COP) equivalem a R$1,40 (em reais, BRL). Cotação do mês de agosto de 2018. 15
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Bucaramanga os doces são vendidos a dois mil pesos colombianos e nunca fiado. Há uma crença entre as Palenqueras de que se elas contam o número de doces que produzem, suas vendas não terão êxito, então “não se sabe ao certo” quantas quantidades são produzidas e vendidas. O “não se sabe ao certo” quantas cocadas são elaboradas nos informa que a preocupação é obter o essencial necessário para retornar às suas casas, há uma preocupação que se baseia não em um lucro excessivo, mas um lucro do agora, do presente, do que é viável reunir naquele período, porque no dia posterior haverá novamente a feitura de outras cocadas. Para além de uma equalização econômica, os seus trabalhos visam sustentar relações. As irmãs La Burgo e Teresita empacotando seus doces. Casa da cultura em San Basílio de Palenque
Nesse sentido, a renda mensal adquirida pela venda pode variar muito. É possível obter 500 mil pesos (ou menos) mensais até 1.500.000, quando a procura for muito boa, levando em conta a localidade, o mês, os clientes e as estratégias utilizadas. É Yosaín Perez, 36 anos, casada, que nos informa: Eu posso dizer, não é fácil. Mas quando eu vendia a esse tempo, já não se vende, em minha casa eu tinha um milhão de pesos, em um mês tinha um milhão e quinhentos. Isso nos meses de novembro e dezembro, como todo mundo tem dinheiro nesse período, as
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pessoas têm dinheiro, compram muito. Eu não levava cocadas de volta, pelo menos em dezembro todo mundo estava comprando roupas para os seus filhos. Eu dizia: meu amor, às suas ordens, leva algo a seu esposo, as pessoas diziam: “não, não”. E eu: “por que não?”. Se isso é um doce, um aperitivo de tal coisa, eu até colocava nome e dizia “isso é um afrodisíaco”, e compravam. Como nós, as palenqueras temos um sotaque bonito.
Com o comércio é possível comprar bens domésticos para a casa, adquirir produtos alimentícios e vestuário, assim como quitar a mensalidade da faculdade dos filhos. O uso do seu dinheiro é amplo. Segundo o antropólogo Frederico Neiburg, ao se referir aos significados e usos sociais do dinheiro,16 “as pessoas continuam experimentando o mundo social segundo categorias ordinárias” no uso do seu dinheiro (Neiburg, 2007, p. 122). Este, quando é adquirido em decorrência da venda dos seus doces, permite não só um acrescimento econômica na renda familiar, mas também é gestor da interação (a possibilidade de uma ligação telefônica para os familiares) e da mobilidade social (com a inserção dos filhos nos ensinos superiores e consequentemente rumo a novas possibilidades empregatícias). Doces caminhos A circulação das mulheres palenqueras para outras regiões também possui relação com a entrada de seus filhos na universidade. Josefa Hernandez, 32 anos, solteira, que atualmente é cientista política, mas que em outro momento trabalhou vendendo doces para custear a sua carreira universitária, nos aponta: Cerca de vinte anos atrás se pode dizer que começou o auge dos palenqueros e palenqueras a entrar na Universidade de uma forma muito massiva. Então, obviamente os doces que se vendiam por aqui simplesmente chegavam para a alimentação, mas não para pagar os estudos dos filhos. Então, aí começaram a sair.
Nas sociedades que mereciam a atenção dos antropólogos, o dinheiro possuía significados múltiplos que estavam atrelados às relações entre as pessoas, às esferas ou aos circuitos singulares de troca (Dalton, 1967; Bohannan, 1967 apud Neiburg, 2007). 16
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Ao trazer essa referência, lembro que, quando estava na cidade de Bucaramanga, uma das discussões que surgiu durante a noite na nossa casa era sobre a filha de uma vendedora, que pretendia cursar Medicina. As mulheres falaram que o curso era muito caro para ser sustentado pela venda das cocadas, e a recomendação daquela noite seria que a mãe orientasse a filha a escolher um curso que fosse viável. Recordo que sugeriram Enfermagem ou Serviço Social, cursos, segundo elas, que tinham valores mais baixos, pois o ensino nas universidades, mesmo nas públicas, demanda despesas financeiras. O deslocamento para áreas mais distantes de Palenque tem datação de três décadas. Antes dessa época, é possível afirmar, pela memória local, que essas mulheres saíam para vender frutas, legumes, arroz e pescados nos municípios próximos. Foram, aos poucos, se tornando “nômades”, de acordo com a explicação de Bernada, 43 anos, casada, que percorreu cerca de cinco capitais dentro da Colômbia e teve uma passagem pela Venezuela: Não era como agora. Quando já estava prejudicando a venda por lá, se tocava levar para longe, deixar a família, que é difícil. Deixar as criancinhas com a avó, com o pai. Vir por um mês, por dois meses, porque tudo ficou mais complicado. As vendas não eram as mesmas e todo mundo tem açúcar [diabetes], não quer comer doce, e, como as vendas caíram, foi necessário sair e expandir esses doces para outras partes que não conhecíamos. Aí ficamos lá nômades. Hoje estamos aqui, amanhã estamos em Palenque. Ou se eu não quero vir aqui, vou para Montería [capital do departamento de Córdoba], vou para Sincelejo e assim por diante.
Recuperando o movimento através dos doces, é importante notar que a primeira ida para territórios longínquos a fim de desbravar o interior do país se deu com uma “olhada” no mapa colombiano. Assim destacou Josefa Hernandez: Saíram inclusive sem saber para onde iam, porque não conheciam o interior do país, por exemplo. Então começaram a olhar no mapa, olharam no mapa! [Surpresa] A primeira cidade em que começaram a ir foi Bucaramanga.
A primeira cidade escolhida foi Bucaramanga (capital do
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departamento de Santander), circularam por Cúcuta (capital do Norte de Santander, cidade na fronteira com a Venezuela), Pamplona (município do Norte de Santander), Bogotá (capital da Colômbia), Fusagasugá (departamento de Cundinamarca, a 59 km de Bogotá), Medellín (capital do departamento de Antioquia), Caucasia, Apartadó, Carepa, Chigorodó (municípios do departamento de Antioquia), Montería (Capital do departamento de Córdoba), Tierra Alta (município do departamento de Córdoba), Villavicencio (capital do departamento de Meta), Yopal (capital do departamento de Casanare), Tunja (capital do departamento de Boyacá), Sogamoso (município do departamento de Boyacá, Ibagué (capital do departamento de Tolima), Neiva (capital do departamento de Huila), Pitalito (município do departamento de Huila), Riohacha (capital do departamento de La Guajira) e Arauca (capital do departamento de Arauca). As cidades próximas de San Basílio que percorreram são: Cartagena (capital do departamento de Bolívar), Turbaco, Arjona, Malagana, El Viso, El Carmen de Bolívar, Santa Rosa de Lima (todos municípios de Bolívar), Barranquilla (capital do departamento do Atlântico) e Sincelejo (capital do departamento de Sucre). As capitais dos departamentos colombianos serviram como ponto de partida para explorar os municípios vizinhos: se estavam em Bucaramanga, poderiam ainda explorar o interior do departamento se deslocando para Barrancabermeja, Floridablanca ou Carmen, que estava a duas horas de distância de Bucaramanga (todos municípios do departamento de Santander). Elas chegaram a trabalhar também em outros países, como a Venezuela, nas cidades de Caracas, Barquisimeto, Ojeda, Bachaquero, San Félix, Mérida e em Maracaibo (fronteira entre Colômbia e Venezuela). Em Equador trabalharam em Quito (capital do país) e em Imbabura. No mapa, conseguimos visualizar a viagem dessas mulheres com a venda dos doces pelas capitais da Colômbia e também na Venezuela.
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Essas viagens são programadas no espaço da casa, ou melhor, do pátio ou quintal da casa, que configura-se como uma oficina; é a área onde a oralidade e a corporalidade se misturam para dar como resultado os doces, a proclamação e a venda desses produtos. Aqui, onde avós, mães, tias, primas, amigas e irmãs cumprem o papel de instrutoras e professoras, todos os ensinamentos necessários são produzidos para trabalhar e conviver com outras mulheres durante longos períodos de viagens. Os mecanismos de negociação acionados nas vendas, nas viagens, nas trocas, na relação com a clientela, esses circuitos em função da venda dos doces, são constituídos de relações que são para além da economia, são pautadas por relações pessoais, de parentesco, de afinidade. As redes de apoios (amigas, comadres),
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assim como as redes de parentesco, contribuíram para a migração laboral, uma migração voltada para o trabalho, esse que é apreendido em casa de forma geracional entre famílias. Essa lógica interna familiar favoreceu o protagonismo das minhas interlocutoras tanto na questão que envolve o mercado como na formação de redes, das redes dos cuidados e dos afetos. Das alegrías às escravas dos doces. Sentidos do trabalho Na tentativa de fazer uma análise da noção de trabalho exposta nas falas das interlocutoras em questão, busquei expandir a noção apresentada por Sidney Mintz, autor que traz alguns aspectos para pensar essa categoria: o trabalho como meio de conferir sentido à vida, e o trabalho como fonte de orgulho e autoestima para o indivíduo (Mintz, 2010, p. 64). É com base nesses aspectos acima citados que procuro conduzir a discussão. Aqui também busco pensar o sentido do trabalho, suas representações, assim como as idealizações acerca do sentimento de liberdade e autonomia dessas mulheres, advindo do exercício de comercializar doces. A pergunta é: como as palenqueras se sentem a respeito de seu trabalho? Como é percebido e experimentado o seu ofício? A atividade laboral e a comercialização dos doces são extenuantes. Pude acompanhar o trabalho em outra cidade e nesta ocasião foi possível perceber que o descanso do corpo físico só é realizado enquanto se dorme. Mas também é intenso para aquelas que trabalham no Palenque e que circulam nos municípios vizinhos, começando pela preparação dos doces, seguido pelo próprio percurso exaustivo da venda. Caminhar em longas distâncias por cerca de sete ou mais horas, muitas vezes sob sol intenso ou então sob chuva e frio, sustentando em suas cabeças pesos que podem alcançar dezenas de quilos, traz sofrimento ao corpo e exige disciplina para suportar a maratona diariamente. Escutei delas que o trabalho é uma tradição de Palenque que foi passada por familiares, e que há várias décadas as mulheres trabalham dessa maneira. É certo que, de algumas décadas para cá, houve modificações na forma de preparar os doces, com o uso do forno a gás em vez do fogão à lenha em determinadas localidades,
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por exemplo. Elas falam que com o comércio dos doces foi possível comprar utensílios para suas residências, como: fogões, geladeiras, televisões, roupas e sapatos para os filhos, produtos alimentícios, de higiene pessoal; fazer reformas e construção de novos cômodos em casa. O maior motivo de orgulho para elas é que, com esse trabalho, foi possível sostener la familia y los hijos.17 Entretanto, as queixas sobre o trabalho vão se acumulando aos poucos, para depois ser afirmado que o sofrimento vivenciado, domesticado e disciplinado poderá trazer momentos de satisfação pessoal. A partir de Mintz (Ibid.), podemos refletir sobre o que é trabalhar no nível da exaustão humana e entender como elas conseguem enxergar o que é um trabalho que mata, e, ainda assim, recorrem a essa prática para sobreviver e trazer dignidade ao seu feito. Espero que não pensem que pretendo glorificar o efeito no espírito humano de uma labuta física extenuante sob condições terríveis. Ninguém deveria ter que trabalhar como estas pessoas trabalhavam – e em certas partes da região caribenha, ainda devem trabalhar. Pretendo, em vez disso, comentar a respeito de como o espírito humano sobrevive e transforma tais abusos, ao permanecer humano (...) As pessoas conseguem extrair significação de seus atos, eles podem ter prazer no seu trabalho, mesmo extrair significação de seus atos; eles podem ter prazer no seu trabalho, mesmo quando este é um trabalho exigente e difícil do ponto de vista físico. E eles podem fazer isto no mundo moderno, se o trabalho que realizam é percebido por eles como socialmente valioso (Ibid., pp. 64- 65).
Dentro desse contexto acima exposto, a seguir, disponho de narrações do que essas mulheres negras apontam sobre o trabalho com os doces: “Esse é um trabalho que mata”, afirmou Sol Maria, e continua: “a venda ajudava a comprar os materiais e comer, nada mais. Mas isso se faz porque já é uma tradição. A necessidade faz fazer esse trabalho, mas é um trabalho que mata. As mãos doem, é um trabalho duro”. Por sua vez, La Burgo dizia: “essa é uma herança que também estou deixando aos meus filhos, quando eles não tiverem emprego, que recorram a esse”. 17
“Sustentar a família e os filhos”, tradução minha.
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La Burgo em certa medida corrobora com Sol ao mencionar que o ofício é decorrente de uma tradição, de uma herança familiar que se perpetua por gerações e que tem como centro e como proliferadoras da atividade as mulheres de Palenque, bem como uma atividade que poderá ser acionada quando não houver outro tipo de trabalho remunerado. Porém, Sol Maria reafirma o tempo todo que esse é um trabalho que pode matar quem o realiza, verbalizando as extensões que são sentidas e vivenciadas no corpo da mulher negra palenquera. Flor Maria, 57 anos, casada, em relação ao seu empenho no trabalho, comentou: Nicolas [esposo] me ajudava, mas eu colocava mais força. Dava de tudo para os meus filhos: roupa, sabão, desodorante, sapatos. Nunca deixei faltar nada. Deixava de comprar para mim e dava para eles. Queria que eles tivessem tudo, que estudassem para não ficar como eu. Graças a Deus meus filhos saíram agradecidos a isso.
Nayelis Miranda, 26 anos, solteira, argumentou:
É um trabalho forte! Quando vir de lá [Venezuela], disse a minha mãe: papel e lápis, mãe! Papel e lápis! Porque esse trabalho não é para mim, é muito forte. Eu trabalhava com isso enquanto me formava academicamente, profissionalmente, mas esse trabalho é muito duro [pesado] para ter como perspectiva de vida. Eu fui à Venezuela para conseguir minha roupa, meu perfume e minhas coisas pessoais, mas já tinha uma visão. Vou porque vou reunir minhas coisas, mas não que isso seja um trabalho para a vida.
As duas falas acima, a primeira de uma mãe e a segunda de sua filha, evidenciam o caráter geracional do trabalho. A mãe, na sua generosidade, afirma que todo o esforço realizado foi para dar aos filhos aquilo que muitas vezes lhe faltava, e ao final se tornou grata por ter tido o reconhecimento destes do esforço ofertado. A filha, por sua vez, reconhece a labuta perpetrada pela mãe e visualiza no universo dos estudos um caminho para outro tipo de possibilidade, de trajetória laboral distinta da de sua mãe, embora tenha precisado recorrer ao comércio dos doces enquanto estava na graduação, quando parte do dinheiro adquirido serviria, entre outras coisas, para o custeio da carreira universitária. Nayelis, que tem graduação
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em Engenharia de Alimentos pela Universidade de Cartagena, integra parte do grupo das jovens negras que concebe o trabalho com os doces como uma experiência pontual e transitória. Essa marcação geracional foi alvo de investimento no trabalho de Orlando Santos (2010), que se debruçou sobre experiências de mulheres negras comerciantes da cidade de Luanda, capital de Angola. O autor direcionou sua reflexão para a participação das mulheres no comércio de rua na cidade e, a partir daí, identificou rupturas e continuidades nas práticas rotineiras das antigas e novas gerações de mulheres comerciantes. Deste modo, as mulheres mais jovens e com menos responsabilidade familiar têm maior oportunidade de investir em si mesmas, em relação às mais velhas e com maior responsabilidade familiar. Foi no comentário de Catalina Herazo, 57 anos, separada, que o conceito de exaustão e a aproximação do ofício com a servidão e a dependência foram destacados: Com os doces ficamos escravas do trabalho, escravas dos doces. Tem que ficar o tempo todo ralando coco, cortando mamão. A pessoa se levanta fazendo o mesmo e dorme todos os dias fazendo a mesma coisa. Não é como outros trabalhos, em que você sai e quando chega em casa seu trabalho já acabou e pronto. Tu sabes que quando chega em casa tem que partir o coco para adiantar o trabalho, porque se você não fizer a tempo para o dia seguinte vai se atrasar muito. Tem que começar à noite para terminar de fazer no dia seguinte de manhã cedo.
Contudo, Yosaín apontou para outro lugar que esse trabalho ocupa no imaginário das palenqueras: “bom, graças a isso conheci boa parte da Colômbia, ou seja, é muito bonito. Eu sou das palenqueras que, no lugar em que trabalhei, tirava fotos. Tudo era muito bonito”. Há concepções distintas sobre o que o trabalho propicia ou proporcionou entre as colocações de Catalina e a de Yosaín. A fala expressiva de Catalina associa o seu ofício ao trabalho escravo, a mulher neste momento se encontra refém dos seus produtos comercializados, refém da sua rotina de trabalho que é árdua, trabalhosa e intensa. Yosaín, no que lhe concerne, visualiza neste universo dos doces uma oportunidade para conhecer e admirar outras cidades colombianas, o que mostra a relação que também tinha de circular e transitar em outros contextos geográficos,
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sociais, econômicos. Catalina, ao comparar seu trabalho análogo ao de um escravo, nos traz para a análise a ponderação de Angela Davis (2016), que apontou questões fulcrais:
Como leiga, posso apenas propor algumas hipóteses que talvez sejam capazes de orientar um reexame da história das mulheres negras durante a escravidão (…) O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão (…) Aparentemente, portanto, o ponto de partida de qualquer exploração da vida das mulheres negras na escravidão seria uma avaliação de seu papel como trabalhadoras (Ibid., p. 24).
O papel da mulher negra como trabalhadoras muitas das vezes as confina em situações de esgotamento físico. Todas, digo todas as mulheres com quem convivi ao longo da pesquisa apresentam alguma enfermidade em decorrência dos anos de trabalho e das condições destas. Caminando como loca llevando el sol como la tierra18 foi a frase dita por Flor Maria, ao rememorar seu tempo de trabalho: “caminhava muito para vender, caminhava por essa rua e na outra, caminhava e caminhava. Por isso, ando desgastada”. O efeito disto, como apontado, é o desgaste físico. Flor apresentava dificuldades para caminhar advindas também do seu sobrepeso, parou de trabalhar vendendo doces há cerca de quatro anos e, de vez em quando, faz bolos simples para vender na praça de San Basílio ou sob encomenda. Constantemente a via balançar as suas mãos e perguntava o que sentia, ela falava que as suas mãos já não “prestavam” tanto. Sentia dores e dormência pelo fato de ficar fazendo movimentos repetitivos ao mexer a panela para preparação dos doces, além disso, sofria de varizes, as pernas estavam sempre apoiadas (quando sentada) sob um banquinho a fim de dar “descanso” àquelas pernas inchadas. Quando estava trabalhando na Venezuela em São Felix, ainda jovem, caminhava muito em bairros, e lá era pura “loma”,19 pura subida e descida, e, então, naquele tempo tinha disposição. No final, quando as pernas já não aguentavam mais, Em português: “Caminhando como louca, levando sol como a terra”. Tradução da autora. 18 19
Morro.
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ela trabalhava sentada, e os carros passavam e compravam porque já sabiam onde ela vendia e iriam até lá. Quando iniciava a sentir dores, pedia para as companheiras comprarem as matérias-primas dos doces, relatou que já não ia ao mercado comprar, porque ficava muito cansada e isso às vezes molestava as companheiras. Tempo depois, parou de viajar. Catalina, durante à noite, na hora de dormir, deitada sobre o delgado colchonete ao meu lado, reclamava de dores na coluna: “ay mija, tengo mucho dolor en la espalda”.20 Ela passava um bom tempo se automassageando nas costas, nas pernas e no quadril, e antes de sair para o dia de trabalho também tomava um comprimido que evitava dores musculares. As partes dos corpos que mais sofrem são as mãos, os pés, as pernas, a cabeça e a coluna. Em algum momento da vida, tenha-se trabalhado poucos ou muitos anos, alguns desses efeitos no corpo vão se fazer presentes. Elas vão sofrer de dormência nas mãos momentaneamente, vão padecer de dores nos joelhos, nos pés e nas pernas, dores na cabeça, algumas vezes no pescoço, dores na coluna; e quando estão cozinhando no fogão a lenha, a fumaça liberada pode causar cegueira. Por isso é recorrente se automedicarem antes de dormir e algumas vezes ao sair para a rua quando estão em outras cidades, usando remédios à base de paracetamol, anti-inflamatórios e relaxantes musculares que prometem aliviar as dores. A rotina para aquelas que passam longas temporadas fora de casa é intensa: cinco e meia da manhã é hora de levantar, colocar a panela no fogão, adicionar leite, adicionar coco; coloca coco, mexe panela, tira panela, prepara a mesa para receber as cocadas, coloca as cocadas, vira de um lado, vira de outro, corta mamão, panela no fogo, coloca açúcar, coloca leite, coloca mamão, tira panela, prepara a mesa para o mamão, rala macaxeira, rala coco, panela no fogão, tira panela. Ornamenta a bacia de alumínio, faz comida, toma banho, coloca o avental, pega a condução, vende doces, compra insumos, chega em casa, coloca a panela no fogão, coloca o açúcar, coloca o leite, coloca o coco, tira panela, come, rala macaxeira, rala coco, dores, remédio, dorme, acorda, coloca a panela no fogão, coloca o leite, coloca o açúcar... O que se espera aqui é refletir sobre um tipo de atividade autônoma que beira o esgotamento físico. Sobre quando e como 20
Em português: “Ai, minha filha, tenho muita dor nas costas”. Tradução da autora.
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se age quando a liberdade e autonomia se fazem dentro de um campo restrito de possibilidades. Liberdade e autonomia que foram princípios constituintes para a formação de comunidades negras, como a de Palenque ao longo dos anos. Como esse sentimento e vontade de se tornar liberta e autônoma das suas ações ganham profundidade nas relações que norteiam o trabalho delas. “Escrava dos doces”, para além de uma metáfora, atualiza uma história de luta por uma autonomia e liberdade que têm como pano de fundo o processo político-histórico desencadeado desde a escravatura e que foram reinventados à luz da diáspora. Apesar de ser um trabalho feito na linha da exaustão, encontram-se espaços de autonomia e liberdade pelo simples fato de não ter que trabalhar para outrem e pela possibilidade de administrar o seu dinheiro, presumindo onde poderá ser aplicado e investido, o que dá a essas mulheres um estatuto de serem donas de seu próprio destino. É por meio de suas mãos que advêm o alento e a fonte de renda familiar. É por meio dessas mãos pretas que famílias inteiras são sustentadas, alimentadas e educadas. À guisa de conclusão O trabalho, para as palenqueras comerciantes de doces, é vivenciado como sinônimo de luta, autonomia, dor, resiliência, força, respeito, independência e legado familiar. É, pois, na esfera do comércio, na comercialização de alimentos, que essas mulheres negras buscam obter dignidade. Se sentem valiosas e benfeitoras perante a família e a comunidade ao executar o ofício, ainda que exaustivo física e mentalmente. O trabalho é uma forma de sentirem ativas. Desde crianças, o trabalho se tornou determinante na organização das suas vidas e das suas próprias existências e assim dá sentido a elas, apesar da ambivalência, do tornar-se cansativo, árduo, colocando em xeque a sua saúde. Vemos que o corpo adoece, é um trabalho que pode matar, por ser uma atividade pesada, que demanda força muscular e movimentos repetitivos, preponderantemente, de esforço físico. Por conta disso, as mulheres apresentam queixas como dores musculares, lesões, doenças osteoarticulares, problemas de coluna são comuns, é chegado o tempo das doenças, não é à toa que a volta para as suas residências após longas estadias fora é
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acompanhada pela visita ao único posto de saúde do local, onde são medicadas e quase sempre recebem a indicação de fazer fisioterapia. Os dados do trabalho de campo permitem afirmar que, embora o trabalho feminino seja visto como um meio de angariar subsistência no âmbito das responsabilidades familiares das mulheres, a obtenção de rendimentos monetários é, igualmente, valorizada pelas mulheres, porquanto permite obter autonomia e poder econômico e social. Assim sendo, o trabalho é crescentemente valorizado, enquanto estratégia de autonomia social para elas e de garantia de mobilidade social para os filhos. Segundo a socióloga afro-americana Winnifred Brown-Glaude (2011) há um padrão internacional que evolui em termos de economia informal, e as mulheres pobres negras passam a ocupar essa seara desenvolvendo formas criativas para “ganhar a vida”, fornecendo um meio pelo qual elas podem estabelecer sua autonomia e garantir um futuro para suas famílias. O deslocamento para outros estados da Colômbia e para países vizinhos, como a Venezuela, dá a estas mulheres uma visão ampliada de mundo, distinta daquela de seus maridos e outros familiares. Elas se tornam agentes de suas ações cotidianas. Parafraseando Saba Mahmood: a agência não é simplesmente um sinônimo de resistência a relações de dominação, mas sim uma capacidade para a ação criada e propiciada por relações concretas de subordinação historicamente configuradas (Mahmood, 2006, p. 123). A autora traz um discurso positivo de estar e habitar o mundo, na busca de formas de agir dentro de um ambiente de adversidades. Se o trabalho é duro, ainda assim elas decidem aonde ir e quanto tempo permanecer, e escolhem o momento favorável para um breve descanso. Isto remete também à pergunta de Anne McClintock (2010): quais são as possibilidades de agência em contextos de extrema desigualdade social? As possibilidades para uma possível agência se fazem mapeando rotas, caminhos e trajetos já enfrentados por outras mulheres diante de um leque limitado de possibilidades. É na certeza de que as amigas e familiares conseguiram êxito nesta investida que elas se lançam diariamente no universo da rua onde comem, trabalham, dormem de exaustão, estabelecem relações que possibilitam a permanência em outra cidade, relações que se dão com as pessoas na localidade onde circulam e relações entre elas, relações de cuidado, solidariedade, afinidades, desavenças e afeto.
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As mulheres aprendem a reconhecer, por exemplo, as localidades que poderiam ser mais rentáveis financeiramente para as vendas (bairros residenciais de classe média, centros comerciais), e os horários propícios. O êxito das vendas também depende desses fatores, assim como da personalidade de cada uma, do timbre de voz bom e alto para anunciar os produtos, das estratégias persuasivas de venda – se é a dança, se é o canto, se são as duas coisas juntas, se são os vestidos chamativos, se são as frases de duplo sentido. Refletindo sobre o sentido do trabalho como uma estrutura afetiva plena de significados, o trabalho que pode causar sofrimento, aludindo à fala de Catalina, que se torna escrava dos doces, esse sofrimento poderá se transformar em prazer pela utilização de suas competências e liberdades individuais, o trabalho é que pode transformá-las em protagonistas no processo de manutenção histórica de si e das suas famílias negras. Surge assim a capacidade das mulheres negras de transformar a natureza da dor vivida numa autonomia que confere sentido positivo ao seu fazer. Deste modo, as vendas dos doces se tornaram um artefato que as mulheres negras palenqueras encontraram para ressignificar o trabalho, como forma de trazer dignidade e prosperidade à família negra na sua localidade. O trabalho se apresenta para as mulheres palenqueras como fonte de satisfação, realização de tarefas, ato criativo; enfim, elas produzem para atender às suas necessidades, como comer e vestir, é o meio de sobrevivência da família como também uma conquista de sua autonomia e autoestima. O trabalho para elas significa o próprio ato de viver, são tecnologias do viver. Nas narrativas em torno do trabalho, elas encontraram no universo dos doces uma dignidade ao feito. Mesmo argumentando e vivenciando nos seus corpos que esse trabalho pode matar, deparam com valorações positivadas sobre o seu exercício laboral, fato que revela as incongruências dos sentidos e significados da luta pelo trabalho interdependente e informal. Como apontou Anne McClintock (2010), é na encruzilhada das contradições que as estratégias de mudanças podem ser encontradas. Ressalto que mulheres palenqueras tiveram um papel econômico fundamental no processo de circulação mercantil da produção do espaço agrário, pois foram elas que passaram a comercializar os produtos advindos da plantação de seus maridos. São elas que saem para a calle para vender os produtos e que assumem papéis decisivos
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na organização socioeconômicas das unidades domésticas. Não existe nem sol nem chuva, nem sábado nem domingo, quando se trata de ganhar o mundo nas calles. As questões elencadas foram organizadas ressaltando a comércio e os agenciamentos em torno deste como potencialidades do protagonismo da mulher negra nas diásporas africanas, o ¡Aleegreen-se! usado aqui como metáfora ambígua que compõe a vida dessas mulheres negras na árdua tarefa de ser e habitar um mundo que as exclui permanentemente.
Raça, Gênero e Sexualidades: Interseccionalidades e Resistências Viscerais de Mulheres Negras em Contextos Bio-Necropolíticos
Fátima Lima1
Tomando a ideia de raça enquanto uma ficção materializada em corpos e processos de subjetivação entendidos(as) enquanto negros(as), a multiplicidade de modos de vida e os enfrentamentos vivenciados por mulheres negras em diferentes contextos brasileiros são os pontos centrais das discussões levantadas neste texto. A partir da perspectiva interseccional, as experiências raciais são entendidas de forma transversalizadas pelas performatividades de gênero e pelas sexualidades; tornando visível e dizível as relações entre raça, gênero e sexualidade; tendo nas questões raciais a espinha dorsal das situações que marcam a vida das mulheres negras, principalmente as que estão em espaços e territórios que ativam e aumentam vulnerabilidades. Para tanto, as questões raciais presentes nas diferentes práticas sociais serão discutidas a partir da ideia de colonialidade e de que elementos coloniais continuam moldando as relações de saber-poder; retroalimentando uma cultura do racismo. Esta última não passa mais tão silenciosa nos enfretamentos na agenda atual. Por fim, o texto sustenta a ideia de uma colonialidade em colapso e de uma política da matabilidade – Necropolítica, como salienta Achille Mbembe (2017; 2018), uma bio-necropolítica que tem, principalmente, nos corpos e subjetividades das mulheres negras, um espaço privilegiado de violências. Ao mesmo tempo, corpos e subjetividades negras vão reinscrevendo e reexistindo a partir de novas-outras configurações que têm no enfrentamento do Antropóloga e Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro/IMS/UERJ. Pós Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social/PPGAS do Museu Nacional/UFRJ. Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Macaé. Professora do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada- PIPGLA da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ. Professora do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico - Raciais/ CEFET/RJ. É autora do livro “Corpos, Gêneros, Sexualidades - políticas de Subjetivação” publicado pela Editora Rede Unida. 1
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racismo no Brasil o principal desafio não apenas do presente, mas de um futuro ainda condenado pela ficção racial. Sobre Raça, Gênero e Sexualidades - perspectivas a partir das mulheres negras Em resumo, se tivéssemos que explicar simplesmente como aplicar a interseccionalidade, diríamos que é uma mirada que nos permite levar a evidenciar as relações de poder e privilégios que existem. Platero, 2012, p. 30
As mulheres de Cor estão situadas de forma diferencial nos âmbitos econômicos, sociais e políticos. Kimberlé Crenshaw, 2012, p. 96
Falar sobre raça, gênero, sexualidade é desafiante na medida em que três marcadores categoriais e dinâmicos da diferença – Raça, Gênero e Sexualidade –, são colocados em debate a partir do que se consolidou como a perspectiva interseccional. É provocadora no sentido em que precisamos pensar – de forma crítica –, o que queremos dizer com interseccionalidade? O que vem a ser uma perspectiva interseccional? Onde e como ela pode contribuir nas reflexões sobre modos de vida atravessados por raça, gênero, sexualidades, classe, geração, territórios, entre outros eixos de assimetrias e opressões? E, principalmente, como a perspectiva interseccional dialoga com as questões raciais, suas vicissitudes e transformações? Como o campo dos estudos interseccionais pode ser um lugar epistemo-metodológico que pode contribuir para entendermos melhor os processos de racialização materializados nos corpos-subjetividades de mulheres negras e, principalmente, como esse conceito-intercessor pode ser útil para entender os diferentes contextos brasileiros contemporâneos marcados por características singulares na forma como as práticas racistas foram e são construídas e reatualizadas pela colonialidade fortemente presente e por processos necropolíticos que compõem os traços de poder na agenda social contemporânea que tem nos
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grupos populacionais negros um espaço privilegiado de atuação, configurando o que tem sido denunciado como o genocídio da população negra (Nascimento, 2017). É importante assinalar a multiplicidade das relações sociorraciais nos diferentes cenários brasileiros. Isso aponta para uma pluralidade de experiências de e em mulheres negras, mas, a partir dessas diferentes experiências, podemos apontar um comum: o processo de opressão e exclusão racial e de gênero. Essas experiências são singulares e pedem, por vezes, análises diferenciadas. Aqui elas são percebidas e tomadas de forma interseccionalizadas, tendo nas questões raciais uma certa primazia, sendo a raça e seus desdobramentos o que tenho chamado de espinha dorsal em inúmeras questões que constituem as atuais problemáticas brasileiras (Lima, 2017). Descrevo essas questões porque discutir sobre organizadores sociais da diferença e suas dinâmicas, a partir de uma perspectiva interseccional, é nos dar conta de como estes modelam as práticas sociais, atravessadas por relações de saber-poder, que produzem assimetrias, opressões e violências, principalmente nos corpossubjetivação de mulheres negras e racializadas,2 ao mesmo tempo em que, nas fissuras da colonialidade, esses corpos-subjetividades são capazes de reinventar e reexistir em suas diferenças, no espaço da diferença colonial (Lugones, 2008), um lugar de fraturas epistemológicas, de crítica ao eurocentrismo, um espaço tanto físico quanto imaginário, onde é possível fazer emergir enunciações fraturadas (Mignolo, 2003) e os corpos, no sentido mais profundo, respondem visceralmente às diferentes opressões (Mbembe, 2016). Interseccionalidades Muito antes da interseccionalidade se configurar enquanto um conceito forjado por Kimberlé Crenshaw (1994, 2002) e um domínio de investigação; muitas pensadoras, principalmente sob a égide do pensamento de mulheres negras e o feminismo negro, Uso o termo racializadas para destacar mulheres de cor ou não-brancas que aliadas a outros marcadores sociais da diferença como classe, territórios, entre outros, por exemplo, as colocam em relações assimétricas de poder. 2
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tomaram as questões que atravessam as experiências das mulheres negras a partir de diferentes eixos de opressão, principalmente o racismo, o sexismo e o classismo, entre estas bell hooks (2000), Audre Lorde (1984), Angela Davis (2016; 2017), Patricia Hill Collins (2012), Lélia Gonzalez (1984), Sueli Carneiro (2011), entre outras. Assim, uma certa gênese dos estudos interseccionais pode ser encontrada com teóricas entendidas e autocompreendidas como mulheres negras e mulheres de cor (termo usado pela mulheres nos contextos estadunidense e que agregava não apenas as mulheres negras, mas também mulheres racializadas a exemplo de latinas, chicanas, nipônicas, indianas, islâmicas, entre outras) tentando criar não apenas um conceito, mas análises que dessem conta das múltiplas opressões que atravessam diferentes experiências de mulheres que estavam e estão fora da branquitude enquanto relações de poder hegemônicas.3 Como aponta Velasco (2012) os movimentos do que viria a se chamar posteriormente interseccionalidade remetem às posições discursivas de mulheres negras que datam do final do século XIX, ou seja, “(...) o que desde o feminismo pós-moderno tem sido traduzido como teoria da interseccionalidade está na base genealógica do feminismo negro afro-americano. Remonta ao discurso “Não sou eu uma mulher” de Soujouner Truth na Convenção dos Direitos da Mulher em Akron de 1852” (Velasco, 2012, p. 28). Em um exercício cartográfico de estabelecer alguns marcos do pensamento interseccional destaca-se também a “Coletiva Feminista Negra Estadunidense – Coletiva do Rio Combahee” onde o texto “Um Manifesto Negro” publicado originalmente em 1977 já ressaltava “(...) o compromisso ativo contra a opressão racial, sexual, heterossexual e de classe” (Combahee River Collective, 2012, p. 75) evidenciando como estas opressões estavam interrelacionadas. Escrever sobre mulheres negras é uma escrita interseccional e um traço reflexivo que carrega a experiência racial (negra) e a experiência de gênero (mulher) entre outros atravessamentos. Como ressalta Platero (2012, p. 35) “(...) para as feministas negras, não se podia entender as experiências como Sobre a noção de branquitude ver Carone, Iray & Bento, Maria Aparecida da Silva (orgs.). 2014. Psicologia Social do Racismo. Petrópolis: Vozes. 3
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a classe, gênero, sexualidade, etc., sem entender a influência dos processos de racialização”. Sem dúvida, Kimberlé Crenshaw (1994; 2012) arredondou o termo interseccionalidade por dentro das discussões no âmbito jurídico, refletindo principalmente sobre as violências sofridas pelas mulheres negras e como estas se diferenciam tanto estatisticamente quanto subjetivamente das experiências de mulheres não-brancas. Esse movimento de Crenshaw foi fundamental para consolidação de um certo campo: os estudos interseccionais. Partindo da ideia de uma interseccionalidade estrutural, Crenshaw (2012) reflete criticamente sobre a posição das mulheres de cor na interseccionalidade entre raça e gênero, evidenciando que as violências sofridas por estas são qualitativamente distintas das mulheres brancas, levando em consideração várias dimensões como as condições de classe (pobreza), as atividades laborais, a responsabilidade de cuidar dos filhos na maioria dos casos, entre outras. Salientando que a interseccionalidade não é uma teoria nova ou totalizadora, nem também que as violências sofridas pelas mulheres são capazes de ser compreendidas apenas através de certos marcos raciais e de gênero, a autora, no entanto, torna visível que tanto o feminismo hegemônico quanto a luta antirracial não abarcaram as complexidades presentes nas mulheres de cor e negras onde Tanto as iniciativas feministas por politizar as experiências das mulheres, como os esforços antirracistas para politizar as experiências das pessoas de cor, frequentemente se produzem de tal forma que parecem mutuamente excludentes. Ainda que facilmente possamos ver que nas vidas reais das pessoas, o racismo e o sexismo se cruzam, isto não é assim nas práticas feministas e antirracistas (Crenshaw, 2012, p. 88).
Sem dúvida, as considerações de Crenshaw não apenas consolidaram um campo de denúncias em relação a forma como as mulheres de cor eram vistas tanto no feminismo mainstream quanto na luta antirracial bem como no campo jurídico. Partindo dessas considerações, penso que uma perspectiva interseccional deve atentar para o fato de que os marcadores sociais da diferença são singulares apesar de se atravessarem constantemente, e que essa singularidade, no caso das vicissitudes que o Brasil tem vivenciado, principalmente na última década,
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confere a ficção racial à brasileira uma força e requer de nós um enfrentamento urgente na agenda contemporânea brasileira marcada pela raiva, pelo tormento, pelo ódio e pelo desassossego. O que quero reafirmar é que a ficção racial à brasileira construída sobre e sob o mito da democracia racial, do imperativo da miscigenação, de políticas de branqueamento e da cordialidade presente nas relações raciais (Nascimento, 2017; Munanga, 2017) adquire destaque e importância singular quando nos propomos a entender diferentes processos a partir da perspectiva interseccional. Essa aposta inscreve o debate interseccional frente as discussões que dizem respeito ao poder, elemento central nas investigações interseccionais onde os “(...) sistemas de poder são implantados, mantidos e reforçados através dos eixos de raça, classe e gênero” (McCall, 2009, p. 1). Essas relações de poder são expressas a partir de diferentes eixos de opressão e acabam muitas vezes essencializando as opressões e naturalizando as violências. Nesse sentido, é preciso olhar para os diferentes contextos não apenas a partir das diferenças que separam as experiências, principalmente de sexismo, entre mulheres brancas e negras, mas perceber os processos diferentes que se dão dentro dos grupos identitários. Esse é o desafio sempre atual em tomar a interseccionalidade como uma ferramenta teórica e metodológica, não esquecendo-nos que são nas multiplicidades dos modos de vida, nos enfrentamentos sociais que estão os maiores desafios para compreensão e mudança nas condições de vidas das mulheres, principalmente as mulheres negras. Raça - Sobre esse grande delírio Em uma entrevista intitulada As Sociedades Contemporâneas sonham com o Apartheid, Achille Mbembe nos diz: “A crítica da modernidade estará inacabada enquanto não compreendermos que o seu advento coincide com o princípio da definição de raça e da lenta transformação deste princípio em matriz privilegiada de dominação ontem como hoje” (Mbembe, 2014, p. 6). Em outra obra do mesmo autor chamada Crítica da Razão Negra, Achille Mbembe (2018) adensa as reflexões sobre a categoria raça e o sujeito racial quando coloca que
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Se aprofundarmos a questão, a raça será sempre um complexo perverso, gerador de medos e tormentos, de problemas de pensamento e de terror, mas sobretudo de infinitos sofrimentos e, eventualmente, de catástrofes. Na sua dimensão fantasmagórica é uma figura da neurose fóbica, obsessiva e, por ventura, histérica (Mbembe, 2018, p. 27).
Tomo essas duas ideias – uma crítica ainda mal-acabada sobre a modernidade e, por extensão a colonialidade e a ideia de grande delírio fóbico que é a invenção das raças, em particular a raça negra –, como elementos centrais para pensarmos o que temos aprendido sobre modernidade, colonialidade e as infindáveis discussões se vivemos ou não em uma pós-modernidade e, por extensão em uma pós-colonialidade. Parto da ideia de que precisamos tomar outras lentes conceituais e metodológicas (lentes decoloniais e anticoloniais) (Quijano, 2000; Mignolo, 2000; 2003) que permitam perceber com mais vigor e luminosidade o que nos atravessa cotidianamente, principalmente nos embates raciais que estamos vivendo em diferentes cenários brasileiros. Isso requer tomar a compreensão da construção da sociedade latino-americana e brasileira através de outro eixo analítico que tem no violento processo da escravidão e suas complexidades, a espinha dorsal para compreensão das relações sociais (Nascimento, 2017; Munanga, 2017). A partir dessa outra leitura, não tão presente nas formas de contar a história do Brasil, da América Latina e Caribe; o processo escravocrata e suas singularidades tornam-se o elemento central, alimentado por diferentes dispositivos sejam estes narrativos configurando-se em um grande processo de enfabulação que tem no signo negro e na África lugares privilegiados nas construções narrativas ou nas relações sociais que tiveram no modelo da plantation (grandes latifúndios baseados na mão-de-obra escrava) o exemplo do paradigma biopolítico e necropolítico, ou melhor, bio-necropolítico. Tomo neste texto a noção de bio-necropolítica a partir do conceito de biopolítica forjado por Michel Foucault (2010, 2008; 2008b) e de Necropolítica trazido nas obras de Achille Mbembe (2017; 2018). Por bio-necropolítica compreendo um acoplamento de saber-poder que coaduna elementos da biopolítica como a disciplina, o biopoder, o controle das populações, mas incorpora também
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elementos de uma necropolítica como, por exemplo, a constante possibilidade de extermínio e a marca da exceção presente na organização social, econômica, jurídica, entre outras características decorrentes dos processos de colonização e neocolonização que tiveram na ficção racial, na constituição das colônias e no sistema de plantation características fundamentais. A ficção racial foi fundamental para a constituição do que chamamos modernidade. Michel Foucault toma de forma muito interessante esse debate, principalmente no livro Em Defesa da Sociedade (2010) quando forja a ideia de racismo de estado, deixando evidente que a invenção e materialização das raças foi o elemento central da modernidade e do que ele chamou de biopolítica. Foucault não se debruça sobre a questão racial de Áfricas e seus povos, mas pensa a questão racial em uma abertura geopolítica as vicissitudes pelas quais a Europa passou do século XV ao século XIX, percebendo e pensando os fluxos migratórios de povos não brancos que circulavam e/ou habitavam a Europa há muito tempo. O que vale destacar em suas análises é como a invenção das raças constituiu o motor da biopolítica e da consolidação da sociedade capitalista onde “(...) se o genocídio é, de fato, o sonho dos poderes modernos, não é por uma volta ao velho direito de matar; mas é porque o poder se situa e é exercido no nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços de população (...)” (Foucault, 2014, p. 148). Essa ideia encontra reforço no pensamento decolonial que tem pensado, a partir da categoria raça, o processo de colonização na América Latina e Caribenha. Aníbal Quijano (1999) no texto “Qué tal raza” coloca que “a ideia de raça é com toda seguridade o mais eficaz instrumento de dominação nos últimos 500 anos. Produzida no mero começo da formação da América e do capitalismo, na passagem do século XV ao XVI e nos séculos seguintes foi imposta sobre toda a população do planeta como parte da dominação colonial de Europa” (Quijano, 1999, p. 141). Mas foi Frantz Fanon, um martinicano, negro, psiquiatra que muito cedo se despede de nós, em 1961 aos 36 anos de idade, que lançou as mais instigantes reflexões sobre a ficção racial tendo na experiência vivida do negro o elemento central de suas análises nas obras Pele Negra, Máscaras Brancas publicada em 1952 e, posteriormente em Os Condenados da Terra publicada em 1961. Embora, as análises se constituam sob e sobre o homem negro é
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impossível ler a obra sem pensar como estes elementos e reflexões perfazem também as experiências de subjetivação de mulheres entendidas e marcadas socialmente como mulher negra e/ou racializada. Para Fanon (2008), perceber-se negro é se ver “objetos em meio a tantos objetos”, essa zona de não-ser, mas sendo, na medida em que ao intitular-se “branco”, os europeus caucasianos elegeram aqueles de pele não branca como negros, inventando, assim as raças onde uma dessas – a dita raça negra –, se constituiria através de esquemas corporais e subjetivos marcado por opressões, ausências, negação e violências, configurando-se, esse movimento, em uma experiência a qual chamou de epidérmico racial. No entanto, foi e é em virtude de ser arremessado nesse processo de inexistência que Fanon se deu conta de sua negritude, essa tomada de uma consciência fundamental nos processos de reconhecimento e de luta enquanto negro(a) onde (...) a consciência negra é imanente a si própria. Não sou uma potencialidade de algo. Sou plenamente o que sou. Não tenho que recorrer ao universal. No meu peito nenhuma probabilidade tem lugar. Minha consciência negra não se assume como a falta de algo. Ela é. Ela é aderente a si própria (Fanon, 2008, p. 122).
É a partir da ideia de que a raça e, consequentemente a raça negra é uma ficção materializada em corpos e subjetividades e que só na experiência do vivido, sua imanência (vida nas suas formas de diferença) e na experiência da negritude que as questões raciais precisam ser discutidas e, aqui em particular, as experiências que se encontram nos cotidianos das mulheres negras em que o racismo e o sexismo, acompanhado pelo machismo e pela misoginia são elementos presentes. No que se refere à ideia de colonialidade e a sustentação da ideia de que vivemos um padrão de poder marcado pela colonialidade é importante ressaltar que não somos mais colônia, no entanto alguns desses elementos perfazem e são reiterados nas práticas sociais. Findo, de um certo modo, o domínio colonial; o que alguns pensadores e pensadoras têm chamado de colonialidade permaneceu e permanece se atualizando cotidianamente nos discursos e práticas nos diferentes contextos latinos e brasileiros. Nesse sentido, tomo mais uma vez as ideias de Aníbal Quijano
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que junto a outros e outras pensadores e pensadoras latinoamericanos(as) têm tomado como construção epistemológica as experiências na América Latina e Caribe pensando a relação entre colonialismo e colonialidade, contribuindo para a construção de um pensamento decolonial. Entre os conceitos intercessores forjados pelo autor tomo aqui emprestado, principalmente, o debate sobre a colonialidade do poder; diferenciando colonialidade de colonialismo e entendendo que a colonialidade é a pedra fundacional do padrão de poder mundial capitalista, colonial/moderno e eurocentrado. Essa colonialidade do poder que persiste e se reitera tem provado ser mais profunda e duradoura que o colonialismo, presentificandose nas práticas sociais, entre estas as relações sociorraciais. Assim, para Quijano (2000) A Globalização em curso é, num primeiro termo, a culminação de um processo que começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial sobre a ideia de raça, uma construção mental que expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica o eurocentrismo. Este eixo tem, pois, origem e caráter colonial, mas tem demonstrado ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido. Implica, em consequência, um elemento de colonialidade no padrão de poder hoje mundialmente hegemônico. No que concerne, o propósito principal é abrir algumas questões teoricamente necessárias acerca das implicações dessa colonialidade do poder a respeito da história da América Latina (Quijano, 2000, p. 201).
Partindo dessa ideia e ampliando as possibilidades de exercício de um pensamento crítico argumento que a colonialidade à brasileira assumiu características singulares como o já citado mito da democracia racial e o imperativo da miscigenação. Essas construções discursivas formam um conjunto semiótico que evidencia como as práticas racistas no Brasil são, muitas vezes, silenciosas e/ou mascaradas por discursos, e quando expostas visibilizam as suas faces mais perversas; fazendo da materialização dessas experiências intersubjetivas um dos grandes desafios que
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precisamos enfrentar na agenda social contemporânea brasileira. É nessa maquinaria que situo as diferentes experiências subjetivas vivenciadas por mulheres negras em situações cujos marcadores sociais da diferença acentuam-se. Tomando a geopolítica da cidade do Rio de Janeiro, ressalto que na medida em que estas mulheres vivem em comunidades e/ou favelas, nas periferias da cidade, na Baixada Fluminense, na Zona Oeste e na Zona Norte; regiões marcadas por uma geografia espacial e humana da exclusão e de opressões aumentam as possibilidades de vulnerabilidades e violências onde A localização simbólica dos moradores de favelas no contingente inimigo da “guerra” tem não apenas permitido a naturalização de suas mortes, como estabelecido uma gramática moral centrada na trajetória das próprias vítimas como condição para a eventual apuração das condições dessas mortes e a tentativa de penalização judicial dos responsáveis por elas (Vianna, 2015, p. 406).
Dessa forma, atravessadas por marcadores sociais e dinâmicos de classe, sexo, gênero, e tendo a raça como espinha dorsal, infelizmente fazem parte das estatísticas de subempregos ou desemprego, habitam territórios marcados pelas violências, compõem o número de mães que perderam seus filhos nas mãos – principalmente –, da polícia militar, transformando esse processo de dor e luto em uma dimensão não apenas individual, mas coletiva (Vianna & Farias, 2011), habitam os espaços psiquiátricos evidenciando a relação entre racismo e sofrimento psíquico, compõem majoritariamente a população carcerária feminina; elencam, infelizmente, ainda que de forma sub notificada ou muitas vezes não notificada as violências nos espaços de cuidado à saúde, destacando aqui a violência obstétrica e os abortos inseguros; lotam as filas da defensoria pública. Assim, tomando como parâmetro as questões trazidas, ressalto que para tomarmos as vicissitudes que atravessam as vidas das mulheres negras a partir da perspectiva interseccional tornase necessário desmantelar as ruínas do mito da democracia racial, o imperativo da miscigenação, a política de embranquecimento que funcionaram e funcionam ainda e com muita força como elementos mascaradores das assimetrias e desigualdades, mas
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precisamos, principalmente, enfrentar o assombro e desassossego que vem hora da visibilidade e dizibilidade dos modos de vidas das populações negras hora da urgente necessidade de políticas de reparação e do compromisso urgente em diminuir as desigualdades raciais; expressas pelas incomensuráveis violências que explodem diariamente no âmago das opressões e que tem nos corpos-subjetividades das mulheres negras espaço privilegiado nas relações necropolíticas. Bio-Necropolíticas Achille Mbembe (2017; 2018) no ensaio Necropolítica cuja primeira publicação data de 2006 bem como as recentes reflexões na obra Políticas da Inimizade na qual consta um capítulo chamado “Necropolítica” uma questão salta e nos provoca. Nos pergunta o autor: A noção de biopoder será suficiente para designar as práticas contemporâneas mediante as quais o político, sob a máscara da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, opta pela aniquilação do inimigo como objetivo prioritário e absoluto? A guerra, não constitui apenas um meio para obter a soberania, mas também um modo de exercer o direito de matar. Se imaginarmos a política como uma forma, devemos interrogar-nos: qual é o lugar reservado à vida, à morte e ao corpo humano (em particular o corpo ferido ou assassinado)? Que lugar ocupa dentro da ordem do poder (Mbembe, 2017, p. 108).
Assim, pelo olhar do Achille Mbembe, a noção de biopolítica sofre um deslocamento saindo de análises centradas em contextos europeus para pensarmos a forma de constituição desses diagramas de poder não apenas nos contextos pós-coloniais de Áfricas, mas também nos processos de colonização e nos traços de colonialidade que ainda imperam com força nos contextos latino-americanos, caribenhos e brasileiros. Dessa forma, muda o eixo de olhar para processos históricos e o holocausto judaico deixa de ser o modelo paradigmático, passando o processo de colonização e neocolonização e, consequentemente o extermínio das populações indígenas e a escravidão, a ser o centro do debate biopolítico onde essas vidas,
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essa bios precisam ser tomadas de uma perspectiva racializada. Na perspectiva Necropolítica, a forma como as colônias se organizaram operaram como lugares parecidos com as fronteiras, habitados por selvagens, abaixo da ordem estatal, não conseguiu gerar um mundo possivelmente ‘humano’, constituindo um mundo do terror. A escravidão ou o processo escravocrata, na forma como o toma o Achille Mbembe, constituiu o elemento central dos processos necropolíticos onde Qualquer relato histórico do surgimento do terror moderno precisa tratar da escravidão, que pode ser considerada uma das primeiras manifestações da experimentação biopolítica. Em muitos aspectos, a própria estrutura do sistema de plantation e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção (Mbembe, 2018, p. 27).
Em resumo, as colônias são zonas em que a guerra e a desordem, as figuras internas e externas do político, se tocam e se alternam umas com as outras. Como tais as colônias são o lugar por excelência em que os controles e garantias da ordem judicial podem ser suspendidos, onde a violência do estado de exceção supostamente opera a serviço da civilização (Mbembe, 2018, p. 35). Ou seja, nós nos constituímos desde o principio e no seu fim em uma zona de exceção, espaços onde “(...) a soberania consiste fundamentalmente no exercício de um poder à margem da lei” (Mbembe, 2017, p. 32). A exceção nos marca e os seus efeitos modelam as práticas discursivas reatualizando os traços de colonialidade; colocando em suspensão o que realmente almejamos ou queremos dizer quando falamos em democracia. O primeiro capítulo do livro Políticas da Inimizade chama-se justamente a “Saída da Democracia” e em meio a tantos inquietantes reflexões, Achille Mbembe (2017, p. 43) nos lembra (...) que a ordem democrática, a ordem da plantação e a ordem colonial mantiveram, durante muito tempo, relações geminadas. Estas relações estão longe de ter sido acidentais. Democracia, plantation e império colonial fazem objetivamente parte de uma mesma matriz histórica. Este fato originário e estruturante é central a qualquer compreensão histórica da violência da ordem mundial contemporânea.
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Parafraseando Achille Mbembe coloco que: este fato originário e estruturante é central a qualquer compreensão histórica das violências que têm se tornado cada vez mais visíveis e dizíveis em contextos brasileiros, acentuando tempos de tormentos, dores, embates, contra discursos, tempos de guerras, novas/outras guerras raciais, de repovoamento da terra, da condição terrestre e de um futuro ameaçado por tudo aquilo que corrói o presente, ou seja – um desencantamento de mundo, um desmantelamento do humanismo e do imperativo racional, um tempo que não se explica mais a partir apenas do biopoder e da biopolítica, mas de uma necropolítica, ou de uma bio-necropolítica –, uma política da matabilidade, uma economia de morte, do excedente, do eliminável, porque sobra aquilo que não se sacraliza; tempos de necropoder – este que sempre esteve presente enquanto linha de força em contextos marcados pela colonialidade e, consequentemente por relações demasiadamente assimétricas e opressivas. Mas também é um tempo de levantes e de resistências viscerais. Mais uma vez é o corpo – corpos-subjetividades que estão presentes, que são interpelados, subjugados, atingidos, dilacerados, cravados de balas, mas também são corpos-subjetividades que teimam corpos racializados em uma gramática sociorracial que já não é mais a mesma e nunca mais será. As reflexões apontadas na obra Necropolítica bem como em Políticas da Inimizade vão tornando potente este conceito para compreensão das relações de saber-poder nos contextos brasileiros, percebendo como uma bio-necropolítica é o diagrama por onde se instauram, atuam e renovam as relações de poder ainda sustentadas nas práticas raciais e marcadas por um governo de mortes (Farias, 2014). A partir das discussões proporcionadas pelo conceito de Necropolítica levanto algumas reflexões sobre os modos de vidas de mulheres negras em contextos brasileiros marcados pelo comum das práticas racistas: - As mulheres negras, seus corpos-subjetividades tornam-se, a partir desse lugar de ser mulher e negra um espaço privilegiado de relações de poder, violências, assujeitamentos, opressões onde uma economia da matabilidade (vidas que se tornam cada vez mais matáveis), um necropoder (poder de morte) e uma necropolítica (política da morte) se acoplam a biopolítica contemporânea. As mulheres negras (corpos e subjetivação), em virtude do marcador
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‘mulher’ e do marcador ‘negra’ constituem duplamente espaços onde a necropolítica contemporânea atua de forma incisiva expressa nas altas taxas de violência e feminicídio e nos números assombrosos de mães negras que perdem seus filhos na maquinaria de poder que tem na juventude negra o espaço de eliminação do presente e de extirpação de um futuro. - É impossível enfrentar o debate dos modos de vidas de mulheres negras e/ou racializadas, sem enfrentar as questões raciais, entendendo a raça como uma ficção materializada nos corpos e processos de subjetivação que são singulares, pigmentocrático, interseccionalizados com territórios, origem, idade, escolaridade, entre outros, mas marcados pelo comum da exclusão. É impossível enfrentar essa discussão sem tomar o marcador raça como a espinha dorsal pela qual as práticas discursivas racistas perpassam os corpossubjetividades de mulheres negras, evidenciando o gendramento e sexualização da raça bem como a racialização das performatividades de gênero e sexualidades.
- Para enfrentar as questões raciais e as práticas racistas nos contextos brasileiros, precisamos enfrentar a urgente necessidade de desmantelarmos por completo o mito da democracia racial e o imperativo da miscigenação como elementos modeladores das relações raciais no Brasil. Falar sobre o mito da democracia racial é tomar um conjunto semiótico complexo, um dispositivo discursivo e prático que produziu um discurso da cordialidade que sustentou durante um bom tempo as relações sociorraciais no Brasil. Aqui não levanto a ideia de que o mito resiste, mas, pelo contrário, falo dos incômodos que permanecem em suas ruínas, incômodo esse visível e dizível cada vez mais por uma recusa em tomar a presença atuante de negros e negras em espaços onde sua participação era quase insignificante, principalmente as universidades, as expressões culturais, as artes, entre outros marcados pela força do imperativo branco. - Isso, na minha análise, só se torna possível se encararmos os elementos de colonialidade que estão presentes nas nossas práticas cotidianas, principalmente as linhas de força que ressoam, a partir do processo escravocrata e dos elementos que estão presentes no
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imaginário e práticas sociais e que se tornou mais visível e dizível na última década, a partir de políticas sociais e de ações afirmativas que possibilitaram uma precipitação das relações raciais que enfrentamos cotidianamente.
- Ressalto que falar sobre a política da matabilidade não significa que tomamos a morte ou as vidas matáveis como um fato do qual não há possibilidades de saída. Pelo contrário. Necropolítica é um agenciamento de poder e, seguindo a máxima foucaultiana “onde tem poder, há resistência”, é na necropolítica que se ativam os pontos de resistência viscerais. Como nos diz o Achille Mbembe na entrevista: “Quando o poder brutaliza os corpos, a resistência assume uma forma visceral”.4 Sobre tempos de agora, sobre o futuro e o comum em nós Não há outro mundo. Só há um mundo, plural, mas um único mundo e faz parte de ser no mundo o desejo ilimitado de a ele pertencer. Esse movimento, por direito de todos os povos, é o que de mais frágil e angustiante carregamos. Acadêmicas e acadêmicos que somos precisamos nos implicar nesse processo, a academia precisa romper o silêncio, muitas vezes, perpetuado diante das opressões, principalmente as opressões raciais bem como romper com os ‘encantamentos’ acadêmicos pela excessiva teorização, muitas vezes desnecessária para além do jogo epistemológico. Aqui me alinho, mais uma vez, a Achille Mbembe quando na obra Sair da Grande Noite nos provoca dizendo: “Também é necessário resistir à cumplicidade por encantamento e saber para onde se encaminha o nosso canto, e qual é a sua filiação no destino da grande noite do mundo” (2014b, p. 31). A grande noite do mundo é uma ideia que o autor toma emprestado de Frantz Fanon quando este nos convoca a emergencial necessidade de sairmos da noite da colonização/ descolonização e de tudo aquilo que ela produziu, principalmente a coisificação do negro e, consequentemente das negras, que estiveram, durante um longo tempo fora da categoria (marcador) “Cuando el poder brutaliza el cuerpo, la resistencia asume una forma visceral”. Entrevista. Disponível em: https://www.eldiario.es/interferencias/AchilleMbembe-brutaliza-resistencia-visceral_6_527807255.html. 4
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“mulher” e fora da categoria (marcador) “negro”. Assim é preciso ter claro onde nós nos alinhamos nesse gigantesco labor que é “forjar um sujeito humano novo emergindo inteiro da “argamassa do sangue e da cólera”, livre do fardo da raça e desembaraçado dos atributos de coisa. Um sujeito quase-indefinível, sempre em remanescente porque nunca acabado, tal desvio que resiste à lei, mesmo a qualquer limite” (Mbembe, 2011, p. 2). Por fim, argumento e defendo que uma perspectiva interseccional deve atentar para o fato de que os marcadores sociais da diferença são singulares, apesar de se atravessarem o tempo inteiro, e que essa singularidade, no caso das vicissitudes que o Brasil tem vivenciado, principalmente na última década, confere a ficção racial à brasileira uma força e requer de nós um enfrentamento na urgente agenda contemporânea brasileira marcada pela raiva, pelo tormento, pelo ódio e pelo desassossego. Não há processo de luta que responda à ficção racial sem dor, sem tormento, sem raiva e sem violência. E nesse devir, sem dúvida, as mulheres negras tem um lugar e uma força fundamental de transformar realidades.
Desejo
O “princípio da putaria” nas orgias masculinas: diferença e singularidade no corpo orgiástico Victor Hugo de Souza Barreto1 Um momento de efervescência É o segundo domingo do mês e novamente chego à “Festa do Vale Tudo” para mais um dia de trabalho de campo em minha pesquisa sobre as festas de orgia entre homens no Rio de Janeiro. Fico de sunga (o vestuário permitido nessas festas é sunga, cueca ou nada) e vou andar pelos ambientes da casa procurando acompanhar os encontros dos em torno de cento e cinquenta homens ali presentes. Dentre as várias interações eróticas observadas durante as sete horas de festa, trago a descrição de um dos “picos de intensidade” ou um dos momentos efervescentes em que estava presente. Nesse dia conheci um dos participantes que vou chamar de Léo. Ele é alto, se destacava pela altura diante dos outros homens presentes, moreno,2 cabelo raspado, parecia estar na faixa dos 30 anos, morador de Caxias, tinha um corpo magro normal, ainda que tivesse dito que trabalhava como professor de educação física em uma academia; e também possuía uma perna um pouco mais curta do que a outra o que fazia com que tivesse um andar um pouco arrastado. Vi Léo pela primeira vez em uma interação à três em uma das suítes coletivas da casa. Quando me viu, abandonou os outros dois homens com quem estava e veio conversar comigo. Me fazia perguntas aleatórias enquanto me levava para um sofá um pouco afastado das atividades eróticas que aconteciam ao nosso redor. Aproveitei para perguntar coisas referentes à pesquisa, mas Léo era muito insistente, ficava pegando em meu corpo a todo momento, me beijando o pescoço e a nuca e Victor Hugo de Souza Barreto é doutor em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense. Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. 1
Assinalo desde já que os termos de classificação que utilizo nas descrições dos corpos dos participantes, incluídos aí os modos de classificação racial marcados ou não com aspas, foram aqueles verbalizados pelos meus interlocutores (ainda que não tenham sido pronunciados naquele exato momento ou só tenham sido informados posteriormente). 2
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queria ficar de mãos dadas. “As pessoas aqui me assustam um pouco. Você parece ser legal. Eu não sei ser putão, sabe?”, me disse, “pergunto logo o nome, quero saber da vida da pessoa, conversar, me apego”. Em pouco tempo estava contando sobre o seu último relacionamento amoroso que era à distância e tinha terminado recentemente. Disse ter conhecido o ex-namorado em um outro espaço voltado para interações eróticas entre homens no Rio e que após um mês de namoro o outro terminou a relação por mensagem de texto. Falei para darmos uma volta enquanto continuávamos a conversa. “Você quer ver a putaria, né?”, respondeu me seguindo, mas ainda segurando a minha mão. Após passarmos pelas outras suítes chegamos ao ambiente que é conhecido aqui como “aquário”, um quarto com sofás e uma parede de vidro que deixa ainda mais visível para os outros o que acontece ali. Quando chegamos havia uma interação acontecendo. Um rapaz de barba e sunga vermelha penetrava outro, com uma tatuagem na panturrilha, que estava deitado no sofá de pernas abertas. Nesse espaço estavam esses dois, eu, Léo e mais três ou quatro pessoas que estavam “participando” da interação do casal. Falavam “sacanagens”, incentivavam o ato, passavam a mão e seguravam as pernas do rapaz com a tatuagem no sofá mantendo-as bem abertas para que o rapaz de barba pudesse continuar a penetração. Muitas mãos e cabeças e corpos se aproximando, se agrupando, para ver melhor ou para sentirem melhor o que ocorria. O rapaz de barba fala: “tô me segurando muito para te leitar” e o outro responde que ele não precisa segurar e pode gozar, e todos acompanham em suspenso os gemidos mais altos do rapaz de barba. Léo, que foi se agitando com o decorrer da cena, diz no meu ouvido: “Quer me ver comendo ele também?”. Sem esperar minha resposta ele se aproxima do casal e sem falar nada, apenas com gestos, comunica que também deseja penetrar o rapaz de tatuagem que estava de pernas abertas no sofá. O rapaz de barba incentiva: “Aproveita que já está larguinho e dá para ele”. O outro aceita e os corpos se afastam por um momento e se reposicionam no ambiente. Léo fica de pé, encostado na parede enquanto segura o rapaz que antes estava no sofá pelo quadril com uma mão e com a outra me puxa para ficar a seu lado. Alguém dá uma camisinha para Léo também incentivando a transa. Em pouco tempo, eles se encaixam enquanto Léo puxa o cabelo do rapaz para trás. O rapaz de barba continua ali, observando a cena, ainda ofegante e suado do gozo anterior, mas já sendo chupado novamente por alguém. A quantidade de pessoas cresce
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atraídas pela interação, chego a contar em torno de 15 homens, uma aglomeração, uma multidão, todos juntos, se ligando, conectando, partes já indistintas de corpos se misturando. O ambiente é tomado por um cheiro de umidade, suor, de “cheiro de sexo e de homem”. Léo acelera a penetração cada vez mais a pedido do rapaz: “Fode! Com mais força!”. A parede em que estamos encostados chega a tremer com os movimentos. A todo momento, Léo busca contato visual comigo e me aperta com uma das mãos na cintura. Olha ao redor para a multidão e sorri também. As pessoas chamam tanto ele quanto o outro de “puto” e “safado”. Passam a mão pelos corpos, beliscam, lambem e mordem os mamilos de Léo, masturbam e chupam o rapaz que está sendo penetrado. Os movimentos se aceleram até alcançar um clímax entre muitas mãos, cabeças, suspiros, falas entrecortadas e gemidos. Depois, a multidão logo se desfaz, as pessoas se dispersam e Léo desaba no sofá descansando e continua conversando comigo. Olhamos enquanto as pessoas vão para outros espaços e continuam em trocas eróticas. Em determinado momento diz: “Aqui é tudo pela putaria”. ***
É meu objetivo neste trabalho apresentar uma reflexão sobre determinadas práticas sexuais realizadas entre homens na cidade do Rio de Janeiro em reuniões de orgia. O que a experiência, ou melhor dizendo a experimentação, da sexualidade nessas festas parece colocar em jogo são outros modos de subjetivação e corporalização, maneiras propriamente intensivas, nas quais a intensidade do instante de vida (ou de gozo) se impõe sobre a duração da vida em extensão, ou sobre os outros aspectos da vida dessa pessoa. Com base em dados de campo de uma pesquisa que desenvolvi para o Doutorado em Antropologia,3 meu interesse neste trabalho é refletir melhor sobre a ideia de “putaria” como modo singular de engajamento no mundo.
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Tese que deu origem à publicação Barreto (2017a).
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A química da orgia
É preciso saber fazer os encontros que lhe convêm (Deleuze, 1978)
Pouco antes de iniciar o trabalho de campo e as idas às festas de orgia, tive uma conversa com um amigo que de vez em quando participava delas. Nessa conversa ele disse que ao observar os homens andando pelo dark room da casa procurando interações sexuais uns com os outros, lembrava-se de cenas dos filmes de terror de zumbi, em moda atualmente. Assim como os zumbis, ele via aqueles homens na orgia como seres sem vontade própria e sem personalidade, com um andar constante na penumbra local, apenas respondendo a um instinto e se alimentando com a carne e a vida alheia. Em pouco tempo percebi que a imagem dos zumbis não era a mais adequada para dar conta do que acontecia naquele espaço durante as festas. Aquelas pessoas estavam longe de serem seres apáticos ou sem consciência que se consumiam. Uma imagem mais adequada para a deriva das pessoas e suas interações nesses eventos são as ligações e reações químicas entre os elementos. Aqueles homens parecem muito mais átomos que procuram se ligar (e, de acordo com a química, existem diferentes tipos de ligação), de forma a trocar, doar ou compartilhar elétrons, formando assim moléculas. Não há consumo unilateral da “vida” do outro, o que há são composições, ligações, afecção dos corpos e encontros. Em uma de suas aulas sobre Espinosa, Deleuze explica que para esse pensador o mundo é uma construção ou um movimento permanente feito a partir dos encontros dos corpos, tudo o que existe se constituiria a partir do encontro. Na filosofia espinosista, esses encontros nos constituem na medida em que tem a potência de, a cada vez, transformar os corpos, compor ou decompor, e até mesmo produzir um novo corpo. Aqui, como na analogia que trouxe das ligações e reações químicas, “no encontro não existe aquele que afeta e o que é afetado: alguma coisa acontece em ambos (ou nos vários) elementos envolvidos” (Silva, 2004, p. 9). Assim, para Espinosa, um bom encontro seria aquele no qual os homens se sentem alegres, quando potencializam seu agir e existir, quando compõem com outro corpo, aumentando sua vontade
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de potência. O oposto se daria em um mau encontro, em que há diminuição dessa potência ou mesmo destruição. Tudo se dá a partir dos encontros dos corpos e de como somos afetados por eles. Viver seria oscilar, portanto, entre bons e maus encontros, entre a alegria e a tristeza. Ou mesmo entre o prazer e o desprazer. Como não há nada que permita prever se o encontro vai ser bom ou ruim, apenas a experiência, o encontro efetivo, é que o dirá. O que significa que não se possa construir um saber, ou uma técnica, baseada em encontros anteriores, os quais permitam controlar, um mínimo que seja, o resultado destes visando efeitos positivos. Ainda assim, mesmo com toda a “técnica” utilizada, o momento efetivo do encontro é do acaso. E talvez possa residir aí, nesse se arriscar e se colocar no acaso dos encontros, um dos maiores prazeres encontrados em algumas práticas como uma aposta no jogo, o uso de uma droga, uma “pegação” em local público, a ida em uma orgia etc. Cabe a pergunta: o que faz um encontro ser bom ou ruim em um contexto de orgia? Como saber organizar bons encontros nesse contexto? No caso da orgia, me parece ser a intensidade, caracterizada e performatizada pela “putaria”, que determina os bons ou maus encontros. Intensidade e experimentação Um dos principais desafios desse campo é que os participantes da festa pouco buscam explicações sobre suas práticas ou possuem discursos elaborados sobre aquilo que se passa nesses eventos.4 Minhas perguntas são acompanhadas dessa dificuldade em elaborar algo que eles dizem que apenas sentem. Minha estratégia, portanto, esteve em cartografar esse mapa, essa zona de intensidades que perfaz as festas de orgia. A intensidade, performatizada nesse caso na/pela putaria, é um elemento chave, já que é ela que força, desencadeia e alimenta as práticas. A intensidade é aquilo que só pode ser sentido. Isto significa que é ela, e só ela, que dá a sentir, que faz sentir, que força a sentir, que pelo que me falam os participantes não pode ser objeto de nenhuma outra faculdade nem capturado em um discurso Sem contar que os espaços da festa também não são os locais mais apropriados para emitir “explicações”. 4
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explicativo. Não é que não haja “razão” ou “racionalidade” nos eventos etnografados. Pelo contrário, como espero explicitar, nessas festas é preciso um saber “técnico” e mesmo performático para que a fruição alcance níveis maiores de intensidade. Minha proposição é sobre a dificuldade de “procurar explicações” para aquilo que primordialmente se sente. Em nossa concepção de ciência, de forma geral, não cabe o que vem da sensibilidade, dos sentidos; há a criação de uma hierarquia entre o superficial e o profundo. Deleuze criticava essa posição que valoriza a profundidade em detrimento da superfície, isto é, a concepção segundo a qual “superficial” significaria de pouca profundidade e não de vastas dimensões, e “profundo”, de grande profundidade e não de pouca superfície. “O mais profundo é a pele”, diz uma das belas expressões de Deleuze (Machado, 2013, p. 35), e a que melhor define o que se passa nas festas de orgia. A intensidade é a “razão” desses eventos, criando e produzindo a sensibilidade do fenômeno. Algo da ordem da experimentação e, dessa forma, aquilo que acontece ali é ou só poderia ser experimentado. Por isso, inclusive, minha participação ser continuamente reivindicada pelos “nativos”. Esse questionamento vem do entendimento que as coisas que acontecem ali só possuem uma compreensão na medida em que são sentidas, experimentadas. Irônico perceber isso, em uma questão também apontada por Caiafa (2007, p. 154), que durante minha experiência nesses anos de formação acadêmica ao participar e assistir a muitas bancas e falas em congressos, a grande preocupação em nossas pesquisas parece ser o de se “relativizamos o suficiente” o que observamos, se nos “distanciamos” do que acontece no campo, enfim, o grande questionamento é se estamos “longe o suficiente” do que estudamos, quando o que meus interlocutores questionam e que não parece ser preocupação acadêmica é se, em nossas pesquisas, conseguimos estar “perto o suficiente”, se de fato nos aproximamos e compreendemos aquilo que acontece em campo.5
Ou, como afirma Favret-Saada, em seu já clássico texto sobre a afetação no trabalho de campo: “Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de vista do nativo, nem aproveitar-se da experiência do campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa 5
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O corpo orgiástico Uma pesquisa que se faça entre pessoas interagindo em atividades de sexo coletivo não pode se furtar a uma discussão sobre corporalidade. Não apenas porque seja uma “problemática obrigatória”, mas porque, de fato, é a linguagem principal que pude encontrar nesse campo. Essa característica apresenta uma forma de produção da subjetividade que foge, pela corporalidade, ao debate dicotômico muito presente nas ciências sociais entre “pessoa” x “indivíduo”. Nem pessoa nem indivíduo; os atores aqui se reconhecem e se constroem pela apresentação e uso de seus corpos.6 A especificidade é tanta que esse corpo chega ao nível da fragmentação: partes do corpo que se separam, ganham agência e vão de encontro ao desejo do Outro. Torna-se inevitável, portanto, que a discussão das orgias aponte para a discussão do que Mauss (2003, p. 401) chamou de técnicas corporais, isto é, “as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de uma maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos”. O contexto dessas festas obriga a um relacionamento diferenciado com o próprio corpo. E se queremos nos aproximar de um entendimento do que se passa nesses encontros teremos que levar isso em consideração. É por conta disso que, se o evento das festas de orgia é tema de interesse deste trabalho, ele o é na medida em que oferece um terreno privilegiado para a investigação da produção social, tanto material quanto simbólica, dos sujeitos e dos corpos humanos, “bem como das concepções e das experiências de vida e de morte implicadas nessa produção” (Ibid.). Nesse sentido, tal como ressalta Vargas, é importante considerar que nem sempre os humanos se definem como sujeitos e servem-se de seus corpos de uma maneira extensiva, ou segundo critérios extensivos (Vargas, 2001, pp. 214215); o que pretendo demonstrar neste trabalho é que a experiência e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível” (Favret-Saada, 2005, p. 160).
Não por acaso, os meus relatos e narrativas do campo são pautados pela descrição dos corpos dos “nativos”. Ao me deparar com a óbvia dificuldade em se descrever uma orgia, fui percebendo que, ainda que venha nomear uma ou outra pessoa, os participantes são apresentados por suas características corporais. O que estou dizendo é que isso não é apenas um recurso narrativo do qual estou me valendo, é pelo corpo (e seus encontros, suas “ligações químicas”) que essas pessoas se constroem e se dão a conhecer nesse contexto. 6
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da sexualidade nessas festas coloca em jogo outros modos de subjetivação e corporalização, modos propriamente intensivos, como venho dizendo, onde o “se jogar” nos instantes de intensidade das interações sexuais possíveis nas festas é “se perder” e fazer fugir os aspectos extensivos como trabalho, família, casa, saúde e todos os valores morais correspondentes a eles.7 Ao atentar para esses eventos intensivos me aproximo de etnografias que trazem um deslocamento de questões para uma busca de um entendimento mais próximo ao que as pessoas dão às práticas que realizam. Pesquisadores como Vargas (2001), Eugenio (2006), Ferreira (2006) e Rocha (2011) apontam como em diferentes contextos como de uso de drogas, shows de música eletrônica, a prática de esportes radicais e idas a boates, existem eventos que envolvem agenciamentos paradoxais de autoabandono, que visam “sair de si”, o êxtase e o descentramento. Tomam a “onda”, a “vibe”, a “loucura” (assim como eu tomarei a “putaria” aqui), como envolvendo modos singulares de engajamento no mundo. “Tais descentramentos dizem respeito quer à “razão”, quer ao “corpo” ou, melhor dizendo, a ambos simultaneamente”. Portanto, o que parece estar em jogo nessas alterações de percepção é a fabricação de outras maneiras de produção da subjetividade ou de subjetivação dos corpos. “Outras maneiras de ser (a)gente” (Vargas, 2001, p. 22), de criar singularidade. A repetição na orgia Venho mostrando nesse texto como a ida às orgias é, ela própria, uma forma, uma maneira e uma busca de singularização, de criar diferença, de saltar do fundo indistinto do cotidiano para um acontecimento de pura intensidade, pela própria vontade de potência dos participantes. Não caberia aqui uma moral onde as Ao contrário do que possa ter dado a entender aqui, não quero dizer que os homens que frequentam essas festas trabalhem em uma lógica disjuntiva (ou...ou...). A maneira como eles parecem lidar com os diferentes “mundos” e “categorias” em que vivem assemelha-se muito mais a uma lógica da conjunção (e...e...). Aproxima-se daquilo que Eugenio (2006) chama de “hedonismo competente”, uma competência em saber articular os compromissos da vida cotidiana com as práticas de “perdição”, de “êxtase”, do que eles chamam aqui de “putaria”. 7
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coisas são pensadas em termos de “certo”, “errado”, “bem”, “mal”, “castigo”, “dever” ou “proibição”, todos baseados em valores que são tomados como transcendentes à vida e à sua extensividade (e isso nem se encontra presente no discurso nessas festas). Há aqui é o que Deleuze chama de “ética da potência” (Machado, 2013, p. 72). Essa vontade de potência que alimenta o retorno às festas chamou a minha atenção devido a uma frase inscrita logo no início de seu Diferença e Repetição: “A festa não tem outro paradoxo aparente: repetir um ‘irrecomeçável’. Não acrescentar uma segunda e uma terceira vez à primeira, mas elevar a primeira vez à uma ‘enésima’ potência” (Deleuze, 2009, p. 20). É na elaboração que Deleuze faz sobre o conceito nietzschiano de “eterno retorno” que podemos trazer elementos que contribuem para pensar sobre as festas de orgia. Para Deleuze, “repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tem semelhante ou equivalente” (Ibid.). Faz eco aqui ao pensamento nietzschiano de que “o que você quiser, queira-o de tal modo que também queira o seu eterno retorno”. O pensamento do eterno retorno propõe uma seleção, porque elimina da vontade tudo o que não se adequa a esse pensamento, eliminando os “semiquereres”, as meias-vontades, estabelecendo uma vontade criadora. Eis o sentido da vontade de potência como vontade afirmativa: seja o que for que se queira, elevar o que se quer à última potência, à enésima potência, que é a potência do eterno retorno (Machado, 2013, p. 97). Porém, é claro que a busca, a vontade de alcançar essa “enésima” potência, ao mesmo tempo em que pode se apresentar como força criadora, maneira de singularização e (por que não?) de extremo prazer, tem também um potencial destruidor, de risco, de aniquilação. São como os momentos de “fissura” conceituados por Díaz-Benitez em sua análise das filmagens de filmes pornográficos de humilhação:
Fissuras seriam aqueles instantes de fronteira em que as emoções extrapolam o sentido dado de antemão às práticas, são momentos em que, em meio a um ato sexual, transpassa-se do consentimento ao abuso (...) Ou seja, houve consentimento, mas a prática trouxe uma intensidade que não é possível de prever ou de antecipar e que rompe com o pacto empreendido com o outro e consigo mesmo, ocasionando emoções que evocam mais perigo do que prazer. A fissura é a evidência de que a prática extrapolou a expectativa da
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dor, é uma fenda onde o ato (ou representação do ato) se torna violência, embora logo a fissura possa se refazer por meio da sociabilidade ou a amizade que envolve a dinâmica de grupo nos sets de filmagem (2014, p. 1).
A questão a todo tempo nas festas de orgia tem a ver justamente com essa manipulação dos limites, o controle de si e a imersão nesses êxtases, devires e estados de alta intensidade. Nesse sentido, as festas de orgia seriam acontecimentos onde determinadas práticas sexuais estariam na borda do que Gregori chama de “limites da sexualidade”, que seria “a zona fronteiriça onde habitam norma e transgressão, consentimento e abuso, prazer e dor” (2010, p. 3). A questão é, embora possa ser destruidora, ou mesmo mortal dependendo das circunstâncias, o importante é como essa experimentação possa ser vivida. Deleuze já alertava para a necessidade de uma prudência, de uma “embriaguez em que não se perde a sobriedade, a lucidez” (Machado, 2013, p. 220): “Procuramos extrair da loucura a vida que ela contém, mas odiando os loucos que não cessam de matar essa vida, de voltá-la contra si própria” (Deleuze, 1998, p. 67). Eu caracterizei acima esses eventos e experiências, esse sair de si, como paradoxal também pelo fato de, em campo, ter observado uma “sobriedade” dos “nativos” que eu não esperava encontrar em um evento como uma orgia e que, da mesma forma, não costuma ser descrita na literatura sobre rituais orgiásticos. O uso de drogas não é explícito e poucas vezes presenciei o consumo exagerado de bebidas alcoólicas durante as festas. Da mesma forma há todo um discurso e um controle subentendido ao cuidado na proteção de doenças sexualmente transmissíveis já que o uso da camisinha e do gel lubrificante é sempre incentivado.8 Ao mostrar minha surpresa para um dos meus interlocutores por não ter visto o consumo de álcool e drogas como esperava, ele me respondeu: “As pessoas vão lá para curtir a putaria, se elas se entorpecem não vão aproveitar. Quando eu estou ali fodendo, eu não quero que nada atrapalhe a minha percepção e sensação do que eu estou fazendo”.9
A questão do uso da camisinha e a exposição a situações de risco relacionadas, como a prática do sexo bareback (sem camisinha), mereceria uma atenção maior para qual me falta espaço aqui. 8
Sobre substâncias utilizadas, o que pude encontrar explicitamente é o uso de Viagra ou Pramil e poppers (substância que tem efeito semelhante a lança-perfume 9
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Portanto, como todo evento, esse também tem de ser feito, vale dizer, minuciosamente fabricado e realizado (uma preparação do espaço, da iluminação, da música, do corpo que se lava, se depila, se prepara etc.), ainda que, como todo evento, seus resultados sejam imprevistos e, de um modo ou de outro, escapem àquilo que os condicionam e introduzem alguma surpresa, diferença ou alteração. A putaria Acredito que o diagrama das principais linhas de força que compõem a forma como o corpo se apresenta e age nas festas de orgia ficará mais claro quando desenvolver melhor a ideia de “putaria” que aparece nas falas das pessoas. Aqui, apenas iniciarei essa discussão. Com poucas idas a campo, percebi que o termo “putaria” era constantemente acionado em diferentes situações. Compreendi também o uso do termo “safadeza”, mas me parece que esse seria um nível abaixo do que a putaria em uma escala de intensidade. Ambos são termos valorativos, adjetivam alguém que “puxa os limites” ou que tem uma performance que chama atenção: “seu safado”, “aquele cara é safado”, “você é muito puto”. Ao mesmo tempo são usados para valorar as práticas efetuadas e o próprio ambiente, sempre como meta a ser buscada. As próprias festas de orgia são chamadas por seus frequentadores como putaria, “você não pode vir pra putaria querendo romance”, “aqui é putaria, quer intimidade vai pra um motel”. Características, por exemplo, que são buscadas e admiradas nos atores que se apresentam no show de sexo ao vivo que ocorre no final de uma das festas de orgia acompanhadas. Quando em uma das festas nas quais estava presente, um dos atores foi tentar fazer um “trenzinho”, ou seja, penetrar um ator que estava penetrando um terceiro, a plateia correspondeu com gritos, assobios e aplausose foi possível ouvir comentários: “esse cara é muito safado, esse gosta de e loló) que funcionam mais como aditivos sexuais para melhorar a performance do que para “dar onda”. É claro que existe o uso de outras drogas e álcool nas festas. Os organizadores me disseram ser normal encontrar papelotes e saquinhos de cocaína nos banheiros e também já tiveram que expulsar pessoas alcoolizadas que estavam incomodando e atrapalhando as outras. O que quero dizer é que há como um acordo implícito de controle dos corpos nesse sentido.
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uma putaria!”. A putaria é o elemento organizador das práticas nesses espaços. Pela fala dos “nativos” percebe-se que, ali na orgia, não basta ser safado, tem que ser puto. Por isso um corpo bonito, um “cara de elite”, uma “gracinha” ou “para casar” não se torna necessariamente o centro das atenções. O que vale ali é a disposição para a putaria. Daí que corpos que em outros ambientes talvez não tivessem atenção ou talvez fossem considerados como abjetos (como deficientes, velhos, gordos etc.), nessas festas podem tornar-se desejáveis, até mesmo dando sentido ao próprio nome de uma das festas: “Vale Tudo”. Interessante comparar com outro local onde fiz pesquisa de campo, também localizado no Centro do Rio, no qual apresenta-se uma proposta diferente: uma festa de orgia onde só podem entrar/ participar pessoas que correspondam a um perfil pré-determinado, que seria: “homens magros, sarados, boa pinta, em boa forma física e dotados”. Como se identificam como um “club privé” (não aberto ao público) é necessário ser convidado por algum frequentador ou mandar foto antes para avaliação ou ser avaliado na recepção da festa (como aconteceu comigo em minha primeira ida).10 Aqui, já se poderia observar uma tentativa de estratificação do desejo, pela forma de exclusão através da hierarquia dos corpos, ou mesmo de outros marcadores sociais de diferença. Voltarei a isso mais adiante. A meu ver, a putaria, além de pautar e qualificar as práticas, os participantes e o ambiente, é uma potência oriunda das vontades e impulsos dos participantes das festas, como uma disposição. Guardadas as especificidades de cada contexto, estou usando disposição aqui no sentido que os presos estudados por Biondi dão a esse termo: Disposição e apetite são termos utilizados pelos prisioneiros para indicar a intensidade e o alcance de suas vontades, em seus mais variados formatos, expressões ou manifestações. Desta forma,
A mesma busca por “seleção”, por exemplo, encontrado em muitos perfis no Grindr (aplicativo de celular de encontros masculinos que exibe uma grade de imagens dos homens dispostos a partir do mais próximo ao mais distante). Os perfis normalmente trazem fotos de partes do corpo que o usuário acha mais atraente, dificilmente fotos de rostos são colocadas. Uma frase que pode ser lida em muitos perfis é: “Tenha bom senso. Não me cuido para pegar bagulho”, ou então: “Não sou e nem curto afeminados. Se for bichinha, nem chama”. 10
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permitem a criação de contornos, torções, soluções improvisadas que contam muitas vezes com o acaso para sua execução. Ademais, ao adquirir velocidade, são capazes de oferecer resistência ao poder que incide sobre os corpos, aquele que modula e limita (Biondi, 2010, p. 181).
Sendo uma disposição, a putaria não é da essência do indivíduo. Podemos lembrar de Léo, em minha descrição no início do trabalho, que logo alertou que “não era putão”, que se comportava de forma diferente das pessoas ali. Mas que, ao presenciar a interação no “aquário”, foi meio que tomado, atravessado por um fluxo, por um “devir-putaria”, ou um “devir-puto”. O corpo e como ele age/reage à putaria é, portanto, fundamental para a definição do status dos agentes nesse contexto de sexo grupal/coletivo e, consequentemente, como veículo privilegiado para as estratégias de distinção, sendo, simultaneamente, por elas condicionado.11 Novo mergulho Em uma outra festa da qual participei, pude presenciar uma situação que ilustra o que eu estou descrevendo sobre a disposição e o proceder do puto. Conheci Rafael em uma festa organizada em uma sauna em Botafogo. Rafael tem um porte atlético, alto, loiro, usava cordão de prata e uma sunga estampada de flores na festa. Alguém o descreveu como tendo um “jeito malandro” e sua postura chamava a atenção das pessoas ali presentes. Tentei chamar sua atenção para que viesse falar comigo, o que consegui: “o que tenho que fazer para beijar essa boquinha gostosa?”. Expliquei os motivos de estar ali, o que não o impediu de tentar uma aproximação erótica, mas ao falar para ele que era comprometido não insistiu em fazer sexo, mas não quis me afastar. Comecei a puxar assunto com ele. Me disse ter 26 anos, morar na Ilha do Governador e estudar psicologia em uma faculdade particular. Sua atenção foi alta comigo e como aconteceu com o Léo no relato anterior suas interações seguintes contaram com a minha presença e participação. Naquele momento formamos um “casal” que A ideia da “putaria” enquanto um conceito elaborado por meus interlocutores é apresentada com mais detalhes em Barreto (2017b). 11
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chamava a atenção, muitos queriam se aproximar e interagir, mais com o Rafael, claro. As pessoas se aproximavam tentando chupá-lo, me empurravam discretamente e ele brigava: “não, não, estou com ele! Chupa aí, mas ele fica aqui”. Rafael quis ir para uma cabine, escolheu a que tinha uma luz mais forte e queria deixar a porta aberta, gostava de ver e que todos vissem o que aconteceria ali, toda vez que alguém tentava fechar a porta, chamava a atenção da pessoa. Logo quando entramos nós dois, entraram dois outros homens. Um deles, um rapaz negro de sunga vermelha, tinha sua atenção voltada para Rafael, mas este quis que ele ficasse com o outro, um moreno de cabelo raspado, que entrou junto, o que não deixou o primeiro muito satisfeito. “Dá para ele primeiro!”, incentivava Rafael. O moreno de cabelo raspado chegou a colocar a camisinha, mas o negro de sunga vermelha continuava hesitando. O moreno de cabelo raspado, já sentado na cama da cabine, com o “pau encapado” (com a camisinha) deu uma mordida na bunda do primeiro, o que gerou um estresse e logo uma discussão. O rapaz negro de sunga vermelha que já não queria muito “dar” para o outro falou que ele o tinha machucado com a mordida e com isso deu início a uma discussão. O outro sentado falou: “Cara, quer saber? Chega, acabou”. Tirou a camisinha e com gestos amplos a jogou para o lado, mandou o primeiro “se foder” e saiu da cabine batendo a porta. Rafael ainda falava tentando apaziguar. O rapaz negro de sunga vermelha saiu também, mas logo voltou com outra camisinha na mão e um sorriso no rosto. O estresse tinha passado e ele ia conseguir ter a interação que desejava. Rafael ainda fazia um jogo deixando e não deixando que ele colocasse a camisinha nele. Mas acabou conseguindo fazer com que Rafael sentasse e ele subisse por cima. A ação não durou muito, logo o rapaz negro gozou em grande quantidade. Satisfeito, quis sair, mas Rafael não deixou: “Ué, mas já? Ah não! Você não fez tanta questão? Agora tem que aguentar. Agacha aí”. Colocou-o de quatro na cama e começou a penetrá-lo com força. O rapaz negro repetia que “não” sem muita força, tentou por um momento afastar Rafael com as mãos, mas do susto passou a rir e fazia cara de dor e de prazer. Com a cena o burburinho na porta aumentou, as pessoas se acotovelavam para conseguir assistir ao que acontecia. Rafael ainda fez alguns movimentos e falou para ele ir embora, se despedindo com uma sonora palmada na bunda do de sunga vermelha que saiu sorrindo. Mal fechou a porta, entrou outro rapaz, que Rafael logo chamou de
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“novinho”, já que ele tinha uma aparência adolescente. Rafael olhou para mim e disse: “lá vamos nós outra vez”. Perguntou se o rapaz tinha camisinha, respondeu que não, mas logo uma camisinha caiu entre nós jogada por alguém lá de fora que ouviu a pergunta e queria que a cena continuasse. O “novinho” pegou a camisinha, colocou em Rafael que o posicionou de quatro também e começou as fortes investidas. Disse que estava muito seco, cuspiu no ânus do rapaz, penetrou mais. Em pouco tempo, ele tirou a camisinha e deitou na cama para descansar sinalizando que a transa tinha terminado. “Mete mais”, pediu o rapaz. “Não”, respondeu sorrindo. À saída desse, nova entrada na cabine. Dessa vez foi um baixinho musculoso que chamava a atenção de outros na festa por ter um pênis grande e grosso. Ao ver essa característica, Rafael se empolgou de novo. Enquanto passava a mão na bunda do baixinho disse que estava na dúvida se queria comê-lo ou dar para ele, já que ele tinha tanto um pau quanto uma bunda boa. “Você é muito puto”, falou o baixinho para Rafael. O baixinho ficou manipulando e dedando a bunda do Rafael a pedido deste. Foi comandando e narrando a ação o tempo todo. O baixinho não tinha camisinha também, Rafael disse que ia lá embaixo buscar, mas acabou não voltando. Quando desci o vi interagindo em um grupo de outras cinco pessoas e quando me viu me chamou para se aproximar. Rafael durante toda a interação aqui descrita foi o operador, o orquestrador, o catalisador da putaria naquela noite da festa. O que pode o corpo?
Como aponta Vargas (2001, p. 539),
Estar atento à “importância intrínseca” das técnicas corporais e às “numerosas e variadas possibilidades do corpo” humano implica, a meu ver, o desembaraço da alternativa entre abordagens que tendem, num polo, a reduzir o corpo a um organismo individual, sede de instintos, necessidades, funções ou pulsões que formariam a base ou a pauta da vida social e, no outro polo, a reduzi-lo a uma representação mental, quando não a um “suporte de símbolos” ou a um “portador de significados sociais”, como se o corpo, sendo também uma ideia, também fosse apenas uma ideia.
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Por isso o autor ressalta a importância de se incluir em pesquisas que se debruçam sobre a corporalidade e, “para além das questões em torno da produção social e dos imperativos biológicos, a questão que, como notaram Deleuze e Guattari (1995, vol.4, pp. 3947), é espinosista (mas de certa forma também colocada por Mauss): “o que pode um corpo?”. O que também significa perguntar sobre “o que ele não pode” (Ibid.). Quais são seus limites? Qual o mundo que cerca o corpo? Que conexões (ligações, encontros) se oferecem a ele? A pergunta “o que pode o corpo?” não é minha, no sentido de que não sou eu que a está trazendo de fora. Ela é colocada a todo momento por esses homens em prática a cada ida nesses eventos, cada interação é uma oportunidade para se testar: “quais os meus limites? o que eu posso fazer? o que o outro pode fazer? até quanto eu ou ele aguenta?”. Seja como uma questão quantitativa (de “quantos cus eu comi”, pra “quantos caras eu dei”, ou “quantas vezes eu gozei”), mas também qualitativa, de intensidade das interações, “até onde eu aguento nesse encontro?”, “mais forte ou mais calmo, mais rápido ou mais devagar?”, “está me machucando, mas permaneço aqui ou não?”; “o que pode o meu (seu) corpo?”. Essas perguntas são feitas até mesmo na perda da conta das interações realizadas durante a festa. Como bem aponta Lima (2015, pp. 113-114) vivemos acreditando que existe um limite pré-determinado para nosso corpo: “acredita-se que já sabemos o que pode um corpo. Existe sempre um especialista para determinar o que pode um corpo”. Entretanto, experiências intensivas (como drogas, música, bebidas, esportes radicais, sexo etc.) apresentam experimentações que empurram, contornam, atravessam, enfim, retraçam as linhas de nossos limites. “Todas as faculdades podem ser levadas a seu limite, através da potência de algum estado” (Perlongher, 2012). Um cuidado, apontado anteriormente, é o do risco e perigo implícito nessas experimentações, já que “o que rompe, se rompe forte demais pode destruir tudo” (Perlongher, 2012). A questão é que não se sabe de antemão até onde se pode ir, “como se vai até o limite visto que ele não preexiste e precisa ser inventado, traçado?” (Lima, 2015, p. 114) O que os participantes das festas praticam pelo princípio da putaria é essa experimentação intensiva de seus próprios limites.
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E não existe desigualdade? O fato de perceber a orgia como um espaço privilegiado de singularidade e de usos outros do corpo, não quer dizer que não perceba o quanto ele é atravessado pelos chamados marcadores sociais de diferença (como classe, status, cor da pele, etc.) seja na configuração de desigualdades, seja na própria composição de prazeres. Pelo contrário, é possível perceber uma tensão constante nesse sentido. Existe uma discussão nas ciências sociais, principalmente no âmbito da sexualidade, de como alguns “agenciamentos” de desejo possuem o poder como uma dimensão estratificada. Para ficar em apenas dois exemplos e contextos distintos, tanto a etnografia de Perlongher sobre a prostituição masculina (1987), quanto a análise de McClintock sobre a dominação de gênero e de classe no imperialismo inglês (2010), mostram experiências nas quais prazer, dor, poder e submissão, não só estão misturados como também são fatores que “criam” esses desejos: Seguindo tal perspectiva, é interessante analisar [essas experiências], como alternativas que, no limite, problematizam os modelos que supõem naturalidade, inatismo ou normalidade entre as fronteiras que delimitam homens e mulheres e, mais particularmente o comportamento sexual masculino (ativo) e o feminino (passivo); assim como as fronteiras que separam o prazer da dor, o comando e a submissão. Tratam-se de experiências que ousam lidar com o risco social, ou melhor, com aqueles conteúdos e inscrições, presentes nas relações entre a sexualidade e, as suas assimetrias em termos de gênero, de idade, de classe e de raça (Gregori, 2010, p. 195).
Da mesma forma, não nego a existência nesses ambientes de uma hierarquia dos corpos e daqueles que são tidos como mais desejáveis em detrimento de outros. Aliás, é possível observar nesses eventos uma tensão constante entre esses marcadores de diferenças e desigualdades e o princípio “disruptor” que a putaria proporciona. Trarei dois resumos de acontecimentos presenciados em campo que podem servir de exemplo a essas tensões. O primeiro é relativo à como conheci um dos interlocutores dessa pesquisa que chamarei aqui de Marcos. A primeira vez que
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Marcos foi em uma das festas Vale Tudo foi presenciada por mim. Ele passou toda a primeira hora da festa do meu lado conversando e se dizendo muito “injuriado” com a situação, porque as pessoas que estavam ali não despertavam interesse nele. Reclamou bastante e pelo fato de eu estar ali “fazendo pesquisa” se sentia à vontade para “falar mal dos outros” só comigo. Marcos tem 35 anos, é branco, trabalha com Desenho Industrial, recém-divorciado, morador da Zona Sul do Rio de Janeiro e foi ali, porque imaginava que seria uma oportunidade de colocar o fetiche de “fazer uma orgia” em prática aqui no Brasil, já que só tinha participado de algumas no tempo em que morou na Europa, em Londres. Só que o que ele chamava de “perfil baixa renda” das pessoas presentes o “desanimou”. Apesar das reclamações e comentários irônicos sobre os outros participantes, Marcos não foi embora. Não demorou muito, diminuiu as reclamações e piadas e se deixava ser tocado e não se afastava nem repelia as tentativas de aproximação dos outros. Pelo restante da festa, a cada vez que o reencontrava, o via em alguma interação sexual, com duas ou mais pessoas. Em uma específica (que concentrava uma grande quantidade de gente) ele percebeu a minha presença e me chamou com um sorriso. Estava nu, agachado em uma cama das suítes, segurando a sunga na mão, enquanto três rapazes se revezavam para penetrá-lo (dois deles inclusive já tinha sido alvo das piadas de Marcos). Essa ação era o centro das atenções naquele momento na suíte atraindo muitas pessoas que também buscavam participar. Quando me aproximei, Marcos fez questão de me dar um abraço, mesmo não saindo da posição para ser penetrado. Estava bastante suado, com muitas marcas de mordida e arranhões pela pele. “Tô aproveitando”, me falou. Conversando antes do final da festa me disse que ainda achava a “putaria” na Europa muito melhor (não sendo exato se melhor nas práticas ou no público), porém disse ter “curtido bastante a tarde”. Marcos continuou a ir a várias edições da festa, como pude acompanhar, apesar de eventualmente ainda criticar alguns participantes. Um segundo exemplo foi uma discussão presenciada por mim na recepção de uma das festas. Quando cheguei havia um tumulto na entrada, porque dois homens que chegaram juntos pediram para conhecer o evento e após o passeio pela casa, desistiram da entrada alegando que só tinha gente feia. Um dos organizadores discursava irritado aos presentes, após a saída dos dois:
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Quero deixar uma coisa bem clara aqui: suruba, orgia, não é lugar para encontrar príncipe encantado, nem ver corpo, quem gosta de corpo é IML. Suruba é para ver pirocas e bundas, foder, chupar, dar e comer, sacou? Tem que vir disposto à putaria. Quem quiser ver cara que vá para boate gay, tem várias por aí (vendo o sinal de consentimento dos presentes continuou) gente, quem vai para suruba para ver cara? Por isso que adoro homens feios. Eles quando pegam...nossa! Fodem gostoso! ‘As bonitas’ só fodem com espelho, se pudessem se comiam! (com as risadas dos presentes concluiu) porque em uma orgia não tem que rolar isso. Tem sim, que ver picas e rabos gostosos. A festa é pra foder e rolar uma amizade sem cobranças sentimentais e sexuais. Entendem, né?
Se Marcos, aos poucos, vê os seus valores sobre as diferenças borrados pela efervescência das interações, a fala do organizador vem a esse encontro ao definir como devem ser as práticas em uma orgia, diante da recusa de participação dos dois rapazes (que, em sua visão, não tinham “disposição para a putaria”), por essas mesmas diferenças. A tensão que eu aponto entre marcadores de diferença e desigualdade, hierarquização de corpos e o princípio da putaria é, portanto, presente nessas festas, alcançando uma proximidade daquilo que Perlongher (1987) chama de “tensor libidinal”.12 Podendo se apresentar, portanto, tanto como fonte de prazer, quanto também como geradora de conflitos. Esses fatores de “desigualdade” surgem e são mais marcados como conflitos, me parece, principalmente no que diz respeito a um dos princípios mais importantes nessas festas de orgia que é o da masculinidade, ao que eles entendem do que é ser homem. Entretanto, o aprofundamento sobre esse princípio implicaria outra discussão que não tenho espaço aqui. O que quero dizer, por ora, é que essas festas possuem um ritmo, um tempo que alterna momentos de maior ou menor intensidade. Há tempos e espaços de efervescência, de descanso, de Como explica Gregori: “Os tensores libidinais, expressão que empregou [Perlongher], são resultantes da noção de que o desejo é feito daquilo que desafia, que arrisca e que assinala a diferença. O que essa sugestão implica é que os marcadores sociais de diferença – e entre eles o gênero, a idade, classe e status, cor/ raça – que operam como eixos na configuração das posições desiguais, em relações de abuso, também atuam na configuração daquilo que proporciona prazer. As hierarquias, as normas e proibições formam o repertório para o erotismo, a partir de todo um esforço de transgressão” (Gregori, 2010, p. 5). 12
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torpor e de reativação dos prazeres. Estou chamando a atenção nesse trabalho tanto para a busca quanto para os próprios momentos de “picos de intensidade”. São esses momentos de efervescência que têm não só a potência de criar “fissuras” (Diaz-Benitez, 2014), como explicitado, mas também de borrar esses marcadores, colocando todos em um plano no qual o que importa, o que diferencia, o que singulariza esses atores é sua “disposição” na putaria, sua desenvoltura durante os encontros, seja aumentando ou diminuindo a potência das “ligações”, seja catalisando e/ou capturando o desejo do outro, enfim, sua capacidade de dar ou receber prazer. À fim de concluir O que percebo estar em jogo nas festas de orgia, pensando-as como um fenômeno coletivo e relacional, é mais do que apenas um conjunto de pessoas que se encontram para fazer sexo umas com as outras. O que está em jogo é a tentativa de inventar e compartilhar com o outro, num movimento de deriva e captura, de desterritorialização e reterritorialização, de “prender e dar fuga”, relações singulares que fujam aos cânones (morais, familiares, institucionais, religiosos, sociais etc.), ou que, melhor ainda, coloquem esses cânones em outros termos, acionando ou fugindo de seus elementos estrategicamente a partir de seus desejos. Compondo uma forma de “resistência criativa”. Para usar uma imagem elaborada por Deleuze e Guattari: as práticas desse campo seriam como rizomas que brotam nos cotovelos dos galhos da “vida real”. É de intensidades que, primeiramente, tratam-se esses territórios. Ao contrário de “traduzir os estados vividos em representações ou fantasmas, fazendo-os passar pelos códigos da lei, do contrato ou da instituição”, prefiro (assim como me mostram meus interlocutores em suas práticas), ligá-los ao intensivo, tornálos fluxos capazes de nos levar mais além, na exterioridade: O estado vivido não é subjetivo ou imposto. Não é do individual. É o fluxo, e o corte do fluxo, uma vez que cada intensidade está ligada com uma outra intensidade de tal maneira que algo passe. É isto que está sob os códigos, o que lhes escapa e o que eles querem traduzir, converter, fazer valer. Porém Nietzsche, com sua
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escrita de intensidades, diz-nos: não troque a intensidade pelas representações (Deleuze & Guattari, 1995, vol.5, pp. 51-52).
Entre pecados e mercados: gênero, religião e práticas pedagógicas no consumo de artigos eróticos Lorena Mochel1
Eu me coloco aqui como mercado erótico. A gente tem lojas, fabricantes, nós temos aqui um representante uma fábrica, temos consultoras... Então, tem todo um mercado que precisa atender melhor. Qual é a forma? [...] A gente pode unir dentro disso. Não é mudar a doutrina da igreja, é como adaptar o mercado dentro da Palavra. (Cíntia, proprietária e vendedora da loja Sensualidade Carioca).2
Este trecho proferido durante um evento ocorrido em fevereiro de 2014 no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro, fundamentou as questões centrais discutidas em um encontro entre empresários(as) de diferentes denominações cristãs que compartilhavam um objetivo comum: anunciar a importância dos produtos eróticos para o fortalecimento do matrimônio evangélico. Entre os principais emissores da mensagem, estavam um casal heterossexual que se autodenominava católico, proprietários da loja Sensualidade Carioca. Os participantes e ouvintes eram, em sua maioria, empresários do mercado erótico e também fiéis e pastores de igrejas pentecostais locais ou próximas ao Complexo. O formato de palestra fornecia o tom da proposta para a qual o público presente havia sido convidado: a edição carioca do Projeto Gospel para sex shops. Fruto de uma parceria entre a loja e a ABEME (Associação Brasileira de Empresas do Mercado Erótico e Sensual), o projeto tinha como principais porta-vozes Cíntia, proprietária da loja, e Carolina, representante da ABEME. De um lado, as empresárias defendiam como a ampla gama de produtos associados à linha de “cosméticos sensuais” disponível no mercado, tais como géis, cremes de massagem, mousses, sprays etc., poderia “apimentar” a vida sexual dos casais evangélicos para evitar divórcios. De outro, uma plateia Lorena Mochel é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1
Para preservar a identidade das(os) interlocutoras(es) e estabelecimentos comerciais em questão, os nomes divulgados são fictícios. 2
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atenta e participativa, compartilhava experiências vivenciadas a partir do encontro entre religião, gênero e sexualidade e, de forma simultânea, também apontava desafios originados pela presença do mercado como principal mediador nesta relação. Ao final do debate, as impressões resultantes da troca com o público ajudaram a compor a posterior publicação de um guia de negócios, lançado no mesmo ano com o título “Guia gospel para sex shops e consultores de casais”. O livro foi escrito por um grupo de empresárias(os) do mercado de produtos eróticos que se dispôs a elaborar ações e estratégias mais adequadas para atender ao público consumidor evangélico cada vez mais frequente. De forma geral, os argumentos que se desenvolvem sobre as sugestões ao uso da cosmética sensual se baseiam tanto no que Cíntia chamou de “Palavra”, através de interpretações sobre passagens bíblicas que enfatizavam o componente erótico do casamento, como na preocupação em não se limitar à uma única denominação cristã. Esta justificativa se dirigia sobretudo para aqueles que não são evangélicos, grupo no qual ela e outros comerciantes e consumidores do mercado erótico mais amplo se incluíam, evidenciando a existência de disputas nas interações do comércio erótico na rede englobada pela categoria “cristã”. Apesar dos conflitos manifestados a partir da apropriação entre os agentes interessados em atingir a um mesmo público classificado como “evangélico” ou “gospel”, neste cenário havia, no entanto, um consenso que possibilitava o trânsito cristão entre as denominações católicas e evangélicas: o compartilhamento de um “mercado voltado para a família”. Este conceito é descrito por Karina Bellotti (2009, p. 640) como parte do que chama de “cultura evangélica transdenominacional” que, no Brasil, seria abrangente a três fatores: as estratégias de propaganda fundadas no crescimento pentecostal, a inserção fundamentalista americana e a mídia infantil. A autora analisa a abertura do mercado de bens cristãos no Brasil entre as décadas de 1950 e 2000 e aponta que a circulação de bens culturais evangélicos esteve diretamente relacionada ao investimento pedagógico em valores familiares e na educação infantil. É no papel exercido pela última através da mídia voltada para crianças que irão se centrar seus principais argumentos, situando a importância do personagem Smilinguido, que se tornou ícone cristão na cultura de massas a partir dos anos 1980 e circulou
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vinculado a mensagens evangelizadoras. A aspiração missionária deste e outros símbolos do mercado religioso faz parte de uma especificidade explorada por Bellotti quando chama a atenção que “para seus consumidores e produtores, essa mídia carrega a missão de evangelizar e converter” (Bellotti, 2009, p. 624). Seguindo esses passos, inspirados em identificar a construção das religiosidades nas diferentes instâncias de trocas que pertencem ao domínio da cultura – a exemplo da autora, nas dimensões das materialidades e da mídia –, busco percorrer um caminho semelhante para refletir sobre as possibilidades e limites negociados através da construção das identidades cristãs a partir do encontro com o mercado erótico. Nesse sentido, privilegiarei o sex shop como lugar de produção de significados e compartilhamento de dispositivos pedagógicos sobre gêneros e sexualidades. A partir da reivindicação cristã de Cíntia em sua trajetória empresarial, buscarei discutir como suas estratégias de venda durante os atendimentos e as mudanças estéticas introduzidas no espaço físico da loja ao longo do tempo mimetizaram referências do âmbito mais geral do mercado erótico, tanto para sobreviver e lidar com a competitividade econômica como para lidar com ambiguidades próprias do contexto em que se encontrava. Ao final, percorrerei alguns dos conflitos morais que se apresentaram durante a reunião do Projeto Gospel, apontando as estratégias adotadas pelos agentes do mercado de produtos eróticos para se inserir como mediadores seculares na relação com o sagrado. Partindo do Complexo: aberturas, percursos e sentidos Quando chego ao Complexo do Alemão em maio de 2013, já havia visitado diversos sex shops e boutiques eróticas na tentativa de me inserir como pesquisadora. Diante de sucessivas frustrações optei por fazer algumas entrevistas com proprietárias(os) e vendedoras(es) de sex shops na cidade. A primeira e única delas foi com Cíntia, então proprietária da loja Sensualidade Carioca, no Complexo do Alemão. A proposta de frequentar o local como pesquisadora foi feita logo em nossa primeira entrevista e, após alguns meses em campo, algumas justificativas para o sucesso tão rápido apareceram através de informantes com quem costumava conversar sobre minhas dificuldades iniciais: “Comunidade é assim
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mesmo, não tem frescura!”. O que parecia remeter ao tradicional sentido de cordialidade atribuído aos estereótipos associados aos subúrbios e favelas nas grandes cidades se fazia, no entanto, apressado para explicar mecanismos mais profundos sobre o que significava receber alguém “de fora da comunidade”. Os códigos acessados eram múltiplos e diversos, visto que o espaço naquela favela estava ocupado não somente pelo Estado militarizado diante de sua recente “pacificação”.3 Na parte baixa, havia também a presença diária de cinegrafistas, repórteres e “globais” que se protegiam com a escolta do maior contingente de policiamento destinado a esta área. Na parte alta, grupos de turistas cotidianamente realizavam o popular passeio guiado de teleférico,4 maior símbolo do poder estatal para denotar prosperidade social e econômica da região. O Complexo do Alemão carregava um fenômeno turístico comemorado pelo Governo do Rio de Janeiro por possuir um quantitativo de visitantes superior ao registrado pelos vagões do Pão de Açúcar.5 O fato de já ter estado antes em outras favelas cariocas me fez perceber algumas das principais diferenças que distinguem o “Alemão”, como costumava ser chamado por quem é “de fora”, ou “Complexo”, por boa parte das(os) informantes com quem convivi. Suas dimensões de cidade eram medidas não só na quantidade de habitantes – em torno de 60 mil, divididos em mais de 18 mil domicílios6 –, mas também através da relativa autonomia de suas divisões internas e em relação a outros bairros próximos. Os locais pelos quais mais circulei durante o período de um ano de A ocupação militar do Complexo do Alemão ocorreu em novembro de 2010 pelas forças armadas do Estado do Rio de Janeiro e ficou caracterizada como uma das mais violentas da história em favelas cariocas. Além da ostensiva presença policial nos territórios ocupados, o controle estatal também possui como proposta atingir objetivos baseados no programa “polícia de proximidade”, sugerindo a “promoção de cidadania, desenvolvimento urbano, social e econômico, além da integração plena dessas áreas ao conjunto da cidade” (Fonte: Programa Rio+Social. Disponível em: http://www.riomaissocial.org/programa/ Acesso em 22 set. 2013). 3
Meio de transporte inaugurado no ano de 2011, pouco antes da instalação das UPPs. 4
Fonte: http://www.turismo.gov.br/turismo/noticias/todas_noticias/20130121. html. Acesso em 23 fev. 2014. 5 6
Dados do Censo, 2010.
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pesquisa de campo eram, majoritariamente, parte das imediações da Sensualidade Carioca. A loja tinha localização considerada economicamente privilegiada por estar mais próxima ao asfalto, fator que a distanciava simbolicamente de elementos que eram observados em pontos mais distantes e mais altos da favela como, por exemplo, a presença de crianças brincando nas ruas e moradoras(es) conversando nas portas das casas. A entrada das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) é identificada por Cíntia como o principal motivo para a valorização socioeconômica da área. Em 2009, acompanhando os rumores sobre a ocupação policial que ocorreria em breve, ela e uma amiga (sua sócia na época) resolveram investir na casa que seria a sede da loja posteriormente. Contando com o apoio midiático investido em matérias cada vez mais frequentes sobre as transformações ocorridas após a entrada das UPPs, elas entram em contato com o departamento jornalístico de um importante veículo midiático na tentativa de divulgar sua história de “empreendedorismo feminino” na favela. A matéria ocupou duas páginas inteiras da edição de domingo do jornal e sua repercussão trouxe os holofotes necessários para uma imagem que buscava afastar quaisquer sinais de confronto e violência que lembravam velhos estereótipos sobre o Complexo.7 A Sensualidade Carioca estava localizada em um importante ponto comercial de uma das principais favelas do Complexo do Alemão. Ao lado da discreta porta vermelha e branca havia um cavalete no chão encostado a um manequim de outra loja de roupas e acessórios femininos que funcionava no térreo da mesma casa. Nesta placa, a entrada para a loja de Cíntia era sinalizada por uma seta: “Sensualidade Carioca: a sua Boutique Sensual”. A propaganda destacava uma chamada para “consultoras”, revendedoras de produtos eróticos que representavam grande parte do investimento No período que precede o recorte analítico da pesquisa até a escrita deste artigo, o Complexo do Alemão passou por diversas mudanças. Os confrontos policiais aumentaram e a visibilidade midiática de prosperidade econômica que encontrei entre 2013 e 2014 foi substituída por um cenário cada vez mais agudo de violência, com altos índices de mortalidade entre moradores, culminando em denúncias sobre as políticas de Estado que partiram, principalmente, de veículos midiáticos locais. Entre as mortes que alcançaram maior visibilidade, está a do menino Eduardo de Jesus Ferreira, em abril de 2015, que foi atingido por um tiro de fuzil disparado por policiais enquanto brincava na porta de casa. 7
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comercial de Cíntia: “Seja uma consultora de produtos sensuais. Trabalho descontraído, excelentes ganhos!”. Caminhando por um corredor com duas portas entreabertas, um banheiro e uma copa, avistava-se ao fundo uma pessoa posicionada atrás de um balcão em vidro transparente que abrigava lingeries coloridas e dobradas organizadamente. Quem recebia as(os) clientes nesta posição era Roberta, a outra vendedora que revezava a função com a própria Cíntia. À esquerda, outros conjuntos de sutiãs, calcinhas, corseletes e camisolas. Todos os modelos eram femininos, com exceção de uma única sunga que vestia um manequim masculino em tamanho menor e mais afastado. À direita, mais um balcão de vidro, em tamanho similar, apresentava os cosméticos eróticos: lubrificantes, cremes aromatizados e géis com a função de esquentar e/ou refrescar. Também havia velas, pétalas, pequenos massageadores para as costas, calcinhas comestíveis e as chamadas “brincadeiras” eróticas (baralhos, dados e raspadinhas que ilustravam posições sexuais). Na parede à esquerda e bem próximos a este balcão, alguns produtos ficavam pendurados em ganchos de metal, presos a uma estrutura de madeira branca, fixada à parede. Eram preservativos masculinos, bolinhas explosivas,8 corações de pelúcia e bichos do mesmo material como ursinhos e o coelho exibido no filme De pernas pro ar.9 Logo ao fundo estavam os objetos eróticos. Todos permaneciam embalados em caixas ou plásticos transparentes e pendurados em ganchos presos à parede. Eram dildos e estimuladores em diversos formatos e tamanhos, plugs anais,10 bolas de pompoarismo, cintas, algemas, acessórios em couro que sugerem práticas sadomasoquistas, bombas de extensão peniana, vibradores Cápsulas em formato redondo ou oval que contêm óleos de consistência gelatinosa, na maioria perfumados e indicados para inserção na vagina ou ânus antes da penetração. Inicialmente concebido para uso sobre a pele após o banho, elas acabaram sendo incorporadas pelo mercado erótico com a sugestão de proporcionar um efeito lubrificante na região genital. 8
Filme nacional exibido em duas edições (2010 e 2012), protagonizado por Ingrid Guimarães. Para uma análise mais aprofundada das representações da mulher “moderna” como alvo das estratégias do mercado erótico contemporâneo, ver: Reis, Lorena Mochel (2014). 9
Estimuladores em formato cônico com base mais larga. Podem ser encontrados em silicone ou látex. 10
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clitorianos em diversos formatos, chaveiros e miniaturas de velas que imitavam partes do corpo humano como pênis, seios e bundas. Ainda ao fundo, fantasias femininas em diversos modelos. A maior parte era destinada às fantasias de colegial, bombeira, tigresa e empregada doméstica, todas em tamanho único, expostas em outros quatro manequins femininos igualmente distribuídos no interior da loja. Também havia fantasias em tamanho maior que ficavam embaladas, mas penduradas em um local bastante visível. Nas fotos que representavam estes produtos eram vistas modelos femininas vestidas em tamanhos plus size.11 É a partir deste cenário da cultura material que se desdobra boa parte da descrição etnográfica que apresentarei a seguir. Nos meses finais da minha presença no trabalho de campo, uma grande reforma subiu a loja para o andar de cima e fez surgir um ambiente mais iluminado, considerado mais clean e mais distante da rua, aproximando-se cada vez mais do padrão seguido por lojas de maior poder aquisitivo do mercado erótico. O conceito de higiene, saúde e bem-estar feminino que busca se distanciar da erotização imbricada nas representações à sujeira também migrou progressivamente do modelo de varejo para o atacado, e cada vez menos clientes eram vistas(os) frequentando a loja. Mesmo com tantos fatores favoráveis a um novo negócio, Cíntia e Alexandre, seu marido e sócio na Sensualidade Carioca, costumavam relatar que haviam arriscado demais para um primeiro negócio. Como muitas microempresas brasileiras, esta poderia ser mais uma a fracassar logo no ano da inauguração, mas a apurada leitura do contexto feita pelo casal aparentemente conseguiu neutralizar os efeitos catastróficos que a presença de uma loja de produtos eróticos poderia produzir, especialmente em ambiente onde “a questão da falta de privacidade se apresenta de forma aguda: 61% das casas têm parede compartilhada e/ou laje com outra(s)” (Castilho, 2012, p. 6). Os problemas enfrentados por um comércio de base individualista e íntimo em um ambiente em que o privado tem menos lugar são lembrados por Cíntia no seguinte trecho: Uma dificuldade que a gente esbarrou aqui que eu até esqueci de
Este termo é utilizado pelo mercado de vestuário feminino para se referir a modelos que vestem tamanhos a partir do 46, mas não há consenso sobre quais seriam os números limites que agrupariam este nicho de consumidoras. 11
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falar é que o povo daqui é preconceituoso! Moradores, vizinhos... “Ah, aqui tem sex shop!” Então nós esbarramos muito nessa situação assim “ah, eu não posso entrar ali porque as pessoas vão me ver entrando na sex shop! Então, o que que vão falar de mim?” É aquela coisa de que as pessoas se preocupam muito com o que vão achar que elas estão fazendo ou não. Como se ninguém fizesse! Assim que nós abrimos aqui, tem uma história engraçada, tem esse açougue ali na frente, tem um cara pequenininho no açougue, mas ele tem uma voz alta pra caramba e ele fica gritando ali na fila, quando tem fila que eu falei pra você, ele fala “Próximo! Próximo!”, gritando altão, sabe? Assim que nós abrimos, quando alguém saía daqui que era conhecido, ele gritava lá do açougue “Aê fulano!” Aí aquilo, assim, todo mundo olhava, porque todo mundo se conhece muito. Uma pessoa tá entrando aqui, tipo assim, pra quem tá entrando, as pessoas que vigiam a vida dos outros, isso acontece muito... (Entrevista concedida em maio de 2013).
Para alcançar a aceitação no jogo entre o público e o privado, Cíntia buscou estratégias que aproximassem a imagem da loja a seu local de origem. Nascida e criada no Complexo do Alemão, aproveitava sua popularidade nas caminhadas pela comunidade para convidar os vizinhos e comerciantes a conhecerem sua “lojinha de lingerie lá em cima”, evitando utilizar o termo sex shop. Quando questionada sobre o que vendia, ela se referia às calcinhas, sutiãs e “produtinhos para apimentar a relação”. A combinação destes valores típicos e próximos ao que Maria Filomena Gregori (2010) chamou de “sex shop de bairro”12 reunia produtos que podiam ser comprados também em camelôs da região. Isto era, inclusive, um fator aproveitado por Cíntia para distanciar a Sensualidade Carioca do aspecto frio de uma loja com estilo similar às franquias. Nesse sentido, receber casais na loja também era um fator utilizado para posicionar este público como livre dos constrangimentos morais que o consumo de produtos eróticos A autora sistematiza os modelos de lojas que encontrou em sua pesquisa no eixo Rio e São Paulo entre: lojas do “centrão”, organizadas para um público popular e por empreendedores, em sua maioria homens, de estratos mais baixos de classe média; sex shops de bairro, voltados ao público familiar e feminino, majoritariamente organizados por mulheres; e, finalmente, boutiques eróticas, localizadas em shoppings e áreas mais valorizadas da cidade, voltadas ao público feminino com maior poder aquisitivo (Gregori, 2010). 12
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em uma comunidade lhes acarretaria. Assim, Cíntia e Roberta costumavam atendê-los através de diferenciações em que o gênero e a relação de intimidade com as(os) mesmas(os) era preponderante. Dentre as(os) freguesas(os) fidelizadas(os), a maior parte eram amigas(os) próximos de Cíntia e Alexandre, indicando que as relações de confiança ali construídas, sobretudo sob mediação do feminino, representam o capital necessário ao estabelecimento de vínculos que se associem à sexualidade naquele contexto. A combinação destes valores típicos de um comércio de bairro como o tom familiar, simpático e íntimo, com as sociabilidades femininas do mercado erótico tinha na presença de Cíntia um peso fundamental para as relações estabelecidas por muitas consumidoras com a loja. Muitas só compravam quando ela estava presente e o movimento na loja era bastante superior no seu turno de trabalho. Também era visível que a eventual presença de Alexandre no balcão ou circulando pelo local despertava acanhamento em muitas clientes, que perguntavam sempre em tom de voz baixo pelos produtos e após a maioria dos atendimentos acabavam nada comprando. De forma geral e em cada detalhe, a Sensualidade Carioca era a personificação de Cíntia. Seus valores, narrativas e história de vida refletiam efeitos relevantes para compreender a construção das estratégias de mercado e exerceram fundamental importância na análise sobre a articulação da religião com outras interseccionalidades de sua trajetória. Uma trajetória cristã Aos 39 anos, Cíntia estava casada há uma década com Alexandre. Este também era o tempo que fazia desde que ela escolheu se mudar da favela para um bairro vizinho com o atual companheiro, com quem também divide há dois anos o posto de proprietária na Sensualidade Carioca. Antes de conhecê-lo, ela esteve em outro casamento que durou poucos meses. A maior parte de sua rede de relações pessoais, incluindo o ex-marido, pertencia ao grupo de uma igreja de renovação católica carismática que frequentou durante boa parte da vida e também do trabalho com locução e organização de eventos em uma emissora de rádio vinculada à arquidiocese da cidade.
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À época da pesquisa, Cíntia estava afastada da igreja, bem como do grupo de relações que estabeleceu no local. A abertura da Sensualidade Carioca também facilitou este distanciamento, pois muitas destas pessoas decidiram parar de falar com Cíntia assim que souberam de seu comando em um empreendimento voltado para a sexualidade. Antes de abrir sua “boutique sensual”, ela mantinha segredo sobre as revendas que fazia de produtos eróticos como sacoleira para ganhar uma renda extra. A possibilidade de abrir um negócio no ramo foi adiada não só por temer retaliações no âmbito pessoal, mas também por uma possível demissão do emprego na rádio. Após seis anos de trabalho, resolveu abandonar este caminho para iniciar um investimento no que seria a primeira loja de produtos eróticos no Complexo do Alemão. As ambições de Cíntia contavam com uma dimensão pedagógica que ultrapassava os possíveis lucros financeiros e tencionava conflitos entre a identidade cristã e o desejo de ampliar o escopo de possibilidades sexuais aos já deslocados limites de transgressão para a sexualidade feminina contemporânea.13 O projeto pessoal e evangelizador que visava diminuir o preconceito do público cristão com o sex shop sempre esteve presente em sua narrativa, indicando a busca constante por alternativas que associassem a imagem da loja à sua trajetória:
O público daqui é 90% mulher, né, a maioria mesmo. Mas eu gosto que tem muito casal, uma coisa que me surpreende é que vem muito casal, inclusive evangélico! Os evangélicos, que é um mercado que eu tenho muita vontade de trabalhar, não só com evangélico, mas com cristão de forma geral [...] Então, apesar de todo o preconceito, eu quero muito fazer um projeto que tire o preconceito do cristão com o sex shop, entendeu? [...] Independente de ser cristão, independente de religião, todas as pessoas praticam sexo! E é uma área da vida, que é o casamento, que se não tiver muito bem, influencia em tudo na sua vida, né? (Entrevista concedida em maio de 2013).
Não por acaso, boa parte das clientes e consultoras da Sensualidade Carioca eram evangélicas. Havia aquelas que faziam deste fato uma constatação verbalizada durante os atendimentos, 13
Ver Gregori, 2010.
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o que levava as vendedoras a acionarem um repertório nativo no reconhecimento de que as corporalidades ali presentes faziam parte de um grupo que demandava atenção redobrada com o vocabulário e na escolha dos produtos a serem apresentados. Porém, na grande maioria das vezes, ser evangélica não era um dado suficientemente relevante, passando desapercebido entre minha interação com as funcionárias.14 Para cumprir o que considerava como missão evangelizadora, Cíntia desenvolveu uma série de práticas pedagógicas que inseriam a loja dentro do conjunto de valores baseados na fé e na ascensão social por meio de uma narrativa que privilegiava os ganhos alcançados pelo “empreendedorismo feminino”, categoria frequentemente acionada em seu repertório. Os cursos e reuniões dedicados a estabelecer contatos entre mulheres “empresárias” abrangiam parte das sociabilidades privilegiadas por Cíntia, tanto no Complexo do Alemão, como fora dele. A noção de empreendedorismo feminino encontra no diálogo entre gênero e religião um terreno fértil para compreender como os agentes religiosos acionam estas categorias através do circuito das “pedagogias da prosperidade”, definido por Jacqueline Moraes Teixeira (2012) como parte de um conjunto de dispositivos disciplinares voltados para a participação da mulher no seio familiar. A análise da autora se centraliza entre as diversas práticas rituais veiculadas na Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), o que, para nossos propósitos analíticos, encontra rentabilidades na investigação da trajetória de Cíntia enquanto empresária cristã. Teixeira (2012) afirma que as produções rituais que circundam a ideia de uma vida próspera ultrapassam a dimensão do dinheiro e possuem na conjugalidade e no cuidado de si (Foucault, 2007) razões pedagógicas da IURD. Para sustentar o planejamento familiar como um de seus principais pilares, o investimento se volta para A dimensão sobre a frequência de consumidoras evangélicas à loja também pôde contar com o auxílio de um questionário individual, fechado e anônimo, aplicado entre as consumidoras da loja durante o período de outubro e novembro de 2013. Seguindo a sugestão de Cíntia, formulamos a pergunta sobre religião com as seguintes opções: “católica”, “evangélica”, “sem religião” e “outras”, esta última com espaço adicional para possíveis definições. As fichas foram preenchidas após cada atendimento e depositadas em uma urna, contabilizando que metade das consumidoras se declarou evangélica. 14
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um enfoque no público feminino e no modelo de família centrado no casamento. Do gerenciamento de seus corpos ao cuidado da família, as fiéis contam com o auxílio de serviços que incluem cursos para casais e encontros de mulheres como parte da política de aprendizado para desenvolver a intimidade necessária com Deus. Por outro lado, não era menos importante que o diálogo com o público evangélico fosse feito a partir de uma empresária católica. O pertencimento à renovação carismática que aproximava Cíntia aos circuitos pentecostais ocorria de forma mais ampla no âmbito do mercado e da política, conforme apontado por Maria das Dores Campos Machado (2015). A autora chama atenção para as “múltiplas modernidades e formas de secularização” (p. 47) de uma atuação político-religiosa marcada pela busca da preservação do “caráter cristão da moralidade pública brasileira” (p. 48). A correlação entre estas forças – política, religiosa e econômica – ajuda a compreender as possíveis justificativas para a frequência de evangélicas na loja e as categorias de mediação utilizadas para posicionar este mercado erótico como “gospel”. Aposto na rentável articulação entre gênero, sexualidade e religião neste mercado que se constrói na chave das sociabilidades femininas, para enfraquecer possíveis argumentos em torno de justificativas sobre a inevitabilidade da alta frequência de evangélicas perante a igualmente grande quantidade de igrejas de denominação evangélica no Complexo do Alemão. O alto número de academias de ginástica que circundavam a região na qual a Sensualidade Carioca estava localizada trazia muitas clientes e otimizava parcerias frequentes entre a loja e estes estabelecimentos, construindo espaços de diversão e convivência como eventos, cursos, chás de lingerie, consultorias domiciliares e palestras para mulheres. Havia uma peculiaridade que também se constituiu como dado importante nesse contexto: as academias eram, em sua maioria, voltadas exclusivamente ao público feminino. Esta dinâmica de exclusividade feminina, já compartilhada entre o mercado de produtos eróticos brasileiro mais amplo, foi denominada por Gregori (2010) como parte integrante de um “erotismo politicamente correto”. O enfoque, que anteriormente atingia o consumo masculino, passa a se feminizar através desta proposta, e as consequências deste deslocamento levam a pornografia a perder sua conotação de obscenidade para adquirir
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significados que a associam a saúde, bem-estar e qualidade de vida. A autora também identifica ter sido exatamente este deslocamento proporcionado pelas boutiques eróticas que possibilitou a expansão de fronteiras para a inserção de mulheres neste mercado, quebrando tabus e preconceitos em torno da sexualidade feminina. A análise feita por Jane Russo (2013) identifica um dos componentes mais importantes nos quais o mercado erótico se sustenta, isto é, a partir de uma sexologia medicalizada, psicologizada e centrada na fisiologia corporal, mas sobretudo no conceito de “saúde sexual” difundido pelo casal William Masters e Virginia Johnson.15 A partir destas classificações, o cerne da concentração passa a ser as sexualidades “normais” ou mainstream, sustentado pela ênfase no orgasmo feminino que ambos acreditavam ser superior ao masculino. Para compreender como se construía esta relação entre a trajetória de Cíntia e o modelo das boutiques eróticas, é necessário retornar o olhar para o interior da loja, espaço no qual as práticas pedagógicas desenhavam as interações cotidianas. Os aprendizados se estendiam desde a sequência de apresentação dos objetos às(aos) clientes, nos controles mais rígidos com relação à vestimentas e linguagem, até o domínio de técnicas para lidar com diferenças de gênero e possíveis tensões sexuais que emergiam desta relação. A sequência de produtos apresentados às clientes iniciava com os cosméticos considerados “mais leves” até chegar aos “mais pesados”. A ordem buscava contemplar as fases da simulação de uma relação sexual: para o beijo, produtos “beijáveis” (gloss labial, spray bucal, lâminas para refrescar o hálito); para as preliminares, os “comestíveis” (tapa sexo de gelatina, calcinha comestível, géis aromatizados para o sexo oral); para a penetração, os “funcionais” (óleos que esquentam e/ou esfriam, adstringentes, excitantes, retardantes e aumentadores de ereção, anestésicos anais, bolinhas explosivas etc.). A ordem era a mesma para todas as clientes, inclusive entre as evangélicas, para as quais os produtos ligados à cosmética sensual eram os mais vendidos. Os acessórios em tamanho menor que recebiam e a recomendação para serem utilizados entre o casal Herdeiros dos estudos divulgados pelo Relatório Kinsey, suas pesquisas realizadas nos anos 1960 migram os interesses científicos do prazer de sexualidades periféricas – preponderantes na primeira sexologia do início do século XX e também nos estudos de Alfred Kinsey – para o prazer do casal heterossexual. 15
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também interessavam as clientes deste perfil majoritário da loja, a exemplo dos anéis penianos disponíveis nas cores rosa e lilás que atendiam a temáticas do mundo animal, tais como leão, gato e urso e eram sempre tratados no diminutivo.16 Para lidar com a diferença de gênero, Cíntia empregava um saber feminizado como parte integrante de suas abordagens, o que gerava proximidade com as mulheres e distanciamento com relação aos homens. As consumidoras eram sempre chamadas pelo nome e recebiam sugestões em primeira pessoa sobre como utilizar os produtos com o parceiro, já que ela também era casada e se colocava como usuária das mercadorias que vendia. A abordagem com o público masculino que chegava sem suas acompanhantes à loja era diferente. No lugar de sugestões como “eu gosto de usar com o meu marido”, eram utilizadas generalizações como “todo mundo gosta” ou “o pessoal costuma elogiar”. A demarcação que sublinhava as gramáticas de gênero naquele espaço indicava que boa parte dos homens ficaria intimidada com uma abordagem muito direta do assunto por uma mulher, e assim a loja perderia clientes. As novas vendedoras eram ensinadas, desde seu ritual de treinamento, sobre o uso de roupas e vocabulário mais apropriado. A roupa não deveria ser curta e nem ter decotes ousados, o linguajar adaptado para “impor respeito ao cliente” e não era permitido o uso de palavrões. Era na comercialização de produtos para o sexo anal que se revelavam diversos aspectos sobre a articulação da dimensão da linguagem com a divisão entre os gêneros. A demanda pelos produtos lubrificantes e anestésicos anais era tão frequente na loja que Cíntia já havia participado de treinamentos dedicados exclusivamente ao tema, promovidos por fabricantes do mercado erótico. Esta qualificação modificou a forma como ela se referia ao ânus durante os atendimentos, quando preferia utilizar o termo “esfíncter” para sugerir um diálogo com o discurso médico e conotar seriedade ao serviço: Se chegarem aqui perguntando ‘Você tem alguma coisa pra dar o cu?’, eu falo: ‘Não, eu tenho pra sexo anal. Tem anestésico, tem lubrificante, pra dar mais conforto pro sexo anal’. Aí a pessoa já
Feitos em material de borracha, são reguláveis para ser acoplados ao pênis e acompanhavam minúsculos estimuladores vibratórios para o clitóris, recomendados para a penetração pênis-vagina. 16
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bloqueia, ou não volta mais ou vai falar daquela maneira que você tá conversando, sabe? (Treinamento de uma vendedora. Diário de campo, julho de 2013).
Durante diversos atendimentos em que apareciam os cosméticos voltados para o sexo anal, pude observar desabafos e confissões femininas como: “faço só porque ele gosta” ou “tive que me acostumar”. Cíntia e Roberta positivavam estes argumentos pela via da salvação do casamento. Nas palavras de uma consultora, o sexo anal representava o “troféu máster”, a moeda de troca mais importante para manter uma relação heterossexual e monogâmica estável. O gel anestésico, um cosmético para uso anal que visa diminuir a sensibilidade nesta região do corpo, era o produto mais procurado e também mais vendido às clientes na loja. Nesta articulação entre prazer e dever associados ao masculino e feminino respectivamente, no que diz respeito ao sexo anal havia outra dinâmica operando, desta vez interna do gênero feminino: o fator competição entre as que “não fazem”, em possível desvantagem com relação às que “fazem”.17 Com efeito, Cíntia compartilhava muitas das pedagogias de gênero e sexualidade presentes em manuais e guias de negócios destinados aos empresários do mercado de produtos eróticos, mas a potência criativa nas dinâmicas possibilitadas pelo encontro entre mercado, religião e erotismo proporcionava diferentes agenciamentos como os que se encontram aqui descritos. A parceria estabelecida com a ABEME para a realização do Projeto Gospel para sex shops revelava-se, assim, como uma consequência de um trabalho já consolidado nas práticas cotidianas de sua trajetória enquanto empresária cristã. A reunião, que contou com sua coordenação junto a Carolina Belo apresentou, no entanto, um olhar externo à realidade da loja, de suas clientes e das consultoras evangélicas, marcado por tensões entre a identidade cristã e o mercado de produtos eróticos. A temática do sexo anal também esteve presente nas narrativas de vendedoras de lojas de produtos eróticos entrevistadas em Curitiba para a pesquisa de Anelise Alcântara (2013), indicando que este possa fazer parte do repertório de códigos compartilhados pelo mercado erótico mais amplo. A autora indica que discursos semelhantes aos significados sobre a barganha, recompensa e merecimento dos companheiros se destacam para reafirmar a apropriação desta prática no repertório de consumo feminino. 17
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A sexualidade entre projetos cristãos A ideia é mantê-los unidos para sempre. O que pode ser mais fundamental que isto numa relação matrimonial? E porque não compreender e respeitar seus fundamentos doutrinários apresentando apenas produtos adequados ao seu estilo de vida? (Guia Gospel para Sex Shops e Consultores de Casais, 2014).
O Projeto Gospel para sex shops resultou de uma articulação entre empresários do mercado erótico, cujo principal objetivo foi buscar parcerias com lideranças de igrejas evangélicas para apresentá-los a um modelo de consumo baseado em como os produtos eróticos podem auxiliar na diminuição de divórcios e manter a união matrimonial e familiar. Sob autoria de Carolina Belo, o projeto contou com duas reuniões: uma na capital paulista e outra no Complexo do Alemão, esta com a coordenação de Cíntia. Segundo a Associação, as reuniões serviram como parte da pesquisa exploratória para a formulação de um guia de negócios que orienta a comercialização e o consumo de produtos eróticos por evangélicos, o “Guia Gospel para Sex Shops e Consultores de Casais”. Apesar do contato já consolidado com Carolina Belo, o convite para fazer parte do Projeto Gospel surgiu após um workshop promovido no Rio de Janeiro alguns meses antes, que também pude acompanhar presencialmente. Na ocasião, um dos assuntos mais discutidos fora o crescimento de consumidoras que se denominavam evangélicas, e a palestra de Carolina destacava algumas sugestões para um atendimento focado neste público: mudança no termo “vendedora” ou “consultora” de produtos eróticos para “conselheira matrimonial” ou “consultora de casais”; alteração também para a nomenclatura, que já vinha migrando de “sex shop” para “boutique erótica, sensual” etc., para se chamar “casa de ajuda marital”; e ainda, a importância de que os donos do estabelecimento sejam preferencialmente casais casados, formados sempre por um homem e uma mulher, presentes na comunidade religiosa do local em que atuam. A reunião do Projeto Gospel ocorreu em uma sala com capacidade para cerca de 30 pessoas em um prédio localizado em um importante ponto de circulação do Complexo do Alemão. Além dos representantes da ABEME, da Sensualidade Carioca e consultoras
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da loja,18 o grupo que se declarou religioso mostrou-se vinculado a programas de evangelização para casais, os chamados “encontros de casais”.19 De forma geral, a dinâmica se deu em duas etapas: na primeira, Carolina e Cíntia se apresentaram como lideranças do projeto, destacando suas trajetórias pessoais como mulheres cristãs e constituintes de composições tradicionais da família nuclear, com Carolina indicando, em seguida, seu conhecimento prévio acerca do público com o qual desejavam trabalhar:
Evangélico não consome produtos fálicos, não consome produtos para sexo anal e nem nada que tenha algum tipo de conotação homossexual. As estatísticas hoje são bem claras. Se as pessoas acham que a gente vende produto para homossexual, o percentual é muito pequeno!
Diante da proposta de organizar um movimento de mercado que buscasse a permissão de lideranças locais para levar os sex shops até suas igrejas, Carolina orienta às lideranças evangélicas sobre como seria o trabalho de inserção nestes locais: “Por que não ter um conselheiro, um consultor matrimonial que tenha um conhecimento da sexualidade humana, de produto e de repente orientar antes da separação (do casal)? A gente tem que mudar a imagem que a sociedade tem do sexo”. Na segunda parte da reunião, o espaço foi aberto para que o público falasse sobre suas percepções a respeito do projeto Também conhecidas como revendedoras de produtos eróticos, este é o mesmo filão explorado pela venda por catálogos, a exemplo de empresas nacionais como Avon e Natura. 38 consultoras atuavam na Sensualidade Carioca e recebiam 25% de comissão do total de produtos que revendiam. Grande parte era heterossexual, casada e residia no próprio Complexo do Alemão. 18
O modelo original é do ECC, sigla para o Encontro de Casais com Cristo, um dos serviços mais antigos da Igreja Católica e que funciona em mais de 200 arquidioceses brasileiras desde a década de 1970, segundo dados do Conselho Nacional dos Encontros de Casais com Cristo. Uma das referências mais citadas pelos fiéis evangélicos foi o curso “Casados para sempre”. Tal serviço é oferecido em 18 estados brasileiros por uma Associação que apoia igrejas nos trabalhos de edificação familiar e também oferece cursos para pais e mães, sexo na gravidez e ensinamentos sobre as performances de gênero (masculinidades e feminilidades), todos com o objetivo de proporcionar a fidelidade matrimonial entre os casais evangélicos. 19
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e trouxesse ideias para incorporação dos produtos nas igrejas. A estratégia utilizada pelo mercado erótico que diz respeito à associação com a sexologia medicalizada, psicologizada e focada na fisiologia corporal (Russo, 2013), fazia parte do discurso coincidente entre empresárias(os), consumidoras(es) e líderes religiosos presentes. A associação com este discurso entre os presentes traduzia-se, sobretudo, na ênfase em apresentar dados quantitativos de pesquisas que comprovassem que os produtos tinham efeitos na fisiologia corporal. “É importante chegar com dados. ‘Você sabe qual é o percentual de desconforto que tem no relacionamento por causa do sexo?’ Isso é causa de separação!”, enfatizou um dos participantes. Outro, que se apresentou como pastor de uma igreja evangélica local, destacou a parceria com a medicina para falar sobre sexualidade em um evento organizado pela igreja da qual faz parte: “Eu usei uma tática mais científica. Convidei uma ginecologista. Vamos falar sobre saúde da mulher que vai entrar menopausa, lubrificação e ela (a ginecologista), por ser evangélica, vai entrar na criação que a pessoa teve até aquele momento”. As formas de controle observadas nestas narrativas apontam para a adaptação entre as doutrinas das igrejas cristãs, as alianças das pastorais religiosas e os saberes científicos. Para Duarte (2004b, p. 6), as estratégias se organizavam através de “sucessivas cruzadas contra o onanismo, a prostituição, a pornografia, a promiscuidade proletária ou o relaxamento moral das elites e nutriram-se de racionalizações eruditas baseadas em fragmentos mais ou menos consequentes dos saberes biomédicos e psiquiátricos”. Segundo o autor, o que sustenta estes desenvolvimentos doutrinários é “o conceito de uma ‘natureza’ dada, com implicações diretas sobre a vida humana, sob as espécies de um ‘direito natural’ e de uma ‘natureza humana’” (Ibid.). A fala de uma das participantes remete à existência destes elementos na sexualidade quando expressa o fato de que o prazer seria inato o que, portanto, faz com que deva ser vigiado e controlado, sobretudo durante o processo de educação infantil: A sexualidade é algo tão divino que já nasce com a gente! Se você já começa a deixar a criança assistindo novela, na internet, dar muita liberdade pra criança desenvolver, se você estimular, ela vai conhecer a sexualidade, e com três anos de idade ela vai compreender que a vagina e o pênis dão uma sensação prazerosa.
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Neste contexto, a aproximação entre representantes de igrejas de denominação evangélica e agentes do mercado também não se construía de forma unilateral. Cíntia costumava reconhecer a maior abertura entre as igrejas evangélicas, em comparação às católicas, para discussão de assuntos relacionados à sexualidade entre seus fiéis, citando frequentemente o pastor Claudio Duarte durante os atendimentos na loja. O líder religioso estava à frente de cultos bem-humorados nos quais costumava dar dicas para casais sobre comportamento entre marido e mulher, ganhando a simpatia do mercado erótico quando passou a sugerir que não via problemas em fiéis utilizando alguns produtos de sex shops. Na gravação de um de seus cultos, publicada na plataforma virtual Youtube, o pastor destaca a proibição do uso de produtos fálicos ou voltados para o sexo anal e masturbação. Além disso, os demais estariam liberados somente para tratar problemas hormonais decorrentes da menopausa feminina, como o ressecamento vaginal, ou para a ejaculação precoce masculina. A flexibilização da moral e dos costumes nos últimos quinze anos foi pesquisada entre os segmentos pentecostais por Machado (2005), apontando para resultados que indicam uma crescente capacidade desta denominação religiosa em “selecionar, ressignificar e incorporar elementos de outras tradições confessionais e da cultura política dos movimentos sociais” (p. 388). Para a autora, a reconfiguração das subjetividades pentecostais faz frente à intensa mobilidade religiosa e assume um contorno de gênero que possibilita arranjos familiares mais igualitários, com masculinidades mais dóceis e cuidadosas e concomitante conquista de uma maior autonomia feminina. As redes de sociabilidade extradomésticas já destacadas entre o mercado erótico também ganham espaço entre as denominações evangélicas e chamam atenção para a extrapolação da individuação feminina, conforme coloca uma das participantes presentes na reunião:
Quando você, dentro da igreja, se depara com essa situação, (falar de sexualidade) entre as mulheres é um tabu muito grande. Não se entra no sex shop, o acesso que é feito às vezes é através de uma consultora, eu tenho uma amiga que vende. O conhecimento desses produtos vem através disso, porque ainda existe infelizmente esse tabu, de que o sex shop é pra prostituição, pornografia. Eu acho que o projeto é ideal e vai trazer uma ideia muito contrária do que hoje
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é falado dentro da igreja, de que ‘você não pode isso, você não pode aquilo, você não pode aquilo outro’.
No que diz respeito às masculinidades, assim como as disputas entre os diversos grupos religiosos que se configuram para além do campo pentecostal, os discursos dos participantes presentes não coincidiam em um padrão único e homogêneo sobre a possível parceria entre “igrejas e mercado erótico”. Um lado mais resistente à plasticidade e dinamismo que as identidades sexuais masculinas poderiam assumir dentro de um sex shop foi exposto por um dos fiéis: Eu acho que a questão do sex shop, principalmente dentro da igreja nesse movimento de casais evangélicos, é uma coisa que já de início a palavra “sex shop” se associa à pornografia. E hoje em dia ainda é um meio de prostituição, até mesmo pra satisfação extraconjugal. Eu não sei como funciona a proposta da Sensualidade Carioca, por uma visão de uma proprietária cristã, que tem o seu comércio baseado na palavra, e aí eu não sei como que se coloca dentro em relação aos clientes, se é realmente pra casados, se é realmente pra pessoas independentes de sexo, de formalidade sexual, opção sexual. Pra quem atende? Se a gente busca realmente fazer algo, mesmo que seja um negócio, se a gente tem a visão da palavra daquilo que nos é orientado, se a gente busca abençoar ou até mesmo orientar pessoas que sejam desse meio, então eu penso que também muitas vezes eu impossibilito ou impeço muitas pessoas de entrarem porque “aqui não só entra casais”, né? Se eu sou proprietário de um sex shop e sou evangélico, a minha visão é abençoar vidas, independente da proposta ser “sex shop”. Se me chega um casal homossexual, vai prevalecer o quê, o proprietário ou o evangélico?
Esta narrativa instaurou um ponto de tensão entre alguns fiéis e representantes do mercado. Dividindo, de um lado, participantes com opiniões concordantes ao veto do público homossexual e, de outro, aqueles que priorizavam o lado empresarial e não concordavam com este tipo de discriminação no mercado de artigos eróticos. Buscando equilibrar o impasse, Carolina Belo orientou que a solução estaria na eleição de um conjunto de produtos que expressassem escolhas valorizadas pelo(a) empresário(a) evangélico(a):
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Eu conheço muitos empresários, e o empresário escolhe o seu mix de produtos, e o mix de produtos diz o meu público. Se você é evangélico e quer ter uma boutique sensual, uma loja de ajuda marital, ou mesmo quer usar a nomenclatura sex shop, vai entrar um homossexual e ele ver que ali não tem produto para ele, ele não vai ficar. Esse mix de produtos faz a triagem. Por isso a importância do conhecimento em produto [...] Sabe-se claro: evangélico não consome produtos fálicos, não consome produtos para sexo anal e nem nada que tenha algum tipo de conotação homossexual.
Os mapas destas novas alternativas sexuais cristãs exibem outras pedagogias, localizadas no universo criativo de produções e agenciamentos humanos e evidenciam outros possíveis “erotismos politicamente corretos” (Gregori, 2010) a serem analisados a partir de novos arranjos e novos mobilizadores sociais. Neste caso, os agentes religiosos se inserem na disputa via mercado, em busca do compartilhamento de uma verdade sobre os modelos de sexualidade que devem estar disponíveis para o consumo entre evangélicos. As narrativas presentes nesta breve descrição do Projeto Gospel abordam desafios analíticos ainda em construção sobre as mudanças no mercado erótico brasileiro. Consequentemente, é importante possibilitar a abertura reflexiva para etnografias que se mantenham atentas para as dinâmicas relacionais entre gênero, religião e sexualidade nas práticas de consumo contemporâneas. Considerações finais As práticas pedagógicas analisadas no Projeto Gospel para sex shops e no cotidiano da Sensualidade Carioca possibilitam analogias que dizem respeito ao compartilhamento de um universo moral comum do chamado “mercado voltado para a família” (Bellotti, 2009). No entanto, ao ser articulado ao âmbito do erotismo, a pretensão englobante deste nicho de consumo revela tensões características entre o caráter evangelizador do mercado religioso e o necessário convívio com as diferenças, defendido por boa parte das(os) empresárias(os) neste segmento. Entre os limites e potencialidades que se conformam nas articulações observadas entre religião, erotismo e mercado surgem, nos discursos das mulheres evangélicas, novos arranjos
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que desafiam as retóricas conservadoras instauradas no cenário. O fortalecimento de sociabilidades femininas no mercado de artigos eróticos parece ter permitido, entre muitas destas interlocutoras, uma brecha ao acolhimento às diferenças. É o que demonstra a fala a seguir, pronunciada por uma das agentes do mercado, no momento de instalação de um conflito a respeito da presença de homossexuais nas lojas:
Eu acho que é como diz a Palavra: a nossa consciência é quem vai falar pra gente se estamos bem ou não. A Palavra fala muito sobre isso, sobre a nossa consciência, é ela que vai limitar as coisas pra gente. Nesse caso, eu me vejo como empresária. Eu não posso discriminar. Se entrou dentro do meu negócio, e ele quer um determinado produto, eu não posso falar pra ele que não vou vender.
A confluência secular proporcionada pelo tom religioso, dado tanto à consciência moral como ao “empoderamento feminino”, requer cuidados analíticos que compreendam estas categorias tanto a partir de seus agenciamentos e flexibilizações como através da manutenção de hierarquias, efeitos das reificações de alianças entre o Projeto Gospel e o modelo econômico liberal. Assim como o apelo às diferenças só pôde ser acionado a partir de um discurso que se direciona a quem pode comprar, também a mobilização pela autoestima e pela independência financeira feminina compõem parte dos mecanismos responsáveis por conectar mercados e seus modos de consumo. O exemplo de como estratégias voltadas para mulheres ganham receptividade no interior de igrejas pentecostais (Teixeira, 2012) aponta para possibilidades múltiplas e paradoxais nos usos de um poder que condena o comportamento de “dependência” feminina em relação aos homens, ao mesmo tempo em que reforça hierarquias de gênero nas quais mulheres permanecem ocupando espaços subalternos e desprivilegiados, justificando o domínio masculino através de aspectos da natureza. Finalmente, por meio da desvinculação ao desejo liberal pela liberdade, alvo de críticas elaboradas por Saba Mahmood (2005) e da aposta na flexibilidade e grande elasticidade das fronteiras que nomeiam os gêneros, apresentam-se propostas por outras formas de construir antropologias que pensem sobre diferentes expressões do desejo, da agência, e da capacidade de ação ética. As possibilidades
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analíticas apresentadas pela sexualidade cristã no mercado apontam para reflexões que buscam mesclar estas propostas ao olhar atento para as estratégias pela manutenção de um poder que se movimenta por meio de “modos comercializados de disputa” (Mukherjee & Banet-Weiser, 2012), alvo e efeito das reinvenções do encontro entre carne e espírito.
Bombom: esse escuro objeto do desejo Michel Carvalho1
O presente trabalho tem como fio condutor as etnografias das edições 2016 e 2017 do Prêmio da Indústria Pornô, cerimônia anual que congrega os maiores astros e estrelas do mercado pornográfico nacional. Na ocasião, os participantes disputam troféus que atestam a excelência de suas performances, laureadas em treze diferentes categorias, como “Melhor Cena de Sexo Anal”, “Melhor Cena de Orgia” e “Melhor Diretor”. Analiso os dois diferentes eventos sob a perspectiva da única atriz negra concorrente no período expresso – Giovanna Bombom. Através de entrevistas a mim concedidas, busco compreender sua carreira lida como desviante e seus discursos sobre si. Munido dessas informações, parto para o escrutínio das cenas por ela protagonizadas, de material jornalístico veiculado na mídia tradicional e de grupos de discussão online (no WhatsApp e no Facebook); com vistas a refletir sobre branquitude, desejo, preconceito e as (des)valorizações do corpo negro na pornografia brasileira. Da primeira vez era a cidade E onde as palavras das mulheres estão chorando para ser ouvidas, cada um e cada uma de nós precisa reconhecer nossa responsabilidade de procurar essas palavras, lê-las e compartilhá-las e examiná-las em sua pertinência para nossas vidas Audre Lorde2
Em junho de 2016 estive na cidade de São Paulo para o 3º Prêmio Sexy Hot, cerimônia anual organizada pelo canal a cabo Sexy Hot que congrega os maiores astros e estrelas do mercado pornográfico nacional. No evento, os participantes concorrem a troféus Michel Carvalho, doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia do IFCS/UFRJ. 1
No original: “And where the words of women are crying to be heard, we must each of us recognize our responsibility to seek those words out, to read them and share them and examine them in their pertinence to our lives” (Lorde,1984, p. 43). 2
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que atestam a excelência de suas performances, laureadas em treze diferentes categorias, como “Melhor Cena de Sexo Anal”, “Melhor Cena de Orgia” e “Melhor Diretor”. Considerada “o oscar da indústria pornô”, a festa possui de fato ares de premiação internacional: litros e litros de champanhe são servidos ininterruptamente, os convidados esforçam-se em suas indumentárias, com vestidos para elas e suit-and-tie para eles, a presença da imprensa é maciça, registrando cada movimento dos astros e estrelas da noite que ao final levam para casa uma estatueta, que lhe confere status e honra. Ali, em meio a subcelebridades e personalidades da mídia brasileira,3 atores, atrizes, produtores e diretores pornográficos, estava um antropólogo perdido. Após a premiação propriamente dita, munido de uma taça de champanhe, tomei fôlego e coragem e fui me apresentar para aqueles de quem já sabia muito, mas que nada conheciam sobre mim: os personagens de meu campo de investigação. Alguns já estavam altos demais e, portanto, sem paciência para me atender, outros preferiram desprezar-me conscientemente, uma vez que buscavam e solidificavam seu networking profissional: propostas eram feitas, contatos eram acionados, contratos eram selados. Três pessoas, porém, abdicaram daquilo tudo que estavam fazendo e me deram alguma atenção – o diretor Giovanni Junior4 e as duas únicas atrizes negras, Wallery Sindhel5 e Giovanna Bombom.6 Feliz pela atenção, anotei seus telefones e no dia seguinte marquei com eles pequenas conversas que iriam compor o campo exploratório preliminar de minha pesquisa, que se delineava pela primeira vez.
Cada categoria era apresentada por uma “subcelebridade” diferente que subia ao palco e entregava o troféu ao vencedor. O critério para a escolha de tais ciccerones ainda me é obscuro – ex-assistente de palco de programa de auditório, um rapper, um cantor de pagode, um blogueiro famoso entre adolescentes, um ator de pornochanchada, ex-participante de reality show. 3
Indicado na categoria “Melhor Diretor” pelo filme Sonhos Eróticos Profissões – O Motoboy, da produtora Mastro Produções. 4
Indicada na categoria “Melhor cena de orgia/gang-bang” pelo filme Cobiça: Taras de um Fotógrafo, dirigido por Helaine Muzy, da produtora Redfire. 5
Vencedora na categoria “Melhor cena de orgia/gang-bang” pelo filme Orgia na Piscina, da produtora BM Video. 6
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Giovanna Bombom, ao centro, de colete e saia branca, e os demais vencedores do Prêmio Sexy Hot 2016. Do G1 (“Prêmio Sexy Hot”, 2016), sem indicação de autoria.
Como uma espécie de reação ao clamor de Audre Lorde descrito na epígrafe acima, convido o leitor a uma reflexão acerca do lugar político estratégico da voz de Giovanna sobre sua participação no prêmio da indústria pornô. As projeções e os desejos indicados por Giovanna naquele momento também são salutares a uma maior compreensão do baque que viria no ano seguinte. Destaco abaixo um trecho da entrevista:
O Prêmio foi maravilhoso. Eu era a única negra lá em cima do palco com troféu… É um espaço que a gente conquistou. Um pouquinho, pouca gente, mas a gente tem nosso espaço. Vamos seguir até vir mais pessoas negras (…) É uma coisa nova, é só o terceiro ano, né? Então é novo, eu acho que isso aí é bem legal pra mostrar mais um pouco do pornô nacional. Pra também mostrar mais um pouquinho do hot das brasileiras, dos brasileiros. Porque os filmes bons são de fora, né? Mas aqui também não tá pra perder, não, o Brasil. Aqui também tá foda e cada vez tá melhorando, melhorando. E esse prêmio é maravilhoso porque dá mais fôlego e tesão em fazer. Tipo, agora eu tô super empolgada pra gravar mais porque eu já tô pensando na premiação no ano que vem, ele dá uma empolgação. Você se dedica muito mais em fazer um trabalho melhor. É nisso que eu já tô pensando. Já tô me preparando pro ano que vem.
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Da segunda, o cais e a eternidade... No início de junho de 2017, me dirigi novamente a São Paulo para mais uma edição do Prêmio Sexy Hot. Desta vez o canal transmitiria o evento ao vivo pela internet;7 ainda assim, preferi apostar no deslocamento e numa observação participante da cerimônia. Das atrizes negras que acompanhara no ano anterior, somente Giovanna estaria presente. Wallery Shindel engravidara, e dedicava-se a cuidar de seu bebê, deixando para trás o mercado pornô. Na Rodoviária Novo Rio, em meio a documentos, malas, lanches para a estrada e muita sonolência, encontrei-me coincidentemente com a mais importante interlocutora de minha tese até o momento – Giovanna Bombom. Embarcaríamos no mesmo ônibus. Ela estava na companhia de uma amigo, razão pela qual não pudemos nos sentar lado a lado pelas seis horas que ainda enfrentaríamos Dutra afora. Na primeira oportunidade que tivemos, iniciamos uma conversa. Durante a parada de meia hora na cidade de Guratinguetá, perguntei a ela acerca de suas expectativas para aquela noite. Diferentemente do ano anterior, quando ela havia acabado de surgir na indústria pornô, agora ela estava indicada a três categorias: “Melhor Cena de Ménage”, “Revelação do Ano Hétero” e “Melhor Atriz”. Recentemente, havia sido escolhida para uma noite de autógrafos com os fãs na feira erótica Sexy Fair (RJ) e vinha sendo convidada para gravar inúmeros filmes. De forma sincera e bem humorada, Bombom me respondeu:
Eu acho que vou ganhar porque quem tá bombando sou eu. Acho que a Elisa não ganha, não. Pra entrar na Hard ela teve que tirar a roupa pra fazer strip-tease e desfilar pra eles. Eu não quis fazer isso. Eles podem mexer e mudar tudo. Só sei que o Sexy Hot gosta de mim, me chamaram pro estande deles na Feira Erótica.
Finalmente chegamos à cidade de São Paulo. Na rodoviária mesmo, Giovanna pediu a mim e a seu amigo que a ajudássemos a escolher bijuterias e uma bolsa para usar na festa. Segundo ela, compraria ali mesmo por saber que os preços seriam mais em conta. A bolsa foi substituída por uma carteira, que eu mesmo emprestei.
O streaming da premiação conta com mais de 64 mil visualizações (em oito de outubro de 2018). 7
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Assim como no ano anterior, a festa do Prêmio Sexy Hot8 transcorreu em uma noite de gala, em um elegante espaço de festas, com a presença de importantes veículos de comunicação brasileiros, apresentadores de televisão, digital influencers. Diferentemente de 2016, porém, naquele momento eu já não era um completo estranho. Já mantinha algum contato via redes sociais com alguns atores e diretoras, já havia acompanhado a gravação de um filme de orgia com a presença de vários perfomers que por ali também figuravam, algumas pessoas vieram me cumprimentar sem que eu sinalizasse previamente… Passei toda a cerimônia de entrega de prêmios sentado ao lado de Giovanna Bombom, acompanhando seu nervosismo e todas as suas reações – euforia, entusiasmo, expectativa, decepção. Para nossa surpresa, Giovanna não venceu em nenhuma das três categorias a que concorria. Um dos prêmios mais aguardados é o de “Melhor Filme”, glória que é escolhida por um júri técnico9 e contempla não somente a capacidade de um profissional, mas de toda a equipe – atores, diretor, fotógrafos, etc. A obra escolhida foi Loucuras de Casal, dirigida por André Garcia através da produtora Fita Safada, protagonizado por Capoeira, Elisa Sanches e Polly Petrova. A apresentação da categoria ficou a cargo do funkeiro negro Mister Catra. Quando subiu ao palco para receber seu prêmio, André não se conteve e gritou ao microfone: “Black, porra!… Agora a porra ficou preta”. Catra também não se conteve e entre sua inconfundível risada, pontuou: “escureceu mesmo, caralho”. Black Brothers é um canal pornográfico dentro da produtora Fita Safada, comandado por André, cuja propaganda informa:10 Se você está a fim de ver os negros mais bem dotados da vizinhança
De acordo com Maurício Paletta, um dos organizadores do evento: “esse ano recebemos 200 inscrições nas 17 categorias, que é um número ainda maior do que ano passado. Isso mostra que cada vez mais as pessoas envolvidas na produção dos filmes querem fazer um bom trabalho e ver seu esforço reconhecido” (“Prêmio Sexy Hot”, 2017). 8
Este ano composto pelo roteirista Paulo Cursino, a doutora em Comunicação Mariana Baltar, o diretor pornô Stanley Miranda e o humorista Rafinha Bastos. 9
Ver no site da produtora, disponível em: https://www.safada.tv/canal/blackbrothers/. Acesso em 08 out. 2018. 10
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transando com as meninas mais lindas do pornô nacional, não perca mais tempo e assine o Canal Black Brothers! Eles adoram trabalhar em duplas, ou em trios, e foder ao mesmo tempo o cuzinho e a bucetinha das safadas. Canal perfeito para quem gosta de: sexo interracial, sexo anal, dupla penetração, orgias, loiras e negros, homens bem dotados e sexo hard core.
No dia seguinte à festa, Garcia fez um post feliz e emocionado em sua página no Facebook, que reproduzo sem alterações: “Agora a coisa ficou preta porra! Satisfação em representar minha raça, já teve filme que não pude gravar, já gravei com atriz racista, mais o poder da cor vai sempre está presente! 17 anos de pornô, uma vitória 100% black!”.
Ganhadores do Prêmio Sexy Hot 2017. Do G1 (“Prêmio Sexy Hot”, 2017), sem indicação de autoria.
Aqui proponho uma pequena digressão porque preciso chamar a atenção aos significados simbólicos dos nomes dos atores negros: Bombom, Capoeira, Nego Catra… signos que carregam em si elementos que remetem à cor escura da pele e à “cultura” negra. Sobre este tópico, venho pensando nos escritos de Saba Mahmood (2005) sobre formas de agência que não apontam para a subversão, antes indicam os modos pelos quais os sujeitos agem no interior das normas que habitam. A apropriação de tais estereótipos ligados à negritude produz efeitos proveitosos em suas carreiras. Signos que remetem à sa-
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gacidade e esperteza do homem negro ou que fazem explícita referência aos tamanhos de suas genitálias, como “Kid Bengala”, “Erick Dotadão” e “Marcelo Pauzão”, despertam atenção do espectador e geram cliques e comentários nos sites onde as cenas são veiculadas. Já no que concerne ao nome escolhido pela protagonista deste artigo, podemos dizer que um nome como “Bombom”, além de aludir à cor negra, também carrega uma ideia de sabor e gostosura. Não são raras as frases de duplo sentido, como “comer bombom”, “bombom delicioso”, “venha provar desse bombom”, advindas tanto nos sites pornográficos quando nos posts de autopromoção da atriz em suas redes sociais. Aliada a estes marcadores estratégicos que a apresentam a partir de sua negritude, podemos perceber uma ideia de prazer, um prazer que beira a picardia, que ao mesmo tempo que a diferencia frente às outras performers também a associa diretamente a um doce, desejado, saboroso e preto. Das possibilidades de fracasso e resistência As brigas que ganhei, nenhum troféu como lembrança pra casa eu levei. As brigas que perdi, estas sim, eu nunca esqueci, eu nunca esqueci. Pato Fu
Se a pornografia já é, por definição, identificada por meio de estigmas, quem dentro da própria rede estaria mais sujeito a sofrer estigmatização? Em sua etnografia, Maria Elvira Díaz-Benítez (2010) responde que são os atores e atrizes de tal indústria, aqueles que dão suas caras, e seus corpos, para bater. São suas carreiras, sobretudo, aquelas que são vistas como desviantes, transgressoras… outsiders. Para Howard Becker (2008), os outsiders são indivíduos considerados transgressores de uma determinada norma social, sendo, portanto, vistos como desviantes por aqueles que as criam e cumprem. O desvio não existiria em essência, antes sendo construído na interação com os indivíduos ou grupos que elaboram as normas e os estilos de vida comumente normativos. Assim como o desvio, a dissidência também constrói-se na interação. Ninguém é dissidente
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per se, mas em relação a outra coisa, neste caso visões de mundo e convenções sociais de caráter dominante. Devido à transgressão a uma das normas mais propagadas socialmente – aquela que prescreve a não-publicização dos atos sexuais –, somos compelidos a imaginar a vida e a carreira dos pornstars como trajetórias compostas por trabalho fácil, altos rendimentos e alguma glória. Uma vez que como explicitei que tal carreira é repleta de estigmas sociais, qual seria o “lado bom” de tal empreendimento profissional? Giovanna Bombom 1h e 30 min Atendo em hotel ou motel R$ 300,00 (sexo oral depende da sua higiene) Com anal R$ 400,00 Atendo somente na Zona Sul ou Centro Prazer garantido (Anúncio de Giovanna Bombom replicado via WhatsApp a possíveis clientes)
Giovanna mora de aluguel em um modesto apartamento conjugado em Santa Teresa, área central da cidade do Rio de Janeiro. Ao longo de nossa convivência em entrevistas, mesas de bar e transportes públicos, posso perceber certa precariedade em sua fala e/ou atos, em frases como “eu não tinha [acesso à Internet]… Botei até wifi em casa pra poder votar em mim. Mas agora tirei de novo”; “vamo comer nesse aqui que é mais barato”, referindo-se a um restaurante paulistano onde o prato feito custava apenas R$ 5,00; “eu compro aqui porque é mais baratinho”, quando procurávamos bijuterias para que ela usasse na noite de premiação, adquirindo-os em uma loja localizada no interior da rodoviária de São Paulo; “consegui entrar na boate de graça, se não eu não ia”, quando me relatava uma experiência na noite com amigos e ex-parceiros de cena. É importante ressaltar, entretanto, que esta “precariedade” não representa em si um signo penalizante. O ato de pechinchar, economizar, de procurar por coisas e lugares mais simples revelam também um certo ethos de classe, de quem sabe valorizar o dinheiro que ganha através de muito trabalho. E um trabalho instável e estigmatizante como é o da pornografia.
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Sobre ter concorrido em três categorias e não ter vencido nenhuma delas, perguntei a Giovanna se ela sabia, ou imaginava, as razões de sua derrota. Ela respondeu: Foi uma categoria muito boa pra não divulgar nada. Uma categoria muito importante. E eu não fiz. Fiquei desligada. Não fiz campanha, fiquei desligada, não fiz. E elas [as atrizes vencedoras] fizeram em rádio, fizeram vídeos, fizeram várias coisas, prometeram várias coisas pros fãs, de ficar pelada, sei lá. E eu fiquei dormindo nisso tudo (…) E eu também eu não entendo, amigo, porque quando o André Garcia ganhou lá na festa, ele veio logo diretamente a mim lá na festa, né? Olha, esse aqui é pra vingar a nossa raça, nossa cor. Ele veio falar isso. Então quer dizer que isso rola, tá rolando lá. Entendeu? Porque se o produtor veio com esse papo, né? Então é porque rola racismo sim. Eu é que tô por fora na verdade.
Jack Halberstam (2011) aponta, através da análise de performances artísticas e textos literários, a importância de considerarmos – em termos analíticos e, sobretudo, políticos – as “formas de ser e conhecer fora dos modelos convencionais de sucesso” (2011, p. 125), já que as histórias de fracasso poderiam nos assinalar caminhos para não apenas “falar sobre” a formação do sujeito como também sobre o desfazer do mesmo. Trata-se de uma política fundada no fracasso, insuficiência ou falência como modo de existência anticapitalista e anticolonial. Nas palavras do autor: Como narra Sandage em seu emocionante estudo, perdedores não deixam registros, enquanto vencedores não conseguem parar de falar. Assim, o registro do fracasso é “uma história escondida de pessimismo em uma cultura de otimismo”. Essa história escondida de pessimismo, que jaz silenciosamente por trás de toda história de sucesso, pode ser contada de diferentes formas; enquanto Sandage a conta como uma história secreta do capitalismo estadunidense, eu a narro como um conto de luta anticapitalista e queer. Também a conto como uma narrativa sobre a luta anticolonial, a recusa à legibilidade e uma arte do destornar-se. Esta é uma história da arte sem mercados, um drama sem roteiro, uma narrativa sem progresso. A arte queer do fracasso se volta para o impossível, o improvável, o inesperado, o comezinho. Ela perde silenciosamente, e ao perder ela imagina outros objetivos para a vida, para o amor,
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para a arte e para ser (Halberstam, 2011, p. 88).11
Perseguindo as pistas anunciadas por Halberstam acerca de uma nova produção de vida, provoco que o sucesso de Giovanna é outro que não necessariamente aquele das atrizes brancas do pornô. É um sucesso que lança mão o tempo inteiro de um reinventar-se de si mesma oportunizado por dezenas de posts diários em suas redes sociais e pelo discurso sempre inflamado e pronto a responder de forma rápida e orgulhosa acerca de sua negritude. Os privilégios da branquitude também se expressam no mercado erótico. Giovana não possui uma assessoria de imprensa ou uma equipe e site próprios, como a recordista de estatuetas do Prêmio Sexy Hot, Patrícia Kimberly (vencedora do prêmio de “Melhor Atriz” na edição de 2017). Giovanna também não possui um canal erótico só para si, como é o caso de Fabiane Thompson (uma das vencedoras do prêmio de “Melhor Orgia”). Não possui uma produtora por trás de si realizando campanha de votação maciça em grupos de WhatsApp e Facebook, como aconteceu com Elisa Sanches (vencedora do prêmio de “Atriz Revelação” em 2017). Não é convidada para filmes da produtora de maior nome, a Brasileirinhas. Além de tudo isso, soma-se o fato de que Bombom é uma das pouquíssimas performers pornográficas que mora no Rio de Janeiro, e periodicamente perde oportunidades de trabalho por não residir em São Paulo, maior expoente nacional de tal indústria. Mas ao mesmo tempo, ela é querida pelo veículo de pornografia mais importante do país, o canal Sexy Hot. Possui cerca de 116 mil seguidores na rede social Instagram. Na cidade de São Paulo, ela é reconhecida por onde passa e faz questão de atender a cada pedido de foto e beijo dos fãs; se não recebe um cachê considerável em seus No original: “As Sandage narrates in his compelling study, losers leave no records, while winners cannot stop talking about it, and so the record of failure is ‘a hidden history of pessimism in a culture of optimism’. This hidden history of pessimism, a history moreover that lies quietly behind every story of success, can be told in a number of different ways; while Sandage tells it as a shadow history of U.S. capitalism, I tell it here as a tale of anticapitalist, queer struggle. I tell it also as a narrative about anticolonial struggle, the refusal of legibility, and an art of unbecoming. This is a story of art without markets, drama without a script, narrative without progress. The queer art of failure turns on the impossible, the improbable, the unlikely, and the unremarkable. It quietly loses, and in losing it imagines other goals for life, for love, for art, and for being”. Tradução do autor. 11
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filmes, pode cobrar um valor comparativamente alto por seus programas, sobretudo aqueles que envolvem a penetração anal. Deste modo, poderíamos situar Bombom dentro da chamada prostituição de luxo, “categoria nativa que se refere a programas consumidos por um público de classe média à classe alta e que custam entre 300 reais e 20 mil reais”, conforme aponta a pesquisadora Natânia Lopes (2015). De um jeito ou de outro, seu corpo negro resiste, deseja e é desejado. São estes valores obtidos pelos programas, uma vez que o chamado ao pornô é absolutamente volátil, que garantem o compromisso do aluguel mensal, as contas domésticas e os frequentes rolês pela cidade do Rio de Janeiro. O corpo negro e pornográfico A leitura de Pinho (2012), por sua vez baseada no trabalho de Miller-Young indica que a pornografia está atravessada por uma “economia racializada do desejo”, como uma forma de “political theater”, uma vez que apresenta uma verdadeira fascinação com a diferença racial e suas variações. Ao considerar a própria diferença como categoria analítica, e não exatamente os marcadores sociais de diferenciação, que podem ou não converter-se em desigualdades, Avtar Brah salienta: Como a diferença designa o “outro”? Quem define a diferença? Quais são as normas presumidas a partir das quais um grupo é marcado como diferente? Qual é a natureza das atribuições que são levadas em conta para caracterizar um grupo como diferente? Como as fronteiras da diferença são constituídas, mantidas ou dissipadas? (…) A diferença diferencia lateral ou hierarquicamente? (Brah, 2006, p. 359).
Seguindo as pistas deixadas por Brah e por Laura Lowenkron em sua análise acerca do tráfico de pessoas, sustento que “discursos específicos sobre a diferença são não apenas constituídos, contestados, reproduzidos e ressignificados (Brah, 2006; Piscitelli, 2008), mas também encarnados, corporificados e materializados em categorias sensoriais” (Lowenkron, 2015b). Piscitelli (2008) ainda mostra que, para além da simples tentativa de caracterizar a articulação entre classe, raça, gênero e outras
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categorias identitárias, como se fossem marcas previamente constituídas, o que está em jogo é precisamente o processo de constituição dos sujeitos através dos processos de diferenciação. Ou seja, tal entendimento “resulta em deslocamento da noção de ‘identidade’ para a ideia de diferença” (Lowenkron, 2015b, p. 24). Destarte, a materialidade dessas diferenças se produz através de enunciados. É a “preta linda”, a “buceta de preta”, é o “cu preto”, é o “rabo da mulata”, como nos mostram os enunciados, títulos, sinopses e legendas dos filmes protagonizados pela atriz. É o “bombom”… A antropóloga Juana María Rodríguez (2014) chama este fenômeno pluricausal de “stickness”, algo grudento e pegajoso que seria parte constitutiva dos sujeitos e do qual eles não conseguem se livrar; códigos, símbolos, gestos, falas, marcadores sociais de diferenciação, aparências estético-morais que demarcam a produção do desejo e a própria produção de raça dentro da pornografia. Minha hipótese com este artigo sobre uma mulher negra atriz pornográfica é a de que um corpo negro dentro da pornografia é sempre um corpo negro. Não é qualquer corpo que performa sexo diante das câmeras. Tal dimensão se expressará de alguma forma – seja no fracasso em uma premiação pelo desempenho nas cenas, seja na ausência de convites para gravar, pois em muitos filmes este corpo negro não se faz necessário; seja no momento da gravação em si, onde enunciados linguísticos servirão para marcar aquele corpo como negro; seja no momento em que o filme estiver disponível nas plataformas online. Como aponta Rodríguez, stickness, a raça sempre os perseguirá. O bombom será sempre preto. E por este motivo ora será valorizado, ora desvalorizado, a depender da obra, da cena, do cliente em questão. Esse casting, para usar o termo utilizado pelos produtores, será, em alguma medida, injusto, uma vez que não leva em conta a aptidão de seus performers e sim os traços fenotípicos, e os marcadores agenciados a partir daí, dos mesmos. Como me confidenciou diversas vezes, Giovanna se sente preterida no mercado pornográfico, sendo chamada para trabalhar por diretores e produtores específicos, sobretudo quando estão em busca de uma “negra”.
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O fim - desejos racializados Meu interesse de pesquisa se concentra em refletir acerca de como os marcadores sociais da diferença operam na pornografia brasileira, as opressões manifestas no seio de tal segmento do entretenimento e prazer adulto, sobre corpos que estão sempre transitando entre o desejo e o preconceito. A atriz que estou tendo a oportunidade de acompanhar em minha etnografia é uma mulher oriunda de camadas populares – não possui vínculos familiares e complementa sua renda de performer pornô com a prostituição. Advinda de um lugar de subalternidade, Bombom encontra no mercado pornográfico um trabalho relativamente rentoso e que também lhe proporciona algum tipo de prazer, evidenciado por falas que me foram ditas como “porque eu queria”, “porque eu gostava”, “por tesão”. Nesse sentido, um outro aspecto que merece ser destacado é o momento onde o sexo perde a centralidade diante das trajetórias de racismo, preterição e preferências. Esta vivência localizada no pornô poderia se equiparar à de qualquer outro de trabalho ou profissão. O mercado de produção pornô pode, por vezes, refletir o lugar de subalternidade e desvalorização que a mulher negra ocupa em nossa sociedade. Um espaço tão efervescente como indústria, ao mesmo tempo que abriga e permite muitas linhas de fuga para sexualidades ditas dissidentes, também encena e arregimenta clichês e dominações do mundo comum. Outro ponto que se pode depreender a partir de meu trabalho é o da invisibilidade da mulher negra dentro da pornografia nacional. O racismo quando conjugado ao sexismo, tal como aponta Lélia Gonzalez (1984), produz efeitos violentos sobre as mulheres negras. De certa maneira, Bombom aponta para uma tensão entre uma imagem hipersexualizada e enaltecida que concomitantemente possui pouco espaço, pouco lugar, pouco prestígio. Esta dimensão tem algo de esquizofrênica, como aponta Frantz Fanon (1983) na constituição da própria subjetividade da mulher negra: ser desejada demais por um lado e ser preterida nos espaços de circulação de privilégio e poder. O Prêmio da Indústria Pornô tenta criar no Brasil um star system aos moldes da indústria pornográfica norte-americana, ao aproximar público e atores e ao prestigiar e congratular as performance dos artistas. Desta maneira, aparições em filmes de conteúdo
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adulto convertem-se em carreiras e no vislumbre de projetos12 de vida, como elucidado na fala de Giovanna, que já se prepara para seus novos filmes, almejando ser indicada na premiação do ano seguinte. Neste rastro, é interessante notar também que ao acreditar que deve trabalhar, correr atrás e “fazer o nome”, podemos entender certos alinhamentos com valores meritocráticos. Porém, à medida em que nossa convivência se estreita, acabam se desvelando os filtros de privilégios que o pornô utiliza, seguindo uma narrativa estética da hegemonia da mulher branca na pornografia brasileira, a “branquidade do pornô” anunciada pela antropóloga Díaz-Benítez (2010). É importante salientar que os vencedores são escolhidos por voto popular, evidenciando uma aparente preferência do público espectador de pornografia nacional pelos corpos de pele branca. Tal privilégio seria, então, incitado por produtores, diretores e demais membros das redes do pornô em razão de uma organização de mulheres numa capitalização sexual-racial ou representaria um reflexo e uma sujeição às expectativas do público consumidor? Sem uma resposta definitiva, pontuo apenas que mulheres negras foram, e são, historicamente objeto de fascínio e desejo. Seja como mulatas de escolas de samba (Corrêa, 1996), seja como as mães pretas e amas de leite (Segato, 2007), seja como atrizes pornográficas que desafiam a “branquidade” do mercado erótico (Díaz-Benítez, 2010). Representam um obscuro objeto do desejo mesmo que negado, escondido e sublimado. Após a noite da premiação, Bombom decidiu que ia encerrar sua carreira. Em suas palavras, ficou “destruída” com o resultado, decepcionada com a perda, com a baixa remuneração, com o estigma. Estava também namorando um rapaz negro, bacana e que de fato a valorizava. A decisão, contudo, durou poucas horas. A mudança se deu por conta de um áudio enviado por uma produtora do Canal Sexy Hot, organizador do prêmio da indústria pornô. A mensagem era repleta de elogios e exaltação, tudo que alguém de signo, ascendente e lua em Leão precisava ouvir.13 Dias Conforme indica Gilberto Velho (1994, p. 32): “conduta organizada para atingir finalidades específicas”. 12
Embora tal análise não seja o escopo deste artigo, a astrologia aparece a todo momento no discurso da atriz. 13
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depois, Giovanna foi novamente convidada a gravar. O ciclo reinicia. Todos os esforços para atuar em boas cenas, ser indicada e arrecadar troféus em 2018 começam novamente. Transcrevo parte da admoestação: Não fica assim, não. Eu te falei o quanto a gente acha você boa, o quanto a gente do Sexy Hot acha você boa. A programação do canal que analisa sempre os filmes… a gente sempre fala de você. Tanto é que a gente te chamou pra Feira Erótica. Nada do que a gente faz é à toa. Se a gente chama você é porque a gente acha que você vai atrair público e de fato atraiu. E a gente já falou aqui no canal: não vamo deixar a Bombom parar de gravar porque ela é muito boa. A gente precisa de atrizes assim como você. A gente conta com você, com a sua dedicação. De verdade. A gente que bota os filmes na final. A gente recebe material e coloca os filmes na final. A gente fez questão de colocar seus filmes porque a gente realmente acha bom, muito bom. Foca pra caramba na campanha ano que vem. A Patty foca muito na campanha. E pela gente do canal, com certeza você tem que ficar. Por favor, não faz isso com a gente, que você é ótima. Não fica triste. Isso acontece. Fica tranquila, você é a cara do Sexy Hot. Você é a cara do pornô brasileiro (Nicole, produtora do Canal Sexy Hot).
Nos meses que se sucederam em 2017, Giovanna de fato empreendeu investimentos em sua carreira. Esteve presente em quase uma dezena de novas cenas, algumas das quais pude acompanhar a feitura, sobretudo com a produtora XPlastic, que estabeleceu uma profícua parceria com a atriz. Gravou com a produtora BM Video, de Brad Montana, encarnando a figura da “mulata boazuda”. Gravou cenas com o ator Nego Catra pelo selo Fetishboxxx. No segundo semestre de 2018, ela recebeu a notícia de que nenhum de seus filmes havia sido indicado a nenhuma categoria no Prêmio Sexy Hot do ano vigente. No extremo oposto, Nego Catra foi indicado ao prêmio de Melhor Ator pelo filme No Íntimo do Perverso, onde contracena com Giovana, que interpreta sua escrava sexual. Temerosa de sequer ser convidada para a noite de gala da cerimônia, ela me diz em tom sério: “não quero ter esperança de mais nada”. Ainda que trágica, a frase é repleta de significados. Nada. O que significaria não querer mais nada? Seria continuar a realizar seus programas, atendendo e recebendo fãs? Seria lucrar com a
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exposição e visibilidade de seu corpo nas redes sociais, sem nunca ganhar o reconhecimento esperado nas premiações? É seguir produzindo e reinventando a si mesma não somente como desejável, mas também como alguém capaz de suportar a perda contínua nos espaços de circulação e poder? Encarnar este bombom seria também encarnar esse escuro objeto do desejo que nos meandros do mercado erótico pode até fracassar, mas também se reinventa, ocupa, deseja e é desejado.
Matérias, corpos e lugares: o trabalho no barracão de escola de samba e a construção de homossexualidades masculinas Lucas Bilate1 O barracão de uma escola de samba é uma das partes fundamentais para a elaboração do carnaval, nele ocorrendo a confecção dos carros alegóricos e de parte das fantasias que desenvolvem o tema apresentado naquele ano (Cavalcanti, 1994). Funcionando sob a forma de galpões, esses espaços são ciclicamente preenchidos e esvaziados por pessoas, madeiras, vidros, tintas, isopores, tecidos e uma infinidade de outros materiais que, com imenso trabalho, são transformados em carnaval. Mas um barracão é mais do que isso – e não são todos iguais, para início de conversa.2 Neste artigo exploro minha experiência junto a rapazes aderecistas para discutir como homossexualidades masculinas podem ser construídas em relações com trabalhos manuais. Não apenas os trabalhos manuais, mas também o ambiente do barracão com suas dinâmicas próprias faz parte desses processos. Estarão aqui em questão os modos como homossexualidades masculinas são vividas nesses contextos, chamando a atenção para os papéis que atividades laborais e concepções espaciais têm nessas experiências. Antes, no entanto, precisamos falar sobre o carnaval das escolas de samba no Rio de Janeiro. Para caracterizar o contexto das escolas de samba precisamos entender como elas se constroem enquanto lugares de experiências singulares. A própria formação delas se dá no processo de construir, reconstruir e resignificar elementos mais abrangentes. Isto significa dizer que o “mundo do samba”3 lida com tensões da “sociedade”, Lucas Bilate é doutor do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.. 1
Barbieri (2009) explora as mudanças ensejadas pela ocupação da Cidade do Samba. Tensões e hierarquias entre as agremiações foram reelaboradas no processo de transferência dos antigos galpões da zona portuária do Rio de Janeiro para o novo espaço dedicado à produção do carnaval. 2
Para Howard Becker (1977), a ideia de mundo é útil para pensar os universos que se constituem em torno de produções artísticas. O mundo do samba, deste ponto de 3
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interpretando-as a seu modo. A experiência do carnaval das escolas é, deste ponto de vista, uma percepção de mundo. Modos de ser e estar diferenciados, uma moldura interpretativa. Ao mesmo tempo, é feita dos elementos abrangentes da sociedade na qual se insere, fala dos diversos segmentos sociais de uma cidade. É urbana em toda sua acepção antropológica (Velho, 1997 [1981]). É uma maneira ritualizada de interpretar e transformar a cidade, as relações, as hierarquias, o tempo e o espaço.4 Além disso, o mundo do carnaval lida não só com experiências particulares de tempo e espaço, mas se constrói a partir de um imaginário. Autores situados no campo da antropologia não cansam de demonstrar como a festa elabora imagens, personagens e situações a seu modo. Passistas, casais da realeza, malandros, fatos históricos, baianas, lugares, lendas e uma infinidade de elementos que certamente não são exclusivos ao carnaval são, no entanto, postos em ação e vividos sob a sua égide. Os materiais de que se vale são ressignificados. Garrafas PET viram alegorias. Nada escapa; tudo que entra sai diferente. O carnaval das escolas de samba é uma verdadeira máquina cultural. Para Roberto DaMatta (1997 [1977], p. 88), o carnaval é um “reflexo complexo, um comentário complicado sobre o mundo social brasileiro”. A ideia de reflexo complexo é uma tentativa de diferenciação das teorias que colocam o carnaval como reprodutor dos conflitos da sociedade brasileira nas quais o “senso comum é inflacionado”. Na perspectiva do autor sobre o carnaval, (...) o ponto de partida é que o carnaval cria não só seus vários planos, mas seu próprio plano. Ou seja, o carnaval – como o teatro,
vista, seria nada mais do que as pessoas, organizações e grupos que produzem os acontecimentos e objetos entendidos como produtos “do samba”. Isso implica em dizer que há contextos vividos como singulares que envolvem a produção em que estão engajados. Fazer carnaval é estabelecer redes de relações nas quais tanto a produção quanto as realidades à volta ganham conotações particulares.
O carnaval é uma maneira de estar na história, um conhecimento de tempo. O ciclo anual do desfile (Cavalcanti, 1994), regimento temporal próprio ao carnaval que se organiza em torno da produção do espetáculo, é experimentado como independente do (apesar de relacionado ao) tempo secular. Um calendário próprio, por assim dizer. Mais do que isto, ele é um tempo diferente, progressivo e sentido em termos de pressão ou possessão. Ver Bilate (2017) e Cavalcanti (2015). 4
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o futebol, o jogo e as situações em geral – inventa seu espaço social que, embora possa estar determinado, tem suas próprias regras, seguindo sua própria lógica (Ibid.).
Uma das inúmeras consequências disso é a impossibilidade de se compreender esses processos fora da moldura interpretativa que é a própria festa. O carnaval como visão de mundo se impõe a quem o deseja perscrutar. É neste sentido que devemos observar as situações trazidas aqui. As relações entre diversas homossexualidades masculinas e o carnaval das escolas de samba devem ser entendidas a partir do contexto em que emergem. Não só homossexualidades se constroem com o carnaval e o carnaval é construído com homossexualidades, mas a festa oferece interpretações sobre esses processos. Um barracão Se um barracão é um espaço em que tintas, madeiras, colas, plumas, espelhos e ferros são transformados em carros alegóricos e fantasias ele também é um lugar em que pessoas, cheiros, sensações, temperaturas, palavras, gestos, músicas e sons se conectam. Em cada um, no entanto, esses processos ocorrerão de maneira particular. Cada barracão é um universo em diálogo. Todos eles, no entanto, são espacialmente organizados da mesma forma. No pavimento térreo os setores de serralheria, marcenaria e ferragens dividem o lugar com os carros alegóricos e com o setor de almoxarifado. O segundo andar é ocupado pelos refeitórios, vestiários, cozinha e, algumas vezes, uma parte do setor administrativo. O terceiro pavimento é tomado por escritórios da administração da agremiação – salas para a equipe de carnavalescos, salas de reunião e escritórios dos dirigentes. O último andar, que recobre toda a extensão do galpão, abriga os setores de escultura, pintura, costura e adereços. Cada um funciona a seu modo, por mais que tenha seus pavimentos organizados como os outros. Horários dos trabalhadores, formas de remuneração e outras características imprimem dinâmicas de operação e convivência diferentes em cada agremiação. Além disso, cada barracão se diferencia também pelo que podemos provisoriamente chamar de “estilo” ou “identidade”
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da escola. Apesar de podermos comparar cada um desses ambientes entre si, essas dinâmicas internas nos exigem muita atenção. As formas pelas quais os barracões são ocupados por pessoas, materiais, máquinas e ferramentas dependem do desenrolar da produção. Isto quer dizer que esses espaços, além de padronizados e diferentes entre si, são espaços mutantes ao longo do ano. A cada momento em que alguém se depare com o seu interior, encontrará um ambiente diferente. No período após o carnaval o desmonte das alegorias é feito lentamente por alguns funcionários. Durante essa “baixa estação” uma equipe básica continua trabalhando (geralmente os funcionários dos setores administrativos, do almoxarifado, cozinha, etc.), enquanto a maioria dos profissionais está dispensada. O retorno desses trabalhadores é paulatino e obedece ao calendário da produção do desfile. Ferreiros começam a trabalhar fazendo as estruturas das alegorias e se confundindo com o setor da marcenaria, que começará a forrar os carros com madeira. Esta primeira fase é seguida do trabalho de vidraceiros, escultores, profissionais de iluminação e aderecistas, que farão os acabamentos. No entanto, como o processo é realizado em cada alegoria, há um momento em que todos esses profissionais ocupam juntos o espaço do barracão operando fases diferentes em determinados carros alegóricos. Tomando o carnaval como um processo cíclico e de tempoespaço específico, como defende Cavalcanti (1994), podemos perceber que cada tipo de produção e de participação nesse universo está localizado e significado dentro de um contexto simbólico próprio a esse mundo social. Quero com isso dizer que os trabalhos de ferragem, carpintaria ou adereços não são apenas entendidos por suas características técnicas gerais, mas pelos significados inerentes ao lugar que ocupam na produção do carnaval. Isso significa que os tipos de atividades desempenhadas nas construções das alegorias e fantasias são simbolizados de acordo com seu lugar nesse processo: a carpintaria é vista então como um trabalho relacionado à estrutura de base de uma alegoria, enquanto o trabalho de adereçamento é entendido como finalizador, agregador dos elementos finais que darão contorno, brilho e cor ao todo alegórico. Mais do que isso, a atividade de adereçamento, por ocupar esse espaço no esquema de produção, se relaciona de perto com uma dimensão simbólica importante para a compreensão da produção de homossexualidades nesse contexto. Os adereços são
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entendidos como um trabalho de requinte, de detalhamento, de sutileza e beleza associadas à cor e ao brilho – aspectos fundamentais tanto para o entendimento do que significa esse tipo de trabalho no carnaval quanto para a compreensão dos processos de formação das subjetividades dos trabalhadores: “um carnaval, dizia Renato, ganha forma e cor com o seu trabalho. Geraldo Cavalcante, carnavalesco da União da Ilha em 1984, falava também da função dos adereços de “dar vida, dar cor, transformar a realidade de madeira e ferragens em sonho” (Cavalcanti, 1994, pp. 151-152). A passagem da dimensão de realidade para a dos sonhos é, portanto, fundamental para o entendimento dessa atividade de adereçamento no carnaval. Encontra-se relacionada à visão de que os trabalhos de base estão ligados à brutalidade enquanto a dimensão dos sonhos está ligada à sutileza. Esses elementos fazem parte dos processos de construção local do gênero. A construção das subjetividades dos trabalhadores se relaciona com o lugar dos seus trabalhos no processo de produção do carnaval e com os materiais e as ferramentas que os caracterizam. Cavalcanti aponta para a importância que os materiais têm na concepção das diferentes atividades. Os trabalhos de ferragem, carpintaria e mecânica, por exemplo, podem ser percebidos não como arte, mas como “serviço”, devido ao fato de ficarem recobertos por outras dimensões materiais em uma alegoria. A autora cita a definição de Tião, um ferreiro: “não é arte porque ninguém vê. Meu trabalho fica todo escondido” (Cavalcanti, 1994, p. 136). O trabalho de ferragem lida com ferramentas como a solda e máquinas destinadas a serrar (assim como a carpintaria). O isopor, material utilizado pelos escultores, é trabalhado em grandes blocos com ferramentas como facas, estiletes, fios elétricos, escovas de pregos e lixas. Apesar de ser entendido como um trabalho que exige “delicadeza” e de ter um caráter artístico fortemente enfatizado (inclusive como portador de um status superior frente às outras atividades), a escultura parece corresponder à grandiosidade característica das formas das alegorias. As obras são muitas vezes de grandes proporções – de modo que essa “imponência” parece diluir o caráter de detalhamento da escultura, desfeminilizando-a. Cavalcanti comenta ainda como se dá o processo de moldagem das esculturas, etapa necessária para sua reprodução. Esse estágio guarda riscos intensos à saúde dos trabalhadores, pois envolve o trato com “produtos miseráveis”. Fibra
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de vidro, compostos químicos fortíssimos e resinas formam um léxico tóxico com o qual necessariamente esses trabalhadores têm de lidar. O trabalho de adereçamento, ao contrário dos outros, lida com uma infinidade de materiais. Não há somente ferro, madeira, isopor ou vidro, mas uma miríade de pedras, plumas, tecidos, paetês, espelhos, placas e tudo mais quanto for entendido como necessário para a decoração de uma alegoria ou fantasia. As ferramentas utilizadas, por sua vez, geralmente se reduzem a duas: a cola (em variadas formas) e a tesoura. As subjetividades desses trabalhadores são formadas nos processos produtivos, em conexão com os materiais com que trabalham, com os procedimentos de como trabalham e com os espaços onde trabalham.
O trabalho manual Quem chega a um barracão não passa incólume. A entrada num espaço de tamanha proporção, ocupado esfuziantemente por um número espantoso das mais variadas pessoas realizando diversas e simultâneas atividades, é capaz de desafiar os sentidos e atordoar o olhar diante da complexidade da experiência. A ação do tempo promove uma familiarização paulatina com o universo, e as regularidades começam a aparecer. Essas regularidades que se impõem aos olhos do observador são, antes de tudo, ilusões, criadas por uma tentativa de ordenação que está primordial e literalmente nos olhos de quem a vê. No entanto, é possível levá-las ao escrutínio alheio e ao crivo da interação para então verificar se essas organizações fazem sentido. A ordenação ou convenção assim organizada guarda sempre uma armadilha: a confusão entre os olhares de quem observa e de quem é observado. Procurar explicitar as convenções que acreditamos dar sentido a experiências em quaisquer contextos é, assim, uma tarefa complexa. A dificuldade é agravada por outra característica. A ideia de convenção supõe um compartilhamento de sentidos; é, por assim dizer, simbólica. Considerando a argumentação de autores como Strathern (2006) e Sahlins (2008), é preciso lembrar que todo compartilhamento é inevitavelmente contextual e contingencial. Isto significa que determinada compreensão pode fazer sentido entre
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um grupo de pessoas e ser incompreensível a outro. Ou mesmo uma convenção compartilhada de modo abrangente pode ser refutada pelo “mesmo grupo” em outra situação. Quero dizer, por mais que compartilhemos uma mesma convenção, seus significados podem ser diferentes. Estas ressalvas gerais são necessárias na medida em que pretendemos abordar uma temática suscetível a mal-entendidos. Compreender o papel do trabalho manual na construção das subjetividades em um barracão de escola de samba requer a aproximação a um universo enervado por múltiplas convenções. É preciso procurar tangenciar o entendimento da inextrincável relação entre determinadas convenções de gênero e sexualidade e experiências subjetivas. O trabalho manual é ali um elo entre “cultura” e “subjetividade”.5 Ao conversar com alguns carnavalescos sobre a presença homossexual mais intensa na seção de adereços, ouvi respostas que poderiam ser consideradas naturalizantes. O “olhar glitterizado” do homossexual, a inclinação da bicha pelo brilho, a sensibilidade para o trabalho de adereçamento e tantas outras maneiras de expressar relações semelhantes procuravam explicar uma conexão entre determinada convenção de gênero e certa dimensão subjetiva. Nos termos de Margaret Mead (2009 [1935]), essas elaborações conectavam sexo e temperamento. A etnografia de Cavalcanti já apontava para a equipe de adereços como lugar de certa homossexualidade: A equipe de adereços, chefiada por Geraldo, era composta de rapazes jovens (havia apenas uma mulher entre eles) que transitavam alegres, e por vezes desafiadoramente, por todo o barracão. No conjunto do barracão, os adereços eram o lugar da jovialidade irreverente, do homossexualismo assumido, da crítica jocosa e perspicaz àquele ambiente de trabalho. Lá, em meio a risos e gírias, aludia-se a todos os assuntos tabus do cotidiano do trabalho: interesses amorosos, consumo de drogas, o mandonismo reinante (Cavalcanti, 1994, p. 176).
Esta divisão é claramente insuficiente e reducionista, já que a proposta a ser defendida aqui caminha para uma diluição dessa oposição. Optei por esses termos aqui apenas por exprimirem uma alusão às dimensões “simbólica” (social e compartilhada) e “psicológica”. 5
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Como este tipo de trabalho manual conecta, produz e estabiliza homossexualidades? Que lugar é esse da “homossexualidade assumida”? A exploração dessas inquietações nos conduzirá primeiramente ao processo de fabricação de um desfile. Corroborando a posição da autora, acredito que a realização do carnaval é um processo particular, que obedece e formula regularidades próprias, fazendo com que deva ser compreendido também em seus termos. É preciso então levar em consideração o espaço ocupado pelo trabalho de adereçamento no conjunto da confecção do desfile. Como já foi dito, a equipe de adereços realiza uma atividade de finalização dentro de todo o processo; oposições entre “realidade” e “sonho” são usadas para contrapor o trabalho de ferragens ao de adereços. Este papel de transformação de uma dimensão em outra, da “dura realidade da madeira” ao universo dos sonhos, elabora outra distinção, entre “concreto” e “abstrato”, que parece fazer sentido nesta compreensão. Mais do que isso, o adereçamento no carnaval opera com outras proporções materiais. As etapas iniciais de ferragem, carpintaria e escultura, por exemplo, lidam com metragens consideravelmente discrepantes em relação ao trabalho de adereços. Metros a perder de vista de ferros e tábuas de madeira são dispostos em harmonia para que esculturas muitas vezes colossais componham uma alegoria. Pequenos e elaborados elementos alegóricos realizados pela equipe de adereços são então justapostos ao complexo para finalizar o projeto que ainda receberá composições humanas para entrar na avenida. Paradoxalmente, é a minúcia dos adereços que preenche visualmente uma alegoria. Um mundo de miudezas. Apesar das dimensões comparativamente agigantadas dos trabalhos de ferragem e carpintaria, tudo deverá ficar suplantado pela multiplicidade de adereços. Cabe aqui ainda outra distinção relevante na compreensão do trabalho de adereçamento em relação aos demais na confecção de um carro alegórico: multiplicidade x unidade. Esta diferença relaciona duas propriedades: a das formas e a dos materiais. As formas utilizadas para composição dos trabalhos de ferragem e carpintaria são basicamente unívocas; as estruturas de ferro e madeira são compostas por sobreposições complexas de formas semelhantes. A atividade de escultura não obedece à mesma padronização de formas, apesar de se manter quase constante em
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relação à enormidade das suas dimensões. Todas essas produções guardam, no entanto, uma semelhança que parece primordial e as distingue do trabalho de finalização dos adereços: a constância dos materiais. Chegaremos ao ponto que, como procuramos defender aqui, conecta mais intensamente os trabalhos manuais às subjetividades. Madeiras, ferros, gesso e fibra de vidro são basicamente as matérias-primas dos ferreiros, carpinteiros e escultores. No caso do trabalho de adereços, vemos uma pulverização de materiais, uma multiplicidade quase infinita, em constante aprimoramento e inovação, e utilizada de maneiras tão variadas que seria inútil tentar descrever. Essa infinidade guarda, no entanto, uma regularidade já exposta quanto à dimensão. Enquanto os demais trabalhos manuais para elaboração de uma alegoria se relacionam com materiais de dimensões comparativamente maiores, o trabalho de adereços depende de matérias-primas que chegam a tamanhos minúsculos. Pedras de apenas alguns centímetros, tecidos nos recortes mais diversos e toda uma miríade de outros elementos materiais ganham forma e dimensão pelo agrupamento maciço sobre as estruturas pesadas. Da minúcia de tecidos, pedras, espelhos e paetês emerge a composição de um elemento alegórico que será agregado a um carro. Além disso, o setor de adereços decora diretamente as fantasias, fazendo com que os tecidos costurados se tornem roupas a representar parte de um enredo. O trabalho de decoração de carros e fantasias é feito diretamente nas peças. Cabe então outra diferença: o adereçamento ocorre tanto diretamente, sobre uma fantasia ou carro, quanto indiretamente, por meio da elaboração de peças decorativas aplicadas às roupas e alegorias. O fazer e a subjetividade
Tornamo-nos aquilo em que trabalhamos. Richard Sennet
Ao explicarem as razões que acreditavam conectar os homossexuais ao setor de adereços, os carnavalescos com os quais conversei demonstravam certo comedimento. Respostas curtas,
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geralmente finalizadas com expressões que buscavam encerrar o assunto pedindo alguma intervenção em concordância com o que diziam, eram comuns. Também apareceram recorrentes formas de expressar o que acreditavam ser um ponto de vista “natural”, “estabilizado” ou quase completamente compartilhado socialmente. Ao dizerem “porque é assim”, “porque viado gosta disso” ou pedirem que eu confirmasse suas afirmações, eles pareciam querer se esquivar do assunto. Durante o processo de pesquisa, aquelas explicações me acompanharam e angustiaram. De certa forma não me conformava com o que eu via como aparente superficialidade. Mais ainda, ao conectarem a homossexualidade ao brilho, ao glitter e à habilidade de decoração, as respostas me faziam lidar com variados julgamentos meus a respeito daquelas perspectivas. Percebi somente depois o quanto elas eram reveladoras e estavam dizendo exatamente o que precisava ouvir. O que julgava como superficial, guardava na verdade a real profundidade. Talvez quanto mais simples e superficial seja uma resposta, mais complexidade ela traga em si – isto porque, ao fim, complexidade e simplicidade não fazem sentido aqui; tanto quanto é improdutiva uma distinção entre superficial e profundo. O indizível é simples a alguns olhos, o profundo pode se mostrar como a expressão mais rasa. Estavam me falando de algo relevante, talvez primordial: os trabalhos manuais fazem subjetividades e as subjetividades emolduram os trabalhos manuais. Como ocorrem esses processos é o que irei abordar. O trabalho manual tem algumas especificidades que devem ser consideradas para esta compreensão. Richard Sennett, em O Artífice (2008),6 explora as conexões entre o mundo material e subjetivo, levando, ao fim, a uma supressão dessa oposição tão cara à nossa imaginação. É precisamente a ideia de que há um diálogo entre pessoas e materiais ou que, em outras palavras, há uma conexão e um processo que relaciona pessoas e materiais que acredito ser útil. Defendo, assim, que um trabalhador manual não só é capaz de pensar com os materiais, fazendo da manipulação deles um discurso e uma gramática, mas que a própria conjunção dos dois produz Meu contato com essa bibliografia decorreu de conversas com Raphael Bispo, a quem agradeço. 6
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subjetividades. Uma frase dita recorrentemente por um apresentador de quadra7 pode nos ajudar a lidar com as proposições de Sennett. “Conversa de sambista é samba” nunca deixou de ecoar nos meus pensamentos porque em algum momento aquilo fez um grande sentido. Quando alguma cerimônia, discurso ou intervalo tomava um tempo considerável na noite dentro da quadra, ao receber o microfone do palco em suas mãos, o apresentador empunhava a frase para retomar a apresentação de um samba. De fato, parece que os sambistas conversam mais quando estão fazendo samba do que quando estão parados conversando. Acredito que a frase do mestre de cerimônias significou para mim a consciência de que aquelas pessoas (e, muitas vezes, eu)8 estavam dizendo e comunicando mais entre si tocando, dançando, sambando, girando e cantando do que quando palavras eram proferidas. O ponto de vista de Sennett a respeito do artífice pode ser entendido como caminhando na direção de um entendimento holista da experiência do trabalho.9 O artesão não só está dizendo algo com a manipulação do material, ele está conversando com os que falam aquele idioma, está subjetivando a matéria e sendo subjetivado por ela. O adereçamento numa escola de samba é uma atividade construída em relação com homossexualidades. No entanto, os processos de gênero operam o papel primordial nessa produção. Mais do que “a homossexualidade”, estão em jogo masculinizações e feminilizações. O trabalho do artífice é ainda marcado por outras características propostas por Sennett, que podem facilitar a compreensão do que tentamos abordar. Ao se deter sobre a proeminência da mão na formação das subjetividades do artífice, o autor explora uma ideia que nos será cara, a de que há uma continuidade entre corpo e material. A retomada por ele da frase Um apresentador de quadra ou mestre de cerimônias é um dos personagens das escolas de samba. Nas quadras eles desempenham a função de anunciar sambas, a presença de convidados e fazer comunicados aos presentes. Alguns desenvolvem uma maneira particular de realizar essas atividades, com “cacos” e frases de efeito. 7
Incluo-me porque sou ritmista de baterias de escolas de samba. Minha inserção nesses universos foi alvo de reflexões (Bilate, 2017). 8
Esta perspectiva tem como foco uma investigação integradora e concatenada das experiências. Neste sentido, pensar o trabalho manual seria também compreender as maneiras pelas quais os sujeitos se conformam através destas vivências. 9
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de Kant é reveladora: “a mão é a janela que dá para a mente”. O trabalho manual envolve processos de conscientização do corpo para a manipulação do material que envolvem uma desmarcação dos limites entre eles, para oferecer ao artífice maior eficiência e controle. Na feitura de sua atividade, o trabalhador é então levado a um constante e repetitivo uso e manuseio das ferramentas e seu material. Nesta relação íntima, porém constantemente atravessada pela coletividade (seja objetivamente, quando o trabalho é setorizado e um aderecista realiza uma parte de fantasia ou alegoria, seja indiretamente, quando ele recebe instruções e orientações), o trabalhador se coloca e é posto em relação com aquilo que elabora. Tornando esse contato constante, ele é levado a uma conscientização dessa relação que se estabelece entre pessoa e material, conscientização que leva a uma “inconsciência”10 dos limites entre pessoa e coisa.11 A apreensão totalizante de uma técnica corporal aparece no início do século XX nas proposições de Marcel Mauss. Em Técnicas do corpo (2003), ele sugere que toda técnica corporal, seja o nado, a corrida, a dança ou o uso de ferramentas deva ser analisada sob o tríplice ponto de vista do “homem total”. A dimensão psicológica e sociológica juntar-se-ia então à fisiológica e à mecânica para permitir compreender os usos do corpo. Ao se deter sobre técnicas consideradas elementares, como os modos de dormir, comer, saltar, etc., Mauss incluiu a sociologia no estudo de fatos considerados intuitivos. Se até mesmo as técnicas do sono variam e estão enervadas não só por elementos fisiológicos, mas também psicológicos e sociais, aquelas entendidas como claramente aprendidas poderiam ser compreendidas como estritamente sociais. No entanto, é sobre este ponto que Mauss pode nos ser ainda Falar em consciência e inconsciência não é propriamente adequado. Desejo exprimir apenas que esta relação entre pessoa e material é construída de maneira específica no trabalho manual. Passa-se por um processo de elaboração dessa fronteira que envolve um borramento. 10
Este aparente paradoxo está pulsante nos escritos de Merleau-Ponty a respeito da sua proposta para entendimento do corpo. O enigma, diz ele, “(…) consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível (…) ele se vê vidente, ele se toca tocante” (Merleau-Ponty, 2004, p. 19). O toque nos conscientiza da tatibilidade e ao mesmo tempo a naturaliza, tornando-a inconsciente. 11
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mais útil. Até mesmo as técnicas vistas como mais aprendidas que naturais devem ser analisadas sob o ponto de vista “total”: modos de cortar tecidos, colar paetês, soldar vigas de ferro ou serrar placas de madeira têm assim dimensões psicológicas. Atos técnicos falam dos corpos, das sociedades e das noções de pessoa que se constroem neles. É possível dizer, portanto, que os trabalhos manuais em um barracão de escola de samba estão construindo pessoas. Ou ainda que noções de pessoa estão em processos de construção em relação com as atividades desempenhadas. Esta coordenação passa pelo uso dos materiais e ferramentas. O material contamina a pessoa, assim como a pessoa contamina seu material de trabalho. Temos, a princípio, uma maior elaboração consciente em relação ao segundo processo. A ideia de autoria, por exemplo, se baseia na noção de que imprimimos algo nosso, com nosso trabalho, a uma matéria. Já o primeiro vínculo não parece tão enfatizado, de modo que tendemos a obliterar o quanto os materiais nos contagiam com o trabalho. Consequentemente, somos levados a pensar a respeito do papel que os diversos materiais utilizados nos trabalhos desempenhados num barracão exercem sobre as subjetividades dos trabalhadores. É neste sentido que é possível falar em processos de construção de gêneros em relação com madeiras, ferros, gesso, plumas e espelhos. Na fabricação de vidros (exemplo usado por Sennett), o trabalho passa por uma continuidade entre carne e vidro. O artífice se deixaria absorver pelo material como um fim em si mesmo, experiência que, para Merleau-Ponty (2004), é “o ser como coisa”. A matéria-prima do trabalho não é, no entanto, neutra. Convencionadas e simbolizadas, podendo ser carregadas de potencial generificante, elas conformam subjetividades. Não apenas os materiais que servem ao uso do trabalhador se relacionam com ele mais substancialmente, também as ferramentas utilizadas se incluem nesses processos. Aqui a relação entre forma e conteúdo parece mais relevante. É preciso compreender as ferramentas a partir desta relação; cada instrumento não é apenas “o que ele faz”, mas também “o corpo que o desempenha”. A utilização de instrumentos de trabalho num barracão não ocorre de forma menos plural. Serralheiros empunham suas ferramentas de corte mecânicas ou automáticas, ferreiros estalam suas soldas, escultores cortam e desgastam placas de isopor com os
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mais variados instrumentos. Aderecistas contam basicamente com suas duas ferramentas, a pistola de cola e a tesoura. O ato de martelar um prego é usado como exemplo por Michael Polanyi e retomado por Richard Sennett: Quando baixamos o martelo, não sentimos que seu cabo golpeou a palma da nossa mão, mas que sua cabeça golpeou o prego (…) Tenho uma consciência subsidiária da sensação na palma da mão, que se mistura à minha consciência focal de estar impelindo o prego (Sennet, 2012, p. 195).
Parte de um corpo, a ferramenta o prolonga até o contato com seu material. Além disso, o movimento no desempenho deste utensílio passa a ser também parte dessa corporeidade. Buscando resignificar o diálogo entre ciência e filosofia, Merleau-Ponty elabora uma percepção que revisita certas distinções. Uma delas recoloca a relação entre corpo e instrumento: “longe de nossos órgãos serem instrumentos, nossos instrumentos, ao contrário, é que são órgãos acrescentados” (Merleau-Ponty, 2004, p. 39).12 Essa corporeidade pessoa-ferramenta-material inclui o movimento operado no desempenho do trabalho. Defendo, portanto, que haja uma performance dessa corporeidade formada no processo da atividade laboral que também esteja conformando gêneros. Acredito que, ao exprimirem suas perspectivas em frases como “viado gosta de brilho”, os carnavalescos com os quais conversei poderiam estar chamando a atenção para algumas relações que produziam certas homossexualidades em conexão com os trabalhos manuais, suas técnicas, ferramentas e materiais. Richard Sennett ressalta a consideração da atividade de costura como artesanato medieval estendido às mulheres, de forma a combater a ideia de licenciosidade sexual feminina. Nas guildas, espaços então aliados aos processos de construção de masculinidades, não se aceitavam mulheres como membros para o ofício artesanal. O trabalho manual da agulha foi sendo sedimentado como prática feminina (Sennet, 2012, p. 72). Em Working Bodies Em minha dissertação de mestrado, explorei conexões entre pessoas e objetos. Tratando das construções de gênero entre ritmistas de baterias de escolas de samba, procurei ressaltar a proposta de que noções de gêneros e classe social, por exemplo, eram produzidas em relação com os instrumentos musicais. 12
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(2009), Linda McDowell reflete sobre a associação dos corpos a diferenças, vergonhas, sujeiras, assim como a saúdes, belezas, adornos e decorações em caminhos nos quais essas características e atributos se associam a diferenciações de gênero, raça e classe. A autora se detém naquelas atividades em que trabalhador e consumidor estão presentes em interação, nas quais o serviço prestado é utilizado no momento da troca. Ela esteve mais atenta a trabalhos considerados como prestação de serviço e relacionados à esfera do cuidado e da saúde. Ao se debruçar principalmente sobre esses setores para explorar a construção da ideia de “carreiras femininas”, ela acaba atribuindo às atividades manuais o lugar da masculinidade. A observação dos modos de construção de feminilidades nos trabalhos manuais acaba caindo na obscuridade. Ainda assim, há propostas relevantes para nossas considerações. A ligação entre gênero, espaço e atividade laboral, mote da publicação, é fundamental. A autora considera também o local de trabalho como arena mais significante de construção social da masculinidade, o que pode nos ajudar a compreender as experiências com as quais lidamos aqui. O mundo do trabalho é, portanto, um ambiente-agente nos processos de gênero. Ainda mais enervado por determinadas convenções de gênero é o meio do trabalho manual, geralmente em torno do qual se constroem noções de masculinidade. Isso não impede, contudo, a formação de processos de feminilização. A atividade da costura, simbolicamente carregada neste sentido, não esgota essas possibilidades. Em um barracão podemos encontrar outras maneiras de relacionar construções de gênero a trabalhos manuais. Portal Mágico Deve-se compreender a construção do espaço do barracão como complexo agente e componente nos processos de formação das subjetividades dos trabalhadores. Como seria possível abordar processos de construção de gêneros e sexualidades sem atentar para as relações com o espaço? Afinal de contas, se o trabalho de adereçamento relaciona pessoas a materiais, técnicas e ferramentas, é preciso considerar também as conexões entre trabalho e “ambiente”. Para isso usaremos uma ideia sugerida por um dos carnavalescos, a
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de que o barracão é um “portal mágico”. Para entender porque esse ambiente é visto como marcador de experiências singulares é preciso compreender o tipo de rotina e de trabalho da maioria dos sujeitos. Por ser um tipo de atividade que segue um calendário próprio, o carnaval tem um regime peculiar de contratação, permanência e pagamento dos trabalhadores. A grande maioria deles (ferreiros, carpinteiros, aderecistas, figurinistas, escultores, pintores, costureiras, etc.) trabalha sazonalmente durante alguns meses do ano, sendo os mais intensos geralmente os dois ou três antecedentes à festa. Por pelo menos dois meses a maioria dos rapazes com os quais convivi dormia nos barracões.13 O regime de trabalho muitas vezes impõe essas condições, mas muitos rapazes decidem simplesmente dormir nos barracões, mesmo havendo a possibilidade do retorno. Isso ocorre por diversas razões (como condições materiais para ir e vir, ambiente familiar conturbado, etc.). O fato é que a maioria dos rapazes lá permanece durante toda a semana. Isso implica na produção de uma dinâmica de experiências muito próprias e na consequente ênfase simbólica na separação dos espaços de dentro e fora de um barracão. Creio ser relevante considerar que contextos profissionais podem estar relacionados a experiências particulares de tempo e espaço. Isto se torna proeminente no barracão na medida em que ele não apenas impõe um ritmo de trabalho, mas se constrói diferencialmente em relação aos ritmos das demais atividades laborais. No seu fluxo progressivo até chegar ao ápice do desfile, o trabalho no barracão vai se inflamando em consonância com o calor da cidade à sua volta. Enquanto o ritmo esquenta no seu interior, a interação diária produz laços mais densos. Passar pela construção de um carnaval pode ser, deste ponto de vista, uma experiência intensa. As brigas enervadas por esta convivência ressoam nos gritos de “não Isto também está relacionado ao perfil desses trabalhadores (em geral, rapazes de 17 a 30 anos). São geralmente pessoas que precisam se deslocar por muitas horas até chegar à cidade do samba e, como o trabalho pode começar muito cedo e terminar tarde, acabam preferindo dormir nos locais de trabalho. Os horários não são muito fixos porque dependem da produtividade e de uma série de imprevistos aos quais eles estão sujeitos (como a falta de material, mudanças em fantasias e alegorias, entre outros); dependem também, em última instância, da liberação ou não pelo “chefe da bancada” que pode solicitar que eles façam “serões” para adiantar o trabalho. 13
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aguento mais você” e “quero que este inferno acabe”, ouvidos mais de uma vez nos meses que antecedem a festa. Esta rotina avassaladora de deslocamentos espaciais e temporais imprime modos particulares de experiências. Essa atmosfera inebriante possibilita a construção de vínculos específicos. A comparação entre essas relações e a constituição de uma família é recorrente, como podemos constatar nas observações de Cavalcanti (1994, p. 179): “sua equipe era como uma ‘família que come, dorme, almoça junto’”. Sabemos que a comensalidade pode ser encarada como um rito de agregação. Van Gennep (2011, p. 43) sugere que o ato de comer e beber em conjunto seja “de união propriamente material”, o que não só nos leva a pensar essa atividade como possibilidade simbólica de produção de uma coletividade, mas alarga essa perspectiva. Desse ponto de vista não é arriscado dizer que a comensalidade elabora fortemente um dualismo intensamente presente entre material e imaterial. Ela conecta esses âmbitos fazendo com que a agregação no sentido imaterial seja realizada junto, com e por meio da experiência material, sendo, ao fim, impossível dissociar essas esferas na experiência. Como modo de produção desse coletivo, que ganha às vezes tons de “família”, a atividade de comer e beber em conjunto se mostra presente e eficaz no ambiente dos barracões. Este regime de atividades diárias que vai desde o momento em que se levantam até a hora em que vão dormir (ou ficar acordados) é uma força rítmica avassaladora capaz de produzir laços intensos. Essa pujança do cotidiano de trabalho em um barracão, aliada à potência que atividades diárias como comer e dormir exercem quando praticadas em conjunto, leva não só às relações intensas. A própria perspectiva da experiência se torna marcada por essas dinâmicas. Trabalhar em um barracão leva a tamanha contaminação pelos ritmos, cheiros, formas, cores, materiais, pessoas, horários, palavras, músicas, e por uma infinidade de outras informações, que faz com que aquela vivência seja percebida como totalizante. Talvez por isso esse trabalho “vicie”. Tanto mais isso acontece quanto o próprio barracão for regido mais ou menos uniformemente.14 Um colorido que tinge a ideia de magia é a percepção Essa diferença ficou evidente para mim na medida em que frequentei dois espaços com regimes de trabalho diferentes. Em Bilate (2017) exploro consequências que essas diferenças podem ensejar. 14
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desse espaço sob a aura do sonho. A noção de que o barracão é um espaço “de sonhos”, “para construir sonhos” ou “onde os sonhos viram realidade” (Cavalcanti, 1994) enfatiza essa dimensão de especialidade. Em contraposição à realidade, se situam o sonho e a magia no imaginário do lugar. “Você não imagina o que acontece aqui dentro”, como ouvi algumas vezes, sinaliza tanto a excepcionalidade daquele lugar quanto a dimensão fantasiosa na qual ele é embalado. Produtor de fantasias e produto das fantasias, ele é o próprio elo entre a criação e a criatura. Outras experiências e comportamentos demonstram a produção do espaço do barracão atrelado à identidade dos sujeitos, uma delas sendo a nomeação. Certa vez conheci alguém que havia começado a trabalhar no barracão naquela semana. Apresentaramnos: “Lucas, essa é a Mayara”. Ela aparentava uns 17 anos de idade e permaneceu aquele dia sem conversar muito durante o trabalho. Alguns dias depois fui descobrindo mais sobre Mayara: ela é de Paracambi (município próximo ao Rio) e dizia que o carnaval de lá agora havia acabado por falta de repasses da prefeitura. Sua ida ao Rio de Janeiro estava relacionada à sua família “estar se acostumando” com o fato de “ser bicha” – como disse-me ela – e com a sua vontade de trabalhar em um barracão. Perguntei mais sobre como é o carnaval na sua cidade e as respostas demonstravam bastante controle das informações (quantas escolas e a que bairros estavam ligadas, quem havia ganhado os últimos campeonatos, etc.), o que demonstrava certo interesse dela pelo assunto. Passados poucos dias eu perguntei a Mayara se ela já havia ido à quadra da escola (nessa altura eu já sabia que ela era torcedora da agremiação na qual estava trabalhando) e ela respondeu: “eu ia ainda outro dia, mas a Beiçola, minha mãe, não deixou”. Eu já sabia que Mayara estava dormindo todos os dias no barracão e estranhei esse controle materno; além disso, havia estranhado o nome da mãe e perguntei: Lucas: “Sua mãe?” Mayara: “É, logo que cheguei aqui me deram uma família. A Déia é minha madrinha, a Beiçola minha mãe” Lucas: “E o pai?” Mayara: “O pai, não tem [Ela ri] Me deram também um monte de nomes, cada hora me chamam de uma coisa: Tailandesa, Xuxa,
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Índia, Sabrina Sato, Yakisoba…”15
Em outro barracão trabalhava Ossanhe, um rapaz que aparentava estar entrando na casa dos trinta anos. Ossanhe (também um apelido, mas em referência ao nome do orixá) estava um dia especialmente cansado e reclamava do trabalho que parecia não acabar: “não aguento mais isso aqui, Jesus!”. Ele finalizava o adereçamento de uma janela que, se aprovada pela equipe do carnavalesco, seria reproduzida para ser colocada em grande quantidade no alto de um dos carros alegóricos. Sandrinho, marido e assistente do carnavalesco, esperava o trabalho de Ossanhe chegar ao fim para decidir o destino daquela peça. Conversávamos todos enquanto isso. Ossanhe tinha uma personalidade bastante bem humorada e passava a maior parte do dia brincando e falando com seus orixás.16 Entre uma brincadeira e outra ele pedia a Sandrinho algum material. Sandrinho, depois de entregar diversas vezes diferentes materiais a Ossanhe, brincou: “o que você quer mais, bicha? Cada hora é uma coisa!”. Ele prontamente respondeu: “O que eu quero? Eu quero é terminar isso aqui, ir embora dessa cidade do samba. Esse lugar aqui não presta, ninguém tem nome, é todo mundo ‘viado’, ‘bicha’”.17 E todos rimos. É fundamental ressaltar que a agremiação na qual Mayara trabalhava enfatiza o caráter “familiar”. Certamente esse caráter agrega tons especiais às vivências relacionadas ao trabalho nesse ambiente. Um dos principais “slogans” ou “gritos” (como costumam se chamar em escolas de samba essas frases de efeito que caracterizam a identidade da agremiação) da escola em questão exalta essa característica: “a família Beija-Flor te ama”. Outro “slogan” derivado deste homenageia o presidente de honra e patrono da Escola: “alô papai, a família BeijaFlor te ama”. 15
A relação desses rapazes com as religiões e cultos afro-brasileiros é intensa. Muitos deles são “do santo” e os assuntos sobre oferendas, rituais, orixás e entidades eram frequentes. Samir certa vez pediu que eu assistisse a um vídeo em seu celular, no qual ele fazia uma apresentação pública no Dia da Consciência Negra dançando “para Oxossi”, seu orixá. Ele mesmo, além de trabalhar, dançava como passista em duas agremiações. Em um dos barracões, por exemplo, havia santos e estátuas espalhados por quase todo o lugar. Muitas delas tinham oferendas aos seus pés e a maior delas, a de São Jorge (padroeiro da escola), media mais de três metros de altura. 16
Creio ser importante salientar que estes termos eram utilizados largamente nos ambientes dos barracões sem, entretanto, deixar explícita alguma conotação de violência verbal – até porque estas palavras eram majoritariamente empregadas de 17
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A pequena passagem anedótica reforça o papel que a nomeação tem na construção de um espaço próprio. De fato, a maioria dos rapazes se tratava simplesmente por “viado” ou “bicha”, fazendo entre si poucas referências aos seus nomes “verdadeiros”. Essa atitude de apagamento das identidades ou características que as conformam fora e a criação de maneiras para se referirem a si próprios no espaço de dentro também produz essa fronteira. Kulick (2008), ao tratar das vidas das travestis de Salvador, ressalta o papel que a nomeação tem na construção das trajetórias. Os contextos analíticos dele e meu são consideravelmente diferentes, mas desejo apenas chamar a atenção para o impacto social/subjetivo que os processos de nomeação envolvem. Nas vidas das travestis trazidas por Kulick, a saída de casa é vivenciada como momento crucial de ruptura. As mudanças na composição da vestimenta geralmente são acompanhadas pela mudança de nome (Kulick, 2008, p. 79). A adoção de outro nome no barracão (geralmente sob a forma de apelido), tanto quanto envolve uma dinâmica social, nos fala menos da produção de uma ruptura na concepção de si e mais da produção de uma atmosfera coletiva de separação. Em outras palavras, “esse não é meu nome, mas aqui me chamam assim”. Van Gennep (2011), referindo-se aos ritos de passagem, aborda os ritos de nominação. Para ele, esses ritos haviam sido insuficientemente estudados àquela época em termos da revelação do seu “verdadeiro aspecto”. Aqui nos interessa a capacidade de agregação à sociedade ou a um grupo (família, linhagem etc.) vista por Van Gennep nessas atitudes. Podemos extrair, não sem considerar os encalços comparativos, a sugestão do autor do papel da nominação. Desejamos enfatizar o fato de, em um barracão, ela produzir justamente esse efeito agregador a um grupo. É por meio dela também que se constrói a fronteira entre o mundo de dentro e o de fora do barracão. A perspectiva de que há um modus operandi dentro e outro fora daquele espaço envolve uma série de outras produções. Abordaremos as particularidades que esse ambiente mágico enseja nos modos de construção de si no tocante ao gênero e sexualidade maneira autorreferencial. Esta perspectiva de que eram todos “viados” e “bichas” desejava, mais do que apontar um uso pejorativo, chamar a atenção para certa “homossexualidade predominante”.
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dos trabalhadores. Um dos carnavalescos com os quais conversei fazia uma retrospectiva de como ele percebe uma mudança no perfil dos homossexuais que trabalham nos barracões de escolas de samba nos últimos 25 anos:
O barracão era um espaço, tirando os oficiais, boate e etc., que são preparados para receber o público gay, o barracão era um espaço mais democrático. Os mais afetados andavam igual um robozinho na rua, mas no barracão não. Era como se a porta do barracão fosse um portal mágico. Não é que eles fossem hipócritas, é que os tempos eram mais complicados. Então quando eles atravessavam esse portal mágico, eles caíam num mundo onde eles eram bemvindos, eram respeitados na sua imposição sexual (porque ninguém escolhe ser gay, é uma desgraça). Essa situação perdurou durante um bom tempo. Era um espaço de libertação, de estar, de ser exatamente o que a criatura era sem máscaras, disfarces ou fantasias. O trocadilho é engraçado, porque no templo das fantasias o cara se desfazia da fantasia de ser um hetero do lado de fora.
A percepção do carnavalesco de que a situação da homossexualidade nos barracões teria mudado é relacionada em sua fala com a hipótese de que a sociedade teria paulatinamente diminuído essa diferença – ou seja, a homossexualidade teria se tornado mais aceita. O estigma, em relação ao trabalho na escola de samba, de que “era coisa de gay ou marginal” teria diminuído: “a gente lutou muito pra fazer disso aqui uma empresa”. Essa diminuição do estigma teria, por sua vez, facilitado o acesso das pessoas ao mundo do carnaval, o que permitiu que, segundo ele, houvesse hoje um número maior de homossexuais trabalhando, embora com um “talento” menor: “a dificuldade fazia com que aqueles que chegassem até o barracão estivessem com o olhar glitterizado. Perdeu o artista, a coisa se mercantilizou”. No entanto, o ambiente do barracão continua sendo, para ele, receptivo aos homossexuais: “Hoje são adolescentes que, por dificuldade devido à opção sexual, têm problemas pra se colocar no mercado. Ou porque não estudaram ou [porque] a afetação atrapalha. Eles vêm pro barracão em maior quantidade por não ter preconceito com o carnaval”. A principal diferença percebida por ele nessa comparação de mais de duas décadas (tempo em que está atuando profissionalmente no carnaval) está na existência daquilo que ele
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chamou de “portal mágico”. Essa imagem enfatiza a produção de uma separação entre os ambientes internos e externos ao barracão em relação ao comportamento dos homossexuais. Para ele, antes, existiria uma “vida paralela”, ao passo que hoje, ao contrário, seria preciso “colocar freios” nos meninos homossexuais. Ele explica: “hoje aqui a gente põe um cabresto; não é engessar a turma, mas nós temos um padrão de comportamento”. Que papel teria então esse espaço na conformação daqueles sujeitos já que, a princípio, eles não viveriam mais uma “vida paralela” (sendo “heterossexuais” fora e “homossexuais” dentro de um barracão)? Suspeito que, para alguns sujeitos, esse caráter “de portal” que pode ter um barracão ainda seja importante na construção de suas identidades sexuais. Se, para alguns homossexuais que já teriam “se assumido”, aquele ambiente não parece se relacionar tão fortemente com suas identidades, para outros, isso seria diferente. Xanda, uma menina de vinte e poucos anos e também aderecista, pode nos dar pistas sobre esses matizes. Conversando com ela num dia em que havia somente nós dois ao redor da mesa (os rapazes tinham descido para adereçar um carro alegórico),18 comentávamos a entrada recente de novos rapazes na equipe. Ela dizia: “eu não aguento, viu. O Sávio entrou aqui hétero. Comecei a conversar com ele e depois de uns dias ele já era bi. Uns dias depois já gostava de viados, mas daqueles ‘mulheres’. Aí no fim o que eu descubro? Que é uma dadeira de cu”. Passando alguns dias depois por outra mesa nesse mesmo barracão em que Xanda trabalhava, fui chamado por uma menina: “ei, menino, vem cá. Você não é da bateria da Beija-Flor?”. Fui imediatamente levado à proximidade dela, que trabalhava com mais duas meninas também adereçando fantasias, mas sob a chefia de outro rapaz. Respondi afirmativamente e logo começamos a conversar. Rafael, que para mim naquele momento era uma menina de quase vinte anos, refrescou minha memória a respeito de como me conhecia: “você não lembra de mim? Eu ia toda quinta-feira na quadra e te chamava na beirada do palco pra você tirar foto comigo. Lembra? Eu dizia que ia casar contigo, lavar sua roupa…”. Naquele Creio ser importante dizer que Xanda era a única mulher naquela equipe em que trabalhavam sete pessoas. Esse padrão tende a se repetir, havendo poucas mulheres como aderecistas. 18
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mesmo momento a lembrança me veio, e eu disse: “é verdade! Poxa, me desculpa, é que você está diferente agora”. “Agora eu sou menina”, brincou. Ela não hesitou em perguntar o que eu fazia ali, ao que respondi informando sobre a pesquisa: “estou fazendo minha pesquisa aqui, fico quase todos os dias ali na mesa com os meninos do Sandrinho”. Tainá, uma transexual que trabalhava na mesma mesa, ouvindo nossa conversa, perguntou mais sobre a pesquisa. Tendo ouvido de mim que se tratava de uma pesquisa sobre o barracão da escola de samba e a homossexualidade, ela disparou: “quer entender porque aqui tem tanto viado? Você quando vai num lugar de rico você não fica rico? É a mesma coisa, aqui só tem viado, então a pessoa que entra vira viado”. Tainá prosseguiu: “Esses espaços influenciam a pessoa a ser o que ela não é ou o que está internalizado nela. O carinha que é gay, quer se montar mas não faz… aqui é o momento. Ninguém vai olhar ele estranho, o espaço é propício. Aqui todos liberam seus demônios”. “E as mulheres?”, perguntei; Rafael respondeu rindo: “mulher aqui vira piranha!”. É importante dizer também que estas categorias (“homens”, “viados”, “gays”, etc.) são relacionais. Sujeitos percebidos como “homens” ou “bofes” podem ser, em outros momentos de visão, “homossexuais” ou “viados”. Isto dependerá das relações que darão sentido às experiências. Alguns episódios ocorridos nos barracões elaboram justamente a possibilidade da masculinidade daqueles vistos como homens ser instável, construindo o ambiente do barracão como lugar possível de borramento dessas fronteiras.19 Esses pequenos relatos podem trazer à luz o papel que o espaço do barracão parece ter para a formação dos sujeitos. É certo que, para alguns, esse ambiente não se relaciona tão fortemente com suas identidades sexuais, mas, para outros, ele continua sendo um portal capaz de agir sobre a forma como essas pessoas pensam e vivenciam suas subjetividades. A noção de que aquele espaço funciona como um portal mágico para a construção de subjetividades revela um importante componente na conformação de sexualidades e erotismos. A ênfase no caráter alterador que o barracão exerce sobre as experiências Em outra ocasião (Bilate, 2017), elaborei as construções de convenções em torno das categorias de “homens” e “viados” nesses contextos. Sugiro que as fronteiras entre homens e viados sejam produzidas não apenas para diferenciá-los, mas principalmente para aproximá-los. 19
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eróticas e afetivas, encontrada mais ou menos fortemente, chama a atenção para a possibilidade dessas dimensões serem vividas de maneira particular. Esse estado não implicaria em uma diluição das convenções, mas sim no seu uso para mobilização erótica e na possibilidade de intensificação das experiências de transgressão das mesmas. De alguma forma o barracão é visto como um lugar em que a experiência da homossexualidade é vivenciada de maneira particular. Isso fica mais evidente quando entendemos uma construção relacional importante para a delimitação simbólica do espaço do barracão. De acordo com estudos nos campos da geografia (Massey, 1995; 2000) e da antropologia (França, 2012), os espaços são construídos relacionalmente. Nesse sentido, podemos dizer que o espaço do barracão existe na relação com outros. A quadra de uma escola de samba oferece outras percepções e experiências de homossexualidades masculinas. Mas esta é outra face da mesma história que não cabe agora apresentar. O trabalho de adereçamento em um barracão pode ser encarado como uma maneira de viver homossexualidades. Os modos como a atividade laboral participa da construção dessas experiências é elucidativo das conexões entre subjetividades, materialidades, espaços e convenções. Se o carnaval oferece comentários complicados sobre o mundo social (DaMatta, 1997), sobre as homossexualidades masculinas ele parece estar nos dizendo que elas são feitas por meio de experiências concretas. Neste sentido, “ser homossexual” em um barracão pode significar se construir na relação com plumas, tesouras, pistolas de cola quente e paetês. É fazer seu corpo em continuidade com esses materiais, ferramentas e com aquele espaço mágico.
As muitas faces de um livro: sexualidade e moralidade no mercado editorial brasileiro Nathanael Araujo1
– É discrepante. Um verdadeiro exército guerreando pela vida e o único e verdadeiro instrumento pacificador é a morte. – Nem sempre é assim, Gabriel. Pense que a vida é como um cookie: a superfície é árida, às vezes é duro demais, quase nunca está do jeito que gostamos, mas há sempre gotas de chocolate para consolar o nosso paladar, para adoçar a alma e compensar todo o resto que pode não estar tão bom quanto esperávamos. – Você acredita que eu só como os cookies por causa das gotas de chocolate? – disse Gabriel quase infantil. – Compreende a dinâmica? Se quiséssemos apenas chocolate, pegaria um e comeria. Mas o prazer está justamente em encontrar as pequenas gotas de paz ao longo da vida (Caldeira, 2014, p. 69).
Introdução A literatura frequentemente encontra-se conformada por elementos que fazem parte da vida cotidiana dos indivíduos em dada sociedade. Enquanto produto cultural, ela não apenas reflete ou refrata modos de agir, pensar e sentir daqueles que a elaboram, como também produz realidades (Williams, 1979, 1989; Said, 1990, 2011; Becker, 2009; Silva, 2016; Araujo, 2017; Tennina, 2017). Este artigo tem como objetivo analisar a obra literária Águas Turvas, do escritor brasileiro Helder Caldeira, publicada em 2014 pela Editora2 Quatro Cantos, fundada, por sua vez, pelos editores Renato Potenza Rodrigues e Rosana Martinelli em 2012. Partindo da compreensão de que “textos não são necessariamente livros”, sendo estes “uma modalidade de produção, Mestre em Ciências Sociais pelo PPGCS da UFRRJ. Atualmente é doutorando em Antropologia Social pelo PPGAS da UNICAMP. Pesquisador do Núcleo de Estudos de Gênero PAGU e do Ateliê de Produção Simbólica e Antropologia. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. 1
Para manter o texto mais fluído, adoto a grafia da palavra “Editora” com inicial em letra maiúscula para me referir a uma empresa cultural e “editora” com letra inicial em minúsculo para me referir à profissão. 2
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de conservação e de comunicação do escrito” (Chartier, 1999, p. 107) dados em uma determinada época, tomo o livro enquanto obra que deriva do trabalho coletivo de inúmeras pessoas que, em cooperação, conformam o “mundo dos livros” e afetam não apenas sua produção como também o seu consumo (Becker, 2010). Analisá-lo como obra se inscreve, portanto, no trato de sua textualidade bem como na apreensão dos eventos por ela provocados ou a ela destinados, correlacionando estas ações e produzindo dois movimentos simultâneos que operam de modo a dar densidade e complexidade à leitura proposta. De um lado, escrutino as condições de possibilidade da vivência da homossexualidade, por parte dos protagonistas, em uma “narrativa pró-final feliz”. Para tanto, destaco não apenas a trama destes, mas os disponho em relação às das personagens secundárias do livro. A partir desta perspectiva, traço paralelo a respeito das relações afetivo-sexuais – hétero e homossexuais – existentes no romance. De outro lado, desnudo o processo de produção, publicação e circulação do livro, evidenciando as práticas acionadas para a inserção do mesmo na plêiade das produções simbólicas e culturais por parte de profissionais do livro, termo mobilizado para agrupar editores, livreiros, tradutores, críticos, agentes literários, etc. que atuam como mediadores da relação entre as obras e o público leitor, operando em “sistemas de categorias de classificação, de percepção e apreciação” (Sorá, 1994, p. 4) por eles ordenados. Se o primeiro movimento aponta para a existência de um trabalho de limpeza moral pelo qual os protagonistas passam, sendo este dependente da assunção do amor enquanto aspecto fundamental que apaga as expressões de sexualidade não heteronormativas, o segundo movimento permite apreender estratégias de construção de uma agência do objeto aqui analisado que visam permitir sua circulação com a expectativa de prolongamento da mensagem ali presente – que, sob esta ótica, deixam de apontar para aspectos prescritivos para lançar luz a dimensões transformadoras, sendo seus editores os primeiros leitores e “vítimas” desta transformação.
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Noite de lançamento Cheguei ao Instituto Cervantes,3 um pouco depois das 18h, ocorreria o lançamento do livro Águas Turvas, do escritor Helder Caldeira, publicado pela jovem Editora Quatro Cantos. Seu lançamento estava inscrito dentro das atividades do Rio Festival Gay de Cinema,4 evento de exibição de películas de longas e curtas metragens e documentários de “temática homossexual”. Embora o Festival estivesse sendo massivamente divulgado, com suas atividades distribuídas por vários espaços da cidade, com relação ao livro, chamava a atenção o modo com que a obra havia sido, até aquele momento, apresentada ao público. Comparando-a com as demais produções que vinha mapeando, diferentemente destas, não era possível observar por meio da sinopse sobre a história do romance, da capa do livro, no site ou clipping de divulgação, elementos que evidenciassem a tentativa de marcar um “pertencimento” específico dentro da dinâmica classificatória presente no mundo dos livros, embora sua inserção no Festival o fizesse pela primeira vez.5 De forma mais precisa, tinha descoberto aquela atividade por meio do escritor Sergio Viúla, que havia me sido apresentado pela editora Lea Carvalho, ambos interlocutores de minha pesquisa de mestrado e importantes atores na defesa e conformação de uma “Literatura LGBT”.6 Na convivência com eles e por meio das redes sociais e do blog de Sérgio, tomei conhecimento não apenas do 3
Localizado na Rua Visconde de Ouro Preto, número 62, Zona Sul do Rio de Janeiro.
Em geral, após a exibição dos filmes, é frequente a ocorrência de debates com atores e diretores envolvidos nas produções fílmicas, o que lhes permitia apresentar seus processos criativos e suscitar discussões sobre temas presentes na dinâmica social. 4
Em minha dissertação, me detive na percepção da existência de um discurso promovido por editores e autores que se afirmavam LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) e produtores específicos de “livros de literatura LGBT”. A investigação tratou-se de uma etnografia da produção e circulação de obras sob esta rubrica difundidas particularmente por Editoras criadas especificamente para tanto, mas não apenas (Silva, 2016). 5
Embora outros termos apareçam, utilizo “literatura LGBT” por se tratar da grafia mais adotada e difundida atualmente pelo conjunto de interlocutores abarcados em minha pesquisa de mestrado, na qual busquei refletir também acerca dos usos estratégicos feito destes termos seja no que se referem as suas aproximações e englobamentos ou diferenciações por parte dos pesquisados. Ver Silva, 2016. 6
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lançamento do livro naquela noite, mas também de um debate onde ele comporia uma mesa junto com Helder Caldeira, a ocorrer no dia seguinte ao lançamento. Chegando ao endereço, estranhei a falta de divulgação na porta do local sobre as atividades referentes ao Festival e ao lançamento. A impressão era mesmo de o lugar estar fechado. Passei pela entrada, que estava vazia, e não encontrei porteiro ou recepcionista que pudessem dar quaisquer informações. Ao circular pelo lugar, ouvi um som distante ecoando pela escada. Subi até o terceiro andar, onde me deparei com um espaço pequeno que mais parecia ser de passagem do que de permanência ou próprio para atividades. Notei que seu tamanho não possibilitava a permanência de um contingente de pessoas expressivo. Se aquelas que fossem ao evento desejassem ali permanecer, seria difícil devido a sensação de este constituir-se como espaço de passagem. Ao “entrar”, avistei o autor, depois de reconhecê-lo pela foto de divulgação nas redes sociais, posicionado atrás de uma mesa e à frente de um banner com a imagem da capa do livro. A capa do romance era composta por uma fotografia de um chão de madeira rústica ornada com alguns seixos ao lado de um vaso cilíndrico transparente a conter outros seixos imersos a um líquido aquoso e três tulipas vermelhas sobre uma parede de pedra ao fundo. Já o banner trazia a figura de um jovem do sexo masculino trajando calça e jaqueta jeans e um gorro com a bandeira dos EUA beijando os lábios de outro jovem também do sexo masculino trajado com calça jeans e blusa social listrada, estando ambos em uma paisagem entre montanhas. Do lado esquerdo do ambiente, uma estante exibia alguns exemplares do livro e, mais à frente, em uma segunda mesa próxima a uma pilastra, caixas discretamente posicionadas deixavam ver outros tantos exemplares da obra a serem vendidas. Dentro da dinâmica de visibilização de pequenas e médias Editoras, há um agrupamento de funções que, ao contrário de empresas culturais de grande porte, operam de modo conjugado a fazer com que a materialização destas ao público se dê por meio da disposição de livros sobre uma determinada mesa e a fixação de um banner ao lado e/ou fundo, sendo este informativo do slogan e contatos da própria Editora e/ou do livro em destaque ou lançamento. Na configuração descrita, onde não é possível utilizar recursos
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que se encontram convencionalmente definidos e distribuídos entre profissionais, com funções segmentadas, os editores fazem as vias de distribuidores e livreiros. Longe de soar mera impossibilidade competitiva, a não possibilidade de desempenho de tarefas específicas dentro desta atividade coletiva reflete-se aqui em oportunidades de novas perspectivas (Becker, 2010, p. 31), dentre as quais destaco os tipos de pesquisas etnográficas que venho desenvolvendo, na qual é possível captar, em um evento de lançamento, novas formas organizacionais que conformam mundos da arte. No momento em que cheguei, o autor concedia uma entrevista na qual afirmava ser sua obra um “romance de temática LGBT”, ressaltando serem reais os cenários da narrativa, embora as personagens fossem todas ficcionais. “Por fim, tem pensado no próximo livro, uma continuação?”, perguntou a jornalista. “Não penso em uma continuação. Mas já tenho escrito algumas linhas do próximo livro”, respondeu Helder. “Também nesta temática?”, retrucou. “Sim, também na temática LGBT. Acho importante, é um mercado muito carente”, concluiu o autor. Enquanto a entrevista ocorria, aproximei-me de Renato Potenza, em pé próximo a Rosana Martinelli, que trajava sobre a roupa um avental com a logomarca da Editora e, sentada, repunha os livros que iam sendo vendidos sobre a mesa. Comprei o livro e, mediante a impossibilidade de ficar em algum canto a observar o espaço e as pessoas, esperei a entrevista terminar para então me encaminhar à mesa onde estava o escritor. Sorridente, me cumprimentou e perguntou meu nome para poder autografar o livro. Apresentei-me como pesquisador que realizava uma investigação sobre mercado e livros de literatura autointitulados como LGBTs. Helder se interessou por me ouvir, dizendo possuir conhecimento sobre algumas “Editoras LGBTs” que pudessem interessar a minha pesquisa, muito embora não as tenha escolhido para publicar pois “não queria ficar tanto no gueto”, desejando “ser lido por todos” uma vez que “queria produzir uma literatura de entretenimento, ser uma Stephenie Meyer ou Nicolas Spark nacional”. O acionamento da noção de uma “literatura de entretenimento” revela a ideia de entretenimento como sinônimo de fenômeno de vendas, sinalizando para a dimensão mercadológica do objeto livro. Semelhante ao que foi tratado por Pierre Bourdieu
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(1996) no que se refere a uma “alta” e “baixa literatura”, sendo a primeira pouco lida se comparada à segunda, ao passo em que esta menos nobre em relação à primeira. A distinção entre suas reflexões para a que aqui apresento está ensejada nas transformações do próprio mercado editorial, onde editores e autores contam com o advento da Internet e mudanças na cadeia produtiva dos bens culturais. Assim, “literatura de entretenimento” neste artigo não é pensada em aspectos de gosto estéticos definidos por determinados agentes, mas como modo classificatório cujo intuito maior é o de ser publicado, lido e comentado por parte dos leitores e crítica. É sobre esta lógica que o escritor opera ao escolher uma Editora recémcriada em detrimento de outras cuja marca, aspecto que objetiva sempre definir diferenciações e distanciamentos frente às demais (Sorá, 1997), já se encontravam delimitadas tendo a identidade sexual e de gênero como elementos de distinção.7 Sobre o processo criativo e de elaboração do romance, Helder Caldeira disse-me: Você vai perceber no romance que os personagens são ficcionais, mas os lugares são todos reais. Eu precisava que a história se passasse nos EUA porque eu tinha interesse em escrever sobre aquele lugar, aquele período, sobre uma família republicana para isso eu fui pra lá, fiz uma longa pesquisa, pedi autorização para reproduzir os cardápios dos restaurantes. Uma curiosidade é que, em uma parte do livro, os personagens trocam e-mails. Eu criei endereços eletrônicos reais. Alguns leitores mandam e-mails não para mim, mas para os personagens. Eu os respondo, mas não se trata de continuação da história, apenas dou algumas pistas, desdobramentos possíveis. As histórias, como as vidas, seguem: não é bacana?
Neste ponto, realidade e ficção, elo sobre o qual a literatura estaria frequentemente tensionada, assumem fronteiras pouco definidas nas quais o aspecto relacional sobressai-se na perspectiva entre criação e invenção, visto que, como informa o filósofo francês Jacques Rancière, “a ficção não é o oposto da realidade, mas a construção de um senso da realidade” (2010). O debate sobre ficção e realidade diz respeito à própria conjectura social sobre as quais a arte 7
Sobre a conformação dessas Editoras, ver Silva, 2016.
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se encontra compreendida em dada sociedade e período histórico. Deste modo, a concepção de arte localizada a partir do século XIX ainda parece fazer ecoar a ideia de arte como “um domínio especial de criatividade, espontaneidade e pureza, um reino de sensibilidade refinada e de ‘gênio’ expressivo”, onde “o ‘artista’ era posto à parte da sociedade, frequentemente contra ela – quer fosse ‘do povo’ ou ‘burguês’” (Clifford, 1994, p. 81). O que está em jogo aqui, não apenas nesta fala do autor, mas em outras e também na de seus editores, como mostrarei mais adiante, visa pensar a obra permeada por valores exteriores que refletem sobre a importância da obra artística na/para a sociedade, mas também põe em xeque pensá-la segundo essas percepções ou não, deixando aos leitores suas próprias construções na relação com o objeto artístico (Becker, 2010, p. 37 e pp. 43-44). Ao ser perguntado sobre os personagens principais e o enredo sobre o qual versa o livro, Helder me respondeu: “Eu acredito, como na novela que acabou há pouco, em um processo de humanização dos personagens [homossexuais], de sensibilização mesmo, para que sejam assimilados”. O autor se referia à novela exibida pela TV Globo, intitulada Amor à Vida, exibida entre maio de 2013 e janeiro de 2014. O antagonista, alardeado como o “primeiro vilão gay da TV”, passa por uma sequência de acontecimentos que lhe redimem de suas “vilanias”, fruto de intempéries sobre as quais suas ações passam a estar de certo modo justificadas a ponto de merecer “um desfecho com final feliz”. As antropólogas Iara Beleli (2007; 2009) e Heloisa Buarque de Almeida (2007; 2012; 2014) vem produzindo trabalhos instigantes a respeito do modo como produções televisivas, junto com a publicidade e a propaganda, tem mobilizado aspectos de gênero, corpo e sexualidade. De acordo com Buarque, uma “pedagogia feminista” adentrou a teledramaturgia brasileira a partir do seriado Malu Mulher, exibido pela TV Globo entre 1979 e 1980. Correlato a isso, o tema da homossexualidade também ganhou espaço de forma inovadora na televisão (Almeida, 2014, p. 290), estando ambos os elementos vinculados ao próprio desenvolvimento do debate feminista no país, iniciado nos meados dos anos de 1970 (Heilborn & Sorj, 1999). No contexto de produções televisivas mais recentes da TV Globo, como as novelas Páginas da Vida (2006) e A Favorita (2008), Beleli argumenta que
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se nota um “encapsulamento dos personagens gays e lésbicas em um modelo de família [que] parece ser um recurso utilizado para aproximar ainda mais esses sujeitos das convenções estabelecidas” (2009, p. 128). Inspirado nos trabalhos de Almeida e Beleli traço uma análise do romance escrito por Helder Caldeira para compreender como, no processo intitulado pelo escritor como “de humanização” e “de sensibilização”, um somatório de perdas afetivas e violência sexual acometida sobre o protagonista da história lhe destitui a condição de pessoa, somente reconstituída por meio da aquisição de um relacionamento que avança para um casamento, adoção de um filho e vínculos familiares normativos. Dentro desta perspectiva, enunciarei de que forma certa concepção de amor é mobilizada como elemento que se intersecciona a elementos de classe, gênero, nacionalidade, território e sexualidade. Neste escrutínio, é possível observar o apagamento da sexualidade homossexual quando contrastada com a sexualidade de personagens heterossexuais também presentes no enredo. Escavando escrituras Águas Turvas narra a história de Gabriel Campos. Nascido em uma cidade da região serrana do Estado do Rio de Janeiro, o rapaz é descrito como dono de um par de olhos tom de mel, “um metro e oitenta e cinco, corpo atlético esculpido pela lida de uma vida no sítio, traços faciais de grande delicadeza, um cabelo curto cor de chocolate e com as pontas completamente desfiadas” (Caldeira, 2014, p. 28). Filho único, criado na zona rural, cresceu sozinho tendo como diversão os animais e um amigo imaginário. Ainda neste ambiente, começou a ter “suas primeiras experiências sexuais solitárias” (Caldeira, 2014, p. 20) escondido entre as sombras das copas de volumosas árvores. Desenvolveu seu erotismo em meio a beijos praticados em pedras retiradas do riacho cujo trajeto dividia ao meio o sítio onde morava com seus pais, um agricultor e uma dona de casa. O fato de ter crescido sozinho é narrado como tarefa difícil, causando sensação de não caber dentro na vida rural. Ao longo do tempo, essa sensação constitui-se como um impasse para a
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realização dos desejos do personagem e motivo de conflito familiar, superado ao comunicar aos pais a vontade de se tornar médico e sair daquele ambiente. Gabriel sai de casa aos vinte e cinco anos, se mudando para Petrópolis quando dá início aos estudos na Faculdade de Medicina. A transição da vida rural para a vida urbana implicará em uma mudança de perspectiva; a cidade se revela como “um mundo de socialização possível” que “permite superar a solidão tanto quanto protege[r] o anonimato” (Eribon, 2008, p. 34). As práticas e experiências até então desenvolvidas em relações de amizade fruto da imaginação e de incursões sexuais erotizadas com pedras passam a ser contrastadas com aquelas desenvolvidas com seres humanos. Morar em um apartamento com outros dois estudantes de medicina, um oriundo de Minas Gerais e outro de São Paulo, evidenciará esse trânsito de aprendizagens entre a “anatomia humana e a anatomia da sociedade” (Caldeira, 2014, p. 21). As relações desenvolvidas com seus dois colegas de faculdade e moradia incitarão a realização dos desejos e das fantasias da personagem. Pelo colega de Minas Gerais, Gabriel não desenvolve qualquer frenesi afetivo-sexual, tendo-o, sim, nutrido e desenvolvido por seu colega vindo de São Paulo. Na urdidura do afã, correlaciona-o aos enredos amorosos ficcionais de romances de Jane Austen, “que o encantaram na adolescência, onde o confronto romântico dos sentimentos é adornado por uma espécie de sermão dramático, permeado de preconceitos e orgulhos tolos, mas que sempre colocam em duelo o racional e o passional de cada personagem” (Caldeira, 2014, p. 22). A evocação feita pelo autor a Jane Austen na narrativa não deve passar a largo. Por meio desta, é possível inferir vinculações, manutenções ou remodelamentos presentes no enredo, herdadas de realidades capturadas em romances do passado (Said, 2011). Autora inglesa do século XVIII e início do século XIX, Jane Austen traz em suas obras um debate caro à época no qual a racionalidade se contrapunha à sensibilidade, cabendo à literatura refletir, representar e propagar preceitos morais e sociais com finalidades instrutivas em um contexto onde a ficção adquire importante status simbólico na Inglaterra do período (Said, 2011). De modo correlato, o que se apresenta no livro é um personagem atravessado pela descoberta de seus desejos sexuais.
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Nota-se um delicado impasse acerca do modo pelo qual a elaboração de tais sentimentos pode ser dada uma vez que o objeto de desejo é seu amigo de moradia e faculdade, um rapaz descrito como heterossexual. As madrugas varadas a velar o sono deste colega, e o brilho nos olhos toda vez que percebia neste uma ereção noturna, representa um momento de descoberta dos próprios desejos, tensionado quando percebe estar sendo observado pelo colega mineiro. A tentativa de superação deste encontro entre o desejo e a repressão, instaurados por outrem, se dará, por parte de Gabriel, ao aceitar namorar duas das amigas do mineiro dentre as muitas que este insistentemente passa a lhe apresentar. O protagonista é descrito em toda a trama dentro das performatividades de gênero cristalizadas socialmente. Sobre esta perspectiva, aceitar um namoro heterossexual arranjado diz respeito à reafirmação desta condição de inteligibilidade, alicerçada na noção de uma heterossexualidade compulsória, por meio de um reordenamento e vinculação coerente entre o seu sexo biológico e seu gênero, bem como os efeitos que produzem, expressos por meio do seu desejo e prática sexual (Butler, 2003). Esta posta uma vigilância: as ações controladoras do amigo mineiro cerceiam as fantasias de Gabriel com o colega paulista, só podendo ocorrer quando o sono do amigo lhe retirava sua “reprovação, vigilância ou até mesmo alguma tara sexual reprimida ou puro voyerismo” (Caldeira, 2014, pp. 22-23). Esta condição adquire novos contornos com a morte do pai de Gabriel, episódio ocorrido próximo à sua formatura e que o colocará na função de cuidar de sua mãe, deprimida. Destarte, o luto desencadeia mudanças no comportamento do personagem. O esmorecimento dos seus desejos em relação ao amigo paulista se dá ao passo em que também ocorre o rompimento de seus relacionamentos heterossexuais, espécie de imbricação repressiva imposta pelo amigo mineiro. Ambas as ações parecem, ademais, vinculadas à ausência do elemento central observado pelo protagonista em sua família de origem: diferentemente de seus pais, suas relações pareciam desprovidas de amor. O distanciamento e recusa em comungar dos ritos para com seus colegas de apartamento e mesmo com as do término da graduação são apontados como reações ao sofrimento de Gabriel. A entrega do apartamento, as notícias sobre a partida dos dois amigos,
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cada qual para seu Estado de origem e a sua para o Rio de Janeiro a fim de iniciar residência médica se dão sem grandes elucubrações. Era o ponto final de uma fase repleta de desejos e fantasias imaginadas em um momento pessoal, encerradas bruscamente pela perda de laços sanguíneos e reflexões afetivas decorrentes, sobrepostas as de cunho sexuais até então evidenciadas. Ao retornar para o seu apartamento depois das obrigações com a morte do pai e a faculdade, o jovem médico decide tomar um longo banho quente. Crendo estar sozinho, e imerso em seus pensamentos, o rapaz não percebe quando seu amigo mineiro invade o banheiro e, nu, o imobiliza se utilizando de agressões físicas e ameaças de morte. Sobre a alegação de que receberia, enfim, o que sempre havia desejado e o que gostava, Gabriel tem sua primeira relação sexual, aos trinta anos de idade, com outro homem. Materializada na forma de um estupro, a cena é descrita seguida por um desmaio, ficando submerso sobre águas “tão quente quanto aquela em que sua mãe enfiava os frangos mortos para depená-los” (Caldeira, 2014, pp. 25-26). Pode-se entender a violência acometida como um mecanismo mimético de educação moral. Este último evento soma-se aos anteriores para reforçar processos repressivos quanto à sexualidade. Ao extremo, a falha na imposição de um rearranjo entre desejo, sexualidade e gênero parece desembocar no processo de sofrimento que permitirá ao escritor do romance propor o que considera como “processo de humanização da personagem”. Nos dois anos subsequentes ao ocorrido, Gabriel muda-se para o Rio de Janeiro onde consegue fazer um curso de inglês para ir morar nos Estados Unidos a fim de esquecer o passado que o assombrava (Caldeira, 2014, p. 27). Desembarcar no aeroporto de Boston marca a esperança de construir novos rumos, explícitas na “sensação daquele que acaba de nascer” (Caldeira, 2014, pp. 2627) e se encontra prestes a conhecer coisas novas. Balizado pela ideia do tempo como elemento que impõe aos seres a “liberdade e responsabilidade de sermos nós mesmos e tomarmos nossas próprias decisões” (Caldeira, 2014, p. 19), a constituição do protagonista enquanto pessoa parecerá vinculada a esse deslocamento territorial, saindo do Brasil e indo morar e estudar nos Estados Unidos.8 8
Os sucessivos descolamentos territoriais do personagem de cidades pequenas
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Uma vez nos EUA, Gabriel Campos é recepcionado por sua tutora de especialização e residência em cardiologia, Nancy Taylor, que lhe arranjará moradia na parte não mais utilizada da casa de uma paciente e amiga, a viúva septuagenária Gertrude Rose. Com elas o rapaz terá novamente a possibilidade de desenvolver relações de amizade e familiares (Caldeira, 2014, p. 67 e p. 73), respectivamente. Nota-se, a reconstituição dos elos que constituem um sujeito em sociedade bem como a presença de uma rede de interações que passam a imprimir outras dimensões morais que o instigam a ação (Caldeira, 2014, p. 70). Chama a atenção, neste processo, o fato dessas relações familiares não se encontrarem alicerçadas por noções de consanguinidade ou parentesco, mas alijadas na esfera do afeto: enquanto sua tutora torna-se uma amiga (Caldeira, 2014, p. 67), sua locatária assume status de “avó adotiva” (Caldeira, 2014, p. 73). E um novo integrante surgirá em seguida. Próximo a um acidente de carro, o médico salva a vida de Matthew Genezen. De origem belga, nascido em Turnhout, Antuérpia, na região de Flandres, o menino morou até os 12 anos neste país (Caldeira, 2014, p. 14) e havia acabado de chegar aos EUA com sua mãe, Sybille. A missão desta era encontrar o pai do jovem para que ele lhe ajudasse a cuidar do futuro do filho, fruto de uma relação extraconjugal (Caldeira, 2014, pp. 82-86).9 Com a morte da mãe do menino, única parenta do qual Gabriel possuía conhecimento, o médico acaba por desenvolver um profundo afeto para com o menino, dedicando-se a permanecer meses em seu quarto no hospital até que enfim despertasse do coma. Ao longo da história, desvenda-se o fato do menino ser biologicamente filho ilegítimo de Edward Thompson, o que o levaria a condição de irmão de Justin Thompson, personagens que para cidades cada vez maiores representam um novo contexto e situação onde a identidade deste pode ser construída, reconstruída ou apagada em uma tentativa de fuga à estigmatização (Guimarães, 2004, p. 63). Semelhante às análises de Eribon (2008, p. 31), parece haver, nesta ocasião, ainda a prerrogativa de que “um dos princípios estruturantes das subjetividades gays e lésbicas consiste em procurar os meios de fugir da injúria e da violência, que isso costuma passar pela dissimulação de si mesmo ou pela emigração para lugares mais clementes”. Como narra Matthew, Sybille possuía uma empresa de produção de chocolates que faliu após sucessivas crises econômicas, o que os fizeram migrar da Bélgica para os EUA em busca do pai biológico do menino que desconhecia sua existência. 9
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apresentarei mais adiante e que seriam, respectivamente, o sogro e o namorado de Gabriel. Ocorrerá, no entanto, uma recusa do jovem menino a essa condição de parentesco genético em prol da filiação a Gabriel e Justin como seus pais. Entretanto, cabe apontar que, diferentemente do observado por Barbara Yngvesson (2007) em pesquisa sobre adoções em contexto transnacionais, aqui não se nota tensões com relação à identidade nacional do adotado e muito menos com a do adotante. Igualmente, não há a tentativa de cisão entre a família denominada como “real” ou “natural”, porque ensejada na dimensão da consanguinidade, da família adotiva. Não se opera, por fim, na proposta de omissão da existência desses laços sanguíneos por parte da família adotiva uma vez que essa chave diz respeito à própria natureza da narrativa onde é o adotado que a revela, por conhecer sua história desde o início, e acaba por optar pela adoção ao invés de decidir por se incorporar aquela que poderia ser lida como sua “família de sangue” dos EUA ou ainda pela volta para a Bélgica para viver com o avô materno.10 A afetividade aparece sobreposta a consanguinidade, na qual noções de parentesco podem ser pensadas, por exemplo, como relações intensas oriundas de vínculos de amizade ou de pertença comunitária (Butler, 2003).11 A emergência de uma família não heterossexual na narrativa se dá mediante a reconfiguração de uma família heterossexual e biológica/geneticamente interligada: “Muito além da relação estabelecida pelo destino, havia uma força inexplicável que unia Gabriel e Matthew. Na maioria das vezes, os laços que unem verdadeiramente duas pessoas não precisam estar expostos a causas ou esclarecimentos. Eles simplesmente existem. Ou passam a existir. Também não são necessários grandes movimentos ou feitos para que essas relações se descortinem entre as pessoas. Às vezes, basta um olhar, um aperto de mão, uma expectativa. Trata-se de uma energia silenciosa e harmônica, em que qualquer explicação estaria aquém de sua real dimensão” (Caldeira, 2014, p. 146). 10
Como na seguinte passagem: “Hoje estou prestes a completar quinze anos e vivo bem com essa nova família, que há três anos está se desenhando à minha volta. Ainda acordo todas as manhãs e sinto o cheiro do chocolate da minha mãe, num anuncio de que essa saudade é uma daquelas lacunas que jamais conseguirei preencher (...) Por outro lado, descobri um pai incrível, carinhoso, inteligente, companheiro e leal. Um homem de sinceridade rascante e generosidade espontânea. Corajoso e determinado naquilo que lhe parece correto e impiedoso com o que julga errado. É uma daquelas pessoas raras que consegue, com maestria, mesclar ousadia com um comedimento polido. Sobretudo, meu melhor amigo” (Caldeira, 2014, pp. 14-15, grifos do autor). 11
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a família Thompson que, a seguir, pretendo apresentar e analisar. Para isso, como se verá, será preciso recuar um instante. Dentre os encontros com novas pessoas, o mais significativo se dará com o outro protagonista do livro. Justin Thompson, rapaz com idade aproximada a de Gabriel, acidentalmente lhe esbarra no saguão do aeroporto. Dono de um par de olhos azuis, também com um metro e oitenta e cinco, cabelos curtos e lisos em tom castanhoclaro, “corpo escultural, mas sem exageros, era valorizado por roupas levemente justas, deixando alguns músculos visíveis” (Caldeira, 2014, p. 32). O encontro representará um marco para o personagem. Fruto da circunscrição relacional com o outro, e ensejada pela discursividade emocional outrora perdida com a morte dos pais e violência sexual, o encontro entre os dois personagens impulsionará novamente as centelhas do desejo (Caldeira, 2014, pp. 29-30). Apesar da ausência na narrativa no que se refere a relacionamentos afetivo-sexuais com outros homens por parte de ambos os protagonistas (a exceção do estupro), será este primeiro encontro inesperado no saguão do aeroporto que desenhará o mote da trama a partir de então: a expectativa de que a sucessão dos desencontros entre os protagonistas ceda lugar ao encontro derradeiro que possibilite a concretização amorosa dos dois rapazes. Antes de expor esse acontecimento, contudo, cabe-me apresentar a história de Justin e de sua “família de republicanos do norte: uma espécie liberal-conservadora avançada” (Caldeira, 2014, p. 50) que gira em torno do patrimônio automotivo construído pelo patriarca, mas que será abalado pela crise econômica norteamericana de 2009. Justin é o segundo filho de Catherine e Edward Thompson. Seu irmão mais velho, Ethan, é casado com Helen e seus conflitos se desenvolvem na cobrança familiar para que estes consigam gerar um herdeiro (Caldeira, 2014, p. 41). Sua irmã caçula Nicole, por sua vez, tem dezessete anos e sua trama gira em torno da relação que passa a ter com Christian Taylor, homem de quarenta e três anos e professor de História recém-chegado de Los Angeles à Holden, nome da escola e cidade onde a trama passa a ocorrer.12 Por fim, somos apresentados Os conflitos se darão no desejo de Christian em manter o relacionamento às escondidas. 12
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à Mildred e seu marido, John Collins, tios paternos de Justin.13 Diferentemente de Gabriel, a orientação sexual de Justin se constitui como um dado para o núcleo onde o mesmo encontra-se inserido. Ela é questionada e inferiorizada moralmente por seus tios, que pejorativamente o chamam de “mulherzinha” e “bichinha arrogante” (Caldeira, 2014, pp. 51-52), muito embora seja apreendida pelos demais familiares segundo outros aspectos. Por sua irmã, por exemplo, de modo a produzir uma concepção essencialista na qual o jovem seria “a única pessoa que conseguia acessá-la, de fato, em seu íntimo” devido ao “fato de ele ser gay e ter um nível de sensibilidade e compreensão um pouco acima da família” (Caldeira, 2014, p. 72). Já em uma discussão com seu irmão mais velho, não se observa a referência à sexualidade como estigma, mas sim a sua solteirice, uma vez que esta condição o impossibilitaria de opinar sobre questões amorosas posto que ausente destas (Caldeira, 2014, pp. 42-43). Por fim, na relação com sua mãe observa-se uma explícita cumplicidade por meio da qual esta deixa nítida sua confiança no filho bem como revela seu desejo de que ele encontre um bom rapaz para um relacionamento.14 O personagem possui, desde o princípio, aquilo que Gabriel só adquire quando adulto e morando nos EUA: relações que lhe permitam constituir uma identidade de modo que sua sexualidade esteja circunscrita, porém não encerrada nestas. Não à toa, o primeiro desencontro entre os protagonistas se dará justamente por uma interpretação errônea de Gabriel. Ainda no aeroporto, ao ver o executivo abraçar afetuosamente ao seu irmão que acabara de Tendo perdido subitamente seu único filho, o que os teria abalado profundamente, se autodeclaram como “verdadeiros republicanos”, muito embora falidos e dependentes dos negócios de Edward. Serão estes últimos os personagens simbolicamente construídos para trazer a narrativa os “aspectos morais conservadores”. Como no fragmento onde a tia sexagenária estigmatiza a toda a família: “– Agora eu quero só ver... – espalmou as mãos aos céus. – Que fim terá essa família, meu Deus? Um casal jovem que não consegue colocar filhos no mundo, um filho marica e uma pequena vadia loira. Onde pensam que vão chegar assim?” (Caldeira, 2014, p. 53). 13
A naturalidade com que esta lhe pergunta sobre se haveria surgido um possível pretendente ao coração do jovem, e a assertiva deste de que sim, os faz ficar “na cozinha por longo tempo (...) Justin relatou a Cathy todos os detalhes daquela história que nascera sob a égide do destino, várias vezes foram às gargalhadas com os encontros e desencontros dos dois rapazes” (Caldeira, 2014, pp. 115-116). 14
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retornar de viagem, os interpreta como um casal de namorados. Três meses após o primeiro e desajeitado encontro no saguão do aeroporto, os protagonistas novamente voltam a se encontrar acidentalmente em um restaurante, acabando por jantar juntos. Estando “à mesa, dois homens dominados pela força ancestral das emoções, aquelas que nos fazem reconhecer, desde a primeira vista, as pessoas que podem nos acompanhar pelo resto da vida” (Caldeira, 2014, p. 87). Ainda que as más interpretações surgidas do primeiro encontro sejam desfeitas, novamente a narrativa confluirá em um jogo de aproximações e distanciamentos entre os protagonistas. Trata-se, aqui, da ação do médico em salvar a vida daquele que viria a se tornar seu filho adotivo, já descrito anteriormente. Após este segundo desencontro, os jovens só voltarão a se encontrar após quatro meses devido à procura de Justin e aceite de Gabriel, incentivado mais uma vez pela rede de relações que constrói, e agora acrescida por Matthew. O jovem médico reflete sobre a paixão desperta, fato inédito em sua vida e descrita como fruto da coragem para “desenterrar aquele coração refém do medo primaz de sofrer” (Caldeira, 2014, p. 151). Seu encontro com Justin se dá não mais em “um momento desenhado pelo destino”, mas em um ato “milimetricamente elaborado, pensado, calculado” de modo que “não era necessário dizer nada. Em momentos, quando as palavras faltam ou são dispensáveis, o império do silêncio é um impulso as ações que clamam” (Caldeira, 2014, p. 152). Posto que “já tinham esperado tempo demais para aprofundar aquela história” (Caldeira, 2014, p. 161), este encontro, diferente dos outros dois anteriores, produzirá uma continuidade sem novos intercursos até o término da narrativa. Insere-se, assim, na trama, a existência de uma relação que segue se aprofundando entre os dois homens. Em continuidade ao primeiro beijo entre os personagens, tem-se a primeira relação sexual homossexual de Gabriel Campos (Caldeira, 2014, p. 161) dentro da noção de consentimento que, neste contexto, envolve elos afetivos capazes de reconstruir as memórias que constituem parte significativa dos processos de subjetivação: O dito popular garante que a primeira vez jamais é esquecida. É fato. No entanto, essa afirmação tende à restrição de um único momento da vida. Na verdade, trata-se de uma certeza de maior
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amplitude: ainda que não seja a primeira vez, há sempre aquela que merece a eternidade. Foi com essa convicção que Justin e Gabriel acordaram naquela manhã de domingo, ouvindo a chuva cair sobre Pine Hill e o vento cantar por entre as pedras e rochedos. Nenhum deles sequer cogitou a possibilidade de levantar do conforto daquela cama. Não tinham a menor noção das horas. Não queriam ter. O amor os tinha dominado (Caldeira, 2014, p. 164).
É perceptível, seguindo uma perspectiva comparada, a diferença entre a descrição no que se refere à concretização sexual dos protagonistas com as vivenciadas por Nicole, a jovem de dezessete anos, irmã de um deles, e Christian, professor do colégio onde a moça estuda, de quarenta e três anos. Embora também apresentadas como fruto de uma paixão à primeira vista, a estes cabem maiores enredos sobre suas relações sexuais, seja dentro do banheiro da biblioteca ou abrasados na casa de inverno da família Thompson. Se os protagonistas são descritos como um casal que pensa em “saborear cada beijo de amor que ainda não foi dado” (Caldeira, 2014, p. 161), Nicole e Christian fazem “amor feito feras selvagens (...) entocados no banheiro dos funcionários” da biblioteca (Caldeira, 2014, pp. 118-119). Enquanto “abraçar a pessoa amada e desejar a eternidade” em “um lugar mais quente e reservado, onde pudessem namorar até a noite cair” (Caldeira, 2014, p. 161) é o ápice da explicitação afetivo-sexual destinada à Justin e Gabriel, ao outro casal emergem cenas nas quais:
Sem camisa e com a calça aberta, Christian sentou no vaso sanitário, em êxtase e admirando sua bela conquista, ela colocava de volta a delicada calcinha, passando as mãos sobre a barra do vestido roxo, tentando se recompor depois de todo aquele frenesi [...] Seus corpos ainda estavam sob o efeito daquela feroz relação sexual (Caldeira, 2014, p. 119 e p. 121).
Intui-se certo ocultamento da sexualidade no que se refere às experiências individuais dos dois protagonistas e também destes quando um casal de namorados. Ao mesmo tempo, a constituição do relacionamento entre Gabriel e Justin e sua formação familiar se desenvolve na eminência de um declínio da estrutura familiar de origem deste último personagem. Se, por um lado, não se veem
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esboçados atributos sexuais que chamem atenção, por outro, se ergue uma estrutura familiar inserida não na consanguinidade, mas nos afetos. Esta reverbera na família Thompson e em sua reconfiguração mediante o declínio. A tia do protagonista, Mildred, é descrita como uma mulher amargurada pela morte do filho e inconformada de depender economicamente de seu irmão. Junto a seu marido, John, funcionam como apêndice da família de seu irmão. Ethan tenta uma manobra escusa para se apropriar do controle da empresa da família, assumindo o lugar de seu irmão, Justin, como presidente da empresa. Helen, esposa de Ethan, tem seu enredo desenhado em torno do seu vício em compras, forma de fuga aos problemas impostos pela cobrança por parte do marido e de seus familiares para que gere um herdeiro. Não desejar ser mãe a desloca do ordenamento naturalizado na sociedade euro-americana (Strathern, 1995), de modo que este ato representa o rompimento da lógica constitutiva da parentalidade, ou seja, modo pelo qual relacionamentos íntimos são estabelecidos e nos quais ocorre a união de partes distintas que estão, todavia, instauradas nas diferenças entre os gêneros. Seu agenciamento se dá não apenas pelas compras, mas por meio do uso de remédios abortivos. Por sua vez, o pai do protagonista, Edward, é condenado pela família quando esta descobre que ele teve um filho fora do casamento. Sua esposa, Catherine, passa a ser assolada pelas lembranças de um amor do passado e decide ir atrás desta relação. A filha caçula do casal, Nicole, tem um tórrido caso com um homem mais velho que teme assumir o relacionamento e com o qual, após muitos conflitos, decidem levá-lo secretamente até que a moça assuma a maioridade. É possível, nesta seara, ainda investir na reflexão sobre os modelos de masculinidade presentes na obra tendo como referência as análises de Miguel Vale de Almeida (1995, 1996). Segundo o autor, as emoções e os sentimentos costumeiramente são apresentados como elementos dados ao feminino enquanto que a racionalidade competiria ao masculino. No que concerne aos personagens masculinos, nenhum deles se inscreveria diretamente dentro de uma cultura da masculinidade por meio das ações que as constitui (Almeida, 1995; 1996, p. 12). Pensando as personagens dentro de um contexto específico e relacional, o que se teria é um processo no
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qual a figura do patriarca, Edward, seria, em um primeiro momento, passível de ser enquadrada como expressão de masculinidade hegemônica. Contudo, ele é destituído desta condição ao se ter revelada sua relação extraconjugal bem como sua não ajuda ao filho ilegítimo. Esse acontecimento será alçado como um desvio moral que lhe esvazia de sua condição de modelo hegemônico. Ethan, o filho mais velho, irá expressar sua condição subordinada ao tentar ascender na empresa da família por meio de atos escusos e em parceria com seu tio, também em condição subordinada, voltando-se contra seu irmão. Christian, por sua vez, é descrito como um quarentão irresponsável e imaturo emocionalmente. Justin e Gabriel encontram-se impossibilitados de ascender à masculinidade hegemônica devido a sua homossexualidade. Esta elaboração é visada no romance por meio do apagamento das expressões de suas homossexualidades como elementos de aspectos condenatórios (Almeida, 1996, p. 12), em que pese classe e raça como marcadores basilares para a construção de uma masculinidade hegemônica das personagens que não se concretiza em sua totalidade. É em relação aos casais heterossexuais que o casal de protagonistas ascende como espécie de modelo positivado, muito embora tal empreendimento pareça ser consolidado por meio da destituição de variáveis críveis, como as de perspectivas sexuais, por exemplo, estando alocados em uma imaculabilidade que os exime de qualquer tom moralmente condenável. A consolidação destes sobre o signo familiar, com a adoção de um filho, marca, em contraponto, a reconfiguração das demais relações familiares presentes na obra, todas heterossexuais e rubricadas por noções de filiação biologizante. Debatendo a “Literatura LGBT” No dia seguinte ao lançamento do livro, ocorreu na livraria Travessa do Shopping Leblon,15 um debate denominado “A Literatura LGBT”, com Helder Caldeira e Sergio Viúla, autor de dois livros autoclassificados como de “temática LGBT”. Nesta noite de domingo, Sergio iniciou o debate apresentando historicamente a existência de uma “literatura homossexual”, fazendo um recuo a Grécia Antiga para 15
Também localizada na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro.
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trazer à baila a poetisa Safo de Lesbos, que teria escrito poemas de amor para uma de suas pupilas. Em contínuo, o autor citou um poema de Fernando Pessoa, referendou Oscar Wilde até se encaminhar para o contexto brasileiro. Na literatura nacional, apresentou o livro O Bom-Crioulo, do escritor Adolfo Caminha, publicado em 1895, como sendo o “primeiro romance homossexual brasileiro e, possivelmente, mundial”.16 Em seguida transitou entre outras obras e autores até encerrar com o livro de Helder Caldeira. Em seu ato, ficava explicito o processo de construção genealógica de pais fundadores do que se intitula “literatura de temática LGBT”. Autores, editores, ativistas, críticos literários e acadêmicos têm operado elencando expressões de gênero, sexo e sexualidade em narrativas ficcionais anteriores não somente à construção da figura do homossexual, historicamente descrita por Michel Foucault (2014), como pelo próprio debate identitário no Brasil, ocorrido apenas a partir dos anos 1970. Atuando como colecionadores, observa-se um processo onde “os diversos fatos e experiências são selecionados, reunidos, retirados de suas ocorrências temporais originais”, recebendo “um valor duradouro num novo arranjo” (Clifford, 1994, p. 79) que contribui para conformar a constituição do que deliberam enquanto uma “cultura identitária LGBT”.17 Tal mobilização inicialmente desponta no país no âmbito das políticas públicas, sobretudo a partir dos anos de 1990, quando as reivindicações do movimento LGBT deixam de estar restritas ao âmbito da saúde e se ampliam na busca por garantias de outros direitos (Facchini & França, 2009; Aguião, 2014) e na imbricação entre movimentos sociais e mercado de consumo (Simões & França, 2005; França, 2006, 2012). Venho dedicando atenção para o que denomino como o estabelecimento de uma insígnia do primeiro, elemento que visa inaugurar um campo discursivo, uma realidade, de modo que ser “a primeira obra”, a despeito da qualidade e das condições históricas de sua produção, visa envolvê-la de valores mais autênticos apenas por esta condição. Ver Silva, 2016. 16
Tal definição aparenta ter mais relação com certa instrumentação política do termo “cultura” do que com a ideia de cultura na Antropologia, tratando-se, portanto, menos de um conceito e mais de um instrumento de reivindicação política e, neste sentido, volátil. 17
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Neste cenário, torna-se possível endossar o argumento de James Clifford (1994) ao afirmar que “coletar, pelo menos no ocidente, onde geralmente se pensa o tempo como linear e irreversível pressupõe resgatar fenômenos da decadência ou perda histórica inevitáveis: a coleção contém o que ‘merece’ ser guardado, lembrado e entesourado” (Clifford, 1994, p. 79) na construção de uma memória e de um grupo específico dotado de uma história que se quer singular. Assim, afora as obras, outros modos de classificação utilizados têm sido aqueles que inserem escritores já canônicos no campo literário como “autores (de obras) LGBTs” por terem tido práticas sexuais não heterossexuais, vinculando suas experiências pessoais às produções textuais, tais como os escritores contemporâneos o têm feito. Este fenômeno tem se dado não apenas por autores, editores e críticos, como também em trabalhos acadêmicos de intelectuais das mais diversas áreas do conhecimento. O que parece consenso é a lógica na qual o fazer artístico encontra-se vinculado ao próprio fazer-se, de modo que elencar e requisitar a reclassificação de obras sobre o escopo da identidade sexual e de gênero a qual teria pertencido seus autores, diz respeito à construção da vinculação entre uma biografia da obra com uma biografia de seus produtores (Kopytoff, 2008, p. 110). É importante salientar que embora haja esta revisitação e acionamento daqueles que hoje são considerados escritores clássicos por parte do Sergio Viúla, por exemplo, Helder Caldeira marca o desejo de produzir uma “literatura de entretenimento”. Esta classificação imprime uma forma de visualizar a oposição traçada por Bourdieu (1996) sobre “alta” e “baixa cultura” de modo instigante. Se Sérgio propõe uma vinculação biográfica entre a vida dos autores e suas obras de modo externo, ou seja, sem partir destes, para Helder esta vinculação varia de acordo com os rendimentos da empreitada. Ou seja, embora o valor artístico não esteja sendo questionado, o que se vislumbra é a oposição entre aspectos de prestígio e vantagens econômicas, confirmando a percepção de que formas de se classificar vinculam-se ao ato de consumir (Douglas & Isherwood, 2004) e de se posicionar no mundo. Após a intervenção de Sergio Viúla, Helder Caldeira falou brevemente sobre seu livro, enfatizando sua satisfação ao tomar conhecimento que tem sido lido por jovens do interior da Bahia e
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de demais lugares interioranos do país. Falou da necessidade de existência de uma literatura que retrate possibilidades de afeto, expressando vinculações sobre produção e consumo da obra como elementos fundamentais para a relação de manutenção do mesmo na esfera do grupo social e da multiplicação de significados (Dias, 2013, p. 198). Findado o debate, indaguei aos editores-proprietários da Quatro Cantos sobre como teria se dado o recebimento do original, aceite e processo de produção em livro. Rosana me contou que o manuscrito havia sido encaminhado primeiramente a Renato por meio eletrônico e que, ao lerem, se encantaram com a história e aceitaram publicá-la. Disse-me ainda que, ao começar o processo de produção do romance, foi “pesquisar sobre o assunto” e que assim acabou conhecendo o blog de Sergio Viúla: “Nós decidimos deixar o livro ser lançado e seguir seu curso. Então vieram os convites para lançá-lo no Festival e para o debate na livraria, para o qual convidamos o Sergio”, revelou a empresária, concluindo por fim: “Quando comecei a pesquisar e achei o blog dele, nossa tinha muitas coisas que eu não sabia como, por exemplo, que é possível você ter uma identidade de gênero e uma orientação sexual não correlacionada”. A fala de Rosana apontava para a extensão de um aprendizado pedagógico a pessoas que não possuem uma identidade e orientação sexual discordantes da matriz heterossexual. A partir do contato com a trama, a empresária demonstrava ter apreendido valores expressos nas trocas, nas imagens e nas metáforas que os livros possibilitam ao desnaturalizar as convenções em voga na sociedade. Atrelado a perspectiva “de humanização” e “de sensibilização” declarada pelo autor e sua recusa a vincular-se “ao gueto” por meio da publicação da obra partindo de “Editoras LGBTs”, observa-se a tentativa de prolongamento da mensagem a ser transmitida, por um lado, mas dinâmicas de mercado com finalidades ampliadas, por outro. Se no primeiro evento a obra e Editora vinculam-se e circulam em um segmento específico, um Festival de Cinema Gay, neste segundo evento, por meio deste elemento que poderia ser considerado negativo, ambas adentram em uma livraria, espaço de reconhecimento e de consagração no campo literário. Estando na livraria, a empresa cultural deixa de acumular funções, seus editores deixam de ser livreiros, ao passo em que perde economicamente uma vez que, em geral, a livraria costuma ficar com 50% do preço de
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capa do livro por eles exposto e vendido, em geral em consignação. O contraponto, ademais, é a disponibilização física do livro dentro do espaço, estando no campo da distribuição e de um valor simbólico e de prestígio que é o pertencimento desta em um catálogo físico. Até o corrente ano,18 o livro teve tiragem de mil exemplares na primeira edição; dois mil exemplares na primeira reimpressão; e três mil exemplares na segunda reimpressão, esta última ainda não esgotada. Trata-se de um número expressivo para uma pequena Editora, em que pese a obra não ter sido distribuída em livrarias físicas, à exceção do evento supracitado, sendo suas vendas ocorridas prioritariamente pelo site da empresa e em feiras de livros e lançamentos. De todo modo, evidencia-se aqui a maneira como os objetos mudam de estatuto a todo o instante bem como as pessoas a eles relacionadas. Não se trata exclusivamente da construção de “identidades LGBTs” ou de uma “cultura LGBT”, mas possivelmente, me apropriando com devidas mediações, das proposições da socióloga Nathalie Heinich (1991), de um espaço hermenêutico. Assim, cabem tantas definições e estratégias quanto forem necessárias para que as pessoas possam se identificar ou não a partir do acionamento de uma gama de “elementos de composição” como: ser escritor, ser LGBT ou ser escritor LGBT, tudo a depender do contexto. Quis saber de Rosana sobre o processo de produção do objeto livro. Ao informá-la de que o havia comprado no dia anterior, ela me respondeu que não iria adiantar muita coisa, pois tudo ali estava relacionado com a narrativa, inclusive a capa que recebia sua assinatura: Mas um fato interessante é que quando fomos pensar o material de divulgação do livro, me sugeriram um beijo e eu pensei “Mas um beijo? Que coisa clichê!”, respondi. Só depois que percebi que não, que para nós, heterossexuais, isso soava clichê, batido, mas que era importante; então foi aí que fizemos uma divulgação com os meninos e um beijo.
Há, evidentemente, a presença de elementos artísticos e políticos em torno do livro. Ao relatar as diversas aprendizagens que adquiriu a partir da decisão e processo de publicação da obra, 18
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a empresária imprime ao produto não apenas a marca de sua recém-criada empresa cultural, mas exprime ainda os sentidos produzidos pelo fazer do livro. Estes sentidos são expressos enquanto aprendizado profissional e, posteriormente, pessoal que influencia o anterior e é expresso ao público na vinculação da capa ao banner da obra. Em um primeiro momento, o banner aparentemente materializa aspectos considerados explicitamente políticos se comparado à capa, ficando esta última, em grande medida, responsável por não segmentar explicitamente o objeto, o rotulando imediatamente como “produto de/para homossexuais” e garantindo, por exemplo, que os livros possam ser comprados e portados, lidos em público, por pessoas que ainda não se encontram confortáveis com sua sexualidade. Mas a reconfiguração desse aspecto se altera quando, ao longo da leitura, descobre-se que a imagem que compõe a capa é o espaço onde os personagens tem sua primeira relação sexual. A sexualidade dos protagonistas, sob este ângulo, não é narrada sobre a forja das letras, espraiando-se por espaços que, embora manifestos, exigem um tipo de cumplicidade que somente o leitor é capaz de desvelar na relação com o objeto. Neste jogo, não se opera sobre a égide da gramática da resistência, mas da agência de pessoas e objetos. Todavia, seguindo pistas atinadas da análise feita por Paul Beatriz Preciado sobre arquitetura e sexualidade nas Revistas Playboy, nota-se também aqui, na escolha da imagem da capa e o que ela contém em suas camadas de leituras e de sentidos, a “produção pública do privado” (Preciado, 2010). Seixos, cookies e a instabilidade dos significados Neste artigo, procurei analisar a obra literária contemporânea Águas Turvas atentando para as condições e possibilidades da vivência da homossexualidade, por parte dos protagonistas, em uma narrativa pró-final feliz. Argumentei que o uso do discurso amoroso segundo o qual os personagens homossexuais tornam-se inteligíveis não se dá mediante uma ausência familiar, mas por meio de sua configuração, ressignificadas pelo âmbito dos afetos, em detrimento ao discurso biológico ou genético do parentesco. Ao mesmo tempo,
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mostrei a destituição de aspectos referente à sexualidade dos mesmos na narrativa se comparado aos demais personagens da trama. Sob a égide do amor, a inteligibilidade forja a integração de Gabriel e Justin dentro de vínculos sociais e não irrompidos destes, não acarretando na perda de coletividade em prol de liberdade particular. Ao contrário, amor e sofrimento visam agir na construção de empatia e aceitação da trama com fins a gerar possibilidades de existência aos personagens, fazendo com que as emoções acabem por reconfigurar possíveis conflitos decorrentes de aspectos que poderiam operar como marcas de diferença e, possivelmente, produtoras de desigualdade – no romance, em específico, questões de classe, gênero, sexualidade, nacionalidade e território. A partir de um tecido social dotado de sentidos, os personagens podem ser erigidos enquanto protagonistas de uma história positivada e, deste modo, com possibilidades de um final feliz. Este desfecho positivado ocorre dentro de uma estrutura construída para tanto na qual: (1) nota-se uma assepsia indiscutível, estando dada por meio das características físicas dos personagens – são dotados dos atributos ocidentais de beleza – e a não observância de performatividades de gênero dissonantes daquelas socialmente esperadas e desejadas; (2) os protagonistas possuem profissões de reconhecido prestígio, sendo, ambos, bem-sucedidos; (3) percebese a ocorrência da aceitação destes por parte da família de origem de um deles; (4) ocorre a construção de uma família em moldes análogos; (5) tem suas personalidades dotadas de um caráter admirável e imaculável; e (6) a não presença explicita da sexualidade destes, outrora estigmatizadas seja pelo amigo mineiro de Gabriel ou pelos tios de Justin. Atinando para o pressuposto de que “idéias e obras estão ancoradas em processos sociais concretos e contextos intelectuais precisos” (Pontes, 1998, p. 14), adentramos, assim, em uma caudalosa construção com fins a efetivação contemporânea do amor dentro de um contexto não heterossexual. Elas preservam em si tensões da pulsão romântica fruto do século XVIII e XIX (Duarte, 2004) e que tem na menção à romancista Jane Austen a fixação visível das relações entre formas sociais e ideias culturais e o modo como circulam (Said, 2011, Becker, 2009). Este fator também é observado pelo desejo do escritor de “ser uma Stephenie Meyer ou Nicolas Spark nacional”.
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Seguindo pistas de Douglas & Isherwood (2004, p. 119) esse ocorrido chama atenção para a consideração de que, embora bens culturais portem significados, não o fazem em si mesmos, sendo necessárias relações, mediações, interpretações. A apreensão das perspectivas de Rosana Martinelli e Renato Potenza, nesta esteira, evidenciam a atuação dos profissionais dos livros na inserção da obra no mundo social e a construção de agenciamentos que permitam as ideias contidas no romance terem difusão não apenas dentro de um circuito particular como o que investiguei em minha dissertação de mestrado (Silva, 2016). Os editores, aqui, funcionam como primeiros leitores do texto e construtores, junto ao escritor, do livro, revelando também as transformações provocadas que se deseja perpetuar, incitando a obra à flutuação entre o beijo explícito e o sexo tácito.
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Descasadas. Ruptura conjugal e individuação Carolina Castellitti1 Introdução Em 2013, como parte da pesquisa para minha dissertação de mestrado em Antropologia Social, entrevistei onze mulheres de minha cidade natal (Santa Fe, Argentina) com o objetivo de conhecer suas experiências de separação conjugal.2 Foram longas entrevistas durante as quais a distância do desconhecimento foi progressivamente superada, e através da escuta atenta me foi dada a possibilidade de conhecer suas histórias de vida, em dimensões tão íntimas como as que remetem às expectativas de um amor e a tristeza do desamor. Apesar de ser uma desconhecida, bastante curiosa aliás, essas mulheres foram muito receptivas e me surpreenderam com seus relatos de experiências fortes, de muito afeto, mas também de conflito e variadas violências. Depois de algum tempo percebi que esse desconhecimento pode ter sido meu melhor recurso, pois a situação de entrevista funcionou para muitas delas como uma carta de apresentação (Pollak, 1990, p. 179). Uma reavaliação da trajetória que lhes apresentava a oportunidade de, em primeiro lugar, se dar o tempo de pensar e falar;3 e assim, reconstruir tais experiências como experiências de sucesso ou superação. Carolina Castelliti é Doutora do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1
O trabalho de campo para a dissertação foi realizado principalmente entre os meses de fevereiro e março de 2013, na cidade de Santa Fe, Argentina. Durante esse período realizei sete entrevistas, às quais adicionei outras quatro que tinha realizado em 2011, para minha pesquisa de graduação em Sociologia, na Universidad Nacional del Litoral. Para obter esses contatos, comentei sobre minha pesquisa com amigos e familiares, e expliquei que precisava entrevistar mulheres de entre 30 e 40 anos, divorciadas ou separadas. Essas pessoas em geral contatavam amigas ou parentes, lhes perguntavam se estariam dispostas a conversar comigo, e se elas autorizavam me davam seu e-mail ou telefone. 2
Uma de minhas interlocutoras que via na falta de diálogo com seu marido uma das principais causas de sua separação, referiu-se à situação da entrevista como algo que “nunca pode ter” com ele. 3
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O pano de fundo dessa indagação foi o de uma inquietação sobre as transformações sociais e culturais contemporâneas, principalmente aquelas que atingem às configurações familiares e aos relacionamentos conjugais e afetivos. Além dos desafios impostos à imagem tradicional de família pelas demandas de democratização e de espaços para os afetos, vivemos em um mundo no qual as três dimensões que conformam a definição clássica de família (a sexualidade, a procriação e a convivência) têm sofrido enormes transformações (Jelin, 1996, p. 24). Nas ciências sociais, não há consenso sobre as causas, características e sentidos dessas mudanças, mas existe um acordo mínimo sobre o fato de serem transformações de um tipo ou modelo de família, conhecido como família nuclear: o casal heterossexual formalizado pelo casamento civil (e também religioso, frequentemente) com dois ou três filhos. Segundo assinalam sociólogos franceses especialistas no tema, as teorias contemporâneas sobre família partem das elaborações de autores do século XIX, particularmente em suas análises sobre a contribuição do grupo doméstico na manutenção do vínculo social (Cicchelli-Pugeault et all, 1999). Assim, se a família foi (e continua sendo) um objeto de estudo abordado a partir da sua contribuição para a manutenção do laço social, o divórcio, em contraposição, constituiu durante muito tempo um objeto marginal nas ciências sociais, abandonado a disciplinas como a psiquiatria, o direito e a criminologia. Até meados do século XX, o casamento era pensado como o modo normal de união conjugal e o divórcio era visto como um fracasso individual ou como um problema social (Lambert, 2009, p. 147). No caso francês, como resposta ao repentino e massivo incremento do divórcio em meados da década de 1960, os primeiros impulsos para novos trabalhos surgiram no campo da demografia, quando um grupo de pesquisadores começou a desenvolver gradualmente um corpus de conhecimento sociodemográfico e estatístico sobre a ruptura matrimonial. Em contraste com a escala macrossocial desses primeiros estudos, as análises contemporâneas da ruptura matrimonial adotam um enfoque microssociológico, influenciado por modelos interacionistas. Por outro lado, em paralelo a sua multiplicação, o foco das pesquisas deixou de estar nas causas e circunstâncias e passou a ser a vida posterior ao divórcio. Tendo em conta essas tradições acadêmicas, durante minha pesquisa enfrentei algumas dificuldades. Em primeiro lugar,
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coerente com a hegemonia de uma tradição sociológica quantitativa na Argentina, que vem desenvolvendo estudos importantes sobre o impacto das variações demográficas nas estruturas familiares, existem poucos esforços para estudar empiricamente as transformações no universo de valores e os significados dessas mudanças (Torrado, 2007, pp. 435-436). Por outro lado, mas ainda parte do mesmo fenômeno das tradições hegemônicas nacionais, os estudos se centram na região metropolitana de Buenos Aires e no máximo propõem algumas hipóteses gerais, tomando o território nacional em sua totalidade. Tendo em conta essas particularidades, neste artigo recupero e faço uma leitura de algumas observações relativas ao processo de ruptura conjugal do ponto de vista feminino, no contexto não metropolitano da cidade de Santa Fe, Argentina. Susanitas e Mafaldas Antes de mergulhar na análise dos discursos, é importante fazer uma pequena contextualização regional. A província de Santa Fe é a terceira mais populosa do país (com 3.194.537 habitantes em 2010, segundo o último Censo), depois de Buenos Aires (15.625.084) e Córdoba (3.308.876). Como mencionei, as mulheres que entrevistei moravam na cidade de Santa Fe, capital da província e segunda cidade mais importante em termos populacionais, depois de Rosario (no ano 2010, Santa Fe possuía 525.093 habitantes e Rosario 1.193.605).4 Suas idades no momento das entrevistas variavam entre 30 e 43 anos. Tomei como principais indicadores de classe social o grau de escolaridade e o local de moradia: todas elas tinham realizado estudos universitários (não necessariamente concluídos) e moravam em bairros considerados pelos “santafesinos”5 como correspondentes às camadas médias da cidade. Suas profissões variam em áreas como engenharia, psicologia, jornalismo, design, pedagogia, antropologia e arquitetura, e se distribuem nos âmbitos público Fonte: Instituto Nacional de Estadística y Censos (INDEC). Disponível em: http:// www.indec.gov.ar/index.asp. Acesso em 30 mai. 2017. 4
Ao longo do texto, utilizarei aspas para indicar termos ou frases extraídas das falas de minhas interlocutoras, ou para citações literais da bibliografia indicada. 5
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e privado. Todas estavam separadas, mas só oito delas estavam legalmente divorciadas. Os outros três casos correspondem a uniões consensuais, e uma separação que nunca foi formalizada legalmente. Os casamentos duraram entre quatro e quinze anos (o casamento mais longo foi o de Cecilia), e algumas delas conviveram com seus parceiros alguns anos antes da união civil (entre dois e seis anos). Portanto, foram relacionamentos longos, que passaram por várias etapas: namoro, convivência, casamento e separação. Finalmente, das onze, seis tiveram filhos dentro das uniões cujas rupturas são aqui narradas, e só três delas haviam constituído um novo relacionamento estável – sendo Luciana a única que teve filhos com esse novo parceiro. Mencionarei brevemente essas características antes de introduzir cada fala, pois são elementos que devem ser considerados para a compreensão da gramática das narrativas. Por outro lado, é importante mencionar que a lei de divórcio vincular (que dissolve o vínculo matrimonial e possibilita uma nova união legal) foi aprovada na Argentina em 1986. Como descrevem as sociólogas argentinas Catalina Wainerman e Rosa Geldstein, a lei de Matrimonio Civil vigente até 1968 estabelecia a possibilidade de um divórcio limitado ou separação pessoal, sem dissolução do vínculo matrimonial. O divórcio podia somente ser decretado judicialmente em um processo contencioso, devendo se apresentar provas indiscutíveis sobre a culpabilidade de um dos cônjuges. As causas expressamente aceitadas para esse fim eram injúrias graves, adultério, atentado contra a vida do cônjuge, incitação ao delito, maus tratos, separação de fato por três anos sem vontade de se unir ou abandono. Somente em 1968, com a introdução do artigo 67 bis, admitiu-se como causa do divórcio o consentimento mútuo. Ainda transcorreram quase duas décadas até que a lei 23.515 do divórcio vincular fosse sancionada em 1986 (Wainerman et all, 1996, p. 190). Susanita e Mafalda são duas personagens da popular história em quadrinhos de Joaquín Lavado (Quino) que, embora sejam grandes amigas, se opõem em termos de interesses, expectativas e projetos de vida. Susanita vive pensando em “encontrar o homem dos seus sonhos”, casar-se, comprar uma casa e ter muitos filhos. Mafalda, por sua vez, está sempre preocupada com os “problemas da humanidade”, cobra sua mãe pelo fato dela ter abandonado seus estudos quando se casou, quer ter sucesso profissional e tentar
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“mudar o mundo”. Com a popularização do quadrinho do Quino, o termo “Susanita” foi apropriado por algumas gerações de argentinos para fazer referência a um estereótipo de mulher e, como mostrarei, é utilizado por minhas interlocutoras neste sentido. No trecho seguinte, em relação ao modo de constituição de sua união, Sofia – 35 anos, arquiteta – se distancia do “ser Susanita” pelo fato de não ter feito do casamento um objetivo primordial:
Pra mim tem a ver com uma questão de... da realidade familiar que a gente tem. Porque se eu tivesse ido morar com ele, meu pai não teria gostado, não teria sido a mesma coisa que se a gente se casasse. A mesma coisa pros pais dele. A gente sente de alguma maneira que tem uma expectativa colocada nesse lugar, entende? Pra eles não é a mesma coisa. Mas também tem a ver com a gente, é como que a gente já tem isso é... Sei lá, eu nunca fui muito Susanita e nunca sonhei em me casar, não foi nunca pra mim um objetivo primordial. Sempre estiveram colocados em outros lugares. Isso também tem a ver com a família, ou seja, eles [nossos pais] sempre nos apoiaram a estudar, pra que pudéssemos fazer tudo o que quiséssemos pra nossa realização pessoal. Ou seja, sempre houve uma preocupação pra que a gente se realizasse. Por isso eu acho que o que a gente tem na família é bastante determinante nas decisões que a gente toma.6
Em todas as entrevistas que fiz, quando a imagem da Susanita aparecia era sempre em contraposição à autodefinição da pessoa falante. Ou seja, o “modelo Susanita”, comumente associado a uma concepção “tradicional” de mulher cuja realização passa pelo casamento e pela maternidade, é um modelo desvalorizado entre mulheres jovens de camadas médias. No entanto, a necessidade de se contrapor emergia da percepção de uma tensão entre essa desvalorização e o reconhecimento da permanência de práticas que eram vistas como próprias do “ser Susanita”: casar-se (por meio do contrato civil e do ritual católico) e ter filhos. Não só as práticas Os trechos de entrevistas utilizados no texto foram traduzidos por mim para o português. Agradeço ao Lucas Freire e ao André Leal pela atenciosa correção. Deixo aqui meus agradecimentos também ao meu orientador, o professor Luiz Fernando Dias Duarte; e às professoras Adriana Vianna, Maria Elvira Diaz-Benítez e Laura Lowekron, pelo curso Interfaces entre gênero, violência e erotismo, ministrado no PPGAS/MN/UFRJ em 2014. As discussões propostas durante esse curso estão presentes na releitura que faço neste texto. 6
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correspondiam a esse modelo, mas também as justificativas, que sempre remetiam à “realidade familiar”, às “expectativas” dos pais, eram vistas como afins ao “ser Susanita”, isto é, práticas “tradicionais” ou “conservadoras”. Como observa Isabella Cosse em relação aos discursos dos meios de comunicação sobre a maternidade e a paternidade nos anos 1960 na Argentina, Mafalda cristalizou uma representação da família de classe média atravessada pela modernização cultural. Quino, seu criador, se dirigiu a um público crítico, a quem convocava com uma denúncia do tradicionalismo que, simultaneamente, refletia sua vigência (Cosse, 2010, p. 172). Assim, os protagonistas do quadrinho incorporavam os traços comuns da classe média argentina: viviam no mesmo bairro portenho, frequentavam a mesma escola, tinham uma família nuclear e suas mães eram donas de casa com dedicação full time. Concordo com Cosse quando observa que, apesar da oposição entre as personagens da Mafalda e da Susanita (a “menina intelectualizada” e a menina romântica),7 era evidente a valoração de sentido do quadrinho, no qual as mães e donas de casa sentiamse agredidas com as perguntas dos seus filhos, que expunham seu “delimitado horizonte vital” (Ibid., p. 173). Assim, esse drama encenava, segundo a historiadora argentina, o fato da maternidade com dedicação completa ter se convertido em um tema polêmico, capaz de gerar uma cisão cultural que atravessou a classe média urbana argentina nos anos 1960. Se naquele período histórico começava a crescer o número de mulheres das camadas médias que continuavam trabalhando após o casamento e a chegada dos filhos, na atualidade a dupla jornada é um fato, pelo menos no meu universo de pesquisa. Sete das mulheres entrevistadas eram mães na época em que conversamos, sendo que todas tinham começado a trabalhar logo depois de terminados seus estudos. Já depois de casadas, a maioria tinha uma ocupação cujo salário não representava um complemento do salário do marido, mas sim a fonte de renda principal. Antes de passar à descrição dos processos de ruptura, é importante fazer uma pequena resenha dos estilos de vida conjugais Enquanto a ideia de “niña intelectualizada” pertence à autora (Ibid., p. 173), a designação “menina romântica”, justificada somente nessa relação de oposição, é minha. 7
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por elas narrados. Evitando cair em uma dicotomia mecânica e superficial entre padrão tradicional e moderno, que supõe uma coerência interna a cada termo da oposição, Gregori propõe recuperar Geertz para entender os padrões como modelos, feixes de símbolos, ou fontes de informação, construídas culturalmente e que são fundamentais para a ordenação da vida social (1993, p. 138). Por outro lado, a utilização dos termos “tradicional”, “conservador” e “estruturado” por minhas interlocutoras para se referir as suas famílias de origem e seus grupos de socialização expõe a reflexividade dos sujeitos sociais para dar conta de suas práticas sociais. Que esses termos estejam presentes no discurso nativo quer dizer que eles fazem sentido para explicar costumes, condutas e expectativas, sobretudo conjugais e familiares. Neste sentido, é interessante notar que eles nunca são utilizados como autodefinição (nenhuma das interlocutoras afirmou “ser moderna” ou “ser tradicional”), mas sim para evocar o universo social de origem e de socialização primaria (família, escola, etc.). Assim, uma das locuções mais acionadas para falar das expectativas transmitidas geracionalmente pelo núcleo familiar de origem foi a de “mandato” (Castellitti, 2014, p. 67).8 Dessa forma, com toda a cautela necessária para este tipo de generalizações, identifiquei nesse trabalho dois tipos de conjugalidade. O primeiro tipo, foi o das uniões realizadas por matrimônio civil e cerimônia religiosa, sem convivência prévia, nas quais o grupo familiar ampliado (principalmente o núcleo paterno, mas não só) teve uma importante participação, tanto no significado da união (pela sua função legitimadora), quanto na celebração. São também casais que conceberam seu primeiro filho pouco tempo depois do casamento. Em relação aos tipos de vínculo, as expectativas de reciprocidade das mulheres foram descritas como pouco satisfeitas na prática, o que derivava em uma queixa em relação à falta de colaboração e ausência do marido no lar. Em outros casos, as queixas pela falta de equidade só apareciam depois da separação. Deixa-se entender assim que tal iniquidade era tolerada sempre que outras condições estivessem dadas (por exemplo, a fidelidade). De uso pouco frequente em português, o sentido utilizado em espanhol é semelhante ao apontado pela Psicanálise transgeracional, como sendo “uma configuração imaginária projetiva que é transmitida aos descendentes (ou a alguns deles) de um modo não completamente explícito ou consciente” (Duarte, 2011, p. 16, nota 5). 8
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Por outro lado, nesses casamentos existiam conflitos em relação a diferentes concepções sobre trabalho e dinheiro, agravados nos casos em que as mulheres recebiam salários superiores aos dos seus maridos. Em relação a tudo isso, essas mulheres reconheciam também uma falta de diálogo e consenso nas decisões. No segundo tipo agrupei as uniões formalizadas por meio do contrato civil, em geral precedidas por um período de convivência, e as uniões consensuais que nunca foram formalizadas. Em alguns casos, esses casamentos foram celebrados com festas e rituais, mas a rejeição da cerimônia católica foi explícita. Em relação às uniões, as mulheres ensaiaram justificativas de tipo prático, material e emocional, com pouca ou nenhuma referência ao grupo familiar mais amplo. São relacionamentos que se definiram como “compartilhados”, tanto nas responsabilidades domésticas quanto em relação aos gostos, ao uso do tempo livre etc.; e, portanto, em geral as mulheres não denunciaram uma falta de reciprocidade. A maioria dessas uniões terminou sem que os casais tivessem filhos, mas isso não implicou em uma rejeição da maternidade como opção. Na verdade, a maternidade estava presente no horizonte de possibilidades do casal, sendo altamente problematizada e planejada. Esta breve descrição das uniões fornece uma base para interpretar os discursos sobre as rupturas que constituem o objeto principal desta análise. Seguindo a tese do sociólogo François de Sinlgy, segundo a qual a separação faz parte de um determinado cenário de vida conjugal (Singly, 2011, p. 17). O que me interessa frisar, a partir desta limitada tipologização, é que em um círculo pequeno de pessoas, semelhantes em relação a indicadores socioeconômicos como idade, nível de instrução e bairros de residência, as formas de conjugalidade (Torres, 1992, p. 56) anteriores à separação não eram facilmente padronizáveis segundo um único critério. Neste sentido, parece-me possível afirmar que, em contraste com os mecanismos constitutivos da conjugalidade no universo social das camadas médias da cidade do Rio de Janeiro estudados por Salem (2007) e Heilborn (2004), no grupo de mulheres que entrevistei o ideal normativo individualista estava presente, mas de forma intrincada e superposta a outros valores que outorgam um importante significado ao contexto familiar mais amplo. Referências aos pertencimentos familiares, religiosos e de outros tipos foram evocadas não somente para narrar as escolhas
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ligadas ao casamento e à profissão, mas também assumiram um papel importante durante a separação – como apoio e sustento, mas igualmente pela sua participação mais ou menos direta na ruptura. Talvez possamos procurar uma chave para interpretar essa preeminência na articulação que se produziu na Argentina desde começos do século XX entre o modelo de domesticidade e a identidade de classe média em ascendência. Como bem desenvolve Cosse (2010), na Argentina das décadas de 1930 e 1940 alcançou seu ponto de cristalização um modelo familiar baseado na pauta nuclear, na redução do número de filhos, na intensidade afetiva e na divisão entre a mulher dona de casa e o homem provedor. Esse modelo de domesticidade delineou uma normatividade social e uma medida para definir o que supostamente era uma família “natural”, “desejável” e “correta” a partir de um critério homogêneo e excludente, que tirava sua eficácia da diversidade à qual se contrapunha, em um país que estava e está atravessado por profundas diferenças sociais, culturais e étnicas (Ibid., p. 13). A separação em terceira pessoa e as concepções de “mulher” Em sua pesquisa sobre a prática feminista no SOS-Mulher de São Paulo, Maria Filomena Gregori percebeu uma clara distinção entre as explicações sobre a crise conjugal e a descrição das cenas de brigas. Segundo a autora,
No momento em que estão explicando a crise conjugal, elas operam com categorias mais gerais e que permitem uma análise de suas concepções genéricas sobre a vida familiar. Na descrição das brigas – quando as cenas abrem uma possibilidade de um reexame – há um movimento de singularização. O que é apontado como um padrão geral de casamento, de família, de homem e de mulher, é substituído por uma explanação da situação familiar e histórica de cada uma delas (1993, p. 137).
Por um caminho diferente, cheguei a reconhecer um movimento idêntico nas narrativas de minhas interlocutoras sobre sua separação. Quando, a modo introdutório, eu lhes perguntava sobre o aumento das separações na atualidade, obtinha uma resposta que contrastava significativamente com os relatos de suas
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próprias experiências de ruptura. O roteiro foi mais ou menos o mesmo: no inicio, elas afirmavam que hoje as pessoas se separam mais porque “não se toleram”, porque não são capazes de enfrentar o menor conflito; posteriormente, para falar da experiência pessoal, relatavam longos processos de separação, com tentativas de reconciliação, consultas a especialistas, etc. Isso sem mencionar os motivos, de forma alguma insignificantes e, em alguns casos, envolvendo situações de violência física e psicológica. Araceli tinha 37 anos quando gravamos a entrevista, era jornalista e tinha três filhos nascidos de um casamento de quase dez anos de duração. Embora à época das entrevistas ela reclamasse muito da ausência do seu ex-marido na vida dos seus filhos, essa mesma ausência e falta de colaboração nas tarefas da casa e do cuidado não eram um problema na sua vida de casada até que “a outra mulher” apareceu. Ela sempre trabalhou muito dentro e fora de casa. Além de tomar conta das crianças, trabalhava junto ao seu marido em uma agência de publicidade, fazendo todo o trabalho invisível de produção (pois “quem era visto e recebia todos os elogios era sempre ele”) e sem receber salário. No entanto, tudo isso era suportável até que os e-mails e as chamadas “dela” começaram a reaparecer (não era a “primeira vez”). A partir desse conflito a narrativa do processo de separação de Araceli é repleta de sofrimento, vivido por ela e por seus três filhos. O auge do sofrimento é simbolizado por um jantar de natal, em que todos estavam esperando o pai para a comemoração, mas este não apareceu e sequer deu notícias. Araceli não conseguia ser “determinada” e acabava sempre tentando refazer o casamento, até o “ultimato” que recebeu da filha de sete anos: “mãe, se você deixar ele entrar de novo, eu que vou embora”. Quando gravamos a entrevista já tinham passado mais de seis anos da separação, mas a narrativa de Araceli ainda carregava muita angústia e frustração. Embora ela não tenha usado em nenhum momento as palavras infidelidade ou traição, a reiterada aparição dos rastros “daquela mulher” na vida do seu marido, e o veredito da filha de sete anos, foram as provas irrefutáveis do fracasso de suas tentativas por “salvar seu matrimonio”. Porque não há dúvidas, ela lutou muito para manter unida sua família. Assim, a narrativa de Araceli é ilustrativa de uma dinâmica que identifiquei em vários discursos, que para mim se apresentava como uma intrigante contradição: frente a esse cenário pessoal de persistência
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e sofrimento, a questão das separações na atualidade (“dos outros”) era explicada a partir da falta de paciência e da intolerância: Sim, separam-se mais que antes porque não aguentam nada. Primeiro porque há muita oferta, vamos dizer, as mulheres procuram os homens como antes não acontecia. E segundo porque ninguém aguenta nada, no primeiro conflito, não conseguem se resolver e pronto, não vai mais. E não é assim, tem que lutar... Eu não entendo essa postura, mas eu tenho uma forma de pensar mais retrógrada, talvez pela formação da escola. Eu não me acho nem machista, nem feminista, nem nada. Odeio essas discriminações. Mas é verdade que o homem se compromete um pouco menos. Sempre, na primeira mudança, pra ele é mais fácil.
Apontar uma aparente contradição argumentativa nos discursos de nossos interlocutores é menos produtivo do ponto de vista heurístico que procurar interpretar as possíveis razões sociais e sentidos dessa ambiguidade. Sob esta perspectiva, podemos refletir sobre o contraste entre a experiência pessoal e a “opinião” como consequência da ambiguidade dos papéis de gênero, papéis que em experiências como a de Araceli são colocados em conflito, mas não totalmente questionados ou impugnados. Na mesma direção, podemos interpretar o sentido do termo “tolerância” utilizado em grande parte dos relatos. A maioria afirmou que na atualidade existem mais rupturas conjugais porque as pessoas “são menos tolerantes”. Mas quando observamos com mais atenção, reconhecemos que para algumas delas essa menor tolerância tinha a ver com mudanças no estilo de vida do casal, enquanto para outras atingia mais especificamente à situação da “mulher”. O diagnóstico é mais ou menos semelhante: hoje em dia vivemos um momento de maior liberdade, principalmente para as mulheres, que se materializa, sobretudo, em sua independência econômica. O que muda é a valorização dessa mudança: enquanto para algumas o fato das mulheres terem que “tolerar menos coisas” significa que elas não são mais obrigadas a aceitar condições que as fazem infelizes, para outras “tolerar menos” significa ser menos comprometido, fraco, e, no caso das mulheres, serem “livres demais” (em um sentido sexual com conotações negativas). Então, o que nos revelam essas respostas são, sobretudo, concepções acerca de papéis de gênero, do próprio de “ser mulher”
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e “ser homem” nesse universo social. Neste sentido, o “ser mulher” revela uma concepção ancorada em uma “natureza” que vai além da função reprodutiva e que tem a ver com um feminino ligado às virtudes da paciência, da compreensão, do cuidado e da entrega. Como expressa Florencia – 30 anos, engenheira, separada há pouco mais de um ano, após dez de namoro e um de convivência – no trecho seguinte, a luta pela igualdade, pela “liberação feminina”, teria retirado a mulher desse lugar de “complemento”, e essa seria uma das causas do aumento do conflito nas relações conjugais.
Essa tem que ser a temática da tua tese, é, como as mulheres, nisso de serem fortes, ficamos atrás em nosso ponto mais forte, que é nossa feminilidade e nosso lugar natural. Como pra gente, em nossa vontade de ser iguais, perdemos o lugar de complemento, entende? Eu mataria a idiota que lhe ocorreu aquilo da liberação feminina! (...) O que acontece é que a igualdade gera concorrência. E a gente nunca vai ser igual, ou seja, mulheres e homens, somos coisas diferentes, então, tem que procurar a complementaridade, isso é algo que me dou conta agora. Nós, ou seja, as mulheres, sempre teremos um lugar de, não quero dizer superioridade, mas mais abrangente. Porque a mãe continuará sendo você, isso não dá pra passar pra ele, né? Ou seja, é por natureza. Então, quando você percebe que você ocupa todo o lugar sozinha, pra que você tem um cara do seu lado? O relacionamento se degenera, o casal. Não porque tenha que ser uma coisa estruturada, tradicional, mas porque a gente trabalha tanto pela igualdade que perde... Deixa de gerar os espaços pra estar acompanhadas.
Alguns discursos expressam uma valoração mais negativa dessas mudanças, e outros uma valoração positiva. Essas avaliações, que são bastante ambíguas, respondem às concepções de mundo, é claro, mas também variam – e não sempre na mesma direção – segundo o fluxo da biografia, principalmente em relação ao passar do tempo (particularmente o tempo transcorrido desde a separação) e o momento de enunciação das falas. Vinculados a essas duas dimensões – emoções e tempo –, podem ser identificados nas narrativas elementos que dizem respeito ao tom do discurso e ao sentido da fala. De forma geral, pode se dizer que enquanto algumas falas se produzem a partir de uma posição de empoderamento, sucesso e redescobrimento de si, outras assumem a forma de
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denúncia ou lamento. Nesse sentido, o tempo e os sentimentos atrelados a processos como o “balance”, o “redescobrimento”, o “luto” e a “superação”, também levam a uma reavaliação dos papéis de gênero e de si mesma em relação a esses papéis. O caso de Florencia é paradigmático, pois ela, engenheira como o pai, afirmou ter sido criada por um pai “moderno”, “feminista”, que sempre incentivou a independência dela e de sua irmã, “desmerecendo” o casamento. Na atualidade, ela percebia que guiada por esses valores ela tinha terminado de uma forma muito fácil e rápida com um relacionamento de mais de dez anos. Frente a essa experiência, que hoje lhe provocava uma profunda tristeza (ela se emocionou muito durante a entrevista, deixando cair algumas lágrimas), agora apreciava o “resguardo jurídico” oferecido por um casamento e estava passando também por uma revalorização da maternidade. Neste ponto, a partir deste relato e outros sobre a cotidianidade dos casais, concordo com Gregori (1993, p. 140) quando afirma que cada afastamento do padrão ideal de complementaridade de papéis sexuais exige um árduo processo de negociações e acordos entre os agentes sociais. A autora propõe que o abandono das regras mais “tradicionais” não tem sido acompanhado de novas regras complementares; os padrões culturais que modelam o “moderno” ainda são muito frouxos. Nos termos de Geertz, não conseguiram ser constituídos como modelos de e para a realidade social (Geertz, apud Gregori, 1993, p. 140). Se for verdade que o afastamento das regras “tradicionais” exige novos processos de negociação, eu, no entanto, me perguntaria até que ponto devemos confiar que os novos modelos irão se tornar mais rígidos e, portanto, menos disruptivos, ou, ao contrário, se não está em “sua natureza” serem frouxos, parciais e ambíguos. A noção de desmapeamento aventada por Sérvulo Figueira (1987) em sua análise sobre o “moderno” e o “arcaico” na nova família brasileira, aponta precisamente nessa direção.9 Segundo Figueira (1987), com o avanço da ideologia do igualitarismo e a extensão da psicanálise, as noções de “certo” e “errado” perdem definição, instaurando-se o reino da pluralidade de escolhas; observa-se, assim, a coexistência de mapas diferentes e contraditórios inscritos em níveis específicos e relativamente dissociados no interior de cada um. 9
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O processo de desconjugalização As narrações do processo de ruptura conjugal foram surgindo espontaneamente ao longo das conversas, na descrição dos relacionamentos, dos projetos e do cotidiano. Em relação às justificativas, reconheci três cenários gerais: o primeiro correspondeu às separações que foram explicadas a partir de escolhas pessoais de cada cônjuge, que foram distanciando o casal em dimensões simbólicas e identitárias;10 o segundo cenário contemplou os casos daquelas mulheres que enfatizaram a falta de comunicação e os conflitos relacionados à convivência, que em alguns casos evidenciaram diferentes entendimentos (do dinheiro, do consumo, do trabalho, etc.) difíceis de conciliar, e que em outros conduziram diretamente ao distanciamento; por último, o terceiro cenário foi constituído pelos casos de infidelidade, consumo excessivo de álcool e drogas, e ações de violência física por parte dos homens, condutas todas que, embora se adicionem a outros problemas do relacionamento, foram consideradas como extremas pelas próprias mulheres. Em todos os casos (exceto um) foram as mulheres que tomaram a iniciativa da separação. Milagros estava separada há um ano, depois de um casamento de quase treze. Esse relacionamento começou à distância, pois ele morava em Buenos Aires, mas um tempo depois, quando formada, ela conseguiu ir morar na mesma cidade. Em Santa Fe, ela estudava design gráfico, enquanto trabalhava no setor administrativo de um hospital, gerenciado pelo avô. Nesse sentido, o deslocamento para Buenos Aires também significou um desenraizamento (Duarte, 2008, p. 250) do ambiente social e familiar de origem, percebido pela entrevistada como muito “conservador”. Eles moraram vários anos em Buenos Aires, no começo separados e depois juntos. Depois de passar por algumas dificuldades de emprego, decidiram migrar juntos para Santa Fe, e após oito anos de relacionamento, diante da expectativa do nascimento do filho, decidiram formalizar o vínculo. Ela descreve o começo dos conflitos a partir de um período de “se Em um dos casos essa decisão teve a ver com uma migração do casal para Israel, decisão da qual Bruna participou no começo, mas que depois se tornou para ela insustentável, devido principalmente ao constante conflito bélico desse país. No outro caso, foi uma “escolha” místico-espiritual do marido de Virginia, que provocou uma forte rejeição por parte dela e o consequente distanciamento. 10
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deixar levar, acreditando que um dia estariam melhor”. Durante todo esse tempo, Milagros sentiu muita dificuldade de conversar com seu marido, a quem descreveu como uma pessoa “prática” e “hermética”, que não procurava tanto quanto ela um vínculo mais “compartilhado”, de “diálogo” e “consenso”. No trecho seguinte, ela se refere a todas as “lutas” que enfrentaram juntos antes da separação:
Eu fiquei treze anos com ele, e a gente passou por tudo, desde morar em Buenos Aires, porque ele é de lá, depois vir pra cá. A gente passou por tudo, perdemos trabalhos, ele ficou sem emprego e meu empreendimento salvou nossa vida, ajudou bastante. E depois, bom, a mudança pra cá, a gente também perdeu uma gravidez. - Antes de Tomas?, pergunto. - Sim, morando em Buenos Aires. A gente lutou muito, remamos11 muito, os dois. Mas não soubemos, no pessoal, eu acho que a gente não soube resolver a tempo questões que pra mim são transcendentais, pra que o casal e o casamento evoluam.
Independentemente dos cenários de ruptura descritos acima, as separações foram sempre narradas como processos lentos e difíceis, que demandaram longos períodos de negociações, conflitos e reconciliações. Em todos os casos, a ruptura final se deu depois de muitas conversas e episódios de afastamento, depois dos quais se fazia um esforço por mudar alguns aspectos do relacionamento ou de cada cônjuge interpretados como problemáticos. Essas negociações podiam envolver a consulta de familiares, amigos, especialistas – como psicólogos ou padres, ou tentativas de outro tipo, como viagens. Para falar desses processos elas comumente utilizavam termos como “luta”, e aludiam à necessidade de “ceder”, “tolerar” e “remar” (como expressa Milagros no trecho citado). Esses termos ilustram a forte valorização da persistência do vínculo frente às dificuldades, tentativas que, no entanto, se demonstravam insuficientes. Inclusive em casos em que a separação teve que ser resolvida de forma mais rápida, como no de Érica, que comentarei a seguir, esse desenlace se deu depois de um prolongado período de conflitos e brigas.
Conservo o verbo “remar” do original em espanhol, pois embora em português a palavra não se utilize nesse sentido, seu significado literal permite entender a metáfora aludida no uso espanhol, trabalhar em algo com grande esforço e contínua fadiga. 11
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Érica tinha 35 anos quando conversamos, e estava separada há pouco mais de cinco. Esse relacionamento tinha durado dez anos entre namoro e convivência, e eles não tinham se casado nem tido filhos. Naquela época ela morava na cidade de Rosario, onde fazia faculdade de odontologia. Durante os primeiros anos de faculdade morava em um apartamento comprado pela família e não precisava trabalhar. Quando lhe perguntei como decidiram morar juntos, ela me respondeu que “foi tudo muito estranho”. Um dia ela estava estudando com uma amiga e chamou-lhe a atenção que o namorado não tivesse ligado nenhuma vez ao longo do dia. Em um determinado momento, ele apareceu em sua casa com uma mala e simplesmente perguntou se ela tinha feito espaço no armário. A amiga “fechou os livros” e foi embora, e ela ficou ali, um pouco “chocada”. Aparentemente ele tinha brigado com a mãe, mas Érica nunca pediu explicações. Um tempo depois o pai de Érica ficou muito doente e faleceu, e ela teve que vender o apartamento da família e começar a trabalhar para pagar um aluguel. Seu namorado nunca trabalhou alegando que “não queria chefes”. De vez em quando recebia algum dinheiro de sua família, mas essa ajuda não era frequente. Os conflitos foram crescendo na medida em que essa situação se prolongava. Érica trabalhava e às vezes precisava pedir ajuda à sua mãe, enquanto seu namorado ficava o dia inteiro em casa “jogando no computador”. A separação finalmente ocorreu após um dramático episódio de violência:
Então, aquilo foi desgastando o relacionamento. E eu cometi um erro: eu sou da discussão. Posso discutir e sou muito forte com minha língua, mas nunca sairia na mão, e ele saiu na mão. E foi com isso que eu falei “chega”, primeira e última vez. Eu tive muito medo, achei que ele fosse me matar. Imagina: 1,95 metros, jogador de rugby, 115 quilos, me pegou como se fosse uma bola de rugby, me jogou no chão e começou a me chutar nas costas. Se aquilo não foi determinante num relacionamento, hoje eu estaria morta. Não sei, eu nunca acreditei. Já passaram muitos anos desde que me separei e eu continuo pensando que essa não era a pessoa pela qual eu me apaixonei.
Esse dia ela acabou no hospital e sua mãe viajou de Santa Fe para socorrê-la. Ela nunca fez uma denúncia formal, porque “não ia adiantar em nada” e seu único desejo era não voltar a vê-lo. O caso de
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Érica foi, sem dúvidas, o mais extremo das várias violências que me foram narradas. Depois daquele evento ela voltou a morar na casa da mãe, em Santa Fe. Já tinha abandonado a faculdade de odontologia e começou a trabalhar como secretaria em uma clínica médica. Trabalhava muito, mas gostava disso, porque não tinha tempo para pensar e isso lhe ajudava a “se recuperar”. O trabalho aqui funciona como um agente do tempo que “trabalha” nas relações, no sentido de Veena Das, permitindo que sejam reinterpretadas, reenquadradas e as vezes até reescritas (Das, 2007, p. 87). Através do caso de Érica é possível pensar algumas aproximações com as “cenas e queixas” analisadas por Gregori. O principal contraste emerge, evidentemente, da classe social, pois as entrevistas realizadas pela autora foram com mulheres de classes populares em sua maioria, enquanto no universo que eu pesquisei todas as mulheres dispunham de um salário próprio e eram das camadas médias. Esse fato definitivamente contribui para que minhas interlocutoras tenham finalmente conseguido enfrentar a ruptura do vínculo, diferentemente das mulheres citadas por Gregori. No entanto, para muitas delas também “se emancipar” implicou rever toda sua formação, suas crenças mais arraigadas e confrontar àqueles que partilhavam desse universo de valores. Para algumas, a separação também foi por muito tempo o “mal maior” que só foi finalmente enfrentado quando algum componente da estrutura familiar se viu ameaçado: no caso, os filhos. Neste sentido, Cecilia – 38 anos, duas filhas, separada há 7 meses após nove de casamento – comenta: Uma das questões pelas quais eu me separo é também por minhas filhas, porque não faziam bem pra elas as discussões, nem as cenas que elas tinham que presenciar. A maior, aos cinco anos... Eu estava arrumando a cama e ela me disse “mãe, por que você e o papai, que brigam um monte, por que não se separam?” [Risos]. Aquela cama ficou perfeita [risos], nunca arrumei uma cama daquele jeito.
Assim, em todos os casos, inclusive naqueles em que a separação foi decidida em comum acordo, sua reconstrução narrativa traçou processos extensos, aludidos por sentimentos negativos, vinculados à decepção e à tristeza. Inclusive para aqueles casais referidos como “muito compartilhados” e igualitários, a separação foi uma decisão extremamente difícil de tomar, “uma das
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maiores dores da vida”, uma “grande frustração”. Como Bruna disse, “imaginar outra vida é difícil”. Se há algo do ideal romântico nesses discursos (a decepção pela perda do primeiro grande amor), não acredito que esse seja o caminho da interpretação mais plausível. De fato, o “amor” foi poucas vezes acionado por si só para explicar uma união ou uma separação. Pelo contrário, tive a sensação de que neste universo, se remeter exclusivamente aos sentimentos para explicar uma separação poderia ser facilmente julgado como egoísta e “descomprometido”. Alguma pista é dada pelo cenário descrito por Cosse (2010) em relação à discussão da primeira lei de divórcio vincular na Argentina, há mais de cinquenta anos atrás: o divórcio, sem ser alheio às dinâmicas familiares, era concebido como um desvio das condutas normais e desejáveis. Uma solução extrema que significava o fracasso do modelo familiar assentado na condição de mãe, esposa e dona de casa, e homem provedor. Nesta direção, as transformações dos anos 1960 não impugnaram a validade do matrimônio senão de um modelo conjugal: o doméstico. Isto é, o casamento para toda a vida como estado que completa a identidade feminina e a masculina, baseado em uma relação de complementaridade com iniquidade (Ibid., p. 131). Junto a estas continuidades, as crises conjugais que me foram narradas incorporam elementos do que viria a ser o modelo seguinte, em resposta às expectativas depositadas no casal e aos desafios da igualdade. É nessa transição entre um modelo doméstico em crise e as novas exigências de um modelo igualitário que a dor deva ser aqui pensada. Expressada como “frustração”, “fracasso”, “queda de um ideal”, essa dor é produto das expectativas depositadas na relação, expectativas que embora se contraponham ao estereótipo da Susanita, conservam muitos dos valores da “mulher sacrificada” e paciente. Em outras palavras, apesar da domesticidade não mais constituir uma norma nem um valor, pois o emprego próprio é altamente valorizado, em um sistema generificado de distribuição de virtudes o lugar do feminino continua sendo o do sacrifício. Nesse sentido, é o mesmo sistema que rege a “economia generificada do tempo ‘ganho’ e do tempo ‘perdido’” sobre a qual se debruça Camila Fernandes em capítulo que compõe este livro. Em relação à vida posterior ao divórcio, algumas mulheres (a minoria) tinham constituído um novo casal estável, dentre as quais Virginia e Bruna manifestaram estar considerando a possibilidade
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de planejar uma maternidade junto aos seus parceiros atuais. Todas essas novas uniões deram-se no marco da consensualidade, e nenhuma delas expressou vontade de se casar novamente. Com exceção de Luciana, que estabeleceu uma nova união rapidamente e inclusive tinha dois filhos com seu novo parceiro, para as demais, a dificuldade em conhecer alguém e construir um novo relacionamento estava diretamente ligada à complexidade do processo posterior à separação. De modo geral, elas não rejeitavam a possibilidade de “alguma vez” ter de novo um relacionamento, mas o enxergavam como um futuro distante. Enquanto algumas, como Cecilia, expressavam uma estranheza frente à situação de sair, se arrumar, dançar, outras questionavam a modalidade desse novo relacionamento, manifestando a vontade de ter uma união estável, escolher um parceiro, mas sem chegar à convivência. Pamela, por exemplo, atribuiu essa condição ao fato de ser mãe, pois no momento não se sentia confortável com a ideia de que alguém interviesse na educação de suas filhas, além do próprio pai. A centralidade dos filhos na vida dos divorciados e divorciadas tem sido apresentada por outros estudos (Solsona, 2009), que observam o adiamento ou a renúncia da reconstrução da vida conjugal justificada na priorização dos filhos. Em minha pesquisa, essa priorização foi por vezes descrita como mais um empecilho para construir um novo relacionamento a partir de uma leitura das expectativas masculinas que reforçava padrões hierárquicos das relações de gênero. Nesse sentido, projetando sua própria visão da conjugalidade, Araceli se sentia duplamente prejudicada, pois por um lado “o cara separado prefere uma mulher solteira e o cara ‘familieiro’ prefere começar de zero”; por outro lado, em lugar de valorar a autonomia feminina, os homens, segundo ela, “se sentem ameaçados”. Considerações finais O processo de ruptura e a reconstrução da vida posterior não podem ser fáceis porque isso contraria a concepção de mulher “lutadora”, persistente e compreensiva à que estas mulheres aderem. Nesse sentido, nenhuma delas se separou por “não sentir mais amor”; assim como nenhuma delas se apaixonou rapidamente por outra pessoa (exceto Luciana talvez, apesar dela não salientar isso
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no seu discurso). Acredito que a “tristeza” e a “frustração” devem ser pensadas nessa direção: há um afastamento da normativa da domesticidade, mas não há um afastamento equivalente das virtudes da “mulher sacrificada”. Por essa razão, gostaria de fechar este texto fazendo algumas considerações em torno do chamado processo de individuação. Se for verdade que as mudanças nos padrões culturais que governam as relações de casal em direção a uma maior equidade entre gêneros implicam a ampliação dos graus de liberdade (Jelin, 1996, p. 38), o estudo de contextos sociais específicos nos obriga a reparar algumas ambiguidades e sutilezas. Em primeiro lugar, não é possível falar de um processo de individuação sem gênero, pois a situação não é a mesma para todo o mundo. Como observa Camila Fernandes, no artigo que forma parte desta publicação, os homens parecem ter o tempo para si dado de antemão, enquanto as mulheres devem praticar cotidiana e paulatinamente o afastamento do tempo dedicado ao cuidado de pessoas e relações. Neste quadro, o acesso ao emprego não constitui unicamente um recurso mínimo de independência econômica; ele produz um afastamento da sociabilidade doméstica, até mesmo quando se constitui em um meio para “correr atrás” dos desejos pessoais, e não um desejo pessoal em si mesmo. Entre minhas interlocutoras, e não podemos esquecer aqui os marcadores de classe que conformam este universo, a dedicação à profissão escolhida constitui uma fonte de satisfação, distração e realização pessoal. Neste sentido, quando a separação produz uma ruptura com o universo de valores familiares, o emprego proporciona um possível espaço de acesso a um cotidiano diverso. De todo modo, se o âmbito profissional foi acionado a partir do apoio moral propiciado, e neste sentido talvez seja possível falar de uma “ampliação de horizontes” (Gregori, 1993, p. 138), esse espaço não se traduziu em qualquer ajuda de fato, no que diz respeito às redes de solidariedade necessárias às atividades de cuidado. Seguindo Fernandes (neste volume), é possível afirmar que o emprego proporciona um “tempo pra si”, mas se as exigências do “tempo dedicado” continuam sendo as mesmas, uma pessoa pode não conseguir dar conta de tudo e se sentir muito sozinha. Na minha pesquisa, essa era a situação de Araceli, quem além de ter que tomar as decisões, organizar e agenciar todas as atividades das crianças (pois o pai delas morava em outra cidade), não contava
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com a ajuda de ninguém. Ela dizia se sentir muito cansada, por não poder “descansar em ninguém”;12 e sentia também “muita solidão”. O caso de Araceli é o mais ilustrativo, mas não o único em que o divórcio suscitou uma acentuação da autonomia, enxergada como uma tendência irreversível e pouco valorizada, que pode ser interpretada como uma individualidade forçada (Castellitti, 2013, p. 41). É o mesmo significado da narrativa de Florencia. Ambos os relatos tratam de reajustes da trama relacional como consequência da separação, mudanças na autoimagem, percepção de si e projetos que, embora simbolizem a reconquista de margens de autonomia, possuem o fardo de uma individualidade forçada e difícil de reverter (Castellitti, 2014, p. 120). Além disso, é irreversível porque, mesmo considerando a possibilidade de construir um novo relacionamento, elas duvidam de se seriam capazes de compartilhar as decisões que tem a ver com seus filhos. Claro que essa situação não é geral, pois para algumas a separação implicou em um ganho, materializado na reconquista do tempo livre ou da própria imagem de mulher – bonita, capaz de se ver e ser vista. Isso nos leva a pensar em condições específicas da autonomização, e a questionar uma correlação muito imediata entre individuação e divórcio. A separação pode realmente ser resultado de uma ruptura com vínculos conflituosos e de submissão. Ainda assim, esta pode produzir solidão. E se o processo de ruptura for vivido com muito sofrimento e dificuldade, as possibilidades de construir um novo relacionamento de “compartilhamento” diminuem ou, no mínimo, são postergadas. Em tudo isso, são fundamentais os papéis de gênero adotados, questionados e negociados. E aqui o processo também não é linear: uma prática dita “moderna” pode conduzir a uma experiência dolorosa, e produzir assim uma revalorização da prática “tradicional”. Padrões distintos de comportamentos instituídos para homens e mulheres são atualizados em relações interpessoais que são vividas como únicas (Gregori, 1993, p. 130). Finalmente, para interpretar essas ambiguidades se faz necessário reparar na interseção entre modelos familiares e classe social, e as especificidades que esta adota em cada contexto nacional. A família de classe média argentina ainda hoje 12 “Descansar en” é uma expressão que em espanhol tem um significado semelhante a relegar.
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constitui uma dimensão central das formas de diferenciação social, conseguindo apelar a uma associação rápida entre moralidade e posição social. Neste aspecto encontra-se uma especificidade da noção de “individualismo” no contexto argentino. Segundo apresenta o historiador Ezequiel Adamovsky (2012, p. 279), o caráter individualista da classe média argentina se baseia tanto no valor atribuído à mobilidade ascendente, quanto nas tendências contrárias às identificações coletivas ou à formação de identidades grupais, principalmente dos que se identificam como “classe média” em oposição aos setores mais baixos ou populares. Neste sentido, acredito que refletir sobre as ambiguidades dos papéis de gênero em seu entrecruzamento com práticas de diferenciação social seja uma via produtiva para continuar analisando os “custos” da ruptura conjugal em contextos sociais específicos. Na corrida para a ascensão social – econômica e moral – o divórcio ainda representa um empecilho para as classes médias argentinas.
O tempo do cuidado: batalhas femininas por autonomia e mobilidade Camila Fernandes1 A partir da trajetória de vida de uma mulher, pretendo mostrar como a batalha empreendida em busca de sua autonomia, por melhores condições financeiras e mais qualidade de vida, se faz a partir de lutas pela apropriação de tempos, subjetividades, pertencimentos e mobilidades. Nesta batalha, emergem dois tempos em conflito, o tempo de “ficar com” a criança concorre com o tempo de “correr atrás”. Estas duas experiências com o tempo, uma vez reunidas, evidenciam uma das profundas assimetrias do gênero nos cuidados, a saber, a fruição do tempo e a produção de mobilidades.2 O tempo, assim como outras categorias e experiências humanas, não é unívoco tampouco auto evidente. A noção particular e hegemônica do tempo no Ocidente está estreitamente vinculada ao desenvolvimento dos colonialismos, do imperialismo e do capitalismo financeiro, em sentenças célebres tais como “tempo é dinheiro”, bordão de campanhas pelo “progresso” e a urbanização em larga escala. Forças desenvolvimentistas são ancoradas e motivadas a partir de um melhor aproveitamento e maximização do tempo (Borges, 2004, pp. 15-31). Nestas perspectivas, ter tempo significa ter poder. Entretanto, tal enquadramento sobre a experiência temporal, Camila Fernandes é Doutora do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este artigo é fruto da dissertação de mestrado intitulada: “Ficar com. Parentesco, Criança e Gênero no cotidiano”. O trabalho foi desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense (PPGA/UFF) e orientado pelo Prof. Dout. Jair de Souza Ramos. Para esta versão do artigo, agradeço a minha orientadora de tese, Adriana Vianna, pelas interlocuções ao longo do doutorado e as indicações cruciais que me permitiram escrever este trabalho. Agradeço também os comentários e críticas preciosas de María Elvira Díaz-Benítez e de Everton Rangel. 1
“Ficar com” é o termo utilizado para falar das relações e necessidades de cuidados, neste caso, das crianças. Relações nas quais é preciso cuidar e se importar, bem como, habitar situações de controle e vigilância. Diz respeito aos atos e gestos que misturam o amor e o conflito, a obrigação e o prazer, o compulsório e o voluntário, este termo foi elaborado na dissertação de mestrado (Fernandes, 2013). 2
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apesar de dominante, é particular, assim sendo, cabe deslocar esta noção de um tempo acumulativo e produtivista, para dar lugar a outras noções de tempo existentes. Neste artigo, procuro discutir como a noção de tempo se articula ao gênero no contexto das classes populares. Na vida de pessoas que precisam dispor desse elemento fundamental para garantia da sobrevivência e do “correr atrás”. “Correr atrás” compreende um conjunto de ações necessárias na tentativa de conseguir “uma vida melhor”. Diz respeito as formas de viração, os arranjos e as composições feitas por pessoas de classe popular na luta pela conquista de um emprego, no desenvolvimento de um “negócio próprio”, em “fazer dinheiro”, em “estudar”, em cultivar projetos de lazer ou de construção e melhoria das moradias. A categoria envolve também a peregrinação por algum direito ou serviço público para um familiar que precise, bem como pode propiciar a constituição de casamentos, namoros e relações sexuais e afetivas. Na necessidade desta “correria”, veremos que diferentes temporalidades modulam significativamente condições de mobilidade, que por sua vez, determinam acesso a bens, afetos e vivências. Nesses circuitos, as atividades de cuidado com os outros, em particular, com as crianças, têm especial inflexão nas disputas sobre o tempo, uma vez que “ter tempo para mim” significa poder desenvolver capacidades e habilidades que podem gerar “uma vida melhor”. Neste quadro, encontramos o tempo do cuidado, em seu ritmo cíclico, intermitente, constante e percebido como tal, diferente do tempo cronológico, organizado a partir de estruturas arbitrárias nas quais a ação social dependeria da simples ou heroica irrupção da vontade dos homens. Nas teorias do tempo de inspiração feminista, Carolina Pombo (2013) evoca duas imagens presentes na metafísica universalista, correlatas a uma perspectiva ontológica atribuída as identidades e sobretudo a experiência das maternidades. A “mãe universal” corresponde a mística de um tempo ilimitado, transcendental, livre de contingências e feminino. E a “mãe eterna”, um manancial do tempo, fonte de um elemento vital sempre disponível aos outros. Entretanto, ao lado das imagens míticas de um tempo feminino invariavelmente disponível aos outros, a autora lembra que para sujeitos localizados em relações concretas, o tempo “é um elemento definidor da maternidade” (Pombo, 2013, p. 13).
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Nesta chave, procuro desenvolver como a noção de um tempo abstrato e linear, não é suficiente para dar conta das batalhas nas quais pessoas de classe popular estão comprometidas em suas lutas cotidianas. Proponho que levemos em conta uma noção de tempo que considere as relações de cuidados, na disputa incessante entre o “tempo pra mim” e o “tempo de correr atrás”. Como aponta o sociólogo Marc Bessin: “Este tempo dominante do relógio não está adaptado para descrever o trabalho na sua complexidade generificada” (Bessin, 2013, p. 107).3 Para Bessin (2014), a temporalidade atua como princípio estruturante de gênero. Ao considerar a trajetória das pessoas na relação com políticas de Estado, Bessin desenvolve o conceito de “presença social”, para analisar situações nas quais os sujeitos vivem uma relativa autonomia, graças ao suporte dado por outros através de dialéticas de presenças e ausências que possibilitam tanto a provisão de bens e acesso a mercadorias sociais, bem como a superação de contextos de vulnerabilidade. Ao longo de trajetórias de vida, sujeitos participam de circuitos de cuidados, sejam como provedores, receptores ou ambos. Esses fluxos de interdependência são também mediados por diferenças articuladas a gênero, idade, classe e raça. Estas dialéticas de presenças e ausências, não se resumem apenas aos aspectos materiais da vida, mas envolvem arquiteturas morais e subjetivas de controle e poder. Desta maneira, a descrição que se segue não diz respeito a produção de sujeitos “independentes”. Meu objetivo é demonstrar como as assimetrias de engajamento de tempo nas relações entre homens e mulheres, exprimem a colonização de possibilidades de existência, fazendo com que alguns sujeitos se encontrem territorializados em roteiros culturais difíceis de serem contornados. Para acompanhar essas disputas, evoco itinerários de vida nos quais, rupturas conjugais descortinam ordens de privilégios, poderes e prejuízos.
No original: “Ce temps dominant de l’horloge n’est pas adapte pour décrire le travail dans sa complexité genrée” Tradução da autora. 3
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Rupturas conjugais, tempos e vínculos em transformação Oriundo de uma Cidade do Norte-Fluminense, Marcio chegou à Cidade de Niterói para fazer o curso de Geografia em uma grande universidade local. Como habitual entre os estudantes que migram com esta finalidade, Marcio alugou um quarto em um pensionato universitário. O rapaz logo se incorporou ao circuito de bares e festas noturnas presentes no entorno da universidade. Entre o lazer e as aulas no campus, ele conheceu a mulher com quem mais tarde teria um filho. Débora e Marcio viveram uma “paixão avassaladora”, como os amigos recordam. Reconhecidos como um casal “diferente”, a união do par representava uma ruptura com fronteiras diversas. A narrativa da “diferença” existente entre os dois era esboçada em diversos momentos, seja pelos amigos, ou pelo próprio casal. Para os amigos, tal “diferença” estava concretizada na reunião de inúmeros aspectos, na alteridade de classe, de moradia e de acesso ao capital cultural. Marcio, seguia com sua formação universitária através do auxílio familiar. Débora, morava em uma favela, não havia completado o ensino fundamental e estava distante das ajudas oriundas da sua rede de parentesco.4 Entretanto, em meio às “diferenças” recorrentemente explicitadas, ambos viviam uma relação apaixonada e estável. Tornaram-se mais próximos com o decorrer do tempo e a partir de inúmeras manifestações sentimentais. A decisão de morar juntos no pequeno apartamento comprado por Marcio se consolidou meses depois. Marcio havia reservado uma quantia em dinheiro (fruto de um antigo emprego). Com a ajuda dos parentes paternos conseguiu financiar a compra de um imóvel próximo à universidade. Tudo corria bem até o momento em que Débora suspeita de uma gravidez. A partir de então, o rumo Em sua trajetória de vida, cabe descrever que Débora nunca contou com redes de parentesco “de sangue”. Ela foi criada em um “orfanato”, como se chamavam os antigos abrigos para crianças. Com poucas lembranças de sua família biológica, Débora cresceu em instituições de abrigo na Cidade do Rio de Janeiro e saiu do “orfanato” com dezoito anos de idade, após atingir a maioridade. Após sair da instituição, ela morou em diversas favelas da Cidade até se fixar no morro do Palácio. Quando fez 21 anos, Débora descobriu o endereço de sua mãe biológica e buscou conhecê-la, mas os encontros não foram suficientes para estabelecer uma relação mais próxima, de modo que Débora preferiu manter a distância. 4
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dos amores e dos estados afetivos começam a se alterar. Marcio conta que a relação passou a “degringolar” diante da “gravidez não planejada”. Os atritos e discussões tornaramse constantes na rotina do casal e tudo que anteriormente não se configurava como problema passou a se apresentar enquanto tal; a alteridade de classe, a relutância acerca da continuidade da gravidez e as críticas a gravidez “inesperada” oriundas dos familiares de Marcio. A problemática gira em torno do impacto que um filho representa na vida de ambos, “Eu não pensava em ter filho tão nova, sabia que criança daria trabalho pra mim e eu não estava acreditando”, conta Débora. Marcio lembra que: “a gravidez caiu como uma bomba, estava na faculdade, começando a vida e simplesmente não estava pronto”.5 Fazia alguns meses que estavam namorando e juntos sob o mesmo teto, tudo parecia se desmoronar com a notícia da contracepção. A relação marcada pelo romantismo e alegria passou a exprimir um conflito cada vez mais avultante. Porém, ao mesmo tempo, gestos de convencimento em torno da gravidez se reforçavam. Débora recorda do dia em que fez o exame de ultrassonografia e que, ao ouvir o coração da criança bater, não teve dúvidas quanto à continuidade da gestação. Ela que não pensava em ter filhos, conta que naquele momento sentiu-se encorajada e motivada para “encarar a aventura”, dizia a si mesma, “fácil não vai ser”, mas em sua opinião, preferia ter um filho a fazer um aborto, uma vez que Descrevo de que forma tive acesso as diferentes fases da vida de Débora, bem como, das impressões e pontos de vista de amigos e familiares. Eu e Débora nos conhecemos por volta do ano de 2005. Nossa relação de amizade se iniciou a partir da convivência na creche universitária da UFF, uma vez que nossos filhos frequentavam a mesma instituição. Pedro teve acesso a creche universitária devido a vinculação de seu pai como aluno e minha filha tinha acesso a creche através de minha vinculação como estudante de graduação no curso de Serviço Social. Anos depois, eu ingresso no mestrado em Antropologia na UFF e inicio uma pesquisa sobre cuidados de crianças. Não por acaso, pensei que a trajetória de Débora poderia fazer parte da dissertação, fato discutido e estimulado por ela, que me apoiou sobre a importância de contar esta história. Mais tarde, Débora foi viver em Búzios e Pedro passa a “ficar com” o pai. Somente neste período, tive a oportunidade de conhecer Marcio e ouvir suas narrativas sobre os cuidados com Pedro. Desta forma, o material apresentado aqui trata de um período de sete anos, idade que a criança tinha no momento que passou a viver com o pai. Este tempo longo de interlocução foi fundamental para acompanhar as disputas narradas aqui, bem como ter contato com as impressões de amigos e familiares relacionados. 5
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tanto o procedimento, quanto a ideia da interrupção da gravidez lhe amedrontavam. Da parte de Marcio, a decisão pelo aborto prometia resolver a situação, uma vez que ele dizia constantemente, “não me sinto preparado para ser pai”. Além do sentimento de não se sentir “preparado”, Marcio também não desejava um filho. Porém, ele conta que não quis contestar e nem impor uma resolução, que em sua opinião, caberia à mulher: Nunca insistiria pra ela abortar, apesar de achar melhor, não queria ter filhos, mas também não seria o fim do mundo levar adiante, e no final das contas a decisão acaba sendo dela, porque ela que teria que fazer o aborto e carregar este trauma.
Assim, motivados por diferentes ideias feitas de hesitações, dúvidas e certezas, a decisão pela gravidez acabou sendo acordada por ambos que concluíram que, “o que está feito, solucionado está”. Com essa frase Marcio relembra a decisão quanto ao futuro da gravidez. Entretanto, ainda assim o casal decide se separar, avaliam juntos que um filho não é motivo para manter duas pessoas unidas e que não possuíam “amor suficiente” para permanecerem casados. Para fins pragmáticos, ambos pactuam o seguinte combinado; Débora ficaria morando na casa comprada por Marcio e ele iria se mudar. Ela ficaria com a criança, seria, portanto, a mãe quem se ocuparia dos cuidados diários com o filho. Marcio sairia de casa e deixaria, como sua parte no assunto, a casa para o seu filho viver com sua ex-namorada. Neste combinado, visitas ao filho e pensão alimentícia foram discutidos, tudo feito através de conversas e divergências calorosas relativas aos valores e as exigências de alguns “bens de cuidado” para o bebê (Vianna, 2002, pp, 85-160).6 No entanto, dada à vontade de se verem Em seu trabalho sobre a gestão de “menoridades”, através de processos de guarda de crianças na Justiça, Adriana Vianna analisa as situações de disputa e negociação de responsabilidades em torno dos cuidados. Vianna percebe o lugar especial dos chamados “bens de cuidado”, um conjunto de objetos e mercadorias que encarnam e materializam as virtualidades dos sentimentos e intenções. A provisão e doação dos “bens de cuidado” são indicadores de legitimidade dos “responsáveis”, ao mesmo tempo em que exemplificam o amor e o compromisso para com o zelo de crianças, como demonstra a autora: “todos os bens de cuidado exaustivamente listados – berços, brinquedos, planos de saúde, pediatras particulares etc. – representam sinais do investimento que pode ser calculado e, ao mesmo tempo, que nunca pode 6
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logo “livres um do outro”, como recorda Débora, o arranjo encontrado caiu como a melhor saída. A mulher ficou com o filho e o homem saiu de sua casa recém comprada. O acordo não deixa de transmitir a ideia de uma compensação por uma espécie de “acidente”. De um lado, mulher, casa e criança. Do outro, homem e rua. O menino Pedro nasce. Antes de completar seu primeiro ano de idade, a criança é diagnosticada com “sopro no coração” e precisa realizar uma cirurgia. Todo o processo de cuidados, incluindo a busca por médicos, o diagnóstico, o tratamento, a cirurgia e o pós-operatório foram viabilizados por Débora e suas redes de conhecimentos pessoais; a amiga que conhece um médico que pode ajudar, a dona da padaria sensibilizada com o estado da criança doa os remédios, os vizinhos levam a criança de carro para as consultas em hospital distante na Cidade do Rio de Janeiro. Nesta temporada, Marcio está “distante” e pouco aparece devido ao trabalho como professor recém-formado. Ele acabara de conseguir um emprego como professor em dois colégios privados. Apesar da casa deixada pelo “ex”,7 Débora vive em condições de pobreza, durante os primeiros quatro anos após o nascimento do filho, ela não consegue emprego e de vez em quando faz “bicos” para “se virar”. Os únicos trabalhos que surgem são de faxineira ou empregada doméstica, contudo ela conta que nunca se adaptou a realidade do trabalho doméstico, “trabalhar em casa de família é um saco, não gosto, não sei cozinhar e também das vezes que tentei fui maltratada, porque acham que você é qualquer um”. As lembranças de maus tratos em “casas de família” deixaram uma marca perversa na vivência de Débora, realidade a qual ela resistia em se sujeitar novamente. Como mulher negra, criada em instituições de Estado e com uma escolarização precária, as únicas propostas de emprego ser expresso claramente em termos materiais, já que serve de indicativo da ação desinteressada que não espera pagamento imediato ou não o espera na mesma moeda” (Vianna, 2002, p. 31). “Ex-mulher”, “ex-marido” e “ex” são termos utilizados pelos interlocutores para se referir à pessoa com quem terminaram a conjugalidade, o namoro ou um “caso”. Também é comum que estes se refiram ao “ex” como “o pai dele” ou “a mãe dela” demarcando a sobrevivência da relacionalidade para com os filhos e não mais à afetividade-sexual entre os ex-pares. É interessante notar que não existe o antípoda do termo “ex-mulher”, excluindo, por imaginação, um “ex-homem”, significando que homens não pertencem as mulheres a ponto de se tornar um ex. 7
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doméstico não surgem aleatoriamente, mas se constituem como parte de um conjunto de diferenças raciais, de classe e gênero que se interseccionam e expõem um campo de expectativas e lugares sociais que orbitam entorno das trajetórias de determinados sujeitos (Crenshaw, 2002). Em um dia qualquer, Pedro, uma criança muito carismática, é identificado na rua por um agente de comerciais infantis, que propõe a Débora uma visita a uma agência de publicidade. Este agente rapidamente insere o menino no mercado das propagandas com crianças e assim ele grava comerciais para grandes empresas como, “TIM”, “VIVO”, anúncios de TV com o jogador de futebol Ronaldo, “o fenômeno”, aparecendo em diversos catálogos de grifes infantis. O encantamento vivenciado nesta experiência foi suficiente para o menino ser reconhecido como “uma estrela” na creche que frequentava, de modo que ele e sua mãe gozaram deste reconhecimento frente a rede de amigos que participavam. Durante esta temporada, Débora e Pedro vivem do dinheiro fruto deste trabalho. O pagamento recebido com as aparições do menino não é mensal e varia em quantia e regularidade. Por isto, mesmo com o recebimento de uma soma que podia chegar ao valor de até R$ 5.000,00 reais, com o passar dos meses, o dinheiro se esvaía com as contas da casa, remédios, transportes, comida e roupas. Com esta renda, Débora e Pedro ainda precisavam das ajudas de amigos para sobreviver, que sempre davam comidas, roupas para a criança, brinquedos entre outras. Como lembra uma amiga da família, “o menino é muito querido”. Aqui, é importante salientar que “o trabalho da criança”, eclipsa o “trabalho da mãe”. Manter a criança viva e digna de atenções é resultado de um esforço contínuo e compulsório feito por Débora ao longo dos anos. Ademais, os deslocamentos da criança entre testes, gravações e filmagens só eram possíveis graças ao seu engajamento de tempo, dinheiro e planejamento. Logo, ao dizer que ela vivia do trabalho do filho, podemos entender que o trabalho do filho só era possível mediante o trabalho da mãe no investimento de tempo feminino dedicado a vida da criança. Um tempo quase nunca reconhecido socialmente. Mais tarde, Pedro atravessava seu quinto ano de vida. A relação entre Débora e Marcio passou a se tornar cada vez mais conflituosa. Confrontos sobre dinheiro não dado a criança eram o mote das confusões, quase sempre perpassadas por xingamentos
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e acusações. Trocas de ofensas e recordações do passado eram acionadas como bombas durante as discussões. O clima espinhoso, as palavras ferinas e a raiva sentida por ambos não deixavam dúvidas aos olhos do entorno que acompanhavam o desenrolar destes momentos, tratava-se de “uma guerra”. Como professor do ensino médio, Marcio dizia viver chafurdado em dívidas, por isto nunca conseguia dar o dinheiro combinado na data certa e quando pagava, faltava sempre uma parte considerável. O valor da pensão era de R$ 300 reais e foi acordado após debates fervorosos, que explicitavam a dificuldade em negociar e qualificar o trabalho e a contribuição de cada um, o tempo dedicado ao cuidado, bem como, estabelecer o preço do cuidado de uma criança (Zelizer, 2011). Débora, se via extremamente cansada com as ausências financeiras e afetivas do pai do menino, “se fosse só o dinheiro que ele não comparece, mas você vê, nem pra ficar com o menino ele presta. Não dá atenção pro filho. O Pedro infelizmente não tem um bom pai”. A narrativa reúne, a um só tempo, a demanda por afeto, presença e dinheiro, que a cada temporada se acumulam em um repositório profundo de dívidas e mágoas. Por outro lado, Marcio não consegue conciliar o pagamento das contas do menino com o aluguel no bairro de Santa Tereza, junto de suas despesas pessoais. Soma-se a isto o sentimento de prejuízo em ter deixado o apartamento para “ex”. Na intenção de reduzir gastos, Marcio decide retomar seu apartamento, pois de acordo com seu cálculo, sem o gasto com o valor do aluguel ele teria dinheiro para transferir ao seu filho, como ele explicou. Assim, Marcio comunica a Débora que ela deveria arrumar um lugar para morar uma vez que o apartamento não era seu. A notícia da exigência da mudança deixa Débora completamente perplexa com a “falta de sensibilidade” do “ex”, contudo, nada impediu que o rapaz voltasse para o seu apartamento, ainda que Débora tenha apelado diversas vezes para o “bem-estar da criança”, “eu disse a ele que não teria onde morar com o filho dele, mas ele quis a casa e não se importou”. Sem ter onde morar, Débora consegue um pequeno quarto em uma ocupação na rua Passo da Pátria. O quarto tem espaço suficiente para acomodar o tamanho de uma cama de solteiro e mais algumas roupas e objetos pessoais. Porém, mesmo com a mudança de casas, Marcio continua “distante”, em relação a pensão e ao “contato”.
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A categoria “contato” não se trata de mera comodidade descritiva, mas exprime as ideias de conexão e “relacionalidade” desenvolvidas nos trabalhos de Janet Carsten (2004). Ter “contato” é ter relação, quem realiza o cuidado mantém-se “em contato”. Através do “contato” relações se legitimam ou se desqualificam. A “falta de contato” produz o descrédito da distância. Nem todos os “contatos” têm o mesmo peso no âmbito de um grupo, o “contato” também não necessariamente implica a proximidade física, tampouco o “estar junto”. É possível se fazer “presente” através do “contato a distância”, a partir da provisão de alguns “bens de cuidado” e da coexistência de um fluxo de coisas e dinheiro (Vianna, 2002; Weber, 2005). Tanto a proximidade quanto a distância são correlatas à relacionalidade, pois expressam com quem se pode contar, com quem as pessoas ficam e, também, com quem se renova os sentimentos de parentesco. Assim, “distância” e “proximidade” são as marcas de quem está fora ou dentro da rede de cuidados, a exemplo de fluxos de dinheiros que podem exprimir “contato”. Contudo, a natureza das ajudas e colaborações possui diferentes sentidos para os agentes, sentidos estes que aparecem no decorrer da descrição. Por conta das constantes perturbações sofridas, Débora decide “entrar na Justiça” contra Marcio. Após três audiências e muitas discussões, “a Justiça” define o valor de 20% do salário do homem, o que resulta na quantia mensal de R$ 290 reais, menos do que Débora recebia quando longe da “Justiça”. Além do processo por pensão alimentícia, Débora aciona um processo relativo ao apartamento do “ex”, porque segundo ela, agora só lhe resta uma alternativa: “cair pra dentro”. Ela ainda tinha esperanças de garantir sua antiga moradia. Assim, seu advogado, com base no reconhecimento da lei de “união estável” requer direitos sobre parte do apartamento que Débora viveu. Entretanto, o Juiz não reconhece a causa e Marcio, que já havia recuperado seu apartamento, agora goza de total legitimidade da lei. Débora perde duas vezes, na vida cotidiana e na “Justiça”. Após esta sucessão de acontecimentos, Débora continua vivendo de “bicos” sazonais, com as propagandas infantis feitas pelo filho e um emprego como garçonete duas vezes por semana em um bar noturno do bairro. Contudo, os trabalhos do menino são cada vez mais raros. Conforme o seu crescimento, a criança se mostra menos disponível e receptível nas gravações e sessões de fotos, o que
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leva, tanto as agências, como Débora, a desistir do empreendimento paulatinamente. Débora segue cuidando do menino diariamente, é ela quem o leva de ônibus para a escola pública no bairro de Icaraí e nas consultas médicas, ela é a responsável pela feitura da comida e pela orientação nos deveres de casa. É ela que “passa tempo” com a criança todos os dias. Para trabalhar a noite, Débora sai de casa e enrola uma corrente com cadeado no portão, bem como, orienta seu filho para que não abra a porta para ninguém. Neste momento da trajetória, Pedro tem sete anos, está habituado a ficar sozinho em casa e diz que não se sente só, pois adora ver televisão. A televisão a cabo é uma companheira do menino que assiste sem piscar, como em hipnose, os programas da Disney e Cartoon Network.8 O tempo passa e Débora recebe uma proposta para trabalhar em Búzios em uma grande creperia da cidade, além do emprego noturno, existe a possibilidade de trabalhar como caseira na residência de dois estrangeiros, fato que pode lhe proporcionar mais um salário e moradia gratuita. A luta por emprego sempre estivera presente na narrativa de Débora. Cansada de toda esta trajetória, de não ter dinheiro e das condições precárias de moradia na ocupação ela resolve deixar Pedro com os parentes do “ex”: Estou cansada, esgotada, não tenho tempo pra mim, cuidar de Pedro me toma toda, vai ser difícil, mas não vejo outra solução, preciso trabalhar, fico muito presa por causa dele, porque fazer as coisas pra ele me toma todo o tempo.
Após refletir durante meses acerca de sua decisão, em reunião com Marcio e sua família, ela anuncia aos presentes que não ficaria mais com Pedro. Débora expôs suas dificuldades ao longo de todos aqueles anos, de conseguir alimentação, de moradia, da falta de tempo para si, das dificuldades em conciliar sua temporalidade com a rotina da criança, questões de “dignidade”, como ela pontuou. Débora expôs a necessidade de pensar sobre a sua vida e que, pela primeira vez, seria preciso “correr atrás” de seus desejos pessoais,
A televisão acaba operando o cuidado da criança, uma vez que é em sua companhia que o menino se afasta da solidão e se mantém entretido, ao mesmo tempo em que Débora se sente menos angustiada. A ocupação onde Débora vive possui “gato de TV a cabo” e por este motivo a criança tem acesso à rede de canais da televisão fechada. 8
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como fazer o curso de costura e customização que tanto almejava. Enquanto os parentes se veem chocados com a decisão, a irmã de Marcio faz uma espécie de defesa em meio ao julgamento coletivo de todos e recorda das inúmeras vezes que Débora dedicou seu tempo à criação do menino. Talvez por uma identificação de gênero, esta mesma tia decide assumir os cuidados do menino “durante um tempo”. Depois de mais algumas conversas, foi acordado que toda a família paterna ajudaria na criação, através da compra de roupas, da doação de dinheiro, das despesas com o colégio e do pagamento de assistência médica mensal. O circuito de circulação da criança se altera (Fonseca, 1995b; 2000). Pedro sai de Niterói e vai morar com sua tia paterna e seu marido no bairro do Méier, na cidade do Rio de Janeiro, mudando de escola pela quarta vez. Os avós paternos passam a ajudar financeiramente nas despesas do menino e o pai de Pedro também se integra ao fluxo de cuidados através das visitas ao filho na casa da irmã. O marido da tia de Pedro também se incorpora no circuito e passa a fazer parte do cotidiano do menino como uma das referências nos cuidados. Cabe salientar para a forma socialmente estruturada na qual a responsabilidade pela criança foi atribuída a mulher. A partir do gesto de Débora, vemos que toda uma rede de parentes é incluída no suporte a responsabilidade paterna. Anteriormente a esta decisão, os parentes pouco ajudavam, entretanto, é somente a partir do esgotamento da posição de mãe que a família paterna entra no circuito dos cuidados. Marcio ainda realiza um papel apagado, amparado por inúmeros familiares que se disponibilizam. Cabe perguntar, porque motivos somente em condições de esgotamento do papel materno é que outros atores sociais se agitam e entram em cena? Cerca de quatro meses após essa resolução, a tia de Pedro engravida e delega ao seu irmão, pai do menino, que fique com a criança, uma vez que ela estaria ocupada com o seu próprio filho. Logo, após sete anos do nascimento de seu filho, Marcio passa a “ficar com” a criança diariamente. Mais uma mudança ocorre, Pedro volta a viver em Niterói agora com seu pai, trocando novamente de residência e colégio. Na última vez que conversamos, Marcio não cessou de reiterar seu amor e consideração pelo menino e diz que “graças a Deus, agora tudo vai ficar bem”. Marcio criticou as decisões da “ex” em relação à educação dada ao garoto (o excesso de televisão, a
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moradia na ocupação, a escola pública) e lamenta “o tempo perdido”, “nunca quis ficar todo este tempo sem estar próximo dele, é que eu não tinha condições sabe? Mas fazer o que, né? Ela cansou de ser mãe, agora ele está comigo”. Marcio segue conciliando o trabalho de professor com os cuidados do filho e diz que por conta deste encargo teve de abrir mão do emprego de educador nos finais de semana que tanto lhe beneficiava. Ele também lembra que seus gastos mensais aumentaram, uma vez que agora, ele precisa pagar uma empregada doméstica para ficar com seu filho em casa enquanto está no trabalho. Porém, segundo ele, a cada novo dia “as coisas vão melhorando”. Pedro sente saudades de sua mãe e entende a decisão tomada por ela: “minha mãe fez muito por mim, ela precisa de um tempo pra trabalhar e conquistar as coisas dela”. Estes distintos acontecimentos distribuídos ao longo do tempo, nos fazem pensar nos deveres de cuidados relacionados a idade das crianças. Para Débora ficaram os piores anos do cuidado, aqueles nos quais a criança é completamente dependente do ponto de vista corporal e afetivo. Márcio se encarrega de cuidar em um momento no qual a criança “já é grande” e possui características de indivíduo. Podemos pensar que o tempo de “correr atrás” conquistado por Debora só foi possível de ser pleiteado após a realização da presença compulsória nos primeiros sete anos de vida do filho. Talvez por isto, ela tenha encontrado alguma compreensão de sua rede, o que não veio sem críticas fortes quanto a sua agência. O que esse caso nos mostra é que gênero e cuidados se entrelaçam em relação ao tempo que é permitido “correr atrás”, situacionalmente posicionado em relação a idade dos filhos. Cadências de poder que se espalham no tempo A separação de um casal desvela os constrangimentos em torno do compartilhamento do cuidado de uma criança, associado as batalhas acerca do tempo e as respectivas mobilidades engendradas. Situações de separação podem oferecer noções a este respeito, pois, apesar do fim do conteúdo sexual-afetivo entre os pares, outras relações emergem. A conjugalidade se finda, mas, por vezes, a parentalidade permanece e as relações anteriormente
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experienciadas tendem a se reelaborar sobre outras regras, normas e moralidades (Grzybowski & Wagner, 2010, p. 77). O desenrolar da trama fala do modo como uma mulher mobiliza forças para não se reduzir ao lugar natural atribuído ao universo feminino dos cuidados. De modo relacional, acompanhamos como um homem é chamado constantemente ao campo das suas obrigações de parentesco. Após sete anos de vida de seu filho, Marcio passa a realizar ações geralmente narradas no senso comum como incompatíveis com um determinado padrão de masculinidade, buscando conciliar sua mobilidade, emprego e cuidados da criança.9 Vemos de que modo as moralidades relativas à mulher mãe que se afasta dos cuidados se atualiza nos julgamentos das redes expectadoras e participantes da trama: “até hoje não acredito que ela teve esta coragem”, diz a melhor amiga de Débora. “Ela sempre foi maluca”, diz a avó de Pedro. “Não se faz isto, como se consegue viver assim?”, diz outra colega. “Ela cansou de ser mãe”, comenta Marcio. Certamente, Marcio também esteve sujeito às críticas coletivas. Ao longo do crescer de Pedro a “ausência do pai” é frequentemente marcada por amigos e conhecidos, contudo, todas as menções são finalizadas com o tom da conformidade. Nestes assuntos, parece que a “distância” dos homens é percebida com maior tolerância, o que faz com que o fenômeno da “ausência paterna” seja lugar comum de muitas masculinidades, um fato cultural aceito e sedimentado no imaginário social.10 Desta maneira, ainda que homens e mulheres estejam
Sandra Unbehaun (1998) examina discursos que ressaltam a emergência de um “novo homem” ou do sentimento de paternidade característicos da modernidade. Neste arcabouço, supostas novidades de comportamento corroboram para um maior engajamento de homens e cuidados, mudanças nas relações de trabalho entre homens e mulheres seriam uma das reconfigurações mais influentes nesse sentido. Contudo, a autora ressalta que é preciso reter o contexto no qual estas pretensas mudanças ocorrem. Estes contextos são, em especial, o das camadas altas e médias, no qual a escolaridade, o compartilhamento de tarefas domésticas, as teorias acerca da pedagogia e os valores individualistas obram para uma perspectiva igualitária. Ainda assim é possível ver engajamentos masculinos nos cuidados com as crianças nas classes subalternas. Na dissertação de mestrado pude acompanhar homens pobres que por diferentes razões vivenciaram proximidades cotidianas com seus filhos (Fernandes, 2011). 9
Sobre paternidade, ausência e reconhecimento dos filhos ver o trabalho precioso de Sabrina Finamori (2018). 10
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sujeitos a expectativas e moralidades distintas, podemos afirmar que a ressonância mais impactante em relação ao estigma recai sobre mulheres, demonstrando como feminino e maternidade atualizam deveres e obrigações no campo dos cuidados com as crianças.11 Em sua batalha para “ter tempo”, as ações de Débora fissuram este cânone cultural fortíssimo e as assimetrias de gênero evidenciam-se de forma gritante. Quando mulheres se afastam dos cuidados, um campo de ideias, ora tendenciosas, ora especulativas se aglomera. “Pesadelos”, “culpa”, “julgamentos”, necessidade de terapias e diversas “perturbações” são alguns dos termos enunciados por mulheres que deixaram seus filhos aos cuidados de outros. Outra interlocutora da pesquisa em situação similar comenta: Não que eu quisesse cuidar deles, eu não queria mesmo, porque não me vejo com a vida que tinha antes, eu não me dava bem com o pai deles, brigávamos muito, mas a culpa de ter deixado eles com o pai me persegue até hoje, tem dias que não consigo levantar da cama, fico o dia todo chorando, me sinto errada, me sinto devendo (Natasha, 27 anos).
Durante toda a pesquisa de mestrado, não encontrei nenhuma narrativa de sofrimento masculino associada aos não cuidados de crianças com tamanha carga de intensidade. Ao contrário, recordo, por exemplo, da ocasião na qual um homem comentou que havia acabado de conhecer um filho “perdido no mundo” e que o rapaz, hoje com 22 anos, morava em outro Estado. Este homem conversava sobre o ocorrido durante uma feijoada entre amigos e parentes. Em escuta, os dois amigos presentes na conversa continuam a discorrer sobre o assunto e contam sobre os filhos que tiveram com “ex-mulheres”. Os dois homens também possuem quatro filhos, com quatro mulheres diferentes. Os homens falam Dilemas acerca do gênero da distância podem ser vistos também no trabalho de Everton Rangel, que trata dos deslocamentos entre pessoas e familiares em um plano internacional e multi-situado. Rangel problematiza, por exemplo, como a saída da sua mãe para trabalhar em uma grande empresa de entretenimento, em um circo estadunidense, mobiliza diferentes justificativas morais nas redes de cuidado e trabalho. Sua pesquisa mostra como se dá o cuidado dos homens a “distância”, e os rebatimentos sociais desses deslocamentos na rede familiar (Rangel, 2016). 11
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acerca da prole numerosa às gargalhadas e salientam o quanto tem maior “contato” apenas com os filhos das últimas relações afetivas. Nas três situações, todas as crianças nascidas ficaram com as mães. Um dos homens registrou todos os seus filhos nascidos, porém, como o mesmo definiu: “nunca fui de cuidar”. Outro disse ainda que, “por causa dos quatro filhos espalhados pelo mundo” vive sem dinheiro, pois “é muita gente pra dar pensão”. O homem que conheceu o filho perdido lamenta que agora está “fodido” por causa da exigência de mais uma pensão alimentícia e conclui em alto e bom som no meio da festa: “filho é igual as casas Bahia, você faz de graça, mas paga prestação a vida toda!”. É inegável a existência de um peso maior do trabalho do cuidado sobre as mulheres, contudo, as narrativas acima atualizam a relação existente entre homens, dinheiro, cuidados e distância. Não se trata de reificar a figura do provedor, tampouco, a do “chefe de família”, mas antes de compreender de que forma o cuidado masculino compósito ao dinheiro atualiza duas perspectivas; “trabalhar fora” e, portanto, “produzir” e “dar dinheiro” para o sustento da criança na forma da pensão, e, portanto, “cuidar”. Esta arquitetura permite que mesmo diante do conjunto de necessidades que uma criança demanda, o gesto masculino de “pagar pensão” seja percebido como suficiente e valorizado socialmente, mesmo que tal gesto não envolva presença nem investimento de tempo cotidiano, como bem indicado na metáfora das prestações das casas Bahia. Vale ressaltar que, nas classes populares, na maioria dos casos de contribuição material a vida dos filhos, o “dinheiro” pago pelos homens em pensões alimentícias não consegue prover sequer a metade dos custos financeiros de uma criança.12 Nem tampouco conseguem compensar as desigualdades que decorrem de um investimento desigual de tempo. De volta à cena descrita, todos os comentários são feitos as gargalhadas, com descontração e na forma da “zoação”. Em suma, as narrativas não carregam remorso, nem culpa, mas sim, humor e
Os valores pleiteados e pagos através das batalhas por pensões alimentícias fazem parte de um segredo de justiça das nossas administrações de Estado, tais disputas revelam um grande desequilíbrio de poder na partilha dos cuidados, sobre este assunto ver o artigo de Camila Salmazio: https://www.brasildefato.com. br/2018/05/16/pensoes-alimenticias-refletem-machismo-e-nao-consideramnecessidades-reais-dos-filhos/ 12
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virilidade. Para as mulheres que deixaram seus filhos com outros, a única narrativa plausível e aceitável pela coletividade parece ser a do sofrimento. Enunciadas como “loucas” ou “insensíveis”, as mulheres que deixam seus filhos aos cuidados de outros impactam fortemente o imaginário coletivo.13 Estes atos, contudo, tratam-se de gestos dissidentes de ruptura com os padrões de cuidados hegemônicos que associam o feminino às obrigações com crianças. No caso de Débora, deixar Pedro aos cuidados da família paterna significa também uma luta pela plena co-temporalidade. O que está sendo negado a ela é a possibilidade de usufruir, assim como o pai de seu filho, do acesso ao tempo presente. Vemos a partir desta trajetória, a maneira pela qual os usos diferenciados do tempo produzem possibilidades e impossibilidades de existir e ser no mundo, de criar “territórios de existência”. Por este termo, podemos entender um conjunto de forças moduladoras da qualidade de vida, que permitem possibilidades de criação, mobilidade, bem como a gestão dos conflitos, dos prazeres e a conquista de oportunidades para conduzir a vida da melhor forma possível. A partir de então, podemos nos perguntar: quais sujeitos devem produzir esforços para romper as barreiras culturais que pesam sobre eles? Finalmente, sabemos que o gênero deve ser apreendido em um incessante compartilhar de sentidos. Não se trata de atitudes isoladas, mas se refere a dinâmica relacional vivida entre os agentes, as performances, enquadramentos e discursos que são acionados e reiterados em nossas sociabilidades (Butler, 2003). Como demonstra Gayle Rubin (1986), o gênero se observa na alteridade e isto implica assumir que as relações humanas são generificadas.14 Demonstrar Sobre o imaginário do “abandono” materno ver os trabalhos de Lima (2011), Fonseca (2012) e Fernandes (2017). 13
Em artigo influente, a autora sustenta que a formulação de Claude LéviStrauss referente à troca de mulheres é problemática porque obscurece relações subjacentes aos sistemas de parentesco. Na proposição de Rubin, a troca ultrapassa o aspecto do parentesco (tomado como expressão simbólica de interditos, convenções e obrigações) e contém relações entre homens e mulheres traçadas por um inexorável aspecto generificado. Para Rubin, a troca de mulheres engendra um conjunto de relações relativas às sexualidades, nomes, linhagens, direitos e sujeitos que dizem respeito a homens, mulheres e crianças em suas relações de poder. Sendo assim, a troca de mulheres não diz “somente” sobre o parentesco, mas implica na generificação de relações. Sobre este derivado se justapõe as convenções 14
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como mulheres e crianças vivem desigualmente engajados com determinadas tarefas e hierarquias de gênero é importante, contudo, devemos evitar sua dimensão tautológica e evidenciar como esses tempos se deslocam e formam outras instâncias de poder e enfraquecimento pessoal. Batalhas para ter tempo: uma disputa entre o “tempo pra mim” e o tempo de “correr atrás” Não creio que eles jamais tenham a mesma sensação de lutar contra o tempo ou de terem de coordenar as atividades com uma passagem abstrata do tempo, porque seus pontos de referência são principalmente as próprias atividades, que, em geral, têm o caráter de lazer. Os acontecimentos seguem uma ordem lógica, mas não são controlados por um sistema abstrato, não havendo pontos de referência autônomos aos quais as atividades devem se conformar com precisão. Os Nuer têm sorte (Evans-Pritchard, 1978, p. 116).
Quando Evans-Pritchard (1978) discorre sobre o tempo entre os Nuer, ele oferece outra noção do tempo até então ignorada na literatura antropológica. O tempo adquire sentido a partir das relações interpessoais, com o entorno, nos acontecimentos e nas atividades cotidianas, de modo que o autor declara em um tom quase libertário: “Os Nuer têm sorte”. Decorre daí que, já em EvansPritchard, o tempo é concreto, imanente e processual, ao invés de um contínuo linear, homogêneo e arbitrário (Gell, 2014). Com este deslocamento, vemos que o tempo – essa política imanente do poder – envolve negociações mútuas e disposições diferenciadas de habitar o mundo. Em outra perspectiva, Adriana Vianna analisa o “trabalho exercido sobre e no tempo” (Vianna, 2015, p. 411). Vianna demonstra como o “tempo familiar”, aquele que diz respeito a luta de mulheres e familiares que tiveram seus filhos assassinados por agentes de Estado, é diferenciado do tempo “da luta”, aquele relativo de matrimônio e os cânones em torno da sexualidade, a rigor, a exegese feita por Rubin, quer refletir em torno da opressão das mulheres e sobre a centralidade da heterossexualidade objetivada na formulação das teorias de Lévi-Strauss e Freud (Rubin, 1986).
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a burocracia, as audiências, aos julgamentos e outros elementos marcadores de um tempo institucional, engessado e constituído por uma ordem de poder dotada de um ritmo distinto (Vianna, 2015). É justamente no dia a dia da luta destes familiares que ambas as temporalidades colidem e exprimem conflitos diversos, uma vez que o tempo familiar não corresponde ao tempo “da Justiça”. Estas distintas considerações e experiências sobre o tempo, nos ajudam a pensar nos enunciados ouvidos durante a pesquisa, falas cruciais para pensar nas batalhas entre distintas temporalidades. Na primeira sentença, “criança toma tempo”, a criança aparece como um gargalo do tempo. Este tempo “tomado”, cheio de materialidade e substância, por sua vez, parece ser invisível e difícil de ser mensurado. Vemos que o tempo do cuidado é obscurecido de diversas maneiras, sobretudo, quando é contrastado com outras atividades consideradas como trabalho “de verdade”. A segunda sentença, “criança prende”, marca a relação do tempo com o território de existência, indicando que as obrigações com as crianças demandam atenções reiteradas semelhantes a uma “prisão”, caso não sejam partilhadas com uma rede de ajudas significativa. Finalmente, “ter que cuidar”, é outra fala que remete não apenas ao plano pragmático do fazer, mas implica na produção de subjetividades, no fato dos sujeitos se pensarem enquanto “mães” ou “pais”, nos constrangimentos específicos e nos desdobramentos diferenciados que cada uma destas posições implica. A trajetória de Débora e Marcio evidenciam, portanto que estas categorias não são neutras e circunscrevem os sujeitos em cartografias de mobilidade social completamente diferenciadas. Diante do exposto, podemos compreender porque ao longo de sete anos, Marcio consegue finalizar uma faculdade e se estruturar em dois empregos, enquanto Débora permanece sem qualificação profissional vivendo de forma precária e se vê compelida a ter que abrir mão da presença cotidiana com seu filho. Nesta linha, outros tempos surgem como alvo de disputa e apropriação. Assim, o “tempo pra mim” significa a possibilidade de tornar-se outros, mas não os outros implicados integralmente nas relações de cuidado, em laços fortes de dependência ou assujeitamento. Trata-se de tentar garantir uma autonomia não individualista, em coexistência com a interdependência necessária para se manter no mundo, dando conta dos outros e de si.
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A luz destas considerações, vemos que o tempo é um dos marcadores fundamentais para avaliar as situações de desigualdade de gênero. Nas trajetórias narradas aqui, estamos diante de tempos generificados, uma batalha intensa entre o tempo processual e cíclico, contra o tempo linear da lógica formal. Este fato revela um dos maiores prejuízos femininos; que diz respeito a forma assimétrica na qual mulheres se engajam nos cuidados das crianças em relação aos homens. Para ressaltar o caráter laboral dos cuidados, boa parte da economia neoclássica formulou que estes se tratam de trabalho “reprodutivo”. Porém, como explica Florence Weber, o binômio produção\reprodução classifica o trabalho doméstico – domínio englobante dos cuidados – como aquele que não gera “valor de mercado” (Weber, 2005). Não gerar “valor de mercado” é uma das características para denominar aquilo que tem (e do que não tem) caráter mercantil, em um raciocínio próprio da premissa utilitarista nas ciências econômicas (Caillé, 1998). Assim, Florence Weber enfatiza que o binômio produtivo\reprodutivo é insuficiente para capturar a dimensão dos cuidados no contexto das relações contemporâneas. A mesma lógica se aplica ao universo de importâncias de certas zonas de trabalho, trabalhar “fora” de casa possui maior valor social e econômico do que cuidar, atividade que muitas vezes se passa “dentro”. Apesar do relativo reconhecimento em relação a carga mental, emocional e laboral do trabalho de “dentro”, são as atividades de “fora” que adquirem maior visibilidade. Portanto, as atividades de “fora” sem dúvida alguma, são consideradas como “trabalho”, porém as atividades de cuidados lutam para ser reconhecidas e se legitimar enquanto tal.15 Assim sendo, ao olhar para os tempos dos homens e os tempos das mulheres no lidar com o tempo da criança, rejeito o binômio trabalho reprodutivo/produtivo, utilizado comumente nas Ciências Humanas, no sentido de que é o cuidado da criança que rouba tempo do trabalho “fora”, aquele que conforme a premissa capitalista, “agrega valor”. É por este aspecto que o tempo de “ficar com” a criança é considerado como um tempo “gasto”. De maneira similar, o tempo que a criança “toma” não é facilmente quantificado pelas múltiplas Sobre trabalho feminino e cuidado de crianças ver os trabalhos de Bila Sorj (2013, 2014). 15
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formas de enquadramento social, a exemplo das batalhas na justiça nas quais nosso ordenamento jurídico, ancorados em valores masculinistas, ignora este elemento como digno de valoração e contabilidade nas disputas por pensão alimentícia. Entretanto, se este tempo não é calculado, nem levado em conta nos principais mecanismos legais e institucionais de disputa, podemos dizer que o tempo “gasto” é quase sempre qualificado, basta olhar com a devida atenção para as narrativas em torno do “sacrifício” feminino e da “moral”, categoria esta que exprime os ganhos de autoridade e reconhecimento derivados do tempo dispensado nos cuidados. Assim, considerando que existem diferentes perspectivas sobre o tempo em disputa, podemos entender que a experiência do cuidado das crianças aponta para a criação de três tempos distintos. O tempo de “correr atrás”, expresso na realização do trabalho fora de casa, que também pode ser realizado dentro, conforme cada situação. O “tempo pra mim” que consiste na diversão, no cuidado de si e no investimento pessoal. E o “tempo para os outros” que diz respeito aos cuidados das crianças, doentes e velhos.16 É, portanto, na perspectiva da realização dos cuidados que se estabelece um divisor: “tempo para o outro” e “tempo para mim”, quando de fato se trata de um trinômio de fundo. A luta das mulheres ocorre na tentativa de garantir mobilidade para “correr atrás”, na balança entre o “tempo pra mim” e o “tempo para o outro”. Em outros relatos desta pesquisa, observei como no campo do lazer e dos estudos noturnos, as mulheres têm mais dificuldade em se afastar das crianças, em estabelecer legitimidade para deixar seus filhos com outras pessoas e se distanciar do “tempo para os outros”. Nesse aspecto, as redes de ajudas parecem ser mais aprazíveis com os homens, até porque estes possuem os seus circuitos de lazer estabilizados, a exemplo da cerveja no bar, do futebol nos finais de semana ou mesmo dos trabalhos noturnos. Os homens parecem ter o “tempo pra mim” dado de antemão e definido a priori. Portanto, são as mulheres que Atividade que mistura trabalho e amor, embora não seja feito somente de lazer e prazer, uma vez que o campo dos cuidados é um território feito de ambivalências, que conjuga doação e obrigação, vontade e repulsa, afeto e hesitações. Sobre tais ambivalências ver também a coletânea: “Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care”, organizada por Helena Hirata e Nadya Araujo Guimarães (2012). 16
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devem lutar através de inúmeros gestos o afastamento do “tempo para os outros” afim de garantir alguma autonomia. Portanto, batalhas sobre o cuidado dizem muito sobre forças de apropriação do tempo. De acordo com Marcio, o “escândalo” e a consequente reconfiguração dos cuidados de Pedro ocorrem quando uma mulher “cansa de ser mãe”. Toda a trajetória de Débora reivindica o compartilhamento dos cuidados e busca em diversos momentos um padrão mais colaborativo e mutualizado. A decisão de Débora em deixar seu filho com os parentes foi tomada após um longo processo de muito esforço, reflexão e sacrifício. Esta decisão é produzida em meio a angústias e hesitações, mas também como um gesto de força que visa garantir usos do tempo menos assimétricos, que possam por sua vez lhe proporcionar outros territórios de existência. Não se trata de uma chamada ao igualitarismo moderno, mas de uma batalha pela sobrevivência na tentativa de expandir habilidades que vão além da carga cultural compulsória dos cuidados maternos.17 Gestos como estes nos convidam a refletir sobre a desconstrução do cânone da maternidade que se atualizam a todo momento a partir de diversos discursos que apelam a presença ostensiva de Debora no cuidado de seu filho. Ainda que na maioria das vezes mulheres deixem seus filhos com outras mulheres, o que reifica a permanência do feminino no cuidado, ao lado de configurações familiares onde crianças (meninas e meninos), avós (homens e mulheres) e padrastos podem se acoplar na tarefa do “ficar com”. Contudo, essa cessão não deixa de questionar radicalmente uma premissa na qual, cuidados estão associados essencialmente ao feminino e de onde a maternidade figura como potente apanágio destes cuidados. Gestos de partilha são fortes porque abalam a um só tempo a obrigação que vincula mulheres mães aos cuidados de crianças. Ao pesquisar homens operários, Oliver Schwartz (1990) sugere que o desejo masculino de retirada e fuga das obrigações familiares se dá mediante a busca de uma vida mais leve, sem o peso Ressalto que neste artigo me detive sobre o aspecto da generificação do tempo do cuidado, entretanto na tese de doutorado (Fernandes, 2017), analiso o “abandono” materno sobre outras perspectivas, a exemplo da discussão sobre maternidade negada e condições de exercício da parentalidade em contextos e sujeitos racializados. 17
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de ter que corresponder às expectativas de parentesco. Em nosso caso, a “distância” de Marcio, pode ser lida como uma das formas de alívio das exigências impostas pelas obrigações dos cuidados. Desta maneira, podemos entender que a “ausência” permite uma face menos cruel do cotidiano das normas domésticas. Assim, é possível se conectar a outras temporalidades, tomar os “tempos pra mim”, se desprender das “prisões” instauradas pelas crianças, habitar territórios de existência menos árduos e mais próximos das exigências de manutenção das casas, do pagamento de dívidas e das rotinas de trabalho e lazer. É possível se distanciar do “tempo para os outros” e se engajar de forma menos compulsória no cuidado de outrem. Desta forma, um lugar mais confortável é possível, tendo em vista à densa territorialização que a existência da criança instaura e na qual as mulheres são aquelas que mais encontram dificuldades para encontrar mobilidade e autonomia. Portanto, distância é desterritorialização, ainda que para isto seja preciso conviver com o estigma da “ausência”, algo ruim para os homens, mas no fundo, tolerado socialmente. Quando consideramos o estado de consumo destas energias, podemos entender a lógica da “distância” e os gestos de partilha dos cuidados. Por outro lado, é necessário considerar o campo dos afetos, alegrias e sentimentos que as crianças emulam, bem como o pragmatismo da “necessidade”, o fato de que “a criança precisa”, pois, é a partir desses sentidos que a chamada às proximidades se realiza, e as expectativas em torno destas podem ser compreendidas, tanto no dinheiro, na atenção ou na provisão de coisas, pois em se tratando de cuidados é quase impossível dissociar aquilo que importa menos ou mais. Ao tratar das relações dos antropólogos com seus interlocutores, Johannes Fabian (2013) forja a ideia de uma “negação da coetanidade”, relativa a forma como a produção do conhecimento antropológico teria se estabelecido sob uma condição assimétrica na relação dos pesquisadores e seus “nativos”. A partir de diversas estratégias discursivas e métodos de pesquisa, os antropólogos teriam congelado seus sujeitos de pesquisa em uma temporalidade remota e passada. Deste procedimento, derivaram termos tais como, “primitivos”, “selvagens” ou “arcaicos”, categorias que neutralizam a dimensão cultural política e histórica da experiência dos outros. Ao negar aos seus “outros” a “coetanidade” – a participação plena do tempo presente – nega-se que o tipo de conhecimento estabelecido
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entre o antropólogo e seus interlocutores só foi possível de ser arquitetado mediante a total participação dos interlocutores no processo de construção deste conhecimento. Nestes termos, podemos pensar um deslocamento para a questão desenvolvida aqui, na qual um tipo de maternidade foi influenciada e marcada pela “ausência” e “distância” dos outros. A negação da “coetanidade” das experiências do cuidado só é possível de ser realizada por meio de uma representação congelada do trabalho feminino, preso ao mito da mãe sacrificial, sempre paciente e presente, aquela que tudo deve dar e nada receber, em uma profunda negação do espírito da dádiva, “rocha” das relações humanas (Mauss, 2003). Histórias como a de Débora permitem afirmar que a partilha do cuidado dos filhos com os outros se trata de um mecanismo contraditório e conflituoso de acesso à mobilidade. Tal forma de usurpação do tempo alheio é legitimadora de injustiças e reprodutora de profundas desigualdades. Se o gênero se constitui nas relacionalidades, podemos compreender que a maternidade também é relacional ao exercício da paternidade que é empreendido. Tal maternidade está portanto, mediada pela força desta “ausência”, impelida pela “distância” e atrelada aos encargos compulsórios do cuidado. A prática masculina da “distância” repousa, portanto, na ideia de que o tempo feminino é um bem ilimitado, uma fonte de recursos disponível ao extrativismo predatório. Um território corporal e temporal a ser explorado, tal qual no mapa de Haggard analisado por Anne MacClintock (2010). Assim sendo, podemos afirmar que a prática da “distância” extrai o tempo dos outros, usurpando um recurso não quantificado nos mecanismos institucionais de reconhecimento do trabalho. O tempo feminino do cuidado é um elemento barateado e usurpado, fato que constrange mulheres a um tipo de maternidade ostensiva atravessada pelas inúmeras tensões deixadas pela “ausência” masculina.
Escritas lésbicas, construções afetivas: uma análise do boletim Um Outro Olhar Carolina Maia1 A questão do dizer é crucial na experiência de gays e lésbicas. É preciso revelar que se é homossexual? Quando fazê-lo? O problema reside sempre em saber para quais pessoas é aconselhável falar. Esta possibilidade de falar oferece, em primeiro lugar, o encontro com outros homossexuais. Trata-se de poder ser o que se é sem escondê-lo, ainda que seja apenas por algumas horas por semana e com um número seleto de pessoas. Esta é a função que cumpriram sempre os bares, os clubes e as associações [de homossexuais] (Eribon, 2008, pp. 79-80).
Se inicio este artigo com palavras alheias, em vez de minhas, em parte é porque o tom de cuidado com o que – e para quem – se revela esteve sempre implícito no campo que pretendo discutir. Neste caso, é mais prudente falar com (ou a partir de) quem, de alguma maneira, já disse. Trato aqui de palavras que foram provocadas, habilitadas, por outras: as escritas de mulheres que, tendo tido contato com as publicações impressas de um grupo lésbico de São Paulo na virada da década de 1990, encontraram na circulação destes materiais um espaço seguro para compartilhar suas próprias reflexões sobre seus interesses sexuais e afetivos (e, é importante notar, também políticos) por outras mulheres. Parto de um conjunto de textos publicados no boletim Um Outro Olhar, publicação periódica lésbica que circulou entre os anos de 1987 e 1994, distribuída por correio para leitoras, em diferentes cidades e estados brasileiros, e também remetida para grupos de ativistas lésbicas, feministas e homossexuais no exterior. Tomo tais materiais como parte de um “arquivo de sentimentos”, proposta de Ann Cvetkovitch (2008) em seu livro An archive of feelings, em que a autora sustenta que produções culturais (tais como periódicos impressos, músicas, filmes, performances e registros pessoais depositados em arquivos LGBT, como os existentes nos Carolina Maia é doutora do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1
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Estados Unidos) realizadas por gays e lésbicas são o repositório de muitas experiências de dor e violência, além de documentarem as respostas, criativas e públicas, a elas. Deste arquivo, seleciono um tipo especial de documento, as narrativas pessoais, para refletir sobre as formas com que as participantes do grupo elaboravam naquelas páginas suas próprias experiências sexuais e afetivas com outras mulheres. Estas narrativas, acredito, ajudavam a inserir no campo de possibilidades (Velho, 1994) das demais leitoras este tipo de vínculo homoerótico; mais do que isso, é possível dizer que estes textos participam da construção coletiva de modelos e ideais para estes relacionamentos – ou, dito de outra forma, há aí uma espécie de “pedagogia sentimental”. Antes de passar à discussão propriamente dita, cabe caracterizar brevemente o periódico e situar o grupo que o produzia.2 O Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF) surgiu em São Paulo em 1981, como uma espécie de sucessor do grupo Lésbico-Feminista ou apenas LF, apontado na historiografia do movimento LGBT brasileiro como o primeiro grupo organizado unicamente por lésbicas no país (Cf., por exemplo, MacRae, 1990; Simões & Facchini, 2009). Uma das principais atividades do GALF foi a produção do boletim ChanaComChana, uma espécie de fanzine (composto com máquina de escrever e colagem, reproduzido em offset) que circulou entre 1982 e 1986 e que constitui o veículo mais estudado da imprensa lésbica brasileira (Maia, 2017). Em 1987, a linguagem escrachada do Chana, característica da imprensa alternativa surgida nos anos finais da ditadura militar, é deixada de lado e o GALF substitui seu carrochefe por um novo título, o boletim Um Outro Olhar, esteticamente semelhante ao seu antecessor (em especial em seus primeiros números, posteriormente adotando composição em computador), fotocopiado em tamanho A4. Em sua terceira edição, um espécie de editorial descreve as expectativas que as ativistas responsáveis por sua publicação depositavam na circulação do material: Queremos que esta nova publicação transpareça nossa visão cada vez mais límpida de que as vivências lésbicas extrapolam em muito as relações sexuais, determinando, por um lado, uma postura de resistência ao papel limitante que nos é imposto pela sociedade
Em minha dissertação (Maia, 2017), abordo a história do grupo mais alongadamente, descrevendo em maior detalhe suas publicações impressas e sua circulação. 2
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machista e, por outro lado, possibilitando alternativas de vida mais gratificantes, em vários aspectos, para todas as mulheres. Queremos também que nossa publicação espelhe o jeito muito especial que as lésbicas têm de se olhar, numa mistura de cumplicidade e desejo, onde os papéis de sujeito e objeto são perfeitamente intercambiáveis. Finalmente, queremos que UM OUTRO OLHAR possa trazer de fato novas maneiras de ver não só as relações entre mulheres, em todos os níveis, como também, mais precisamente, o próprio “ser mulher” nesta nossa patriarcalíssima sociedade brasileira, buscando auto-imagens mais positivas e perspectivas mais amplas em todas as direções (Um Outro Olhar, n. 3, 1987, p. 3).
Ao longo de sete anos de publicação com periodicidade irregular (reflexo da atuação voluntária de praticamente todas as participantes do grupo), os 21 números de Um Outro Olhar eram produzidos a partir das colaborações de suas leitoras e da contribuição de ativistas de grupos lésbicos, feministas e homossexuais de diferentes países. O boletim, assim, é também uma forma de apresentação do grupo que o produzia, seus posicionamentos e atividades, para outros grupos, bem como de trazer para suas leitoras o conteúdo das publicações e ações que outras ativistas produziam; os conteúdos de Um Outro Olhar frequentemente se destinam também a registrar, manter e construir a memória do movimento lésbico no Brasil – ou, mais especificamente, do GALF e da Rede de Informação Lésbica Um Outro Olhar, nome adotado pelo coletivo em 1990. A mudança de nome é acompanhada por alterações na forma de financiamento do grupo e, também, na forma de oferecimento do periódico, inicialmente comercializado através de assinatura. A Rede funcionava através do formato de associação, sustentada através do pagamento de uma taxa fixa, que dava acesso a um conjunto de serviços (tais como cópias dos livros e periódicos da biblioteca do grupo e à sua agenda de eventos), que incluía o próprio recebimento do boletim – uma forma de informar às cerca de cem associadas, por exemplo, quais eram as novas publicações recebidas pelo grupo ou a lista de interessadas em correspondências para “transa, amizade ou namoro” e seus endereços postais. Assim, para além das informações mais diretamente ligadas ao ativismo organizado, as seções de cartas das leitoras e de anúncios para troca de cartas fomentavam o estabelecimento de contatos entre mulheres interessadas em conversar com outras cujo interesse erótico,
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afetivo e político voltava-se também para mulheres. O boletim também servia de espaço para que estas mulheres compartilhassem reflexões suas (ou sua criatividade artística, na forma de poemas e desenhos) em um diálogo simultaneamente íntimo e relativamente público – íntimo pelos tópicos e formas de narrar, público porque exposto a um número desconhecido de leitoras, das quais tudo que se podia presumir é que teriam no mínimo algum interesse em, e idealmente uma identificação com, as experiências divididas através da escrita. Chamados para que as associadas participassem da elaboração de conteúdos para o boletim foram frequentes ao longo de seu período de circulação. “Vivências” foi o nome dado a uma das seções do periódico, espaço para o exercício e compartilhamento de escritas de si (Foucault, 1992), seja através de narrativas elaboradas intencionalmente para serem publicadas com este fim, seja através da seleção (e eventual ficcionalização) de relatos presentes em cartas destinadas às ativistas do GALF e da Rede. Esta exortação à reflexão e à escrita por parte das associadas também se traduz na diversidade de gêneros textuais e registros de escrita presente ao longo das edições. Conviviam, nas páginas de Um Outro Olhar, desde pequenos poemas a longos ensaios informados por leituras de diversos livros vindos do exterior, de cartas coloquiais e afetuosas a secas reproduções de matérias de jornais e revistas de grande circulação comercial. O periódico se afigura, então, como um grande conjunto de colagens (inclusive literalmente, dadas as características artesanais de sua produção, em especial das edições realizadas nos anos 1980), um pout-pourri polifônico, para usar a expressão de James Clifford (2017) em sua discussão sobre a escrita etnográfica pós-moderna. Nos boletins que analisei, estão presentes transcrições diretas (mantendo sua estrutura original e inclusive erros de grafia, segundo as organizadoras do material) de relatos enviados por correio, publicação de missivas aparentemente na íntegra (mantendo trechos destinados diretamente a uma ou outra das integrantes do GALF e da Rede, envolvidas com a produção do boletim), reprodução de notícias e reportagens de outros veículos não necessariamente acompanhadas de alguma reflexão por escrito do grupo, opiniões discordantes (também como incitação ao debate). Desta forma, mesmo que as responsáveis pela definição do que seria publicado (ou não) em cada edição exercessem um papel determinante sobre o conteúdo através dessa atividade de seleção,
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diferentes vozes emergem – reconhecíveis, pessoais, diferentes entre si – da leitura desses periódicos. A citação de Didier Eribon que abre este artigo permite pensar em algumas razões para o engajamento em diálogos tecidos através da circulação deste boletim. Como é possível ver a partir de alguns trechos de cartas que reproduzo a seguir, a revelação da homossexualidade carrega consigo a ameaça de possíveis consequências negativas. Mason (2002, p. 81) argumenta que o autogerenciamento da visibilidade enquanto homossexual atravessa todas as negociações que gays e lésbicas realizam de forma a minimizar os potenciais riscos de agressão e ameaça homofóbica, de maneira que “a decisão de sair do armário para outras pessoas frequentemente envolve uma avaliação cuidadosa (ainda que algumas vezes espontânea) das prováveis recompensas e repercussões possíveis”. Tal avaliação pode envolver buscar ser reconhecível como lésbica apenas por mulheres com quem uma ligação sexual e afetiva é compreendida como possível; fazer confidências a uma amiga e não a outra; enfrentar a família mas ocultar a homossexualidade no ambiente de trabalho; ou mesmo buscar ser assumida em todos estes âmbitos e, ainda assim, gerenciar a própria visibilidade (ou, dito de outra forma, policiar os próprios gestos, posturas e ações que possam ter um efeito de visibilização) em contextos em que há uma percepção de possível ameaça de violência. Ainda de acordo com Mason, portanto,
Em resumo, o armário é um lugar contraditório e instável. Não somente é necessário repetir continuamente o ato de “sair do armário” para realmente “ser assumido(a)”, mas, como Butler (1991)3 anota, o que significa ser assumido em qualquer dado momento inevitavelmente depende do que significa ser enrustido. Assim, ninguém pode estar completamente dentro ou completamente fora do armário (Mason, 2002, pp. 82-83, tradução minha).
A circulação restrita de Um Outro Olhar (fora ativistas ligadas aos movimentos feminista e homossexual, o periódico era
A autora faz referência ao seguinte trabalho da filósofa: Butler, Judith. 1991. “Imitation and gender insubordination”. In: Diana Fuss (ed.), Inside/Out: Lesbian Theories, Gay Theories, New York: Routledge. 3
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enviado apenas para as cerca de cem associadas ao grupo), aliada à possibilidade de colaboração anônima, diminuía os possíveis riscos associados à visibilização da própria homossexualidade. Desta maneira, a comunicação com o grupo responsável pela produção do boletim (através da correspondência exclusiva com estas ativistas) ou com as demais associadas a este (por exemplo, através da publicação de um artigo no periódico) oferecia a possibilidade de discussão e troca de reflexões acerca de desejos e experiências homoeróticas entre mulheres (e mesmo para pedir ajuda para compreender o que tais desejos e experiências seriam), um espaço para compartilhar suas histórias e construir relações nas quais seria possível conversar sem maiores preocupações sobre envolvimentos sexuais e afetivos com outras mulheres. Experimentei a dor que corroía a alma. Uso palavras fortes não por exagero, mas para tentar dizer da dor que experimentei. Além da dor da perda de alguém tão caro, sofri na pele todo estrago e danos que o preconceito é capaz. Eu era ainda uma menina. Passei vergonha. Me fizeram sentir um ser inferior e miserável. Não tive apoio. Só o tempo me ajudou […] Nunca mais me permiti qualquer relacionamento com pessoas do meu sexo. Por receio. Porque me tranquei tornando-me tímida, inibida. Minha vida afetiva é um zero.
Trago o relato acima para refletir sobre os impactos da discriminação às parcerias homoeróticas na afetividade destas mulheres, tema abordado também nas páginas do boletim Um Outro Olhar. A partir do acervo de cartas da Rede, a ativista Luisa Granado escreve e publica no periódico o artigo Solidão e Solidariedade, que discute os efeitos da solidão e do isolamento sobre as mulheres lésbicas, apontando-os como decorrências das práticas que Mason (2002) chamaria de autogerenciamento da visibilidade da homossexualidade. Segundo Luisa, quando tantas buscavam manter sua sexualidade como segredo, e diante da carência de espaços fora do “gueto” em que fosse possível baixar a guarda do “controle estrito de palavras e gestos”, como diria Eribon (2008), afora a percebida impossibilidade de fazê-lo nos lugares de frequência mais cotidiana, a sensação de isolamento se tornava a realidade de muitas.
Temos diferenças óbvias em relação às mulheres não-lésbicas, já que todos os lugares de socialização como o local de trabalho, a escola,
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os lugares religiosos, festas, etc, são de estrutura heterossexual. Nesses lugares, a maioria das lésbicas é invisível enquanto tal, e as chances de encontrar uma companheira tornam-se mínimas. É o peso da discriminação […] Nesses anos, recebemos perto de 4000 cartas de mulheres de todo Brasil, das quais muitas, mas muitas mesmo, nos falam da solidão, não só de amores, mas também de amizades. Há uma unanimidade num ponto: todas as mulheres que nos escrevem contando da sua solidão se acham as únicas a padecer dessa dor. Cria-se um círculo vicioso, perverso (Um Outro Olhar, n. 17, 1992, p. 9).
Segundo Luisa, uma das consequências desta solidão no plano afetivo seria justamente a dificuldade de encontrar parceiras e de, neste cenário, envolver-se (e manter-se em relacionamentos) com outras mulheres que talvez não atendessem necessariamente às expectativas daquela que procurasse por um novo envolvimento: A solidão e o isolamento também levam as lésbicas a se apaixonarem pela primeira mulher que lhe dirija uma palavra de solidariedade ou lhe seja mais afável. Existem poucas chances para possibilitar a escolha num processo de amizade, paquera, namoro, até chegar a hora de decidir uma vida em comum (Um Outro Olhar, n. 17, 1992, p. 10).
A alternativa proposta para sair desse círculo vicioso, na aposta da Rede, é a construção de uma “rede de solidariedade lésbica”, com a construção de vínculos não apenas de casais de mulheres, mas entre mulheres lésbicas de maneira geral, como forma de possibilitar diálogos e o fortalecimento da luta por direitos e, em especial, por uma maior aceitação social da homossexualidade feminina. Uma das alternativas propostas para estabelecer outros canais de comunicação que vazassem os limites do próprio boletim foi a seção Troca-Cartas, onde as associadas ao grupo podiam postar anúncios pessoais à busca de “namoro, amizade ou transa”. Ressalto o fato de que Luisa Granado também menciona a queixa de carência de amizades por parte das missivistas da Rede – outra consequência da impossibilidade de falar de maneira mais aberta sobre a própria sexualidade e afetividade. Considero que, se a assim percebida necessidade de manter a visibilidade da
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homossexualidade a um nível mínimo constituía um impeditivo para que mulheres lésbicas se reconhecessem e estabelecessem contatos entre si, as discussões tecidas nas e através das páginas do boletim Um Outro Olhar (assim como poderia o ser a frequência a bares ou outros pontos de encontro de “entendidas”) podem, acredito, ser tomadas como manifestações de estratégica porosidade das portas do armário, abrindo entre elas “vasos comunicantes”, expressão cunhada por Rafael Godoi e que tomo de Natália Padovani (2015), em sua tese sobre as penitenciárias femininas. Se, como sustenta a autora, a cadeia produz relações, o “armário” também produz: é pela impossibilidade, ou mesmo dificuldade, de tecer novos vínculos com outras mulheres lésbicas em suas relações cotidianas que as associadas ao GALF/Rede faziam recurso a esta forma de contato. Para os objetivos deste artigo, interessa pensar como alguns conteúdos veiculados pelo periódico – em especial, aqueles em que suas autoras tecem reflexões sobre suas próprias experiências amorosas –, como parte deste diálogo sobre o que dificilmente se falaria em outros contextos e com outras interlocutoras, ajudam a construir um imaginário e um certo conjunto de ideais para os relacionamentos sexuais e afetivos entre mulheres. Dada a orientação política de Um Outro Olhar de buscar promover representações mais “positivas” da homossexualidade feminina, é interessante notar como a compilação de depoimentos que mencionei anteriormente, depois de treze mensagens em sua maioria “pessimistas”, se encerra com dois relatos mais alvissareiros. A penúltima carta, de Sônia, de Salvador, conta que sua família “convive bem com minha [sua] homossexualidade”. Ao contar para sua mãe, ela disse preocupar-se apenas com sua felicidade: “a minha maior surpresa foi que ela reagiu como se já convivesse com o homossexualismo há muito tempo. Meus irmãos me deram e dão muito apoio”. A última recebe o título “Final feliz”: Telma, 24 anos, conta que encontrou “a porta da liberdade começando a se romper” aos 18 anos, quando entrou na faculdade, onde conheceu Bell, por quem se apaixonou. Depois de um ano de relacionamento, compraram um apartamento e foram viver juntas; Bell acabou por romper com sua família por “não suportar mais as incoerências” e a “vontade gritante que eles tinham de nos separar”. Vida conjunta, carta conjunta: embora a narrativa toda seja escrita sob o ponto de vista de Telma, a assinatura é de ambas:
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“em 12/04/1987, fizemos 6 anos que estamos juntas, muito bem casadas e nos amando muito”. Acredito que encerrar a compilação de relatos “pessimistas” com dois relatos “bem-sucedidos” no que diz respeito à revelação da homossexualidade diga algo sobre as intenções das ativistas do GALF/Rede ao produzir o boletim. As treze primeiras cartas, em suas diversas tonalidades da tristeza ao desamparo, expõem as dificuldades vividas por algumas mulheres lésbicas e que poderiam ser também as de outras, conclamando à identificação; as duas últimas, por sua vez, dão um alento e indicam que cenários menos prejudiciais eram possíveis – como, por exemplo, através do apoio familiar, no caso de Sônia, ou mesmo através do rompimento com a família no caso de esta manter-se intolerante e intrometida, como no caso de Bell. As narrativas pessoais compartilhadas entre associadas do grupo através da circulação do boletim permitem pensar que não apenas as relações com familiares podem melhorar: a partir da reflexão sobre si, da construção da própria lesbianidade enquanto sexualidade legítima e do desenvolvimento de alguns parâmetros para a formação de parcerias, a relação com outras mulheres (e consigo mesma) também pode tornar-se mais positiva. Em suas produções textuais publicadas no boletim, as associadas ao GALF e à Rede refletem também acerca dos tipos de vinculação afetiva e sexual que vivenciam em relação a outras mulheres (ou, ao menos, as condições em que isso se dá). Para citar alguns exemplos, Mara, da Bahia, publicou um pequeno texto dedicado a uma colega de trabalho, por quem desenvolvera uma paixão platônica, chamado “A despedida”. Nele, ela conta de sua transferência para outra agência do banco em que trabalha, e sonha que, em seu último dia no posto que abandonaria, a colega se despediria dela com um beijo às escondidas (Um Outro Olhar, n. 4, 1988, p. 5). Na edição de número 5, a brasileira Ana manda uma correspondência dos Estados Unidos, lamentando seu cansaço pelo fato de envolver-se muitas vezes com mulheres que se dizem heterossexuais – o que, invariavelmente, terminava em tristeza e frustração para ela, quando suas parceiras deixavam a relação e apareciam tempos depois em algum relacionamento com um homem. A associada do GALF Cice, por sua vez, envia para publicação no boletim uma carta que começa com sua apresentação enquanto “lésbica enrustida”, dizendo que acredita que sua irmã também o seja
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– e que ambas se entendem “razoavelmente”. Na correspondência, ela narra uma experiência de insulto – em que uma cunhada acusara sua companheira de “bulacheira”, gíria pejorativa para “mulher que transa com outra” no Nordeste – que desencadeou um processo de rupturas: a amiga-amante, como Cice a denomina, queixou-se da injúria a seu marido, sargento da polícia, e este terminou por proibir o relacionamento das duas. A alagoana reflete que somente aceitou esta situação (...) pois eu não tinha o pensamento que tenho hoje. Se tivesse, não teria me deixado envolver por essa “minha amiga”. Com minha inexperiência me deixei envolver facilmente, e esse foi meu erro. Na época, ela era bem mais experiente, me conquistou e eu me apaixonei. Hoje, tenho certeza que ela não gostava de mim, pelo menos não do jeito que eu era louca por ela (Um Outro Olhar, n. 6, 1989, p. 3).
É interessante notar, aqui, a afirmação de que “se tivesse o pensamento que tem hoje, não teria se deixado envolver” por esta mulher. Dito de outra forma, a formulação de Cice parece ser a de que um certo tipo de “pensamento”, experiência ou discernimento acerca de como se dão relações entre mulheres permitiria aceder a uma forma menos danosa de relação. A insistência no par experiência/inexperiência, bem como a recapitulação de que ela própria era “inexperiente” na época, também remete a um processo de aquisição deste “pensamento” ou conhecimento acerca das relações. Na mesma edição do boletim, uma entrevista de Nani Tobi (que discuto a seguir) relata como esta, por desconhecer como se davam os relacionamentos sexuais e afetivos entre mulheres, acabou vivendo um relacionamento pautado pela “dominação”. Tanto para Cice como para Nani, a “mudança de pensamento” através do tempo e de processos reflexivos sobre a própria condição aparecem como chaves para sair de situações de desprezo, manipulação, abuso ou mesmo violência. A primeira aparição de Nani Tobi em Um Outro Olhar acontece na edição de número 3, de fevereiro/março de 1988, na seção “Troca-Cartas”. Em seu anúncio, ela se descreve como “mulata”, de 22 anos, auxiliar administrativa, cujos passatempos preferidos
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(parte da redação “padrão” dos anúncios veiculados pelo boletim4 e presente na maioria destes) são tocar violão, acampar e dançar. A redação do anúncio indica uma boa dose de reflexão sobre como seria a companheira ideal para Nani: ela diz que “quer se corresponder para transa com mulheres de 20/25 anos que já saibam exatamente o que querem da vida e saibam viver e amar, dentro dessa escolha com toda a plenitude”. Sem querer analisar excessivamente um anúncio tão curto, chamam atenção tanto o eufemismo de “dentro dessa escolha” (amar outras mulheres?) quanto o “já”, que parece pedir também um certo grau de reflexão e assertividade da própria futura correspondente. Além de ter atuado como diagramadora do periódico, Nani também publica poesias e outros textos no boletim, e participa de uma entrevista, abordando sua trajetória, suas experiências sexuais e afetivas, sua sexualidade mesmo e sua negritude. Nesses textos, ela tanto demarca suas diferenças quanto postula a uma igualdade humana a partir da qual poderia reivindicar direitos. Mais do que isso, ao narrar essas histórias e dar-lhes sentido, demonstra como saber exatamente o que se quer e também saber viver e amar em sua plenitude não são algo dado – são construções feitas a partir de experiências e “tomadas de consciência”. A Edição 6 de Um Outro Olhar, do início de 1989, trouxe dois textos na seção “Vivências”. Um deles traz a assinatura de Nani Tobi, que expõe como foi o seu processo de reconhecer desejos por outras mulheres: “há 5 anos, assumi uma opção sexual, independente de ser a melhor ou não”. No momento da escrita e publicação do texto, ela dizia enxergar seu caminho “claro” em relação a isso. “Mas”, ela continua, “este não foi o quadro que pintou quando me descobria”: Era um quadro de angústia, medo e repulsa. Não podia crer nos fatos que meu próprio desejo natural criava […] Quando estava junto das mulheres […] ligava-me a elas com uma intensidade muito maior, e era isso que, a priori, me levava à angústia. Como podia sentir tanta atração por algo tão desconhecido (até então nunca tinha visto ou ouvido falar deste tipo de relacionamento) e que não se enquadrava, em hipótese alguma, no molde “papaimamãe” que havia em minha cabeça?
Este formato já estava presente no boletim ChanaComChana, também editado pelo GALF. A seção Troca-Cartas passa a receber este nome a partir da edição nº 7 deste boletim, datada de abril de 1985. 4
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Tremenda angústia. Acabava mascarando esse desejo, por alguém tão semelhante a mim, em uma total “assexualidade”. Era melhor confundir do que assumir qualquer postura que pudesse resultar em arrependimento posterior […] Progressivamente, fui mostrando que minha escolha não significaria que tudo seria o caos, a falta de consciência das regras do bom convívio social. Seria um ser humano comum, com todos os deveres inerentes a uma cidadã e reivindicando sua parcela de privilégios, aliás, direitos mais do que merecidos […] De qualquer maneira, se teria que ser atirada “à fogueira”, então que fosse por algo que realmente protagonizei: a minha liberdade, a perda do medo de amar (Um Outro Olhar, nº 6, 1989, p. 11, grifos meus).
A narrativa de Nani neste texto traz uma sequência de experiências comum a outras escritas de tom semelhante ao longo do boletim. Como ela, outras mulheres utilizaram o periódico para narrar seus próprios processos de descoberta da homossexualidade, frequentemente atravessados por sentimentos de incompreensão (então explicados por ser algo desconhecido, fora do esperado ou comum) e negação, expressa por ela (e outras) tanto através de tentativas de apaixonar-se por homens quanto de um esforço em “mascarar” o desejo por outras mulheres sob a forma de algo mais aceitável – confusão, assexualidade. Esse desejo – como apontam Portinari (1989) e Muniz (1992), percebido como irrefreável e inescapável –, por fim, passa a ser concebido como natural, o que abre possibilidades para que Nani passe a reivindicar-se (antes disso, a compreender-se) como um “ser humano comum”, merecedora de direitos, liberdade e amor. Simões e Facchini (2009) comentam como a própria categoria de “orientação sexual”, embora indique uma concepção um tanto essencialista de sexualidade e desejo, também foi e tem sido politicamente estratégica para o movimento LGBT brasileiro, como parte da construção da legitimidade de suas pautas. Se para o movimento esta estratégia é especialmente importante na relação com o Estado e a reivindicação de direitos sociais, na narrativa de Nani a concepção do desejo homoerótico como natural – portanto, para além da intenção ou do controle do sujeito – habilita-a a reconstituir sua imagem de si mesma, de maneira a mostrar para si e para os outros que a homossexualidade não geraria o caos. Ao trazer uma certa linearidade, passando da
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descoberta à negação, à elaboração do desejo (muitas vezes através de uma paixão vivenciada com uma mulher) e por fim à defesa deste, histórias deste tipo constroem junto às leitoras a ideia de que viver a homossexualidade é possível e vale a pena, mesmo que o risco de viver a liberdade seja a ameaça de ser “mandada para a fogueira”. De maneira geral, os textos de caráter mais “pessoal”, de elaboração narrativa de experiências, têm seu centro na discussão da sexualidade, de experiências de preconceito e de uma construção de si enquanto mulher que ama outras mulheres. Salvo algumas informações biográficas consideradas necessárias como parte da apresentação da narradora e/ou para situar os contextos em que as experiências relatadas tiveram lugar, a intersecção da sexualidade com outros marcadores sociais da diferença (com exceção das implicações das hierarquias de gênero) é raramente explicitada. Discussões sobre classe são virtualmente ausentes do material analisado, e desigualdades ligadas a questões raciais aparecem geralmente ou como analogia (equiparando a discriminação sofrida por homossexuais ao racismo),5 na evocação de alianças entre grupos minoritários ou através da ideia de “tripla discriminação” sofrida por mulheres lésbicas negras, imagem que remete mais a uma noção de “adição” de marcadores sociais do que a uma constituição mútua entre gênero (e sexualidade), raça e classe, como preconiza a noção de interseccionalidade como sustentada, por exemplo, por McClintock (2010) e Viveros Vigoya (2010). A entrevista concedida por Sueli Aparecida Horácio e Nani Tobi, autoidentificadas respectivamente como negra e mulata, à edição de número 6 do boletim (1989) constitui o único momento em que questões raciais foram tomadas como centro de alguma produção textual ao longo das 21 edições de Um Outro Olhar. O recurso à realização de entrevistas – em geral envolvendo várias pessoas, e não raro conduzidas como uma conversa em que as perguntas eram quase tão longas quanto as respostas – como forma de estimular o debate sobre temas específicos que Na dissertação (Maia, 2017), menciono dois exemplos disso que chamo aqui de uso analógico do racismo. Em síntese, acredito que o recurso à analogia indica uma concepção de que o racismo já se configuraria como um tipo de preconceito mais reconhecido como tal (cabe lembrar que a Constituição Federal de 1988 veda a discriminação por cor, e que a tipificação do racismo enquanto crime ocorreu em 1990) e que, portanto, poderia ser utilizado para demonstrar como outras formas de discriminação seriam igualmente condenáveis. 5
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atravessavam as experiências de mulheres lésbicas já era uma prática do GALF desde a primeira edição do ChanaComChana. Esta forma de construção coletiva de textos aparece como mais uma forma de provocar a narração e interpretação de eventos ocorridos na vida das próprias entrevistadas, como uma forma de facilitar e fazer falar a partir da experiência. À pergunta “como você sente sua realidade enquanto negra, ou mulata, e lésbica?”, Sueli organiza sua resposta a partir de experiências de racismo e conta que sente que existe um estranhamento em relação ao fato de sua companheira ser branca e que o preconceito, “embora encoberto” e eventualmente vindo de pessoas que dizem não ser racistas, é perceptível. Nani explica que decidiu dizer-se “mulata”, que “não passa de uma nuance da cor negra”, por “ainda não saber como definir-se” após rejeitar a palavra que, em seu registro de nascimento, define sua cor – “um nome que, para mim, só serve para determinar cor de papel de embrulho: parda”. Apresento aqui um trecho, em que ela reflete sobre as concepções de outras pessoas acerca da homossexualidade e da negritude e de seu esforço em combater visões estereotipadas:
[…] quem passou por minha vida sofreu grandes modificações. Consegue, agora, olhar para uma mulher negra sem vê-la como objeto sexual. Consegue pensar em uma lésbica sem imaginar a “fancha que fecha” […] Luto, junto às pessoas que conheço e que vou conhecendo, para mostrar que sou um ser humano como outro qualquer, com todos os sentimentos inerentes a qualquer um (Um Outro Olhar, n. 6, p. 6).
A construção da identidade narrativa (Ricoeur apud Meccia, 2016) de Nani enquanto mulher, lésbica e negra é marcada pela necessidade de demarcar-se enquanto humana, habilitando-a a reivindicar direitos. Nani alinha-se ao ideário da Rede em que, dentro das possibilidades de cada uma, é importante combater “visões distorcidas” da homossexualidade, o que ela diz fazer em suas relações, questionando estereótipos como os da “fancha que fecha” – ou, dito de outra forma, a associação entre lesbianidade e apresentação de gênero “masculina” – e da mulher negra hipersexualizada. Almeida (2005) e Almeida e Heilborn (2012, p. 244), a partir de Laura Moutinho, ressaltam que a “objetificação exótica racial” enfrentada pelas lésbicas negras tem uma “dupla
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face. Ela pode estar na ‘mulata lésbica’ e, portanto, constituída nos moldes dos atributos de gênero feminino, comumente associados à mulher negra, e pode estar na ‘fancha negra’, comumente constituída nos moldes do homem negro.” Cabe notar que, ao atribuir seu próprio papel como desencadeadora desses processos de “grandes modificações” nas concepções sobre negritude e homossexualidade por parte das “pessoas que passaram em sua vida”, Nani explicita também que sua vida foi atravessada pela passagem de pessoas que, antes, tinham a “fancha que fecha” como imagem automática das lésbicas e que olhavam para mulheres negras como objetos sexuais – e a própria ideia de “objeto sexual” joga luz sobre a necessidade de Nani demarcar-se enquanto humana. Tomando tais páginas como parte de um arquivo de sentimentos, como sugere Cvetkovitch (2008), a reflexão tecida por Nani permite pensar nos efeitos da racialização do sexo e da sexualização da raça sobre a subjetividade das lésbicas negras. Nani conta ter se relacionado com uma mulher que esperava que ela, por ser negra, “agisse como a descendente de um reprodutor das senzalas do tempo do cativeiro” e “saciasse todos seus desejos de qualquer maneira”. Sua narrativa desta história conjuga tanto uma reação a esta expectativa de hipersexualização quanto o processo de construção de sua identidade sexual e a rejeição de modelos pautados pela dominação: Naquela época, ainda estava me descobrindo lésbica e me assustava essa cobrança. Ficava, a todo minuto, imaginando se todas as mulheres seriam aquela “fonte inesgotável de desejo” […] para saciar-se, ela precisava estar com uma negra e, para manter um namoro, tipo papai-mamãe, só as mulheres brancas é que serviam. Para mim, isso tem muito a ver com dominação. Ela se sentia a toda poderosa quando da companhia de negros. Quando fui me dando conta do papel ridículo que fazia ao entregar-me a seus mandos e desmandos, afastei-me, já que não sentia qualquer prazer em tê-la ao meu lado (Um Outro Olhar, n.6, 1989, p. 7).
O relato de Nani parece explicar por que aparecera, no trecho destacado anteriormente, a rejeição à hipersexualização da mulher negra e o estereótipo da “fancha que fecha”. Cabe notar, também, a percepção de uma hierarquia de poder, de uma assimetria no interior do par, que Nani elabora a partir da ideia de “dominação”. Em um
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trecho anterior da entrevista, ela comenta uma visão existente da homossexualidade como um “arremedo da heterossexualidade” e rejeita sua reprodução “por não me identificar com essa situação de dominação bem papai-mamãe que me fora apresentada. Jamais reproduziria, de livre e espontânea vontade, um relacionamento tão falho. Não seria representante de uma instituição falida” (grifos meus). Suas reflexões podem ser relacionadas aos argumentos de Viveros Vigoya (2010), autora que comenta as imbricações de regulações raciais e de gênero na América Latina, que destaca o fato de tanto o racismo quanto o sexismo operarem a partir de naturalizações de diferenças sociais, estabelecendo certos corpos como passíveis de controle. Nani rejeita simultaneamente as duas formas de “dominação”, a do modelo heterossexual e a racial. Com a afirmação de que a tal parceira via mulheres negras como inelegíveis para “manter um namoro”, papel para o qual apenas mulheres brancas serviriam, sua narrativa faz lembrar o paradoxo apontado por Laura Moutinho (2004, p. 344), no qual, “em um nível, o desejo e o sexo heterocrômico são desejáveis e, em outro nível, ao menos quanto ao casamento (e por que não dizer também o sexo e o desejo?) aparece como indesejável” na sociedade brasileira. Por fim, vale notar que Nani explicita que tal relacionamento ocorrera quando ela “ainda estava se descobrindo lésbica”, sem saber se “todas aquelas mulheres seriam 'aquela fonte inesgotável de desejo'”. Seu desconforto com as expectativas de desempenho sexual por parte da parceira ficava, então, mascarado pelo desconhecimento de como se davam as relações entre mulheres. A partir da percepção da postura “dominadora” da parceira que lhe demandava excessiva “potência sexual” e de, nessa situação, ver-se em um “papel ridículo” de ceder a seus “mandos e desmandos”, Nani finalmente se afasta. Posteriormente, ela pôde explicitar em seu anúncio que busca mulheres que “saibam viver e amar dentro dessa escolha com toda a plenitude” – a narrativa acima mostra como “saber viver e amar”, para ela, não passava pelas vias da dominação e da hierarquia. As diferentes formas de colaboração de Nani Tobi ao boletim Um Outro Olhar foram melhor descritas em minha dissertação (Maia, 2017), da qual também retiro a história de Naná Mendonça, outra associada do GALF/Rede, para pensar o compartilhamento de reflexões pessoais e a colaboração para a construção de ideais de relacionamento nas páginas do periódico. No caso desta ativista,
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uma médica pernambucana na casa dos 40 anos, é a participação constante no boletim – e a forma com que, nele, descreve passagens de sua vida – que faz com que ela ofereça, narrando, a própria trajetória amorosa como exemplo e construção de um ideal possível. A primeira aparição de Naná nas páginas de Um Outro Olhar se dá através de um anúncio pessoal na seção “Troca-Cartas”, onde se lê:
Naná Mendonça Cx. Postal 483 – Recife – PE – CEP 50000 Coloca-se à disposição para trocar correspondências com mulheres lésbicas que estejam necessitando de uma “força”, do apoio moral e do afeto de uma amiga.
O mesmo anúncio se repetiria ao longo de seis edições consecutivas, mantendo seu texto inalterado. Cabe notar como a redação desta mensagem apresenta como quase inequívoca a oferta de uma amiga – como outras ali que também manifestavam a mesma intenção de amizade, ela se diferencia daquelas que procuram, por exemplo, “uma verdadeira amizade ou talvez um futuro compromisso”, “amizade e transa”, “transa e/ou compromisso”, “compromisso […] para juntas encontrarem o amor” ou mesmo as três possibilidades. Nas edições seguintes, a participação de Naná no boletim permite acompanhar, quase como em um folhetim, sua mudança para a cidade de Ariquemes (Rondônia), onde a médica de Recife coordenaria um centro de saúde local. Na edição nº 3 de Um Outro Olhar (pp. 6-8), ela publicou o texto “Ariquemes, Rondônia – uma visão lésbica sobre um lugar distante”, em que descreveu, com seu olhar de quem vinha de fora, o estado, a cidade, seus habitantes e como a homossexualidade era encarada (e ocultada) por eles. Ela destaca como a cidade, fundada há pouco mais de uma década, vinha crescendo “incrivelmente rápido devido [à] afluência de pessoas de outros estados”, motivadas pela possibilidade de “melhora financeira para si e sua família”. Os habitantes do município são então diferenciados em seu texto a partir de sua origem, cor e educação. Por fim, o artigo acaba por estabelecer uma aproximação entre os nativos e os de fora a partir de sua baixa escolaridade e (o que ela vê como) sua consequente incompreensão de sexualidades que escapam à heteronormatividade:
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A população nativa é quase toda analfabeta e os de fora, na sua quase totalidade, são pessoas vindas de cidades do interior de outros estados e, portanto, semialfabetizadas ou com grau de instrução precário. E trazendo consigo aquela visão limitada das coisas, aquele espírito tacanho, que caracterizam as pessoas nascidas e criadas em cidades do interior. Portanto, a homossexualidade é olhada, tanto pelos habitantes nativos quanto pelos que vieram de fora, como algo distante de suas vidas (Um Outro Olhar, nº 3, 1998, p. 7).
A aventura de Naná em Ariquemes, no entanto, dura pouco – e os acontecimentos de sua vida desenrolam-se aos olhos da leitora de Um Outro Olhar quase como num folhetim. Em junho/julho de 1988, data que identifica o exemplar de número 4 do boletim, seu anúncio traz novamente um endereço do Recife. No texto “Uma experiência de vida”, escrito ainda em Ariquemes, ela faz um balanço público – dentro da intimidade possível propiciada pela circulação destes textos em um grupo relativamente conhecido – dos acontecimentos mais recentes em sua vida amorosa e explica a decisão que a levaria de volta à sua terra natal. Naná inicia sua narrativa rememorando uma conversa com uma amiga, em que contara sobre sua “perspectiva ao lado de uma companheira”, e comenta como então “não sabia que isto estava muito perto de se tornar realidade”:
Tudo começou quando, ainda em Recife, recebi uma cartinha lacônica, um bilhete, um apelo: “Preciso de uma amiga. Escrevame”. Escrevi. Respondeu-me. E daí a troca de correspondências, a troca de ideias, de experiências, de apoio mútuo, palavras amigas, força recíproca, afeto nascendo, amizade crescendo. E a pergunta: por que não nos conhecemos pessoalmente? E a resposta: sim, por que não? […] Os encontros se sucederam até que a minha realidade interior não pôde mais ser segurada e transpareceu no rosto e no olhar. Meus olhos diziam: eu te amo! E a mensagem foi compreendida (Um Outro Olhar, nº 4, p. 3).
O encontro, entretanto, foi breve. Naná logo precisou comunicar à sua amada que iria “embora, para muito longe, para o extremo norte”. Pouco tempo depois, fariam novos planos: a companheira de Naná (cujo nome não é revelado) terminaria um curso que estava fazendo e abandonaria seu cargo público
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recém conquistado, enfrentando assim o que a associada da Rede descreveria como uma “‘prova de fogo’. Seria, sim, uma prova de amor muito significativa, deixar um emprego fixo e promissor para vir fazer uma tentativa incerta e insegura ao meu lado”. Naná prossegue seu balanço, contando sobre a chegada e adaptação em Ariquemes, a satisfação com seu trabalho enquanto médica e os “acenos sedutores” de novas oportunidades em sua carreira. “Mas o aceno mais sedutor foi o chamado da terra, o apelo do amor, a saudade que se fez dobrada”, ela continua, comentando a “reviravolta do destino” que lhe ocorrera “por determinação das deusas”: seu nome constava na lista dos classificados em um concurso público que ela realizara anos antes.
Agora a prova de fogo sou eu quem tenho que dar […] Vou trocar a medicina por um trabalho burocrático e, em compensação, vou anular a distância que nos separa. Espero que ela saiba compreender e valorizar a extensão e a profundidade dessa minha renúncia […] Dando um balanço da minha vida não encontro grandes realizações, feitos brilhantes, apenas encontros feitos e ações movidas por amor. Sim, apesar da minha pobreza e mediocridade, reconheço que sempre me esforcei para que o amor lésbico, em minha vida, fosse realmente maravilhoso (Um Outro Olhar, nº 4, pp. 4-5).
Deste seu “balanço”, podemos apreender a centralidade conferida ao amor, concebido e idealizado como capaz de suportar certas “provas”, as quais podem incluir renúncias e sacrifícios.6 O tema do sacrifício pessoal como prova de amor volta a ser abordado por Naná em um conto intitulado “Coincidência??!!”, publicado na edição de número 7 do boletim:7 prestes a completar um ano de
Uma versão reeditada e resumida desta história seria publicada na edição nº 34 da revista acadêmica Feminist Review (1990), em seu dossiê sobre “lesbianismo internacional”. Em sua colaboração, vertida para o inglês por Marlene Rodrigues, Naná Mendonça descreve sua passagem por Ariquemes, o retorno a Pernambuco e a mudança motivada pela possibilidade de estar mais perto da mulher amada: “troquei meus instrumentos médicos por uma máquina calculadora. Em Rondônia eu era a chefe de um centro de saúde, aqui sou chefe de um centro de coleta de impostos. É um emprego sem aventuras ou poesia, mas paga bem”. A “prova de fogo”, aqui, implica um conjunto de renúncias e perdas ligadas à vida profissional, justificadas por uma concepção idealizada de parceria afetivo-sexual. 6
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Cabe notar que o próprio periódico figura neste conto, na cena em que Nina
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relacionamento com Ziza, Nina deixa de adquirir o volumoso – e bastante caro – tratado científico que lhe interessava, investindo os poucos recursos obtidos com a venda de seu relógio, seu toca-fitas e a coleção de obras de seu escritor preferido na compra do delicado anel de ouro que sua namorada há muito desejava. A protagonista apressa-se para chegar em casa antes da companheira, pois desejava preparar-lhe o jantar – e encontra a luz do apartamento acesa, o aroma da refeição já preenchendo o ambiente. Coincidência? As duas trocam presentes: Nina recebe o livro vermelho, com sua “capa majestosa, com as letras douradas, proclamando a natureza científica de seu conteúdo”, que Ziza havia conseguido comprar após fazer economias e vender algumas coisas suas. Não foi coincidência, avalia Nina: “quando fazemos algo por amor, principalmente se há uma certa dose de sacrifício, o amor retornará para nós de alguma forma. Acho que foi isso que aconteceu” (Um Outro Olhar, nº 7, 1989, p. 9). Além do sacrifício, o que é valorizado é a reciprocidade: enquanto a leitora acompanha as personagens adiando o contato com o jantar já pronto e, em vez disso, dirigindo-se ao quarto e apagando a luz, as letras contidas na página ajudam a construir um ideal de relação entre mulheres. É interessante notar como esta história, embora fictícia, articula questões também presentes nas reflexões de Naná sobre sua própria vida. Heilborn (2004) comenta como a afetividade é valorizada no interior de parcerias homocorporais femininas, para usar sua expressão; aspecto também comentado por Meinerz (2011). Muniz (1992, p. 146), em sua dissertação sobre a indizibilidade das relações entre mulheres, comenta como os discursos acerca da homossexualidade feminina – incluindo aqueles formulados por suas interlocutoras – frequentemente coloca o amor entre mulheres como “excessivo, mais do que profundo, transbordante, irresistível e delirante […] como uma espécie de paixão que não reconhece limites”. Esquivando-se da associação entre afetividade e feminilidade, e da “aura romântica” que “universo feminino empresta” ao amor (p. 147), esta autora comenta como o excesso pode agir como forma de tornar inteligível um tipo de ligação – vai à casa de Ziza pela primeira vez. A visão do “boletim do grupo” desencadeia a compreensão de que ambas se interessavam por mulheres, tornando o romance possível.
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afetiva, sexual –, que de outra forma seria tido como inviável, por desviar-se das gramáticas sexuais e afetivas da heterossexualidade. A intensidade do sentimento legitima-o, torna-o real, maior do que a paixão, em contextos em que este desejo, combatido e negado pelas pressões e violências da heteronormatividade, pode parecer estar aquém ou além de configurar-se enquanto amor – “um tipo de amor que captura, convence, vicia e do qual não se pode fugir mas, ao contrário, deve-se assumi-lo contra tudo e contra todos” (p. 160). É a chave do amor que explica as decisões tomadas por Naná: nas frases que encerram seu balanço pessoal, as “ações movidas por amor” estão acima das “grandes realizações e feitos brilhantes”. Discutindo a construção de narrativas em e a partir de entrevistas, Gialdino (2016, p. 17, tradução minha) comenta como a narração é uma “atividade social e um meio fundamental de dar sentido e forma à experiência”. Ao narrar, os sujeitos têm a “oportunidade de ordenar acontecimentos antes desconexos, e criar continuidades entre os distintos momentos biográficos”. A autora, no prólogo a uma pesquisa de Ernesto Meccia, refere-se especificamente a narrativas e narrações elaboradas em relação a momentos mais distantes no passado, mas acredito que tal passagem sirva para pensar o relato de Naná: na narrativa, o novo relacionamento estabelece uma conexão entre Ariquemes e Recife, justificando o retorno. Meccia ressalta como as narrativas sempre envolvem uma dimensão valorativa, atrelada às interpretações que permitem compreender o mundo, as relações com as outras pessoas e a própria experiência: “sem valor não há narração, contamos para dar nossa posição acerca de algo, estejamos ou não conscientes disso” (2016, p. 41). O narrador também se constrói no narrado: narra e acredita no que narra como se assim houvesse sido; dá provas de ser o que narra e espera ser compreendido como tal. Naná narra a si mesma e se constrói nesta narrativa, nela construindo as interpretações que ordenam a elaboração que ela faz de sua própria história. Seu “balanço” é, ao mesmo tempo, uma despedida de Rondônia, um pequeno memorial da satisfação que ela teve ao desempenhar a função de médica e coordenadora em uma região “carente”, e um posicionamento valorativo que coloca como positiva a decisão de renunciar a algo em nome do amor por outra mulher. Em um texto na seção “Vivências” da 6ª edição do periódico (1989), o amor correspondido e realizado com outra mulher torna
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possível dispensar mesmo os grandes investimentos reflexivos na compreensão da própria sexualidade:
[…] comecei a compreender meus sentimentos e a me descobrir como lésbica. Comecei também a tentar explicar, a mim mesma, o porquê dessa diferença, as razões de eu não ser como as demais mulheres. Li muito, estudei muito, quebrei a cabeça, queimei as pestanas. Atualmente, teorias jogadas por terra, livros esquecidos nas prateleiras, cabeça consertada, pestanas dedicadas exclusivamente a dar beijos de borboleta na namorada, sinto-me livre e leve, caminhando […] o caminho de quem descobre que seu amor, sua ternura, seu carinho são sempre por uma pessoa do sexo feminino, não importando o porquê, mas apenas o fato. Um caminho onde a mulher pode realizar-se integralmente, em todos os aspectos da vida, não só profissional, econômico e cultural, mas também emocional e sexual, sem girar sua vida em torno de uma figura masculina. Um caminho onde a mulher anda lado a lado com outra mulher, tentando construir, com ela, um mundo mais humano, um mundo de amor. sem ódios e sem guerras. Presentemente, vou andando por esse caminho, livre e leve, com minha namorada e a proteção da Deusa (Um Outro Olhar, nº6, 1989, pp. 14-15).
A “diferença” que Naná sente em relação às “demais mulheres” aparece no texto apenas depois ela introduz a descoberta do “lesbianismo”. Interessantemente, essa “diferença”, depois de elaborada como subjetividade e como identidade, como aponta Brah (2006), deixa de requerer um intenso esforço de explicação, abrindo as portas para um caminho “livre e leve” que será idealmente trilhado com uma companheira ao lado. Ao elaborar (e apresentar) sua própria experiência nesta narrativa, textos como os discutidos neste artigo ajudam a colocar os relacionamentos entre mulheres como algo realizável – ou, como já indicado, a inserir a realização deste desejo de conjugalidade, de amor correspondido (e passível de ser vivido) entre mulheres, no campo de possibilidades (Velho, 1994) das leitoras do periódico. Meccia (2016) destaca que a dimensão valorativa do relato, a avaliação do vivido, é uma parte indissociável da produção de narrativas – é o que faz com que o sujeito dê sentido às experiências que o constituem. No caso dos textos de Cice, Nani Tobi e Naná Mendonça, o compartilhar das reflexões tecidas na narração
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acerca dos próprios envolvimentos sexuais e afetivos com outras mulheres, atuais e os passados, faz circular visões sobre afetividades entre mulheres. Cabe resgatar uma última vez parte da entrevista de Nani Tobi, na qual a ativista relata a confusão que vivenciara ao começar a perceber suas inclinações em relação a outras mulheres, por não conseguir enquadrar tais desejos no “modelo papai-mamãe” que conhecia até então; em sua circulação através da reprodução do periódico, a elaboração que Nani faz de suas experiências posteriores, sua manifestação de rejeição à “dominação” constitutiva dos “modelos falhos” da heteronormatividade e do racismo, podem ser vistos não só como reflexão pessoal, mas também como parte da construção de ideais de relacionamento calcados em modelos mais igualitários. Se, como dito no início deste artigo, uma das propostas do boletim Um Outro Olhar era “trazer de fato novas maneiras de ver as relações entre mulheres”, acredito ser possível dizer que estas “novas maneiras” iam sendo construídas coletivamente entre as escritoras e leitoras do grupo, a cada nova publicação. Para encerrar, retomo o argumento de Cvetkovitch (2008): nem só de dor e discriminação são feitos os “arquivos de sentimentos” que documentam as vidas de gays e lésbicas ao longo do século XX. Eles também guardam memórias de resistência e criatividade – como na construção de novas afetividades possíveis frente à recusa (ou mesmo impossibilidade) de participação nos modelos ditados pelos ideais heteronormativos, recolocando os valores do amor romântico em novos, talvez imprevistos termos.
Em meio a sonhos e normas: amor, família e futuro entre três mulheres trans/travestis Introdução
Oswaldo Zampiroli1
Quando comecei a fazer a etnografia de mestrado, no início do meu trabalho de campo, “amor” não era uma categoria que imaginei que pesquisaria. Meu olhar, que a princípio buscava compreender a prostituição, acabou se dedicando a entender a centralidade que amor e conjugalidade tinham entre minhas interlocutoras. Neste artigo, apresento um pouco a maneira como “amor” foi aparecendo durante a pesquisa de campo e como este sentimento persegue determinadas normatividades, enseja modos de vida e cria papéis sociais. Desse modo, poderemos compreender como a categoria “sonho” passa a se relacionar com “amor” e como ambas se entrelaçam numa perspectiva de futuro. Para tal, é necessário apresentar algumas das personagens que dão vida a esta pesquisa. Alice, Donatela e Ana2 têm em comum a experiência de terem se prostituído por um tempo em suas vidas. Alice “batalhou” durante três anos, entre 2005 e 2008. Hoje, com 36 anos de idade, consegue manter sua vida trabalhando como atriz. Já Donatela e Ana seguem trabalhando como garotas de programa, pois não acreditam que há espaço para elas no mercado formal e, ademais, conseguiram rápida ascensão social (do ponto de vista do poder de consumo) como prostitutas. Já no que diz respeito às suas identificações, há uma diferença fortemente marcada pela faixa etária. Donatela, com 32 anos, e Alice, 36 anos, se identificam como travestis. Ana, 22 anos, como mulher transexual. Outro ponto que faz convergir as experiências das três mulheres num espectro parecido de vivências e afetos, mesmo face à diferença etária, é o fato de que todas elas percebem e vivem seus relacionamentos amorosos de maneira muito análoga. Isto é, colocam-se como românticas e buscam relações monogâmicas com Oswaldo Zampiroli é doutorando do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1 2
Todos os nomes são fictícios, a fim de preservar a identidade de cada uma delas.
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homens “cisgêneros”.3 Nas conversas que tive com elas, sempre me eram narradas as histórias dos “grandes amores” que viveram, dos homens que as decepcionaram e das dificuldades em encontrar um homem que aceitasse completamente se relacionar com uma mulher trans-travesti e prostituta. O relacionamento de maior duração dentre elas foi de Donatela, com um homem italiano, durante quatro anos. Todos os outros relacionamentos que me foram confiados duraram muito menos e, com exceção deste, nenhum se tornou público para a família do amado. Assim, além da dificuldade de construir amores que permaneçam, há a qualidade subterrânea para onde estes amores são alocados. O percurso que trouxe neste artigo para que possamos discutir “sonhos” e “futuro” caminha em território acidentado. Julguei necessário fazer digressões – indiscretamente extensas – sobre dimensões das vidas conjugais de minhas interlocutoras para ratificar a importância e o peso que sonhar apresenta nas trajetórias de vida que destacarei ao longo deste texto. Digo isso pois passaremos boa parte da extensão deste artigo debatendo assuntos que, se num primeiro momento podem parecer não se conectar intimamente com as categorias do título, no final, darão viço à proposta central. Para tal, começaremos discutindo a impressão fantasmagórica de ameaça que assola os relacionamentos afetivos de minhas interlocutoras – encarnadas na ideia de Parcas. Em segundo lugar, discutiremos as dinâmicas conjugais de Ana e Donatela com aqueles que elas consideram o “grande amor” de suas vidas. O terceiro ponto que iremos debater é sobre a dimensão da “solidão” que pode aparecer nos discursos amorosos. Em seguida, finalmente, discutiremos como a categoria “sonho” aparece e por que ela é central para falar de futuro neste contexto etnográfico. No que diz respeito a termos como “cisgênero” ou apenas “cis”, todas as minhas interlocutoras sabem, reconhecem e usam de vez em quando o termo (umas mais e outras menos). Já as “mulheres cisgêneros” são chamadas de “mulher”, “mulher de verdade”, “mulher biológica”, “mulher não-trans”, “amapô” ou “amapoa”, “racha” ou “rachada”. De modo geral, quando elas falavam sobre seus relacionamentos afetivos, usavam apenas “homem”. Em algumas ocasiões, mais comumente quando falavam de política e militância, usavam a expressão “homem cis”. Como neste artigo a dimensão que queremos pôr em relevo da vida dessas mulheres é a da conjugalidade, utilizarei apenas “homem” para me referir a seus interesses amorosos e namorados. Sendo assim, quando eu for me referir à “mulher cisgênero”, utilizarei o termo “mulher não-trans” pela mesma razão. 3
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Outro ponto chave aqui é o debate sobre “normas”. Lanço mão, de imediato, da perspectiva de que estamos falando de três mulheres trans/travestis que fazem parte da chamada “classe popular”. Isto implica, em alguma medida, a recuperação de um debate acalorado na antropologia de como DaMatta (1979) pensa as “camadas populares” no Brasil como mais afeitas ao holismo, enquanto as “camadas médias” são mais afeitas à ideologia individualista.4 Digo afeitas pois no momento de construção da pesquisa eu observava o que Duarte (2009; 2008) chama de “ethos privado” nas “classes populares”. Isto é, contradições latentes que começaram a aparecer nos contextos etnográficos que o autor pesquisava e que indicavam mudanças substanciais na direção de individuação, em concomitância ao reforço de éticas mais tradicionais (hierárquicas).5 Tais contradições apareciam pela convivência entre novas formas de conjugalidades, ou de reprodução, e o reforço da centralidade da família, por exemplo (Duarte, 2009; 2008). Todos esses reforços de uma ética mais vinculante, digamos assim, passam por determinadas normatividades que darão forma aos “sonhos” e aos “amores” de Ana, Donatela e Alice. Ademais, essa tendência à individuação será central para entendermos como são dados os processos de “cura” depois de um fim de uma relação amorosa. Desse modo, o uso de termos como “hierarquia”, “livre-escolha”, “autonomia” ou “ideologia individualista” trazem como pano de fundo esta perspectiva. As Parcas: os desafios que rondam os “amores subterrâneos” “Amores subterrâneos” é como intitulo minha pesquisa de mestrado (Zampiroli, 2017). A ideia deste nome apareceu numa tentativa de dar uma qualidade específica às maneiras em que mulheres trans e travestis, de um modo geral, se relacionam com O uso da expressão “ideologia individualista” em detrimento de “individualismo” foi escolhido tendo em vista a constatação cuidadosa de Dumont de que não há sociedades plenamente individualistas, uma vez que ele não entende como possível que a humanidade se desvencilhe totalmente de suas tendências a hierarquizar (Dumont, 1992; 1985). 4
A ideia de tradicional aqui também caminha pelo sentido dado por Dumont por pensar o tradicional vinculado à hierarquia. Assim, se a tendência a hierarquizar é perene, o tradicional é tão moderno quanto o individualismo. (Dumont, 1992). 5
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seus interesses amorosos. Isto é, há uma enorme dificuldade dos parceiros de assumi-las para seus ciclos mais próximos de amigos e familiares. O que fui percebendo ao longo da escrita da dissertação foi que “subterrâneo” não é apenas uma qualidade, um adjetivo da relação, mas também uma substância, um advérbio, um modo de estar e de se relacionar. A qualidade substancial constrói papéis sociais específicos que, mesmo atuando na sombra, versam sempre sobre uma vida conjunta. Quando revelei para Ana que estava pensando em adotar este título em minha dissertação, “Amores Subterrâneos”, ela respondeu prontamente:
Miga, tipo assim, não é só amores subterrâneos, sabe? Tudo é subterrâneo. A convivência é subterrânea. Um hétero não faz amizade com uma trans, não pode, é proibido. Ou o homem tá comendo a trans ou tá dando pra trans. Tem todo esse peso. A minha classe é a que mais sofre […] Você vê um gay trabalhando no shopping, você vê um gay trabalhando em restaurante, você vê um gay tendo filhos, família. Você vê um gay em todos os lugares. Uma travesti você não vê. Quando você vê é só pra fazer média, porque na primeira oportunidade vão chutar ela dali. Por isso que minha classe são as pessoas que mais admiro, sabe? São as que eu mais admiro na vida. É minha classe. Por passar por tudo o que passa e mesmo assim não desistir, botando a cara no sol, matando um leão por hora. Não é nem por dia, é por hora. E está ali sorrindo, de bom humor, forte e linda [grifos meus].
A leitora ou o leitor poderia argumentar que a resposta de Ana foi dada nos termos em que eu a provoquei, com a ideia de “subterrâneo”. Sim, mas embora o adjetivo não seja aquele que possivelmente ela usaria, a informação que Ana nos revela é central no tocante ao habitar um corpo entendido como desviante em relação à sexualidade e ao gênero. Ademais, é possível notar que tudo aquilo que ameaça a manutenção de relacionamentos é atribuído a uma espécie de entidade difícil de identificar, imprecisa, mas eficaz, o que fica evidente na indeterminação do sujeito do verbo “vão” em seu depoimento. A qualidade subterrânea dos relacionamentos nos permite identificar, assim, certa “fixidez na imprecisão” da construção de ameaças, além de nos impossibilitar de enxergar medidas mais tangíveis para combatê-las – o que pode
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resultar na sensação de isolamento. Digo isto pois, durante minha pesquisa de campo, notei que minhas interlocutoras tratavam a “sociedade” como uma entidade altamente repressora. Isto é, todas elas usam a expressão “sociedade” para falar de um inimigo em comum. Por exemplo, “a sociedade é preconceituosa”, “a sociedade é intolerante”, “a sociedade é careta”. Seus corpos, vítimas de censura, desde os olhares em espaço público à luz do dia, violências simbólicas, agressões, até a maneira como circulam na “boca do povo” em espaços privados geram a compreensão daquilo que as marginaliza, cristalizada grande parte das vezes na ideia de “sociedade”. Há também o sinal sobre a qualidade desta sociedade. Assim, “cristianismo” ou “sociedade cristã”, “sociedade brasileira”, “o povo da noite”, “a família”, etc., também são marcas com caráter de entidade que aparecem como instrumentos de repressão. Logo, para pensar a qualidade daquilo que é interpretado como inimigo, encontrei na figura mitológica das Parcas a marca igualmente etérea da ameaça. As Parcas são figuras romanas mitológicas (“moiras” na mitologia grega), que detêm em mãos os fios da vida de todos os mortais. Nona, Décima e Morta cuidam dos fios do nascimento, da continuidade e do fim da vida, respectivamente. O uso da ideia das Parcas se justifica por um lado pelo caráter fantasmagórico que as ameaças impõem, dando, ao mesmo tempo, certa agência a estas para quem tramam dar fim. Há de fato um “destino” pouco duradouro para os relacionamentos amorosos que minhas interlocutoras narraram. Toda relação foi contada, nas entrevistas, entre uma cadeia de impossibilidades de sucesso. As parcas, como entidades responsáveis em cuidar da expectativa de vida das coisas mundanas parecem encerrar as relações amorosas entre mulheres trans-travestis e homens com mais afinco e velocidade. Assim, manter o relacionamento no subterrâneo é de alguma forma tentar fazer sobreviver uma relação que, no primeiro vislumbre de uma vida pública, pode ser interrompida pelas Parcas. A experiência de amar e se apaixonar deve ser tomada pela grande intensidade e centralidade que são trazidas à baila entre minhas interlocutoras. Se somarmos essa intensidade à compressão de inimigos como entidades – a partir das quais evoco a figura das Parcas –, é possível compreender a especificidade do sentimento de solidão que as acomete em muitos momentos. Se as
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Parcas espreitam para cortar o fio de todas as relações que podem ter, elas o fazem através da família, através do estigma e através da sociedade. Desse modo, criar projetos e pensar no futuro passa a ser uma tarefa difícil, pois está posta o tempo todo a ameaça das Parcas de impossibilitar a construção e a manutenção sistemática de pertencimento a um lugar hegemônico. O papel de esposa e as negociações de intimidade: dinâmicas conjugais em busca de sobrevivência Se há a necessidade de viver relações de forma subterrânea buscando impossibilitar a atuação das Parcas, há, portanto, uma tentativa de prolongar a vida das relações. Logo, uma dinâmica idiossincrática de negociação de intimidade se instala na vida da díade. Numa outra oportunidade,6 escrevi mais detalhadamente sobre as dinâmicas conjugais ímpares que minhas interlocutoras experienciaram pelo fato de terem corpos estigmatizados pelas Parcas. Meu ponto no dado artigo foi de entender como o papel de “esposa” é olhado de modo desejado ao mesmo tempo que enseja um significado e uma dinâmica diferente do que o título comumente evoca. A complexidade que reside na compreensão do papel de “esposa” se dá pela dinâmica completamente hierárquica que os relacionamentos afetivos apresentam, ao mesmo tempo que são narrados para mim como dinâmica de equidade e de “livre escolha”. Foi possível notar tal fato pela maneira com que cotidianamente eram negociadas as intimidades da díade, tendo em vista que se por um lado os homens insistiam (ou “enrolavam”) que não deveriam revelar a “esposa” trans/travesti para a família, por outro elas não abriam mão, num primeiro momento, da prostituição como fonte de renda e autonomia. Assim, o poder na relação passa a ser disputado nos diferentes significados atribuídos ao amor, ao sexo e ao prazer no ir e vir das discussões (ou “DRs). Por um lado, a monogamia deixa de ser uma disposição moral prévia e passa a ser uma negociação interna de cada casal, Chamo os tensionadores de negociação de “dobra do cuidado e controle” (para mais informações, ver Zampiroli, 2018). 6
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tal como pregado pelo modelo de “casal igualitário” das camadas médias (Salem, 1989; Heilborn, 1995). Há também a “paixão” que se torna “grude” (Velho, 2006; Salem, 1989), em que os pares são ligados por um elo subjetivo; ligados pelo desejo; entendem a díade pelos próprios termos do casal; se veem como núcleo forte que pode ter identidade mais intensa que dos núcleos consanguíneos; e, finalmente, percebem a díade de maneira “natural”, “pré-social” ou até mesmo “antissocial” (Salem, 1989). O elo subjetivo, o desejo, etc., podem ser percebidos como imunes aos imperativos sociológicos, ou seja, esses laços da díade são forças que podem superar laços consanguíneos em detrimento das relações de escolha – fato este que é repetido em diversos momento nas entrevistas. Mas, por outro lado, os termos dos casais tendem a se afastar destes que a clássica literatura dos anos 1980 sobre família e conjugalidades costuma abordar (Velho, 2009; Fonseca, 1995; Heilborn, 1995; Duarte, 1999; Salem 1989). Acredito que estamos diante de um outro modelo de conjugalidade no qual, embora concebido e idealizado pelo típico imaginário de relacionamentos de camadas médias – o “casal igualitário”, seguindo essa literatura mencionada –, ele é praticado de forma diferente. Há diferença de poder entre o homem e a mulher trans/travesti, há ocultação dessa mulher na rede relacional do parceiro e há uma dinâmica ímpar nas negociações de intimidade, ocasionada pelos ciúmes do homem em relação a sua companheira prostituta. Tudo isso distancia, na prática cotidiana, esse modelo de sua idealização “igualitária”. É mister salientar também que eles construíram suas éticas do viver junto como casamento e, mais importante, como família, e que o faziam mesmo fora da formalidade do contrato de casamento, embora essa afirmação vá de encontro à maneira com que minhas interlocutoras intitulavam seus parceiros. Isto é, elas se referiam aos até então namorados como “namoridos” ou “quase-esposos” com certa regularidade, mas estes eram raramente institucionalizados no título de “esposos” ou “maridos” – o que demonstra uma certa timidez em se apossar da relação como uma relação “oficial”. Neste sentido, entendiam-na como uma relação oficiosa. Outro ponto central sobre a intitulação dos papéis na díade é a separação cartesiana de como a relação é pensada e como ela é exercida: se em uma mão temos a relação contada de maneira ideal – chamando atenção à escolha de ficar juntos –, em outra mão temos o fato de que essas relações são
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subterrâneas. Por assim dizer, a alma da relação é igualitária, mas o corpo é profundamente hierárquico. Num determinado dia, tomada de intenso saudosismo, Donatela me contou que ainda amava Alexandre, o namorado italiano: “foi um amor que me machucou. Às vezes eu lembro dele e ainda me acho apaixonada. Às vezes. Eu fui feliz com ele, não tem como negar. Ele me apresentou pra família dele”. O término se deu pois, após alguns anos de namoro, Alexandre acabou se viciando em cocaína. Enquanto esperava Donatela terminar o trabalho nos bares ao redor do ponto onde se prostituía em Roma, Alexandre começou a fazer amizade com “gente errada”, com “o povo da noite”, e acabou “estragando” a relação com o uso excessivo de “padê” (cocaína). Já o fim do “grande amor” de Ana com seu ex-namorado Romário aconteceu por fofoca. O pai de Romário ficou sabendo que seu filho foi visto com “um traveco” no sítio da família e ameaçou expulsá-lo de casa caso o rumor fosse verdade. Romário optou por mentir e se afastar de Ana. Em ambos os casos a família aparece por cima daquilo que qualifica positivamente ou negativamente uma relação. A possibilidade do namoro se tornar público e ser revelado para a família do amado é esperada com ansiedade pelas minhas interlocutoras. Entendo o fato de Alexandre, um professor de literatura e apresentador de televisão, ter apresentado Donatela para a sua família como causa-consequência da atualização desse amor oito anos depois de seu término. Donatela foi feliz com ele. Com Alexandre, Donatela “conquistou” um espaço em que poucas mulheres trans-travestis adentram: a família. Em tempos em que se observa em diversos circuitos um profundo desinvestimento do conceito de família, aqui esta instituição é reduto último e idílico de conquista. Fazer parte de família, algo muitas vezes negado para essas mulheres desde a tenra infância,7 é a cristalização de seu pertencimento a uma rede maior e hegemônica de afetos positivos. Parafraseando Larissa Pelúcio, a prostituição, vista como oposta à família, é, muitas vezes, na verdade, a ponte que possibilita sua construção (Pelúcio, 2011). Coloco a palavra “conquista” entre aspas por entender que a aceitação de Donatela no núcleo de Alexandre foi precária – uma vez que os pais de Alexandre pediram que ele não revelasse sua namorada para o restante da família. 7
Ver também Kullick (2008), Silva (2007), Bento (2006) e Zampiroli (2017).
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De modo semelhante, a família também é central para o feminismo negro. Davis (2016) nos mostra que a valorização do trabalho doméstico, por exemplo, residia na sua utilidade na vida de mulheres negras escravas, pois a sua contrapartida, o trabalho no campo, era realizado para os senhores e, portanto, inútil. Dessa forma, tendo em vista as marcas da escravidão e a dificuldade de estabelecimento de família, ser esposa era um lugar que valia a pena lutar para conquistar (Davis, 2016). bell hooks pensa na mesma perspectiva a partir de sua experiência em seu bairro de infância, um gueto negro. Quando ia visitar seus avós, que viviam num bairro branco pobre, sentia-se fortemente insegura, tendo em vista os olhares de desconfiança da população branca que envolvia a residência. Quando finalmente chegava, sentia-se aliviada e dali poderia restaurar suas energias (hooks, 1990). O espaço privado da casa funciona para a autora como um espaço catártico, como um refúgio, onde não há nenhuma forma de segregação racial e configura-se, portanto, num espaço de resistência. Pensar o espaço doméstico como opressão, segundo a perspectiva das duas autoras, é aliar a ideia de casa a uma perspectiva da burguesia branca, o que impossibilitaria uma compressão desse espaço como uma plataforma política e, simultaneamente, como um espaço para o fortalecimento das emoções. Quando tomamos a dimensão da conquista da família como uma possibilidade política de confrontamento das disposições morais vigentes, temos que ter em vista um embate travado no dia a dia. Isto é, no tecido do cotidiano é que são moldados os afetos e as catarses que desenham resiliências aos processos de opressão – mesmo que numa dimensão aparentemente normativa8 da casa e dos afazeres domésticos. Diferentemente de Ana, Donatela namorou um homem que a assumiu. Pelúcio (2011) nos mostra como há grandes dificuldades para os homens brasileiros em “encarar” a sociedade “mente fechada” e apresentar suas namoradas trans-travestis para amigos e família. A impressão geral de Donatela sobre homens brasileiros em contraposição aos homens europeus é muito similar à adotada pelas interlocutoras da autora. “Mente aberta”, “evoluídos”, “têm cultura” são expressões que ouvi comumente tanto por Ana quanto 8
Ver o conceito “habitar a norma” em Mahmood (2005).
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por Donatela acerca de suas impressões dos homens europeus. Pensando no contexto de “classes populares”, Luiz Fernando Dias Duarte (2009) apresenta como a possibilidade de entranhamento, desentranhamento ou re-entranhamento dos indivíduos destacados de contextos locais religiosos não parte de um suposto confronto entre o moderno e o tradicional, mas da moralidade do “ethos privado” nos encontros com o campo da sexualidade. A aposta em pensar a possibilidade de entranhamento e re-entranhamento das mulheres trans-travestis em suas famílias e nas casas de seus parceiros se deita na centralidade das pequenas escolhas que ecoam na potência de relação. Se pensarmos no “ethos privado” como um local de sujeitos sexualmente dissidentes à moralidade em vigência e como um espaço propício para a individualização, teremos, justamente, a escolha como uma ação maior daquilo que gera mudanças (Duarte, 2009). Desse modo, alcançamos, na composição da análise, a riqueza da complexidade de como tendências aparentemente contraditórias aparecem em situações de intimidade. No que diz respeito a Ana e Donatela, é interessante observar como o estabelecimento de normas para a compreensão da experiência sensível dos afetos está presente nas duas trajetórias. O “povo da noite” ou a “gente errada”, que Donatela aponta como os responsáveis pelo modo de vida que Alexandre passou a levar, poderiam ser as mesmas expressões que os pais do italiano usariam para se referir à namorada de seu filho. Isto não diz necessariamente que Donatela se vê como não integrante do “povo da noite”. As normas morais que utiliza são ambíguas: ao passo que conhece os mitos e verdades da vida noturna, sofre com o fim da relação pensando-se culpada por levar até Alexandre o universo que a acompanha. Já Ana decide definitivamente se desafeiçoar de Romário quando o vê numa foto no Facebook batizando-se “nas águas de Cristo”. Mesmo que afirme até hoje que o ama profundamente, sua aversão à moralidade cristã gera uma contramoralidade e uma indisposição. Temos a confecção de duplas morais sempre relativas às experiências subjetivas das duas mulheres. O impacto que uma informação revelada tem em pequenos contextos sociais e o quão disposta, em lidar com a relação, está a família moldam a frequência e intensidade de transformações morais. A minha aposta, como não analisei nenhum caso empiricamente, é que sair do subterrâneo, em certo grau, conforma a mulher trans/
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travesti na sociedade, gera um papel social desejado e se torna uma plataforma nas redes de relações do casal para impor o papel de esposa e mulher trans-travesti na sociedade. O papel de esposa tem potencial de torná-las mulheres. Trata-se do gênero sendo construído não apenas através das mudanças de seus corpos, mas, especialmente, pelo lugar social que o casamento introduz. O caráter público dessas relações é subversivo pelo simples fato de incorporar corpos que podem ser vistos como abjetos numa instituição hegemônica que é a família, deslocando o paradigma do casamento ao obrigar as redes do casal a se rearranjarem segundo sua prerrogativa de escolha, que passa estreitamente pela autonomização dos sujeitos que o compõem: a mulher travesti puta é autônoma, o homem da relação também. Esse é o quadro favorável para vocacionar para a família do último a existência e a identidade de gênero de sua parceira. A relação do casamento, como disse Gilberto Velho (2006), é propulsora de encontros e afastamentos de grupos como a família e amigos de cada um dos cônjuges. Neste caso, teríamos então, mais uma vez, o provocar de deslocamentos necessários para reavaliações morais pessoais e, assim, transformações de sujeitos morais. Infelizmente, nem a relação de Ana ou Donatela sobreviveram tempo o suficiente para gerar um impacto grandioso nas redes de seus até então parceiros. No caso de Ana, apenas a fofoca de sua presença no sítio dos pais de Romário foi o suficiente para o ocaso da relação. Carência vs. suficiência: o caráter descontínuo do discurso amoroso Alice, que possui um blog onde narra alguns episódios nãoficcionais de sua vida,9 confessa em um post de abril de 2015 sua angústia acerca das efemeridades das relações no contemporâneo e seu grande desejo de “viver uma história de amor”:
9
Aí você sai para curtir a balada, disposta a viver o que vier e ser feliz, com responsabilidade. E você reúne bons amigos, bebe, dança, e quando pinta aquele gatinho, dá uma fugidinha para curtir, até rola uma boa química, mas vocês não ficam a noite toda, acaba rolando outro, e outro... A verdade, que na balada é isso
Os textos de Blog e Facebook estão reproduzidos sem alterações em gramática.
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que a grande maioria quer: curtição e quantidade. E confesso que ficar com alguns meninos é gostoso, dá uma sensação gostosa de liberdade, levanta seu ego, e não vou ser hipócrita em negar que variar é bom. Porém, ao mesmo tempo bate um vazio. Tudo isso divide as emoções. Parando agora, friamente, posso dizer que me fez bem e me fez mal. Sensação estranha de que peguei os sentimentos e bati tudo no liquidificador. Eu vivo o momento sim, sou inconsequente e impulsiva, acredito que não posso me anular na vida, já que o “amor” ainda não veio, ao menos preciso curtir. Confesso que sou uma eterna inimiga do jeito dos homens, porém refém da necessidade deles. E nessa noite, eu sorri para depois chorar, e só confirmou a certeza de que largaria tudo para viver uma história de amor!
A visão pessimista de minha interlocutora, que aparece em relação aos “relacionamentos de bolso”, configura fonte de grande angústia. Alice expressa ao dizer “peguei os sentimentos e bati tudo no liquidificador” um sentimento paradoxal onde ela percebe as fortuidades nas relações (e as entende como superficiais), ao mesmo tempo que reconhece algo imanente que demanda duração. A angustia expressa na análise de Alice aparece já há algum tempo na tônica de alguns sociólogos e antropólogos sobre coqueteria, “pegação”, “zoar” e “ficar” (Almeida, 2006; Almeida & Tracy, 2003; Bispo, 2016; Bauman, 2004; Coelho, 2006b; Eugênio, 2006;). Ela não é a única. Na verdade, a interpretação dos relacionamentos efêmeros ou táticos pela ideia de mercado e consumo já é o tom de uma “impressão geral”, por assim dizer, da juventude contemporânea sobre relacionamentos (Zampiroli & Bispo, 2016). Isto gera um inverso paradoxal no qual, ao passo que é “gostoso” ficar com “alguns meninos”, pois “levanta o ego”, no fim da noite prevalece o “vazio”. Como ela diz, “me fez bem e me fez mal”. Dessa maneira, a forma de se relacionar que não findaria em alguma angústia seria pela manutenção do amor romântico, ou “amor [que] ainda não veio”, monogâmico, nos revelando, portanto, o cerne da relação ideal para ela. Em outro texto, mais antigo (de dezembro de 2014), Alice já dizia a frase “largaria tudo para viver uma história de amor”. Eu entendo que nem tudo é amor, mas queria que o sexo viesse com uma amizade, e não apenas um descarregar de necessidade.
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Atualmente estou há mais de um ano sem namorar, e confesso que quando eu era jovem, eu tinha muito mais facilidade, era raro eu não estar namorando. Hoje em dia a realidade é outra. De duas uma: ou eu estou velha e gorda e não desperto desejo nos homens, ou por eu ser uma mulher poderosa isso acaba assustando e afastando os homens. Eu de verdade não sou de amargar fossa, mas é bem verdade que tenho sentimento. E por muitas vezes eu me sinto sozinha, por mais que a cada dia eu tenha um homem diferente em minha cama. Eu amo fazer sexo, mas isso não me completa como realmente eu gosto. Eu não vou deixar de curtir a vida, mas confesso que largaria tudo para viver uma verdadeira história de amor. Estou escrevendo isso com a solidão e uma garrafa de tequila como companheiras!
Este segundo texto de Alice nos é ainda mais revelador. Aqui, ela expressa cinco pontos chaves para entendermos sua visão sobre o assunto: 1. A marcação da diferença entre o sexo com afeto (amizade), sexo instintivo (um descarregar da necessidade) e o sexo comercial que aparece nas entrelinhas de “homem diferente em minha cama”; 2. A passagem de tempo pelos anos que já não namora, “estou há mais de um ano sem namorar”; 3. Juventude e magreza como marcadores importantes para a conquista; 4. O “ser poderosa” como afugentador de pretendentes; 5. O gregarismo como oposto ao sexo por prazer, ou seja, só existe com afeto. Podemos perceber no primeiro ponto como Alice entende diferentes sentidos para o sexo. Haveria o sexo instintivo, o sexo afetivo e o sexo comercial. Este último teria em si mesmo a capacidade de borrar as fronteiras entre o sexo instintivo e o sexo afetivo, uma vez que o sexo comercial funcionaria como um ponto de encontro de relações que são em sua maioria fortuitas, mas também são devir-amor. Este fato se relaciona estreitamente com o ponto cinco, no qual o sexo instintivo passa a funcionar como alavanca reflexiva da superficialidade das relações efêmeras. Isso se deve ao fato de que a extensa maioria das relações sexuais, para Alice, é pontual e raramente ganha o nome de amor. Diferentemente de Ana e Donatela, que “fazem um vício”, isto é, sentem prazer em relações sem afeto, Alice afirma que ama fazer sexo, mas que “isso não me completa como realmente gosto”. Portanto, o devir-amor do sexo comercial ou das fortuidades do “ficar” nas boates são percebidas como possibilidade remota, alimentando assim a impressão de “vazio” que este tipo de
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relação proporciona para ela. Para Alice, o amor é um sentimento intenso e imanente, “é bem verdade que tenho sentimento”. Alice quer ser conhecida por dentro, quer mostrar para o parceiro que seu corpo é muito mais do que um corpo de travesti. Assim, o amor para ela é tanto uma necessidade existencial quanto uma espera. O ponto quatro insurge na urgência. Alice, que já atravessou os 30 e poucos anos, vê como o marcador etário tem atingido sua circulação por entre os homens, somado à sua experiência como mulher “poderosa” Ao passo que há em seu espírito a vontade de viver “uma grande história de amor”, o tempo passa e afugenta os pretendentes com as marcas que vincam o seu corpo, seja por ser “velho” e “gordo”, seja por estar mais indisposto ao efêmero, ao sexo fácil. Neste caso, os enlaces da solidão vão se revelando na qualidade transcendente do que ela entende como amor ao se fazer em espera. Pergunto-me, por conseguinte: o que revela essa espera para se relacionar? Espera essa explicitada no ponto dois, na maneira com que Alice marca a passagem de tempo através dos anos de nãonamoro, ou seja, por aquilo que não se tem em detrimento daquilo que se tem. O fim do namoro de Ana com Romário foi revelado a mim logo nos primeiros dez minutos da primeira entrevista. Chegando em casa depois da entrevista, vi uma postagem de Ana no Facebook que fora publicada algumas horas antes do nosso encontro. A gente pensa em solidão e logo vem na cabeça a imagem de uma pessoa isolada, que não sai do quarto e não faz questão de qualquer contato social. Que besteira! A solidão está em qualquer lugar, escondida nos maiores sorrisos, nos abraços mais apertados. O irônico é que ela se esconde nas multidões, quem se sente sozinho nunca está, de fato, só. Cada um é dono do seu próprio vazio. As pessoas preferem a putaria porque é mais fácil, dá menos problema, cansa menos e não dá dor de cabeça. O amor, além de complicado, geralmente perde uma das bases. A verdade é que não preferem o amor por ter medo, a zona não dá dor de cabeça, mas traz um vazio gigante. No fundo as pessoas sabem que não existe nada melhor do que amar e ser amado, dividir sorrisos, compartilhar a mesma cama, o mesmo coração. O amor é lindo, as pessoas que se corrompem.
A lamentação final de Ana, quando afirma que “as pessoas
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que se corrompem”, acredito ser uma resposta a Romário, que, poucas semanas antes da gravação do depoimento, tinha rompido com ela. Romário não era, nas palavras de Ana, “um qualquer”. Ele cursava engenharia, carreira de bastante prestígio no Brasil, e participa de uma família de “classe média tradicional”. Assim que Romário e Ana terminaram, ele voltou para sua ex-namorada evangélica e conhecida da família. De forma muito semelhante a Alice, Ana entende a pessoa solitária não como aquela que está socialmente isolada, mas pelo contrário. Os solitários estão aos montes perambulando entre as multidões. Outra similaridade entre as duas é a experiência retroativa negativa das relações fortuitas. Ela diz: “as pessoas preferem a putaria porque é mais fácil, dá menos problema, cansa menos e não dá dor de cabeça”. Curiosamente, Ana é a mais nova das minhas interlocutoras e Alice, a mais velha. A visão de amor de Ana e Alice é bastante semelhante. Ambas esperam “um grande amor”, demonstrando acreditar em sua potência transcendente. Ana me deu uma resposta muito elucidativa sobre isso, que nos ajuda a pensar a relação entre a negativação da experiência da prostituição e a do viver na espera de ter um namoro sério e duradouro: Meu plano pra daqui a… meu futuro é estar morando na Europa, sabe? Na Itália. Se Deus quiser, casar, ter uma vida normal e estabilizada. Se Deus quiser, estar formada em algum curso, uma faculdade. Eu penso em casar, em ter uma vida normal. Sou muito sonhadora. Eu sonho muito em poder adotar uma criança, ter uma casa, um marido. Poder cuidar de um marido, de um filho. Muito muito. Sendo que também sou pé no chão, sabe? Eu não me iludo mais, já me iludi. Porque homem, hoje em dia, para levar travesti a sério a esse ponto, é raridade [grifos meus].
A capacidade transcendente do amor reside também na possibilidade de transbordar-se para além da prostituição. Os namorados seriam aqueles que as auxiliaram a largar a prostituição e que possibilitariam, também, mudar toda a conjuntura na qual vivem. Ana revela: “penso […] em ter uma vida normal”. O paradigma da normalidade que Ana evoca aqui não é uma oposição à anormalidade. Tanto Ana quanto Alice acreditam que a prostituição é uma profissão digna e que deve ser respeitada. Entretanto, elas não conseguem se ver trabalhando como prostitutas por toda a vida. Alice já pensa na
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experiência da prostituição como passado: “eu não fui prostituta, eu estava prostituta. Hoje sou atriz”. Ana, embora goste da profissão (e consiga ter prazer nela pelos “vícios”), credita na vida “normal” de casamento monogâmico-tradicional um ideal de vida para si. Assim “normal”, na verdade, se opõe a “marginal”. Nem Ana e nem Alice querem viver na beirada. Elas querem ser protagonistas das relações que travam com as pessoas e isto começaria com o fim da vida como prostituta. Isso se dá pelo outro ponto central que Ana traz em sua fala: como o fato de ser trans/travesti cria uma outra relação com a espera. É uma espera, em alguma medida desacreditada, mas, ainda assim, espera. Dessa maneira, podemos pensar na face oblíqua do amor na experiência dessas duas mulheres como espera. O sentimento de solidão seria uma consequência do esperar. A possibilidade de confrontar a espera com escolha dá contornos ainda mais perversos. Ana afirma que “homem, hoje em dia, para levar travesti a sério a esse ponto, é raridade”. Isto é, mesmo que se apaixonem e se envolvam com os homens, a duração da relação dependeria muito de como estes irão se conduzir no namoro, sendo que não são muitos os que estão realmente dispostos. Ademais, caso entrassem numa relação no modelo com o qual sonham, seria complicado levá-la adiante, pois a família do homem poderia funcionar como Parca – isto é ameaçar/gerir a relação. A facilidade com que se apaixonam pode ser evocada pelo sentimento de “carência” e a resistência delas a isso, pelo esforço de “suficiência”. Podemos perceber, portanto, é construído um sentimento de autoestima amarrado ao passo dos homens amados. Numa postagem de agosto de 2016 no Facebook, Ana constata: Eu juro que achei que isso fosse demorar meses para acontecer, mas aprendi a ser o SUFICIENTE pra mim mesma e não preciso de mais nada. Não preciso de ninguém pra dizer que me ama. Não preciso de ninguém pra dizer que sente saudades. Não preciso de ninguém pra dizer que sou linda. Só preciso de um espelho, para que assim eu possa me olhar todos os dias e dizer essas coisas olhando nos meus próprios olhos.
Já Alice percebe, em maio de 2016, a manutenção da sua forma intensa de amar, agora com mais maturidade, mesmo em vista de tantas desilusões amorosas:
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Muitas vezes essas situações da vida nos fragilizam e nos fazem aceitar migalhas. Posso estar exagerando, mas hoje em dia, em matéria de rejeição, preconceito, ninguém sente a dor que uma trans sente. No dia que eu descobri que travesti é ser um fetiche, amada e idolatrada sim, desde que ninguém saiba, tudo tem que ser bem escondido entre 4 paredes, me doeu muito. Mas hoje posso dizer que tenho amantes, pois não me anulei, e aprendi a jogar, às vezes perdendo, confesso, e chamo a brincadeira de “idem”. Eu poderia estar “casada” com algum deles, mas a forma deles de “casar” está longe de ser a que quero, e olha que nem espero a perfeição hein… Mas confesso que ainda acredito no amor, acredito que um dos sentidos da vida é amar, mas não acredito naquele amor puro que eu criava todas as noites antes de dormir. Mas acredito que em algum momento vai acontecer, de forma calma, verdadeira e sem estar apegada a uma carência. E mesmo o meu acreditar hoje em dia ser mais consciente, ainda assim a maioria das minhas amigas trans me chamam de Alice no país das maravilhas… [grifos meus]
A “carência” (versada da solidão) e a “suficiência” aparecem como paradigmas femininos de como pensar suas experiências amorosas com os homens. O processo de superação da espera acaba escoando pelos caminhos da ideologia individualista. Ana constata que “só precisa de um espelho” para saber que é linda e digna de ser amada. Alice “não se anulou”. Mesmo face à grande quantidade de amores não correspondidos, tendo em vista sua intensidade ao se relacionar, ela aprendeu a jogar. Conseguiu distanciar-se de suas experiências amorosas e perceber que não estava sendo correspondida como merece. Dixou de aceitar migalhas, como ela mesma afirma. Ainda assim, mesmo diante de toda maturidade que a experiência de seus amores lhe deu, Alice ainda é vista como inocente por suas amigas. A relação entre carência e suficiência é complexa e descontínua. Ambas intercalam suas postagens de “sou mais eu”, “aprendi a me amar”, com textos de solidão. A paixão percebida por Velho (2006) ganhou sentido neste texto por estar igualmente investida de irracionalidade: emoção como algo “sem intenção”. Percebi também, assim como Lutz (1998) atesta, que muitas emoções são adjudicadas ao corpo. Expressões como “um só coração”, “pé no chão” ou “vazio por dentro” nos direcionam para experimentações corporais das emoções. Mas no que toca ao amor, temos na construção do amor-romântico seu
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ideal sublime. Dessa maneira o amor, além de generificado, aciona sempre um duplo caráter e dupla moral: tem algo de fisicalidade (ao ser percebido no corpo) e de transcendental (quando pensado como sonho ou como irracional), tem algo de natureza (“amor não se define, se sente”) e algo de cultura (“acredito no amor…”), tem algo de feminino (“mulher ama de verdade”) e algo de masculino (“homem gosta de variar”), etc. Essas categorias de forma alguma são estáticas, sendo forças cinéticas revestidas de sentido e que estabelecem percepções sinestésicas de mundo. Nos fragmentos de discursos amorosos que privilegiei citar até aqui, temos o sentimento “amor” preso na sentença, mas estourado de significados. As constatações dos relacionamentos que Ana e Alice fizeram em suas redes sociais nos mostram como este amor está investido concomitantemente de contemplação e sentido prático em suas vidas amorosas. Tanto as ações dadas para as superações dos amores fortuitos quanto as carências situadas em contexto de falta de escolha no “mercado dos afetos” pautam o caleidoscópio de sentidos de amar como possibilidade de reflexão e compreensão destes mesmos contextos. “Eu fui fiel com ele”, “fui fiel com o meu coração” são os mantras da superação, e “sou mais eu”, o mantra da suficiência. Assim, para elas, ser romântica é entender a natureza profunda e sensível dos seres. É pescar afeto num mar de desamores. Costurando Sonhos Alice, perseguindo sua carreira de atriz, revelou-me a felicidade de ver sua mãe um dia sentada na plateia para prestigiála. Ela anda fazendo circuito de peças pelo Rio de Janeiro. Mas a presença de sua mãe (que a havia expulsado de casa no início de sua transição) veio como uma possibilidade de reestabelecimento de vínculo. “Realizei meu sonho em ver minha mãe na plateia […] Agora meu sonho é fazer uma novela”. Ana, no dia do seu aniversário em junho de 2016, escreveu: Que todos os meus sonhos continuem se realizando, e que todas as transexuais e travestis tenham o mesmo direito que eu. O direito de viver. Eu sei que é difícil aceitar as diferenças do próximo, porém
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é louvável respeitá-las sempre. Desejo muito amor no coração da humanidade e que meu sonho de viver em um mundo melhor se realize. PARABÉNS PRA MIM!!
Mesmo com a grande quantidade de frustrações em relacionamentos, Ana, Donatela e Alice permanecem sempre “acreditando” “sonhando”. Sobretudo Ana e Alice, que nunca perdem a oportunidade de divagar sobre quando terão casa própria, marido e filhos. Ana faz uma aproximação fundamental entre sonhos e projetos. Ela diz – em trecho já citado –, “meu plano pra daqui a… meu futuro é estar morando na Europa”, “casada”, “com filhos”, “sou muito sonhadora”. A possibilidade de se pensar os investimentos futuros a partir dos sonhos é uma tentativa de levar a sério essa experiência como projeto. Maria Cláudia Coelho e João Trajano Sento-Sé (2014), num artigo em que apresentam trajetórias de jovens cariocas em interface com práticas criminais, também trazem essa aparente indistinção entre sonho e projetos. Para os autores, quando perguntavam para os jovens em questão sobre seus planos para o futuro, respondiam com a palavra “sonho” ou mesmo “se Deus quiser vou abrir um restaurantezinho” (Coelho & Sento-Sé, 2014, p. 339). Assim, para os autores, “plano” segue evocando uma certa vinculação entre presente e futuro e “sonho” está mais alocado a uma virtualidade que parece possível. Entre minhas interlocutoras, acredito que a palavra “sonho”, embora parta sim de uma virtualidade do que parece possível, adquire caráter de planejamento quando, na medida em que é possível, tem em perspectiva uma agência em busca de realizá-los. O projeto, segundo Gilberto Velho (1994), encontra linguagem própria para ser expressado em diferentes tipos de contexto. O uso da palavra “sonho”, e não “projeto”, é a constatação da distância entre minhas interlocutoras e a possibilidade de realizá-los. Como afirma Audre Lorde, “reconhecer o meu sonho é reconhecer o quão distante ele está de mim” (Lorde, 1984, p. 100, tradução minha).10 Mas, sobretudo, reconhecer um sonho é estabelecer um ponto de fixidez por entre as incertezas e medos. É a vontade de construir outras realidades mais bem-sucedidas e amenas. É atravessar a fronteira No original: “to acknowledge our dreams is to sometimes acknowledge the distance between those dreams and our present situation”. Tradução do autor. 10
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da marginalidade para o palco das relações visíveis, das existências visíveis. Estabelece-se então, através dos sonhos, uma outra forma de se falar sobre futuridade quando tratamos de vidas transexuais. A aproximação com escritos do feminismo negro é, novamente, inevitável. Em seus ensaios, Lorde (1984) dá atenção especial à poesia e aos sonhos: “são os nossos sonhos que indicam o caminho para a liberdade”;11 “reconhecidos, nossos sonhos podem definir as realidades do nosso futuro, se os equiparmos com o trabalho duro e o escrutínio do agora”.12 Sonhar, portanto, ao mesmo tempo que é o reconhecimento das distâncias entre o presente e aquilo que deve ser mudado para haver algum futuro, não implica uma passividade, mas um movimento de trabalho e de pequenas conquistas que vão travando uma possibilidade de futuridade. Dessa maneira, sonhar presentifica um futuro possível mais ameno, recarregando resiliências no presente para seguir vivendo num mundo em que as Parcas seguem vencendo. Se o desejo pela norma pode gerar normalidades, é preciso ter em mente que esta normalidade é posta de maneira ideal, quase platônica e jogada para uma futuridade imprevisível. Tendo a pensar que a possibilidade de normalidade posta pelas minhas interlocutoras é, com efeito, estática, e pressupõe pouco do impacto que seus corpos têm em transformar as configurações relacionais das famílias dos namorados. Desse modo, o desejo por normatividade pelo sonho pressupõe algo de transgressor necessariamente, mesmo que encapsulado pelo impulso de viver uma vida “monogâmica”, “heterossexual”, “normal”. Há algo de normativo na transgressão. É como se houvesse um “duplo vínculo” não só na vida dupla das mulheres transgressoras, mas nas transgressões em si: isto é, todo desejo normativo tem algo de transgressor, toda transgressão tem algo de normativo. O projeto normativo que o sonho incorpora pressupõe mudanças e reelaborações nos processos de entranhamentos e re-entranhamentos no exercício conflituoso da vida cotidiana, mas não intenta de nenhuma maneira pluralizar a monogamia, a heterossexualidade e as afetividades – mantendo a 11
No original: “it is our dreams that point the way to freedom”. Tradução do autor.
No original: “Acknowledged, our dreams can shape the realities of our future, if we arm them with the hard work and scrutiny of now”. Tradução do autor. 12
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qualidade monolítica destas categorias, mesmo que estas mulheres as exerçam de maneira muito diversa de sua concepção ideal. Desse modo, só se vive a “monogamia”, a “heterossexualidade” e a afetividade da maneira em que é possível vive-las e não da maneira que se quer viver. O querer aparece, justamente, como sonho. Conclusão Como vimos na leitura deste artigo, há grandes aparentes ambiguidades em vários aspectos da experiência trans/travesti. Desde o modelo conjugal que, por um lado, é pensado pelo ideário igualitário, mas por outro possui fortes traços de hierarquia até os sonhos normativos. A resposta a essa contradição pode ser justificada tendo em vista o “ethos privado” que emana de sujeitos cujas trajetórias estão marcadas pela distinção através de seus corpos marginalizados. São linhas de caráter assintótico e parecem nunca se encontrar: a rejeição familiar, a criação de vínculos amorosos, a rejeição da família do parceiro, a vontade de criar família, etc. Ademais, os discursos amorosos apresentados também caminham na mesma direção: são fortemente ligados ao self-care – pela ideia de suficiência, mas com forte desejo de uma vida conjugal vinculativa – e ao sentimento de carência. A aproximação de sonho e projeto parte da crença de que não é apenas por vias de uma sistematização (meios e fins que os projetos podem ser possíveis. A palavra sonho evoca o caráter do incontrolável, do insistematizável da vida dessas mulheres. Não depende delas a aceitação ou a possibilidade de inserções na sociedade mais geral. Pelo menos não depende diretamente. De todo modo, é, com efeito, uma postura ativa a que adotam para tentar transformar seus sonhos em realidades. Tudo isso nos mostra o quanto a dissidência é relativa: Alice, Ana, Donatela são dissidentes em suas práticas, suas carreiras e estilo de vida, mas a norma aparece como horizonte, de modo que simultaneamente há anseios, sonhos ou projetos normativos. Assim, elas nos mostram que é possível ser um dissidente sexual e, em concomitância, seguir as normas de gênero, conjugalidade e família. A experiência da transexualidade é absoluta, pois toma toda as esferas da vida do sujeito. Logo, a manutenção dos relacionamentos é
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diferente entre mulheres trans e mulheres não-trans, de modo que o corpo trans-travesti está mais fadado à solidão. Afinal, ser prostituta é uma carreira que se pode abandonar (vide Alice), mas ser trans/ travesti é uma marca perene e irremovível no corpo, no passado e nas memórias. Os sonhos têm potência grandiosa em forçar novos limites na malha do cotidiano ao fazer projeções de melhores futuros. Assim, sonhar funciona quase como campo político espiritual que projeta erguer-se do subterrâneo através dos (aparentemente) mesmos códigos relacionais de família, gênero e conjugalidade. A compreensão de sociedade como forma etérea de discriminação, isto é, como Parcas, confrontando a vontade de viver um relacionamento como qualquer outro, mostra-nos que a capacidade de deslocamento dos paradigmas heteronormativos não é pelo questionamento de seu status nas macro configurações, mas na sua conquista pela (re) existência do cotidiano de suas relações tidas como heterossexuais. Ou seja, mais do que agirem por forças combativas maiores do que os pequenos passos da unidade do casal, elas querem apenas exercer amores nas microconfigurações de suas vidas relacionais. O desafio de lograr na mesma norma aquilo que se pretende exercer como casal não exclui a possibilidade que esta mesma norma sofra pequenos deslocamentos. Dessa maneira, o engajamento político se configura como segundo plano. O amor pode não ser tão acidental assim no seu surgimento, mas o é como possibilidade política e, assim, amar é o primeiro plano do discurso de embate às configurações hegemônicas de família e conjugalidade. Já sonhar aparece como aquilo que pode atravessar a presença absoluta das Parcas e, nesse sentido, vislumbrar alguma normalidade em algum lugar no futuro.
Amores Censurados: sobre gritos, olhares, tapas e fissuras Everton Rangel1 Os meus relatos, neste artigo, dizem sobre o encontro entre pessoas de diferentes origens sócio-culturais em um mesmo ambiente de trabalho e moradia. Quase todos os funcionários de um dos maiores e mais tradicionais circos dos Estados Unidos residiam em um enorme trem que se movia em direção às mais variadas arenas nas quais os shows eram realizados.2 Discorro especificamente sobre relações afetivo-sexuais estabelecidas por duas bailarinas brasileiras, Diana e Rafaela, com homens de outras nacionalidades: Ian, acrobata nascido na Rússia, e Chris, performer norte-americano. Reflito sobre a perduração de laços afetivo-sexuais, bem como sobre a própria noção de amor, levando em consideração acontecimentos que envolvem acusações, brigas, gritos, tapas e/ou socos. Longe de afirmar qualquer neutralidade, busco incorporar à análise os atos de fala, os gestos corporais, as fofocas e outras formas discursivas empreendidas pelos mais diversos atores com intuito de censurar comportamentos, pessoas e relações. Do mesmo modo, demarco práticas “contra-censura” e outras não facilmente classificáveis. Everton Rangel é doutorando do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. 1
Quando iniciei essa pesquisa estava em jogo a possibilidade de compreender o que tornou os corpos de brasileiras e brasileiros, profissionais em dança, rentável em termos simbólicos e econômicos nesse segmento do showbiz. Por que o Brasil?, indagava. Somente pude desdobrar esta pergunta preliminar em outras porque os meus canais de acesso a essa empresa derivavam de um vínculo afetivo fundamental. Minha mãe trabalhou como bailarina durante quase sete anos nesse circo, sigo convivendo com diversas pessoas que fizeram parte desse universo social. Neste artigo, no entanto, privilegio os dados relativos ao período em que estive no circo em 2014 – não mais que vinte dias corridos. Para mais informações sobre a realização de etnografia a partir da posição de filho, ver Rangel (2016); e, para a discussão sobre a celebração e a comercialização de corpos e identidades nacionais, ver Rangel (2018). 2
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De Romeu e Julieta a Diana e Chris Se podemos tratar o drama Romeu e Julieta como um mito – comprometido, portanto, com categorias de pensamento e com a articulação de oposições cosmológicas (Castro & Benzaquen, 1977) –, devemos também indagar sobre o modo como os nossos pressupostos idealísticos são feitos presentes ou mesmo deslocados em termos mais ordinários. De fato, não me interessa aqui opor mito e rito, modelo e prática, e sim fazer breves considerações sobre a experiência de viver e pensar o amor frente aos outros. Ao longo deste artigo, buscarei responder etnograficamente a seguinte pergunta: como a noção de amor romântico possibilita, inspira ou mesmo limita as vivências? O que está em questão, para os autores citados, é o fato da narrativa shakespeariana se processar através da oposição entre o direito familiar e o amor entre indivíduos. Definir essa tragédia como mito de origem seria então deflagrar como uma “psicologia do amor” substitui uma “sociologia da aliança”. O amor emerge como um sentimento entranhado ao ocidente e, principalmente, devoto da noção de indivíduo, afinal é o afastamento da ordem familiar que garante a possibilidade da existência de um casal que põe em xeque o jogo das alianças, das clivagens e das linhagens. Em contrapartida, surge não apenas o modelo de família baseado no afeto, mas há um deslocamento fundamental: o poder passa das famílias ao Estado. Romeu e Julieta nos diriam sobre um processo de autonomização dos domínios, demarcariam uma distinção entre afeto e direito que encontraria correspondência na distinção entre privado e público. Desse ângulo, o político não é o afetivo.3 O que “O casal Romeu e Julieta surgiria assim como a primeira manifestação das ‘novas formas de família’, que, pelo menos em termos de modelo consciente, iriam pouco a pouco constituir-se no Ocidente. Esta nova família passa a ter como ponto focal as relações internas, e não mais as relações que uniam diferentes famílias entre si (seja por aliança, seja pela continuidade da descendência). Por relações ‘internas’, entendemos relações afetivas e de substância que unem os membros da família conjugal. Assim, com Julieta, as filhas deixam de ser peões no jogo das alianças, e, como Romeu, os filhos não mais asseguram a continuidade das linhagens. Convém recordar que Romeu e Julieta são filhos únicos. A família conjugal moderna, formada a partir de laços afetivos, individuais, retira-se da esfera ‘política’ voltando-se para si mesma e constituindo um domínio próprio – o domínio do ‘privado’, do ‘íntimo’, do ‘psicológico’” (Viveiros de Castro & Benzaquen, 1977, p. 152). 3
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perdemos ao reafirmarmos isso? Desafiando a existência de “mundos hostis”, como se a vida se realizasse unicamente em esferas separadas, Zelizer (2005) defende a importância de uma análise minuciosa dos “mundos conexos”: do modo como o público requer e se infiltra a todo instante no privado, as transações econômicas se fazem transações afetivas e o impessoal se deita no terreno da intimidade. Interessa à autora, mas também a uma análise do amor, perceber o como das relações, das transações e das vivências. Chamando atenção ao trabalho que os sujeitos realizam ao se engajarem uns com os outros, podemos analisar o amor como atos afetivo-morais direcionados não somente a quem se ama, mas também aos olhos frentes os quais o amor é vivido. Isso quer dizer não somente que o laço afetivo é parte do processo de regulação coletiva, mas também que, a meu ver, a partir da atenção aos engajamentos sucessivos podemos perceber o modo como se dá a gestão ordinária do que se quer como íntimo e político, bem como a confusão produtiva entre os ditos domínios sociais. Sigo esta linha de raciocínio pensando em proposições de Venna Das (2010). A autora demonstra como um hindu chamado Kuldip e uma muçulmana de nome Saba tornam possível um relacionamento amoroso inscrito em um contexto de profundo antagonismo de pertencimento. Das insiste que a suspeição das famílias dos amantes é, pouco a pouco, deslocada não simplesmente em nome de um amor-romântico, como o de Romeu e Julieta, mas sobretudo devido à plêiade de engajamentos ordinários. Somos levados a entender que não há, nesse caso, uma única conversão de sentido estável e determinável (muçulmano hindu, ou viceversa), e sim o florescimento lento do descobrimento de modos de vida possíveis através de viagens, ajudas, esperas e dores. Não é difícil entrever que a perspectiva de Das sobre o amor articula-se substancialmente à ideia de cotidiano como cerne dos engajamentos interpessoais. Ou seja, é no suceder ou realizar do dia a dia que nos tornamos abertos ou não à responder aos mais variados chamados do outro, o que, por sua vez, revela-se como um trabalho de formação de um determinado self em relação aos self(s) adjacentes. Proximidade é aqui chave pois possibilita, de maneira particular, a reconfiguração contínua das relações amorosas. Se o que perdemos é o cotidiano ao afirmar que o afetivo não é político, precisamos qualificar as cores do dia a dia para
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vislumbrar ao menos parcialmente o que é e implica amar, e, ademais, o que demanda a relação entre aqueles cujo pertencimento sócio-cultural diverge. As histórias afetivas que qualifiquei até aqui estão inscritas em bases conflituosas, mas diferem no modo como são narradas: enquanto Romeu e Julieta existem como personagens de uma tragédia, Kuldip e Saba apontam para uma poética dos feitos não extraordinários. Seguirei, neste texto, o segundo caminho com uma única ressalva: o conflito de pertencimento descrito por Das e, pouco a pouco, ultrapassado por seus interlocutores dará lugar à gritos, choros e brigas que eram administrados minuciosamente por Diana, Chris, Rafaela e Ian. Embora discorra sobre o relacionamento amoroso entre pessoas de diferentes origens nacionais, devo desde já demarcar que a minha interlocutora mais próxima, Diana, privilegiava no fluxo do dia a dia o que ela enxergava que tinha em comum com o seu namorado. As diferenças de pertencimento eram costumeiramente atenuadas, como se a partir do apontamento de experiências racialmente marcadas, por exemplo, o que havia em comum se sobrepusesse. Diana classificava a si mesma como “preta lá de Nilópolis”4 e ao seu namorado, Chris, como “negro da periferia de Las Vegas”. Ela usava essas categorias para enfatizar que sabia “lidar” com Chris, especialmente para forjar uma identificação importante na condução das discussões e brigas recorrentes entre ambos. Raça, classe e territórios periféricos distintos mesclavam-se, constituíamse conjuntamente em uma narrativa pessoal forjada para perdurar a relação afetiva. Diana dizia que por ser “favelada” podia resolver impasses com seu namorado, mas também afirmava que ele não podia agir com ela do modo como supostamente agia com “as negas dele” – as de Las Vegas. Ou seja, se há um ponto comum entre o casal (raça/territórios periféricos), há também certa diferenciação entre mulheres, apenas feita evidente na forma como Chris deveria se comportar frente a cada uma delas. A acusação do comportamento masculino aparece de forma indireta porque a necessidade de solucionar os impasses era posta em primeiro plano. Diana amava o seu namorado. Ao lutar pela conciliação, ela refletia e declarava durante conversas casuais o atravessamento contínuo entre raça, classe e territórios como produtor de uma experiência que facultava 4
Bairro localizado no Rio de Janeiro, precisamente na baixada fluminense.
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a ela a possibilidade de equacionar as querelas da vida conjugal. A narrativa de Diana expunha que os conflitos estavam sob controle. Olhares enviesados Certa vez, antes de irmos para uma boate, vi Chris enfurecido. Ele tinha desaprovado a roupa que sua namorada havia decidido usar. De longe, notei que Diana tentava amenizar a situação. Quando ela se aproximou de mim, chorando e com maquiagem borrada, disse que ele tinha que “se fuder” porque se fosse outra “colocava chifre e pronto”. Ela, ao contrário dessas, era “babaca” porque assim não fazia. “Escroto, escroto! Fuck you!” [Vai se fuder!], berrava. Diana, antes de ir atrás do seu namorado, afirmou que apareceria depois na boate. Ela chegou sozinha usando o mesmo vestido. Tal como ouvi dizerem que aconteceria, Chris e Diana, na manhã seguinte, fizeram as pazes. Parecia de bom tom não perguntar sobre o ocorrido. Até certo ponto, pode-se dizer que todos assim procediam, isto é, não debatiam sobre a briga que presenciaram na noite anterior. Eram os suspiros de incômodo que garantiam que fosse possível, a um só tempo, a veiculação da desaprovação coletiva do acontecimento e a produção continuada do conflito como relativo à intimidade. Nas entrelinhas, via burburinhos pontuais, Diana era acusada por seguir namorando alguém percebido como “ciumento” e “exagerado” no controle que buscava exercer. As(os) brasileiras(os) faziam dela uma cúmplice de seu “perpetrador” e também a responsabilizavam pelo silêncio que se viam induzidas(os) a produzir. Se Diana podia deixar Chris, mas optava por não fazê-lo, cabia a todas(os), ainda que a contragosto, respeitar a decisão. À princípio tudo o que Diana me disse foi: “Liga não! Circus life!” [Vida no circo!]. Dias depois fomos a outra boate para comemorar o aniversário de um brasileiro. O local estava completamente vazio. Como o grupo era grande, cerca de trinta pessoas – brasileiras(os), russas(os), ucranianas(os) e estadunidenses –, o gerente do estabelecimento nos ofertou garrafas de vodka de graça, fez outras promoções e abriu todas as portas que possibilitavam algum acesso à rua e permitiam a quem caminhava do lado de fora saber o que acontecia dentro. O público cresceu. Conforme a noite avançava, mais bailarinos e bailarinas se juntavam no centro da boate para dançar em conjunto.
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Se nos primeiros instantes isso atraiu parte do público que havia chegado, depois passou a repelir – exceto um homem e sua amiga, ambos norte-americanos. Ele, diferente dela, podia performar passos de dança semelhantes aos que os brasileiros dançavam. Pouco depois do momento em que alguns bailarinos executaram coreografias energeticamente, esse desconhecido caminhou até o centro da boate e dançou uma sequência de passos de hip-hop. O convite à batalha performática estava feito. Nesse momento, os não devidamente socializados nessa arte se transformaram em espectadores. Cada brasileiro foi ao centro e executou passos que se complicavam na medida em que o desconhecido respondia em nível semelhante de precisão e entusiasmo. Pouco depois, Diana e Rafaela se juntaram à batalha. Elas dançaram sequências passíveis de serem classificadas como stiletto – estilo exacerbado pela indústria pop norte-americana. O ponto alto da performance se deu no momento em que um dos acrobatas russos, incentivado por um bailarino, realizou “saltos mortais” sucessivos. Cada cambalhota no ar foi acompanhada por uma comoção efervescente. Dado instante, ele não conseguiu se equilibrar. A queda causou o fim do entusiasmo, que, mais tarde, foi retomado. Quando alguém conseguiu que músicas em ritmo de samba fossem tocadas, diversas bailarinas performaram como passistas de escola de samba: acelerando e desacelerando os passos, rebolando, movimentando os braços sensualmente e fazendo truques como saltos e giros ritmados. Quando duas mulheres que não estavam conosco tentaram acompanhá-las, a exuberância performativa decaiu novamente. Embora Diana tivesse sido uma das bailarinas que dançou por mais tempo, ela seguiu sendo vista como mais contida do que costumava ser. Continuaram esperando dela um comportamento mais “animado”. A crítica era basicamente a de que Diana, por priorizar o seu namorado, estava se tornando outra pessoa. Fiquei durante toda a noite tentando buscar informações mais substanciais, algo que pudesse servir como evidência daquilo que as fofocas construíam. Encontrei unicamente condutas afetivas repetidas; digo, no decorrer daquela noite, Diana sistematicamente beijou e acariciou o seu namorado. Se dançava, em seguida voltava e se envolvia ativamente nos braços de Chris. Por vezes, foi ele quem requisitou o retorno da namorada. Se em alguns momentos era Diana quem reivindicava de
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suas amigas posicionamentos menos “conservadores”, como, por exemplo, ao acusar algumas de suas amigas de retardar o jogo da sedução “fazendo a mocinha”, em outros era ela que se posicionava dessa forma. Não estou me referindo a uma simples oposição entre o que se espera que outros façam e o que o próprio agente faz. O que está em questão é um posicionamento não congelado do sujeito porque, se Diana resistia aos controles que Chris tentava exercer sobre seu corpo e vestuário, ela também cedia propositadamente aos mesmos. Nitidamente, a dançarina transitava entre práticas e retóricas de cunho liberatório e de cunho tradicional no âmbito do gênero. Se os exemplos da primeira são as acusações relativas ao retardo do jogo sexual e os esforços manifestos para seguir usando vestidos curtos, os da segunda podem ser encontrados nas práticas rotineiras de demonstração pública de afeto – especialmente no ir e vir, na exibição de si dançando e, em seguida, no retorno para beijar Chris exibindo desta vez a relação, o namorado. Qualifico esse trânsito de duas maneiras: (1) seguindo a lógica das fofocas, como produtor de uma imagem moral de Diana ou, para ser mais exato, de um incômodo coletivo; (2) do ponto de vista dela mesma, como um modo afetivo/político de amenizar, controlar e/ou afastar conflitos conjugais. Essas estratégias se repetiam tal como os conflitos. Ainda que não tenha acompanhado a briga que descrevo na sequência, estou certo de que a mesma ocorreu na arena onde os shows do circo aconteciam porque de longe ouvi um estrondo, que, conforme soube depois, foi fruto de um soco que Chris dirigiu contra uma estrutura de metal que despencou, tamanha a força empregada. Como outros, apenas flagrei Diana passando chorando em direção ao seu camarim. As reações coletivas foram faciais: sobrancelhas envergadas e olhos revirados. A meu ver, a repetição desses olhares reclamava de Diana modos particulares de ação. A performance afetiva cotidiana, para além de ser estratégia anticonflito nos meandros da relação entre dois, qualificava um posicionamento em relação às criticas sutis que o casal sofria. Enquanto os olhos revirados podem ser pensados como uma estratégia de persuasão, um modo de dizer “assim não dá para continuar”, a dramatização de paixões em público pelo casal pode ser interpretada enquanto uma resposta de não assentimento dada, sobretudo, pela namorada de Chris aos críticos. É factível
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inclusive qualificar a publicação frequente da “felicidade do casal”5 nas plataformas online como uma paródia da resposta ordinária. Era como se Diana repetisse, em múltiplos planos, que ia sim continuar com Chris. A exibição da intimidade no âmbito público tendia a favorecer os atos empreendidos pelos amantes. O amor se engrandecia reclamando silêncio. As sobrancelhas se contorciam não à toa: eram vozes que sobreviviam como rumores. Fissura: Rafaela e Ian Já fazia algum tempo que as performances tinham atingido o ponto alto. Refiro-me novamente à noite em que comemoramos o aniversário de um brasileiro em uma boate. Dado momento, percebi que Rafaela e Ian estavam discutindo no canto de uma das portas/janelas que garantiam acesso à rua. Somente podiam vê-los ali aqueles que estivessem dentro do camarote, e não no centro da boate dançando. Havia certa exigência implícita de descrição, que buscava compor os limites tênues entre o privado e o público. Evitando fixar o olhar, vi Rafaela empurrar o seu namorado e depois estapear o peito dele. Ian segurava os braços dela impedindo não apenas a repetição das agressões, mas também dificultando a movimentação da bailarina para fora daquela região. Ela estava encurralada. Isso se repetiu por algum tempo. De longe, não podia ouvir bem o que eles diziam em inglês. Ainda que o casal percebesse o controle que os olhares exerciam, eles pouco se sentiam afetados. A qualidade persuasiva da noção de intimidade impediu que eu me aproximasse, tal como outros rapidamente fizeram, mas também não foi competente a ponto de me levar a não reagir posteriormente à sequência de atos que exasperava a todos. De onde eu estava observava Diana e Chris ao fundo e lembrava do esforço despendido por ambos para tornarem as suas discussões um assunto controlado, isto é, passível de existir sobretudo ou somente nas expressões faciais. Quando vi Rafaela ultrapassar Ian e ele abaixar, tocar e girar o corpo da brasileira no ar de modo a posicioná-lo sobre os seus Fotografias do casal sorrindo em pontos turísticos em um sem número de lugares; jogando vídeo game; se beijando no trem, nos camarins, nas arenas; etc. 5
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ombros, ouvi uma bailarina gritar que ela tinha dado um “tapa na cara dele”. Praticamente no mesmo instante, Rafaela começou a berrar e a estapear freneticamente as costas do seu namorado. Bastaram dois passos de Ian para que eles chegassem ao meu lado. E foi ali que ela caiu ou foi jogada – precisamente em cima de um sofá localizado em frente a uma mesa de vidro cheia de copos e garrafas de vodka. Em um rompante, ela se ergueu e projetou o seu corpo contra o acrobata e em direção à mesa. A raiva e a força dela por pouco não derrubaram a mim no exato momento em que a segurei no ar pela cintura. Eu tive a impressão de que, se Rafaela conseguisse chegar até Ian, o conflito poderia tomar proporções ainda maiores. O que eu via, mas não tinha acontecido e nem aconteceu, era Ian revidando os socos, os tapas e os pontapés que sua namorada pretendia lhe dar. De fato, ele ficou parado com as mãos postas atrás de seu próprio corpo. Eu a soltei rapidamente. Muitos ocuparam em milésimos o espaço ínfimo que separava o casal. Rafaela enfurecida jogava o seu corpo contra os demais e acertava socos naqueles que não eram o seu alvo. As pessoas gritavam em inglês e em português. Queriam que Ian saísse da boate. Ele continuava na mesma posição. Não consegui ouvir palavras em russo e/ou ucraniano. Todos os que estavam em meu campo de visão pareciam desesperados. Limites haviam sido ultrapassados. Daquele ponto em diante não era possível se ausentar. Se como escreve Díaz-Benítez (2015), as fissuras6 não devem ser entendidas enquanto elemento presente e possível unicamente Referindo-se aos filmes de fetiche, especificamente às filmagens de práticas de humilhação extrema – asfixiar; cagar e comer; socar; causar vômito; provocar flatulência; e assim por diante –, Díaz-Benítez argumenta que o observador precisar ter fé naquilo que vê, ele precisa acreditar que é real em algum nível, embora conheça o caráter teatral do que assiste. Nos momentos em que a encenação da humilhação atinge a sua eficácia, ponto máximo de convencimento, poderiam ocorrer as fissuras: “a fissura seria então o estado, dentro da encenação da crueldade, em que os roteiros são extrapolados e são ativados os perigos subjacentes a uma estética do sofrimento. O ‘choro em tempo real’ do qual falei algumas páginas atrás revela um período em que são excedidos os limites da encenação fazendo com que o hiperreal [exagero dramático que visa se aproximar ao real] decaia e se emaranhe com o real. Dito de outro modo, a fissura seria aquele instante e espaço que nas práticas de humilhação se passa do consentimento ao abuso (...) A fissura é evidência de que a prática ultrapassou a expectativa da dor, é uma pequena fenda onde o ato (ou a representação do ato se torna violência, embora logo a fissura se refaça por meio da sociabilidade que envolve as dinâmicas de grupo nos sets de filmagem” (DíazBenítez, 2015, p. 78). 6
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no decorrer de práticas sexuais extremas, então parece possível argumentar que o caso descrito revela uma fissura no seio de relações afetivas tomadas frequentemente como pertencentes ao território da intimidade. Esse deslocamento conceitual não coloca dúvidas7 a respeito da fissura como um momento de transformação do drama e nem mesmo como uma extrapolação de limites individuais e coletivos. O que precisa ser melhor analisado nesse deslocamento é a passagem do consentimento ao abuso justamente porque a fissura, nesse caso, acontece em uma cena pública na qual os agentes não apenas atingem picos de tolerância em pontos distintos, como também a própria fissura tensiona o que se quer como público e o que se quer como privado. Os limites são rompidos sucessivamente: o de Ian, ao levar um tapa na cara; o de Rafaela, ao ser carregada; o meu, ao vê-la enfurecida sobre o ombro de seu namorado; o dos demais, ao me verem interceder. Isso cria, portanto, a dificuldade de definir de modo demarcado o que é e onde está o abuso. Ele existiu em todos esses momentos, mas nunca em referência ao mesmo ato. Talvez devamos pensar aqui o abuso como algo que se constrói em uma cadeia de ações e reações, aquilo cujo significado é angariado em processo. Em outras palavras, as fissuras acontecem uma após a outra e, nesse movimento, se constrói uma percepção coletiva do abusivo, daquilo que demanda intervenção. No primeiro instante, eu me senti comprometido com o que via como violência ao não intervir imediatamente. Logo, me dei conta que o caso era mais complicado porque não era esperado que eu assim fizesse, afinal até certo ponto a discussão deveria permanecer sendo relativa ao casal e, portanto, referente à intimidade. Mas a dramatização desses atos na boate fazia dos mesmos um assunto coletivo paulatinamente. Se desde o início o privado colidia com o Acredito que é menos operante no caso das relações amorosas seguir com a interpretação da fissura como um momento de passagem do hiper-real ao real porque, nesse âmbito, não se trata de uma performance e nem se intenta adentrar no terreno do excesso. Em outras palavras, no caso descrito não estou falando sobre uma encenação que se quer realística, e sim sobre o próprio real ou, como me parece mais adequado, sobre uma fissura ordinária no seio de relações amorosas. O problema que emerge é distinto porque, se durante as gravações comerciais das práticas de humilhação o excesso é continuamente buscado, pois qualifica o hiperreal; na situação descrita, o excesso é justamente aquilo com o que não se deveria brincar, embora os conflitos conjugais carreguem consigo possibilidades de cunho erótico (Gregori, 1993). 7
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público, eram os olhos gerenciadores e afastados que distinguiam esses domínios ao se furtarem a fazer algo mais. A fissura é aqui o ponto ou conjunto de pontos onde o moralmente suportável beira o insuportável, onde o público invade o privado e onde o consentimento que se supõe existir em relações íntimas entre sujeitos racionais cede lugar ao abuso dos corpos e à extrapolação dos limites individuais e coletivos. Estou insistindo no uso da ideia de fissura porque se, no caso das práticas de fetiche extremo, ela acontece em ambientes controlados e é a evidência da ultrapassagem da expectativa da dor infligida por golpes, saltos e outras práticas; aqui a considero como um ou vários momentos em que a expectativa da resolução do conflito se descaracteriza ou ao menos se revela frágil aos olhos observadores. A expectativa já não pode ser cumprida pelo casal. Diaz-Benítez (2015) sugere ainda que as fissuras pouco duram, pois logo se busca saná-las. Levando esse argumento em consideração, gostaria agora de dirigir a atenção às práticas de intervenção demarcando, desde já, o não emprego da palavra violência por todos os presentes. Se eu pensava nesses termos e não dizia, talvez outros assim procedessem. Por que não? E por que não verbalizar tal palavra? Essas foram as duas questões que me motivaram segundos após o episódio dramático e dias depois do mesmo. O que vi, pouco antes dos ânimos se acalmarem, foi o segurança caminhando em nossa direção e, em seguida, segurando Ian pelo braço. Ele estava expulsando o acrobata. Alguns, homens e mulheres, tentaram impedir que isso acontecesse. Supus que Rafaela não corria risco semelhante devido ao repertório de gênero normativo; de modo grosseiro, acreditava que os chutes e tapas dados pela bailarina estavam sendo tomados como menos abusivos que as ações de um homem estrangeiro:8 reter e suspender o corpo de sua namorada. Entretanto, prontamente se formou um grupo de homens liderado por aqueles que melhor falavam inglês. Eles conversavam com o segurança, tentavam convencê-lo a deixar que Ian voltasse para a boate. A resposta foi a de que era melhor mantêlo do lado de fora. Apenas meses depois considerei a possibilidade de ter existido certa confraria masculina que expulsa menos para Uso essa classificação porque não sei até que ponto o segurança percebeu Ian como russo. No entanto, ele estava certo de que o grupo não era norte-americano – não em sua maioria. 8
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condenar e mais para salvaguardar o sujeito e o espaço dos efeitos maiores do conflito: escândalo, intervenção policial e depredação do patrimônio. Certo é que Rafaela permaneceu na boate chorando enraivecida. Como as portas/janelas continuavam abertas, Ian saiu pela porta principal, mas se reuniu com as bailarinas e com os bailarinos que estavam do lado de dentro da boate. A grade que os separava era diminuta, mal passava de suas cinturas. O segurança mencionado posicionou-se na calçada e ali permaneceu cercado por homens brasileiros e estadunidenses. Eu estava apoiado nessa grade antes mesmo de Rafaela aparecer ali. Ouvi algumas pessoas pedirem novamente que o acrobata fosse embora. Quando essa demanda foi reforçada, Ian, estressado e engolindo o choro, disse que sua namorada estava bêbada. Muitos já tinham afirmado isso. Na sequência, ele sentenciou: “I just wanna take care of her” [Eu apenas quero cuidar/tomar conta dela]. O acrobata repetiu inúmeras vezes essa frase. Somente Rafaela pôde interromper a força performativa do dito. Mesmo classificada como alguém incapaz de guiar a si mesma porque bêbada, ela afirmou que também Ian não podia ofertar cuidado porque era tarde demais, isto é, ele deveria ter cuidado dela em um momento anterior. Perguntei a alguém ao meu lado o que a bailarina queria dizer. Foi aí que me explicaram rapidamente a origem da confusão. Rafaela queria que Ian tivesse se posicionado contra o rapaz russo com quem ela havia brigado minutos antes da confusão ter iniciado. O cuidado tinha sido anteriormente buscado. A bailarina em questão teria pego pedras de gelo e colocado dentro da blusa do amigo do seu namorado. Ele fez o mesmo. Ela revidou. Dado instante, o rapaz russo colocou gelo não mais nas costas e sim na altura dos seios da brasileira. Rafaela entendeu o ato como abusivo. Então, ela brigou com o jovem e foi reclamar com Ian. Era sobre isso que o casal discutia. Rafaela teria acusado o acrobata de ficar do lado de seu amigo, e não do seu. Por isso, finalmente, Ian não poderia ofertar cuidado. Ela respondia que ele não mais estava autorizado a tomar conta, a vigiar ou controlar a situação e/ou o seu corpo enfurecido e alcoolizado. Ian perdera tempo decidindo a quem apoiar. O que sua namorada não aceitava era a lealdade dividida. Isso ficou bastante claro quando ela começou a repetir: “You can’t take care of me! Go with your friend!” [Você não pode cuidar/tomar conta de mim. Vai com o seu amigo!]. O poder reiterativo dessas palavras
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produziu não mais respostas verbais, mas um gesto de Ian. Ele parou um táxi. Em russo, falou com seu amigo, que, em seguida, entrou no carro e partiu. Talvez este ato pareça insignificante, mas devo lembrar que estou falando sobre pessoas que moravam em um trem situado, por vezes, em locais de difícil acesso. É preciso dizer também que o russo, transformado em pivô do conflito, não falava inglês. Ao colocálo em um táxi, Ian se (re)posicionou. Entretanto, agindo em favor de sua namorada, ele causou o descontentamento do seu amigo e de outros a ele ligados. Soube, dias depois, que aconteceram discussões entre russos a esse respeito, mas não sei o suficiente para contá-las. A ausência de proximidade e a linguagem foram barreiras nesse caso. Assim que o rapaz foi embora, Ian e Rafaela iniciaram uma conversa em tom de voz ameno. Eu e outros nos distanciamos. Entendíamos que o diálogo que agora se iniciava dizia respeito à intimidade. Em outras palavras, atuávamos na reconstrução da intimidade fissurada fazendo do conflito novamente um assunto doméstico. O que significava que os atos abusivos seriam debatidos não em alto e bom som, mas sim via fofoca. Distinguíamos, portanto, entre o público e o privado buscando um modo de forjar uma ou várias versões sobre o ocorrido. Eram também as fofocas que, ao não incluírem Ian e Rafaela como falantes, atualizavam a distinção entre domínios. Quando nos afastamos do casal, ouvi comentarem: “eu tô dizendo que essa garota é maluca, mas ninguém acredita”; “sempre que bebe fica assim”; “ela não está bem”; “histérica”. Ao passo que estranhei o fato de Ian não ser mencionado, me dei conta de que estava sendo construída ali uma noção de culpa ou, mais do que isso, a ré já existia. A bailarina brasileira era a responsável. Percebendo o acionamento de um repertório de gênero normativo, voltei para o trem no mesmo carro que Ian e sua namorada. Falávamos sobre tudo e nunca sobre o ocorrido. O casal trocava beijos, se abraçava e usava expressões em russo em tom de voz abobalhado. Finalmente no trem, não me espantei quando comentaram que “eles não tinham vergonha na cara”, especialmente Rafaela. Talvez seja importante não reunir em demasia os gestos de intervenção e os de reparação. Isso porque esses últimos fluem no sentido da restauração das relações (ação duradoura) e os primeiros dirigem-se contra a extrapolação dos limites morais (ação efêmera). Dito de outro modo, a intervenção inaugurou no caso descrito a reparação, sendo a frase “I just wanna take care of her” [Eu apenas
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quero cuidar/tomar conta dela] o estopim de uma série de práticas/ ditos que silenciam o conflito de modo precário, porém suficiente para restaurar lentamente a intimidade fissurada. Se a fissura é aquilo que a intervenção busca sanar, a memória desse momento dramático é persistente. Não seria possível interpretar as práticas afetivas pós-conflito como algo que emerge contra esse tipo de memória, algo que é senão reparação? Anteriormente, fiz sugestão semelhante ao argumentar sobre a relação entre Diana e Chris; entretanto, não estava em questão qualquer fissura – ao menos não a ponto de se tornarem enunciáveis ou evidentes. O fato é que nos dois casos a demonstração de afeto foi lida pela audiência com desconfiança. Isso instaurava também a necessidade de silenciar ou trafegar pelos cantos acontecimentos que incomodavam. Através das fofocas debatia-se o fato de Rafaela ter tirado do dedo a aliança que usava e, dias depois, tê-la recolocado e assim selado uma vez mais o seu compromisso com Ian. Também via fofocas forjava-se uma versão comum sobre o ocorrido: se fora mesmo “histeria” da dançarina que levara ao conflito, como explicálo? Resposta: Rafaela não amava o seu namorado como ele a amava. E era por isso que o acrobata não era acusável. Certamente, os braços posicionados atrás do próprio corpo, a enunciação do tapa na cara dado por Rafaela e o próprio discurso do cuidado frente ao corpo embriagado auxiliavam na construção da remissão dos atos dele. A encenação ativa da passividade não chegava a fazer de Ian uma vítima, mas fazia dele um cúmplice do desamor. Episódios anteriores passaram a ser comentados. Falava-se, principalmente, sobre o dia em que Rafaela expulsou o seu namorado da festa que ele havia organizado em comemoração ao aniversário dela. Esse acontecimento operava como evidência da culpa da bailarina e como confirmação da paixão cega do acrobata. Na dobra do cuidado e do controle Não vi Rafaela expulsar Ian do seu próprio aniversário porque estava em outro lugar da boate dançando com Diana. Esse fora o dia em que ela brigou com Chris por causa do vestido curto que usava. É possível aproximar esses momentos reunidos pela fofoca em mais um quesito. Quando eu disse à Diana que tinha ficado
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intrigado com o uso da expressão “take care” [cuidar; ter cuidado; tomar conta], ela prontamente respondeu que Chris tinha dito o mesmo quando reivindicou o controle sobre o seu corpo. “Take care é o caralho!”, bradou a bailarina não apenas repudiando as atitudes de seu namorado, mas também se aproximando da forma como ela julgava que eu entendia a sequência de discussões descrita. Até certo ponto ela estava certa porque, imerso nessa teia de acontecimentos e significados, eu sorri ao ouvir o que me parecia politicamente relevante. O meu esforço seguinte foi o de não requerer de Diana um posicionamento não ambíguo no fluxo da vida cotidiana. Tal como sugere Zampiroli (2018) é na dobra do cuidado e do controle que os atores sociais disputam o espaço e o papel de cada um na relação. Seguindo as pistas do autor, parece possível dizer que cuidado e controle são menos antíteses do que um território existencial contínuo e eivado de tensão. Isto é, um território constituído pela intensidade própria das disputas, pelos sentidos dos atos de fala, das experiências e das relações atravessadas pelos marcadores sociais da diferença. A dobra do cuidado e do controle é uma composição de força que, no caso de Rafaela e Ian, perpassa a todo instante gramáticas de gênero em constante (re)atualização e que, como visto nas inúmeras cenas descritas, pode pender mais para um lado do que para o outro. Terminei manifestando a minha preocupação à Diana. Pedi que ela tomasse cuidado caso fosse mesmo viver, longe de conhecidos, com Chris em um futuro próximo. A dançarina me questionou se eu achava que ela ia “apanhar” e me deu a entender que seu namorado não faria isso. O assunto tinha que ser encerrado ali, pois eu havia aberto a possibilidade de, em retrospecto, atos já geridos serem ressignificados como violência. Usar essa palavra, em qualquer uma das situações descritas, era colocar em risco os amores porque fazia de quem se ama, sobretudo daquele que se ama, uma figura acusável para além dos momentos de raiva ou extrapolação dos dramas. O problema que se criava ao falar em violência era o de como geri-la. Para Diana, o meu pedido de cuidado parecia ir contra a ficção de controle que ela buscava produzir. A minha interlocutora agia como se dissesse que a aproximação entre os relacionamentos amorosos mencionados deveria ser feita de modo cauteloso, embora fosse rotineira e bastante evidente nos cochichos pelos bastidores, já que continha implícita a possibilidade dos conflitos entre diferentes
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casais serem tomados como suscetíveis a uma gradação: como se passássemos inevitavelmente do menos dramático ao pouco tolerável ou intolerável. O possível não é o necessário, sabemos. Diana me repreendeu devido à acusação que, a seus olhos, eu proferia em meias palavras. As intensidades crescentes e decrescentes no modo como as relações são vividas não devem ser descartadas, portanto, e sim descritas etnograficamente. Afinal, não é a intensidade crescente que caracteriza o drama que envolve Rafaela e Ian? Se sim, é fundamental fazer uma segunda pergunta: como pensar o que sucedeu após a fissura? O que se buscou foi exatamente conter a participação/ intervenção de figuras não familiares no drama. Nesse sentido, conversar com o segurança da boate não é uma ação que deva ser banalizada porque se não houve violência declarável no ápice do conflito, se a classificação de atos como violentos não correu em bocas alheias, então não havia o que ser reclamado às instâncias outras. Ou seja, mesmo que tenham existido diversos atos representados como abusivos, não existiu ou não podia existir a enunciação desses mesmos atos como violência porque aparentemente se pensava que o uso dessa palavra legitimaria não apenas a incriminação daquele que se ama, mas também uma intervenção de figuras distantes: a empresa, a polícia, o Estado. Modulando-se o que dizer resolvia-se a fissura e permitia-se que o conflito retornasse ao domínio da intimidade e passasse a circular apenas de forma abafada. Deste ângulo, enunciar o cuidado seria borrar a violência e iniciar práticas de reparação que agentes externos não podiam ofertar. No limite, sequer era esperada qualquer reparação advinda de instâncias outras. O caminho da denúncia era continuamente refutado. Tudo tinha que ser resolvido entre conhecidos para que a dobra do cuidado e do controle não se curvasse a ponto de poder quebrar. Não se trata, portanto, de qualificar tais relacionamentos como espécies de bomba relógio, nem mesmo da tentativa de estabelecer parâmetros inequívocos para uma análise sensorial do processo social. Trata-se da deflagração das sinuosidades do cotidiano e da busca por conceitos que permitam entender por que parece tão importante para os atores não categorizar atos como violência no seio de relações declaradas como amorosas. Falar em fissura na dobra do controle e do cuidado é recorrer a uma palavra que parece menos comprometida, já que chama atenção a
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um momento preciso classificado como excessivo no decorrer de dramas que irrompem e se esgotam. A ideia de fissura nos permite não operar através da remota e insuficiente possibilidade de definir de uma vez por todas o que é ou não violência. Se perguntassem se acredito que essa ideia naturaliza as relações ao não moralizá-las, diria que a fissura permite, na verdade, deflagrar o trabalho afetivo a que se devotam os atores sociais e que é preciso considerar outra pergunta central: como a noção de amor romântico acaba por definir maneiras adequadas de se viver um relacionamento? A tarefa a que me devoto está longe de ser a de descaracterizar o romantismo associado às relações afetivas. As pessoas com as quais convivi o buscavam e o pensavam como manifesto nas relações que elas mesmas viviam. Se não fosse assim, talvez elas sequer insistissem tanto em rememorar viagens paradisíacas ou em declarar paixões durante conversas ou nas postagens veiculadas nas plataformas online. Estou apenas chamando atenção para o fato de que as censuras que Diana e Chris sofriam, mas também Ian e Rafaela, forjavam como contrapartida a veiculação de uma noção de amor digno – aquele no qual o romantismo deveria prevalecer. Dito de outro modo, a noção de amor romântico criava a possibilidade dos casais citados serem julgados em termos morais negativos e, se quisermos ser mais extremistas, quiçá verem as suas relações conjugais ejetadas para fora do próprio domínio afetivo porque vistas como inadequadamente vivenciadas. A esse risco, Diana, Chris, Rafaela e Ian não podiam se sujeitar. No contexto da migração, precisamente no contexto circense, os relacionamentos operam como recursos sociais importantes na produção da capacidade de sustentar-se longe dos familiares e manter uma rotina de trabalho demasiada. Os amores propiciam alívios e, por vezes, a possibilidade de se manter nos Estados Unidos de forma independente à empresa contratante. As durezas da condição de imigrante apareciam com frequência na fala das minhas interlocutoras como passíveis de serem contornadas a partir de investimentos afetivo-sexuais que, como visto, também não eram fáceis de serem postos em ação no curso dos conflitos, frente a olhares enviesados e na dobra do cuidado e do controle. Os meus interlocutores, quando decorrida cada uma das situações descritas, sabiam que em cinco ou seis meses as suas vidas poderiam ser outras, caso contratos não fossem ofertados a eles para a próxima
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temporada de shows ou mesmo fossem deslocados de unidade de trabalho. Estando a proximidade que permitia, dia após dia, a construção de amores possíveis ameaçada por contratos hábeis em fabricar distâncias, fazer as relações perdurarem era uma iniciativa árdua, urgente e capaz de exibir o amor como um conjunto de atos afetivo-morais concatenados, sucessivos ou simplesmente alinhados uns aos outros. Cada um desses atos solidificava as relações, desde o princípio submetidas a uma temporalidade definida por contratos, temporalidade que para se estender para além do circo demandaria outros e novos esforços – como temido por Rafaela e Diana. Desejo e Conflito Diana e Rafaela agem através da linguagem de gênero e/ ou da raça e da classe, ora buscando solucionar conflitos, ora censurando pontualmente o comportamento de seus respectivos namorados. Acredito que seria redutivo afirmar que elas simplesmente reclamam modalidades mais igualitárias de relação. Como boa parte da energia despendida pelas brasileiras tinha por intuito conter a interferência alheia, seria preciso considerar se o que estava em questão não era principalmente o alargamento das possibilidades de vivência dos amores na cena pública. Nesse sentido, parece possível argumentar que os conflitos e os picos dos dramas conjugais, as fissuras, permitem que os limites morais sejam contorcidos e/ou esticados através da própria exibição continuada, repetida, de choros, acusações, gritos e mesmo chutes, socos ou pontapés. Nada disso poderia acontecer sem que os olhares enviesados buscassem o silêncio prezando a intimidade e respondendo aos gestos de demonstração de afeto. Para viver o amor do modo como vivia, Diana precisou fazer com que os seus amigos, o que inclui a mim, passassem a se comportar de modo a não “dificultar” a suas negociações com Chris. Trata-se da afirmação da agência feminina na demarcação do domínio da intimidade e na lida com os homens amados. Lida cujo sucesso era justificado como garantido, no caso de Diana ao menos, a partir de identificações de classe e raça/cor com seu namorado e em demérito das distinções de pertencimento sócio-cultural. No entanto, para além de uma experiência comum que fornecia os meios
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para a bailarina em questão controlar e rearranjar os termos do seu relacionamento, a raça e a classe eram veículo da erotização de Chris. Diana dizia que seu namorado era um “preto gostoso”, “nigger”, e frequentemente mencionava em tom triunfal o tamanho do “pau” dele. Ela o comparava aos brasileiros e declarava tanto na frente de suas colegas de trabalho quanto na dos bailarinos que não saberia mais transar com os homens de seu país natal. Diana debochava dos bailarinos criando analogias e vangloriava a si mesma nas conversas com as dançarinas. O sexo, o corpo e o prazer eram apresentados como potencialidades relativas à Chris, bens simbólicos e sensoriais que a dançarina “tinha”, dispunha e usufruía. Fabricando autoelogios, Diana exibia publicamente as virtudes da masculinidade que ela criticava e desejava. A contrapartida desse componente erótico da masculinidade era, neste caso, justamente aquilo com que a bailarina lidava no dia a dia: o controle de seu corpo, a demarcação do comportamento feminino adequado – o uso de tal ou qual vestido – e os múltiplos conflitos. Diana parece sugerir a importância de pensarmos o conflito conjugal não apenas na chave daquilo que os gestos sutis implicam – controle, intervenção e reparação –, mas também como momentos de erotização de seu parceiro. Desse ângulo, conflitos, dramas e fissuras fornecem também elementos para a articulação do desejo. Não estou afirmando que as brigas eram simplesmente buscadas por Diana ou qualquer outro(a), e sim sugerindo, na esteira de Gregori (1992), que é preciso entender os múltiplos significados que as práticas classificadas como abusivas, porventura violentas, assumem em contextos específicos. Não há resolução analítica fácil para nenhuma das situações descritas, o que faz da aposta na sinuosidade do cotidiano senão uma tentativa de incorporar uma vez mais à etnografia as ambiguidades do processo social, especificamente do engajamento continuado com o outro. Tomar o amor como um conjunto de atos afetivo-morais foi o caminho que encontrei para dar conta, de modo parcial notavelmente, do tanto que Diana dividiu comigo sobre Chris, mas também do que Rafaela e Ian viviam. Todos, a despeito de tudo o que acontecia, talvez em razão de tudo o que acontecia, corriam para reafirmar o amor que sentiam como genuíno.
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Coleção Stoner O trabalho universitário talvez poucas vezes tenha sido tão bem retratado quanto no “campus novel” Stoner, de John Williams; nele, somos apresentados à trajetória de vida do protagonista que dá título à obra, desde suas origens humildes até o final de sua jornada de muitos anos como um acadêmico de literatura, passando pelas vicissitudes do cotidiano institucional, da docência e da pesquisa. Buscamos homenagear esse personagem no título de nossa coleção devotada a contemplar o trabalho acadêmico realizado com integridade e excelência - a tese, a dissertação, a coletânea de ensaios - em suas variadas dimensões. Títulos publicados
O samba é fogo. O povo e a força do Samba de Véio da Ilha do Massangano Márcia Nóbrega
Meninas más, mulheres nuas. As máquinas literárias de Adelaide Carraro e Cassandra Rios Pedro Amaral Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América Latina (18961932) Miriam V. Gárate A vida em cenas de uso de crack Erick Araujo
A perversão domesticada. BDSM e consentimento sexual Bruno Zilli
Não leve flores. Crônicas etnográficas junto ao Movimento Passe Livre -DF Leila Saraiva
Batalha de confete. Envelhecimento, condutas homossexuais e regimes de visibilidade no Pantanal - MS Guilherme R. Passamani (Des)Prazer da norma Everton Rangel, Camila Fernandes, Fátima Lima (Orgs.)
Formato 16 x 23
Tipologia: Cambria
Papel: Pólen Soft 80 g/m2 (miolo) Supremo 250 g/m2 (capa)
As relações de gênero, sexualidade, afeto e família estão no epicentro dos debates político-morais que atravessam nossa realidade contemporânea. Seus limites, formas e dinâmicas apresentam-se como matéria de governos e violências. E, às vezes, como parte do desejo por governos violentos que vemos circular e ganhar espaço crescente em nossa sociedade. A chegada da coletânea (Des)prazer da norma deve ser saudada, assim, não apenas com admiração intelectual pelo rigor teórico e apuro etnográfico presentes em cada texto, mas também com o reconhecimento da coragem politica e epistemológica que nela pulsam. A marca do trabalho coletivo cultivado nos cinco anos do NuSEX – Núcleo de Estudos em Corpos, Gênero e Sexualidade, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ, pode ser percebida no modo como as diferentes pesquisas dialogam entre si, embaralhando fecundamente domínios que poderiam apresentar-se como distintos a um olhar mais apressado. Com isso, faz jus ao que melhor podemos, como produtores de conhecimento acadêmico qualificado, oferecer de volta à sociedade: a chance de compreender de outro modo nossa realidade, adensando perspectivas e desafiando as amarras do senso comum e das moralidades de ocasião. Adriana Vianna Museu Nacional/UFRJ