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Portuguese Pages 216 [111] Year 2007
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Alfonso Berardinelli
ISBN 978-85
9li7 8 8 5
801.95 B427pP
DA'POESIAAPROSA
Os oito ensaios que compõem .Z)apoli;a à praia, do crítico italiano
Alfonso Berardinelli, foram escritosnos últimos 25 anos O mais antigo, 'As muitas vozes da poesia moderna" (lg83), talvez seja também o mais
importante, no sentido de fornecer ao volume uma nítida coesão.Trata-se de uma crítica tanto precisa quanto fecunda do célebre livro de Huno Friedrich,
Exrru ura da /z'Hca mover/za (i956).
Berardinelli mostra como a descrição efetuadapor Friedrich, embora minuciosa e excelente, foi tendenciosa ao considerar uma linhagem exclusiva da lírica, de matriz francesa, caracterizada pelo acúmulo de categorias negativas. Em "Quatro tipos de obscuridade"(i99i)
são sintetizados os tra-
ços dessanegatividade: "solidão, mistério, provocação, ]argão"; isto é, comportam a natureza mais íntima da lírica moderna a tendência irresisdvel ao solipsismo; a fuga obstinada à rotina, a partir da identMcaçãopura e simples entre cotidiano imediato e estreitezaburguesa; a atitude sempreprovocativa e desü'uidora; a urra especializaçãoda linguagem, transformada, nos casos
extremos, quaseem idioleto. Numa de suaspassagens irónicas, o autor dispara: "tudo era possível em poesia, tudo era permitido, excerodZÍer a/gzzma coça". Estabeleceu-seassim um autêntico preceito: a melhor poesia escrita no século xx é necessariamentehermética.
Ora, é o posicionamento frontal contra essepreceito que dá ao livro, organizado por Mana Betânia Amoroso, a sua unidade mais visível. Nessaposição o autor não se sente solitário, e entre os críticos convocados
estãoAdorno, Auerbach,Enzensberger, Edmund Wilson, além dos italianos Debenedetti, Mano Praz e Pasolini. De passagem,nos títulos dos dois ensaios até aqui mencionados há ecos evidentes de Eliot ("As três vozes da poesia") e Empson ("Sete tipos de ambiguidade") e revelam a forte presença da crítica e da poesia anglo-americana no pensamento do autor; Whitman e Auden, por exemplo, têm lugar de destaque.
Ao questionar que o retraimento constitua o modo de ser exclu-
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IW
sivo da poesia moderna, o crítico se abre para possibilidades menos consideradas. "As fronteiras da poesia" (i993) e "Poesia e gênero lírico:
vicissitudes pós-modernas" (pool) discutem justamente como outras tendências no século xx buscaram superar a pura retração lírica, indo
i
em direção à prosa (motivação primeira do título). Exemplo dessaargumentação crítica é "Baudelaire em prosa" (ig8g),
em que Berardinelli argumenta como a experiência tumultuada do poeta
a
Da poesia aprosa
Alfonso Berardinelli
Da poesia à prosa
Organização e prefácio Mana Betânia Amoroso Tradução Maurício Santana Dias
SBD-FFLCH-USP
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3 8 0 9 3 0
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2b.Zé':SJ
a.V
7
i3
As fronteiras da poesia
i7
As muitas vozes da poesia moderna
43
Baudelaire em prosa
59
Cosmopolitismo e provincianismo na poesia moderna Quando nascemos poetas modernos na Itália
93
DEDALUS - Acervo - FFLCH
litlitiltiliilM iilttliniútil
Pr(IIFac;o, por Mana Betânia Amoroso
iz3
Quatro tipos de obscuridade
i43
Cidades visíveis na poesia moderna
i75
Poesiae gênero lírico: vicissitudes pós-modernas
i9i
Entrevista com Alfonso Berardinelli
20)
Sobreo autor
207
Sobre a organizadora
20g Índice onomástico
r' Prefácio
Os ensaios de Alfonso Berardinelli aqui reunidos trazem a melhor reflexão,
feita por cercade vinte anos de ig83 a zoom ) sobreas razõese desrazõesda poesia moderna, embora em alguns momentos a estendapara a arte moderna em geral.
O centro nevrálgico é a constatação,anunciada com veemência, de
que existiu
ou existe ainda
um m/fo da modernidadee seu jargão,
respostapronta, automatizada "de uma modernidade não cansadade si mesma, isenta de autocrítica e ainda inteiramente confiante no progresso
ininterrupto dainovação: Com clareza e precisão, num estilo que faz com que levamos o texto
crítico com a íiuidez da narrativa, ressaltaque não é de fato verdade que o século xx foi dominado pela poesia lírica, ou ainda, que nem mesmo os poetas que foram Julgados líricos por excelência (Ungaretti, Baudelaire,
por exemplo) seajustammuito bem ao figurino. Nos capítulos que vão se sucedendo, demonstra que as teses sobre a
poesia moderna, que correspondiamde início à necessidadereal de uma nova expressão para uma nova situação, rapidamente se historicizaram dando lugar ao mito que, ao se consolidar, cria sua própria linguagem e a ela sempre remete. As várias fases são examinadas: como surge e cresce, do
que se alimenta, como se autopromove e cria a duradoura imagem do poeta moderno, até que começa a morrer pelas hábeis mãos de Berardinelli.
Estamosjá dentro do horizonte da Pós-Modernidade, maso conceito
rapidamente abraçado por tantos, de modo peremptório negado por
outros e quasejá esquecidopor todos --, é muito pouco útil, avisao crítico, mera síntese das aporias do moderno deslocadas: "Pós-Modernidade
como 7
Modernidade européia 'transferida' para outra margem, a margem ameri-
para o poeta e para sua poesia. A constatação é óbvia e ululante, mas surge
cana, em um mundo agora dominado pelo modelo americano'
diante de nossos olhos com todo seu vigor e importância depois de termos
Há uma vasta zona de sombra, ocupada por muitos poetas e muita
poesiaque foram só vislumbrados, mais do que lidos, pelos críticos do sé-
lido Berardinelli e termos sido alertados por ele. A impressão que o conjunto dos ensaios dá é de que o crítico, desde os
culo xx, justamente porque fora do alcance da luz irradiada pelas teses da
tempos iniciais de sua formação literária, nos anos t95o e ig6o, foi colhen-
poesia moderna como lírica. A eles o crítico volta os olhos e desfaz os equí-
do elementos oferecidos por teóricos e teorias, mas, sempre desconfiado,
vocos, lendo em voz alta para nós Whitman, Lorca, Auden, Vallejo e tantos
soubelê-los de modo muito particular, auxiliado pelos contra-exemplos
outros. As vozes da poesia, título de um dos ensaios, são muitas, bem mais
que a própria experiência literária italiana
A habilidade de Berardinelli
mas não só ela
oferecia.
Seassimfor, é o leitor Berardinelli o grande responsávelpor toda a
dos que as três sugeridas por Eliot.
ou a astúcia do crítico
de alguns dos tópicos consolidados sobre a poesia moderna
estáem sevaler a presença da
aventura futura do crítico. Seu ensaísmoé feito de todos esseselementos, muitos já expurgados
prosa na poesia, a fronteira entre os gêneros,o obscurantismona poesia
dos estudos literários e da própria crítica
como rechaço do mundo, a crença nas poéticas como processosde pi'agres-
particularidades estilísticas. Talvez o que mais chame a atenção é o fato de
são infinita, entre outros
Berardinelli, ao mesmo tempo e com o mesmo interesse,escrever critica
que são o alicerce do mito, para serem as pedras
de toque de sua desconstrução -- aliás, nada solipsista. Contudo, não é novidade para ninguém que a literatura perdeu a im-
por exemplo, a atenção para as
literária e autobiografismo, fazendo uso de elementos de uma modalidade de escrita semelhante às nossas "crítica impressionista"
ou "rodapé". Mas
portância que teve, até os anos iPSo pelo menos. De lá para cá, também a
nele não há "volta": tendo sempre escrito assim, afirma a tradição ensaísti-
crítica foi cada vez mais se enfraquecendo, acabando por se retirar para
ca italiana,' encabeçada por Leopardi.
dentro dos muros universitários. Esse recuo, a face menos nobre da es-
Ele nos conta quem são seusmestresadmirados: Giacomo Debene-
pecializaçãoda literatura, trouxe para o centro das discussõesas relações
detti, de quem foi aluno na Sapienza de Romã, outro grande ensaístae pouco conhecido entre nós, Auerbach, Spitzer, Edmund Wilson, Ador-
entre literatura, ensino e leitura.
Talvez por saber bem disso (e talvez por ter sido um dos motivos que
no, entre os principais. Todos críticos-ensaístas que privilegiam o texto,
pesaramna sua decisão,em i995, de deixar a universidade), o crítico ita-
a leitura cerrada, em busca das relaçõesmais íntimas entre mundo e lín-
liano presta muita atenção nas obras e autores que propuseram grandes
gualiterária.
esquemas interpretativos, modelos escolásticos, para a poesia do século xx
Mais uma vez, quem parece conduzi-lo pela mão é o grande leitor, o
e que coram, de algum modo, responsáveispela formação de novos leito-
leitor apaixonado que procura em cada poeta o que Ihe é mais congenial,
res. Um dos mais citados é .Efrrzzrzzra da /bica moderna, de Hugo Friedrich,
em ineludível relação a uma história e a uma geograâa específicas.
publicado em i956. Constando até hoje de muitas bibliografias, o livro, verdadeiro e útil
manual, divulgou um modo de ler -- e portanto de conceber a poesia moderna. Ao escrever o prefácio para uma das ediçõesitalianas da obra,
Dito isso. fica fácil entender como desfaz o mito Baudelaire, auxilia-
do mais por Auerbach do que por Benjamin, ou como põe pelo avessoa 'cidade das luzes" ou a "verdade crítica" barthesiana, ou ainda relativiza a certeza de que a poesia moderna é eterna devedora do cosmopolitismo
Berardinelli aponta os enganos que Friedrich perpetuou, já presentes no tímlo confiante: não há estrutura generalizável em poesia, a menos que se
i. É grande, e de longa data, o interesse do crítico pelo ensaísmo. Cf. Za#orma de/íaggz'o.
caia no idealismo mais deslavado que negaqualquer atributo de concretude
Z)l:/í)zlÍz'o/ze e arreia/i â dl' zzngenere /elferana. Veneza: Marsilio, zoom.
8 Pre$czo
9
r' metropolitano: depois que nos é dada a pista, descobrimosque tudo já
que se não é exclusivo da cultura italiana neste momento, é muito raro no
estava escrito nos poemas.
panorama literário em geral.
Ele credita aos franceses,de modo particular à crítica dos anos ig6o,
O que de mais comum temos, ao se esgotaremas possibilidades da metaliteratura, ou da crítica que a sustentava, é a sofisticaçãodo mesmo
a responsabilidade pela liquidação da experiência da leitura literária, anár-
princípio: o /ladoá /írerarlzr'zpassa a ado á borla, tendência programática,
quica por definição, incompatível com métodos e modelos.
autopromocional e transcendente,que odeia a história e a geografia, diria
Um outro modo de desdobrara leitura dos ensaiosexisteainda.
Argumenta que a escassaprodução de obras literárias naquele país, ao lado de uma vasta e poderosa tradição que sempre soube reordenar os próprios recursos estilísticos ou teóricos --, condicionou a substituição da
leitura de obras de literatura pelas de crítica ou teoria. De Paris, portanto,
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.. J. J-.
Berardinelli, atualizando o mito. Desaparecendo o leitor, desaparece a obra. Não é o mesmo ]eitor aquele que se aproxima da literatura ]á sabendo
o que, no anal, irá encontrar. Pode ser que este leitor nem goste tanto de literatura, mas seja um aficcionado por teorias. Há outro, o que procura nas
[\ll Cllll Anil\'C]L]\JD vD L]C]L]vD.
Na Itália, foram os Novíssimos que aceitaram o jogo, a neovanguarda dos anos ig6o, que tinha entre seusmáximos representantes Umberto Eco e Edoardo Sanguinetti, ambos críticos e escritores.
obras e nos autores aquilo que em nenhum outro lugar Ihe parece possível
encontrar e que Ihe serve de ajuda para se situar no mundo. Berardinelli aposta nesse segundo leitor e para ele escreve seus ensaios.
Berardinelli dá ao grupo um tratamentomuito semelhanteao que dispensa às demais vanguardas, incluindo entre elas o surrealismo. Rapidamente
consolidadas,passama ser autopromocionais, alimentadorasdo jargão da modernidade, e são em geral coroadas com seu ingresso triunfal na universidade.
Talvez a importância dessa vanguarda tardia dos anos ig6o seja superestimada pelo crítico, já que vista por olhos de quem não viveu o período e é de outra cultura. Na Itália, o ritmo da absorção das teorias parecia lento e a corça
da tradição crítica e literária cortes. Note-se
é aliás o próprio
autor, no ensaio "Quando nascem os poetas
modernos na Itália", quem o faz que de i957 a l97i a quantidade de ótima poesia posta em circulação foi notável: entre tanta, Ze ce/feredz Gramxci de Pasolini e Sarzzrade Montale. Portanto havia muito material literário dispo-
nível, o que, no mínimo, poderá ter amenizadoo interesseem substituir a literatura pela teoria.
Essepode ser um modo para se entendercomo agora, no século xxi, haja críticos, entre os 45 e 5o anos, que são grandes leitores, conhecedores das
A maior parte dos ensaiosaqui traduzidos foi reunida no livro Zapoeiia perto /arroja, que tr&z dois subtítulos, um na capa lírica moderna e outro na página de rosto
Connaversie sü/Za/zrzca moderna --, publicado em i994'
Uma primeira versão do primeiro deles, "As fronteiras da poesia",'
foi escritaem i993, publicadano jornal .44a/zeÉesro e, no mesmoano, na revista .Z,inca d'omófa. "As muitas vozes da poesia moderna" é o posfácio
da ediçãode ig83 da tradução italiana do livro de H. Friedrich, Exrru zzra da #);c.z mover,za (i956).
"Baudelaire
em prosa" é a introdução
escrita, em
ig8g, para a edição Garzanti da tradução italiana de Sp/eende Paria, de Baudelaire. "Quando nascem os poetas modernos na Itália" foi uma conferência apresentadaem i99z num congresso em Sant'Arcangelo di Romagna;
'Quatro tipos de obscuridade", publicado inicialmente na revista -L'w;rzo d'oro, é de i99i. O ensaio"Cidades visíveis na poesiamoderna" foi escrito
teorias contemporâneas, mas cujo embate maior é com a própria tradição,: o
z. Cf. a respeito aCHara de .44a/ei Cbúzra iza/zona,org. Mana Betânia Amoroso, n. 25.l, Departamento de Teoria Literária, IEL, Unicamp, 2005.
3. Essetexto já foi, numa outra versão, pub]icado em português pe]a revista]níozzioRIlHar, n. i4, l semestrede zoom,pp. í38-45,trad. O. M . Silvestre. Nesta edição o autor preferiu reduzi-lo: já que o último ensaio,"Poesia e gênero lírico: vicissitudes pós-modernas", o complementa. 11
io Pr(IFcia
r' para um congresso na Universidade de Cosenza, que tinha como tema "As
As fronteiras da poesia
cidades imaginárias", em i993-
Os outros dois textostraduzidos, "Cosmopolitismo e provincianismo na poesia moderna" e "Poesia e gênero lírico: vicissitudes pós-modernas", foram publicados respectivamente em Entre o avio e a ída (t994) e na revista .44oderna(zoom). O primeiro, na origem, foi uma conferência feita na
Universidade de Verona, em ig88; o outro, a participação do crítico num evento organizado pela Universidade de Siena sobre a poesia italiana na segunda metade do século xx, em zoom.
Para conhecer as fronteiras de qualquer região é preciso antester uma idéia Mana Betânia amoroso
dessaregião. Dito de outro modo: é o conhecimento das fronteiras que nos permite entender de que território estamos falando. Com a poesia, essadiscus-
são das fronteiras e dos limites se torna um belo cipoal. De fato, como todos sabem,sabemose não sabemoso que é a poesia e de que falamos ao falar de poesia. Definir a poesia, ou seja, traçar-lhe as fronteiras, foi um dos empreen-
dimentos mais apaixonantese malogrados do pensamento estético. Há anos, eu diria há décadas, tal empreendimento 6oi abandonado. Deve haver alguma razão para isso. Tempo perdido, devem ter pensado os âlóso6os, ou pelo menos os mais racionalistas, os mais honestamente empíricos, os menos teológcos.
Os que continuaram a se perguntar o que é a poesia foram, com efeito, os teólogos ou âlósofos (que hoje são muitos) para os quais a filosofia é uma espéciede teologia atualizada. Assim, na reflexão ou ruminação dessesfilósofos-teólogos, os discursos sobre a poesia terminam por assemelhar-se aos discursos sobre Deus: que se mostra e se oculta, se revela nas superfícies e
seretira nos abismos.O discurso sobre a poesiaassume,portanto, a forma
de um tratado de teologia negativa: um "entretenimento infinito", para usar a fórmula de Maurice Blanchot, em que a necessidade de calar diante
de uma entidade indeânível dá lugar, ao contrário ou por paradoxo, a discursos sem âm. O discurso se torna discurso sobre o silêncio e se parece
cada vez mais com um rumor de ebulição. Durante essaebulição, o pensamento filosófico perde o seu estatuto conceptual: primeiro se torna líquido, depois, evapora. Da poesia entendida como qualidade ontológica não se pode falar, mas se deve, de fato, calar.
iz Prefhb
i3
r Arrisquei uma expressão talvez sugestiva, até filosoficamente sugestiva,
arte pela arte. A literatura não encarnaria, pois, uma atitude comunicativa
mas decerto não muito clara: "qualidade ontológica". Se os discursos sobre
mais enérgica e viva, mas seria fuga da comunicação e do significado. As
a poesia remeterem a essaqualidade intrínseca, entrarão no âmbito do tau-
fronteiras da poesia seriam, nessesentido, limites que comprimem aquela
tológico. Com o ar de dizer a coisa essencial,não dizem senão isto: a poesia
dimensão ao mesmo tempo sublime e depauperada em que a linguagem se
é aquilo que é, a poesia é poesia. Esse beco sem saída sugere ao menos uma
desencarna, ainda que o seu tecido de figuras seja mais denso e espesso
coisa interessante: que, quando temos de lidar com uma poesia que seja po-
Os procedimentos da literariedade, portanto, separariam a poesia da
esia, essereconhecimento é uma constatação empírica que não pode ser lus-
comunicação, isolando a função poética ou auto-referencial das outras fun-
tiâcada ou argumentada conceitualmente. Não há raciocínios, não há provas
çõeslingüísticas, o que finalmente distanciada a poesia dos outros gêneros,
racionais, não há métodos seguros para aferir a presençada "qualidade on-
particularmente da prosa. O escritor mais adequado à teoria jakobsoniana,
tológica" chamada poesia em um determinado texto. A última e a mais cien-
assim, parece ser Mallarmé, talvez o poeta mais distante da prosa. Ao passo
tificamente especiosatentativa de "tranqüilização metodológica" dessetipo
que o romance moderno nascerada fusão e da mistura, a princípio um
foi levada a cabo, há algumas décadas, por Roman Jakobson. Com Jakobson,
tanto informe e caótica,de vários gêneros literários, velhos e novos, mais
a ontologia se veste de terminologia
tarde, por volta de meados do século xix, a poesia moderna se âxava como
lingüística. A poesia, a gzz/d2í
poética,
a essênciaque distingue um texto poético de um texto não poético seria, se-
lírica segundo o modelo oposto da pureza, da depuração, da interrupção
gundo Jakobson,aquilo que ele chamava de "função poética' Entre as diversas funções da linguagem (emotiva, conativa, referen-
dos nexos dialógicos e dinâmicos com outros gêneros literários.
cial, metalingüística, fãtica), haveria uma que se distinguiria das demais:
ciosas e iconolastas, mais desenfreadamente inimigas, na aparência, do pu-
precisamente a função poética, cuja principal característica seria a de não
rismo estético,como o futurismo e o surrealismo,na realidadedesaguaram
comunicar outra mensagem que não a mensagem de comunicar uma men
no mesmoleito da "poesiapura", ainda que por outras vias: com a rejeição violenta da convençãoestilística, do público, da discursividade, da repre-
vagem.A literariedade, objeto exclusivo da ciência da literatura, teria como
A coisa curiosa é que mesmo as vanguardas novecentistas mais auda-
traço distintivo a "não referencialidade",o não se referir à realidadeextrai
sentação,da narração. Deste ponto de vista, as diferenças entre um charme
lingüística, mas somente à organização dos signos lingüísticos.
de Valéry e um texto surrealista produzido pela técnica da "escrita automá-
De acordo com essateoria, a linguagem poética é nitidamente distin-
tica" não são relevantes. Mesmo que as escolhas formais pareçam opostas
ta da língua comum: ao passo que esta serviria sobretudo para comunicar,
(de um lado, metriâcaçãoclássicae léxico selecionado,de outro, magma
aquela seria tão mais poética quanto mais se subtraísse à função comunica-
lingüístico e monstros do inconsciente), a distância da prosa é em ambos os
tiva. Interrompida a relaçãocom a realidade extralingüística (o referente),
casos fortíssima. Trata-se mais precisamente de uma distância voluntária,
a língua poética é definida como esvaziamento e suspensão do significado.
ideológica e de princípio. Narrar, expressar, raciocinar e representar são,
Sua semântica é, por definição, frustrada (frustrante?).
tanto para André Breton quanto para Valéry, algo que deve permanecer para lá das fronteiras da escrita poética.
Como foi observado em várias ocasiões (por Franco Brioschi e Costanzo
Di Girolamo'), além de ser contestávelno plano lingüístico, a teoria de
Essetípico percurso da modernidade poética é em geral dado por encerrado
Jakobson seria simplesmente uma versão tardia e modernizada da poética da
há tempos, a ponto de já não se falar mais dele. No entanto, por meio de uma
série de prestigiosas teorizações (que vão até Roland Barthes e mais além), 1 . Cf.
Jt4:zaaaZe
dz' /e/zerarlzra
4 Zsjíonteiras dapoesia
zla/larga.
4v. Turim;
Bollati
Boringhieri,
í996.
[N.o.]
graçasao trabalho de inumeráveis epígonose à ajuda de uma hegemonia
r' estruturalista e neoformalistaque preponderou nas universidadesdurante cerca de vinte anos, a linguagem poética continuou seu caminho de depuração
As muitas vozes da poesia moderna
anticomunicativa, progressivamente se enfraquecendo e esvaziando. Tornou secada vez mais inadequada à elaboração de experiências novas. Quase sem
se dar conta, hipnotizados por uma autoridade teórica que definia a língua poética como algo que escapaà discursividade, à emotividade e à representação, a maior parte dos jovens autores que começaram a publicar a partir dos anos i97o não ultrapassaram os limites e o âmbito restrito âxados pela estética
formalista e pelas vanguardas informais, segundo as quais tudo era possível em poesia, tudo era permitido, exce/odz'Íer.z&uma coça.
Não obstante a sua insistência na laca;ca, o formalismo, quando se
l
transformou de atençãoà linguagem em estéticae teoria geral da literatura como literariedade, acabouproduzindo idealismo. Ou seja,a literatura
O livro já clássicode jugo Friedrich, Exfru lira da /ú;ca mover/za,tem o
como idéia e a linguagem poética como mito. Com uma certa generalização
inegável fascínio da simplificação e da síntese. A meio século de sua publi-
provocatória, pode-sedizer que o último mito de fato produzido pela lite
cação (i956), e embora desde o início fossem claras as suaslacunas e o seu
ratura européia foi justamente a idéia de Escritura literária como incansável
aspecto tendencioso, o leitor continua reconhecendo aquele fascínio. Pelo
e inflexível destruição de valores semânticos. Um mito cujo mérito e cuja
menos para os estudiosos, para os críticos acadêmicos e para o público
responsabilidade devem ser atribuídos sobretudo à cultura francesa, que,
letrado em geral, nos anos em que o livro foi concebido a poesia moderna
dos anos ig6o em diante, conseguiu rebaixar tanto o romance quanto a
ainda era um problema em aberto. Mas, por outro lado, o momento de maior inventividade já havia passado. Mesmo sem deixar inteiramente
poesia, em proveito da crítica e da escrita filosófica, pós-filosóâca e teórica. Quanto menos poesia e narrativa se escreviam, mais grandiosas, sugestivas, difusas e internacionalmente influentes se tornavam a crítica e a teoria lite-
rária produzidas na França. Uma suntuosa propaganda das possibilidades
tranqüilos os seus leitores, a poesia moderna começava a se tornar um
objeto histórico. Com sua descrição sistemática e sintética, Friedrich respondia à difu-
transgressivas,críticas e gerativas de uma literatura na verdade bastante
sa exigência de esclarecimento. Ao tentar explicar a lógica construtiva de
exígua, quase extinta, reduzida à idéia de si mesma.Por outro lado, tudo em
um gênero literário que parecia ter perdido, havia mais de um século, todo
princípio se tornava literatura, isto é, Escritura: a crítica, a historiografia,
vínculo com a racionalidade e o senso comum, Friedrich forneceu uma efi-
as ciências humanas,
caz descrição"estrutural" da lírica moderna: sobretudo (e não se trata de
a filosofia.
As fronteiras da Literatura, entendida como máquina textual que devo-
uma mera nuança lexical) em se tratando de "lírica", ou seja, de um gênero
ra a si mesma, dilatavam-se enormemente, impedindo que a idéia e a essência
literário que mantém e exacerba sua ligação com a centralidade do sujeito
literária entrassemde fato em atrito com algo de diferente e de estranho.
poetante. Dessemodo, a fusão e o rearranjo dos gêneros
outro fenómeno
típico da modernidade foram menosprezadas.Das "três vozesda poesia: que T.S. Eliot mencionou em um de seus ensaios, a lírica de Friedrich en
cama apenasuma. No entanto,Eliot propunha distinçõese implicitamente apontava possibilidades distintas daquela estritamente lírica: i6 dsjtonteirm dapoesia
i7
r A primeira vol. é a do poeta que rata a si mesmo, ou a ninguém. H segunda é
a vo{ do poeta quese manifesta diante de um auditório, grande ou pequeno. a terceira é a vo{ do poeta que tenta criar uma personagemdramática cuja
em um dos mais típicos, influentes e significativos poetas e teóricos da modernidade, a poesia se apresenta como uma negação da lírica como "pri-
meira voz" da poesia. O fato de que os hábitos de leitura sejamforçados
expressãoseja em versos, que não dil. aquilo que gostaria de ditar ete mesmo,
ou subvertidos pela linguagem da poesia eliotiana não significa uma recusa
mw apertaso quepode dizer dentro dos limites de uma personagemquedia-
à comunicação, ao signiâcado e muito menos à referência a uma situação
loga com outros seres imaginários.*
objetiva, extraliterária. Ao contrário, a futura com a tradição e a distância
do cotidiano se tornam, em Eliot, um retorno quaseobsessivode frag mentor da tradição (citaçõescultas) e uma intrusão contínua do cotidiano (mimese da fala).
2
Por outro lado, o casode Eliot não é isolado. Seexcluirmos Paul Valéry,
O ensaiode Eliot aqui citado é de i953. Portanto, pouco anterior ao livro de Friedrich. Mas é preciso dizer que já no primeiro Eliot, quase meio
alguns líricos puros de língua espanhola (especialmente Guillén e Salinas),
século antes, o problema da pluralidade de vozes que agem ou podem agir
zona mais diáfana e depurada do surrealismo (de Eluard a Char) e a poética
na poesia era uma questão bem presente.
de Benn (sua poesia é bem menos abstrata e fechada em si mesma do que
Uma vez esclarecidaa condição pós-romântica e anta-românticado eu poetante, o início do século xx assinalou o começo de uma tentativa
o chamadohermetismo italiano (a partir do segundo livro de Ungaretti), a
aârma o autor), a maior parte da poesia do século xx entra com dificuldade no esquema de Friedrich
esquema que se baseia principalmente na cen-
de superação da lírica de tipo simbolista, em várias frentes. Nesse sentido,
tralidade de Mallarmé e de seusseguidores. Ao descrever o que considera a
Eliot foi talvez o caso mais explícito e notável. A sua escolhapor Laforgue e pelos metafísicos ingleses do século xvn, sua leitura de Baudelaire e de
'estrutura" profunda e transcendental da lírica moderna, Friedrich dá uma
Dante, suapredileção pelo grotesco realista, pelo recitativo irónico-patéti-
do mais prestigioso sucessorde Mallarmé no século xx, isto é, Paul Valéry.
co, pelo cruzamento de vozes e pela marchetaria de citações colocavam em
Segundo Friedrich, pois, o estilo da lírica moderna já está definido no final
discussão a prioridade
do momento
lírico.
A própria teoria eliotiana do "correlativo objetivo" é uma explíci-
contribuição indireta à teoria dapoá;epzzre, elaborada sobretudo na esteira
doséculo xix. Assim sendo, se tentarmos considerar o conjunto das zonasesqueci-
ta poética antilírica. O pensamento, a emoção, o impulso imaginativo ou
das ou deixadas na sombra por seu livro, chegaremos esquematicamente ao
psíquico do autor necessitam, segundo Eliot, projetar-se numa forma já
seguinte resultado:
constituída, recorrendo a um suporte externo, cultural, realista e comuni-
a) A centralidadedo modelo Mallarmé faz com que tudo o que pre
cativo, que liberte a individualidade criativa de si mesma, de sua arriscada
cedeu sua obra seja lido em chave de "preparação" e de formulação ainda
inefàbilidade. Na poesia de Eliot encontramosuma trama cerrada desses
incompleta, imperfeita, imatura
correlativos objetivos": trechos de conversas,transcriçõesparódicas, no-
lutiva Novalis-Poe até o Baudelaire teórico, com a conseqüenteremoção,
tas descritivas, citações de autores clássicos ou contemporâneos. Portanto,
por exemplo, de poetas como Leopardi(mas também pouco se fala de Hõl-
o que implica a idéia de uma linha evo-
derlin e de Coleridge). O próprio Baudelaire, na condição de "precursor do mais coerente e absoluto Mallarmé, é fortemente depreciado como um i. T.S. Eliot, "Le tre voei della poesia" [1953],in .çu/Za /oeiz'ae izzípoerí.Milho: Bompiani, ig6o, p. 97led. bus.: "As três vozesdapoesia", in 4 eisérzc/a dapoeiz'a,trad. Affonso Roma-
poetaem quem a modernidadeassumeformas realistico-alegóricas, pro-
no de Sana'Anna. Rio de Janeiro: Artenova, i97z].
saicas,demonológicas e moralistas. Entretanto, é esseBaudelaire "impuro
L% As mtLitm vales da poesia moderna
i9
que estará no centro das mais importantes leituras novecentistasde sua
por aquilo que não nos oferece. Mais que uma autêntica reconstruçãoda
obra, de Eliot a Auerbach e Benjamin.
poesia moderna, trata-se de uma espéciede reformulação sistemática (e
Além disso,Friedrich não trata de Walt Whitman, Emily Dickinson e Gerard M. Hopkins, poetasde indubitável modernidade e influência, mas
relativamente tardia) da poética da poesia pura e do hermetismo. As dinâ-
cuja obra anuncia desenvolvimentos novecentistas muito diferentes daque-
repertório analítico dos procedimentos estilísticos é bastante exaustivo.
les privilegiados por Friedrich.
Mas quase sempre está dissociado do con)unto da obra de cada autor e da
b) Ao chegarmos ao século xx, temos a sensaçãode estar numa espé-
micas "heterânomas" da literatura contemporânea são subestimadas. O
relação entre transformações formais e autoconsciência histórico-cultural.
cie de triunfo dos epígonos -- os quais ocupam o centro do quadro, mas não
O fato de que as discussões dos movimentos de vanguarda sejam inteira-
acrescentammuitas novidades ao que já se vira com Mallarmé.
mente estranhas a Friedrich é significativo. Com efeito, o que está em Jogo
c) Finalmente, as objeções mais relevantes. SÓ para âcar nas três
nas vanguardas é mais a situação social dos artistas modernos do que a
primeiras décadasdo século: a desvalorização de figuras centrais como
linguagem como estilo. Com os grupos e os movimentos de vanguarda,
WI.B.Yeatse Rainer Mana Rilke, a ausênciados russos(AleksándrBlok, Vladimir Maiakóvski, Sierguei lessiênin, Ossip Mandelstam, Marina
a inovação estética se torna militante, transforma-se em manifesto, em
Tzvietáieva), dos americanos (Wallace Stevens,Marianne Moore, Wjlliam
numa tentativa de criar ou conquistar um novo público.
propaganda,em açãoorganizada. O conflito com o público se transforma
Carlos Williams), do expressionismo e do surrealismo como tendências
No entanto,a lírica de que nos fala Friedrich em seulivro bastaa si
e movimentos e, enfim, de alguns clássicosda intempestividadee da
mesma. Não necessita mais do mundo, evita qualquer vínculo com a rea-
extravagância: Antonio Machado, Umberto Saba, Konstantinos Kavafis.
lidade. Nega-lhe até a existência. Fecha-se numa dimensão absolutamente
Acrescente-se ainda que nem mesmo a leitura friedrichiana de autores
autónoma. Fantasia ditatorial, transcendência vazia, puro movimento da
como Apollinaire, T.S. Eliot e Gottfried Benn, cuja exemplaridadee
linguagem, ausênciade fins comunicativos, fuga da realidade empírica,
posição de ponta não excluem uma grande variedade de soluções e de hipóteses,é muito convincente: neles, o estilo poético moderno é de fato
fundação de um espaço-tempo sem relações causais e dissociado da psi-
assumido como um pressuposto, como ponto de partida a ser reformula-
Ocidente a partir da segunda metade do século xix é sobretudo isso. Poesia
do ou até (no caso de Eliot) "superado".
despersonalizadae alheia à história, ela deve ser lida e analisada como um
d) Com os anos l93o, as lacunasse tornam gritantes.Simplesmen-
cologia e da história: a lírica que, segundo Friedrich, entrou êm cena no
organismo cultural e estilístico auto-suficiente. Após os três extensosca-
te não se fala de Brecht, Auden, Vallejo, Hernández, József (ou seja, dos
pítulos dedicados a Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé (capítulos em que os
maiores poetas da década). Mas as novidades do século xx consistem nisso
dados biográâcos e históricos são quase de todo ausentes), seria possível
também: na luta da lírica para sair de si mesma e do próprio arrIaR, sem renunciar à autoconsciência estética e histórica.
dizer que essapoesia se apresenta em seu conjunto como uma criação sem sujeito, uma obra sem autores. Como um sonho ou um labirinto dentro do qual os autores aprenderam a morar e de onde não poderiam sair.
Toda a poesiamoderna pode, pois, ser descrita como uma única es3
trutura estilística. Uma vez que essa estrutura conquistou os seus delineamentos precisos e definitivos, não é mais suscetível de mudanças. Assim, as
Embora esquemática,explicativa e com uma fortíssima intenção unifica-
diferentes áreas e tradições lingüístico-literárias,
dora, a hipótese de Friedrich não deve, entretanto, ser severamente julgada
os títulos das obras perdem valor e consistência próprios. Não passam de
2Q .4s milita
vales da poesia moderna
os nomes dos autores e até
21
pequenasondas ou encrespamentosde um mar infinitamente vasto, frag-
4
mentos luminosos de uma interminável constelação ou galáxia. Células de um organismo cultural que transcende completamente vicissitudes pessoais
De fato, mais que na centralidade de Mallarmé, a poesia do século xx parece
e experiências históricas.
inspirar-se em modelos mais "impuros" e contraditórios: Baudelaire, Rim-
A ética antiindividualistae anta-históricade Friedrich tem a suacoe
baud e Whitman. Sobre Whitman quase nada se fala no livro de Friedrich
rência e uma notável eficácia descritiva. Em vez de deixar o leitor se perder
(só é citado uma vez, de passagem, a propósito do verso livre de Saint-John
nas mil ramiâcaçõesdo estilo poético moderno, fazendo-o submergir no
Perde). Mas Whitman não foi apenas um mestre para a poesia norte-ameri-
que há de inefável em cada i/zdi idzzüm,Friedrich evidencia uma estrutura.
cana (que de resto parece nunca ter atribuído muita importância a Poe). O
Analisa, isola, recolhe e cataloga uma grande série de fenómenos estilísti-
eco de Whitman também é ouvido em muita poesia européia do início do
cos quase sempre sem precedentes na tradição literária. O enigma da mo-
século xx, e a prática difusa do verso livre deve muito à sua memorável pro-
dernidade poética é, senão explicado, amplamente descrito. Desde o final
sódia salmódica. Um dos procedimentos mais recorrentes e típicos de muita
do século xvni, os sintomas de uma profunda modificação da cultura artís-
poesia moderna, a "enumeração caótica" de que Leo Spitzer falou num céle
tica se multiplicam e ganham impulso graças a uma reflexão nova sabre o
bre ensaio,: tem em Whitman o seu iniciador e o seu máximo representante.
conceito de fantasiae de língua poética.Até criar uma espéciede coerente coletiva que arrasta consigo os artistas mais distantes e diversos.
Mas um poeta como Whitman está muito distante do esquemade Friedrich: nele não encontramos abstração ou cerebralismo, nem culto da
O procedimento descritivo de Friedrich parece,pois, encontrar sua me-
premeditação intelectualista nem impulso da linguagem em direção a uma
lhor justificação nas característicasdo objeto descrito. Mas nesteponto, natu-
transcendência vazia ou fuga da palavra do horizonte do concreto, do ime-
ralmente, não é fácil dizer quanto o método deve ao objeto e quanto o objeto
diato, da experiência comum. Seria possível afirmar que a poesia de Whit-
é uma projeção do método: seja como for, uma poesia que exalte o máximo
man apresenta-se,programática e efetivamente, como o exato oposto de
de abstração e despersonalização não poderá ser descrita senão em termos de
tudo isso. Os excessosdo estilo de Whitman não se devem a uma tendência
abstração e despersonalização.
aristocrática e solitária, a um desejo de obscuridade e de fuga no misté-
Ao escolher seu dinamismo puro como terreno privilegiado de pes-
rio ou a um desprezo pelos leitores. Ao contrário, a poética de Whitman é
quisa, essapoesia parece criar do próprio interior tudo aquilo de que neces-
democrática e pânica, otimista, inteiramente antiintelectualista e até, a seu
sita. Podeprescindir do mundo ou domina-lo com a magia da sua lingua-
modo pecu[iar, oratória e propagandista. Sua influência em Paul C]aude],
gem de "conotações" sugestivas e de "desvios da norma". É poesia órfica
Saint-John Perse, nos expressionistas alemães, em alguns futuristas e vocia-
e ontológica. Descrevê-la co=o uma entidade autânom!, auto-suâciente e
/zoi,; em Neruda e, em parte, em García Lorca é algo visível.
desvinculada da realidade será descrever integralmente sua realidade. Conduzindo pela mão o leitor pelos labirintos da lírica moderna, Friedrich o ajuda a familiarizar-se com tudo o que é arbitrário, impenetrável, dissonante e desconcertante. A obscuridade se torna aceitável. A violação das
regras tradicionais do poetar é apresentadacomo violação sistemática. Ou
seja,ordena-senum sistemadiverso, conquantoalternativo. A violação da norma constitui o fundamento de uma nova norma. A recusada tradição funda uma nova tradição.
2.1. ..4s muita
vales da poesia moderna
z. Cf. L. Spitzer, "L'enumerazione caótica nella poesia moderna" [i945], in Z,'mina abro
n. 3>i99b pp.g2-13o 3. Za Roca:Uma das mais importantes revistas culturais italianas, fundada em igo8, em Florença. Passoupor diferentes fases,que correspondem à mudança de seusdiretores, ante lectuais atuantes e reconhecidos como G. Prezzolini(igo8-lgiz),
G. Papini(igiz-igi3),
G
Prezzolini(igi4) e G. De Robertis (igt4-igi6). Com Papini a revista se volta para apzzra literatura, deixando para trás a ênfase da fase anterior, sobre as relações entre literatura e vida nacional. Em igi4, novamente sob o comando de Prezzolini, torna-se uma revista de
z3
>
Já.em i93i Edmund Wilson tentava interpretar, em O cmreZode .4xe/,
a literatura simbolista e pós-simbolista segundo uma perspectiva muito
e à profundidade do seü pensamento. Mm a verdade é que, se examinámos
os emaios de Halély, não comeguimos achar neles uma grande riqueza de
diferente daquela que aproximaria as amplas reconstruçõeshistóricas de
idéim. Encontramosaperta, msim comona poesia,a representação de uma
Marcel Raymond (Z)e .Bazzde/a;re .zoJarra.z#fmo,i933), Luciano Anceschi
situação intelectual, e não o desenvolvimento de uma linha de pensamento.
(.4arono«v;ae Ãezeronom;a da urze,i936) e Albert Béguin (.4 alma rom.inr;ca
Um crítico $'ancêsjá
e o io/zÀo,i937). Compondo uma verdadeira galeria de retratos, Wilson
sofar; e é verdade que o "rigor"
achou
yaléTyde
ser um $1ósofo que se recuscl a $1o-
de que eLe tanto fala é um efeito artístico de
tentava explicar aos norte-americanos a literatura européia da crise, pondo
suaprosa, obtido, assim como os efeitos artísticos da poesia, graça a algun.s
lado a lado poetas e prosadores, ingleses e franceses (Yeats, Valéry, Eliot,
procedimentosestilísticos, e não CL uma qualüade dclsua lógica. Pode-sediyeí
Proust, Joyce, Gertrud Stein, Villiers de I'lsle-Adam e Rimbaud). Pouco
cine,com toda a sua pagão pelo método, yaLéryLenhcl se dadopouco trabalho
propenso a julgar o movimento literário moderno a partir de seus pró-
para clusijicar m suasidéias ou confeür-lhes uma ordem=tal comoMon.sieur
prios princípios internos, Wilson oferece uma série de observaçõescríticas
Teste, ete está mais empenhado em degustar m suas emoçõesintelectuais e em
desconcertantes, que tornam o objeto de seu discurso muito mais eviden-
inventar metá$ormmais ou menosobscura para exprimi-lm \.. l\.
te. Sua polêmica às vezes quase feroz contra os compatriotas T.S.IEliot,
Nas veres em que yaléTyse averLturano terreno das idéias, ete é, na reali-
Ezra Pound e Gertrud Stein, fixados em Parase Londres, permite-lhe :situar
dade, uma espéciede superdiletante \. .l\. Écomo sejamais houvessesuperado
numa perspectiva original e mais ampla toda a experiência do simbolismo
CLemoção da primeira Leitura de Poincaré, e sua atitude nesseponto é sempre
e da literatura anta-realista.
esnobe: in.riste na di$cutdade que é explicar-nos esse ou aquele conceito, e
O maior expoente da herança mallarmeana e da poesia pura entre as duas guerras, Paul Valéry (que também do ponto de vista teórico é uma
depois, uma velexpressa, a idéiaprodigiosa revela-se um dos lugares-comum
d. «-.d«-.ÁZo.o#« .íe«rPca[...].'
referência central para o livro de Friedrich), é posto em discussão arguta-
mente por Edmund Wilson. Enquanto se reconheceem Valéry uma corça
Depois de observar a sugestiva conexão entre pseudo-rigor especulativo e
de poeta superior à de seu mestre Mallarmé, sua prosa ensaísticae suas
esnobismo estilístico na prosa de Valéry, Wilson sublinha as fraquezas teó
teorizações estéticas são descritas com uma vivacidade crítica que teria me-
ricas da idéia de poesia e de literatura
recido uma fortuna mais ampla:
vez, observa Wilson, trata-se de tediosas exibições de frieza científica que
difundida
pelo simbolismo.
Mais uma
se apoiam em raciocínios muitas vezes pouco fundamentados e científicos: ''!s opacidades da prosa de l/aLérysão comumente atribuídmpelos seusctdmiía-
dores,quenissosófalem seguir u sugestõesdoprópíio mestre,à originalidade
Essa atitude aparentementefha e anaLíticcté, porém, acompanhadctde modomuito paradoxal por uma concepção rigidamente esotéricada poesia Tat concepção é de$nidct com bmtante ctarela, e sum $aqueqm se tornam
> militância política, defensora do intervencionismo italiano na Primeira Guerra, mas no final do ano, assumea condução G. De Robertis que faz dela uma revista exclusivamente literária, defendendoem suaspáginasuma/oáfica da/agmenro, contrária ao enquadramentohistórico do autor ou da obra, ou à ênfaseoratória. O melhor desdobramentodessapoética surgirá nos
mais e'videntes, em um prefácio que l/além acaba de escreverpara a edição dos Chatmes,
comentada pelo emaísta
$ancês .41ain Çe essa sobreposição
poetas que virão a caracterizar o Ãermezúmoitaliano. Nas páginas da revista, nessesanos, sur
dirão osprimeiros versos de autoresque terão papel fundamental na literatura do país, como Giuseppe Ungaretti, Amo Palazzeschi,Dano Campina, Corredo Govoni, Riccardo Baccheli, Vincenzo Cardarelli. O último número da revista saiu em 3i de dezembro de igi6. [N.o.]
Z4 .{s muita vales da poesia moderna
4. E. 'Wason, lt catetio di 4xe!. Studi sugíi sviíul)pi detsimboíismo {ra it z87oe i{ z93o \\ 93\ ig]. Milho: ll Saggiatore, rg65, pp. 77-78 [ed. bus.; O c eZode .4xe/j trad. José Paulo Pães São Paulo: Companhia das Letras, zoo4l-
ZS
escolástica de ensaios explicativos é em si mesma uma característica da crÍ-
5
fzcapoérzc'z confemporánea) l.-J.
De resto, no campo da literatura, HaléTy comidera exclusivamente
Apesar da aversão dos surrealistas pela poética de Valéry, sua insistência
como"obra de arte" a obrapoética. .4 prosa, di{ ele, tem "sentido acabado:
numa escrita da imaginação livre, radicalmente estranha à lógica e aos sig-
apenaspoí seu msunto; mas o ob)eto da poesia é algo não apeou mab misto
nificados estabelecidospela comunicação, também levará a maior parte dos
r;oso, m
poetas surrealistas a uma espécie de sublimação hiper-subjetiva da escri-
amóéhz, 'zo 7ae p'prece, maú oczz/[o [...].
Parece-me que, aqui, a pretemão de Gratidão é usada para di$simutar alguma
teses rüiculamente
falas,
bem como para favorecer uma espécie de misti-
tura. Quer para Valéry, quer para Breton, a linguagem poética prescinde da
realidadecomumente perceptível, a ultrapassa ou a refunda, situando-se
ckmo estético,e não para empreenderuma análise ciendlica. Em primeiro lugar,
no ponto em que a distinção entre palavra e coisa, sujeito e objeto, ser e
é absurdo dites que a prosa relaci07ta-se exclusivamente ao "sentido lógico, distin-
linguagem ainda não se estabeleceu.
to cla aLmão, e que não se deve esperar da poesia, como a$rma HaléTyem outra
Por sua vez, no âmbito anglo-saxão,mesmo um poeta culto, intelec-
passagem, "nenhuma noçãodeFnida". O verso é defato um produto intelectual
tual e aristocrático como Eliot enfatiza desde o início o entrelaçamento das
de rtaturela absolutamente distinta ddprosa? Sua função é realmente diferente? Ou, em última análbe, prosa e poesia são simptesmertte técnica da comunicação
linguagens, dos registros, dos tons, assim como a relação essencial entre "música da poesia" e língua comum. Encantamento,
charme e calculada exa
entre os homem, técnica que têm desempenhadopapéis diferentes, queforam ma-
tição das potencialidades secretas,mágicas e sonoras da língua não satisfa
ciaspara escoposdiversos, em períodos e civilizações difererLtes? Os antigos gregos
zem Eliot plenamente. A atenção à linguagem também é fortíssima em sua
escreveram histórh, mitos e lenda em versos
gregos e eLilabetanos escreveram
reflexão, mas o que muda é a concepção da linguagem. Contra o pretenso
em versosos sem drama. Se m de$nições de VaLéysão correLm, o que dizer de
princípio de estranhamento da linguagem poética em relação à linguagem
Homero, yirgílio, Dente, Shakespeare e Goethe?Todoseles TecoTrem tanto ao
comum, Eliot chega a estabelecer uma espécie de "lei" geral:
sentido Lógico" quanto à aLusM e, ao mesmo tempo, bmcam comunicar "noções
de#ttidas". Na realidade, tais (k$niçõesforam obüamente concebidmpaía serem
\.. X é a lei segundo a qual a poesia não pode afastar-se muito da Língua
aplicada à poesiade HaLévy,de Matlarmé e de outrossimbolista. Mas nào são
cotidiana que nós mesmosfalamos e ouvimos falar. .4 poesia
ade quadaB nem se quer Q eles?
seja ela
quantitativa ou silábica, finada ou não Finada, de forma livre oufechada
não pode perder o contado com a Linguagem cambiante du ordinária
Aqui Wilson expõe com felicidade o limite maior de toda uma tendência da
relações humanas. Pode pctrecer estranho que, mesmo tendo me proposto CL
poesia e da literatura contemporânea que confere um privilégio extraordi-
falar da "música" da poesia, eu imista particularmentena Linguagemda
nário àquelas formas de "poesia da linguagem" e de "poesia da poesia" que,
con'persação.Mm antes de tudo gostaria de lembrar que a música da poesia
algumas décadas mais tarde, dariam lugar à teoria jakobsoniana da literatura
não existe independentementedo signifcado; do contrário, poderia produ-
como "função da linguagem" especial, autónoma e desvinculada por deâni-
{lr-se uma poesia de grande baleia mmical, mm auserLtede sentido, como
ção de qualquer referência extratextual.
jamais me ocorreu de ler. Nas aparentes exceçõeshá apenas uma diferença de gradação; há poesia em que nos deixamos le'par pela müica, do o sentido como dado; outra,
aceitan-
em que nos $xamos sobretudo no sentido,
enquanto, sem que o percebemos, somos comovidos pela música. Tomemos
5. Id.ibid.,pp.8o-8i z6 .4s muita vales dapoesia moderna
CLqueteque aparentemente é o cclso extremo: CLpoesia "absurda"
de Edward
z7
Leal. .4 "absurdidade" não consiste na falta, mm sim na paródia do sentido,
uma espécie de choque por suspensão intermitente do estilo, bem como de
& este é o seu signiFcadoli
uma emissãoda "verdade nua" ou da realidade imediata no texto poético. Edmund Wilson percebe perfeitamente isso quando reconhece em Eliot uma
superioridade tanto realista quanto "mitológica" em relação a poetas mais 6
preocupadoscom a poesia "enquanto tal" ou mais absorvidos por mitologias tradicionais, assumidascomo exotismo cultural ou sugestãoestética:
Mais que uma fuga da realidade rumo à "transcendência vazia", em muitos textos e autores modernos é possível observar um procedimento oposto.
Um outro elemento que, com toda a probabilidade, contribuiu para o extraordi-
Inclusive em amplospoemas-coZ7age de Apollinaire (a começarpelo famoso
nário sucessode Etiot é o caráter essencialmentedramático de suafantasia \. .l\.
Zona, citado e comentado pelo próprio Friedrich), nos poemas-conversa de
'4spersonagem de Pru#ock e de Sweeneytêm uma qualidade quenenhuma tias
Eliot e de Auden ou ainda nos poemas-reporrage de Benn. Nesses casos, são
personagem de Pound, HaléTy e Yeats possui: elas se tornaram pa't' I'iva da
a realidade empírica, a comunicação, o relato ou a paródia que orientam a
nossa moderna mitologia. E a melhor produção poética de Eliot se jiinda j'e-
construção do texto.
qüentementeem imsperados contrmtw dramáticos; em particular, " The wmte
Com mais freqüência do que Friedrich parece supor, o domínio da forma e da conotação estéticaé posto em xeque pela irrupção de conteúdos
band" deve, a meu ver, muito de sua potência a essa qualidade dramática que torna a sua Leitura em volaLta tão elical:
que a tradição literária ignorava ou havia expurgado. Na poesia moderna não encontramos apenas uma estetização prepotente e àsvezes tirânica dos
Por seu turno, Friedrich deixa escapar essa contratendência, essaatração da
conteúdos, aniquilados pela potência do mecanismo estilístico (o que, aliás,
poesia pela prosa. A propósito de Eliot, limita-se a sublinhar a relação de conti-
ocorre em autores bem distintos, como Valéry, Pound e Eluard). Quase
nuidade com a valorização do fragmento, que havia sido importante na poética
com a mesma frequência, e com resultados mais interessantes, deparamo-
de Mallarmé e de Vãléry. Até mesmo a variedade extrema de registros estilísti-
nos com uma verdadeira crítica da estética, da síntese formal e do estilo.
cos e de tons presente na poesia eliotiana é interpretada por Friedrich, mais uma
Assim, ao invés de uma fuga da realidade, poderíamosler na poesia moderna um retorno à realidade: a irrupção do não-formalizado e do não-
vez, como "fantasia ditatorial" e fuga no sonho:
formalizável no interior de uma forma poética que se esforça cada vez mais
Com apetência de que o "sonho"
para organizar e dominar esteticamenteos seus materiais. Os primeiros
porta para o irreal
poemas de Eliot e de Benn demonstram uma capacidadede percepção rea-
dele, pois queé real. .4 mágica polifonia da linguagem seaproxima do indi-
lista muitas vezes não menor à da prosa contemporânea, de Joyce a Dõblin e
#vet e é papar. de captar a música inctudível do sonho ctpenm com patavru
Céline. Mais que se distanciar da prosa e da percepçãonaturalista dos mate-
qüe co?t#angem.'
dispõe, EliotfragmerLta
cl $m de irradiar-lhe
mistérios
o mundo e o trens'
que iamcLis emanariam
riais, seguem o caminho inverso. Sua força inovadora tem ainda um caráter de "documento",
e o escândalo que a sua difícil decifração suscita deriva de 7. E. Wilson, /7c
e//a d/.4xe/, op. cit., PP. io6 o7.
6. T.S. Eliot, "La musicadellapoesia" [i94o], in Su/Zapoexía e suzpoeü,op- cit., p. z6 [ed.
8. H. Friedrich, -Z:asrmzzlzrade//a /inca moderna [i966]. Melão: Garzanti, ig83, p- nz [ed
bus.; "Musicalidade da poesia" , in .4 eiié/zcfa dapcleiía, trad. Affonso Romano de Sant'Anna.
boas.:Eslmtüra da lírica moderna Da metadedo séculoxix a meadosdo séculoxx, ttad. }Ãatt
Rio de Janeiro: Artenov% i97z].
seM. Curioni. SãoPau]o: ])uas Cidades, i99i].
z9 zR As muita vales da poesia moderna
As palavras da poesia, em Eliot, mais que fragmentar a realidade, são frag-
sign$ca ordem, mesmo quando tartce a denúncia de caos; signi$ca esperança
mentadas por ela ou pelo menos são postas a dura prova
ainda quecom um grito de desespero.4 poesia diX.respeito à realestcttura dm
como se lê, aliás,
na passagemde .Bur/zrMor o/zcitada pelo próprio Friedrich. A palavra "no
coisa; portanto, toda grande poesia é reatistal~
deserto" (da solidão poética) é assediadapor vozes que chegam do exterior: Aqui, naturalmente, não se trata de uma poética, da opção de um estilo em [...]
WorÚ
«z
n,
oposição a outro. Ocorre que a questão da poesia moderna e de sua lingua-
crack andsometimes break, under the burden,
gem específica não se contrapõe nem é desvinculada dos problemas cultu-
under the temion, stop, slide, perish,
rais da época, resumidos aqui na "questão dos valores" e da "real estatura
iecaNwittt impTeci3ion, wittnot otan in peace,
das coisas". Deter-se apenas nas recorrências estilísticas gerais da poesia
watt not staystiLt. Shrieking coices
moderna seria, para Heller, reducionismo. O próprio sentido da "técnica
scolding, mocking, oí merelychattering,
da arte moderna se perderia. Como observou Adorno: "Se nenhuma obra
always msail trem. The W'ord in the desert
se deixa entender sem que sua técnica seja compreendida, tampouco esta
H post attackedby coicesof temptation,
última se deixa entender sem a compreensão da obra".''
[lLe cvyingshadow in the funeral dance,
the lona Lament of the dbcomoLate chimera?
Aquilo que, para Friedrich, é uma espéciede essênciaestrutural da poesia contemporânea, representa apenas um de seus momentos, e não o
mais duradouro; talvez, acima de tudo, o sonho de uma devastadora pureza rapidamente estilhaçado. 7
Assim Heller resume a história daquele sonho:
Em um ensaio que reconstrói "A aventura da poesia moderna", de meados
Os conteúdos reais não tinham valor; a forma pura era só o que contava.
dos anos i95o, Erich Heller defendepolemicamenteum ponto de vista oposto àquele segundoo qual a lírica moderna fundaria um universo
O signi$cado daspalavras não signi$cava nada; o somera tudo. E aquilo quenão era cricLdopelo próprio artista, era sentido comomatéria morta
lingüístico auto-suficiente. Segundo Heller, na poesia moderna o problema
e morrgêra
dos valores como problema gnosiológico (herança nietzschiana) não se
hieróglifos esotéricos não contaminados por signi$cados comurLS,e in-
dissocia do problema da realidade:
vejava a matéria evanescenteda música. Era comose um furor criativo
[...].
.44a//arazé;n
sem par na hktória du
oca a em
o a/ a '>.z/al'rai
;maczz/amai
artes se houvesse desencadectdo a $m de anular
Seja tá o quefaçct, cl poesia não pode sertão confinar a existência de um
o muradoem ruína e recomeço'rde novo, do caos, trabalhando dessclvel
mundo sign$cativo, mesmo quando denuncie afasta de sentido deste. Poesia
cl partir de um esquemamcLispromissor do que aquele dos sete dias, que conduzira a um fracasso tão sinistro. Ospeixes nadavam no ar e as águas
g. "]-.] As palavras se distendem,/ estalam e muita vez se quebram, sob a carga,/ sob a ten
são,tropeçam, escorregam, perecem,/ apodrecem com a imprecisão, não querem manter-se no lugar,/ não querem quedar-se quietas. Vozes ríspidas,/ irritadas, zombeteiras ou apenas tagarelas/ sem cessar as criticam. A Palavra no deserto/ é mais atacadapelas vozes da tenta-
ção,/ a sombra soluçanteda funérea dança,/ o clamoroso lamento da quimera inconsolada.
Trad. lvan Junqueira,in Poli;a. Rio de Janeiro; Nova Fronteira, ig8i, p. zo4-]w.T.]
3o ,4s muit
vales dapoesia moderna
io. E. Heller, "L'avventura
della poesia moderna", in Zo xp;nro dheredara [i95z]. Melão
Adelphi, íg65, p. ZJ3 il. T.W Adorno, teor;a ei et/fa (i97o), org. E. de Angelis. Turim: Einaudi, í977, p. 3J7 [ed bus.: Zeonaei éfíca, trad. Artur Mordo. São Pauta: Martins Fontes, ig8z]
3i
eram povoada de pássaros, e de uma costela de Eva Adio crictva Deus.
aberta e mais livre com as formas poéticas tradicionais e com os clássicos
Porque "a verdadeira CLnctrquict", como prevircl NovaLis, "é o elemento
da própria língua. Não para criar, como ocorre em alguns casos,um neo-
criativo da verdadeirareligião. Surgeda destruiçãototal comocriadora
classicismorestaurador, mas para repor em uso ou para remodelar os mais
de um ava mundo
diversos modos de comunicação literária em versos.
Seu crescimento,porém, encontrava di#cuEdadesconsideráveis.O impuro simbolista e surrealista se exaurir bem depressa.JÚ Baudetaire sabicl queessaâmiaj'erLética era uma ruína. Nenhum universo durável de bate{afoi
8
criado pelosfragmentos da criação. Sobraram, por.Fm, fragmentos agarrados à.sruínas do poeta. E o poeta se vi(t de novo numa terra desolada. O mundo rea/ deicezzp'zra a guerra [...] .
.4 poesia perdeu a con$ança no próprio poder de iluminctr magicamente
o mundo mágico queela mesmacriara para si. Despertoupara um novo inte-
O caráter crítico e utópico, de "denúncia indireta", presente na grande tendência anti-realista da lírica moderna é sublinhado por Theodor W Adorno em várias ocasiões.Aliás, essemotivo é central em toda suarefie xao estetica.
ressepela recllidade.Não me feITo ao vigorosoXnletmezzo político dç poesia
Em algumas das tendências radicalmente anta-realistasda poesia mo
entre m duu guerras, queteve vida breve, mu à sua lenta e gradualrevato-
derna, Adorno vê a máxima expressãoda resistência da arte ao universo da
rilação dm virtudespoéticu tradicionais. Poí vias indiretas e tortuosa, e com
reificação. A lírica se torna, assim, depositária privilegiada da utopia e da
éxz'ro vanáveZ, a/gzz
roer
re ornar'zm a zzm /zol'o re.z/hmo[.-].
crítica do existente:
Não me re$10,pois, à simplicidade qua:niiofaLode um novo realismo poético. Pena no interuse do poeta peb lugar e peh estaturclda homem no mundo
Sua dLtância
recta.Em comparaçãoms simboti.st e à sua caçapor substâmiu cósmica de
ruindade desta. Áo protestar contra a existência, a poesia exprime o sonho de
irreal beleza, em comparação aos puros encantamentos da imcLgln.ZÇãoirreal
um mundo em quem coisa sejam de antro modo. A idiossincTmia do espírito
de VaLéíy, tanto Huno Hofmanmthal
lírico diante do predomínio das coisasé uma forma de reaçãoà rei$caçãodo
qunrtto o próprio Stefan George, com u
sum imuportáveis poses e afetações inveterada,
e até o último RiLke são, neste
da pura e simples existência se torna medida dafatsidade
e da
mundo, ao domínio dctmercctdoriasobreo homem, que desdeo inícü) da ercl
sentido, reatbtm. O cmo de Rilke é sem dúvMa o mais desconcertantede todos.
moderna se estendeue, desde CLépocada revolução industrial, se alargou
Seu "realkmo"
como
éTt.averdade forçado e em gercLLpoucojitme= entes dele, expTes
poder
dominante
da
vida.
O culto
TiLkiano
dm
coisa
também
se SitUCL
sõn como"talvez.' e "pode ser" jamais tinham tido tanta importaria na lin-
no âmbito de taí idioss ncrmia, como tentativa de acolher e dissolver m coi-
gaagempoénca. .AEo enrm/o m Elegias de Duíno
sa estranha ncl pura expressão subJetivcl, de conferir-Lhes metafsicamente
7zãa da óeZeÍa de or.zdora da
atam em ó ca do comem,
v;da]-.].
o seu estranhe.mento;e Q debilidade estética desseculto das coisa, o gesto
Que a pouÜ sópossclseí recupercÜçtpeh retomada do si@jicado e do sentido é, de modo paraLdOXd, o ponto de partia
ostensivamente misterioso, a mistura de religião e de artes decorativa, reve-
da fme final da poesia dktana ll
la ao mesmo tempo a violência real da re$cação quejá não se deixa acolheí rlcl mente e quenenhum sopro lírico pode dourar)'
A par ou em alternância com a tendência à pureza, à autonomia metafó rica e à abstração, muitos poetas do século xx mantêm uma relação mais
i3. T.W. Adorno, "Discurso su lírica e società"]i957] , in Àla eper /a /efferafura, z943-zg6z Turim:
E. Heller, "L'avventura della poesia moderna", op. cit., pp. z67-6g.
3z ,4s muita
vales da poesia moderna
Einaudi,
i979, p- 49 [ed. bus.:
"Pa]estra
sobre ]írica e sociedade",
in ]vi)fai de arara
rara /, trad. Jorge de Almeida. São Paulo; Duas Cidades/Ed.34, zoo3]
33
Adorno não só explica teoricamenteo conteúdo específicoda lírica em
Adorno, a universalidade estética não coincide com aquela espécie idealista
geral e a idiossincrasia anti-realista da lírica moderna, mastambém mostra
de "democracia da comunicação", nem com a coincidência de sentimentos
a dinâmica interna desse processo de "distância do existente". A abstração
e a pureza são interpretadas como denúncia da existência "falsa" e da reifl-
e de experiênciasentre quem escreve e quem lê. A "elevação" rumo ao universal é descrita como um afundamento, um "submergir" na individuação
cação que domina a vida.
mais incondicionada, na realidade do sujeito apreendida como irremediável
Para Adorno, o conteúdo social da obra de arte e da própria lírica é
solidão. A única verdade ou autenticidade possível da lírica está em seu alhea-
inteiramente intrínseco à sua natureza e qualidade estética. Em relação a
mento diante do suporte e da garantia dos esquemas intersubjetivos por meio
Friedrich, Adorno restitui à questão da obscuridade o seu caráter de risco
dos quais a socialização salva e subsume em si o indivíduo. Ê a tomada de par-
radical e objetivo, não passívelde ser resolvido pela boa vontade elucida-
tido por uma "individualização implacável" que permite à lírica exprimir sua
tiva de uma exegeseestilística sistemática. A obscuridade anti-realista da
mensagem e a verdade não manipulada do seu conteúdo social. A distância
lírica é "uma forma de reação à reificação do mundo, ao domínio da mer-
das coisas, o sentido de sua estranheza "metafísica" e irrecuperabilidade
cadoria sobre o homem". AÍ está, na descrição adorniana, o emaranhado
assim como a solidão do indivíduo abismado em si mesmo e sem esperançade
dialético em que se encontra a lírica moderna:
um resgatecomunicativo imediato (tudo o que caracterizaem máximo grau a
lírica,
lírica moderna), falam sobretudo da sociedadeem que essalírica se exprime. O conteúdo de uma poesia não é, com efeito, apenw a expressãode afeto$ e
Principalmentea partir de Baudelaire,a lírica modernafala de reificação,
experiência pessoais.Estes só alcançam a arte se con.seguiremparticipar do
de anomia, de risco da insensatez. Porém, justamente por isso, a autenticidade
ttrtiversal, graça à sua forma estética especí$ca. Nào é preciso que a mema-
específicadessalírica está em sua objetiva declaração de impotência diante
gem de uma poesia lírica sela uma realidade que todospercebemimediatcL-
da existência petrificada e lacerada. A poesia não pode recuperar estetica-
menre em i; meinzos. .Saa unl erxa#dade nãc, á volonté de teus nempara e
mente as condições da própria existência social. Não pode, com os meios de
simplesmente comurLicaçãodaquilo que todos ucperimentam sem, no entanto,
que dispõe, superar a futura entre indivíduo e sociedade e recomeçar de novo.
ter a capacidadede exprimir. O queeLe'pa a poesialírica ao universal é a imersão numa realidade individualizada. De fato, somente msim emergira
Embora Adorno esteja muito próximo de identificar, como Friedrich, a
algo de al têntico, de não ainda controlado ou subsumidoem esquema \..À.
poesia moderna com a lírica mais inclinada à não-transparência comuni-
''{ .Fguração Lírica busca atingir o urtiversat por meio de uma individuação
cativa e ao "parADada distância", sua leitura da situação e da relação lírica-
implacável. Mas o risco especíFcoa que eLa se vê ucposta deriva do fato de
sociedade segue a direção contrária. O que Friedrich interpreta como
que o seu princípio de individuação jamais garante resultados normativos e
potência da linguagem e da fantasia, como capacidade da lírica de "destruir" o real ou de servir-se dele com absolutaliberdade para os próprios
autênticos. A lírica modernct não dispõe de nenhum poder que Ihe dê a certeza de não sucumbir na cmuaiid(üe da mera existência macerada~*
fins estéticos,em Adorno apareceem termos invertidos. Essaaparente liberdade absoluta da "fantasia ditatorial" e da "linguagem autónoma" é,
O nexo presente em toda reflexão estética entre universalidade e forma é
para Adorno, constrição, determinação social e histórica: situação extra-
aqui retomado.Mas a universalidade é interpretada de modo diverso, em termos invertidos em relação à tradição, paradoxais.Efetivamente, para
estética não superável esteticamente. A força e a genuinidade tanto artís-
tica quanto cognitiva da lírica estão, segundo Adorno, justamente nessa afirmação direta de verdade acerca do próprio lugar social e dos próprios
i4. Id.ibid.,p.
47.
meios lingüísticos. A "dissonância" não é uma categoria estilística por35
34 Zs mtlitm vales da poesia moderna
tadora de misteriosas sugestões,nem o sinal de um incremento do poder órflco da palavra. Dissonância é a laceração da existência que a poesia,
assassinaram e que nenhum regime totalitário teria admitido, é portador
com os recursos de que dispõe, não pode recompor. O que distancia e opõe mundo poético e mundo real é também o que os enlaçaem um vín
foi dado acederà integridade Linguísticasem que devessepagar o preço
culo mortal. Essevínculo é ao mesmotempo estéticoe histórico: deter-
açãofoi efetivamente superado em bene$cio cle um princípio superior ou
mina as formas não comunicativas e anta-realistasda lírica moderna e
de taLforça. E o nome de Brecha se impõe como o do poetct Lírico CLquem
do esoterismo. Não pretendo CL qui )ulgaT se o princípio poético de individu
se o motivo dessa superação seria regressa'po, um enfTaquecimento do eu '4força cotetiva da lírica contemporânea provavelmente se deve, em vários
denuncia o estado das coisas na sociedade contemporânea.
Mas a riqueza de implicações que encontramosem Adorno não diz
aspectos,aos rudimentos tingiiísticos e psíquicos de uma condição ainda
respeito apenas a essenexo teórico-sociológico. Também implica uma di-
não inteiramente individualizada, pré-burguesa em sentido mais amplo:
ferente abertura interpretativa sobre o cruzamento de linguagens, temas
ou sela, ao diaLeto. Entretanto a lírica tradicional,
e estilos que atravessaa poesia moderna, do romantismo até Baudelaire,
negação estética do espírito burguês, estevejustamente por isso Ligada até
Louca e Brecht:
hoje à sociedadeburguesa ~'
sertão a mais rigorosa
relação do Romctntismo com Q canção popular é o exemplo mctis evidente
Com uma de suasinesperadasinversõesde perspectiva, aqui Adorno encontraum meio de não avançar a sua desconâançapelascategorias
disso, mas não o mais persumivo. De fato, o RomarLtismoalmejou pro
de "coletivo"
dramaticamente uma espécie de tramÍiuão
ignorar a sua presença e a sua pressão sobre um gênero literário como a
Uma corrente subterrânea e coletiva funda toda a Lírica individual. \..l\ .4
do coEetivo rLOindividual,
e,
e de "popular"
na sociedade contemporânea até o ponto de
por força dessatransfusão, a lírica individual perseguiu tecnicamentea
lírica. É interessantea relação, indicada por ele, entre o apelo ao popu-
ilusão de uma normatividade univeTscLL mais do que essclrtoTmati'cidade
lar no Romantismo (apelo julgado extrínseco e acrítico) e a presença do
Lhecoubesseao libertar-se do seu interior. No entanto, os poeta que$e-
conteúdo social, da piedade e da denúncia em um poeta como Baudelaire,
:lilentemente desderLhavamtodo empréstimo da tíngucl coLetiva participcLm,
poeta em que, teoricamente, a poesia faz um pacto com a artificialidade, a
graças à sua experiência histórica, dessa corrente subterrânea coletiva. É
bizarria, a frieza e a recusa de qualquer moral da participação e da compai-
o c.zio de .Balde/azre, cÚa /z /ca eió(!$eeza não ió o fuste milieu, mai
xão. Justamente em Baudelaire, não obstante sua poética ou graças a ela, o
também toda campal)cãosocial burguesa; e no entanto o próprio BcLude-
conteúdo social e a "subterrânea corrente coletiva" podem manifestar-se
Laire, em poemas como "Les Pentes vieiltes" ou nctqueLeda servil de bom
poeticamente em sua nudez anta-retórica e numa agudeza realista desco-
coração das " TablecLux parisiens", foi mais $el às musas, às clucLisopu-
nhecida pela literatura "sobre a pobre gente" , programaticamente dedicada
rL}Laa sua máscara trágico-soberba,
à representação dos males da sociedade.
do que todos os poemcLSsobre cl gente
pobre. Hoje, quando o pressuposto dctqueteconceito de lírica do qual eu pctrto
isto ê, a expressão individual
pela crise do indivíduo,
parece abcttçLdo no mais íntimo
a corrente coLetivct subterr&nect da lírica emer-
A partir daí, comum salto notável, mascom uma intuição igualmente notável, Adorno passaa autores do século xx como Brecht e Lorca, significativamente irmanados não por suas convicções democráticas ou mar-
ge em pontos os mais diversos: antes, como simples fermento dct própria
xistas, mas pela tendência literária a uma fonte pré-burguesa da integrida-
expressão individual;
de lingüística. Nesses poetas, a centralidade do eu lírico é de certo modo
mas em seguida, tcLlveX.,como arLtecipação de um
estado que supera objetivcLmerLtea simples individuctLidcLde.Se as traduçõesnão enganctm, então, por exemplo, Louca, queos esbirros de Franco
36 Zs mt iras valesda poesü modeí7}a
i5. Id.ibid., pp.55-56 37
destronada, por regressãoou afrouxamento dos vínculos de individuação,
e Thomm Maná, msim comoem Rimbaüd, Maltarmé, Rilke e Eliot. O es-
em favor de uma "força coletiva", que se manifesta na proximidade da lín-
tilo baudelairiano, essa mistura singular que tentamos descrever, está meti.s
gua literária ao dialeto: "Os elementos conteudísticos, dos quais nenhuma
vivo do que rLunca.
configuração linguística, nem mesmo a poó;e pzzre,pode liberar-se com
Este bre'petexto não deve, porém, terminar com o elogio das conquistas
plenamente, necessitarão da interpretação tanto quanto os assim chamados
titeíárim deBaudeLaire,mm slm como motivo inicictl, nuse)ÇL, ressaltandoo
elementos formais".''
quehá de terrível nm V\euts du mal, quetêmpor temaprincipal o horrendo,
Para Adorno, pois, uma poesia pura só existe teorica-
mente, como ideologia literária: elementos conteudísticos e elementos for-
o mais amargo desesperoe as vãs e absurda tentativas de erttorpecimerttoe
mais devem ser interpretados em sua conexão e co-presença,pois afinal não
evasão. Por isso é necessário ditar aqui algumas palavra
há "lírica individual" que não se comunique subterraneamentecom uma
críticos que rechaçaram energicamente o Livro. Entre estes, há algum.s mu
"corrente coletiva", sem a qual nenhuma experiência histórica é concebível.
não todos
quecompreenderam o espírito da obra muito melhor do quemuitos
admiradores contemporâneos e futuros: o horror é mais bem compreendida
9
em defesa de certos
uma obra que, de fato, tem por tema
poT aqueles que, apesar de seus cttctques,
sentem o horror penetrar-ltLes nos ossos do que por antros que só sabem prorromper em expressões entusiástica
sobre o resultado ctrtístico dçt obra. Quem
A ênfasena originalidade estilística e nas extraordinárias "conquistas for-
épossuído pelo horror não rata de { lssan nou''ieau, não grita "bravo" nem
mais" da poesia moderna não só deixa escapar a riqueza e a imprevisibilidade
seregoTtJCL com a onginatidcde do poeta. Mesmo cl admircLçãode FlcLuberté
formal de vários autores e correntes, mas tampouco faz justiça ao sentido
doma.fiado estética, emborcafarmutada de maneira excelente. A desenvoLturct
histórico e à situaçãoexpressapor essapoesia. A reduçãoformalista e
com que Qmaior parte dos críticos posteriores a'Faltam o livro unicamente do
estetizante de uma leitura que simplesmente aceita e registra como "inova-
ponto de vista estético, rejeitando e desprezandoa ytl.ot\ qualqueroutra con-
ção" e "audácia" formal o choque que a maior parte dos poetas modernos
sideração, não nosparece adequada ao argumento, ainda que Bctudetaire pro'
transmite ao leitor foi posta em evidência justamente por um dos maiores
vavelmerttenão p'zrtiLhmseCLnossaopinião, contagiçüo e todo tom(üo, como
representantes da .9rz'ZXrz'rz'X:, Erich Auerbach. Em seu ensaio sobre as F7eüri
estava, por aquelct idolatria da arte, que há multo tempo nos tem em seu poder.
dtzma/, conclui com uma avaliaçãoparadoxalmentepositiva daé reações
Que estrctrthofenómeno: um profeta de desgraça
negativas à arte moderna. Mais que os seus adeptos e defensores dogmá-
ta de sua audiência senão Q admiração pelo íesultado artístico atcançctdo!"
que não espera outra respos
ticos, que aprenderam a aceitar com toda a tranqüilidade as obras poéticas contemporâneas sem sofrer nenhum choque, os inimigos da arte moderna
Indiretamente, Auerbach sublinha o conflito que existe em Baudelaire (e em
continuaram a colher, mais agudamente do que se pensa, a sua mensagem
seusleitores) entre poética e poesia. Um conflito que tenderá a atenuar-se
de revelação crítica. Escreve Auerbach:
e a quase desaparecer no desenvolvimento
ulterior
da poesia pura e da arte
pela arte. Intenções e resultados, forma artística e conteúdo de experiência Não sÓCL roupagemestilísticada lítica moderncl,mas tcLmbém a dm outras
tenderão a coincidir por princípio. O único interessemoral dos artistas irá
forram literária do século quetramcorreü desdeentão, é impemávelsem m
F\euts du mal; encontram-se vestígiosdeBaudelaireem Gire, Promt, Joyce i7- E. Auerbach, "Zes /bzzrT dü ma/di Baudelaire e il sublime"]i95i], i6. Id.ibid.,p.
57
38 .{s muita vales da poesia moderna
in Z)a.4donlaÜnea Pro
f
Bari: De Donato, i97o, pp. i7i-7zled. bus.: "As /farei doma/ e o sublime", trad. JoséMarcos Macedoe SamuelTitan Jr., in /n;mzkomenor,n. 8, Rio de Janeiro: 7Letras, maio 2002].
39
setornar suamoral de artistas.(Foi Hermann Broch quemobservouque as
do pzodernocomo forma vazia e intercambiável. Baudelaire o compreen
duas palavras de ordem "arrpour /'art e ómz/zess ú ó ínesssão dois galhos
dera antecipadamente:
da mesma árvore"
.)
Nos anos iPSo, anos em que Friedrich escreveu seu livro, a arte mo-
Le gâut immodéré de [a forme mousseà des désordresmomtrueux et incon-
derna já havia estabelecido uma sólida relação com a crítica e as instituições.
rlus. \.. À La passion frénétique de t'art est un chancre qui devore te reste; et,
Já podia dispor de um público. A formação dessenovo público culto (for-
commeL'absencertette du justa et du Trai dons t'art équivaut à I'abserLce
mação que o livro de Friedrich ajuda a consolidar) começou a tornar a arte
d'art, L'homme entier s'évanouit; ta spéciaLisatiortexcessivod'une facutté
moderna menos escandalosae mais previsível. Por pelo menos duas déca-
CZÓOZfZt aU /Zeant.18
das, antes da Segunda Guerra Mundial, os grupos de vanguarda tinham levado a cabo um trabalho não só de provocação, mas também de divulgação da arte moderna. A ascendênciainternacional de escritores como Sartre e Camus depois de i945 levou a tcrmo uma obra ampla de esclarecimento e
de influência cultural em favor do artista moderno. As transformaçõesdo gosto criaram novos hábitos, entre estes,precisamenteo hábito do novo. A estrutura da percepção e da fruição estética começou a modificar-se. A arte moderna, que pretendia escapar ao gosto burguês e manter-se alheia à
indústria cultural, modificou o gosto do público neoburguêse influenciou a indústria cultural.
A obscuridade e o antagonismodo estilo moderno foram, assim, constituindo-se paulatinamente numa espéciede jargão. A combinatória
linguística tornou-se com o tempo cada vez mais autónoma e livre de resistências. A "transcendência vazia" e a "agressividade dramática" que
Friedrich atribuía à lírica moderna perderamsua cargadialética. Na última página do livro, o crítico manifestasemrodeiosa suapreocupação por essesriscos de involução. (No prefácio de tg66, ele concluirá com as seguintes palavras: "Todavia é claro que a assim chamada 'poesia con-
creta', com seu amontoado de palavras e sílabasdespejadasde maneira mecânica, não pode ser, graças à sua esterilidade, levada em considera-
ção".) Mas talvez Friedrich não percebesseinteiramente a relação entre a sua descrição "estrutural"
da poesia moderna como fuga da realidade
i8. "0 gosto imoderado da forma ]eva a desordens monstruosas e desconhecidas.[-.] A
e autonomia da linguagem e os produtos dos novos vanguardistas, com
paixão frenética pela arte é um câncer que devora todo o resto; e, como a clara ausênciada Justoe do verdadeiro na arte equivale à própria ausência da arte, o homem se dissipa por inteiro; a especia]izaçãoexcessivade uma faculdade conduz ao nada." [N.T.] C. Baudelaire
seujargão da modernidade e sua abstrata concretude. Mais que iluminar
o estadopresenteda "tradição do novo", uma descriçãoa-histórica da poesia contemporânea e de sua novidade só contribuía para criar o X:;zscÀ
4o
..4smuita
vales da poesia moderna
'L'École paTenne"[t85i], in Oezzl,res ca/np/êles,v. n, org. C. Pichois. Paras:Gallimard, i976: PP.48-49.
4i
Baudelaire em prosa
Ainda hoje Baudelaire é freqüentemente considerado, de forma um tanto apressada,o precursor e teórico da "poesia pura", na esteira de Edgar Allan Poe. Na realidade, a crítica menos disposta a simpliâcações sempre enfatizou
o quanto há de contraditório em sua obra, a qual, mais que a de qualquer outro poeta do século xix, exerceu uma vasta e capilar influência póstuma. Baudelaire é um escritor bifronte, cindido entre instâncias e tensões
opostas,jamais resolvidas numa "síntese superior". Um escritor de versos cuja poesia (para já lançar uma de suas típicas oscilações) se funda numa constante "a/dance aPec /a prole"
(Albert
Thibaudet).
Na onipresença do
oxímoro e da dissonância,seu estilo mistura ou justapõe./Zánenemelancó lica, alegoriasinfernais e grotescas,o máximo da evasão,"transcendência vazia" (Hugo Friedrich) e sonho de um éden ou de um paraíso artificial. Nenhum conteúdo, nenhum dado real, nenhuma inquietação pessoal
são transfiguradose superadossem resíduos na forma. Por trás do volun tarismo teórico da poética de Baudelaire, há uma espéciede paralisia letárgica da vontade. O seu gesto estilístico, tão peremptório, ergue-se sobre o caosde uma existência incapaz de encontrar uma ordem. Sartre escreveu: Não teve CLvida que merecia". 4 vida de BaudeLaire parece umçl ilustração
mçtgní$cadestclmáxima con.soLadora. Decerto não merecia aquela mãe, m eternasangústia$nartceiías, o con.seixode família, a amanteavara, CL sÍ$tis; e o quehá de mais injusto do queo seu$m prematuro? Entretanto, penando bem, surge uma dúvMa \. . A. essesolitário tem um medo espantosoda solidão,
nuncasai semum amigo, mptra a uma cma, a uma vidctfamiliar; esseapoio' dista do esforçoé um "abúlico" incapaz.de submeter-se clum trctbalho regular; 43
lançou apelos à victgem , upirou à evmão, sonhou Lugares desconhecidos, mu
des áridas e amargas, na tradição de Pascal e La Bruyêre (ambos citados no
levitava seis mesesantes de partir parct Hon$eur \.. \, ostenta despreTae até
poemetoxxm, "La Solitude").
Saio petcL:íliguras opressoTas, encarregada de sua tutela, e tto entcLrLtojamais
Quando Charles-Pierre Baudelaire nasceu, em g de abril de i8n, em
:entOLILibertar-senem deixou de cumprir uma única veX. adveítêncim pa-
Paria,seupai tinha 6z anos.Ele havia sido padre, preceptor e funcionário
LerncLS. Será que eLeé tão difererLte da 'pipa que Levou?Ese tivesse merecido aslLa vida)
do senado. Viúvo por um longo período, casou-se pela segunda vez em l 8ig,
com uma mulher muito mais jovem, Caroline Archimbaut Dufays, que tinha 28 anos quando o poeta nasceu. A casa em que moravam e onde o pe-
Na realidade,Baudelairesabeque fracassacomo autor da própria vida,
queno Charles cresceu,na rua Hautefeuille, situava-se no cruzamento com
como esteja e como dando, por isso deve vencer como poeta. Por mais que se esforce em conferir à própria existência uma marca inconfundí-
o boulevard Saint-Germain, no Quartier Latin (local hoje ocupado por um
vel, fazendo dela uma forma de arte, essaexistência Ihe escapa.É irre-
Napoleão morre, como se sabe,menos de um mês depois, na ilhota de
edifício construído mais tarde, atualmente sede da livraria Hachette).
mediável como uma ferida aberta que os seuspropósitos de disciplina
Santa Helena, encerrando definitivamente uma época. A burguesia com a
não conseguem curar. Dessa vida, oscilante como um pêndulo obsessivo
qual Baudelaire terá de lidar durante toda a vida será a burguesia retórica,
entre uma ordem sonhada e as invasões angustiantesdo cotidianQ, deve-
sentimental,comerciantee usurária, que toma completamenteo poder na
ria nascer uma obra poética construída e estudada em cada detalhe, em
França com a Monarquia de Luas Filipe, uma burguesia já distante do es-
cada efeito.
pírito dos anos napoleónicos. Uma burguesia facilmente desprezível para um poeta: a classesocial que encarna na forma mais clássicao culto do Útil
A aliança com a prosa mencionada por Thibaudet, que aproxima Bau-
delaire de Sainte-Beuve, tem um duplo significado. A prosa não é apenas
e do Progresso,cuja io&fúe[tolice] (esta é a primeira palavra do primeiro
aquilo que invade a poesia, minando e perturbando-lhe o sonho de perfeição. A prosa é sobretudo o que sustentaa poesia, conferindo-lhe uma estrutura de discurso que torna a escansãodo alexandrino sintaticamente
verso das /ibzzri dzzma parecerá a Baudelaire, assim como ao seu contem
mais dúctil e equilibrada. Não é instrumento do informe na regularidade do verso: é mistura e dissonânciade tons, energia intelectual. É isso que,
situação em que Baudelaire passaria a viver:
porâneo Flaubert, a muralha insuperável do espírito dos tempos
De sua parte, vivendo em Paris, Heinrich Heine ]á havia descrito a
mais tarde, levará Baudelaire a interessar-sepelo aperfeiçoamento artístico
Essa pauperiTação de toda grandeza, essarcdicctl destruição do heroísmo são
da prosa, da breve prosa ensaística, de divagação autobiográfica e crítica,
deviam sobretudoà burguesia, à cLmseburguescl, querLaFrançcl chegouao
entre o diário íntimo e a alegoria
poder sub'perdendoa ari.stocrmia de nucimento e impondo o seu espírito meí-
com o clássico resultado dos poemetos
em prosa recolhidos no SpZeende Fará. Na condição de moralista da forma artística (nele, a luta entre o bem e o
cantile
estreito
a toda
M esfera
da vidct. Dctqui
a não muito
tempo,
quctLquer
idéia ou sentimento heróico se apagará neste país, ou no mínimo se tornará
\..l\. Os homem de pemamento que, rLO século xvm, prepara CLm
mal convive com a discriminação idiossincrática entre o belo e o feio), e como
ridículo
demonólogo paradoxal da vida urbana moderna, Baudelaire não pode pres-
incamavetmertte a revolução $cariam 'vermelhos de vergonha se vi.saempara
cindir de uma prosa analítica e introspecdva. Ele conhece o poder "higiênico'
gaerÚo degenrorraóa/param[. . .].:
e dessacralizador que a prosa analítica sabe desencadear. A prosa das verdaz. Apud G. Lukács, "Realista tedeschidell'Ottocento" [r95i], in Scnflf szz/rea mo, org. por
[ . J.-P. Sartre,.8aKde/gire[1947]. Milão: ]] Saggiatore,ig64, pp. 7-8. 44 Baudelaireemprosü
A. Casalegno. Turim: Einaudi, í978,p. 5zz 45
lacre se empenhará numa luta desesperada de provocação e autodefesa, for-
dinheiro a âm de complementar a insuficiente renda mensal dispensada pelo notário. Retirando-se, após a morte do marido, na casade Honfieur
çado a inventar para si um mundo cultural o mais escandalosamentedistante
(chamada pelo poeta de "la Maison-jou-jou"),
daquele inventado e encarnado pela burguesia em expansão de sua época.
tante freqüentes do filho: em outubro de i858, de janeiro a março de i859
Contra a moral, a estética, a política, o gosto e a religião dessa classe, Baude
a viúva receberá visitas bas-
O velho pai, Joseph-François Baudelaire, morrerá logo, deixando viú-
(temporada particularmente feliz e profícua) e, de novo, em maio-junho
va a jovem mulher, e órgão o alho Charles, de apenas seis anos. Pouco mais
e em dezembro do mesmo ano. É ela quem, finalmente, no verão de i866
de um ano após a morte do primeiro marido, Caroline se casacom um militar de carreira, JacquesAupick, capitão de infantaria, cavaleiro de Saint-
(ajudada pelo pintor Stevens,amigo do poeta) o reconduz acometido de
Louis e oâcial da Legião de Honra. A carreira deste homem, que Baude-
ano depois, em agosto de í867, sem ter recuperado a fala.
laire odiara e desprezaraininterruptamente apesar dos esforços iniciais de
paralisia, de trem, da Bélgica a Pauis,onde Baudelaire morrerá cerca de um
Em Lion, cidadeodiada,para a qual Aupick havia sido transferido,
boa vontade filial, entoa uma espéciede contracanto triunfal em oposição à
Baudelaire freqüentou dos onze aos quinze anos o Collêge Royal. Retor-
difícil e quase sempre infeliz trajetória pessoal e literária do afilhado.
nando a Paris, ingressano Collêge Louis-le-Grand. Nele se distingue es-
Em i83t, o tenente-coronelAupick torna-sechefe de Estado!Maior
pecialmente por sua capacidade de compor versos em latim, mas é expulso
e é transferido para Lion. É promovido a coronel em i834 e a general de
por ter se recusado a entregar a um professor um bilhete que Ihe havia sido
brigada em i839. Em seguida, é nomeado comandante da Escola Militar do
passado por um colega. Depois de concluir em casa a escola secundária,
Estado Maior em i84i, comandante do departamento do Senna e da praça
inscreve-se na faculdade de direito, sem no entanto Jamais concluir o curso.
de Paria em i84z e comandante da École Polytechnique em i847. No ano
Ao completar vinte anos, diante dos perigos de dissipaçãode sua
seguinte, é ministro plenipotenciário da República Francesa em Constanti-
'vida livre", o conselho de família decide envia-lo em viagem e afasta-lo de
nopla. Embaixador em Madre em i85i, senador em í853. Portanto o padras-
Paris. Assim, em g de junho de í84i, Baudelaire embarca em Bordeaux no
to Aupick é a imagem viva e enérgica da burguesia ex e pós-napoleónica,
Pagzzeóor-de.i-.44erx-dzz-Szzd, que faz a rota para Calcutá. Mas em setembro
imagem que Baudelaire terá diante dos olhos durante a maior parte de sua
ele desembarca na ilha Maurício e depois segue para a ilha Bourbon (hoje
vida, até o ano crucial de i857, em que Aupick morre e Baudelaire publica
Saint-Denis-de-la-Réunion). Então decide não prosseguir viagem e em-
.[es .FhizrKdu ma/. Os anos de infância e adolescência, e depois toda a vida,
barca num navio que o reconduz à França seis meses antes do previsto. As
são profundamente marcadospor essasituaçãofamiliar. Conta-se que em
imagens dessa viagem ficarão impressas em sua memória como uma visão
l 848, durante as revoltas de fevereiro, na noite do dia z4, Baudelaire foi vis-
edênica, que retorna em vários poemas das /;&zzrs dEZma/ e em alguns capí-
to nasruas de Parascom um fuzil na mão,gritando enfurecido: "É preciso fuzilar o general Aupick!
tulos do SpZeen de Fará. Logo após ter tomado posse da considerável herança paterna, Baudelaire
Da mãe, Baudelaire só se reaproximará nos últimos anos. Foi ela quem, em
se estabelece em um apartamento na sugestiva Íle Saint-Louis, morando
i844, dirigiu-se ao tribunal a âm de que o filho gastador (em um ano ele
nele por dois anos, até i843. Freqüenta os ambientes artísticos e literários,
havia delapidado metade da herança) fosse confiado a um tutor patrimonial,
conheceNerval, Félix Tournachon (o fotógrafo "Nadar"), Çautier, Sainte-
função designada ao notário Narcisse-Desiré Ancelle. E era sempre à mãe
Beuve, Huno. Em 1842, conhece a mulata. Jeanne Duval (cuJO verdadeiro
que Baudelaire,acossadopor dívidas e continuamenteforçado a mudar de
sobrenome continua incerto), por quem se apaixona e com quem viverá
endereço(seis vezes em um único mêsde i855), pedia insistentemente mais
por longo tempo, durante mais de quinze anos, não obstante as brigas, os
46 Baudelai
e em prosct
47
desentendimentos e as separações. Começa a escrever poemas que serão
obtém por duas vezes uma indenização pelas Mou cãesÃúro;rei exfraord!-
publicados muitos anos depois, mas entretanto se revela um genial crítico
rza;reide Poe, traduzidas por ele. Em í859, traduz também o poema "The
de arte com o SaZonde z845e, particularmente, com o SaZonde z84C)em
Raven" e "Philosophy of composition", para a Re zzeFra/zfaúe.Profeta
que define a sua idéia de crítica ("para ser justa, para alcançar sua razão de existir, a crítica deve ser parcial, apaixonada, política, ou seja, feita a partir
um livro de ensaioscríticos (Mor;cei /if/e'ra/rei), que não chegaa concluir.
de um ponto de vista exclusivo, mas que abra o mais vasto horizonte").; Já em l 843, contrai grandes débitos com o marchand, antiquário e agiota Arondel, dívidas que comprometem o futuro de sua situação financeira. Em í848, apaixona-sepela revolta contra a Monarquia orleanista, cola-
Recebeoutras indenizaçõesdo ministro da Instrução Pública por sua obra crítica e poética. Em l 86i, aparece a segunda edição das /;&zzrx dzzma/, com
35novos poemas, quase todos já publicados em revistas. Entretanto sua saúde está gravemente comprometida. apresenta a própria candidatura
No final de l 86i,
à .dcademle Fr.znfaúe (nessa ocasião conhe-
bora em publicações políticas e escreve artigos em parceria com Champfleury
ce Vigny, com quem inicia uma relação de mútua estima). Mas seu amigo
e Toubin na revista Ze Sa/tz pzzó#c,que tem apenas dois números lançados.
Sainte-Beuveconvence-o a desistir, devido à improbabilidade da eleição.
Nos anos seguintes,após a desilusãoe o desdémpelo golpe de Estado de dezembro de í85í, que restaurao Império, afasta-sede qualquer interesse
Envia a Arsêne Houssaye alguns 'pe!; ipoême enproie". Planeia e anuncia
político e termina por adaptar-seao regime de Napoleão in.
traduções de Lucano e de Petrânio, que nunca serão levadas a cabo. Suas relações editoriais complicam-se sucessivamente com o arresto por dívidas de Poulet-Malassis; Baudelaire então cede os direitos exclusivos
Nesses anos, publica sobretudo ensaios: "Du vin et du hachisch", "L'École
de publicação das F7ezri dzzma/ e dos Pel/ripoêmes enproie a outro editor,
paTenne", "Morde du louvou". Mas também algumas coletâneas de poesia e numerosas traduções de Poe, divulgadas em várias revistas. Finalmente,
Hetzel (mas depois deverá concedê-los novamente a Poulet-Malassis, que em í865 os reclama legitimamente, já que os havia adquirido antes).
em i857, o editor Poulet-Malassis publica em um volume todos os seus versos. O título, que deveria ser em um primeiro momento Zes Z;mães, depois
Entre novembro e dezembro de t863, o /;lkaro publica o ensaio fundamentalsobre Constantin Guys, "Le Peintre de la vie moderne". Pouco
seráZes F7ezzrida ma/. Após a publicação,Baudelaire sofre um processo
antesde partir para a Bélgica, em abril de i864, Baudelaire planeia escre-
(o de .A/arame -BovaW acontecera há poucos meses) e é condenado a pagar
ver uma série de -Le res d'an alraóz/a;re, nas quais se propõe a denunciar
uma multa, além de ter que excluir seispoemas do livro. O magistrado que
violentamente a estupidez contemporânea. Na Bélgica, o escassointeresse
havia feito a acusaçãopública era o mesmo do processo contra Flaubert.
suscitado por suas conferências (sobre Delacroix e Gautier), .as más rela-
Com o passar dos anos, aumentam as dificuldades económicas e as
çõescom os editoresLacroix e Verboeckhoven, que terminarão recusando
disputascom o notário e tutor patrimonial, Ancelle. Apesar dos vários
a publicação de suas obras, e a ira pelo rude materialismo comercial que
rompimentos, Baudelaire sempre reata com Jeanne Duval. Em i859, co-
reina no país irão leva-lo a escrever os obsessivos e hiperbólicos panfletos
meça a escrever os apontamentos de Mon coeür mú .à,zzz,nos quais trabalha
'Amoenitates Belgicae" e "Pauvre Belgique"
até i866 e que deixa incompletos (em /'méei são recolhidos fragmentos compostosentre í855 e i86z). Solicita ao ministro da Instrução Pública e
Os últimos e funestos anos da vida de Baudelaire, contaminados por
dificuldades económicas e por disputas editoriais, mas também pela ira crescente contra a "mentalidade belga", ou seja, contra a universal óérüe
3. C. Baudelaire, "Salon del i846", in Poeizeeprole, org. G. Raboni. Melão:Mondadori, i973, p. 687 [ed. bus.: "Salão de í846", trad. Cleone Augusto Rodrigues, in Poeira e praia, org. lvo Barrosã. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, i995].
4X Baudetcüe emprosct
burguesa, culminarão no ataque hemiplégico de março de t866, antecipado
por gravesdistúrbios nervosose cerebrais.Internado numa.clínica,privado da palavra, não se recuperarámais até sua morte, ocorrida em 3 de 49
agosto de t867, mesmo dia em que a Re zzena lona/e et e'rra/zgêrepublica o
último
o quinquagésimo
dos poemetos em prosa, "Les Bons chiens'
não crê na divinização do humano ou nos poderesórficos da palavra. Para fazer frente às forças demoníacasque assediamsua mente, o poeta, que aspira a ser ao mesmo tempo Mago e Demonólogo, necessita de uma lin
A que se propunha Baudelaire ao começar a escrever os poemas em prosa
guagem capaznão só de extraordinárias sutilezas evocativas, mas também
mais ou menos nos mesmosanos em que concluía as F7eüri dzzma/? A
de notável energia e clareza representativa.
princípio, a respostanão era inteiramente clara nem mesmopara o autor, e só viria com a realização do prometo. Seja como for, com os anos parece
Por outro lado, em Baudelaire não se dá realismo sem deformação,paro-
aumentar em Baudelaire a necessidadeda prosa (algo semelhantehavia
xismo, parcialidade, obliqüidade. O real emerge por um efeito de choque.
ocorrido com Leopardoe Púchkin) .
Uma estéticaque permita perceber o que é real não deve ser necessaria-
Como já se disse, nào obstante alguns pontos extremos e precursores
mente uma estética realista nem puramente mimética. Baudelaire, como
do seu pensamentoteórico (que prenunciam Mallarmé e Rimbaud), Bau-
se sabe, não tinha absolutamente
delaire escreve uma poesia mais clássica, realista, inclinada a fortes efeitos
laica e desmistificada)do real. O estilo não deveria, pois, se assemelharà
teatrais e satíricos,mais do que ele talvez estivessedisposto a admitir. O
coisa, mas sim conservar, e às vezes exibir, uma ordem estranha ao objeto
aspecto contraditório da teoria de Baudelaire foi recentemente recordado
representado. Não por acaso, foi justamente a propósito de Baudelaire que
por Michael Hamburger em seulargo panoramada poesiamoderna: "Z)an-
Walter Benjamin anotou: "A descrição da confusão é algo diferente de uma
da e porta-voz dos deserdados escreveHamburger --, Baudelaireera um poeta alegórico, não um simbolista"; como crítico, "não sentiu nenhuma
descrição confusa".s Para obter os efeitos desejados, Baudelaire precisava
necessidadede elaborar um tipo de análise literária concentrada exclusiva-
daquilo que nela há de cone;rzn;r.zi [disposição] clássica: em seu esti]o da
mente nos aspectos estéticos e estilísticos da poesia"; e, de fato, "tem mais a
modernidade, coexistem necessidade arquitetõnica e impulso extático.
compartilhar com Matthew Arnold do que com Poee Mallarmé, nos quais vemos respectivamente o seu mestre e o seu discípulo".'
uma idéia burguesa e "realista"
(isto é,
da clareza racional e sintática que predomina na tradição poética francesa,
Do mesmo modo, seus gostos de crítico de arte e de crítico literário não são, no fundo, menos contraditórios. Se por um lado ele exalta Poe e
Mesmo o recorrente confronto com Dante (que encontramos em Thi-
Delacroix, a fuga do que é comum, cotidiano e banal, por outro apreciae
baudet, por exemplo, e em Auerbach) não diz tanto respeito à iconografia
ama Balzac, Daumier, Grandville, Constantin Guys, isto é, a observação
gótica da lura entre aspiraçõesangélicase presençassatânicas.Refere-se
(ou "visão") realista, satírica e grotesca da vida social. É sua a definição
mais ao lado "impuro", alegórico, intelectual, antilírico e discursivo de toda
de Balzac como um escritor mais visionário que realista: "Mais de uma
a obra baudelairiana. A sintaxe da poesia de Baudelaire é escrupulosamente
vez espantou-me que Balzac se vangloriasse de passar por um observador.
clássica,ao passoque os.seus temassão violentamente autobiográâcos e confessionais,até atingir um autêntico exibicionismo moral, e não rumam
Sempre me pareceu que o seu maior mérito fosse ser um visionário, e um visionário pleno de paixão".ó
no sentido da depuraçãoe da despersonalização,como ocorrerá com os simbolistas. Diferentemente destese de outros "decadentistas", Baudelaire
5. W Benjamin, "Parco centrale", in .4/zge/uinova. SaggÍ e./?ammenl;]i955]. Turim: Einau di, ig6z, p. i3o [ed. liras.: "Parque central", in Oórm esmo%;dm /% trad. JoséCar]os Marfins Barbosae Hemerson Alves Baptista. 3' ed. São Paulo: Brasiliense, zoom,z: reimp.].
4- M. Hamburger,-Z:avenrcide#apaeiia.Z)a.fraude/gire a .44onia/e]lg82].Bolinha: ll Mulino, [g87, pp. 8-t lied. bus.: ,4 verdade dapoei/a, trad. Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo:
Cosac Naily, zoo7 ].
\O Baudetaife em prosa
6. C. Baudelaire,
"Théophile
Gautier"
[t859],
in Poeize e Frase, op cit., p. 65i [ed. bus.
'Théophile Gautier", trad. JoanaAngélica D'Ávila Meio, in Pnesz a eproia, org. lvo Barroso
Rio de Janeiro:Nova Aguilar, i995].
Foi um análogo realismo visionário que permitiu a Baudelaire delinear
No ensaio sobre Constantin Guys, há um útil esclarecimento sobre
em seus "Tableaux parisiens" e em muitos poemetos em prosa a imagem
essemodo de representação que poderia parecer excessivo,grosseiro, cruel
talvez mais incisiva e memorável de Paris capital do século xix.
e bárbaro:
Giovanni Macchia observou que, na edição de i86i das F7earxdzzma/,
multiplicam-se e amontoam-se tanto as presenças fantástico-obsessivas
Esta pctLavra, batbâüe,
quanto as satíricas,com o conseqüentereforço do caráter prosaico e
perLC',podeTicl indu$r
ensaístico da poesia de Baudelaire:
esboços informes \..l\. Eu querofalar de uma barbárieinevitável, sintética infantil,
Enriquece-se o grande aTSenCLL baudelairictno de neuroses, ódios e remorsos, de horrores efantasma,
de passados e obsessivos, em um gosto mais amargo do
que tatvel. tenFLafreqilerLtado em excesso a minhct
ctLguém Q acreditar
que aqui se trata de un.s poucos
que éPe qüentemente visível Flama arte perfeita Çmexicarta, egípcia
ozznzlzz'zra8)e gue/ro éh da necessidadede ver as coisas com grandiosi
dade[...] ]grz8omea].9
rtcLdcte num sentimento do tampa cano ujÜLcl. Na decurso poético se ctdensam os elementos da sátira, do episódio, do email, numa veia gume climática Olc de forte
estrutura ideológica.
E parece estranho que, se por um Lado o encontro com Poe o con(]lLTlrcl
cada ve{ mais, em teoria, ao céü despoj(üo da poesiapura, por outro, rla prática e na substância, Baudetaire se afagava dele. O exemplo mais consistente desse sentido é "Le yoyage",
o poema mais Longo qtce ete compôs e cujas
proposiçõesestão bem distantes dos eminamerttos de seu mestre
um poema
Cada época tem seu gênero de beleza, em que se funde "algo de eterno e
de transitório", e, contra a aviltante mediocridadedos "republicanosda arte", Baudelairereivindica parao próprio estilo a necessidade de "poses majestosase violentas". De resto, a Parasdo século xix não era parca de maravilhas nem de seresheróicos: "A vida parisiense é fecunda de motivos poéticos e maravilhosos. O maravilhoso nos envolve e nos inebria como a atmosfera: mas nós não o vemos [. . .]."''
guepode ser /ido[. . .] co«.o ü«zen'aza e"z versos.
Baudelaire interpreta e representa a vida cotidiana de seu tempo segundo módulos estranhos à ideologia burguesa progressista e, portanto, distantes da cultura "moderna" daqueles anos. Fazendo incidir sobre os dados da modernidade urbana as visões tirânicas de um crês. tianismo negativo e maniqueísta, Baudelaire nega todo valor de positividade à ação social e histórica. Sua interpretação da modernidade é
Comparadas à concentração e variedade dos poemas em verso, as prosas poéticas do SpZeenque retomam mais diretamente seus temas e situações
podem parecer transcrições enfraquecidas, mecanismosartísticos desata vados. Quasecomo se a força prosaica da poesia de Baudelaire tendesse à dissolução precisamente no momento em que se realizava sua tradução em prosa. A tensão entre rigor métrico-sintático
e magnetismo perceptivo-
visionário (percepção que, em Baudelaire, tende quase sempre a dilatar-se
orientada por valores antimodernos. Certamente o satanismo é para ele uma fonte de imagens, um aparato de figuras retóricas e um expediente
em visão) se enfraquece nas prosas dospezzzipoêmes. A soltura da prosa só
para a construção de cruéis cenografias de efeito. Mas, antes disso, é a convicção nada estética de que o Mal existe e de que existe o demónio
abstração do alexandrino e à arquitetura estrófica.
quando menos, porque o próprio homem se incumbe de cria-lo e de garantir-lhe
cuidadosamente a sobrevivência.
pode atenuar ou eliminar os efeitos de estranhamento devidos à força de
8. Arte relativa a N ínive, antiga capital da Assíria. [N.T.] g. C. Baudelaire, "il pittore della veta moderna" [i863], in Paeszeepraie, op. cit., p. 947 [ed bus.: "0 pintor da vida moderna", trad. Suely Casual, in Poeira epraia, org. lvo Barrosã
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, i995] 7. G. Macchia, Bazzde/az're. lvlilão: Rizzoli, i975, p- 20j
\2
Baudeíaire empresa
io. C. Baudelaire, "Salon del i846", op. cit., p. 774
53
A organização conjunta dos dois livros responde, além disso, a critérios explicitamente
antagónicos. Enquanto as seis seções das F7ezzr=du
ma/ estabelecemque nenhum texto deveria ser lido isoladamente, os cinqüenta capítulos do SpZeen, como declara o autor na dedicatória a Arsê-
convencional. Para Baudelaire, a prostituta
não é apenas esteticamente
mais sugestiva e atraente do que a esposa: é também mais pura e inocente.
Na sociedade burguesa formada pelo domínio das trocas e do dinheiro. a
ne Houssaye,formam um conjunto "sem pé nem cabeça".Não é sobre
verdadeira prostituição é aquela mascarada, hipócrita, da relação conjugal. A ambigüidade e a duplicidade deixam Baudelaire até o fim lacerado e
os significados suplementares, resultantes da organização do conjunto,
indeciso entre o gosto do pecado e a aspiração à pureza. À primeira oposi-
que Baudelaire insiste a propósito dos poemetos, mas sim na "comodidade", para o leitor e para o autor, de uma seqüêncialivre, desvinculada,
ção frontal entre moral e estética se soma uma ambigüidade e uma ambivalência no interior de cada um dessesdois pontos de vista distintos.
em que cada fragmento pode ter uma existência própria. A ordem arquitetânica é substituída por uma maleável capacidade de adaptação "aos
feio? Toda a assimchamadaoriginalidade da estéticae do gosto baude-
movimentos líricos da alma, às oscilações da fantasia, aos sobressaltos da consciência'
lairiano está aí para mostrar o contrário das aparências mais banais: nem o Belo nem o Feio, nem o Bem nem o Mal são univocamente idênticos a
Os capítulosdo Sp/eende Parti constituempartede uma obra ina-
si mesmos. Tão sensível ao belo quanto ao feio, tão obcecado pelo bem
cabada:um diário em forma de arte, um itinerário às avessasque deveria
quanto pelo mal, Baudelaire tem de ambos uma visão sumamente pessoal
repetir, traduzir e desatar o que havia de amarrado e entrelaçado na trama
e idiossincrática. Por exemplo, parece-lhe belo
O Belo é, de fato, nada mais que belo? E o Feio é pura e simplesmente
e ele elege como belo
o
das F7earTdzzma/. Mas a pesquisa de Baudelaire prosador permanece uma
que ordinária e convencionalmente é reputado feio e mesmo repugnante.
pesquisaaberta: como aparece também no peculiaríssimo estilo "privado",
E achabanal,comum e vulgar o que é consideradoerroneamente,isto é
assintático,nominal e cumulativo do diário .44oncoezzr mü a nzz.
habitual e comumente, belo.
Uma das ambivalênciasque caracterizamtoda a vida e a obra de Baude-
valorização estética do feio por um imoderado e polêmico amor ao belo, rea-
laire diz respeito à relação entre moral e estética. O ponto de vista moral,
parecetambémno interior do seuponto de vista moral. O mal seapresenta
que julga e interpreta a recíproca exclusão de Bem e Mal, busca inutilmente
muitas vezes com a aparência bem-comportada do bem (do bem comum,
se fundir, em Baudelaire, com o ponto de vista estético, que opõe Belo
do bem geral, do bem futuro). Enquanto o verdadeiro bem, ou a recusa a
e Feio. Diante de qualquer objeto e situação da experiência, Baudelaire oscila entre o primeiro e o segundo ponto de vista, pondo em conflito, de
um bem falsificado, pode assumir feições bizarras, escandalosas e perversas.
modo muitas vezesprovocador,um tipo de moral e um tipo de estética. Alternativamente, e dependendodo alvo polêmico do momento, Baude-
socialmente reconhecível, o bem subsistecomo algo que só o indivíduo pode, diantede i; meigo, conceber e perseguir. A moral baudelairiana é
laire lançará uma luz sarcásticasobre a obtusidade moral que não sabe dis-
individualista e negativa. Serve-lhe para proteger-se da moral burguesa (e
tinguir o que é belo e o que é feio ou, ao contrário, a obtusidadeestética
pa'a distinguir-se da estética burguesa). Mas serve somente a ele, se é que
que não sabe ver, sob a superfície das aparências, a oposição entre bem e
Ihe serve. "Ser um grande homem e um santoper se: eis a única coisa im
mal, entre inocência e pecado.Assim julgará inocentes e puras algumas
portante", escreve em Mon coezzr míç '2 nzz.
Essareversibilidade dos opostos, do belo e do feio, com a conseqüente
De qualquer modo, não sendo mais comunicável de modo positivo nem
encarnações convencionais e comumente condenadas do pecado, para
O verdadeiro bode expiatório de Baudelaire é a burguesia pós-napo
depois julgar sordidamente pecaminosas e ousadamente culpáveis figuras
leânica, uma classe de militares inutilmente orgulhosos, de literatos "mili-
sociais aceitas,burguesesde boa vontade e do bem entendido de modo
tantes" e de "vanguarda", de comerciantes que só adoram os negócios. Por
\4
Baudetaire
e«l
prosa
mais que setente sutilmente reconstruir e racionalizar suasidéias estéticase
imensacidade moderna para aí encontrar um restaurador "banho de multi
morais, dificilmente se chegará a um critério de orientação geral mais segu-
dão". De Bruxelas, em 3o de março de í861, escreve a Sainte-Beuve:
ro do que este: Baudelaire odeia em todas as suasmanifestaçõesa burguesia em meio à qual Ihe coube viver. Ele ama e aprecia aquilo que ela despreza.
FaTeTcem bagatelastrabalhosa queexigem tlm perene bom humor aom hu
Detesta os sonhos mais caros e preciosos dessa classe, estejam eles recolhi-
mornecessário para tratar até de tema tristes), uma excitaçãobizarraque
dos no doce decoro da vida familiar e privada ou no otimismo da idéia de
precisa de espetãculos, de multidões, de música, CLtéde Lampiões=ei.s o que eu
um progresso global e ilimitado do gênero humano. A prostituta, o dando,
quis falar! Estou ainda nos sessenta, e não comigo continuar.
o pervertido, o pobre, o desgraçado,o vagabundo tudo o que de mais antiburguês e não-burguês possa existir, Baudelaire o assume apaixonada-
Na edição póstuma de que dispomos, "as cem bagatelas trabalhosas" pre
mente como próprio e fraterno. Em nome da provocação, até o mau gosto é reabilitado, desde que escandaloso: "0 que é inebriante no mau gosto é o
vistas são apenas cinqüenta. Livro desafortunado e pro)eto incompleto, os PerlzTpoêmeienproie são uma das obras-primas ou um dos livros-chave e
prazer aristocrático de desagradar'
documento de identidade da literatura moderna: diário em público, exerci
Sem saber, sem nem sequer suspeitar, laboriosamente, obtusaménte, a
cio de repetição e de exorcismo, série aberta e inacabada de fragmentos em
burguesia, segundo Baudelaire, está nas garras do demónio. E o demónio,
que Baudelaire expressou o seu amor e horror pelo presente, sua idéia da
por sua vez, tal como é retratado no capítulo "Le Joueur généreux", é um
literatura e da poesia como evasão impossível e denúncia impotente.
demóniohistoricamentebem determinado:é um "bom diabo", um iluminado e magnânimo senhor burguês, sem preconceitos, inimigo de escândalos, senhor de si, conversador fascinante, que preza muito seu bom nome, que jamais perde a calma e que sabenomear Deus com desenvolta bonomia.
É esteo Diabo da nova sociedade:"Todos o serveme ninguém crê nele: (assim havia escrito em um prometode prefácio para as /%z'rT du maÕ. Reelaborando uma tradição ensaística e moralista bem presente na França, formulando de novo, nos cenários da modernidade urbana e em termos alegóricos, o gênero da prosa breve, do fragmento livre, divagante, analítico,
descritivo, satírico, Baudelaire retoma refiexivamente, nos poemetos em prosa, os lugares fundamentais de sua poesia. Mistura e contamina a forma do diário íntimo e a de um singular jornalismo antijornalístico, fazendo do artigo uma aperfeiçoada e soâsticada forma de arte. Além disso, ao escrever em prosa, Baudelaire se empenhava em satisfazer a própria exigência de um exercício da vontade e da atenção. Esse
exercício ascético,que o poeta sabia que devia impor-se para não cair no informe, tinha por outro lado a necessidadede um alimento contínuo de curiosidade e da especialeuforia do./7anézzr que perambulasem meta pela \6
Battde
gire empresa
57
Cosmopolitismo e provincianismo na poesia moderna
l
O que é a Província e o que a Província significou como realidade e como
idéia na poesia moderna são um tema tão carregado de implicações que não posso esperaresclarecê-lo aqui. Por que então enfrenta-lo? A razão mais imediata poderia ser a de liberar certos termos de seu magnetismo
dogmático. Cosmopolitismo e provincianismo são desdehá muito tempo categorias sobretudo valorativas. Se não um juízo estético de valor, nelas
estáimplícito um julgamento preliminar e mais temível de adegzzafão histórica. Em poucaslinhas, essejulgamento poderia ser assimdefinido: a arte
modernaé cosmopolita;a arte provinciana não é moderna, não é atual, mesmo admitindo nela a presençade qualidades artísticas tradicionais. Neste enunciado se oculta, porém, um sugestivo sofisma. Como poderia uma obra artística de valor não ser atual e historicamente adequada? Uma arte que hoje não tem mais valor, embora possatê-lo segundo os critérios e o gosto do passado,é um contra-senso e um anacronismo. A vantagem prática de tal formulação é outra. O caráter de atualidade e modernidade pode ser atribuído a obras que, mesmo obsoletas e artisticamente inaceitáveis,
sejamreconhecidascomo interessantesdo ponto de vista da "pesquisa" e da "experimentação". Serão anuaise modernas mesmo que não correspondam aos valores estabelecidos pela tradição.
Como se pode constatar por essasprimeiras considerações, o emaranhado conceptualcorre o risco de adensar-setão logo se tente desembaraçálo. As perguntas se multiplicam. O que quer dizer "valor estabelecido"?
O que quer dizer "tradição"? Quem emite os "Juízos de valor"? Qual o âmbito de sua validade? Assim que nos adentramos no exame da termi59
nologia crítica corrente, descortinam-se abismos problemáticos. Interro-
ou emigra de qualquer mundo fechado e determinado, odeia a história e a
gações antiqüíssimas e recorrentes ameaçam paralisar o discurso. Evitarei
geografia. Mais que os romancistas, os poetas modernos passaram a fazer
essesriscos adorando o procedimento habitual: remetendo o tratamento
parte daquelas elites intelectuais de vanguarda que encontraram no esno.
das questões teóricas a outras ocasiõesou contextos.
bismo antiprovinciano dos provincianos o seu alimento fundamental.
No confronto entre cosmopolitismo e provincianismo ou, mais pre-
No momento em que descobre a si mesma, a poesia moderna quer
cisamente, na discussão sobre o sentido desses dois termos e sobre seu uso
ser universal, absolutamente anual e moderna, cosmopolita, abstrata, anti
extorsivo e cego, pode-se começar com uma observação. A poesia e a lite-
histórica (em seu historicismo extremado) e até antigeográfica (u-tópica)
ratura modernas foram escritas por "provincianos"
por
Mas o que signiâca essafuga da província e, diga-se, de todo lugar determi-
autores deram;rzáe autores que quase nunca saíram de suas províncias ou
nado que não seja, eventualmente, Metrópole ou Cosmópole? Há mais de
;pequenaspátrias". Poderia até arriscar um paradoxo (se não temesseincor-
um século, a poesia moderna tenta ser ou se crê epoca] e planetária. Gênero
rer no pecado da deânição insuâciente) dizendo que a poesia moderna é
literário niilista e sintético, âlosofante e descontínuo,para ela a totalidade
moderna na medida em que é cosmopolita, mas é poesia na medida em que
do mundo parece ser demasiado pequena, demasiado estreita e limitada.
é provinciana. De qualquer modo, a crítica viu mais claramente os defeitos
Essatendência da lírica não deixará de ter conseqüênciasno caráter de
do provincianismo do que os igualmente vistosos do cosmopolitismo. Deixando quasesempre de sublinhar o infeliz provincianismo dos cosmopoli-
to, também no romance, que em vários casos,sobretudo nos romances de
e "cosmopolitas",
tas mais enfatuados e convictos.
muita literatura moderna, na própria /de'/ade literatura moderna (portan'vanguarda", terminaram por seassemelharmuito à lírica). A poesialírica
Agora que a luta entre cosmopolitismo e provincianismo terminou
é, pode-se bem dizer, o gênero-guia do radicalismo e do utopismo literário
há um bom tempo e que todo o planeta se transformou numa maledicente
moderno. Paras e ilhas exóticas em Baudelaire: uma cisão incorrigível en-
província cosmopolita, registrada ao vivo pelos melhoras,agora que a velha
tre realidades realíssimase paraísos entrevistos, perdidos ou artificiais. Mas:
Linguagem Mundial da poesiamoderna engoliu a si mesmaproduzindo o
logo em seguida, eis as temporadas no inferno, os barcos bêbados, as tardes
Jargão da modernidade
de um fauno, os cemitérios marinhos, as terras desoladas, as zonas de Paria, cidade agora tornada surreal. Onde estamos?E quando?
uma linguagem .ZKrógena,com a qual se consegue
dizer bem pouco --, agora talvez se)apossível reconsiderar alguns aspectos de uma controvérsia que, no futuro, só será tratada pelos livros didáticos.
A linguagem da lírica moderna tal como nos é descrita por Hugo Friedrich é a negação atavae dinâmica de qualquer determinação de tempo e
O mundo da província, que logo setorna importante e decisivo na consti-
lugar. Friedrich pode ter feito uma descrição esquemática e facciosa, mas
tuição do gênero narrativo moderno por excelência,o romance, pareceao contrário quaseinsigniâcante no âmbito da poesia. No gênero lírico que
identifica com clareza a complementaridade entre impulsos centrífugos e
prevaleceu na Europa
leceu-se entre linguagens artísticas "informais"
no coração da Europa
desde a metade do século
formalização abstrata (uma complementaridade que, mais tarde, estabee crítica formalista, entre
xix, o o/zdee o gaando não são muito relevantes. Mundo poético se trans-
neovanguardae estruturalismo).Neste ponto, a lírica faz exatamenteo
forma quaseem sinónimo de mundo sonhado,construído pela imaginação, indeterminado, anti-real.
oposto daquilo
No entanto toda a lírica moderna, com o seu variado e rumoroso
que o romance
sabe e quer fazer:
focalizar
um cronózopo,
reconstruir uma trama circunstancial e espaço-temporal da experiência. A lírica toma posse de seu tempo-espaço por decomposição, esva
acompanhamento de teorias sobre o próprio ser e dever-ser, não faz senão
fiando-o, fazendo flutuar objetos, pensamentose figuras em caprichosa
evocar a província ao rel'ó. Tenta escapara ela com todas as forças- Evade
mistura. Flaubert e Baudelaire, que na França dão início à atormentada
6o Cosmopolitismo eprovincianismo na poesia moderrLa
6i
auto-reflexão da poesia e do romance modernos, são nesseaspecto anti-
Assim como o capitalismo, que é filho da organização e da exploração
téticos. Em Flaubert, o romanescoe'a vida de província (Madame .BovaW,
de um espaçodesmesurado,tambéma poesiamoderna é filha de um im
ou seja, realidade real e sonho sonhado, coexistência trágica de mentira e
pério cultural de conâns ilimitados. Suasofuscantesriquezasderivam do
verdade). Em Baudelaire, a metrópole devora tudo: agua/elugar é também
saque das mais longínquas e inacessíveis civilizações, da exploração livre e
muitos lugares, todos os lugares, a sínteseda época. Tem início o assédio
intensiva de minas situadas nas regiões mais acidentadas e remotas: entra
e o demonismo do não-lugar, o ódio ao domicílio. A realidade parisiense
tos originários e arquetípicos da cultura ocidental, médio-oriental e asiática
é uma alegoria do mundo moral, do céu e do inferno. O alhures é tão desejável quanto impossível. Pode ser concebido, enâm, apenas como um
Essestesouros, então, convergem para o centro e são submetidos a um pro cessoprodutivo artístico excepcionalmente eficiente e concentrado.
out of the wortd.
Enquanto existe ao redor da província um mundo coeso e visível
Em termos gerais, o pressuposto da assim chamada lírica moderna posterior
(uma extensão social da família), na metrópole o eu imerge numa solidão
a Baudelaire é a desagregação da noção de indivíduo
multitudinária, tende a desatar-sede qualquer laço. Jóso/üzm e indeâni-
categoria de experiência. A linguagem lírica perde seu antropomorfismo.
damente disponível, o eu é queimado pelo vazio infernal e embalador das
No modelo primeiramente simbolista e, depois, expressionista e surrealista,
e a indeterminação
da
ruas. Encontra a si mesmo, remorsos e nostalgias. Tanto o dando quanto o
a poesia aspira a uma nova objetividade, infra-individual
.#anézzr são tipos absolutamente metropolitanos e antiprovincianos.
As fronteiras do eu são ultrapassadasou entram "em fusão" (como todas as
Para a poesia, a modernidade nasceem Pauis,na Parasde Baudelaire, a capital do século xix estudada por Walter Benjamin. Desde então, a
ou transcendental.
categorias da experiência comum, comunicável e compartilhada: a começar pelas "idéias" e pelos "sentimentos",
com os quais, como se sabe, não
modernidade poética mediu-se a partir de Baudelaire: ou melhor, pelo
se faz mais poesia...).
modelo Baudelaire, por sua poética, suasidéias transformadas em catecis
ocorre, por assim dizer, tanto em direção ao baixo quanto em direção ao
mo estético e pmie'7'zrzoar e, talvez mais coerentemente ainda, por seus
alto, rumo ao magma psíquico (técnicas de livre associaçãoinconsciente)
continuadores Rimbaud e Mallarmé, que radicalizam e especializam o que
e a alegorias e arquétipos (técnicas abstratizantes, citações de iconografias
em Baudelaire era misturado, híbrido e bifronte. Já no século xx, o centro
tradicionais, recuperações do mito). Em ambos os casos,o eu lírico já não
irradiador da poesia moderna está em um ponto indefinível e paradoxal,
coincide com o eu empírico, tende a descolar-se deste, a cancelar mágica
localizável entre Breton e T.S. Eliot, americano europeizado. (E não será
ou asceticamente todos os seus traços. No século xx, Valéry, Eliot e Benn
por mero acasoque, nos últimos vinte a trinta anos,o principal autor do es-
(mas também, em outro plano, Breton e os líricos espanhóis da Geração
nobismo cosmopolita tenha sido, graças à mediação parisiense, largamente
de z7) oferecem a teorização mais conseqüente desseimpulso de nega-
decisiva, o argentino Jorge Luas Borges: americano do país mais europeu
ção de qualquer vínculo entre experiência individual
do sul, melancólico apátrida cultural, o homem feito de livros e de citações,
(segundo Eliot, o poeta é apenas um med! lzm, um catalisador lingüístico de
que não precisa olhar ao redor para saber e ver tudo. Seu olho mental está
experiências difusas, passíveis de receber uma forma).
apontado para o Aleph, a manada fantasmagórica em que milagrosamente
pontos de vista do universo". No prólogo à sua-4nroZagía resida/, Borges
É claro que essateoria da praxis poética moderna (sempremais convalidada e dominante internacionalmente) não pode senãorelegar ao provincianismo e ao localismo, ao híbrido biográfico-realista e ao sentimenta-
reconhece que o que mais poderia perturba-lo e envergonha-lo seria a pre-
lismo da confissão toda uma série de autores e de obras. Z'e/zgagemenrsocial
sença, em sua obra, da "cor local".)
e político dos anos iPSoinfligiu um golpe violento nessacultura, tentando
está contido todo o espaço cósmico e onde cada coisa é visível "de todos os
6z
Cosmopolitismo e provincianismo na poesia moderna
Esse transbordamento
para uma
objetividade
azzrre
e linguagem poética
63
uma espécie de inversão dos valores e das tendências: Machado e Hernán-
travam com muito esforço no modelo de modernidade representado pelo
dez, por exemplo, prevaleceram então sobre Jiménez ou Guillén. William
desenvolvimento da sociedade burguesa na Inglaterra e na França. Final-
Clarlos Williams tendeu a suplantar Pound. Brecht contra Benn etc. Mas o
mente, após a descoberta de que a ideologia nacionalista não era um bom
prestígio estritamente literário da poesia e de toda a literatura dos anos i93o
remédio contra os efeitos culturais de um desenvolvimento lento e de uma
foi escasso.De resto, Brecht, Maiakóvski e Breton são escritores de van-
modernizaçãoimperfeita, as elites intelectuaisitalianas foram repetida-
guarda e de esquerda, enganadose cosmopolitas, comunistas e experimen-
mente acometidaspor ostentaçõescosmopolitas de novos ricos.
tais. Para complicar as coisas,nos anos i93o eram sobretudo o fascismo e o
De resto, nosso passado poético era inegavelmente pesado. Uma cul-
nazismo que exaltavam o sangue, o povo, a raça, a terra natal e os valores
tura poética que tenha alcançado sua máxima inventividade nas origens,
nacionais (pense-se em Martin Heidegger e em sua mística do vínculo in-
seis séculos antes, inevitavelmente irá se defrontar com problemas muito
cindível de língua-pátria-pensamento-ser).
particulares casotente modernizar-se procedendo por etapasforçadas.
A tradição literária italiana, tal como se configurava na crestomatia Provincianismo e província, pois, como razão de vergonha, inadequação histórica, isolamento das grandes correntes de troca, fracassoe penúria.
de Leopardo, tinha uma nitidez clássica, exemplar, anti-histórica. Era pre-
Nem tesouros nem capitais acumulados, mas baixos rendimentos, economias fechadas, de subsistência. E a modernidade cosmopolita como
si, um sistemafundado numa complementaridade muito leopardiana de idílio e filosofia, observaçãonaturalista e moralista, passagenslíricas e ca-
economia cultural de intensa troca internacional, adequação e promoção
cisamenteuma sinopse de modelos estilísticos válidos e admiráveis em
de todos os periféricos e provincianos a um padrão artístico avançado.
pítulos ensaísticos. Essaidéia de tradição literária italiana não prevalecerá nas décadas seguintes. Para Leopardo, o mundo histórico é em si mesmo
Tédio e repetição na província. Mobilidade e fantasmagoria na metrópole,
pouco crível. Trata-se mais de uma ilusão coletiva bem construída, sem-
onde a "esfera cultural"
pre a ponto de naufragar na visão de um mundo natural incomensuravelmente mais vasto.
e o ambiente artístico são habitados por milhares
de seguidores, numa vasta e matizada hierarquia de funções e de aspirações.
De um século para cá, essapolaridade ganhou cada vez mais força, ouse dando intelectuais e artistas.
A Itália foi certamente uma das vítimas privilegiadas de tal obsessão.
No intervalo de algumas décadas,de Leopardo a Carducci,' a tradição poética se torna completamente nacional dentro do espessoinvólucro da ideologia nacionalista. Assim, uma herança que não se sabe mais como usar
localismos municipais e de estados regionais teria ingressado com dificul-
se amontoa nu m sinistro museu de formas canónicas, disponíveis para exibições retóricas e sentimentais desmedidas (Carducci, Pascoli e D'Annunzio
dade e resistências de todo tipo no mundo da modernidade. A uniâcação
escreveram, sozinhos, mais poemas que os maiores poetas italianos dos sé-
nacional tardia não tinha sido acompanhada(como repetem os historiadores) de um desenvolvimento industrial e social adequado.A ideologia
culos precedentesreunidos). Não obstante a grande invençãohistoriográ-
Os pressupostospara que isso acontecessenão faltavam. Uma sociedade de
fica de De Sanctis, que amarra tradição literária e unidade moral da nação,
nacional se transmutava mais facilmente em exuberância oratória que em
a linguagem poética italiana se enchede formas mortas e semivivas, con-
mesquinhez utilitarista. Era o sucedâneode uma unidade de interesses so-
vocadas numa espécie de tediosa cerimónia de celebração do gênio itálico.
ciais não realizada. Desde que se tornou nação e deixou de ser um mosaico de Estados regionais, a Itália também se transformou cada vez mais numa
O código estilístico engorda e envelhece. O provincianismo literário nasce na Itália com a unificação nacional. Carducci, D'Annunzio e Pascoli são os
província, numa periferia da Europa. Seu desenvolvimento,a história de sua burguesia, o caráter de seusmaiores centros urbanos e culturais en-
r. Giacomo Leopardo(i798-i837) e Giosue Carducci(i835-igo7). [N.T.]
64
Cosmopolitismo e provincianismo na poesia moderna
65
sintomas dessadeformidade inconsciente, oratória, Hnebre e sensualista
e se afogaramcomo outros derrelitos comuns, foi construído um esplêndi-
que atinge por algumas décadasa linguagem da poesia italiana.
do e confortável hotel com vista para o mar.
Estamos cansados de saber, graças à difusa academização da vanguarda
bre Nietzsche é bastante solicitado. Quanto a Mallarmé, seus leitores efe-
ocorrida nos anos ig6o, que a cultura da modernidade representou a si mesma sobretudo como uma série de barreiras a superar, de vértices e
tivos são, naturalmente, tão raros que seria fácil conta-los nos dedos. Mas
linhas de chegada.Daí o culto do marginal e do periférico, daquilo que está apartado e pouco visível, das formas não imediatamente "vencedo-
do, de modo que nem ele pode lamentar-se quanto a cultores e bibliograâa.
ras", que não se impõem nem se difundem rapidamente, ter tido sem-
Mas o que busca, hoje, o público de literatura? As frustrações são cada
Baudelairenão mete medo em ninguém (nem Marx também). O po-
estudar e secionar suas poesiasé mais fácil do que lê-las, e até mais divertiMallarmé é o autor ideal para seminários especializados.
pre um sabor de má consciênciae de mentira necessária.Na teoria do
vez menos dramáticas, os pesadelos, cada vez mais brandos. Curáveis. Há
modernismo, na ideologia estética das novas vanguardas instaladas nas
a televisão. As grandes religiões, especializadasna produção de remorsos,
universidades, o caminho da modernidade seassemelhavaa uma marcha
sentimentos de culpa e sublimações, foram liquidadas. E a idéia de revolu-
triunfal. Sabemosbem que na história da cultura e das artes (se é que existe algo do gênero) não há nada de triunfal, e que a própria idéia de continuidade e de interconexão é uma noção comodamenteconstruída a
ção,que pretendia ser a sua herdeira rebelde, mas legítima, é uma idéia que
setornou atérisível. Produziu infinitos lutos e sacrifícios,antesde retornar como uma sombra no reino das sombras.
poi erzor;,do alto de um observatório histórico que permite ver ascoisas
Todavia, em qualquer estudioso que não tenha um relacionamento
em geral como se se observasseum mar tempestuosoa partir da terra
assépticocom a literatura moderna, o ensino e a divulgação de obras mo-
firme. Sabemosbem que Kafka, provavelmenteo autor essencialdo séculoxx, autor semo qual a literatura novecentistanão seria a mesma,
dernas deveriam criar algum mal-estar. Há mais de um século, talvez há
é um escritor póstumo, um caso exemplar de autocancelamento.E poderíamos nos divertir listando notícias e anedotas sobre os clássicos que
laçõeshorripilantes, auto-análisesimplacáveis e destrutivas. Não contêm
permaneceram quase ignorados por seus contemporâneos, sobre grandes
e sociedades bem organizadas. Sociedade industrial e Democracia, Estado
obras que não tiveram nenhum destino de grandeza enquanto os seus
social e Estado total raramente tiveram o apoio, a aprovação, a simpatia e
autores estavam vivos.
E no entanto, hoje, graças às descobertas e redescobertas editoriais,
dois séculos inteiros, nossas literaturas soam como atos de acusação,revemuitas instruções razoáveis e úteis para que se viva feliz em comunidades
o consenso do que tradicionalmente
se chamava de Belas Artes, as quais
setransformaram em artes infelizes, degeneradasou estéreis.Antes de en-
ao trabalho da crítica e à labuta de auto-interpretação retrospectiva levada
trar no triturador das vanguardas organizadas, dos manifestos técnicos e
a cabo por autores de muito prestígio, por grupos e escolas,temos diante de nós uma paisagem bem delineada. A modernidade é há tempos uma
da estética modernista, antes de se tornar, finalmente, pós-moderna, isto é, ornamental, comestível e insossa, a arte moderna foi intratável. Falou
idéia compacta e articulada, ilustrada em detalhe por centenas de livros e
nada menos que da possibilidade real do fim do mundo, ou da necessidade
milhares de verbetesbibliográâcos. A crítica literária ligada ao ensino e à pesquisauniversitária trabalhou bem. Terrenos pantanososforam benefi-
moral de que o curso do mundo se detivesse.Havia até uma especialScÀa-
ciados. Bosques foram atravessadospor avenidas panorâmicas. Pradarias
houvesse ambições, visões e promessas maiores do que hoje estamosdis-
acidentadas agora se apresentam como campos de terra batida, munidos de
postos a tolerar.
de/t#rezzde [alegria nociva] em seu modo de apresentar as coisas. E ta]vez
pracinhas, grades de proteção e banquinhos. Onde os poetas naufragaram 66
Cosmopolitismo eprovincianismo na poesü moderna
67
2
qualquer localismo variegado e de estreita província. É o fim da cultura aristocrática e da cultura camponesa. Somente com a modernidade burguês-ca-
Estamosainda e mais uma vez no ponto de partida, às voltas com a deâ-
pitalista a província setorna de fato província, isto é, estadopregresso,atraso,
nição daquela polaridade que alimentou por décadasa alternativa falsifi-
inadequaçãohistórica, periferia fora do tempo, cor local, preconceito. O Cosmo
cadora e forçada entre cosmopolitismo e provincianismo. A modernidade,
é destronado pela Metrópole, que se torna seu sucedâneo.
especialmente a modernidade poética, nasceu como negação da província,
A capital do século xix, que na obra de Baudelaire é um lugar bem
daquele universo orgânico, internamente estruturado, intensamentevisí-
determinado, uma cidade alegórica, mas também inteiramente realista, no
vel em cada uma de suas partes e fechado que é a província. Fechamento
século seguinte se tornará a "terra desolada" de Eliot. Nesseponto, um pro-
de onde se entrevê ou se sonha um espaçolivre e aberto. Província é antes
cessose completou, e Eliot, como se sabe, sempre tende a ver as coisas com
de tudo o limite, a fronteira além da qual deveria existir ou seimagina que existao Grande Mundo. (E, assimcomo ocorre em Hõlderlin e Leopardi,
grandiosidade -- até demais--, em termos de case da civilização racionalista e individualista e de retorno a uma reinventada Idade Média cristã. Como
dessemundo limitado, reconhecível, colorido e fechado também se pode ter a visão completa da Natureza, da santa e mítica Natureza, do Cosmo, do
verdadeiro americano, tentará reconstruir a cultura européia e ensina-la de novo aos europeus, elaborando a idéia de classicismo e a idéia de uma socie-
Infinito, além daquela sebe,dentro do fragmento de paisagemsobre o lago.)
dade cristã. E, nos Ç2zzane/oi,sairá em busca daqueles lugares fechados e não
A modernidade, no entanto, é laceração, subversão das unidades de me-
desolados, daqueles minúsculos mundos bem mais que periHricos, ignorados,
dida, do enorme ao minúsculo. É universalidade abstrata e ubiqüidade, mun-
sacramentais,mergulhados nos arquétipos da memória individual e coletiva,
do que ora existe, é sólido, e ora não existe mais, desmanchou no ar. A Paras
por meio dos quais tenta recuperar de novo, no aqui-e-agora da contempla-
de Baudelaire, Paris e Baudelaire se tornaram os paradigmas do moderno.
ção e da prece, os inefáveis momentos de onde ainda pode desencadear-sea
Devido à sua posição dentro da nação francesa e graças ao papel desempe-
eterna sapiência cíclica das grandes religiões e das culturas pré-industriais.
nhado pela França na Europa de Luís xiv a Napoleão, Parasé não só a capital
do séculoxix, como aparecenos estudosde Benjamin, mastambém o centro
A Paris metrópole e centro da modernidade (que certamente continua
cultural do Ocidente até a SegundaGuerra Mundial. Nessametrópole-capital
como tal pelo menos durante os anos i93o) torna-se, então, a Parasde Bre.
é possível estar modernamente só e ferido como nunca, possuídos por quime-
ton e dos surrealistas:
ras, perseguidos por pesadelos e espectros em pleno dia, nas ruas apinhadas e
nas intermináveis periferias. Aqui é possível vislumbrar com clareza o infer-
.4 Lu{ moderna do insólito
no. Mas a Natureza, o Cosmo e o Infinito, todas as entidades sobre as quais se
de galeria coberta, freqiLentes em Paria nos arredores dos grandes buLevctres,
fundava o universalismo pré-burguês e pré-moderno foram canceladas.
quese chamam lnquLetantemente de passagFS,como se nessescorredoressub-
O demoníacomoderno inaugura o reino das másinfinitudes, o triunfo
di{ Aragort
traídos ao dia não fosse permitido
reina bilarramente nessa espécies
a ninguém
pararpor
mais de um in.soante.
da desmedida que destrói os limites naturais de todas as coisas, o reino dos in-
Luminosidade glauca, gume abissal, que evoca o rate'po imsperado de uma
fernos e dos paraísos artificiais. A metrópole moderna promete e permite tudo,
perna queCL sitia descobre.
de tudo: uma variedade, novidade e mistura de experiências que devem ser ilimitadas por princípio. O universal moderno não é maisfundado na unidade
Nasce uma nova mitologia nas pegadas de Baudelaire. Mas a vitalidade
perceptível da natureza cósmica. É o universal das mercadorias e das trocas,
oculta e bizarra dessanova mitologia é um tanto sepulcral, habita objetos
da produtividade ininterrupta e da uniâcação dos mercados, da destruição de
e imagens misturáveis ad #ó/f zm, que têm, em sua casualidade, uma carga
6% Cosmopolitismo eprevi
ianismo na poesia moderna
69
de sugestão débil e eRmera. Como partes de um corpo fetichisticamente
de uma era gtaciat, a esquadra cosmopolita de artista
desmembrado, seu aspecto é cadavérico e reinado, de cadáveres reinados.
dáveis cafés de Montparnuse,
Nos anos lg20 e i93o) Parasé o lugar dos desenraizados em busca de inspiração e de aventuras, a capital da arte e da estética, da boêmia interna-
ateu }loru poí hora
se dissolveu e os in#n-
que aperta deR.anos antesjicavam lotctdos até
de bcLruLhentos Qaseuxs,se tran.sformaramem desola-
dos cemitérios, nos quais nem mesmo os fantasma
queriam estar.
cional. A descrição que George Orwell fez dela colhe muito bem (apesar do desprezo humorístico que o escritor inglês sempre reserva aos ambientes
Essamesma cidade, a Paras do surrealismo, dos artistas e, mais tarde, dos
intelectuais seletose de ponta) essascaracterísticasda metrópole cultural.
intelectuais de esquerda, vista por um autêntico e refratário provinciano da
Há uma superpopulação de gente de vanguarda como talvez nunca se tenha
periferia, sem pátria e sem casa,como o peruano César Vallejo, não aparece
visto em nenhum lugar antes (apenas superado, em seguida, pelas grandes
sequer como estimulante e vertiginoso cemitério de sofisticações estéticas:
aglomerações políticas, poéticas e musicais dos anos ig6o e i97o). Aqui se
é só um lugar onde morrer na mais desconfortável penúria e solidão.
diria que a perda de relaçãocom a realidadepor parte da "massados ar. listas" deveu-se à formação de um ambiente especificamenteartístico, mas
Me moriré erl Paras coreaguacero,
também muito extenso. Já é chegado o momento em que os movimentos
un día del cuctl tendoya el recuerdo.
artístico-literários quase não se distinguem de seu público, e, entre:grupos
Me moriré erl Paras yrto me coiro
artísticos extensos e público restrito, de quase artistas ou pré-artistas, esta-
tal ve{ tlnjueves, comoeshoy, de otoão.
beleceu-se uma simbiose especial. Esses inumeráveis cosmopolitas e van guardistas da arte não seriam, talvez, provincianos patéticos à procura de
Jue'pes seta, porque hoy, ]ue'pes, que prosa
emoções fictícias e de uma existência "estetizada" de primeira qualidade?
estas versos, tos inúmeros me he presto
Orwell escreve:
a lçt malcl y, ]amás como hoy, me he vuetto, con todo mi canino, a verme saio.
Durante os anos do book económico, quando os dólares eram abundantes e o
câmbiocomoParco era vantqoso,Parisjoi invalida por um [at erLxamede
César HaLLejoha muerto, [e pegaban
artistas, escritores, estudantes, ditetantes, turbtm, debochcdose desocupados
todos sin que él Lestraga n(dct;
;omo provavelmente
Ledabctn duro con un paio yduro
o mundo )amais
vira. Em algum
bairros da cidade, os
usam chamados artista devem ter superado em tal medida os residentes, que se calculou que, n.ojinat dos anos tgza, houvesse em Paras algo em torno de
también con una soba; son testigos
3a milpintores, muitos dos quais impostores. Assim, CL população se habituctrcl
los dí
aos artista
a talponto que m [ésbicu de vol. rouca e calça à suava e os rapalo-
]ueves elos huesos inúmeros,
La soLedad, la lluviçl, Loscaminos.. l
Lu em TOUpcl grega ou medieval podiam pmsearpelas ruu sem atrair nenhum olhar. Às margem do Senha, perto de Nutre-Dome, era cume impossívelabTir !spaço em Halo a a t
cancaturm.
Era a época dos sucessosrepentinos e dos génios in.compreendidos. 4 fr''e
que pe'-dia dos lábios de todos eram" Quandje serei Lama". }'''isto que
isso não se con#rmou e que ninguémfoi "lançado", a queda msumiu o mpecto
7o Cosmopolitismo eprovincianismo na poesia moderna
z. "Morrerei em Pauiscom aguaceiros/ num dia de que já tenho a lembrança./ Morrerei em Pauis daqui não saio/ numa quinta-feira, como hoje, de outono.// Quinta-feira será,pois hoje, quinta-feira,/ em que estesversos prosa, dei os úmeros/ à pouca sorte, e nunca como hoje/ voltei, com todo o meu caminho, a ver-me só.// Morreu CésarVallejo, espancavam-no/ todos sem que lhes fizesse nada;/ davam-lhe forte com um pau e forte// com uma corda também; são testemunhos/ as quintas-feiras e os ossos úmeros,/ a solidão, > 71
Aqui, Paras não é um centro vital de cultura, mas sim uma periferia deso-
L'ho accompagnato
lada e fúnebre para imigrantes miseráveis, intelectuais ou quase, que mor-
imieme alta p"'lrona dela'alberga
rem de inanição. Assim ela também parecera a Ungaretti no famoso poema
dote abitavamo
In memoria'
a Parigi aLnumero 5 delta
Si chiCHa va
e des Carnes
appassitovicoto in discesa
Mlaammed Sceab RipOSCL
Descendente
nelcamposartto d'lvTy
di emiti di nomadi
sobborgo che pare
suicüa
sempre
perché non aviva piü
in ünagtornata
Pátria decomposta fera
Ámà !a bramia e mu.tõ n,ome
Eforse io solo se âncora
Fu MaTcet
che vissem
ma non era Francesa z non sctpeva plu vivera
ne!!a tenda dei suei deve si
corta !a cantilena
del Catana g«.ta«do un ca:P
Parecede fato que aquela cidade, para a qual todos acorriam, tinha sido por
muito tempo um espaçoprivilegiado, o suporte urbano imprescindível da estética moderna. É ali que a estética dos efeitos de choque se transforma bem
depressa,mais rapidamente que em outros lugares, numa atmosfera difusa, a atmosfera das ruas e dos cafés. E é certamente em um local como esseque a artc moderna, por excessode reconhecimentos, bem acolhida e familiar a si mesma,
E noa sapeva
não podia senãose tornar cada vez menos compromissada.
sciogLiere it canto
detsua abbandono
3. "Chamava-se/ Moammed Sceab// Descendente/ de emires de nâmades/ suicida/ porque não tinha mais/ Pátria//
Amou a França/ e mudou de nome//
Foi Marcel/ mas não era
francês/ e não sabiamais viver/ na tenda dos seus/ onde se escutaa cantilena/ do Carão/ tomando um café// E não sabia/ desatar/ o canto/ de seu abandono// Eu o acompanhei/ junto com a dona do albergue/ onde morávamos/ em Paras/ no número 5da rue desCarmes/ >
os caminhos, a chuva.
Trad. José Bento, in .4rzfoZoyía Poénca de CZ=armando. Lisboa: Relógio D'Água, i99z IN.T.l
?z Cosmopolitismo e provinciattbmo na poesia moderna
uma viela murcha em declive// Repousa/ no cemitério de lvry/ subúrbio que lembra/ sempre/ o dia/ de uma/ feira desmanchada// E talvez apenaseu/ sei ainda/ que existiu". Trad Alberto
Martins,
in /bZ%a de .ç..f)azzZa,20 abril 2003, Cbc/ermo.44aÜ./.[N.T.]
73
Para resgatar uma arte moderna tornada tão óbvia e tão pouco en-
O cosmopolitismo poético moderno funda-se exatamentena constituição
ganada,será preciso inventar o engajamento político da arte e dos artistas. Estamos ainda nos anos i93o, Rive Gauche. Trata-se de uma corrente que
de um depósito de formas que, num primeiro momento, são estilizadase abstratizadasde modo ascéticoe, depois, formalisticamente permutáveis.
atinge a maior parte dos países europeus com a política das Frentes popu-
De fato, toda eficácia produtiva específica necessitade seu ascetismo espe-
lares e do antifascismo. Mas em i935 o centro está, mais uma vez, em Paras,
cífico. A eâciência produtiva das vanguardas tinha necessidade de que o
com o Primeiro CongressoInternacional de Escritores antifascistaspela defesada cultura, no Palaisde la Mutualité. Agora quaseninguém acredita,
ascetismosolitário e sem ressonânciade alguns artistas modernos desse
nem mesmo Breton, que a arte mais ousada, provocadora e inventiva possa
gandeados. Um certo grau de enraizamento em um determinado terreno,
de per se tcr uma eficáciaprática antiburguesae anticapitalista. A aproxi-
em um onde preciso, continuava sendo intrinsecamente necessário, mesmo
mação dos surrealistas aos comunistas remontava à metade dos anos lg20,
para as obras mais audaciosasda arte moderna. No entanto, foi no cosmo-
quando o fulcro da mobilização política dos escritores se concentrava na tríade Gide, Malraux e Ehrenburg. Dos escritores que se empenhavam em
politismo dos estejas,na veleidade doutrinária e tecnicista das vanguardas,
revolucionar a linguagem, imaginando abalar os fundamentos conservado-
Para citar dois exemplos eminentes, foram autores sempre em pose e
resdo mundo por meio da linguagem, sobrarambem poucos. De resto, as vanguardas organizadas já haviam cumprido, como se diz,
antes os seus frutos. Esses frutos serão em seguida anatomizados e propa-
que a arte moderna deu o pior de si.
de ampla ressonância,como Gabriele D'Annunzio e Ezra Pound, as vítimasmais notórias do cosmopolitismo estético dos provincianos. Sacerdo-
a suatarefa histórica. Aplicando à arte os métodos da propagandapolítica,
tes da arte desprovidos de terra sob os pés, partem de suas províncias e vão
futuristas e surrealistas haviam sem querer transformado os riscos reais da
conquistar o mundo, todo o mundo, como matéria de arte, museu. Vivem
arte moderna (arte a-social e solitária) em riscos exibicionistas e simulados.
de/zero da arfa, dentro de suasidéias paranóicas de arte, eles que foram pro-
Após a propaganda técnica e ideológica dos movimentos de vanguarda, se
vavelmente os dois maiores produtores de A;rscÃpoético, sempre em meio
produzirá cada vez mais uma arte programaticamentemoderna: a "escri-
a magníficas cenografias, preparadas por eles mesmos, para o recital dos
ta automática" surrealista e a livre parolagem dos futuristas eram técnicas
tormentos e dos êxtasesdo poeta, precioso e indefeso ourives da linguagem.
muito promissoras do ponto de vista da criatividade e produtividade artís-
São exemplos extremos e quase caricaturais de como é possível viver em
tica "intencional'
nenhumlugar real, masna própria Arte.
Entretanto essetipo de arte não tem mais nada a ver com a chamada arte tradicional ou mesmo oitocentista: já não é nem um divertimento con-
dispensadaspela crítica acadêmica posterior (aos olhos da qual todo autor
fortável do espírito, nem procura da verdade, nem drama individualista ou
que, por alguma razão, se torne "importante"
representação séria da vida cotidiana.
cedor de respeito e de releituras aprofundadas), considero interessantes os
A propósito, muito mais que as equilibradas avaliações que lhes foram parece imediatamente mere-
julgamentos de contemporâneos como Thomas Mann (sobre D'Annunzio) O desenraizamento da arte, sua abstratização por meio de procedimen-
e Edmund
Wilson
(sobre Pound):
tos "despoticamente" formalistas e absolutizantes,que aniquilam toda possibilidade de determinação espaço-temporal,é obra sobretudo de
Serápossível queum retórico e um demagogodessequilate nunccldiquesó e
poetas como Rimbaud e Mallarmé e de pintores como Cézanne. O anti-
esteja sempre assim, exibindo-se na "ribalta"? Não conheceCL solidão, ]amab
naturalismo e o antiimpressionismo levaram pouco a pouco à solidificação
tem dúvida sobresi mesmo,ignora a preocupaçãoe o tormento da alma e
do objeto artístico como realidade em si, que não remete a nada exterior.
de sua obra, desconhecea ironia em reLaÇãoà gLÓricl,a vergonha diante da
74
Cosmopoíitisma e provittcianismo
na poesia moderna
75
ávHo de embriaguelfoi, pelo menospor um bom tempo, levado a sério! \.. À
para a Europa e, em Paris, quer se instalar a todo custo no centro e no vértice da tradição cultural. O efeito, o resultado final, é que, para escár-
I'atvel. uma atitude tão pmsivct sófosse possível em um país que permaneceu
nio de suasintenções, a obra poundiana conclui-se precisamente com uma
cria/zfa[...].
ausênciade centro, de um princípio de coesão e de uma unidade interna
veneração". E imaginar que em sua pátria esseartista bufão, essepretensioso
-Levaram
a iéna
amó;c;oso mes re de org;
D :'4nnzznÍ;a,
o m'zcaga;rzÀo
de magner
agzzeZe
eróaú [...].
de medida capazes de organizar e manter unida a poeira das emoções (na
maior parte âctícias, de segunda mão), dos projetos, das citações. Pound O $'acuso de Pound como poeta é um curioso fenómeno literário. O ideal
é um casoliterário típico, um autor que exerceu uma vasta influência, afe-
:stético de Erra Pound é provavelmente um dos mai.s altos na poesia contem-
tando meio mundo.
porânea de línguct inglesa. Indiferente à aprovação do público, trabalhou de
Outro grandemodelo e motor do cosmopolitismoestéticoé André
modo consciencioso e incamál,elpara redu#r a vaga substânch dm Fatal,ras
Breton. Entre Pound e Breton as afinidadesnão são poucas:em primeiro
a zzmnú;do e zlzcíç;voraiz'2uode óe/e a[.-].
lugar, a veemência inovadora e pedagógica que anima essesdois legisladores
Eà
e ex em zzmoü doú ver-
sos, Pound comeguiu cristalizar essabetela \..l\ mas o problema é que todos
obcecadospela arte moderna. Como autores, não têm muito a dizer; mas
os versosde Pound são versos isotctdos.Sem roem" jamab comegtcem estar
sempretêm algo a dizer, demonstrar e explicar aos outros sobre como se de-
juntos \..l\. O todoÍalpemar
num amontoado de$'agmerttos de uma.colação
veria escrever, como se alcança o absoluto da forma e o absoluto da liberdade
ie obietos de arte: aqui o pé de um ídolo chinês de jade, ati ü mào de uma
psíquica. Sãodois teóricos, artífices e magos da genialidade e da criatividade
estatueta de Tanagra, acolá a iniciatverde, ouro e alulde um livro medieval
moderna. Abriram caminho para todo poeta antiprovinciano que quisesse
e uma pálida ametista gumeperfeita, com um .4polo renmcentista gravado
falar semprede tudo e de nada, exibindo um estilo cosmopolita que soa mais
em sua superfície \..l\. Porque, malgrado todo o aparato culturale os arespon-
ou menos do mesmomodo em qualquer lugar: um estilo que superao eu,
ti$cios que intimidaram os intelectuais americanos mais ingénuos, no fardo
que cancela ou amplifica a sua voz, liberando-a de entonações característi-
Eira Pound é uma espéciede criança crescida,de provinciano incurável \.. À.
cas,de qualquer tradição específicaou relação entre língua falada e língua
Seus primeiros poema eram cheios de emoçõessimpte8 e generosas, mm já
poética. Ensinaram, com gestos de modernos titãs, como se podem explorar
pareciam contamincdospela obsessãoque o perseguiu durante toda a vidas
incessantementetodos os recursos acumulados e disponíveis do Inconsciente
b. À a necessidadede demostrar na praça da cidadeltnha natal que comeguiu
e da Tradição, poços sem fundo onde se está em casa, esquecendo-se de si
arTanCã-la de dentro de si. "Olhem parti mim!",
dil aos seus concidadãos
lue $caram na pátria. " Olhem como me tornei culto e cosmopolita desde que
mesmos,do onde e do assim como, da experiência e da voz indispensáveisa toda poesia que não expresseapenasuma idéia de si mesma.
dehei a .4mérica; vejam quanto sou diferente de vocês! \.. À Sei ter uma meia \- 4Lanço esta hipótese só
Como exemplo de um ponto de vista oposto, cito algumas das declaraçõesmais
para tentar explicar u de$ciênciasde Erra PourLdem matéria de experiência e
contracorrentes e certamente mais embaraçosaspara os adoradores e ideólogos
clesentimentos. .4s sum relaçõesparecem \- À limitar-se ao ambiente Literário.
da modernidade cosmopolita e de vanguarda. Palavras realmente escandalosas
daria de [íngu
! Sou amigo de Francês Picaria!"
para um poeta moderno. É o espanhol Antonio Machado que fda:
Nessas observações (sobretudo nas de Wilson) estão os elementos mais úteis para uma crítica do cosmopolitismo estético e do assim chamado anti-
\..4 sou pouco temível à perfeição da forma, à betela e elegância da Lingua-
provincianismo difuso na poesia moderna. De fato o fenómeno não diz
gem, a tudo o que, em literatura, não vale pelo seu conteúdo..Aquilo que ébem
respeito apenasao cosmopolita provinciano Pound, que da América vai
dito só me seduz quando di{ algo interessante, e a palavra escrita me cama
76 Cosmopolitismo eprovincianismo na poesia moderna
77
quando não me recarga a espontarteidcde
da patavTa falada.
Amo a ncLtureTa,
uma hipótese) quando perde muito de vista a gente de Dublin e se trans-
e a arte só me çtgrctda quando CLrepíesentcl au evoca, e nem sempre encontrei CL
forma em um "artista puro", em um arrogante experimentador de técnicas
beleza aLI onde eLaé Literalmente confeccian(da.
lingüísticas e estruturais. Em Proust, a matéria narrativa não tem nenhuma
Sou um homemextraorditfriamente sensívelao lugar em quevivo. .4 geogra$ct, as tradições, os costumes du poputctçõesem meio às quais eu vivo me impressioncLm profundamente e deüçtm uma marccl no meu espírito [-.]
abstraçãointercambiável, suaspercepçõesnão flutuam sem gravidade, e tudo o que se passana consciência e impregna paulatinamente os estratos superficiaise profundos não vagueia numa terra de ninguém, onde o
merá8orm não sâo /fada em i/ meia«s. ]U2o fém parra aZorsenão
sujeito teria entrado em fusão ou se tornado transcendental e vazio como
como meio de expressãoindireta \.. À. Se entre ofatar e o sentir houvesseuma
uma categoria kantiana. Admito que definir como "província" o mundo da
perfeita comemurabitHade, o mo du metáforasseria não apenw supéi$uo,
J?ecÃercÃe poderia parecer uma provocação gratuita. Mas, se aquele mundo
mm também prejudicial à expressão. \.. À Somente um espírito trivial,
uma
não era o da província, o fato é que Proust em seu livro o transforma em
inteligência [imitcLda ao raio da serração, pode se divertir ofucando conceitos
algo bastante parecido, refaz da Cidade uma Corte, transforma a metrópole
com met(iforas, criando obscuridade com a supressãodos nexos lógicos, per-
num m;/zezz, torna-a um lugar em que já não vigora o anonimato da mul-
turbando o pen.samerttocomum Q$m de mudar os invólucros sem melhorar o
tidão e a permutabilidade abstrata de objetos e símbolos. Em Proust, cada
seu conteúdo. Silenciar o nome direto d© coisa, quando m coisa têm.nomes
elemento de experiência e cada marca social estão imersos em seu líquido amniótico. Talvez nem mesmo em Balzac se encontre uma descrição tão
diretos= que tolice!
cabal da organicidade de um ambiente. Aqui tudo se fixa. Não há saltos, No anal das contas, as palavras de Antonio Machado não são extravagân-
misturas aleatórias, choques repentinos. Como bom romancista-ensaísta,
ciasde um simplismo provocador. O enraizamento em um onde e até numa
Proust torna concreto e narrativamente circunstancial até o simbolismo e
província" qualquer, mais ou menos localizável, lamentada, revista em
o estetismofim-de-século.Reconstróicom paciênciainfinita e antimoder-
sonho, continua sendodecisivo também para a literatura moderna consi-
na o sistema de relações capilares da experiência. É forçado pelos tempos
derada menos provinciana. Os autores que, por generalização da crítica,
(tempos da perda da experiência e da memória) a uma minúcia que nenhum
forneceram alguns traços típicos da modernidade escreveram numa lin-
romancista do século xix havia praticado. Antes de arruinar-se, de saltar
guagem carregada de conotações e determinações "locais". Kierkegaard e
pelos ares e se tornar o mercado das pulgas e o altar da arte moderna, Paria
Kafka, Proust e Céline, Svevo ou Dylan Thomas, por exemplo. Além disso,
comparece em Proust como um cosmo, um mundo limitado e fechado em
os dois escritores norte-americanosmais fiéis às suasprovíncias, os mais
si mesmo, uma metrópole que deve ser lida como província para poder ser
circunstanciais, aqueles que mais contribuíram para a construção da identi-
objeto de uma experiência narrativa total.
dadeliterária norte-americanado séculoxx Carlos Williams
William Faulkner e William
são mais universais e, enfim, mais genuinamente ameri-
canosdo quetodososPound
e Stein.
Podemos chamar Kierkegaard e Kafka de cidadãos do mundo? O que seria a obra de Kierkegaard sem a luta obsessiva contra os párocos, prela-
Em Céline, Paris é uma periferia cheia de cicatrizes, uma mistura fervilhante de estratos proletários e ínâmo-burgueses (alguém já disse que a condição de mesquinhez, de aviltamento e de desespero em que o estrato mais baixo da pequenaburguesia conseguiu viver não tem paralelo). Desseponto de observaçãoagressiva e niilisticamente populista,
dos e jornalistas de sua Copenhague? E Kafka, o prosador mais desprovido
a cultura parisiense das letras, das artes e da esquerda parece aos olhos
de matizes locais que jamais escreveu, seria volatilizado como puro espírito
celinianos de uma detestável artiâcialidade. de uma estreiteza ridícula.
sem as vielas e os muros de sua Praga. E talvez Joyce piore ou delire (é só
Para Céline, parisiense do óan/íeue,os verdadeiros provincianos são os
7S Cosmopaíitisma eprevittcünismo
na poesia moü
na
79
esnobesou rebeldes da arte, os eternos colegiais da bela escrita e do en-
comerciante de tabaco e quepassei a vida inteira atrás do balcão de uma
gajamento político que entram e saem da Guerra Civil Espanhola mais ou
Loja, eu mesmo acreditaria
menoscomo um turista entra e sai de um hotel (como selê nas .Bagare//e) É esseódio pelos cosmopolitas que o faz se tornar uma espéciede fascista
Seria este um modo de a província exercer a sua revanche sobre os abstra
e de anti-semita paranóico.
cionismos e a aridez niilista da modernidade?
Com tudo o que foi dito até aqui, ainda estou repetindo, por alusõese vias
esconsas,o que gostaria de poder demonstrar ou mostrar. Ou seja, que a modernidade de Metrópoles e Cosmópolesproduziu falsas duplicatas
3
da arte moderna autêntica, e que afinal o poeta lírico também deve ser e
'Prove. Ê mercoledi. Sono a Cesena" [Chove. É quarta-feira. Estou em
continuar de algum modo "provinciano", senão quiser transformar-sena
Cesena].Um verso como estede Marino Moretti poderia muito bem servir
contrafigura facilmente reproduzível e replicável de si mesmo (se não qui-
de epígrafe a uma pesquisa sobre a presença e a exclusão da província na
ser manifestar apenas o lado pior da situação provinciana, que é a eterna
poesia italiana do século xx.
aspiração a se tornar cidadão da capital, cidadão do mundo, que coleciona símbolos de status espiritual e social). Até mesmo os dois teóricos mais coerentes da pureza, do absoluto ou
do não-compromisso da poesia perante o mundo social e histórico
re-
firo-me a Paul Valéry e a Gottfried Benn (que não são de modo nenhum poetas semelhantes, exceto por algumas de suas idéias sobre a poesia) ,
Os autores mais freqüentemente citados quando se quer datar o início damodernidade poética na Itália são Guido Gozzano e Giuseppe Ungaretti. Ambos com histórias exemplares e opostas A Itália tinha suascapitais culturais e suas províncias, mas também era,
em seu conjunto, província de alguma capital externa. Nos poemas de Gozzano não há dúvida de que nos encontramos em
até mesmo essessacerdotes da poesia absoluta demonstram um apego todo
Turim; mais do que, nos poemas de D'Annunzio, podemos nos encontrar
especial, quase supersticioso, a seuslugares de origem. Não são grandes
em Pescara,Versilia, Romã ou em qualquer outro lugar. E é em Turim que
viajantes, ao contrário, se deslocam a contragosto. É a sofreguidão de via-
nos encontramos com Gozzano, muito mais do que na Romagna, em Barga
jantes mentais que os torna sedentários. Em Valéry o ser parmenidiano se
ou em Urbano com Pascoli. Sem Turim (por alguns anos capital de um
manifesta nas proximidades do cemitério marinho de sua pequena cidade
recente reino da Itália, mas também capital periürica em muitos sentidos)
natal, Sete.Em Benn, a pré-condição das intermitências líricas, da graça
a poesia de Gozzano não seria concebível, perderia a nitidez de seu perâl.
imprevista que golpeia e põe em movimento a linguagem, é a vida apartada
Turim é, em Gozzano, capital e província ao mesmo tempo. Vista do Cana-
em bairros anónimos de Berlim:
vese,' é uma metrópole cínica e árida. Mas, no poema homónimo, Turim é miniaturizada e pintada como um pequeno mundo provinciano, que suscita
Nm ocmiõesmundana, sucumbiaa um terrívelfardo cerebral,quenão
no escritor intensas descargasde claustroâlia:
era senão uma autêntica resistência às impressões.Preferia passar as noites seanho a acompanhado, misturando-se elos clientes habituais da
Quantovolte tra iliori, in terra Bale,
ferve/aria r;Í;n'6a [...]. "0 manda á di ;d;do em monde e demimon-
süt mare, tía il cordame dei veÍieTi,
à ", reaFímct no poema "Spãt", exúfênc;a
"e eu sempre estive neste Último".
era ão c;rz en a gue [...]
'3e a/gaénz me disieiie
8o Cosmopolitismo eprovincünbmo na poesia moderna
gue ja;
Sua üm
4. Região do interior do Piemonte. [N.T.]
8i
sagrava [e tue Revi, i tigti rteri,
e pisei
cara come !a dantesca
Ledritte vie cora chedi rotaie,
che m'ha reduto nmceTe,o Toãnols
L'arguta ETáRiadetLe tue crestaie o città favorevole aipiaceri!
Caso se queira afirmar que, na Itália, a poesia moderna nasce com Gozzano, a escolha de um início como essepoderá suscitar longas refle-
E quanta volte già, neLLemie notei
xões. Gozzano não foi nem jamais poderá ser interpretado como um
d'esitio, resupino a ciCLoaperto,
'poeta nacional da Unificação", um poeta provinciano de grande formato
sog7tavo sete [ortnesl, certo
que toda a Itália unida pudesse assumir, provinciana
ambientecaro a me, certasa otti
como pi[ar pedagógico-nacional. E]e não dispõe de um sistemacu]tura]
beoti miai, pettegoli, bigotti
ou de uma mitologia que seja ou possaparecer "universal". Se Ungaretti e Montale terminaram mais tarde por desempenhar essepapel, graças
come ai tempo det buon Re Carta Alberto.
e nacionalistamente,
àquele tanto de heróico e de emblemático que serpenteia na linguagem de ambos, Gozzano, ao contrário, permanece uma i/ZÃoüerreelegante e estridente. Fala rigorosamente de si, não universaliza as ocasiões de sua poesia, S'avaRIa un Barnabita,
lentamente. .
não transmite nenhum valor, nem sequer de modo alusivo. Para escapar
stringe La mano aLLa Confessa amiga
ao embaraço que seus "genitores"
literários
(pai D'Annunzio
e mãe Pas-
siede con gesta di chi benedica.. .
coli, como disse Sanguineti) Ihe deram com seusgestos, Gozzano se faz
Ed iLpoeta, tácito ed utente,
pequeno e entra com o máximo de honestidade em sua própria experiência.
si Bodequell'accotitcl di gente
E seuautobiografismo irónico que Ihe impede todo excessosentimental e
ch'à ta triste TNad'una stampclantica.
melodramático. Inventa uma linguagem poética coloquial, em que os dois
maiores clássicositalianos (pai Dante e mãe Petrarca: dessesgenitores, Non sofre. .4ma qual mondo seRIa raBElo di beLLella, ove cosa di trmtuLLo
à 1'.4rte. 4ma qual medi e qual Linguaggio
5. "Quantas vezes, em terras prazerosas/ ou no mar, entre as cordas dos veleiros,/ sonhava
com suasneves,castanheiros,/ ruas cheias de trilhos, de cartazes,/ e a graça astutadas cabe-
e quett'ambiente scon.soluto e brullo.
leireiras,/ ó cidadede cores e de cheirosa// E quantas vezes já, em minhas noites/ de exílio,
Non sobre. Pensa Giacomo farLciuLLo
com a face a céu aberto,/ sonhava as noites de Turim, um certo/ lugar que adoro, certos
e [a "siepe" e it "Ratio borga se]vaggio
camarotes/ bem tolos, futriqueiros e carolas/ como nos tempos do Rei Carlo Alberto.//[-.] Um Barnabita avança lentamente-./ cumprimenta, sóbrio, a Condessa amiga/ e se acomodacomo quem bendita-./ E o poeta, calado e quaseausente,/ degusta aquele círculo
[...]
de gente/ que tem um ranço de gravura antiga-.// Não sofre. Ama essemundo sem miragem/ de beleza, onde a Arte é intemperança/ e bricabraque. Ama o jeito e a linguagem/
Un po' vecchiotta, provinciaLe, fresca
do ambiente estéril, sem esperança./ Não sofre. Pensaem Giacomo criança/ e na "sebe" de seu "torrão
tuttavia d'un tal garfo parigino, in te ritrovo mestessobambino,
selvagem".//[-.]
Velhota e provinciana,
mas fresca/ e com o charme de Paras
enfim,/ aí me revejo menino a mim/ e em teus braços recobre a graça honesta;/ como se fossesa cara ama-seca/ que me viu nascer, te abraço, ó Turim!"]N.T.]
ritrovo la mia grada fanciuLLesca
82. Cosmopolitismo eprovincianismo lta poesia moder7}a
83
sim, não se pode ter vergonhas) possam ser citados numa situação comuni-
do intelectual que destruiu em si os valores da vida comum, convive com a
cativa real, ecos de um hábito escolástico e de um repertório consolidado
linguagem da criada, da modista, da menina ingênua, provinciana, carente de
por séculos de reutilização.
cultura e de estudos. Portanto não se trata de um estilo niilista, exasperado ou
A bem conhecida fórmula montaliana, que define Gozzano como "o
glacial, mas de um estilo da conciliação irónico-patética entre uma cultura que
primeiro a produzir faíscaspondo em choqueo áulico e o prosaico",não
seesvaziade sentido e uma vida cotidiana ainda pitoresca, oitocentista, a vida
signiâcaria muita coisa se só dissesserespeito à mecânica intrínseca de um
de um paísmeio decrépito e meio infanta, descridvel em pequenos quadrinhos
sistema formal. Em Gozzano, o encontro e o atrito de áulico e de prosaico
coloridos, apinhados de objetos familiares e relíquias mortas. O provincianis-
põem em cena a relação estridente entre a poesia e seu fundo real, entre
mo não é deixado de lado com o gesto leonino do anarquista(de provhcia) que
a personagem-poeta e as situações impoéticas em que se encontra. Essa
quer se sentir europeu e cidadão do mundo. A província e sua cor não são can-
cenografia é pressuposta e evocada continuamente. Os espaçosexternos e
celadasna poesia de Gozzano, mas preservadas, postas em relevo e vivificadas.
internos em que ressoa o solo do poeta são descritos em detalhe. As "boas
Uma dasmelhoresmaneirasde não sucumbir no cosmopolitismo exacerbadoe
coisas de péssimo gosto" são )ustamente os sinais da província como ma-
6olcloricamenteprovinciano dasvanguardas(Marinetti, Papini) era reconhecer
terial indispensável ao poeta. Gozzano adentra a tal ponto na exploração
e mostrar em termos de linguagem e estilo poético que a Itália, como n'zfãa,era
de objetos e marcas sociais, que o seu livro poético se transforma, eq suas
mais província do que jamais havia sido antes, e que a sua tradição, por outro
mãos, num verdadeiro romance: um romance urbano e provincial, mais
lado, ainda podia ser usada como língua "da tribo". Não para ser puriâcada,
próximo da narrativa realista-sentimental da segunda metade do século xix
mas posta em música.
do que das aventuras irrealistas e desagregadorasda nova lírica. Em escala reduzida, forçadamente reduzida, em autoparódia patética, Gozzano tam-
Ungaretti é quaseo exato oposto. (E aqui uso o nome dele, como de
bém encena a relação desiludida e destrutiva entre o sofisticado rapaz da ci-
resto o de tantos outros, com uma certa brutalidade exempliâcativa: nele se misturam tendências contrastantes ou complementares, Dano Cam-
dade e a simples garota de província (vêm em mentc os arquétipos /evgzzén; Oniêguin e Eugénie Grandetà.
Em Gozzano,é a situaçãoreal do poetalírico na condiçãode indivíduo, como tipo social e cultural, que setransforma em matéria lírica. Em vez de absolutizar-se ou agigantar-se numa abstração transcendental, o eu
pana e Filippo Marinetti, Renato Serra e Benito Mussolini, e os ingredientes do cosmopolitismo e do nacionalismo dos emigrados, Lucca, Alexandria, Paris.) Caso se atribua prioridade ao modelo cosmopolita (desenraizamen-
lírico se relativiza. E isso não ocorre com muita freqüência na poesiamo-
to, fragmentação, primitivismo, aspiração extrema ao essencial ao preço de
derna, haja vista o seu desprezo pelos nexos narrativos e por circunstâncias
reduzir catedrais,templos e palácios a pedacinhos minúsculos, migalhas
passíveis de descrição.
estéticas), então é com Ungaretti que a poesia moderna italiana principia.
Sendo o primeiro ou um dos primeiros poetas modernos na Itália(OU
Como escreveuLuciano Anceschi, a "poesia z/zproyreis"de Ungaretti "en-
talvez por ainda estar na soleira da modernidade e, portanto, ser em parte ex-
contra o seu Ãaó;fat natural, seu terreno nutriente, precisamente no cor&-
terno a ela graças à apropriação de uma ética ironicamente retrodatada, tardo-
ção do movimento literário". Todavia essepressuposto estético deve ser
oitocentista), Gozzano oferece a chave para entender a situação real em que se
associado à experiência da Primeira Guerra Mundial e à tabula rasa que
manifesta o advento da modernidade poética e cultural da Itália. A chave está
ela provocou com o horrível espetáculo, bem visível a milhões de pessoas,
na rima "camicie"/"Nietzsche"]camisas/Nietzsche],
do auto-aniquilamento da civilização européia. O primitivismo redutor de
que encontramos em
seupoemeto mais famoso,"La signorina Felicita". A linguagem do estudante, 84 Cosmopolitismo eprovincianismo na poesia moderna
Ungaretti nascedessapercepção do desmoronamento de toda uma tradição 85
cultural. Nasce da necessidadede uma volta às origens. Antes de lançar-se
to, técnica da palavra isolada e associaçãoanalógica que dissolve a poesia
à buscade um absoluto visionário, metafísico, o ato poético em Ungaretti é um nomear as coisas, e nomeá-las é fundar-lhes a existência. A história da
numa forma de poeticismo. Os lugares da memória biográfica flutuam e
civilização secontrai numa série de experiênciaspuntiformes, desconexas,
raízes, raízes cortadas e busca das raízes: primeiro, na fraternidade com
em epifaniasda força primordial de iluminação ontológica da língua. Para
o soldado camponêsna guerra; depois, na mais selecionadae sublimada
Ungaretti, a essência mais profunda da língua se manifesta na poesia como
tradição lírica. O provincianismo ideológico é bem mascarado pelos dotes
nomeação.O poetaé o Orfeu e o Adão da língua,o cantor mítico e o ho-
literários de Ungaretti(é impressionantea tralha oratória que atravancaas
mem que fala antes do pecado original.
redações não definitivas de seus poemas).
são arrastados como detritos pela correnteza, até desaparecerem.Falta de
Não se pode negar que Ungaretti, independentementede ser consi-
Ungaretti sonha com uma pátria arquetípica, um lugar da metafísica
derado um grande poeta ou não, teve responsabilidades históricas decisi-
literária. Uma pátria, elaboradade forma modernista,dos provincianos
vas na invenção da linguagem. Permitiu que o futurismo saísseda simples
desenraizadose dos emigrados culturais. A vanguarda da modernidade é
provocação e do estardalhaço mecânico, fazendo do gestual fragmentário e
constituída predominantemente por autores desse tipo. São eles que cria-
vanguardista uma técnica poética da silabação e da intensificação anta-sin-
ram aquela Aoüé, ou melhor, aquele esperandopoético que corresponde de
tática. De resto, ele inventou literalmente o hermetismo como petraTquismo e gongorismo liofilizados, reduzidos a emblemasheráldicos, concen-
modo tão preciso à descrição que Hugo Friedrich fará deles no livro Esrrü[zzr.z da /2Hcamover/za.Se existe, como acredito, um kitsch da modernidade
trados em potentes metabolismos hipermetafóricos. Salvar literariamente
(em poesia, nas artes visuais e até na âlosofia), uma linguagem facilmen-
Marinetti, verticalizandoe interiorizando o seuprocedimento,e traduzir em
te reproduzível graças à sua abstração, que deve sempre demonstrar uma
linguagem poética italiana as experiências francesasde ponta, de Mallarmé
terribilidade niilista ou uma Jocosidade liberatória superiores àquelas que
a Apollinaire, não foi pouca coisa. E é compreensível que, por isso mesmo,
cadaautor individualmente seria capazde realizar, a formulação dessekitsch
a obra de Ungaretti tenha sido supervalorizada por longo tempo. Ungaretti
deve quase tudo aos procedimentos de fragmentação, de fetichismo formal,
foi para a Itália o que Apollinaire e Pound foram para as suas respectivas
literaturas, e de fato a sua importância internacional não foi muito inferior à
de abstração estrutural, de assintaticismo, de colagem, de recusa à comunicaçãoe à referencialidade. Assim como outros estilos radicais, o radicalismo
deles (teve, por exemplo, tradutores de excepcional valor: em alemão, Paul
lírico moderno terminou por revelar uma disposiçãoà reprodutibilidade e à
Celan e Ingeborg Bachmann).
função decorativa particularmente pronunciada e surpreendente. Nas artes
De um poema como "ln memoria" a outro como "L'isola",ó entre os
visuais, esseprocesso é ainda mais evidente. A arte aplicada e o desenho
mais famosos do século, Ungaretti diz praticamente tudo em matéria de
desenraizamento,cosmopolitismo de país "atrasado", patriotismo abstra-
> luminosa;/
Le maná del pastore erano un vetro/ Levigato da boca febbre." in 17lenlzmenro
de/ e/npo[igz5], P?rad'Homo Zuffe /epoei;e.Melão:Mondadori, í97o, p. l i4. :A uma costa onde a tarde era perene/ De antigas e absortas selvas veio/ E se adentrou/
E
6. Cf. "ln memoria", nota 3, supra. "L'isola": "A una proda ove seráera perenne/ Di anzia-
um farfalhar de pena o atraiu/ Ao desatar-se da estrídula/ Pulsação das águas tórridas,/
ne selve assorte, scese,/ E s'inoltrà/
E uma imagem (murchava/ E reíioria) viu;/ Voltando para o alto viu/ Que era uma ninfa
E lo richiamà rumore di penne/ Ch'erasi sciolto dália
stridulo/ Batticuoredell'acquatórrida,/ E una larva(languiva/ E rifioriva) vide;/ Ritor-
e dormia/ Erguida, abraçadaa um olmo.// Em si, de simulacro a verá chama/ Errando,
nato a sabrevede/ Ch'era una ninfa e dormiva/ Ritta abbracciataa un olmo.// in sê da si-
deu num prado onde/ A sombra nos olhos das virgens/
mulacro a âamma verá/ Errando, giunse a un prato ove/ L'ombra negli occhi s'addensava/
de oliveiras;/ Destilavam os ramos/ Uma chuva tarda de dardos,/ Ovelhas cochilavam
Delle vergini come/ Será appiê degli ulivi;/ Distillavano i rama/ Una pioggia piora di dardo,/Qua pecore s'erano appisolate/ Sotto il liscio teporq/ Altre brucavano/ La corre
86 Cosmopolitkmo eprovincianismo na poesia moderna
>
Se adensava como/ Noite ao pé
espalhadas/ sob o tênue tepor,/ Outras mordiam/ A alfombra luminosa;/ De vidro temperado em febre fraca/ Eram asmãos do pastor." [N.T.] 87
industrial seriam impensáveis sem a contribuição da artc abstrata e informal, de Mondrian a Pollock.
sabem em que mundo vivem? São ultrapassados? Já o eram na época em
que escreviam? Ou, ao contrário, não foram justamente eles que, pelo menos na Espanhae na Itália, melhor souberam em que mundo viviam?
Por outro lado, alguns dos maiores poetas do século xx quase não tive-
Toda a poesia moderna deveria ser lida segundo os mesmos conceitos?
ram relações com a Ão;rzélírica moderna, suscitando reaçõesde esnobismo
A lírica moderna pode realmente ser descrita como um único Sistema
e rejeição nos ambientes ligados às vanguardas. Pareciam provincianos,
ou Estrutura dentro do qual as vozes singulares se perdem ou se tor-
moderados, humanistas, populistas e conteudistas atrasados no tempo. Poetas que, hoje, alguns consideram os maiores do século xx na Espanha e na
nam simples variantes? Certa vez, Theodor Adorno observou que, se é verdade que não se pode entender uma obra sem que se estude a sua
Itália, como Antonio Machadoe Umberto Saba.Tanto um quanto outro
técnica de composição, esta última é, por seu turno, incompreensível
parecem habitar ainda uma terra em que Metrópole e Cosmópole não deixaram sinais, não completaram as suas emocionantes e chocantesdevastações.
o entendimentoda obra. Porém, os críticos mais empenhadosem explicar e em valorizar a modernidade terminaram por reduzi-la primeira-
Mas certamente não podem ser incluídos entre os restauradores, porque não
mente a dimensõesestruturais confortáveis, para depois expurgar como
são particularmente atraídos pelo sentimento do passadoe da tradiçãoJ Não
supérfluos,atrasadose no fundo inexplicáveis autores não adaptáveis
se regozijam com arqueologias nem frequentam os museus da arte poética.
ao esquema. Há tempos não temos mais a necessidadede legitimar a
Se me fosse possível usar uma expressão sem ser imediatamente convo-
modernidadecontra o tradicionalismo. Há pelo menosduas décadas,o
cado a prestar contas sobre ela, diria que, neles, a tradição é umapreaenf'z
que se vê é que o conservadorismo
/zalura/,como uma língua de uso, uma língua materna. Sãopoetas natu-
dogma modernista.
sem
acadêmico tende a expressar-se como
ralmente não-modernos. Não olham muito para o futuro nem se colocam
o problema de como salvar, continuar ou restaurar o passado(diferentes,
Um fenómeno subestimado, mas digno de atenção, é precisamente o das
nessesentido, de Lukács, Eliot e Benjamin). Para eles o presente, feliz ou
resistências "provinciais" ou da persistência de zonas não assimiladas nem
infeliz, parece bastar fisiologicamente a si mesmo, pois contém aquela dose
assimiláveis ao modelo cosmopolita da arte de vanguarda. O estudo da obs.
de passadoe de futuro estritamente necessáriapara que não seja devorado
curidade e de sua técnica como puro artifício acabou produzindo efeitos
pelo demónio da consciência histórica e do progressismo estético. É um
deformadores na visão geral que temos da poesia moderna. Houve con
presente que não se contrai em dobras, desabamentos e muralhas (a serem
tra-tendências críticas. Trata-se de uma série de análises e de arestas sem
escaladas ou de onde se cai). O que acontece? Numa terra dada por deso-
as quais a idéia que podemos formular da poesia contemporânea resultaria
lada, a presença de tais poetas é quase incompreensível, escandalosa.Por
empobrecida e escolar. Penso,por exemplo, no livro de Edgar Wind sobre
excesso de clareza, suas obras têm posto em xeque os instrumentos ana-
érre e 'zn'zngü;a, nos ensaiosde Erich Heller e de Edmund Wilson, na leitura
líticos e interpretativosda crítica mais hábil. Uma clarezaque só podia incomodar e desconcertar os teóricos do modernismo. Quando os
queAuerbach fez de Baudelaire,' afirmando que os que reagiram com escândalo e repugnância às /;7ezzrx du ma/ entenderam melhor o real conteúdo do
procedimentosestilísticosnão seafastamdo repertório tradicional já exaus-
livro do que os professorese os estejasque, mais tarde, o trataram como
tivamente inventariado, os analistas da inovação não têm muito a descobrir
objeto de veneração e de estudo. Há ainda .4 zradzfâodo novo, de Harold
e, por isso, ficam decepcionados.
No entanto Machado e Sabasão de fato contemporâneos da lírica moderna. O que isso quer dizer? Que eles sãoapenasprovincianos? Não 8 S Cosmopolitismo e prol'incianismo
na poesia moderna
7. Cf. nota i7, p 39
89
Rosenberg,; alguns ensaios de Hans Magnus Enzensberger e o proveitoso
vinho, típicos de colinas e vales especíâcos,mas que, justamente por isso,
livro de Michael Hamburger, .d verdadedapoesía.
são apreciados em toda parte; portanto, alguma coisa de local ou, se prefe-
Na Itália, sobretudo Giacomo Debenedeüi, Franco Fortim, Pasolini e mais recentemente Pier Vincenzo Mengaldo
com sua antologia e os dois
rirem, de provincial que, mesmo em outros lugares ou em todos os lugares, continua apreciável.
volumes de Za na(# ;ane de/.MJvece/zroPsubmeteram a uma revisão rigorosa
a idéia de uma poesia italiana contemporânea dominada pelo progresso da
Em termos de mercado, a Itália é há muito tempo um país relativamente
modernidade. Não se trata apenasda importância e da grandeza de Sabaou
marginal, tal como a nossa literatura.
da redescobertade Sandro Penna.As obrasde Attilio Bertolucci, Giorgio
europeus, são também na esmagadora maioria pré-modernos, pré-burgue-
Caproni, Carlo Betocchi, Vittorio Serem e Giovanni Giudici também lançam
ses,pré-nacionais. Não respiraram o ar das metrópoles plasmadaspelo Mer-
uma luz distinta sobre o sentido da "modernização" poética italiana. Sãopoe-
cado e pela Multidão. Habitaram pequenas cortes e capitais locais. De resto,
tas capazesde mostrar a província que 6oi
ao se tornar nação, a Itália também se transformou
e que no fiando continua sendo --
Nossos clássicos, que são clássicos
numa moderna província,
a Itália, escritoresque ajudama entenderessaimensaprovínciaque é, ne-
exprimindo uma literatura fortemente "provinciana". Nossosclássicosmais
cessariamente,a maior parte do mundo: se é verdade que tudo o que hão é
antigos foram por assim dizer provincianizados por nossa burguesia culta
Metrópole seráprovíncia, e que a Cosmópole presentee futura só poderá ser
da segunda metade do Oitocentos, provincianizados pela mediação levada
a coexistência de "avançado" e "atrasado" (e, em termos literários, coexistên-
a cabopor D'Annunzio, Carducci e Pascoli.Leopardi foi praticamenteo
cia de Xolrzáinternacional e "dialetos" literários regionais).
único que assumiu as tarefas da modernidade poética que, em outros luga-
Na realidade, excetuando-se alguns episódios mais clamorosos, a lin-
res,eram assumidaspor numerosos autores de primeira grandeza.
guagem da poesia italiana manifestou uma relutância muito particular em se modernizar e tornar cosmopolita, sobretudo aquela que estevefora ou às
de estudo anatómico e matéria de ensino, nos permite agora ver melhor como
margens de grupos e escolas.Isso pode nos fazer entender melhor porque
funciona e vive a linguagem da poesia italiana do século xx. Permite-nos
a poesia italiana dos últimos decênios, graças especialmente a autores mais
também, quem sabe, valorizar mais o universalismo espontâneo dos nossos
que maduros, tenha sido com toda a probabilidade a mais importante e a
provincianos do que o provincianismo moderno dos nossoscosmopolitas.
Mas a crise e o crepúsculo da modernidade, sua consolidação em objeto
mais viva da Europa; e porque, ao contrário, no país em que a modernidade alcançou precocemente o seu ápice
a França --, a linguagem poética ve
nha dando sinais de esgotamento há algumas décadas. O crítico habituado a acreditar que a poesia mais importante para a modernidade seja aquela que teve maior circulação internacional, instalando-se "no coração do movimento literário", deveria pelo menos se lembrar dos caprichos e da falta de sincronia do sistema literário (e do mercado
livreiro) internacional. Wystan H. Auden disseque um bom poeta deveria ser como um bom produto agrícola, como um determinado queijo ou
8. Ed. bus.: .4 aatãrâo do nova,trad. Cegar Tozzi. São Paulo: Perspectiva, i974.[N.E.]
g. '4 [ra(ZTâodo refaz;o xx.[N.T.] 90 Cosmopolitismo eprovimianismo na poesia moderna
9i
Quando nascem os poetas modernos na Itália
Deve ser um palpite, mas estou convencido de que os poetas que efetiva-
menteinventaram a poesiamoderna italiana nasceramtodos entre t88o e í8go Não fiz uma verificação cronológica em outras literaturas, mas, no que diz respeito à Itália, a concentração de autores nascidos nessedecênio é impressionante. Por comodidade, e para a surpresa de vocês, repito
aqui a lista: Gozzanoe Sabanascidosem i883; Govoni e Jahier, em i884; em i885, Marino Moretti, Palazzeschi, Campana, Onofri, Rebora (Giotti,
que escreveem triestino); em i886, SergioCorazzini e Delio Tensa(que escreveem dialeto milanês); em 1887nascemCardarelli, Diego Valeri, Giovanni Boine; em i888, Sbarbaro e Ungaretti. Como se vê, é uma bela lista. Tão rica e ampla que, se eu devesserealmente desenvolver um ensaio exaustivo, mantendo-me fiel ao título, estaria metido em sériasdificuldades.
Ou seja, deveria apresentarum tratado que, conquanto sucinto, cobrisse cercade metade de toda a poesia do século xx.
Não posso fazer isso e, portanto, não o farei. A única coisa que posso razoavelmente tcntar é reíletir um pouco sobre a elaboração inicial de uma idéia e de um estilo de modernidade que os poetas nascidos
nos anos t88o levaram a cabo. Se me for permitido antecipar uma afirmação de caráter geral, trata-se da primeira e última geração de poetas
que enfrentaram a modernidade, que se viram diante do problema de como inovar e o que mudar radicalmente na linguagem poética, numa situação que se apresentava decerto transformada em relação a um pas-
sado relativamente próximo. Creio, de fato, que todos os poetas moder-
nos italianos nascemnos anos í88o. Montale, que nasceuem i8g6
e
que, portanto, chega com cerca de uma década de atraso em relação à 93
E houve, enfim, uma modernidade construída e reconstruída critica-
primeira modernidade poética --, Montale, que alguns continuam considerando o autor central da poesia italiana do século xx, é, com efeito,
mente:a geral e generalizantemoldura interpretativa que, a pairar;orl, de-
o poeta que leva a nova linguagem poética a um máximo de solidez
veria fornecer a chave para entender, justiâcar e valorizar, numa mirada certeira, quasetudo. Eliminando retrospectivamente (com uma historio-
clássica, mas é também um autor que nasce com precursores decisivos e irmãos mais velhos, como se o choque primeiro da modernidade Ihe chegasse, em parte, )á atenuado e absorvido, ou elaborado em diversas
formas por outros. Seja como for, não é sobre Montale que pretendo concentrar-me. Se
grafia tendenciosa e apologética) a história real dos riscos e dos fracassos que haviam ocorrido na poesia (e na arte moderna em geral). Esta é uma questão em que costumo insistir com freqüência. Até porque cresci nos anos em que o dogma da modernidade se estabilizava no
assumo a idéia de modernidade para entrar nessa constelação-geração de
meio universitário. Anos em que (falo da décadade ig6o) a idéia de van-
poetas, é para ter um primeiro critério unificador, notório e provisório, um
guarda
numa forma que eu classificaria de neovanguarda pós-moderna
fio de meadaque me permita atravessarvários autores distintos entre si.
-- não só penetrava nas universidades, mas era inteiramente transplantada
Mas é também porque espero que a diversidade dos autores nascidosna-
para aquele meio e vicejava dentro dele. Pier Vincenzo Mengaldo deu uma
quela década me ajude a desarticular a própria idéia de modernidade poéti-
contribuição decisiva à desmontagem dessedogma. Sua antologia Poe /
ca, diferenciando dentro dela uma série de modalidades distintas.
ila/zan/ de/ Mo ecenro [Poetas italianos do século xx], lançada em i978,
Como sabemos,a idéia de modernidade foi inicialmente uma situação vivida por autores isolados, depois, uma bandeira de batalha e de grupo, e, somente no final, uma idéia que aposrerlon serviu para pâr as coisas no
lugar: demasiadamenteno lugar, e, com freqüência, muitas coisasnão parecem assim tão semelhantes.
Enâm, houve uma modernidade como solidão, quem sabeprofética e prenunciadora, que deu lugar a uma poesia que se sentia ameaçada por uma espécie de verticalidade vertiginosa, com todos os riscos do solipsismo: lín-
gua lírica tendente ao idioleto, gratuidade lúdica, exagero expressivo, cren-
assinalaum ponto ârme na revisão dos esquemaselaboradosna década precedente, segundo os quais o sentido na poesia novecentista devia ser buscada numa espéciede marcha triunfal em direção ao Novo: era a ideo-
logia bastante míope, mesmo nos críticos mais aguerridos, da tendência
avançadaou dinamicamentecentral, em que se resumiria todo o curso evolutivo das artes.
O longo ensaiointrodutório de Mengaldo apontava em sentido contrário. Em vez de unificar, Mengaldo trabalhava com as diferenças: dentro de uma mesma tendência (crepusculares, herméticos), dentro de um deter-
ça órfica, sempreno limite dos códigoscomunicativos e retóricos. Ou seja,
minado período ou momento (os anos da more,' com poetasdiversíssimos
a sensaçãode toda uma história cultural ou tradição literária que afunda no
entre si) e também em um mesmo autor. Uma modernidade que parecera
sublime insignificante de uma história individual (Leopardo,Emily Dickin-
compacta mostrava-se agora, vista mais de perto e com as lentes da obser-
son, Rimbaud, Mallarmé, Trakl, Benn, até Paul Celan ou Zanzotto).
Houve uma modernidade do início do século xx, consciente e segura de si, polêmica e ativista, numa palavra, vanguardista. Uma modernidade reivindicativa, em que até a negação mais radical e o niilismo declarado ganharam um tom de otimismo progressista, com a idéia correlata da inova-
vação estilística, um entrelaçado de afinidades e diferenças insuspeitadas. É exatamentedesteponto que eu gostaria de partir. Pressuponho Mengaldo e declaro partilhar as mesmas premissas quanto à bibliografia essencial: Debenedetti e sua escolha por Saba, o ensaio de Adorno sobre lírica e so-
ciedade,: a crítica à vanguarda (sobretudo às neovanguardas) formulada no
ção como libertação. Aqui vemos plenamente operante o dogma do novo, a religião do novo que elimina o velho, porque isso é natural, historicamente
i. Cf. nota 3, p. z3
necessário, moral e esteticamente )usto-
z. Cf. nota i3, p. 33
95 94
Quando rlmcem os poeta moderrLosna Itátia
início dos anos tg6o por Fortim, Enzensberger, Pasolini. Se é verdade, como
Quem observou que a idéia jakobsoniana de função poética da lingua-
escrevia Mengaldo, que a "poesia italiana do nosso século [.-] faz parte inte-
gem trazia implicitamente de volta a poética da arte pela arte, além da teoria
grante do fenómeno ou categoria 'lírica moderna' ",; é também verdade que
crocianada liricidade pura, não estavamuito distante da verdade. Toda a
na Itália, essefenómeno ou categoria geral (cuja ilustração mais sistemática e
crítica estruturalista, que assumiao princípio de Jakobsoncomo um pres-
discutível foi dada por jugo Friedrich) teve uma história própria. Isso ficou
suposto científico, não percebia que estava abraçando uma estética que, por
cadavez mais claro no decorrer dos últimos vinte anos: não só por causa
sua vez, envolvia juízos de valor
da crítica, mas também graças à atividade de uma série de poetas italianos
verificar a presençado gzz;dpoesiano interior de uma série de autores e de
de primeira ordem, como Penna, Bertolucci, Serem, Caproni, Betocchi, até
obras. A poesia entendida segundo a teoria de Jakobson, como linguagem
Giudici, que já pertence a uma geração mais jovem, a mesma de Pasolini.
auto-referencial, estava decerto presente de modo mais exemplar em auto-
E Pasolini, como crítico de poesia, é, na minha opinião, um autor central
res que tendem ao excessode figuras retóricas.
ou seja, critérios que deviam permitir
na segundametade do século xx: um crítico antimodernista, que contribuiu
Mas agora deixo este terreno, que demandada um outro tipo de via-
para o afloramento, de Pascoli a Penna, de toda uma cadeia de fenómenos de
gem e de exploração. Porém, se acho interessante a geração de poetas nascidos entre i88o e í8go, é também porque gostaria de mostrar como
resistênciada linguagem poética italiana à modernização em chave vanguaro levou a deixar em segundo plano uma Éozlzéespecífica, a do cosmopolitismo
o arquétipo de poeta moderno na Itália é bastante ambíguo e incerto. A idéia (e a praxis) de modernidade lírica que emerge dessespoetas está
lírico, que agiu tanto nos herméticos quanto nos Novíssimos e pode ser defi-
longe de ser unitária. De autores como Saba e Gozzano,que movam
dtda comojargão da modernidade.
olhando para o passado,a escritores como Palazzeschie Ungaretti, que
dista. A antipatia de Pasolini pelos futuristas, especialmente por D'Anpunzio,
nascem da vanguarda e parecem começar do zero, temos uma gama enorA lírica moderna foi por mais de um século um gênero literário de extraor-
me de possibilidades que, mais cedo ou mais tarde, se mostrarão muito
dinário prestígio, em cujo âmbito (pense-sena genialidade e na influência de
vitais durante todo o arco do século xx. Portanto, para sermos criteriosos,
Baudelaire, Eliot, Valéry, Pound, Montale, Auden etc.) e a partir da qual se formou uma zona essencialda estética contemporânea e da idéia moderna
'verdadeira" poesia do século xx começa na Itália (não há história nem
de literatura, de "especificidadeliterária", de "função poética" e assimpor
considerando ainda a questão recorrente de "quando" e com que autor a
diante. Por isso é tão importante recomeçar pela desarticulação do género
antologia que não parta desseproblema), agora que o século está terminado, e observando-se o destino de certas tendências privilegiadas an-
estilístico e histórico chamado Lírica Moderna a âm de discutir alguns prin-
teriormente, já podemos ler os poetas nascidos nos anos de i88o como
cípios de poética e de estéticaliterária. Aguçar os ouvidos para o fato de que a poesia moderna tem mais vozes do que uma única estrutura profunda tam-
igualmente modernos: exemplos de variadas soluções estilísticas para a situaçãochamada"modernidade
bém implica, penso, colocar em discussão(como de resto já foi feito) hierarquias de valor, atribuições de centralidade e grandeza, bem como a própria noção de literatura moderna comumente aceita, que teve anos atrásuma das
Talvez não seja por mero acasoque o teórico, crítico e poeta mais sutil, informado e paradoxal da neovanguarda,Edoardo Sanguineti, tenha rapi-
formulações teóricas mais afortunadas (e, infelizmente, menos discutidas)
damente encontrado um meio de conjugar a opção por uma ilimitada liber-
em Roman Jakobson.
dadeformal (de inspiração múltipla, massempreradical: futurismo, Pound,
surrealismo)com o gosto por um virtuosismo retórico que retoma, de 3. Poedífa/ia/zíde/.Azoveceara, org. P.V.Mengaldo.Milho: Mondadori, i978, p. xxi
9G Quando nmcem os poeta modernos na Itátü
modo maneirista, estruturas fechadas e temas neocrepusculares. Desde os 97
anos iPSo, Sanguineti foi um dos maiores estudiosos e promotores da poesia de Guido Gozzano, que é, com Saba, o poeta mais conservador do iní-
observaçõesestilísticas um tanto arriscadas, mas de grande argúcia. Entre outras coisas, Pasolini afirma:
cio do século xx -- no pólo oposto, colocamos Palazzeschie Ungaretti. Mas
a modernidade poética nascecom Gozzano ou com Ungaretti? A questão
o trractortaltsmo \.. 4 era uma forma tardia e sofisticada de Talão, ou Feto
se tornará ociosa se nos propusermos a fixar prioridades estáveis. Mas o
menosde cálculo, de operaçãoculta: tat sofisticaçãopreside tanto a obrcl
será muito menos se simplesmente pensarmos em dois modos distantes
demolidora do surrealismo quanto a obra formalmente constTutivcldo her.
e talvez opostos
de entrar na modernidade. Como veremos, há muitos
mutismo. Na Itãlia,
Ungçtretti é o maior expoente dessa cultural de vcln.
outros. Mas antes é preciso lembrar que nos anos i95o, além de um retorno
guardct. Seu barToquismo não é senão um rctciocínio desrctcionaliTado, de
a Pascolipromovido por Pasolini(que justo naquelemomento apontava
memória rimbaudiana, uma loucurçl controlada: o excessode ingenuidade
para o poemeto engajado: uma poesia civil, construída a partir de um auto-
de sucometafísica religiosct é coTTigidopelo excessode complexidade de
biografismo retoricamente ostensivo), também temos, inclusive no âmbito
sua religiosidade estética \..À. 4parentemente Ungaretti é um poeta de
da neovanguarda
estrutura parcttáticcL;ncl recLLidade,eLeé o máximo expoerLteda hipotaxe
ou seja, num horizonte de reivindicação cosmopolita --,
um retorno a Gozzanopromovido por Sanguineti(retorno a princípio
novecentista, Dos movimentos sintéticos quejú pressionctm o tecido rate.
crítico, mas que depois dará frutos no plano poético). Apenas para acres-
feito da \\lega\a aos Pigmentos sintéticos que bóias, inchados de cauab
centar mais um elemento à lista de fenómenos referentes à resistência da
linguagem poética italiana à "modernização" forçada, lembro que o pró-
e temporctis, de coÜunções subordinativas e gerúndios, nas página mai.s órancai
do Sentimento
[...].5
prio Giovanni Giudici, talvezo autor maisinventivo e multiforme dentre os nascidos nos anos lg20, seria impensável sem Gozzano e Soba, poetas
Uma hipotaxe gemi-submersa, poderíamos dizer: poesia de pináculos que
que fazem lírica em estilo teatral e narrativo, nos quais não há canto "solo'
despontam sobre um edifício dado por existente, mas soterrado. Não por
sem cenograâa. Segundo uma observação de Cesare Garboli, Pascoli que-
acaso,a obscuridade ungarettiana, especialmente a de .Seno;mento do tempo,
ria divertir se lamentando,divertir sem euforia. Entretanto seria possível dizer o mesmo e talvez com maior razão de Gozzano e de Saga,bem como de Giudici.
seexplica com a contínua alusão a profundidades inatingíveis: como se a onipresença da totalidade cósmica, dentro e ao redor de cada imagem e de
cadafibra que Ungaretti expõe com gesto lírico, fosse externadana forma
Em suma, há tempos Ungaretti não está mais no centro de nossa geo-
de sua ausência, ou melhor, estivesse presente como cavidade ressonante
grafia poética novecentista. Trata-se de uma relevante mudança de perspec-
da qual emerge, sibilinamente, cada verso e versículo. Tudo isso, eu diria,
tiva, sepensarmosque até Pasolini, no ensaiosobre Ungaretti incluído em Pagão e ;deoZoyla, escreveu: "A história da poesia de Ungaretti se desen-
mais que "encanto fónico" no sentido de "musicalidade", como diz Pasolini. O encanto fénico se deve sobretudo ao caráter alusivo. Causa-nos
volve [...] por deânição no centro da história da poesia do século xx",4 Por
espanto que, aqui e ali, desponte do indizível uma forma verbal:
definição, diz Pasolini. Agora vejamos de que definição se trata. Podemos
localiza-la em termos mais precisos na "Nota a 'Un poeta e Dio'", texto que Pasolini não incluiu em .f)anão e /deo/og;a,talvez porque contivesse
4. P.P. Pasolini, "Un poeta e Dio"]i954],
recomtruirmos, por exemplo, os espaçosem branco erttíe uma linhcl e outrcl clo
5. Idem, "Nota
a 'Un poema e Dio'"
[1958], in /7porfzco dela morre, org. Cesare Segre. Romã
Associação"rondo Pier Paolo Pasolini", ig88, pp. i7i-7z.
Einaudi, ig8$, p. 3z5
C)B Quando Rugem ospoet
in P i;one e ídeaZayla6z948-zg580.Turim:
.4[usividade comofundo para o irracional e o inefável. De modo que, se ao
modernos na itáíia
99
Seno\menta, vierem à tona sintagmm bmtante complexos uma forma exa-
escrevessepoemas tão desleixados. Assim como Ungaretti às vezes abusou
cerbcLdade hipota9ce,como digamos --, isso nào significa quese possa recom-
daquele "encanto fónico" que era dado pela onipresença, em cada sílaba, de
truir uma estrutura lógica. Seja comofor, a hipotaxe de Ungarettipermartece
um cosmo infinitamente poético, sempre sagrado em seu mistério. Se sua
ilógica, é a sua força impiradora
trincheira podia iluminar-se de imenso, aqueleimenso era uma divindade
e singular no campo estilístico e estético. Sua
integração $gural é umcl ideia da poesias
poética,um átomo de luz, uma mínima fibra semânticadilatável ao infinito. É precisamentea descontinuidade do tecido formal de Ungaretti que nos dá
Nesta última frase está o âmago de Pasolini. A poesia de Ungaretti se explica não por si mesma, no tecido de sua linguagem, mas pela transcen-
a certeza de que, atrás de cada ilha de linguagem, há sempre um mar de significado; ou seja,uma perfeita, ainda que obscura e inefável, continuidade.
dência de um sentido ou âgura ulterior, que é a idéia de poesia. Ideia de poesia e linguagem da poesia são entidades unidas de maneira alusiva por
Masnão era essanotória e óbvia centralidadede Ungaretti dentro da poe-
sua intransponível separação.Cada poema de Ungaretti e toda sua obra
sia novecentista (no coração do cosmopolitismo estético sempre encontra-
poética são,pois, fundadas e justificadas pela certeza dessaidéia. Justamente
mos os sem-teta da poesia que moram na poesia: Ungaretti, Pound, Celan,
o poeta que parecia partir do grau zero da tradição poética para simplesmente reencontrar a poesia como linguagem de emergência (linguagem de
agora Brodsky), não era essamodernidade que mais me interessavanos
trincheira) só poderia, de fato, tocar esselimite extremo graças a umafé na
trais da modernidade é que nasceu o jarrão da modernidade. Ao contrário,
poesiacomo idéia e absoluto por definição ou por essência--, ao abrigo
me parecem mais interessantes os poetas cuja linguagem não conseguia
dos acidentes da história e da biografia.
transformar-se em jargão. Poetas que não fizeram escola, cuja linguagem
A poesia de Ungaretti, assim como tanta poesia de vanguarda, sustenta-se não na força de um artesanato estilístico, mas na força da idéia (da
nossos poetas nascidos na década de l 88o. Dos que pareciam os poetas cen-
continua presa ao chão, sem se elevar subitamente na vertical para esta-
ideologia). E, com efeito, ela desbotou e se distanciou de nós com o desbo-
belecer-seno céu da lírica ou da vazia transcendênciaestética.O próprio Campina, com seumito e seudestino trágico, é um mártir dessareligião da
tamento e o distanciamento daquela íé estética (ou religião da arte, ou arte
poesia. O "paupérrimo aparelhamento retórico" de Campana, como obser-
como sucedâneo da religião).
vou Contini, remete ao domínio da idéia de poesiaque funda e precedeo
Dito isto, compreende-sequanto Pasolini, que se empenharaem su-
texto. Cada poema se apresenta sobretudo como ilustração do fantasma da
perar o irracionalismo lírico novecentista,misturando poesiae jornalismo,
poesia. E assim se vai, como em Ungaretti, rumo a uma poesia da poesia
possa ter sentido em Ungaretti um mestre a ser combatido, mas também
(gênero Guio expoente é Valéry, talvez o mais conseqüente e consciente
apreciado. É a idéia de poesia, o pressuposto ontológico do ser poeta, que
representante dessetipo de modernidade lírica).
mantém de pé a massamagmática dos escritos pasolinianos; tal pressuposto não o impede de pâr em funcionamento, às vezes com astúcia retórica ex-
dos e contrapostos: de um lado, aqueles que Ihe exaltam o papel histórico,
torsiva e meio diabólica, seus poemas-artigo ou artigos em versos, discur-
transformando-o
sos do seu teatro poético-político. Mas muitas vezes, sobretudo antes das
ciano Anceschi, Carlo Bo, Mano Luzi, Edoardo Sanguineti; do outro, Gian-
melhores soluções estilísticas da faseanal (que, na minha opinião, estão nas
franco Contini, Franco Fortim e Pier Vincenzo Mengaldo, os quais insistem
Z,errara /zzarame), foi essa idéia de "ser na poesia" que permitiu
no excessodecorativo e semanticamenteaproximativo do seu léxico (so-
que Pasolini
Ao redor de Campana, formaram-se dois partidos críticos bem delineanuma espécie de Rimbaud italiano
entre estes estão Lu-
bretudo a adjetivação),bem como na proximidade ao "vitalismo freqüen6. Id.ibid.,p.i7z Q
guarda nmcemospeetw modernosna Itá ü
101
temente declamatório das vanguardas do primeiro decênio do século".' Na
suposto "mais à frente" ou "mais atrás". Acrescentaria ainda que, após essa
desordem declamatória de Campana, seria mais visível uma continuação
geraçãode poetas, o problema da modernidade se torna bem mais equí-
ingênua do caráter maldito do século xix, e não a antecipaçãode "uma nova
voco. Torna-se, no mais das vezes,um problema ou um prometode "política
figura de poeta (órfico ou vanguardista)".' Fortim observaque "seus ver-
estilística". Ao passoque, numa série de obras publicadas nos anos ígio, encontramos uma extraordinária honestidade e variedade criativa.
sose passagensmais fulminantes alimentaram poetas muito diferentes entre
si, como Mano Luzi, Pier Paolo Pasolini ou Andrea Zanzotto". Ambíguo
Guido Gozzanoantes de todos. Quem hoje ainda duvida de que ele
elogio a Campana, que se desdobra como um juízo ideológico que Fortim
é uma das quatro ou cinco vozes essenciais do século? Creio que Fortim se
faz pesar sobre os três poetas citados. Os quais, via Campana, são indireta-
equívoca ao subestima-lo em suahistória antológica, colocando-o aquém do
mente recriminados por duas coisas: "uma idéia de poesia como forma do
século xx. Por isso ele passa imediatamente aos transgressores, com um pará-
mágico" ou regressãoórfica (Luzi, Zanzotto) e a ü no poeta como herói
grafo dedicado a Glm Fieira Zzzc;rzz,o verão#vre e mija zzrúfm: transgressores
moral e anárquico, isto é, como "sublime selvagem transgressor" (fórmula
proverbiais, que antes expressam intenções e gestos ideológicos que textos
em que ressoaa irritação de Fortim diante de Pasolini).
ou obras, como o próprio Fortim aârma. Mas e então? O certo é que, ao
Portanto a modernidadede Campana,que pareceratão exemplar,
retrodatar-se moral e estilisticamente para conseguir manter-se na própria
central e precursora, é também uma modernidade especial e importante só para quem considera o tardo-simbolismo, a poesia pura dos herméticos e a
pele, imitando um Oitocentos nostalgicamente retocado por uma encenação
neovanguarda como metas que a linguagem poética italiana deveria alcan-
escreve sobre ele coisas essenciais, até para definir-se a si mesmo (é dele a
çar a qualquer custo a fim de ser, como se dizia então, realmente "européia",
famosa fórmula: "o primeiro a produzir faíscas pondo em choque o áulica
ou seja, adequadamente moderna (tenho dificuldade de entender o valor
e o prosaico"). Sanguineti o estuda a fundo e, a seu modo, se apropria e faz
comumente atribuído nas artes à palavra "precursor":
como se se tratasse
dele um modelo, inclusive para hoje. O mesmo acontece com Giudici, que,
de correr o mais rapidamentepossíveldo passadopara aquelefuturo que
porém, não o menciona. (Sanguineti e Giudici sempre ambientam, gozzania-
é o nosso presente). Mais uma vez, pensa-seem Campana mais em termos
namente, sua poesia em meio aos objetos, aos restos, demolindo e reduzindo
de "modernização", a partir de modelos culminantes do cosmopolitismo
criticamente a figura do poeta à estatura de pequeno-burguês e homem mé-
de ponta, do que de "modernidade", isto é, de situação realmente nova em
dio, patética e monstruosamente normal, ainda que visitado por estranhos
um determinado lugar e tempo. SÓdespojadodo incomodo papel de esta-
pesadelosesonhosde evasão.)
feta precursor e de quase-Rimbaud tardio é que Campana poderá ser lido de novo, de acordo com aquilo que é e vale.
extrema, Gozzano não fez nem podia fazer escola. Montale o respeita e adora,
Assim, depois de termos visto Pasolini, o crítico-poeta menos vanguardista das últimas décadas,ao lado do poeta mais radical do século xx, Ungaretti, agora vemos Sanguineti, o crítico-poeta central da neovanguar-
Mas, como eu dizia no início, não há poeta nascido nos anos i88o que não
da, ao lado de Gozzano, o mais tradicionalista entre os poetas do início do
tenhaoferecido o seumodelo de modernidade poética. Cada um inventou
século xx. Ao começar a sua análise sobre Gozzano em um ensaio de i954,
uma linguagem poética da modernidade. E o que hoje mais interessa talvez
Sanguineti lamentava justamente que se considerasse Gozzano "um 'clás-
seja essacoexistência de modos, e não a sua localização alternativa em um
sico' do nosso século xx", como se ele fosse um poeta ainda oitocentista, o último dos clássicos barrado na soleira da autêntica modernidade. Sangui-
7. F. Fortim, /poef; de/JUovecenfo. Romã-Bari:Laterza,i977) p. zg. 8. Roer;ila#a/zz'de/Ab ecenzo, org. P.V.Mengaldo.Op. cit., p. z79.
lç)Z Quando nmcem os poeta modernos na !tília
neti argumentara, retrospectivamente, não só acerca de um itinerário que leva de D'Annunzio a Gozzano, mas também
o que é mais interessante io3
aqui
de uma via mestra que levaria de Gozzano a Montale, isto é, ao co.
ração da modernidade poética do século:
il vento ch'entra nel pomario/ vi romena I'ondata delta l,ita"'z) \ogo focamos
sabendoque aí encontraremos bem pouca euforia irónica. Ou então se trata de uma ironia atonal que, não obstante as declarações montalianas, não se
Em todo cmo, de GoR3anoa MontaLe pode-se trartqiliLamente reconhecer, creio,
uma linha de coÜugação=linha orüuLada, com oscilaçõese divagações, mas li-
furta a adornos estilísticos pesados e a um certo luxo sinistro (pense-seem "Arsenio"';).
Quase um D'Annunzio
sem desejos, ou seja, impensável. Um
nha Legítima e indispemável. Se qubermos segui-ta de perto e prestar atenção às data, será precisopercorrer, grosso modo, o coração do século xx italiano; e cer ámen e e/zae o zgzz doi Colloqui
e o z93p c/m Occasioni, pmsandope/oi
rz. "Goza se o vento que entra no pomar/ volta a bater com a onda da vida". Trad. Remato Xavier, in Osioi de líbia. São Paulo: Companhia dasLetras, zoo% p zg-]N.T.]
zo meãocom a egüz'dh(üc;a de zm
i3. "I turbini sollevanola polvere/ sui tetti, a mulinelli, e sugli spiazzi/ deserti,ovei ca
rigor matemático m mínimo curioso, desenha-sedo nossoséculo xx umcl linhct
valli incappucciati/ annusanola terra, fermi innanzi/ ai vetri luccicanti degli alberghi./ Su! corso,in faccíaa] mare, tu discendi/ in questogiorno/ or piovorno ora acceso,in cui par
Osso di seppia, de zgz5, güe ocupam o/
completcl, autónoma, operosa e rica de nomes?
scatti/ a svolgerne I'ore/ uguali, strette in trama, un ritornello/di
castagnette.// É il segno
di un'altra orbita: tu seguilo./ Discendi all'orizzonte chesovrasta/ una tromba di piombo,
O que mais interessa a Sanguineti desde o início não é, obviamente, o: "crepuscularismo"
de Gozzano,
mas sua inconfundível
"'ironia
formal'
(uma
ironia levada tão adiante a ponto de tangenciar uma condição paródica
alta sui gorghi,/ piü d'essavagabunda:falso nembo/ vorticante,sofbatodal ribelle/ elemento alcenubi; fa che il passo/ su la ghiaia ti scricchioli e t'inciampi/ il viluppo dell'alghe: quell'estante/ ê forse, moro atteso, che ti scampi/ dal ânire del tuo viaggio, anello d'una/
de discurso)".'' Ironia e tendência paródica que nem mesmo Palazzeschi)
catena,immoto andare,oh troppo noto/ delírio, Arsenio, d'immobilità-.// Ascolta tra i palmizi il getto tremula/ dei violino, spento quando rotula/ il turno con un tremer di
tão semelhante em alguns aspectos, entende e aceita em Gozzano, a quem
lamiera/ percossa;la tempesta à dolce quando/ sgorga branca la stella di Canicola/ nel
parece preferir Corazzini. ' '
cielo azzurro e lunge par la será/ che prossima: se il fulmine la incide/ dirama come un
É )ustamente isso, creio, que faz Gozzano estar em posição bastante
albero prezioso/ entro la luce che s'arrasa: il tímpano/ degli tzigani ê il rombo silenzio-
so.// Discendí in mezzoal buio che precipita/ e muta il mezzogiornoin una notte/ di
incomoda ao lado de Montale, cuja tendência irónica e paródica é bem mo-
giobi accesi,dondolati a riva,/
desta, o que o impede de constituir uma linha ou espinha dorsal com Gozza-
sparsi palpita/ I'acetiene/
no, senão ao preço de uma notável acrobacia. Exceto pelo fato de usar mais
tutto d'accanto ti sciaborda,sbattono/ le tende molli, un fiüscio immenso rade/la terra, giü s'afHoscianostridendo/ le lanternedi cartasulle strade.// Comispersotra i vimini e le
livremente o caótico bazar oferecido por D'Annunzio, Montale não pode partir de Gozzano, que neutraliza e desarticula ironicamente D'Annunzio,
mas deve prescindir dele. Para Montale, D'Annunzio não é mais temível e, portanto, pode ser utilizado, quando for o caso,como decalque neutro, repertório de formas lexicais e métricas tornadas estranhas não pela ironia, mas por subtração disfórica. Entre Montale e D'Annunzio não está Gozzano, mas principalmente Camillo Sbarbaro. Com o ;rzc#il dos Oss; ("Godiie
e fuori, dove un'ombra sola tiene/ mare e cielo, dai gozzi finché goccia trepido/ il cielo, fuma il suolo che s'abbevera,/
stuoie/ grondanti, giunco tu che le radio/ con sétrascina, viscide, non mai/ svelte, tremi di vetae ti pretendi/ a un vuoto risonante di lamenta/ soffocati, la tesati ringhiotte/ dell'onda antica che ti volge; e âncora/ tutto che ti riprende, strada portico/ mura specchi ti âgge in una sola/ ghiacciata moltidudine di morta,/ e se un gesto ti sfiora, una parola/ ti jade accanto, quello ê force, Arsenio, nell'ora che si scioglie, il cenno d'una/
veta strozzata per te
sorna,e il vento/ la porta con la cenere degli astri." 'Os redemoinhos levantam a poeira,/ em espirais, sobre os telhados e sobre aspraças/ de certas,onde os cavalos encapuzados/ farejam a terra, parados frente/ às vidraças reluzentes
dos hotéis./ Pela avenida. em frente ao mar, desce/ neste dia/ ora chuvoso ora claro, no g. E. Sanguineti, "Da Gozzano a Montale"]i954], in Zra #óerO'e crer co/arúmo. Melão:
Mursia,ig6i, pp.z3-z4.
io. Id.ibid. ii. Cf. A. Palazzeschi, "Prefazione" a F. Donini, }?fa e /ceifa dí Sergío Cora {;lz;. Turim: De Salva,1949,pp. xii-xlii.
ia4
Quando
nwcem
os poe 's modernos
na Itália
qual parecedisparar/ transtornando as horas/ sempre iguais, na suaestreita trama, um refrão/ de castanholas.// É o signo de uma outra órbita; segue-o./ Descena direção do horizonte onde/ uma tromba de chumbo se ergue sobre a voragem,/ mais que ela errante salubre nimbo/ vorticoso, soprado pelo rebelde/ elemento às nuvens; faz teus passos/ rangerem no saibro e tropeçarem/ no emaranhado das algas: talvez seja esse/ o tão esperado instante que te dispense/ de findar tua viagem, elo de uma/ cadeia, imóvel caminhar, oh >
io5
D'Annunzio empalidecido, incolor, afânico, ambientado num mísero cemi-
ser ninguém, nem isso nem aquilo, nem velho nem novo, nem puro esteja
tério, diante de um mar estranho: mais gótico que grego.
niilista nem pequeno-burguês sentimental), já significa sair da lírica, sair do
lirismo moderno antesmesmo de tê-lo adentrado. Gozzano emoldura, úz
Montale teve um modo próprio de neutralizar D'Annunzio, muito dife-
am;/ze,a modernidade poética: mostra o Oitocentos com os olhos do século
rente daquele adotado por Gozzano, com o qual não se alinha nem man-
xx, e o século xx com os olhos do Oitocentos. Sua força crítica e estilística
tém continuidade. Isso porque Montale era, já de saída, intenso e refratário não precisava recorrer a tratamentos estilísticos especiais
está nessacoexistência que o Novecentos poético perderá e que, por isso mesmo, não fará escolanem estabeleceráuma linha.
para distancia-lo e elimina-lo. Pede usá-lo com liberdade e, justamente por
Até ig65, ano de publicação de Za v/fa ü I'erx; [A vida em versos], de
a D'Annunzio:
isso, saquear o seu depósito.
Giovanni Giudici, não veJOoutros exemplos de estratégia gozzanianano
Não vejo, pois, uma espinhadorsal Gozzano-Montale, como queria Sanguineti. Gozzano continua sendo um caso extraordinário e isolado:
que vem ao nosso encontro como uma personagem realista, no preciso mo-
séculoxx. Em Gozzanoocorre algo de extraordinário:é o próprio poeta
inaugura uma modernidade dolorida, a meio caminho entre o riso e o pran-
mento em que fala de si. Sua voz não estáfora de cena ou de campo. É uma
to. Ele precisaexibir o auto-retrato do poeta como personagempoética,
voz em cena, em situação. A personagem-poeta tem os seus tiques, seus
deve declarar a própria vergonha de poeta diante da banal vida burgue-
hábitos, sua conotação social. Apenas com Giudici ocorre de novo algo
sa, vida sem abismos nem vértices. Mas também vida verdadeira. Chora
semelhante. Em sua poesia (língua comum e humilhada que encontra mo-
a vida perdida depois de a ter escarnecido.O fato de que Gozzano cons-
dulações de canto, rimas, versificação remodelada a partir de velhas normas,
trua situações teatrais e narrativas para ambientar seus monólogos, a âm
discurso cotidiano vestido de discurso poético, alheio a qualquer garantia
de criar a acústicaexata para a voz do poeta moderno (que não consegue
estéticaapnon, como no entanto ocorre em Pasolini), pela primeira vez o poeta surge como um exemplar não muito anómalo da classe média urba-
na e trabalhadorada Itália, entre o pci e a Igreja Católica, entre mulher e >
tão conhecido/ delírio, Arsênio, de imobilidade-.// Escuta entre as palmeiras o jorro trêmulo/ dos violinos, sumido quando reboa/ o trovão com um fremir de folha-de-âandres/
amante, entre cidade grande (Romã, Milho) e província (La Spezia). Com a segunda fase de Sanguineti, dos anos i97o em diante, reencon-
percutido; a tempestadeé suavequando/ desponta branca a estreia de Canícula/ no céu azul e parece distante a noite/ já próxima: seo raio a entalha/ desgalha-secomo uma árvo-
tramos Gozzano mais uma vez; mas, no caso de Sanguineti, a escolha estilís-
re preciosa/ na luz que de vermelho se tinge; e o tamborim/ dos ciganosé um murmúrio
tica é diferente. Sanguineti intensiâca em cada uma de suasseqüências(blo-
silencioso.// Desce ao centro dessaescuridão que se espessa/e muda o meio-dia em uma
cosrítmicos de origem informe) a presençade artifícios retóricos de todo
noite/ de globos acesos,balançando na orla, e fora, onde uma única sombra confunde/ céu e mar, dos pesqueiros esparsospalpita/ a luz do acetileno/ até onde o céu goteja tre-
tipo, com uma tenacidade lúdica, culta e cheia de citações; põe em ordem,
pidante,/ fumeia o solo sedento,/ tudo em volta se agita, espadanam/ os toldos molhados,
com grande dispêndio de artifícios metaliterários, um caos onírico-enciclo-
um imenso sussurro varre/ a terra, e amolecem chiando/ as lanternas de papel pelas ruas.//
pédico que se torna obsessãoe incrustação rococó. Em relação a Giudici, a
Assim perdido entre as cadeiras de vime e as esteiras/ de palha pingando, tu, junco que as raízes/ consigo arrasta, viscosas, nunca/ arrancadas, fremes de vida e te arrobas/ a um
ironia paródica de Sanguineti tem esselimite: ela se exaure metaliteraria-
vazio ressonantede lamentos/ sufocados,a crista da onda antiga/ que te enrola novamente te engole; e ainda/ tudo o que te retém, rua pórtico/muro espelho te fixa numa só/ gelada
mente, como atividade de desconstrução e laceração de uma retórica enges-
multidão de mortos,/ e seum gesto te roça, uma palavra/ cai perto de ti, é talvez, Arsênio,/
nutre de poesia, ainda que para demolir-lhe a tradição e a idéia. Na réplica
na hora que seesvai, o apelo de uma/ vida sufocada para ti surgida, e o vento/ a leva com a cinza dos astros." Trad. Geraldo Holanda Cavalcanti, in Eugenio Montale, voei;m. Rio de
paroxística de todos os procedimentos possíveis, Sanguineti cria um jargão
Janeiro: Record, 1997, pp. 44-47.[K.T.]
metapoético (e apenasnisso, às vezes,ele se aproxima de Zanzotto), inventa
ia6
Qua?ido nascem ospoetas moder710sna Jláiia
sadaque sempre, como num pesadelo, se enrijece ao seu redor. Poesia que se
io7
o jargão da autocrítica cómica e paródica da poesia. Entre Sanguineti e Goz-
Levasempreà dbsolução da forma: conduz a um efeito não mais "clássico",
zano não há somente Eliot e o surrealismo, Brechae a semiologia paramarxista do primeiro Barthes. Há sobretudo a aquisição universitária, nos anos
mw "vanguardista
Mu a técnicapode também sernão maneirista)'
íg6o, da teoria da arte de vanguarda, com o conseqüente e equivocado dever militante de reproduzir i/z ;rro as vanguardas históricas, se possível todas
Tem-se a impressãode uma polêmica frontal com Sanguineti e com toda
juntas, para assegurar-seabsolutamente de que escrevena modernidade.
a neovanguarda italiana, cujas predileções formais são aqui descritas resu-
Já Giudici, que quasenunca fala de Gozzano,parece retoma-lo à sua revelia. A poesia deve evitar escreve Giudici no breve ensaio "La dama non cercada" [A senhora não procurada] "o excessode 'inten-
midamente. Mas também parece, talvez, um distanciamento em relação ao título que o próprio Beccaria deu anos antes a um volume de ensaios, título
que podia soar como uma opção literária: 4 a z ontem;ado izkne#canre.t'A
cionalidade '" e deixar-se guiar por uma certa "inocência".I' Tal texto de
atitude de Beccaria parece, enfim, uma defesa antagânica, em pleno século
Giudici não é secundário, já que dois anos mais tarde ele publicou uma coletâneade ensaiose artigos com essetítulo. Todo o número da revista
xx, não de uma "tendência poética", mas de certos autores e de um modo
Szkma, que publicou pela primeira vez essetexto de Giudici, partia de
modo oposto. Grande estilo, diz Beccaria,
de compor e de considerar a construção do texto poético em relação a um
uma provocação polêmica de Gian Luigi Beccaria, na qual o estudioso se declarava favorável àqueles poetas do século xx "que se agarram à
não é simplesmente etoqüência, forma etev(da \. . l\. Signi$ca organizar o puta
instituição-tradição".'s Beccariainiciava uma polêmica antimaneirista e antivanguardista a favor de um "Grande estilo" capaz de manter rela-
Largos detalhes emfavorcle
çõescom a tradição, com a língua comum e, portanto, com um público
t.. X Imersãonuma continüidclde,desconFança da tramgressãoe da ruptura
de leitores diverso da seita dos iniciados:
t.. 4. De Pavesea Montate CL idéia, explicit(üa epraticada, é quea obradeve
uma essertciatidade
avesso da audácia exibicionista,
\- 4. "Grande estilo"
do arbítrio gramatical,
é,pois,
o
de experimentalismos.
conter uma carga depensado, surgir sobreos ombros de uma tradição \.. À, poe
Não há dúvida de quea criseda comunicaçãomuar, o nonsense, signifi-
sia comopresençade urn centro \...\. Não gostaria deser maLentendido, minha
cantes que não veiculam signifccüos, mosaico e pastiche, imerções citação e
idéia não é comervadora \. . 4. .4 poesiaé resbtênciaao provisório; resistência
co\Xales, mistura de ptartos [ingüísúcos e línguas diversas e antiga, sinta-
'zo comzzmo[...].
xe ilógica, parentética e incidental, astúciasgr(í$co-visuais etc. etc., enfm,
donar-se a uma escritura "informal",
LCLnta musa de armamentos sofisticados interrompeu um mais amplo circuito
reL%ão ao signi$cado \..l\. Mas, queira-se ou não, a integridade Linguística
=La poesia, o circuito da popularidade e do comuna. O Leitor, tramportado ao
comuniccb e o grande poeta nunca pcLgou o preço do esoterismo)l
ZI/mdoi mWecroi/eczz/! ares da /oei;a
maú recente á o .zóan-
a um slgnificarLte tornado autónomo em
Labirinto do maneirismo, enredado na exacerbaçãoda técnica, no fetichismo do sign$cante, rendeu-se como diante de uma existência inevitável, umjogo
Assim Beccaria encerrava, quase dez anos atrás, sua peroração. À parte algum
ie palavras que3á não LhediX.nada. É issoquecl vanguarda, emparte por
excessonos termos da contraposição (um tanto isento de dúvidas histórica
veTOprovocatório,
quere, porque, como se sabe, a exaceTbação da técnica
i6. Id.ibid.,pp.
r4' G. Giudicci,"La damanoncercada", in Szkma, xvl, ig83,z-3,p. 6i (fascículo monográfico da revista dedicado a Grande slí/e epoesía de/Móvecenro). i5. G.L. Beccaria, "'Grande stile ' e poesia del Novecento", id. ibid., p. 8.
io$
Quando nmcem ospoeta modernos na itátia
s-9
\.7. C{. G.L. Becml\a, i.'autonomia det signi$cante. Figure deí rilfno e deviapintasse.Dance: Parco/z'. Z):4n/zanÍío. Turim:
Einaudi,
t975
[8. G.L. Beccaria, "'Grande stile ' e poesia del Novecento", op. cit., pp. iz-20-
io9
mente plausíveis), a argumentação de Beccaria parece identificar em autores
Com toda a modéstia e semjamais trajar as vestesdo teórico, Giudici ajusta
como Gozzano e Saba,nos anos ígio, os expoentesda melhor modernidade.
a pontaria como se diz
e acrescenta:"Grande Estilo é corolário de
Em termos mais contingentes (e aderentesà própria poesia), a
autenticidade,portanto, de renúncia à procura consciente do efeito: acei
questão se reapresenta no texto de Giudici citado antes. Giudici toma
tação do princípio de que toda escrita não sustentada pela paixão é inútil".:'
distância de horizontes muito vastos, como a relação com a tradição e a
E assim se chega a Leopardo, que teoriza o oposto do que é dito por Poe
comunicabilidade da poesia. O fato de que a poesia comunique ou não
na .l;yZoio@a da co/npoi4ão.Para Leopardi, citado por Giudici, a poesiaé o
alguma coisa a um público não dependeapenasda linguagem ou da qualidade da poesia, mas de circunstâncias históricas, isto é, do ordenamen-
oposto exato do cálculo dos efeitos: "0 que apenas cabe ao poeta mostrar
to de uma situação cultural.
gens, descrições, abetos etc." (Z;óa/dome zz5, z5 de agosto de í8zo). Giudici
Naquele ensaio, Giudici desenvolve astuciosamente sua argumenta-
é não compreender o efeito que deverão produzir em quem lê as suasima
conclui por fim com um antimodernismo peremptório:
ção por meio de anedotas. E apresenta duas que são adequadas ao seu caso,
mas também ao de Gozzano -- anedotas que eu chamaria de ambientação
Mas penso, seguindo a minha hipótese do Grande Estilo como um de
cómica (ou teatral, ou realista) do áulica, do sublime, do estilo elevado.
sapo Lançado antes de tudo a mim mesmo, na quere milagroso e quiLíbrio
A musa de Giudici não só é humilde, mas também adora manter unidos
quese dá em alguns autores de poesia entre Língua de camunicaçaoe
como a de Gozzano o canto e a comicidade, o herói monologante ea platéiamaliciosa:
língua poética, uma coincidência fortuita, pura Itomofonia \...\. E, como já falei do áulica,
recordarem agora o Grande Estilo
que frequentemente
simula a prosa :*
Ser ou não ser, eis a questão:ser-me-ia mais nobre sofrer na alma pedrada
! $echctda.s do Destino farol. ou pegar-me em arma etc.": a 'Pol. se difundia
Nesseponto, Giudici cita os seus numes tutelares: Púchkin, Heine, Bau
grave e solene, repleta de dor como a face do improvável cçtubói de cujos Lábios
delaire, Antonio Machado. Mas seria o caso de acrescentar Saga e a sua
l quelu palavra jorravam num wesletn de$n.sdos anos t94o. A cencl:umcl
'intempestividade sublime" (como diz Giudici em outro texto):
taverna, um saXoon, tatve{ uma sórdida barraca, clemodo a tornar completamente inusit(üu,
entre tantos risos, estrépitose galhofa, m primeiras j'a-
Saía re e .zZgo]da]cn' fa ag;fada e um fanlo Inca/zven;ente, dizeeu /zãocha-
sesdo Monólogo. Não sei qduvidoÜsefai habilidctdedo diretor cla dublcLgem
maria de eneanl teM\e poíqm, segundotoda m aparência, eLejoi durante a
ressmcitar o texto de uma versãocom esse"ser-me-ia", evidentementeoito-
suü conturbada carTeiíct um aluno prudente e respeitosodm boas norma, mu
:artista, m
também um atum que só sabe qe queMÜ chamar a braitco de branco e o negro de
ctdequadoao efeito de traria que era, no filme, conferido à in-
=erpretctçãoshakespeaíiana. Entretanto a impressão quetive foi surpreendente,
negro,nomear"segue ao sangue" e "pranto aopranto"; e essaimcênciajoisua
quasecomo se ouvisse aquela palavras pela pTimeircl ve T do mai.sprofundo
força, msim como-éaforça de todo grande poeta ::
e banal inferno, etm me confortavam na crençade que, bem mais acima, se e)çpandia a nobíeTa do céu.
brande estilo? Creio quesim-)' zo. Id.ibid.,p. 6t. n. Id. ibid.,p. 65. zz. G. Giudici, "Saba: I'amore e il dolore" [ig83], in Za dama non cerrara.Poe íca e /efiera rg. G. Giudici, "La dama non cercata", op. cit., pp. 58-59.
no
Qual do nmcemospoeta modernosna Itália
rara, zgdX-zgXy. Milho: Mondadori, ]g85,p. t99. lll
Não sei bem
e cada vez entendo menos em que consisteou deveria
Desde os anos ígio não se via tamanha riqueza e variedade de estilos
consistir aquilo que, com uma certa superâcialidade, chamamos de dis-
Por isso, comeceia olhar os anos igio a partir dos anos ig6o. O nosso
curso crítico. emergir em um texto, listar os seusprocedimentos? Ou voar
século xx poético se revela no confronto
e sobrevoar, checar a disposição topográfica de uma porção de território
dessa parábola.
histórico? É possível fazer
à distância entre o início e o âm
e esconder-- inumeráveis coisasdentro da
instituição chamada "discurso crítico". E de fato é isso que ocorre. Mais
Não parti dos textos, masgostaria de chegar a eles. Talvez todo essetra-
que um discurso crítico, minha fala é uma conversa apologética. Porque
balho também fosse para desimpedir o terreno. Há nos poetas nascidos entre i88o e i8go dos quais estou fazendo a apologia uma re e/anão
realmente creio que os poetas nascidos nos anos i88o, cujas obras foram, groiio modo, publicadas nos anos de igio, fundam e ao mesmo tempo esgo-
tam a modernidade. igií é o ano dos CoZ7oguí de Gozzano, mas também das Reste de Sbarbaro e das Poesia de Soba. De lgio é ZTncendzar;o de
Palazzeschi. Em igi3 são lançados os /'rammenrz ánc/ de Rebora. Em igi4,
de re.z/idade,de realidade não estética, ainda não participe da tradição da linguagem poética. E essa revelação ocorre quase em surdina, com algo de inocente e de violento. Às vezes nascede um desarmado e deso-
os Cear; odcf de Campana e Planiss;mo, de Sbarbaro. Co/ m;e/ occÃ;(isto é,
lado despudor. Parece vestir os panos da humilde decência cotidiana para apenasmascarar a força do choque, o desvelamento de uma reali-
criei e e lz z dorna), de Saga, é de igiz. Entre igi6 e igz3 saem as poesias
dadeindecente, algo que comumente não se diz ou não se deveria dizer,
de Ungaretti, do Por o cepo/roà segundaedição da .d//egría, com o prefácio de Mussolini e alguns poemasque depois farão parte de Sen ;men o
mesmo que seja comum e notório.
de/ empa.A modernidade novecentista foi toda inventada naqueles anos.
candalosa de que falava Leopardo: não procura nem calcula os efeitos. O
Entre lg22 e lg2) saemCÃarmex,de Valéry, e 7'%ewaxle/and, de Eliot;
excesso que muitas vezes percebemos não se deve a uma escolha estética,
Ulissese .4 comciênciade Zero; História e comciência de clmse, de \..ukâcs;
mas sobretudo ao registro de uma realidade material e criatural despojada
asE7egiai de Düúo, de Rilke (só para ficarmos entre os expoentes, mas
de toda máscara. Nessasrevelações aguaum impulso que eu diria a-social,
há ainda Vallejo, Pasternak, Mandelstam, Pilniak etc.). Entre os Co//ogzz/
mais que voluntariamente anti-social. Algo é mostrado. E as palavras estão
e a segunda edição da .d#egna, nossa modernidade poética italiana já está
ali para acomodar-sesobre as coisas.A forma poética pareceaté um pre-
toda expressa. Uma modernidade que, em sua primeira e melhor manifes-
texto para cometer fitos de elementar honestidade cognitiva. Quando isso
tação,durou cerca de dez anos.
acontece,a continuidade com a tradição poética explode.
A força desses momentos poéticos tem precisamente a inocência es-
Para a poesia italiana, essaé uma década sem igual. Talvez igualada
E o que ocorre em Saba,que habitualmenteé lido como um poeta
apenas pelos quinze anos que vão de i957 (ano em que saem Ze cenerí di
da continuidade estilística, e não da maceração cognitiva. O calor domés-
Gra/7z.çc;, de Pasolini) a i97i (o ano de Safe.ra,de Montale): com quase todo
tico e melódico de Saba, no entanto, é enganoso.Cada gesto poético
o Pasolini não dialetal, o melhor de Andrea Zanzotto, G/i slrzzmenlzzzm'zn;,
dele é violação de um silêncio, de um tabu. Poesiasque passampor edi-
de Vittorio Serem, o }'Zagg;od7rzver/zo, de Attilio Bertolucci, Har;a ion/
ficantes e ingênuas devem ser lidas como uma homenagem transgressiva
óe/7icÃee Serie oxpeda#era, de Amena Rosselli, os primeiros livros de Elmo
à vida nua. Se ele fala a uma cabra ou compara sua mulher a diversos
Pagliarani, Giancarlo Majorino e Sanguineti, .[a v;la ;rz peru;,de Giudici,
animais, está muito próximo do radicalismo provocador
Nel mcLgma, àe \.uEx, ltseme deLpiangeíe e o Concedo det victggiataTe cerimo-
/z;oso,de Giorgio Caproni. E, finalmente, os livros de dois poetas conside-
ou de Ungaretti. Vai até além, ou mais fundo. Justamenteporque a nada se propõe: não trabalha para o público, não calcula os efeitos. Sua lim-
rados meio anómalos, como Elsa Morante e Franco Fortim.
pidez comunicativa não está a serviço da comunicação, masda realidade
i\z
Quando nmcem ospoe
modernos na Itália
de Palazzeschi
ii3
a ser desvelada.É o chamadolirismo antilírico, que tem seu ponto de
Certo per lui grarLde ventura à queLlo
encontro, senão de elaboração, na revista more;em relação aos expres-
cheper me, peTun mio pensiero, à stra+o=
sionistas da moca,Saba está à margem, é diferente, mas ele também faz
cheFlor si chiedapeTchàlo vuol bello
prosa em versos.
di pinguedine, e ilpiii pmciuto e sa +o,
Desde o início, tive em mente três textos extraordinários, todos justamente publicados na more-- textos de uma elementaridade quase indecente.
Lçtmusaia che scaccia iLpovereLto;
ch'egti, comeogni vila, ignora a cosa
Cito-os só agora, ainda que eles me tenham guiado obscuramente desde o
poi gioverà quando safa perfeito.
início. Se os tivesse apresentadona abertura, deveria também comenta-los.
Ma io, se riguardartdo in tui mi mento,
No entanto, o que eu quis até agora foi simplesmente abrir espaço a eles.
io sentoneLLesue carneit colteLLo,
Com certezaé possívelpartir de um texto. Mas também sepode chegar a
sentoquell'urro, quettçlspaventosa
um texto: usá-lo como fecho, e não como epígrafe. Como já disse, minha
querela, quando al gruppo un carte abbaia,
intenção é apologética ou puramente indicativa, ostensiva.
e Lamusaia ride dália sogli(L.
O primeiro é um poema de Sabapublicado pela moreem novembro de igiz
Solo in me menteun'impetuosa vogLh
(o último poeta a ser publicado, em agosto de igi6, será Vincenzo Car-
di piangere queLsuo beato mpettol'
darelli, não por acaso o fundador da Ro/zda:'). Entre os animais presentes
na obra de Saba,o que encontramosaqui é o menos conhecido e citado,
Na edição definitiva
o mais distantedos queridos,cancros e aéreospássaros:"ll maiale" [0
parte do grupo intitulado posteriormente Cba e campal/za).Sabatambém
porco]. Vejamos o que Sabatem coragem de pâr em decassílabos:
sabia censurar a ousadia de escrever poemas e versos feios. Na .çrorzae
do Ca/zÍon;ere (i945)
esse poema foi excluído
(fazia
cro/zíçor/a (i948) ele mesmo se pergunta, sem dar uma resposta clara, por La brada, $oí di sudiciume, à purcl
solo quantoitsuo istinto n'à a$bmato,
que motivos ele excluiu essepoema. No entanto ele cita (e dessemodo recupera) a longa estrofe central, observando que "talvez as outras duas
stritta come it bambim scutacciato,
não estivessem à altura desta"
se attontaxi da lui !a sua !ordura.
Como logo observou Giacomo Debenedeni em seu primeiro ensaio sobre Saga,"a música tem a função de ressaltar o valor daquilo que foi enunciado em
z3. Za Ronda foi uma dasrevistas literárias mais importantes do século xx na Itália, tendo sido publicada em Romã, de tgig a igz3. O grupo redacional contava com intelectuais im
portantescomo o poetaVincenzoCardarelli, o crítico Emilio Cecchie tinha como colaboradores externos os pintores Alberto Savinio, Carlo Carrá e Giorgio de Chirico entre outros. Destaca-seem particular pelo programa antiexperimental e antivanguardista proposto por
Cardarelli, a partir de igzo. O Futurismo, os futuristas e Marinetti sãoviolentamenteatacados, proclamando-se a absoluta independência da arte em relação à política e o retorno à tra-
de sorte,/ para mim, num lampejo, é sofrimento;/ não saber o porque de o querer forte/ e cheio de fartura, corpulento,/ a serva que escorraça o pobrezinho;/ ou que ele, como toda
diçãoliterária italiana, tendocomo modelo a prosade Leopardi, suapoéticado fragmento-
criatura,/ ignore o que será ao ser perfeito./ Mas se nele, ao olha-lo, me converto,/
Por outro lado, Za Ronda teve grande importância na divulgação da literatura estrangeira, principalmente da anglo-americana, publicando Robert Louis Stevenson, Herman Melville, Chersterton, Belloc, Shaw,Edgar Lee Masters, Hardy.[N.o.]
na sua carne a rasgadura,/ ouço o berro, o grunhido, o burburinho/ assustador,quando a
t\4 l
z4' "0 caldo, flor de podridão, é puro/ somente enquanto o instinto se contenta;/ grita como menino e se arrebenta/ sedele Ihe tiramos o monruro.// Aquilo que para ele é gran.
Quando
n
cem ospoetm modernos na itáíia
cachorro late,/ e a criada gargalha da soleira.// prantear o seubendito aspecto."]w.T.]
eu sinta
SÓem mim serpenteia essavontade/ de
palavras tão nuas".25E há "uma devoção séria e absorta pelos aspectosem que
Taxi, anima mh. Son questi i triste
o mundo se revela [-.]. Para Saba,o universo existe como dado", e ele "o aceita,
giorni in cui senla volontàsi vive,
nem mais nem menos, na medida dos próprios poderes de percepção".:'
i gioTni deLL'attesct disperata.
Essa percepção se torna possível devido a uma espécie de "homofo-
Come L'albedo ignttdo a melão inverno
nia" (como diria Giudici) entre língua comum e língua poética, de modo
che s'attíista aetta desertcl corte,
que em Saga ocorre uma coincidência entreproxa e can o. O ritmo confortante do decassílabo(um decassílabopobre, quase escolar) se torna o meio
io non credodi metterepià foglie e dtibito d'acerte messemai.
para a auto-revelação verbal da realidade, a fim de que os poderes de percepção do dado sejam mantidos em sua medida exata (nem dilatada, nem
.Andandoper la strada comisolo tTctla gente chem'una e non mi vede,
empobrecida). Debenedetti iniciava esseensaio sobre Sagacom uma aguda
mi pare d'essesda me stessoutente.
descrição do novo e muito diversificado clima poético estabelecidomais
E m' mcatco ad udire dov'à íesscc,
tarde, nos anos lg20: "Em nossaépoca, a poesia mais consciente parece ter
gosto dcttLe vitrine abbarbagliato
sido obrigada a mover-se a partir de um subentendido ou de uma cautela
e mi volto atfrmciare
de método; a assunçãolírica exclui a continuidade histórica, a série real das
Per ta Teced' un cantwtorie cinco
circunstâncias que constituem o destino humano do poeta", para chegar "a
per L'improviso tampo d'utta nuccl
um heróico e desesperadotecnicismo", a um mundo de "fatos que se tornam mitos (e falamos de mitos metafísicose abstratos)" e, finalmente, "a
mi sgoccioLan dagli occhi sciocche Lacrime
uma psicologia [...] estranha a qualquer circunstância empírica e reduzida a
Ché tlttta !a mia vila ê ne{ miei occhi;
matizes da alma cuJOsentido de conjunto se perdeu".:'
ovni cosa che passa La commuove
Como testemunho complementar, acrescento Pasolini, que define
d'ogni ganha.
mi s'accendonnegti occhicupidigie.
come debate vento un'actua morta
Saba "o mais difícil dos poetas contemporâneos" precisamente por tcr
lo son come uno specchiormsegnato
sido relegado por tanto tempo às margens, isolado pela predominância da
che ri$ette ogrti cosclper La via:
"obscuridadehermética".Além disso,ele considerao "período vociano" o mais alto da nossa literatura recente".28
in me stessonon guardo perché nuLLa vi tratarei. E veneta Lclsercl, neLmio Leito mi atenda tango come in una barcas
O segundo texto é de Sbarbaro, "L'attesa" [A esperai, publicado na moca em i6 de janeiro de igi3 e incluído em Pianos;mo, no ano seguinte.
zg' "Cala-te, alma minha. Eis aí os tristes/ dias em que sem vontade se vive,/ os dias da espera e do desespero'/ Como o galho despido a meio inverno/ que entristece no pátio desolado,/ não creio que terminem novas folhas/ eduvido jamais ter germinado./ Andando pela rua assimtão só/ entre agente que passae não me vê,/ parece que de mim me sinto ausente./ E me aperto es-
z5. G. Debenedetti, "La poesiadi Saba", in Sagaz'cnricí. Fama sen'e[igzg]. Veneza: Marsilio,
cutando onde há tumulto,/ aparvalhado paro nas vitrines/ e me viro ao rufar de qualquer saia./
i989,P.io5.
Pelotimbre de urn cego cantador,/ pelo súbito brilho de uma nuca,/ escorremde meusolhos
z6. Id.ibid.,pp. 93 e gi. z7. Id.ibid.,pp. 79-8o.
tolas lágrimas,/ acende-se em meus olhos a cobiça./ Pois toda minha vida está nos olhos:/ cada
z8. P.P. Paso]ini, "Saba: per i shot settent'anni" [i954], in Ftziizone e zdeoZay;a6z948-zgJ8y.
conformado/ que refere cada ângulo da rua:/ a mim mesmo não mero porque nada/ encontra-
OP. cit., PP. 33i, 335.
ria. E quandoa noite desceà minha cama,/ me estendo,largo, como numa cova."]N.T.]
l \6
Qt ando nascem ospoetas modernasna Itátla
coisa passageira a comove/ como a brisa que agita a água morta./ Eu sou como um espelho
ii7
Trata-se de um poema de precisão clínica. Estamos nos antípodas de Saba.
ma nei ràntoli gon$
Lá, uma incoercível identificação carnal com o bicho abençoado que ignora
sicrolla fumada e viene
seu destino. Aqui, um processo de desmaterialização do sujeito, uma redu-
annu'an.lo con fascina orribiLe
ção do eu a uma entidadeincorpórea: paralisiaou volatilização dasfaculda-
la macchina ad aggiogarti.
des vitais ativas. E a identificação é com a árvore ressecadapelo gelo. A dis-
rica daltuo spaTm wsorto
sociação das manifestações de emotividade faz que a avidez e as lágrimas
aLL'mpro ruLLared'acetato
não pertençam mais a quem as exprime, estranho ao mundo e a si mesmo.
al trabatqartte stridere dei freni,
De novo, a mesma coragem desarmada e uma espécie de canhestro des-
incatenato net gregge
pudor. A métrica se distende até desaparecernum ritmo que embala o puro
peT I'immutabile
enunciado(decassílabos como "; pior/zí deZZizrfeiadhperaza", "aMandoper Za
del continuo aperto cammino:
errada comisolo" etc. despem a poesia da idéia de poesia). Como se Sbarbaro
e trmcinato tramarüi
desatasseainda mais o ritmo do decassílabo solto, empurrando Leopardo mais
e irrigüito
para frente, em direção à atonia e ao incolor. A verdade que se revela é deso-
le crime forte inespresse
lada transparência e insubsistência lutuosa do eu. Mas com o subentendido de
su. ru,ote 'ytctne e rotate
que a verdade se manifesta na extinção do eu, na sua redução a vidro ou espe-
incongiungibiti
lho, a uma cavidade perfeitamente acolhedora("lrz meizeiso mn güarz/operréá
solto it fiel che bal@no
,za/Za/v/ noyerez"). A reversibilidade ou o espelhamento entre verdade e tênue
neltabirinto dei gioTni
horror, revelação da vida e diminuição da vida, fazem dos poemas de P/a-
nel Lítio deite stagioni
rzürz/nouma espéciede "grau zero" da linguagem poética novecentista: estilo
contra la noict sguin qaglict L'etern.o,
realmente estéril, sobre o qual teria sido impossível construir uma tendência.
verso t'amorfa pertugia L'esteio,
Legue
rattieni
e oppTesse,
: '\on madre e vorrebbe, e Flor l,ive e voríebbe;
O terceiro texto, publicado pela moreem i2 de junho de igi3, é de Rebora.
merttre la terra gLI chiede iLsuo verbo
Mais um exemplo de estilo da percepção intensiâcada até a revelação. O
e appmsionata nel voLere ctceTbo
irzczpzlparecemais tradicional, é um vocativo. Mas a escritura de Rebora
paga coLsmgw, sola, la suafede?'
é construída a partir de contínuas hipertensões e futuras, repuxos e choques sonoros e semânticos. Se Sbarbaro pode evocar certos momentos de assombrosa passividade de Trakl, Rebora está mais próximo ao expressio-
3o. "Ó vagão vazio sobre o trilho morto,/ eis a mercadoria de entrechoques/ e baques
nismo de Heym: "caos em fermentação" e "forma concisa", como já foi
Cheio agorapesos/ sobre traves tensas;/ mas em roucos arranques/ desloca-sefumegante e
notado, além de estridores e asperezas:
vem/ farejando com tétrico brilho/
a máquina a subjugar-te./
Partes de [eu ponto absorto/
e vais no áspero rolar do aço/ sacolejando ao atrito dos freios,/ encadeado ao rebanho/ por urna lei sem tamanho/ que mantém aberto o caminho:/ e arrastado transportas/ e
O carro vulto su! binário morto, Becoper te [a mercê rude d'uni e tona. GTavido ora pedi sui telas temi;
L\% Quando n
cem os poeta modernos na !táiia
enrijecido não soltas/ as forças inexprimidas/ nas rodas parelhas e linhas/ inconjugáveis
e oprimidas/ sob o céuque extravagante/ no labirinto dos dias/ no oscilar dasestações/ contra o tédio desataa eternidade,/ rumo ao amor perfura o espaçoextenso,/ e não morre e queria, e não vive e queria,/ enquanto a terra Ihe pede o seu verbo/ e apaixonada no querer
acerbo/ paga com sangue, sozinha, suacrença." [N.T.]
ii9
Rebora congestiona expressionisticamente:violentas rimas empare-
indivíduos mutilados pela própria solidão, ou então ímpetos coletivos de
lhadasque martelam, repentinasinflexões do verso que se torna de uma
integração moral no mundo moderno, os quais, no entanto, estão fadados
eloquência alucinada e dramática (dois decassílabosno início e uma série
ao fracasso,depois de terem pagado o preço inútil do sangue.
cerradano final, apenasinterrompida por um angustiantesenárioduplo: ".E
Quis aqui celebrar os poetas dos anos 8o do século xix. Mas, ao recor.
,zon mz'ore e porreóóe, e non / e e orreóóe"). Ele tenta animar com alegorias
dá-los, não posso omitir o que eles nos disseram, ou seja, que o advento da
morais a matéria inanimada, lotando a poesia de formas verbais incomuns
Modernidade, em pelo menos um de seus numerosos episódios, mais que
e muito dinâmicas. A modernidade se revela como inquietude da matéria,
uma festa libertária, foi um luto.
luta entre matéria e espírito, drama onipresente da encarnação,como se nos encontrássemossempre num estado pré-natal ou pré-agónico, segundo
a idéia de uma contínua proximidade entre morte e renascimento.Se em Sbarbaro a condição de revelaçãoda verdade estána inércia da no/zznlm, em Rebora a verdade só pode desencadear-sepor uma tensão extrema de cerradas forças não expressas", a ponto de explodir. O destino humano
é alegorizado no "carro vazo/oizz/ ó;nado morro", enlatado na impiedosa locomotiva, e depois, quase inadvertidamente, na relação entre um "clero óaZÍâno" (imprevisível,
caprichoso) e uma terra que "paga co/ s'zngüe, ioga,
Zaizz.z$ede".Aqui o estilo da modernidade é dado como vórtice ideológico
(alimentado por neo-idealismo,moralismo, socialismo) e vórtice material (realidade urbana e industrial). Também nessecaso, a revelação da realidade se apresenta como irredutível a termos estéticos. O trauma não parece
absorvíve[ nem traduzíve] em um programa meramente literário.
Talvez seja inútil repeti-lo. Mas é impossível não o fazer. Nos anos lg20) Sbarbaro e Rebora saemde cena e entram definitivamente na sombra. Rebora se converte à fé católica, apaga o seu passadoe, em i936, se ordena sacerdote. Sbarbaro vive recluso, dando aulas de grego e se dedicando ao estudo dosliquens. Por sua vez, a vitalidade e a longevidade criativa de Saba atravessam
toda a primeira metade do século. Sua capacidadede identiâcação com todos os aspectos da vida vivida e a sua piedade criatural talvez já fossem um
prenúncio disso. Um poema como "ll maiale" (se acreditássemosem poder profético ou em um comportamento alegórico do inconsciente que se manifesta na poesia) poderia fazer pensar nos massacresaos quais a Europa es-
tava sepreparandocom a Primeira.Guerra Mundial. Ao passoque o estado de espera desalentado ou tenso que lemos em Sbarbaro e Rebora vê apenas 121
IZO
Quando nascem os poeta modernos na Itáíia
Quatro tipos de obscuridade
l J.i«
Logo após minha formatura, uns vinte anos atrás, ensineilíngua italiana a um grupo de empregados e funcionários da Câmara de Comércio da Ale-
manhaOriental, em Romã. Certa manhã,para quebrar um pouco a monotonia, propus a eles um brevíssima poema de Brecht. A proposta era ler o texto alemãoe tentar traduzi-lo para o italiano, confrontando em seguida
as diversastraduçõescom uma tradução italiana do autor, a de Fortim. Como exercício, a operação era didaticamente duvidosa, mas eu estava curioso a respeito das reações à leitura, queria saber quanto eles conheciam de Brecht, o que pensavam dele. No fundo, ao propor aqueles poucos
versos, achava que estava sendo simpático por me mostrar empenhado e envolvido numa parte relevante da cultura literária e marxista de seu país Na condição de comunista coerente, Brecha optou por viver na República
DemocráticaAlemã depoisda guerra, em Berlim oriental. Não escolherao ocidente capitalista, preferira trabalhar com o Berliner Ensemble em terra
de comunistas,onde, pelo menosem teoria, o proletariado e o materialismo dialético estavamno poder. Grande parte de sua obra
não só teatral,
mastambémpoética fora escrita para os de baixo, para "libertar os oprimidos" das mentiras, inclusive estéticas,propagandeadas pelos opressores.
E o método materialista e dialético se tornara a bandeira de Brecht, um método que havia modelado seu estilo.
Assim, sem perceber imprudentemente uma série de episódios que tinham tornado difíceis as relaçõesde Brecht com Walter Ulbricht e a burocracia do partido, submeti àqueles funcionários alemães-orientaisum poemeto do famoso poeta comunista. Porém, "na escola não se faz política",
e eu não queria ser indiscreto propondo versos de assunto declaradamente iz3
político ou ideológico. Então escolhium daquelesmicroidílios dialéticosem
é bastante claro diante da desconfiança. O ato de entender demanda uma
que Brecht faz o papel do sábio chinês e tenta ensinar que "a verdade é con-
aceitação implícita: se esta não existe, nenhuma clareza será suâcientemente
creta" (princípio hegeliano-marxista ao qual eu era muito afeiçoado). Mas não tinha sido uma escolha calculada. Precisava sobretudo de um brevíssi-
clara. Como explicou Cesare Cases,a estéticateatral de Brecht era vista com
mo texto que servissede teste e que fosse claro, de compreensão imediata:
volvimento, talvez polêmico, da arte vanguardista e experimental dos anos
desconâança,na medida em que se apresentava como continuação e desenlg20; com os expurgos dos anos t93o, Stalin havia decapitado não só o partido
Das kteine Haa.suntar Bãume am See
bolchevique, mas também toda a cultura artística que cora simpatizante da
von Dach steigt Rauch.
revolução ou que se enganaranela. Brecht não era bem aceito pelo regime de Ulbricht. Isso era sabido até nas Câmaras de Comércio.
Fehtte er wie trostlos dana wãren
São notórios os desesperados esforços que Maiakóvski fez nos últimos anos
Hau.s, Btiume und See.
de vida para ser aceito
( ':o« R-'À " y
antes que ser entendido
pelo público da revolu
ção. Em um texto de igz8, ou seja, dois anos antes do suicídio, Maiakóvski precisou lançar mão de todo o seu sarcasmo, gritando:
No fundo, um quadrinho ediâcante. Usando um expediente mínimo de reticência alusiva, o autor declara o próprio apegoou até amor pelo gênero humano: a afeição física e moral pela presença dos moradores da casinha, presençaindicada inequivocamente pelo fio de fumaça que sobe do telhado. Os cinco funcionários e empregados, três homens e duas mulheres, alguns
já velhos, outros ainda jovens, leram essesversos e se mostraram bastante per-
Eu nuncavi alguémvangloriar-semsim: Como sou inteligente
não compreendo a aritmética,
nem ofrancês, nem
a gramática! Mm o grito alegre: ;Eu não compreendo os futurbtm"
ressoa há quinze anos, extingue-se
plexos. Não entendiam. Reli os versos. Faces impenetráveis, meio entediadas,
para em seguida crescer no'parente, mab excitado e jubilosa do que nunca.
meio irritadas. Eu não podia começar a exp#car o que o poema gzzenadzÍer. Tor-
Com este grito, houve gente que fe{ carreira, recolheu furados e msumiu a
nar a mensagem mais explícita do que aquela simples imagem, uma mensagem
Liderança de correntes titerárim.
{ão clara e atébanal, seria quase ofensivo. No entanto era evidente que eles não
Se todct a msim chamadcl arte de esquerda se comtíuísse com o simples cál-
entendiam. Depois de um tempo, o mais velho e confiante do grupo sedecidiu:
culo de não sercompreemíveLa ninguém ('exorcismos,números etcJ, não seria
Não entendo. Não seentende o que quer dizer. Nunca se entende com clareza o
di$cit compreenclê-ta ecoloca-tano devHo lugar históricoe Literário.\. . .À
que Brechaquer dizer. É um poeta. Os poetas são difíceis de entender-.'
Os outros estavamde acordo e aprovaram o diagnóstico, semacrescentar outras explicações.Para mim foi um duro golpe. Compreendi que nada
O que se vê édemagogia
e especulação com o que não se compreendeu.
\. . .À
Será que o caráter de massçl que tinha outrora o "PcLdTe Nosso" justi$ccl o $e11direito à existência?
O caraier de ma.ssadeve ser o coroameaio de nossa luta, e não a camisa
:om a qual nmcem osfelizes livros de algum génio literário. i. .B. BrecÁr. Poeizee carzÍoni, org. R. Leiser e F. Fortim. Turim: Einaudi, i959.["A
fumaça'
'A pequena casa entre árvores no lago./ Do telhado sobe fumaça/ Sem ela/ Quão tristes seriam/ Casa, árvores e lago." in .Berro/fBrecÀf. doem Souza. São Paulo: 34, zoom p. 33o. [N.T.]
LZA Quatrotipos de obscuridade
6zgz3-zg5ã9,trad. Paulo César de
Épreciso saber organizar a compree'l'ibiLidade de um Livro. \. . .À
Osprimeiros leitores de Púchkin filiam: Não sepode lev essePúchkin, eLefaX.doer u maçãs do rosto
125
''l compíeemibilidade geral de Púchkin seria o coroamentode uma repetição de coT, durante cem anos:
economia magistralmente descritos por Joseph Roth Já em lg26, em seus artigos enviados da Rússia para o /'ran/[$urzerZezrzz/zg: "Das ruínas do ca pitalismo derrotado estásurgindo o novo burguês, o homem da UEP[...] O
Brecht e Maiakóvski, que foram os mais originais, coerentes e combativos
novo burguês é um burguês revolucionário [...] alé ma/r levo/üc;o/zár;a da
poetas simultaneamente marxistas e vanguardistas, eram modernizadores
gue o open'ír;o-- porque tem a mais a sede de vingança".'
da linguagem poética. Para eles (como também para os bolcheviques), a revolução era modernização libertária, modernização de esquerda, em
Em suma, a moral da história é justamente esta: clareza e obscuridade são
favor das massasoprimidas. Sualinguagem poética pretendia, por um lado,
conceitos relativos. SÓse é claro ou obscuro para alguém, para um público
interromper e sabotar a tradição lírica, por outro, olhar de frente um público
determinado, com suas competências literárias e expectativas, como diriam
e um destinatário novos: levar em conta sua situação, sua exigência de luta,
os teóricos da recepção. Quanto às características exclusivamente textuais,
seuponto de vista específico,suasnecessidades culturais. Eles queriam
clareza e obscuridade não têm muita consistência. Não são qualidades intrin-
fazer uma arte de vanguarda, mas também uma arte crítica das vanguar-
secamente estáveis. A obscuridade de que a arte moderna
das irracionalistas, individualistas, burguesas. Brecht entende os textos
música e às vezes até o cinema e o romance mais experimentais
poéticos como utensílios, armas a serem empunhadas. Maiakóvski, cubo-
por décadas,até pouco tempo atrás, não era tanto uma característica de tex-
futurista e marxista, compara a poesia a uma indústria, diz que ela é a seu
tos e obras, mas uma qualidade indiferenciada e atribuída de fora, um julga-
poesia, pintura, foi acusada
modo uma indústria, com processosprodutivos e finalidades sociais (ele
mento globalmente negativo do público burguês e da crítica dita acadêmica.
elabora a idéia de "mandato social": em cada momento particular, depois
Os artistas com sua linguagem e os poetas com seus sonhos e verdades não se
de tcr acumulado matéria-prima e obtido os meios de produção, o poeta
comunicavam mais ou já não se comunicavam o suâciente com a maior parte
deve identificar o problema social para cuja formulação e solução a obra de
de sua própria classe. Nem sequer com os sonhos e as verdades do setor
arte é necessária ou útil).
intelectual de que faziam parte (de modo conflituoso e infeliz) e do qual pro-
No entanto, apesar disso e malgrado os seusesforços de modernização e de clareza
e embora se sirvam da linguagem poética como de um
instrumento funcional, apto a produzir sobretudo ates comunicativos , o seu êxito, como se vê especialmenteno casode Maiakóvski, foi parcial.
cediam. A obscuridade era o resultado de uma comunicação interrompida ou perturbada. Isolamento, secessão,extravagância e provocação por parte dos artistas. Desconfiança e recusa por parte de um público que começara a considerar a arte do presente como um corpo estranho.
Eles não tinham nada a ver com o filisteísmo burguês, com o tradicionalis-
Esse fenómeno é o resultado de uma história bastante longa e com-
mo acadêmico e bem-comportado, segundo os quais a arte é um processo
plicada. Para passa-la em revista ainda que rapidamente, seria necessário
já concluído no passado,e o presente de toda arte é supérfluo: deviam lutar
escrever um livro, e não poucaspáginas. Ou talvez vários livros. Porque, se
contra a "nova classe" revolucionária no poder, contra a pequenaburgue-
é verdade que podemos considerar a experiência da poesia moderna como
sia de empregadosdo Estado,de funcionários do partido e burocratas da
um processo unitário, com suas fases, seu percurso, suas etapas, seus arranques sem volta, sua ânsia típica de auto-superação progressiva em direção a um futuro devorador do presente, também é verdade que o processo da poe-
z. V. Maiakóvski, "Gli operai e i contadini non vi comprendono"]tgz8], in Come#ar verei.
Roma=Riuniti, ig61, pp. 6g, 7z e 73 [Trad. Bons Schnaiderman,"Operários e camponeses não compreendem o que você diz", in Bons Schnaiderman, H/oéz;ca de .44alató sÉÍ. São Paulo: Perspectiva, i97i) pp. 22g 3z.].
iZ6 l
Qua ro tipos de obscu idcüe
sia moderna não é uma rua de mão única. Foram sobretudo as vanguardas 3. J. Roth, }'7aggzo;n Raiz'a [igz6-ígz8]. Melão:Adelphi, tg8i, pp. 5i-S3 127
organizadas, de grupo, que elaboraram e radicalizaram de modo combativo
lhos!"
uma idéia ascética e progressista da arte e da literatura modernas.
cla poesia fosse fa {er-se entender" .~
. EMontate,
mcLis seco: "Ninguém
escreveria
versos se o probLemcl
Não existe apenas uma linguagem planetária e cosmopolita da poesia moderna. Existem ainda os diversos "dialetos" e as línguas locais. Toda li-
A essasérie de verdadeiras epígrafes a seu estudo, Friedrich acrescenta
teratura nacional foi isso também, com seusepisódios de adequaçãosem re-
alguns enunciados que já contêm o sentido do livro:
servas aos imperativos da modernidade (quaisquer que sejam as chamadas
pontas de lança da pesquisa internacional: simbolismo ou futurismo ou sur-
Para quem tem boa vontçtde, não se pode aconselhar outra coisçt senão
realismo e, nos paísesde língua inglesa, Pound, Eliot e sucessores.Ou, para
habituctr o oLhcLr a essclobscuridade que recobrea Lírica moderna. Em
a poesia enganadae política, Neruda e Brecht, por exemplo, em diferentes
todçtparte obter'palmos,nelct, uma tendência a manter-se o mais distante
áreas de influência).
possível da comunicação de conteúdos unívocas. .4 poesia' quer ser um todo
Mas ao lado desse fenómeno de cosmopolitismo
das ten-
dências "avançadas", houve resistências e reações locais. Tradicionalismos
auto su#ciente. \...À Quando a poesia moderna seaproxima de realidades
e neoclassicismos,ou mistura de inovação e tradição: quase em toda parte,
coisa ou homens--, não as tra a de modo descritivo, nem com o calor
masespecialmentena Espanhae na América Latina (Lorca, Vallejo), na Rús-
da fcLmiLiaridcLde do ver e do ouvir; transporta'ctsparcaa esfera da não-
sia, Hungria etc. Isso é ainda mais evidente quando se pensa em outras artes,
famitiar, do estranho, da deformidade. .4 poesia jú não quer ser medida
como pintura e música: com lgor Stravinski e Béla Bártok ou Manuel de Falla,
por CLquilo que comumente se chçLma realidade,
Sergei Prokoâev Picasso, Mare Chagall, Juan Miró. No século xx, o substra-
LançamentopaTct a sua Liberdade
to nacional gerou freqüentementeuma espéciede bilingüismo estético.
realidade é desvinculado da ordem espacial, temporal, abietiva e espiri-
Por isso, enfrentar o problema da obscuridadeimplicaria, em geral,
ainda que
como base de
«ssuma em sl alguns resíduos desta. A
tual. \..l\ Dos três comportamentospossíveisda Lírica
sentir, observar,
reexaminar os inumeráveis territórios e casos da arte moderna. O empreen-
Eram.segurar--,é esteÚltimo quepredomina nclpoesict moderncl, tanto na
dimento mais afortunado nessesentido foi o de Hugo Friedrich, há cerca
visão do mundo quanto ncl Linguagem.Segundouma definição hcLurida
de trinta anos. ao tentar reconstruir sob as diversas variedades uma mais
da poesia românticct qe eTroneamente generaLiladah, a lírica é considera-
profunda "estrutura da lírica moderna". Não por acaso,a generalidade de
da muitas veresa Língua do sentimento, da alma individual. O conceito
sua abordagem identificava a obscuridade como um dado de evidência ime-
de sentimento implica a ideia de uma distensão mediante a entradct em
diata: "A lírica européia do século xx não é facilmente acessível.Fala por
um ambiente espiritucLLque até o mais solitário dos homens compartilha
meio de enigmas e obscuridades". E mais adiante:
com todos àqueles que sabem sentir. É preciscLmenteessa "fcLciLidcLde" comunicativa que é deixctdçt de Ladopela poesiçt moderna. Eta prescin-
]'rata-se de umcl obscuridadede princípio. Já BcLudeLaire escrevia:"Hâ
de da humanidadeno sentido tíadiciortal, assimcomoda "experiência
uma certa glória em não ser compreendido". Pata Bens, poetar signiF-
vivida",
ca "elevar as coisasfurLdamentais à linguagem do incompreensível, dedi-
não participa de sua representaçãocomo indivíduo priv'zdo, mas como
car-se Q coisa que merecem estar CLquémdo entendimento de todos". Em
inteligêncicl poetante, cama "operador"
do sentimento e muitas vedes CLtédo Eu pessoal do poeta. Este
da LingucLgem, como artista que
tom extático, Saint-John Pensedirige-se aopoeta: "Bilíngue entre coisas duplamente aguda, tu mesmo uma tuta entre tudo aquilo que tuta, fala rla ambigilidade como alguém que seperdeu na batalha entre mu e espi'
4. H. Friedrich, Za Ifrüflüra dela anca moderna[ig66]. Milho: Garzanti, lg83, p. i4 [ed boas.l Estrutura da !trica moderna
Da metade do séculoxlx a meadosdo séctLloxx. \!aa. }Áall
seM. Curioni. SãoPaulo; Duas Cidades,i99i].
lz%
Quauo tipos de obscuridade
iz9
!xercitcl os fitos metamodoseadores de sua fantmicl imperiosa
irreal modo de ver
ou do seu
sobre uma mCLtériaqualquer, pobre de signi$cado
z/zerenfe. [.. .] "Senrz mento?
.N]ão ren,6o ne,:Áu«z ie,'f;""caro
'] conÓeiia
Gottfried Bens b
dos autores. Ali onde o leitor é tudo, o RutOr desaparece, e a própria obra,
maisque aberta, pode ser definida como supérflua. Ler um texto que se autocancela não é uma aventura ascética e chocante, mas impossível ou inútil.
Esse modo de apresentar as coisas pode parecer excessivo, mas só para quem nunca tenha topado com "obras abertas" e textos de poesia ou de prosa
Seria o caso de reler essapágina de Friedrich. Em sua clareza e, às vezes, simplificação digna de um manual, o livro de Friedrich é o ponto final de
uma lenta aquisição e sistematizaçãodo princípio da modernidade. Mais
informal produzidos na França, Itália e Alemanha entre o final dos anos i95a e os primeiros anos da década de ig6o. (Os Novíssimos na Itália, os poetas da
Ze/ Qzze/na França, Helmut Heissenbüttel e seus seguidores na área alemã).
ainda que em outros livros que o precederam, talvez mais geniais (como os de Edmund Wilson, Albert Béguin ou Marcel Raymond), no de Frie-
Uma antologia notável e prestigiosa da poesia italiana do século xx, publica-
drich a explicaçãoda obscuridademoderna setorna conciliação.O conflito
autoresque deveriam representaro vértice das pesquisasformais de todo um
é sanado. O escândalo, superado. A modernidade, definida como obscuridade e ingovernável polivalência semântica, se transforma, desde então. em selo de qualidade, garantia formal e ]argão da modernidade.
Se a poesia
da em ig6g
refiro-me à de Edoardo Sanguineti' --, terminava com textos de
século e que assumiam o princípio da obscuridade como dogma a ser aplica-
do de modo escolásticocom uma sistematicidadesinistra ou eufórica. As novas vanguardas trabalhavam na consolidação teórica da estética
moderna nos oferece um exemplo de linguagem totalmente fechada em si
da modernidade. O risco de pesquisae experimentação era apenasaparente,
mesma, cuja mensagem não é comparável a nenhum dado da experiência
visto que em sua maioria os textos literários queriam ser a tradução de teorias
empírica nem do autor nem do leitor, então essalinguagem não é apenas
estéticasjá formuladas. Justamentepor ser obscuro, o escritor experimental e
sintoma ou denúncia de um estado de estranhamento individual e histórica
de vanguarda tinha a certeza de mover-se no bojo da modernidade. Críticos
que não cabe aos autores resolver. A impenetrabilidade e a intraduzibili-
e teóricos já estavam preparados para explicar que o inexplicável, isto é, a
dade da manada "lírica moderna", sua natureza, por assim dizer, meteórica,
inesgotávelpolivalência do texto, era tudo o que sedevia esperarde um texto
desumana(extra-humana ou super-humana), torna-se, ao contrário, um
literário moderno. E o aparato interpretativo se desenvolvia sem limites jus-
resultado positivo. Os procedimentos de estilização abstrata se constituem
tamente para Justificar a desaparição de enunciados interpretáveis nos textos
em mecanismospara produzir e reproduzir objetostextuaisque se legitimam graças à própria impenetrabilidade.
O máximo de abstração e de esvaziamento semântico do texto chegará a ser interpretado(como
É a partir desseponto final da parábola que podemosreconsiderar as diversas razões e vicissitudes da obscuridade. Seguirei apenas alguns fios
fará Umberto Eco em sua Obra aóerfa) como o
da trama. Não posso fingir que possuo as competências de um compara
máximo de liberdade concedida ao leitor, o ápice de participação criativa do
tisna, as quais seriam desejáveis. Por isso mencionarei de passagem poetas e
assim chamado receptor. Nada a objetar: quando um texto literário busca a
obras muito conhecidos, diria até proverbiais. Mas tentarei sobretudo arris-
originalidade no vazio, ele só pode aspirar a ser preenchido pela imaginação
car algumas hipóteses gerais.
(por assim dizer criativa) de quem o lê. No entanto, chegados a este ponto, o
próprio conceito de literatura se anula. O resultadoé óbvio: ao máximo de criatividade solicitada aos leitores corresponderáum mínimo de criatividade 5. Id.ibid.,pp.i4-i5
L3o
Quatro tios
de obscuridade
Sobre a obscuridade, tenho em mente duas hipóteses. A primeira, mui to realista e honesta, mas também bastante incomoda, é que cada poeta é obs-
curo (e claro) a seumodo, segundoa própria história criativa e o êxito com 6. Cf. Poesiai a/ia a de/.Azovecenlo, org. Edoardo Sanguineti. Turim: Einaudi, ig6g
os leitores o que, conseqüentemente,resultaria em tantos tipos de obscuri-
salismoidealistase torna oratória, oâcialidade, fanfarra, hipocrisia. Entre
dade quantos são os autores. Por enquanto, sou forçado a deixar essa tese de
todas as artes e gêneros literários, é sobretudo a poesia que reivindica ex-
lado. Ela implica uma estéticapluralista, a ser resolvida em monografias.
pel\ênc\asde singularidadee solidão.Opõe o mistério e a profundidadein-
A segundahipóteseé menostoralizadorae unificantedo que a de
sondável à racionalidade superâcial dos fatos (ou aos fatos racionalizados).
Friedrich, mais ramiâcada. Em relação à precedente, é com certcza mais
Tende aprovocarpolemicamenteno público burguês, leitor hipócrita, efei-
esquemática e arbitrária. Ainda precisa ser demonstrada, mas não me pa-
tos de choque não só estético, mas também moral, assim como reações de
rece desinteressante. É a hipótese de güa/ro Úo de oóxczzridade: em parte
desgosto e rejeição. Elabora, enfim, uma língua especial, privilegiada ou in-
presentes sincronicamente (dizem respeito a autores contemporâneos entre
tencionalmente doentia, que se distancia da língua instrumental e comuni-
si, mas que percorrem caminhos distintos), em parte dispostos em sucessão
cativa: uma língua mais pura, narcisicamente introvertida, fria e definitiva
diacrónica, até delinear ou sugerir uma progressão histórica ou, mais pre-
como uma lápide tumular, ou impenetrável como umlargão esotérico.
cisamente, atingir o crescimento involutivo
da obscuridade sobre si mesma)
tal como expus a propósito das neovanguardas.
AÍ estão,pois, os quatro tipos de obscuridade ou as quatro vias de uma obscuridade cada vez mais presente
que caracterizam a poesia mo-
derna. Não se trata mais, como no passado, de uma obscuridade acidental Do ponto de vista de qualquer estética idealista que faça coincidir idéia e
e sumária, como aquela mencionada por Horácio na .ZPúroZaaos Peões
realidade, racionalidade e história, a arte obscura é um contra-senso, porque, se é obscura, logo não é arte, e o problema da obscuridade é um falso
("óre ü eiie /adoro/ oósczzrm#o":tento ser breve/ e me torno incompreen-
problema. A obscuridade, desse ponto de vista, é apenas contingência e
tenta tornar sensível e racionalmente perceptível o mundo dos anjos e dos
aparência momentânea, destinada a resolver-se à luz da progressiva comu-
abençoados, o motor imóvel e a trindade divina. Não se trata sequer, não
nicação universal entre todos.
obstante algumas retomadas explícitas por parte de poetas novecentistas, da
A poesia moderna nasce, porém, justamente da recusa do otimismo
agudezametafórica de Góngora ou da argúcia intelectualista-sensorialde
idealista e histórico, da futura em relação a todo iluminismo, diante do
John Donne. Todos essesautores se tornarão modelos e profetas do funam-
qual encarna uma instância dialética: é um dos episódios em que o ilumi-
bulismo e do maneirismo estilístico do século xx. Pound, Eliot, Montale,
nismo tropeça e mostra sua parcialidade, sua impotência. Não só as luzes
Mandelstam e Auden se inspiram em Dance. O próprio Auden e Brecht
da razão não governam a realidade, mas tampouco dominam ou iluminam
apontam Horácio como modelo. Lorca escreveu sobre a atualidade de dom
inteiramente a própria razão. Nesse sentido, esconder-se em um ambiente
Luas de Góngora um de seus ensaios mais ambiciosos, e Leo Spitzer falou
velado pela obscuridade (ou seja, a não universalidade imediata da poesia)
de "conceptismo interior" a respeito da lírica de Pedra Salinas. Finalmente,
representaria aquilo que, na razão, escapaà racionalização.
os metafísicos ingleses são a maior referência de Eliot, a meio caminho
De fato, salvo exceçõesmicro e macroscópicas(por exemplo,Walt Whitman),
a poesia moderna se apresenta como poesia "sentimental",
re-
flexiva, arte crítica, que contém em si o princípio da própria autoconsciên-
entre Dante e o simbolismo francês. Mas todos essespoetas novecentistas apresentam tipos de obscuridade que oscilam entre a obscuridade mais tradicional e a mais tipicamente moderna.
cia histórica: uma arte que refuta e mina o otimismo histórico da razão
Nas formas da obscuridade moderna há algo de irredutível: um dissí-
iluminista e do universalismo burguês. Desenvolve-se no momento em que
dio que se reapresentacontinuamente e que força a linguagem poética sem-
a burguesia em ascensãose torna burguesia no poder, perdendo qualquer característica heróica, e no momento em que, por isso mesmo, o univer-
pre para aquém ou além da comunicação social predominante, rumo à uto-
i'b2. Quatro !silos de obsçuàdçtde l
sível); nem da densidade doutrinal de Dance, que, especialmenteno Parado,
pia ou ao silêncio, à afasia ou ao idioleto. Além disso, as várias tentativas de i33
estabilizar a instabilidade por meio de poéticas, programas, manifestos téc.
a experiência do indivíduo solitário e segregado em si mesmo só poderá
nacose procedimentos de composição (palavras em liberdade, montagem
ter uma relação difícil com a linguagem e as experiências da comunidade
de materiais, livre associação, escrita automática, técnicas de estranhamente
. sobretudo porque prescinde dela. O Canclone;rode Petrarca, que é a obra
etc.) fizeram a linguagem poética oscilar de um extremo de total liberdade
canónica da lírica européia até o barroco e depois, até as vésperas do ro-
aleatoriedade e Ãmard a um voluntarismo construtivista e à utopia de um
mantismo, nascede uma experiência de solidão insuperável, de sofrimento inconfessável. Trata-se de uma obra clandestina, apartada dos valores acei-
controle absoluto do processo criativo e dos efeitos sobre o leitor (veja-se J
a famosa /#Zoxo#a da coapoiz}.io de Edgar Allan Poe, protótipo teórico da
tos pela comunidadee pela própria consciência cultural e moral do autor.
racionalizaçãototal do processocompositivo).
É possível dizer que, com Petrarca, a poesia lírica encontra o seu cânone
f.
Desse modo, o espaço artístico se divide entre o território
da regres-
paradoxal na inconfessabilidade, na vergonha de uma obsessãoerótica in-
são mágica e o da modernização tecnológica. Os poetas tendem a se apresentar como magos ou engenheiros. Videntes, sacerdotes e herdeiros de
teiramente interiorizada, contemplativa, e mesmo assim culpável.
uma tradição oculta, ou filhos de um presenteirrefreável, voltado para o
ma em que a poesia nasce que a expõe ao perigo da obscuridade. Aquilo
futuro. Freqüentemente essasduas figuras contrapostas se sobrepõem ou
que Eliot chamou de "primeira voz" da poesia é a voz do poeta "que fala a
se alternam em um mesmo autor. E isso também ocorre, como já afirmei, em relação aos quatro tipos -- ou aos quatro caminhos de obscuridade:
si mesmo, ou seja, a ninguém".: E falar a ninguém quer dizer usar a lingua-
solidão, mistério,
provocação,
]argão.
Não obstante a limpidez da linguagem petrarquiana, é a situação mes-
gem sem nenhuma intenção comunicativa. Na linguagem do monólogo, a comunicação é secundária. O tipo de leitor idealmente subentendido é uma espéciede duplo do autor, um indivíduo a par dos pressupostos necessários
i. So#dão e súzgzzZar;Jade Nesta primeira categoria ainda estamos, por
para decifrar até a mais cifrada das mensagens.O leitor é uma testemunha
assimdizer, no limiar da obscuridade. A situação da se/zdâo,o aprofundamento na szrzgzz/andado da própria experiência, pode ter diversos efeitos
imaginária, uma imagem especulardo eu, um ideal do eu que permite a autovalorizaçãoestéticae moral do monólogo como examede consciência,
sobre a linguagem. O eu não é abolido, mas está só diante de si mesmo.
confissão, momento de verdade.
Mesmo na lírica clássica (basta pensar em Petrarca), singularidade e soli-
Nesse caso, a obscuridade lírica nasce.ou pode nascer da situação mo-
dão estão em primeiro plano. Em sua Exzéf;ca,Hegel define a poesia lírica
nológica, da singularidade. Aqui a obscuridadenão é um programa esti-
como o gênero de poesia cujo conteúdo pertence ao "sujeito singular", em
lístico, uma opção estética, mas apenas a outra face de uma autenticidade
quem se manifesta "a alma com seus julgamentos subjetivos, suasalegrias,
expressiva próxima à sinceridade do diário, perseguida em solidão, na dis-
seu espanto, sua dor". E toda a lírica ocidental,
tância objetiva do público e na recusaintencional de um público presente.
a partir
da grega, tem essas
características. Portanto, o gênero traz implícito um "princípio de particu-
larização,particularidade e singularidade".'
Assim, aquela arte "anacoreta" que, segundo Gottfried Benn, é a poesia lírica se torna obscura mesmo sem querer. Em Benn, a linguagem aspira
Até sobre o fundo de uma teoria da arte como momento do espírito
ao essencial, à expressão concentrada e densa, a uma forma fechada que a
absoluto, a poesia se especificana singularidade. Se não é de todo inefável,
preserve da contaminação (da ilusão) comunicativa. De fato, a linguagem lírica é, para Benn, guardiã daquilo que não pode ser comunicado ou que,
7. G.W.F. Hegel, Eirérzra [i836-í838], edição de N. Merker. Mi]ão: Feitrinelli, tg63, p i475 [ed. bus.: Curfoade exrárz'(a, trad. Marco Auréjio Werle e Oliver Tolle. 4 v. São Paulo:
Edusp,zoar-zoo5].
t'54
Quatro tios
de obscuridade
8. T.S. E]iot, "Le tre voa della poesia" [i953], in Sü/Zapoesia e iuz'roer;. Melão: Bompiani, l9609P.97.
i35
do ponto de vista da comunicação, não apresenta interesse. O discurso se
Providência, não são os nossos caminhos, nem os modelos que nós conce-
torna puntiforme: frases nominais, imagens que não se diluem numa orga-
bemos podem de algum modo medir-se com a vastidão, a profundidade e a
nicidade semântica, mas se mantêm irredutíveis e singulares.
incompreensibilidade de Suas obras [...]" (epígrafe ao conto).
Essaé a situaçãode Hamlet, oscilante,instável e destruidora de todo
Dessemomento em diante, pode-se dizer que a superfície dos fenó-
vínculo com o ambiente(de um lado, fala a si mesmo,de outro, fala por
menos deve necessariamente se tornar cada vez mais insigniâcante para
provocação, ângindo-se de louco). O movimento em direção à obscurida-
os poetas.O que todos vêem e conhecemnão vale mais a pena ser dito. A
de nascecom o estabelecimentode uma situação que poderíamos definir hamletiana e misantrópica da linguagem. Trata-se do aprofundamento da
poesia foge ao notório para proceder à exploração do ignoto. A Natureza se anima de "correspondências", cada aparência imediata remete a um além,
solidão e da singularidade individual. O solitário, diz Kierkegaard em seu
a uma izzóalanl;a que a iorfiçe e a óéfüe do burguês não intuem ou despre-
Z)z'ína, é como uma "bomba de sucção" sem a qual não se alcança a trans-
zam. Simbolismo e hermetismo nascem da emigração dos poetas para as
cendência. E é a passagem estreita que permite a separação do mundo em
terras do mistério. Na origem desse tipo de obscuridade estão o primeiro
nome da autenticidade interiorizada.
dos "Hinos à noite" de Novalis e o "Kublai
Khan" de Coleridge.
No escuro
Em poetas como Hõlderlin, Leopardo e Baudelaire, solidão e Singula-
sereencontra o sagrado e se renega a sociedade. Nas viagens mentais, sob o
ridade não chegam a produzir uma linguagem poética obscura em si mesma
efeito do ópio, vêem-se mundos de selvagem e paradisíaco esplendor, que
(exceto acidentalmente). Neles, a descobertalinguística da solidão ainda
deleitam e provocam arrepios.
ocorre, por assim dizer, à sombra de uma tradição que parece interromper-
Disso resulta que o universo visível não parecemais auto-suficiente.
se justamente naquele momento, no instante em que escrevem, mas na qual
Agora ele é o reino do impoético. Pode às vezes se tornar o trampolim para
eles cresceram. Diante deles se escancara pela primeira vez a insensatez das
o mergulho no ignoto. Mas, para falar do ignoto e do invisível, é necessária
próprias experiências e surge o absurdo (ou a loucura) de uma transcen-
uma linguagem diversa em relação à usual, da comunicação, ou à lingua-
dência de valores sem um conteúdo e um fim socialmente reconhecíveis. A
gem tradicional da poesia.
ressacado passado abandonou-os como destroços. Mas eles são ainda per-
Se os objetos singulares sensíveis comparecem, é para remeter a
sonagens de teatro clássico que, sozinhos em cena, parecem recitar pela última vez seu monólogo antes de se precipitar no Maelstrõm da obscuridade.
outra coisa, à profundidade e ao mistério que se abrem às suascostas, criando efeitos de vertigem. Os objetos se tornam símbolos,epifanias,
O sentido de suasvisões, apesarde claramente descritas, estava destinado a resultar incompreensível ou socialmente inaceitável.
manifestações momentâneas, inesperadas e radiantes de uma realidade que está além, atrás ou mais adiante. As imagens emergem da totalidade
ou da infinidade sem fundo de uma Natureza em vários aspectosdivina z. Prc?Óandidadee mü ár;o
Somente o indivíduo
singular em sua solidão
(e isso já ocorre em Hólderlin e em Leopardo). O que aparece está prestes
pode dirigir-se intencionalmente para a profundidade ou nela se precipitar
a desaparecer no escuro (no segundo dos "Quartetos"
acidentalmente,mergulhar no abismo, "no fundo do ignoto, para encon-
invocação ao escuro que tudo engole: " O dará, dará, maré..."). A "ária
trar algo novo" (Baudelaire). Como epígrafe a seu livro sobre Kierkegaard,
Adorno pâs uma citação da "Descida ao Maelstrõm", de E.A. Poe. A
do desaparecimento" torna instáveis as aparências do mundo, mina-lhe e corrói a consistência. O esplendor com que pode brilhar um ângulo de
;bomba de sucção" de que falava Kierkegaard, voltada para a transcendên-
paisagem se deve à iminência da profundidade
cia, torna-se, em Poe, uma espantosavoragem marinha que a tudo devora.
co importa) em que cada singularidade existente pode perder-se e perder
De fato, Poe sabe que "Os caminhos de Deus, tanto na Natureza quanto na
os seus contornos.
I'56
Quatro ! ocde obscuridade
de Eliot há uma
(Totalidade ou Nada, pou-
i37
É a essetipo que também pertence a obscuridade de Ungaretti(que, pouco a pouco, com O :en/;mento do fe/npo,torna-se a fonte e o modelo do
jargão hermético) E a essetipo pertence, pelo menos em parte, a inquie-
mente esseaspecto,Baudelaire não é apenas o mestre da perfeição formal, massobretudo um mestre da provocação: do ponto de vista estilístico, o que faz escola são os choques estético-morais que ele infiige ao leitor hipócrita.
tante ambigüidade irónica e zombeteira dos objetos surrealistas, das ima-
Quanto a outros aspectos construção retórica, andamento cerebral do dis-
gens fora de contexto, das aproximações aleatórias e provocadoras que irrompem das profundezas do inconsciente e tombam no nosso mundo como
curso, regularidade clássicada sintaxe e das estruturas métricas, teatralidade
mensagens desconcertantes do além, da soberana Supra-realidade que a realidade socialmente estabelecida não consegueprever nem dominar.
das cenografias e até um forte realismo (nos "Tableaux parisiens") --, Bau
delaire quase não deixou seguidores ou continuadores diretos. No século xx, a linguagem e o comportamento de vanguarda se ftln-
dam sobretudo na provocação.Quando Marinetti, Tzara e Breton escre 3. Pro ocafão A categoria da provocação pareceria remeter sobretudo ao
vem seus manifestos e suas receitas sobre como escrever um poema, eles
modo de ser e ao comportamento do poeta (óoÃémíe/z, maüd/f, escandaloso,
estãopondo em prática gestos provocatórios, de sabotadores da Arte, e não
ultrajante ou simplesmenteincompreendido, rebelde e, mais tarde, revolu-
propriamente prescrevendo ou ensinando alguma coisa. Numa declaração
cionário). Entretanto, comportamento e modo de ser do poeta passamlrapidamente a fazer parte da linguagem poética já com Baudelaire. A estética
coletiva de Tg25,os surrealistasdizem não ter nada a ver com a literatura, porque a utilizam apenascomo um meio. Para fazer o quê? Libertar o in-
do feio e o fascínio da corrupção, da deterioração, do horror, do vício, dos estados alterados e patológicos de consciência não criam, com Baudelaire,
consciente, subverter e escandalizar.
Até mesmo a busca do novo e da inovação constante é, antes de ser
apenasa personagem do poeta como dando, mas também determinam
pesquisa e exploração cognitiva por meio da linguagem, negação sistemá-
inteiramente o cenário e a linguagem das .libzzrTdu ma/.
tica do sensocomum, ofensaao bom sensoe à ponderação,rechaçodas
A primeira provocação Já estános títulos escolhidos: flores do mal,
idéias herdadas e da própria comunicação. Depois de Baudelaire e antes
paraísos artificiais. É a provocação como abordagem mais ou menos blas-
dasvanguardas,o maior provocador (inclusive no sentido de provocar a
fema do inabordável. Mais que uma obscuridadedevida à profundidade e ao mistério, às bizarrias criminosas do inconsciente, em Baudelaire há
linguagem a desvelar-se até o fundo, a vomitar a si mesma, a explodir) foi
Rimbaud. Mas o foi de um modo tão desesperadoe coerente que o forçou
um impulso para o escândalo,para a blasfémia. Gosto pelo demoníaco e pelo incomum, pela inversão dos valores. Toda a estética de Baudelaire
a sair de cena rapidamente, renunciando a escrever, afastando-se de todo
se funda no ódio pela burguesia que estáno poder, constituindo uma sé-
No caso da provocação, a obscuridade toma a forma da linguagem
rie bem organizada e coerente de provocações contra as idéias burguesas
do bem e do belo. O demonismo e o próprio cristianismo paradoxal de Baudelaire são antes de tudo provocações antileigas, antiliberais, antiprogressistas.O progresso não nos limpara do pecado original, não nos levará à libertação e à reintegração da inocência originária perdida. Ao contrário, o progresso é uma arte do demónio, que promete o meZÃor depreciando o óem. E com essasprovocações que Baudelaire pretende tornar-se inaceitável, incompreensível. Até o surgimento do surrealismo, que retomará metodica. 3R Quatro tipos de obscuridade
ambiente cultural e burguês suscetível ao escândalo.
inaceitável, do insulto ao público, da agressão e recusa da sociedade presen-
te -- e, quem sabe,da profecia ameaçadora de uma outra sociedade por vir. Para preparar o advento dessa sociedade, serão necessárias transformações
sociais catastróficas, redeânições daquilo que é o humano, interrupções do curso histórico.
A "subversãodo inconsciente" promovida pelos surrealistasquer provocar um choque ao mesmo tempo destrutivo e libertador(todas asvanguardas associamradicalmente criação livre e alegre destruição): éparerZei óozzrgeoú, adotar "modos agressivos, ofensivos e excêntricos" (como diz Charles i39
Russell em seu livro sobre a poesia moderna),' continua sendo fundamental
burguesa.Não só Baudelaire e Flaubert, sobre cuja indignação e melan-
até para Maiakóvski, que quer ser a todo custo mamista e político. Mesmo as-
colia antiburguesa se constrói a nova consciência do poeta e do narrador
pirando a obter o consensodos sovietese do partido, Maiakóvski não separa
moderno. Mas, já antesdeles, escritores políticos, moralistas e poetas como
jamais a revolução da provocação. A incompreensão que o novo público PÓs-
Herzen, Kierkegaard e Heine lamentaram e constataram a futura e a dis-
revolucionário e o partido comunista Ihe dedicarão tornará cada vez mais pe-
tância que em poucos anos se abriu -- após o fim da era napoleónica
nosas,ílustrantes e enfim dramáticas assuasvoluntariosas roizrn&spoéticas.
uma idéia da cultura e da arte mais heróica e aristocráticae a nova me-
entre
diocridade burguesa que reduz a si e aos próprios gostos, usa e falsifica a 4 /arg'2o
Quando a obscuridade, como característica geral, genérica e abs-
religião, a arte e a filosofa.
trata da poesia moderna, se torna jargão, isto é, língua especial e especiali-
A essaaltura, não só a inovação e a criatividade, mas também a pró-
zada, aceita enquanto tal no pluralismo das especializações culturais, então o
pria tradiçãocultural setorna um corpo estranho,objeto de museuou mer-
radicalismo estético moderno está acabado: já não surpreende nem escanda-
cadoria. Assim a linguagem das artes deve necessariamente se tornar, per
liza nem oferece um acréscimo de conhecimento, e o choque é assimilado.
se, estrangeira no novo mundo em que predomina o novo modelo de hu-
Ao falar de jargão, não me refiro aqui ao estilo alusivo, elíptico e se-
manidade: o burguês. A arte autêntica sente a necessidade de escapar numa
miprivado que freqüentemente encontramos em poetas como Montale e
linguagem separatista, semiclandestina, de seita, para iniciados. Nasce a
Auden (num divertido poema póstumo, em que Dylan Thomas ânge expli-
língua com que se fala de coisas que a norma burguesa ignora, teme, des-
car à sua tia o modo de escrever dos poetas, o estilo de Auden, então bas-
prezaou condena. Os poetas falam entre si, ou para um círculo diminuto.
tante em voga, é definido como "bate-papo em código", "codexcÃafrer").
A linguagem da busca pelo absoluto produz, em Mallarmé, um absoluto da
Esse tipo de jargão obscuro me parece mais ligado à adoção de sistemas
linguagem, uma linguagem-fortaleza, linguagem-prisão, uma fürrü eólzrnea.
culturais de referência usadospara conferir alguma consistênciaobjetiva
A língua da poesia se especializa. Cria um antimundo. Funciona como uma
à linguagem da livre imaginação: mitologias e filosofias reinterpretadas ou
máquina, procedendo a uma meticulosa abrasão de todo conceito, imagem
desencavadasaqui e acolá, combinadas de forma sincrética. É o que ocorre sobretudo em Eliot. Mas nessescasosjá há um impulso definível como antimoderno, um empuxo para a reconstrução de uma Tradição para além do moderno, uma intenção clássica ou neoclássica.
e valor herdados.O ato poético passaa ser culto e apologiade si mesmo. Desses pressupostos nasce uma obscuridade que poderíamos definir de "Sublime niilismo" Na escola de Mallarmé
ou seja, de Valéry até o hermetismo italiano,
O jargão de que fdo é, porém, o de uma modernidade não cansadade
a poesia pura espanhola (Jorge Guillén, Pedro Salinas) e outros --, cada
si mesma, isenta de autocrítica e ainda inteiramente confiante no progresso
composição poética deve pâr em cena momentos extremos, ápices de nega-
ininterrupto
ção e de pureza, uma tensãoascética orientada para o cancelamento daquilo
da inovação. No entanto, para explicar as raízes desse eenâmeno, é
preciso remontar ao momento em que a idéia da busca pelo novo se separa da cultura burguesa, agora transformada pela primeira vez em cultura dominante.
Vários autores de meadosdo século xix falam insistentemente. obsessivamente,do dissídio entre arte e burguesia, entre autenticidade e vida
que éconhecido e dado.
A influência dessapoética, dilatando-se teoricamente, chega atê a Nou-
velle Critique, a Barthese ao grupo de Ze/ Que.í.Até o informal e as neovanguardas (que já podem ser definidas pós-modernas), a intensificação da
engenhariaformal, o alto grau de opacidadedo medzzzm linguístico, que reg' Cf. C. Russell, Poelí, prc!#efíe nvo/qzanan'. Da Rlmóalzd az'/os modera;]ig85]. Turim:
Einaudi,ig8g.
i4o
Quatro tios de obscuridade
mete apenas a si mesmo, produz objetos ou entidades textuais semanticamente
esvaziadas,em que os princípios ativos da negação e da purificação devem i41
demonstrar ter atingido até o âmago,radicalmente,sua obra de cancelamento
Cidades visíveis na poesia moderna
do sujeito, do objeto, do tema, do contexto ede qualquer função da linguagem que não seja, para dizer com Jakobson, a função poética, a auto-referência. A arte poética tende a setornar uma arte sem leitores, uma arte literária
apenaspara escritores (e essateoria da linguagem poética e da "literariedade" também afetou amplamente, pelo menos na Europa, o romance e o antiromance). Trata-se substancialmente de um exercício de ascetismo antico;J
b.
municativo e anta-realista, no curso do qual (como escreveu Susan Sontag)
:o artista se purifica de si mesmo e, em última instância, da própria arte"."
Assim, essacrítica artística da ideologia burguesa da arte leva à eli-
Convém evocar de pronto, por diligência didática e intençãopropiciatória,
minação da idéia de obra, de arte e de obra de arte. Nesseponto, a arte
os dois heróis lendários e fundadores da poesia moderna, Charles Baude-
moderna se transforma em um jargão de puro especialismoestético, em que,
laire e Walt Whitman. Não é apenaspor convençãoe comodidadesimbó-
por princípio e de acordo com princípios teóricos, não se pode falar de nada.
lico-cronológica que suas obras poéticas são ritualmente citadas: eles dão,
A linguagem não é veículo, masobjeto obscuro,inquietante, misterioso e,
de fato, a idéia imediata da coisa de que se fala e assinalam a fronteira não
finalmente, ornamental: decoração do habitat cultural pós-moderno. Esse
só de uma época, mas também de um gênero.
jargão torna cada nova obra incomparável, por definição, a qualquer modelo da arte ocidental precedente, tradicional; e, dessemodo, obtém a vantagem
A partir da metade do século xix, a poesia moderna é certamente a
épocade um gênero:o gênerolírico. Masé tambémum gênero literário
fundamental de desarmar a crítica, vetando-lhe a possibilidade de qualquer
autónomo. Uma lírica que radicaliza e especializa o gênero lírico preceden-
confronto com obras do passado,às quais se atribuíam qualidade e valor.
te, forçando o monólogo e a audácia metafórica para as terras inóspitas de
Por outro lado, graças à mediação explicativa e legitimadora de uma
um solipsismo demoníaco, rumo à ÃWó/úde uma linguagem absoluta, ten-
nova crítica que é, simultaneamente, acadêmicae de vanguarda, a elabora-
dencialmente avessaa qualquer fluência comunicativa. Mas, por outro lado,
ção dessalinguagem poética transformada em jargão levou, com o passar
semquerer aqui discutir a relação entre uma "estrutura" ou Ão;rzéda poesia
do tempo, mas sobretudo depois da metadedo século xx, à formação de um
moderna e os muitos autores que deram voz, cada qual a seu modo, a uma
público de arte e de poesia modernas. Nasceu, então, um público novo. Nasceu o leitor que aceita a obscuridade, o leitor adestrado não só a não interpretar aquilo que lê, lutando com níveis diversos de obscuridade
situação comum, a poesia moderna também é confutação, dilatação e rede-
ânição radical dos limites de um gênero. Em parte, a linguagem poética da modernidade parece escapara toda contaminação, parece excluir a prosa, a
e clareza sempre presentes no texto, mas também um leitor adestrado, em
épica, a sátira, o dialogismo, o tecido lógico e a reflexão, confeccionando
certo sentido, a não ler, e sim a contemplar o objeto-linguagem, o texto
enigmas textuais perfeitamente estruturados por esvaziamento semântico.
obscuro ("aberto" a todas as interpretações), como um dado da natureza
Mas, por outra parte, apesar das típicas guinadas em sentido contrário, a
daquela "segunda natureza" cultural e onipresente, não importa se inex-
plicável, em cujo invólucro fomos amestradosa viver.
lírica modernafreqüentemente é antilírica:elimina o sujeito monologante e o distribui numa pluralidade de vozes, "descentra" o eu, engloba a prosa e todo tipo de material inerte, joga com o heterogêneo e o desaba.
io. S. Sontag, "L'estetica del silenzio", in /nierpreraizo/z;rende/zilaie.Z)odlcí em/ cu/ ra/z' [ig6g]. Turim: Einaudi, i975, p 7
LA2. Quatro tipos de obscul'id(üe
O fato é que essasaceleraçõescentrífugas ou centrípetasda linguagem poética têm transformado a poesia moderna em um gênero especial, i43
espéciede alegoria condensadada literatura em crise e da literatura que
antesdele (seria precisovoltar a Horácio e aos satíricoslatinos), Baude-
critica a si mesma. Dinamismos vertiginosos e inércias contemplativos são
laire é, como todos sabemos,o poeta da "Paris capital do século xlx", ou
outra polaridade bem conhecida,que opõe famílias de poetas,tendências militantes e até momentos distintos no interior de uma mesma obra. Os
seja, segundo a visão de Benjamin, o poeta da cidade moderna, do centro
dois nomes que evoquei há pouco poderiam surgir como as duas faces
Benjamin observa que "a predileção de Baudelaire por Juvenal poderia ser
opostas e complementares, as duas almas de um mesmo gênero literário, no
a atração por um dos primeiros poetas urbanos".' Além disso, Baudelaire
Velho e no Novo Mundo, nos dois continentes que compõem o Ocidente
queria subverter Rousseau: não só seu otimismo quanto à positividade e
moderno. A primeira edição dasZeavei of arma, de Whitman, é de i855;
perfectibilidade da natureza humana, mas também a teoria da imaginação,
Zes /;aar= dlz ma/, de Baudelaire, são lançadas dois anos depois, em i857.
fantasiasdopromenezzrso/ír'z;re em meio à Natureza. Em Baudelaire subsiste
Obras escandalosas e revolucionárias, como se costuma dizer, mas que não
opromeneur (que se torna./Zanézzr),mas agora a solidão necessita banhar-se
poderiam ser mais diferentes. Mas pelos menos com um traço em comum:
na multidão para perceber a si mesma e, assim, em lugar da mãe Natureza,
ambas são obras únicas e globais. Para os dois autores, o livro poético de
temos a mãe Cidade, uma mãe prostituta, cuja beleza é sinistra e fria, a
uma vida, com a ambição, irrefreavelmente isenta de preconceitos, de oferecer a imagem verdadeira da nova realidade.
beleza de uma viúva desconhecida, cujo Eras carregado de promessas nar-
urbano do mundo ocidental nos anos do pleno triunfo burguês. O próprio
cóticas só pode reluzir numa rua apinhada e barulhenta.
Percebe-se num relance de olhos quanto poderia ser divertida e ines-
No soneto "A une passante",que o comentário de Benjamin tornou
gotável uma descrição comparativa dessesdois santos diabólicos da poesia moderna. Métrica, sensualidade, relação com a Natureza, formas de conâs-
célebre, a cidade é protagonista absoluta e invisível, que só comparece acusticamente
no primeiro
verso
("-La rüe
sozzrdíçia/zfe aüroür de «?az'Ãz'r-
são,trânsito com a multidão e a comunidade, filosofia moral, idéias sobre
Za;l"). Mas, sem agzeZelugar, aquele encontro
a modernidade e sobre o progresso, sensibilidade religiosa, gosto estético:
tico e histérico que ele provoca --, isso seria impossível. A própria cidade
para cada um dessespontos sepoderiam elaborar longas listas de deânições
é um lugar de estranhamente ("para o./Zangar,sua cidade
contrastantes, carregando nas oposições (talvez nem a partida entre Tolstói
tenha nascido nela, como Baudelaire
e Dostoiévski rendesse tanto).
da melancolia, da perda contínua, da passagem e da "irremediável caduci-
Para entrar logo no sistemaBaudelaire e no sistemaWhitman, o que há de melhor do que suascidades, Parase Nova York? O filtro da imaginação e do estilo poético é, em ambos, fortemente transfigurador, mas também
e o choque violento, extáainda que ele
não é mais a sua pátria":): é o lugar
dade".3O/a/zéur não tem mais nada em comum com a âgura tradicional "do filósofo quepasseia",mas"adquire os traços do licantropo inquieto na selvasocial",' como no "Homem da multidão" de Edgar A. Poe.
vigorosamente realista. A visibilidade da cidade e da metrópole moderna
Entretanto, não quero entrar no labirinto Baudelaire-Paras-Benjaminse-
na poesia moderna é um fenómeno especial e relevante. Estabeleceram-se
não para lembrar alguns pressupostos daquilo que, mais tarde, ocorrerá com as
e estudaram-se formas de equivalência ou de homologia estrutural entre a
imagens de cidades na poesia moderna. Antes de tudo, deve-se notar o caráter
nova sensibilidade artística, o estilo da modernidade e a experiência urbana. É difícil encontrar em poetas posteriores momentos tão exemplares de
i. WI Benjamin, Pa/lkí cap;la/ede/secadoxu. Turim: Einaudi, 1986, p. z36led. liras.: "Paris,
revelação da cidade.
a capital do século xix", in .f)alagam, org. Willi Bolle. Belo Horizonte/São Paulo: Editora da UTMG/Imprensa Oâcial do Estado de São Paulo, zoo6].
O melhor guia à exploração Paris-Baudelairecontinua sendoWalter Benjamin, que fez dessenexo o coração da própria obra de crítico-escritor, de teólogo e rabdomante da vida urbana. Poeta urbano como nunca houve L44 Cidades visíveis na poesia moderna
z. Id.ibid.,p. 45o. 3. id. bid., P. 456
4. id. bid., P.545
i4j
ao mesmo tempo realista (ausência de aura) e espectral da cidade em Baudelai-
[r'zver=anrde Para /e fozzrm;/Zan raóZeaa":trata-se de uma das tantas velha
re. Nos "Tableaux parisiens", encontramos continuamente relatos e alegorias.
nhas que ninguém vê, mas cuja visão hipnotiza o olho de Baudelaire. Neste
A visibilidade domina: trata-se,com efeito, de raóZeazlx. Baudelairesentea ne-
caso, '7anr'ime" e "zaóZeau"estão ambos presentes; a precisão descritiva e
cessidade de figurar, retratar, desenhar, pintar a cidade e suas ruas. Mas fixar o
visual do gzz.zero é galvanizada, alegorizada e dotada de qualidades alucina. tórias provenientes do expecfroque a atravessa.
que escorre, retratar a "beleza fugidia", conferir uma face ao fantasma que o assaltaenp/eüjozzr requer meios artísticos adequados. Dois extremos:
Em comparação,Whitman pareceum herdeiro positivo, um continuador, um
1.A forma da visão de conjunto e do alto, a visão sonhadorae meditativa de
filho entusiastade Rousseau que Baudelaire, ao contrário, acusavae comba-
Í.
quem olha o panorama da cidade atarefada de cima da própria mansarda, do
tia. Em Whitman, a modernidade e seu órgão social e técnico, a cidade, são
M.
seu retiro de poeta: coisa que ocorre sobretudo no poema de abertura, "Pay-
um desenvolvimento da Natureza e a coroação de sua obra. A filantropia de
sage", onde a cidade é um fundo confortável, que não perturba, não aflige
Whitman é ilimitada. O bardo da Democracia adora a multidão, multiplica
quem escreve e medita suas "castas éclogas", seu "idílio infantil". Justa-
o seu eu por mil, acolhe cada um em si mesmo. O banho na multidão faz
mente aqui a cidade ainda pode ser transfigurada em "paisagem", posto que
dele um titã imenso, uma subjetividade polimórfica. Seu êxtase é pluralista,
é uma cidade vista muito do alto, que conâna com o céu: cidade de chaminés
necessitadaquela forma específicade salmodia moderna chamada por Leo
e campanários, em cujo céu as quatro estações ainda são soberanas.
Spitzer de "enumeração caótica" (que não por acaso abre com uma citação de
2. No outro extremo, na modalidade representativa oposta, poderia estar o soneto "A une passante", que nascenão de uma visão panorâmica, mas de
Whitman o seu ensaio sobre esseprocedimento estilístico).s
Progresso e mística, devoção a toda a realidade e louvor à ciência mo
um choque, de um encontro que arrasta quem escreve, protagonista passi-
derna: os pressupostos da visão urbana em Whitman são tão marcantes que
vo de uma invasão externa que o abala em cada fibra. Entre vúâo e caco/lira,
dissolvem a própria cidade numa ilimitada circularidade cósmica ("E/&dZeis
entre o baque, a sacudida dos exclamativos e a descrição-relato cheia de
unfoLdingof words ofcLges!/ .4nd mine a word of the modem . . . the wordEn-
observações do real, se constrói a maior parte dos poemas dos "Tableaux",
.44mse. ..", seção "Sonoof Myself", 2)).'
a começar por aqueles mais conhecidos.
Toda a estéticade Whitman se funda na exaltação do otimismo moral e social. É quase impossível imaginar Whitman como um indivíduo de
Em "Rêve parisien", desde o primeiro verso, vemos de novo uma paisaParasnão é vista nessepesadelo, e no entanto se vê que o pesadelo ocorre
contornos definidos, que atravessauma rua de Manhattanou do Brooklyn e encontra outros indivíduos singulares. Pode-se dizer que, antes de encontrar cadamembro específicodessamultidão (americanae universal, ci-
em Paris, trata-se de um "révep.zríçle/z":o sonho era uma ".Bale/ d'eaca#er=
tadina e camponesa: dá no mesmo), antes de encontra-lo realmente numa
e .d'arcadei", um "capricho" em que se combinam todas as imagens bau-
rua, Whitman já o tenha encontrado naquele Antes e naquele Depois sem
delairianas de felicidade, até a exaustão. O pesadelo,porém, surge ao des-
fronteiras de espaçoe tempo que é o seu Eu absoluto. O eu humilde, que é
gem; masagora setrata de uma " errzóZepaWsage", um pesadeloda manhã.
pertar: na queda de um mundo de maravilhosas fantasias para o horror daquela toca em que o poeta habita.
Em "Le cygne", "Les septvieillards" e "Les pentesvieilles", encontros e visões convivem, necessitamsobrepor-se,impregnar-se reciprocamente. Típicos são os dois versos ".Et Zorigzze./'enfieoú zzm#a/zróme dáZ;Ze,/ IA6 CHadw vkheis na poesiamoder71a
5. Cf. L. Spitzer, "L'enumerazione caótica nella poesia moderna" [tg6i], in Z'mz'riod'aro, 3 l99i>PP-93-946. "Infinito desabrochar de eras e palavras!/ E a minha é uma palavra moderna. . . a palavra Massa". Trad. Rodrigo Garcia Lopes, in Walt Whitman, Za/%mde Re/va. São Paulo: llumi nuras, 200í> p. 75. IN.E.J
i47
cidadão como todos os outros, que é alma imortal e componentesingular de uma comunidade livre e soberana,é também um eu titânico: o funda.
Baudelaire: o dando e o asceta da arte, o demonólogo que indaga e experi-
mento da sociedade. Contém em si, moral e até fisicamente, a sociedade de
menta a modernidade urbana como inferno ou paraíso artificial, guiado por um sistemainfalível de idiossincrasias hiper-seletivas. O ódio de Baudelaire
fato e a sociedade como princípio, presente, passada e futura:
pela burguesia se exprime no culto e na paixão pela beleza terrível, beleza
sinistra e fria", que ao burguês parece feia e o assusta.Parasmaterializa essesinfernos e paraísos da burguesia, dos quais, porém, ela é inconsciente Thb is the cita .... and lam oneof the citilemi W'hatever inuruts
J
tk rest interests me .. - politica, churchs, mws-papers, schook,
e indigna, incapaz de piedade e discernimento moral Justamenteporque não sabedistinguir a beleza verdadeira da falsa. Parasse torna o teatro de uma
Bemvoknt societiu, imprwermnts, banks,tari$s, stmmshbs,$actoriu, markets,
luta entre o bem e o mal sob as máscaras de um combate entre o belo e o feio.
Stock and scoresand real estale andpersonal estale.
Mesmo sentindo asprese/zfme sentindo-se atacado por fantasmas, pesadelos e
[..
H
espectros em pleno dia, Baudelaire não deixa de ser pintor e observador.
[
I'hey who piddleand patear hera in cotlars and tailed coats .... l am [aware wÁo r'6ey are ... . and fÁaf zÀey 'zre nof u'orai
or./7eai
Já Whitman torna a realidade urbana invisível, dissolvendo-a na realidadeplanetária (as inumeráveis e diligentemente enumeradasorigens raciais,
l acknowtedgethe duplicates of myself under all ttte scrape-tipped and \pipo-leggedconcealmenu.
nacionais e regionais da humanidade americana e nova-iorquina) e cósmica.
A enumeração,ou melhor, o louvor do inumerável como apaixonanteaparência de uma substância unitária comum, leva Whitman a englobar a cida-
rhe weakest and shaltowest is áeathtess with me,
de,a incorpora-la no Eu do seuegotismoinfinitamente acolhedor.Acolhida
What l do and say the some watts for trem,
nesse Eu, a cidade desaparece, porque não contém o eu, mas é contida por ele como uma modalidade moderna e de massa do único Deus-Homem. do
EveTy thought that$oundeTS in me the some $oundeTSin trem.
inumerável Homem-Natureza. l know perfectly watt my own egotism,
,4nd now my omniverou words, anelcannotsay any Leis,
Se, depois de Baudelaire e Whitman, lemos um poema como "Zone", de
.4ndwouLd.Ptch youwhoeveryou are$whwithmyself. \. . À
Apollinaire, em .dZcooZs (igi3), nota-se imediatamente que o estilo poético
moderno já é um fato, uma aquisição histórica, produto natural do pro..'SongofMyseLf",
42à
gresso humano no campo específico da arte. Com fluência e naturalidade, Apollinaire aproveita-se tanto de Whitman quanto de Baudelaire. Quando
7. "Esta é a cidade -- eu um de seus cidadãos;/ O que interessa aos demais me interessa --
ele publicou .4Zrooü, Marinetti já havia lançado seusmanifestos, com toda
política, igrejas, jornais, escolas/ Associações beneficentes, melhorias, bancos, tarifas, barcos
a idolatria combativa da modernidade. A arte moderna é um fenómeno
a vapor, fábricas, mercados,/ Estuques e lojas e os imóveis e seus bens pessoais.// Esses que tapeiam e papeiam com seus colarinhos e fraques -- Sei muito bem quem são -- com certeza
de grupo em toda a Europa, especialmentevisível em Paria,e a crença
não sãovermes nem pulgas,/ Reconheçoas duplicatas de mim mesmo disfarçadoscom suas
comum das seitas é de que não há barreira que não possa (e, portanto, não
caras-raspadase pernas-de-pita.//
O mais fraco e super6cial comigo vira imortal,/
O que faço
e o que digo o mesmo os espera/ Cada pensamento que se debate em mim se debate neles tam-
deva) ser superada. Em um texto literário (as vanguardas ignoram radical-
bém.// Conheço muito bem meu egoísmo,/ Conheço minhas palavrasonívoras,e não posso
mente os gêneros literários e tratam a prosa como se fosse poesia), tempo
dizer usando menos,/ E vou buscarvocê onde estiver e te enxertar em mim." Trad. Rodrigo
e espaçosãojogados livremente, a fim de que se torne perceptível o fato
Garcia Lopes, in Wãlt Whitman, XoZZmde Re/va. São Paulo: Iluminuras, 2005)p. ii3.[w.T.]
novo (e tipicamente urbano) de que o Ã;r ef nzznc,o aqui e agora que tanto
t4X
Cdades visíveis na poesia moderna
i49
fascinara (até Benjamin e depois) os teóricos da revolução, rompe os limites de espaçoe de tempo Revolução e arte moderna são habitáveis apenas
no 'b;cet nünc de um espaçourbano. Marx extraía o modelo de revolução moderna da tradição francesa:a idéia (deusa) revolucionária tem a substância de Paras(Paris em i78g, em í848, em t87o). Em Paras,tudo é aglz/ e tudo é agora. Espaço e tempo podem, pois, ser apreendidos em con)unto.
Toda a história das lutas de classe é espacializada, incorporada na cidade J:
IJ.
capital, e só aí ela pode alcançar o seu ponto culminante e apreender seu momento decisivo.
Diversos espaçose diversos tempos. Mas o centro é o aqui e agora pari siense. A colagem urbana não poderia ser mais exaustiva. Há algo de gra cioso, familiar e Íntimo. Mesmo sendo o ambiente invadido por sons estrí dulos e música dissonante, ainda assim ele é gracioso e amável: Tu tis les prospecto les ca alogues les aÍFches qui chantent tour haut
yoiLàLapoésiecematiz et pour la prosaily a lesiouínaux lly a les livíaisom à Tinge-cine centimes pleines d'aventuras poticiàres Portraiu
L
des grande hommes et mille titres cliveís
Em "Zone", de Apollinaire, Paris é vista do alto: um "rebanho de pontes" vigiado e custodiado por aquela espéciede pastora ou pastorinha que é a torre Eiffel. A maravilha tecnológica da torre protege e guia o rebanho da cidade. Mas algo já aconteceu à cidade, lida agora em termos de poesia pastoril (depois da torre Eiííel "óergêre", mais adiante, em meio à multidão parisiense, os ânibus comparecem como "rroupeaz/x [...] mzzgúxanrs", rebanhos mugindo). Em Apollinaire,
a miscelânea de imagens é )ocosamente
sentimental e naipe. Porém, apesar do material elegíaco muitas vezes adoci-
cado,o que conta nessepoema-container é a organização, isto é, o acúmulo do heterogêneo em torno de um momento de melancolia evocativa. Paria é o centro ao redor do qual muitas outras cidades orbitam, algumas só nomea-
J'ai'pu cematiz unejatie ruedontj'al oublié te nom Neuve et propre du soleit alta était Leclarion Les directeurs LesouvTiers et les beLtessténo dactylographes
Du lundi matiz clu sctmedi soir quatro foi.s parlourypusent l.e matiz par trois bois Lasirene y gémit
Une ctocheTageusey abole vensmidt Les in.scriptians des emeignes et des muraiLLes
Les pla quem Lescivis à la fnon desperto quetscriaiLLent J'mime la grade de celta rue ind«st.iette Située à Paria entre !a rue .4umont- Thiévitte et {'atenue áes TeTKes?
das ou pouco mais que isso, e toda uma variada e vasta geografia sentimental
do autor: postais ilustrados da interioridade e da memória. Apollinaire se diverte com um romantismo de literatura popular ou de cartaz publicitário. Mas a organização do poemeto segue a lógica, mais whitmaniana que baudelairiana, do afrouxamento dos nexos lógicos e representativos. Predominam a lista, a enumeração anafórica e a parataxe de colagem: Fe votei à Marseille au milieu de pastàques Te votei à Coblenceà !'llõte{ du Géant
I'e voici à Rime usas sou un né$ier du Japon I'e voici à .4msterdamavecunejeune$1Lequetu trouvesLeite et qui est lande
Para Apollinaire,
Paras é um excelente lugar de passagem, o lugar onde tudo
escorre mais facilmente e com mais fluidez do que em qualquer outro. Um espaçoonde é fácil entrar, mas também sair. Onde o heterogêneo se concen tra e a evasãoé mais fácil. Parasprovoca uma grande hemorragia de percep> Amsterdã com uma mocinha a quem achasbonita e que é feia". Trad. Mário Laranjeira, in XoZI« de S. Pa«;o, zg jun. 2003, Cad«- .44aÜ./.[N.T.] g- "Lês prospectos catálogos cartazes cantando alto seus versos/ Eis a poesia da manhã e para a prosa há os jornais/ Os folhetins baratos cheios de aventuras policiais/ Retratos de figurões
e mil fatos diversos// A rua cujo nome esqueçoe donde vim/ Esta manhã nova e limpa de sol era um clarim/ Operários patrões estenógrafas belas/ De segunda a sexta passam quatro
vezespor ela/ Toda manhãpor três vezes uma sirene brada/ Um sino raivoso ao meio-dia 8. "Eis que estásem Marselha em meio a melancias/ Eis que estásem Coblence no hotel do Gigante/ Eis que estásem Romã sentado sob uma nespeira do lapão/ Eis que estásem >
ladra/ As inscrições das tabuletas e dos muros/ As placas os avisos parecem araras em apuros/ Amo a graça desta rua industrial, no cerne/ De Paria entre a Aumont-Thiêville
e a Atenue de
Ternes". Trad. lvo Barrosã, in Ão/%ade S. Pau/a, zg ]un. zoom) CadernoJ4aÜ./.[N.T.] l SO Cidades visheis na poesia moderna
ções, lembranças, nostalgias. Enâm, até voltar para a própria casaé ir sonhar
Na Europa, a única coisa que não parece antiga a Apollinaire é o cristia-
com outros continentes:
nismo, religião que pode remeter a outras religiões remotas, que estão fora do tempo do qual fazem parte: tanto o tempo da antigüidade clássica
Et tu bois cet álcool bTÜant comme ta vie
I'a vie quetu bois commeuneeau-de-vie
quanto o da modernidade. Desse modo, em Apollinaire a cidade moderna não é mais moderna: lá é antiga.
Fu marchas vensAuteuil tu veux alleT che\ tai à lied Dormirparmi
[.
L8
tesféticltes d'Océanie et de Guinée
É curioso que a mesma atmosfera envolvente de velhice ou mesmo de decre-
LLssono des Chri.su d'une autrQ forme et d'une nutre CToyance
pitude, contempladacom olhar sádico-afetuoso,se encontre na cidadede
Ce sono les Christs in$rieurs
Palazzeschi. O qual teve o dom de mirar pelo avesso a hiperexcitada "moder-
des obscuras espérances
nolatria" futurista, transmutando-a numa contemplação impiedosa e pacata .4diet{ .4dieu
da perda de um presenteconfiante em um passadopatético, num depósito de quinquilharias, num catálogo de disparates.
SoLeilcou coupél'
Justamente nisso Palazzeschi é futurista: sob o olhar dele. o mundo
moderno já terminou há um bom tempo, é uma cantilena bufa e meio Zone" é um poema de hemorragia emotiva e moral, um poema de adeus a
sinistra de tudo o que vive na atmosfera da própria morte. Palazzeschi
Paria: o primeiro verso, as primeiras palavras já traziam o tom da conclusão. O
capta um aspecto essencial e bizarro da cidade: a melancolia do objeto,
poemeto nasce quando algo terminou, nasce da náusea e do cansaço. A cidade
dos objetos, ou melhor, o pa Àoi crepuscular da objetivação, da trans-
moderna é também a encarnaçãofinal de um velho mundo a ser abandonado em nome de um retorno a casa: volta à sempre-viva religião da infância, e a uma
formação de toda experiência possível do homem urbano em fórmula, sinalização de trânsito, manchete de jornal, cartaz publicitário e, en-
infância da religião, aos ídolos da Oceania e da Guinê. Até Paria o lugar onde,
fim, necrológio involuntário que o presente, ao se autodefinir, recita
em Baudelaire, tudo comparecia para desaparecer em seguida --, toda a Paria, em
a si mesmo.
Zune", é vista do alto apenas por um momento, antes de desaparecer:
Num poema de Palazzeschicomo "La passeggiata" [0 passeio], o olho que chora ou que poderia chorar essadesapariçãocontínua e inexo-
À ta $n tu es La.sde ce monde ancien
rável do presenteé um olho completamente enxuto, ou melhor, um olho
Bergàre 6 tour EiKel le troupeau des ponta bote ce matiz
que ri. A melancolia de Palazzeschi sorri. A cidade é, em sua irremediável
Fu en m usei de vibre dam L'antiquité grecque et romaine
tristeza, um lugar cZowneico, um teatrinho, um circo; como na breve pará-
!ci mime !es automobiíes ont !'aií d'erre a»cientes.w
bola de Kaíka "Na galeria", em que uma horrível injustiça é cometida em forma de espetáculo ameno, e o espectador, que poderia rebelar-se com
[o. "0 álcool que bebesé tua vida e ardeigualmente/ Bebestua vida feito uma aguardente//
a injustiça, continua a fixar num estado gemi-hipnótico a jovem cavaleira
Caminhas rumo a Auteil vais para casa a pé/ dormir entre fetiches da Oceania e da Guiné/ que
são os Cristos de outras formas dos credos alheios/ os Cristas inferiores de enigmáticos anseios// Adeus Adeus// Jun. 200)> Gaderm
[i.
Sol pescoçosem cabeça". Trad. Nelson Ascher, in EoZ%a de S. PazzZo, zg
.AãaÚ./.[N.T.]
"Te cansaste aânal desta vida anciã/ Pastora ó torre Eiffel teu rebanho de pontes bale >
! SZ Cidades vkÍveb na poesia moderna
> esta manhã/ Já viveste demais na antigíiidade dos gregos e romanos/ Aqui até os automóveis têm um ar de muitos anos". Trad. lvo Barroco, in ZoZ%a de S. PaüZo,zg Jun. zoom, Caderno .44aÜ./. [N.T.]
i53
tísica que gira ao redor da pista até o esgotamento total
e o espectador,
diz Kaíka, "we;nf er oÁ/ze{u wisien" (chora sem o saber). A crueldade de Palazzeschi é tamanha, sua discrição ao representar o papel
$wchetteTia,
mescitadi vitlo. Lo$Tedo e RondineILa
do cZowné tão perfeita, que cada nova situação melancólica da vida nessa cidade
primaria cma disto$e,
burguesa é já eterna, é para sempre: fm rir como se pode rir quando se está além
panni, tara e$anella.
de toda miséria, ou melhor, dentro de sua fábula jocosa e cantilena ünebre:
Oggetti d'arte, quc.dri, antichLtà,
J
.47diamo?
z6'
-- .4ndiamo Fure
@.
z6.4.
,4íl'arte deí ricamo,
Corso Napoleone Bonaparte.
fabbrica dipmsamanerie,
CartoLeíia detprogresso.
orai«a {üni, forniture.
Si cercadoabi i lavoranti farte.
Soíette Puitarà
.anemia!
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pentedi velluto.
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Grarüi tum! íti a Montecitorio.
yia Fratelti Bandieía
It presidentepronunciafere parolo,
già via del Croc$sso.
tumulto a sinktra,
tumu to a destra.
IL grart Saltara di Turchia wpetta Lct puticca deLRe Solo.
Si gettctdelta JinestTaper amorfa.
fine stagione, preIXaF'se.
[. ..]
In.superabilesaponealta violetta.
Ássunta Chiodaroii
Orotogeriadiprecisiom.
tevatrice,
Parisina Sudori Lotteíia ãel milione. ,4ntica trattoria "Lapace") con giardino,
! S4 Cidades visíveis na poesia moderna
rammendatrice.
L'arte di nonfar$glioLI. GabrieLe Pagnotta
J.
strumenti mmicali.
dade puramente efetiva. Eis a cidade de Palazzeschi: enumeração galhofeira
Narciso Gonfalone
que se torna cantilena. A cidade modiâca a literatura, rompe os limites entre
tessuti di seta e di cotone.
prosa e verso, muda as relações entre sujeito e objeto, transforma a contempla-
ULderigo BiXXarro
ção e a observação em registro. Mesmo o aglomerado humano épico da cidade,
fabbricante di confetti per no=lle.
a multidão, estáausente. Ou melhor: é supérflua. Os indivíduos que apare-
Giacinto Pupi,
cem com nome e sobrenome nas tabuletas são emoldurados em seu inexorável
tzno=14e e semtcupt.
destino onomástico e comercial. A publicidade se transforma em necrológo.
PasqualeBottegafu Pietro,
Nesseanimado e populoso deserto urbano é possível andar indiferentemente,
catla cure.. ..
bem à vontade, para frente e para trás. O passante,opromeneur, não sente nem
l J.
B.
Tornümo indietro?
pensa em nada, é transparente, sem espessura, homem de fumaça, fantasma.
Zornfamopzzre.iZ
Não há nem mesmo necessidadede evasão,como em Apollinaire. Na condição de habitante da cidade, já se é ausente, porque supérfluo.
Quem passeiapela cidade(numa cidade moderadamentemodernizada como Florença) não é nem sequer um indivíduo em solidão, em cuja mente res-
LeiamosGeorg Heym, o poeta de Berlim, em alguns sonetoscuidadosa-
soam memórias, esperas ou o que for. Aqui se passeia a dois. O eu desapare-
mente sintéticos, sinóticos, em que a violência centrífuga das imagens e o
ceu, reduzido a olho que registra, e a cidade é uma fita em que se inscreve a
dinamismo das imagens urbanas são violentamente constrangidos pela mol-
continuidade(e contigüidade) do heterogêneo.O acasoe os objetos têm uma subjetividade animista, criam ilusões, sarcasmossem intenção, rimas cómicas.
dura férrea do soneto.A violência representativa, que espremede modo expressionista os dados realistas, ainda que os trabalhe pictoricamente,
O descontínuocria um efeito de continuidade, o inorgânico encontra uma uni-
assume em Heym a forma da contemplação. Parece que lemos um Andreas
Gryphius da cidade. Há uma música fúnebre e solene (proposital) nos sonerz. "-- Vamos?/ Então vamos./ Na arte do bordado,/ fábrica de passamanadas,/ mercadorias,
tos descritivos de Heym. Sua meditação sobre a inutilidade e a destruição é
tudo encomendado./ Irmãs Purtarê./ Na cidade de Paras/ .44ocZn, mzzveaülá./ BenedettoPa-
neobarroca. Tudo está assustadoramenteparado em Heym. Aquilo que em
radiso/ sucessorde Michele Salvato,/ estabelecimentofundado em i843./ Aviso importante às
cada cidade escorre e escapa, aqui é imóvel:
senhorasl/ A beleza do soniso,/ seio marmóreo/ pele de veludo./ Grandes tumultos em Monte citorio./ O presidente falou palavras de prol,/ tumulto à esquerda, tumulto à direita/ O grande Sultão da Turquia espera./ A pastilha do Rei Sol./ Se Ioga da janela por amor./ Insuperável
Der hoje StraFenrand,auf dem wir tagen,
sabãovioleta./ Relojoaria de precisão./ 93/ Loteria do milhão./ Antiga tranoria "La pane">/
war weiFvon Staub. W'ir sahenin der Erige
com jardim,/ cantina/ vinho em canil./ Loffredo e Rondinella/ seletacasade tecidos,/ pa-
unl@hLig: Memchemtrõme
nos, lã, flanela/ Objetos de arte,/ quadros, antiquários,/ z6/ z6 A./ Avenida Napoleão Bona-
parte./ Papelariado progresso./Aceitam-secostureirasdetoda parte./ Anemia!/ valimento!/ Grande liquidado!/ Queima de go%/ livre acesso./ Hotel Risorgimento/ e hotel de Hungna/ Lastrucci e Gadagnoni,/ modernas instalaçõesde aquecimento:/ estufas,termossiüoes./Rua
urü Gedrange,
undsahn die Weltstadtfern im Abana ragen Ç'Berlin n"YI
Irmãos Bandeira/ outrora do Crucifixo/ Saldo/ fim de estação,/preço 6xo./[-.] Assunta Chio-
daroli/ parteira/ ParisinaSudori/ costureira./A artedenãogerarprole./ GabriellePagnotta/ instrumentosmusicais./ Narciso Gonfdão/ artigos de sedae algodão./ Ulderico Bizzarro/ fabricante de adornos nupciais./ Giacinto Pupi,/ bacias não sepreocupe/ PasqualeBottegaex
i3. "A margem alta da estrada, onde estávamos,/ era branca de poeira. Vimos no estreito/
Pietro,/ sapataria-./ Voltamosdireto?/ Euvoltaria."]N.T.]
("Berlin n") Trad. literal Marco Aurélio Werle.
L S6 Cid.zxiesvisíveis nü poesia moderna
inúmeras pessoas:fluxo de gente e multidão,/ e ao longe a metrópole erguer-se na noite.
i57
A visão nasce de um distanciamento ainda mais acentuado que no pró-
Beteerte FàsseTrollten von den Scttwet en
prio Baudelaire(modelode Heym). O observadorestádistante,isto é,
deí dunkLen Speicher aufdie
ausentedo quadro:
DLe Schlepper Togenan. Des Rauches Mãhne
hohen KiihrLe.
hino ruPig lieder auf die iiligen WeLlen.
r Die vollen Kremserfuhren durch die Monge, papieíne
l
Fâhnchen waren dvangeschLagert.
CD
kamen mit Musilç=kapeLLen.
Die Omnibu$e, volt Herdeckund Vagem.
Den Schorn.steinkappten sie am Brückenbogen.
ÁutomobiLe, Rauch und HuppenkLdnge.
RcLuch,Ru$, Gestank tcLgaufden schmut+gen Wogen der Gerbereien mit den bratinen Feiten.
11.
a
Zwei Dampfer
Dem RLesemteinmeer lu. Doer westlich sahrl
wir an der tanger Stra$e Batam an Batam,
in G en BTÜcken,drunter um die Zille
der BLdtterLoserl Kronen Fitigran.
hindurcttgebrmht, eítõrttertdie SigmLe Gteichwiein TTommelnwachend in der Stitte
Der Sonnenball hino groj3 am Himmetssaum Und rota StrahLenschoJ3desAbends Bahn. .4ufatten
Ktipfen Landes Lichtes Trauma'
Wir lie$en los und trieben im KanaLe
an Gdrtenlangsam hin. In dem IdyLLe sahn wir der RLesen.schlote Nachtfanale
A distância é multiplicada no anal: é a distância do sol, divindade imóvel, que lança sobre o inferno da cidade uma luz apocalíptica. O mundo que se
Ç'
Berlin
r't'
concentra nessasimagens de cidade está a ponto de sucumbir, preparado para a destruição (e a máquina da cidade é destruição em ato: destruição
Estamos na tradição dos "Tableaux" baudelairianos, embora com uma
desejável seria aquela capaz de libertar os seus habitantes dessa cidade-pri-
dureza mais elementar,com uma espéciede iracunda precisãodescritiva
são). A cidade é, nesses sonetos, agitada por uma atividade incessante, de
que ânalmente libera de modo mais explícito sua carga visionária nos cinco
onde exalam fumaças infernais, asfixiantes, que a tornam inabitável: não se
quartetos, sempre muito bem ritmados, de "Der Gota der Stadt" [0 deus
vê nenhuma presença humana. A cidade-máquina tornou invisíveis seus
da cidade]. Trata-se de um poema escrito por volta de ígio (Heym morre
habitantes. Vê-se o produto, vê-se a produção que ocupa todo o espaço
em lg12), e nele o anúncio de eventos destrutivos é mais evidente. O prin
visível. O que não se vê são os produtores: r5. "Barris alcatroados rolavam das saídas/ de depósitos escuros para os altos batelões./
Os rebocadorespuxavam. A bruma da fumaça/ caíafuliginosa sobreas ondasoleosas.// com capotar e carros./ Automóveis, fumaça e buzinas.// Rumo ao imenso mar de concreto.
Dois vapores, com banda de música, vinham./ Baixaram chaminés sob o arco da ponte./ Havia fumo, fuligem e fedor sobre as vagas/ imundas dos curtumes das peles marrons.//
Mas a oeste/ vimos, na longa estrada, árvore ao lado de árvore,/ a filigrana das copas sem
Em todas aspontes sob asquais nos conduzia/ a barcaça, ressoavam os sinais,/ como um
folhas.// O sol pendia grande no horizonte celestial./ E raios vermelhos abriam o caminho da noite./ E sobre todas as cabeças,um sonho de luz."("Berlin n") Trad. literal Marco Aurélio Werle.
retumbar crescendo ão silêncio.// Deixamo-nos levar e entramos no canal/ chegando lentamente aos jardins. No idílio/ víamos os finais noturnos de enormes chaminés." Trad. literal Marco Aurélio Werle.
i4- "Cheias charabãs passavam pela massa/ pendiam delas bandeiras de papel./ Ónibus
L S8 Cidades visheis napoesia moderna
i59
cípio (ou a divindade) que presideo destino da vida urbana é um princípio demoníaco. O deus da cidade pode devorar a qualquer momento aquilo
Aqui a multidão é um bando de obsessos,de "coribantes". E, na falta
que criou. Sua gigantesca figura é tirânica e esmagadora:
truoso gigante. A própria cidade, dentro da qual Heym dá a impressão de jamais poder entrar, não é senão um monstruoso gigante. Intima
4uf
J
minem HtiuserbLocke sit Tt er breit.
mente estranha a si mesma, inimiga de si, inabitável, a cidade de Heym
Die W'indo Lagernschwar{ um reine Stirn.
não promete prazeres, variedade e leveza de sensações, nem excitantes
Er schautvolt Wut, wofera in Eimamkeit die tetTten Hâuser in da.sLatia veTiírn.
espetáculospirotécnicas de estilo futurista: ela é sobretudo o cenário sombrio de uma tragédia iminente. Uma cidade pronta para o apoca
Vom .4bendStar it der rate Bauch dem Baal,
lipse, que ignora até aquele sentimento de desmantelo vital presente nos subúrbios de Aleksándr Blok ou a energia delirante que encontramos em
die gro$en Stddte knieen um ihn her.
certos poemas de Maiakóvski:
l J.
@.
de algo humano, nessacidade, acima dela, só se pode erguer um mons
Der KirchengLocken ungeheure Zahl wogt auf {u ihm au schwarler Türme Meer.
Janelas espatifaram o infernaço urbano em mini-inferninhos que, nm tules, mamavam
#ie KoTybanten TARA.drõltnt die Mu.sik
Bu #nando nm própria.s orelhas de abano,
deTMitLionen durch die Stra$en Laut.
diabos ruivos nm ruas, carros empinavam.
Der SchtoteRauch, die WotkenãerFabfik +ehn auf {u ihm, wie Draft von Weihrauch blaut.
Dm W'enterschwelt in seinen .4ugenbrauert.
Nos furos dos prédios, onde ardia o minério
Der dunkle Abana vira in Nacht betãubt.
e o ferro dos trem o caminho tolhia,
Die Stürme#attern, die wie Gemer schauert
um avião gritou e caiu [á do espaçoaéreo
von seinem Haupthaar, du im Zorne strâubt.
onde o olho o soLferido escorria.
Eí streckt im Dunkel reine FteischerfcLust.
( "0;nÓe«. da.;Jade 't :g:3y'
Er schilttelt sie. Ein Moer von FeuerjcLgt durch Cine StTa$e. Und der GLutquaLmbraust
Contrariamente à de Maiakóvski, a cidade de Heym não põe a imaginação
UndfHPt sie auf, bb spãtderMorgen tagtJ'
em movimento, mas a bloqueia numa visão de angústia atónita.
r6. "Escarrapachadosobreum quarteirão,/ À suavolta acampamnegrosventos./ Ele olha irado, ao longe, a solidão/ De últimas casasem campos nevoentos.// Baal ao pâr do sol, pança luzindo,/
À volta ajoelham as grandes cidades./ De um mar de negras torres vem
subindo/ O ecomonstruosodastrindades.// Na rua,a multidão músicaentoa,/ Em dança coribântica exaltada./ Das chaminés fabris o incenso escoa/ E sobe até ele, em fragrância
azulada.// No seu sobrolho crepitam temporais./ Narcotiza-seem noite o escurodia./ >
l 60 Cidades visíveis na poesia modeí7m
> Como os abutres, esvoaçam vendavais/ Em cabeleira irada, que arrepia.// Estende no escuro a mão de carniceiro./ Um mar de fogo varre, num estremecer,/ Toda uma rua, que acabanum braseiro,/ Até que o dia tarde a amanhecer." Trad. Jogo Barrento, in .Expressfonümo a/emão ,4/zo/agzapoéf;ca. Lisboa: Atiça Sarl, s.d., p. i37. i7. Trad. do russo por RubensFigueiredo.
i6i
Mesmoo maior exemploitaliano de estilo poético expressionista,Cle-
J
11.
$n che la será il grau palpita accoglie
mente Rebora, segue em direção oposta: a desesperadaimobilidade descri-
e ne respira Levogtie
tiva de Heym, carregadade tensõescontidase aprisionadas,não encontra
fra it Hncmar tumultuoso
analogias em Rebora, cuja violência deeormadora, segundo uma conhecida
che ai sobborghi nereggia negti echo
observação de Contini, se concentra no verbo, ao passoque, nos expressio-
dela'ultime ofFcim,
nistas alemães, predomina a tendência ao "estilo nominal" (como em Trakl
ora ilbruLicar detle forme
e em Benn). Rebora tende "à representaçãoda ação,mais que à descrição".';
ches'inJuRiaR pm scaltre
Suasimagens de cidade são igualmente investidas de uma carga apocalíptica,
nei {innir !ominoso dei corei.
mas são dramaticamente dinâmicas, em nada contemplativas e visuais: ("Frammenti
IEJ
lirici, xxxiv",
igi3y9
Scien {a vinde natura: à gloria. Immane ferve
e di macchine suína edi moreia
A imersãono dinamismo físico e moral da vida urbana, que é mistura de enganos e de violentas "gesticulações" idealistas (como diz Mengaldo:'), é
L um.atl contrasta)
tão decidida, voluntarista e carregada de imperativos de participação, que
centre in disparte L'umiltà dei vinte
mal se vê a cidade. A cidade de Rebora não é um espetáculo a ser contem-
geme o s'invischia, e varia
plado,masum processohumano,uma luta entreo bem e o mal, um inces-
ta meto&ct sitvanc
sante"tornar-se" no interior do qual é preciso lançar-secom um ímpeto
inascoltata giace. )h per te vie detl'albctfulmineo ridestctrsi,
quase cego ao sacrifício de si. Acima de tudo, uma advertência preliminar ou didascália sarcástica: "Ciência vence natureza:/ é glória". A cidade de
quando
Rebora surge como expressãode um pervertido idealismo ativista, cujo
üccelli dei nidi cittadini
desafio moral é, no âm das contas, aceito.
per t'aria dai camini votara te sirene nega'incemideLfumo chamando atbuon !avara! E via si Inicia il piorno
Aqui também a multidão é sem rosto, anónima, porque não permite que nenhum rosto venha à tona. Fala-se dos "vencidos", ou melhor, de sua 'humildade",
que
"geme
ou se atola".
Fala-se
de "moldar
coisas
e pensa
ig. "Ciência vence natureza:/ é glória. Imensamente ferve/ de máquinas ressoae de moedas/
d'ora in ora at meriggio,
o atrito humano,/ enquanto, à parte, o coro dos vencidos/ geme ou submerge, e sem sentido/
e giü per la sua china
a melodia da Horesta/ jaz sem ser ouvida./ Ó, nas ruas da aurora urn despertar de fogo,/ quando/ pássarosde ninhos urbanos/ por entre chaminés e canos/ revoam altas assirenes/ em meio a incensosde fumaça/ chamandopara o bom trabalhos/ E assimsedesataa jornada/
a foggiar coseepensieri con intrecciate vicende
con risonantt noventa,
de hora em hora, até o meio-dia/ e daí descendo pela encosta/ a forjar coisas, pensamentos,/
nassucessõesentrelaçadas/ nos movimentos martelados,/ até que a noite acolhe o peito que arde/ aspirando sua força e sua vontade/ na dura volta para casa/ que nos subúrbios escurece
entre os ecos/ das mais tardias oficinas,/ e agora o tremular das formas/ que sedemoram, r8. G. Contini, "Due poed degli anni vociani, r: ClementeRebora"]i937], in Ererc;p dz Ze/Mra safra auzarz'con/e/npormeíco/zzz/ITpe/idhe iü lndm/z co/zfe/apor el. Turim, Einaudi, i974, p. 7-
t6Z
Cidadã visíveis na poesia moderna
precavidas,/
no tinir
]uminoso
de alamedas."
("Fragmentos
]íricos,
xxxiv",
ígi3).
[N.T.]
zo. Poerí ;ia/íaa; de/]Ua ecenro,org. P.V. lvlengaldo. Milão: Mondadori, 1978, p. 252
i63
mentos" em cadaprocesso produtivo, material, mental. Vê-se uma "volta à casatumultuada" que "nos subúrbios se escurece". A cidade é um imperativo moral de participação, além de ser uma necessidadede fato, que atrai E
J.
to whereSaint Mavy Woolnothkept the hours
with cl deadsoutü on the $naLstroke ofnim. There lsaw om l kmw, and stopped him, CTying: "Stetson!
e impede, que torna inconcebível o olhar e o julgamento externo. Nesse
You who vete with me in the chips at MYLae!
cruzamento urbano de idealismo e ativismo industrial parece que já lemos
That corpseyou plantei
o drama e o mistério da encarnação do espírito: o símbolo da cruz, assumi-
h
do por Rebora mais tarde, com a conversão em lg2g Dentro da voragem da cidade, o indivíduo não só desaparece,mas tem o dever de negar-se e
OThm the suddenpost dbturbed its bed?
oferecer-se ao "universal anónimo" em que se encarna a humanidade moderna, ou seja, a humanidade urbana.
or with his naif he'LLdig it up again!
11.
Em lg22, quando surge "The WasteLand" de Eliot, muitas outras coisas aconteceram. A modernidade urbana não dispõe apenas de um presente vertiginoso e de um futuro apocalíptico ou radioso, como dez anos antes. A
laÂt cear in tour garden,
it begun to sprout? Will it bLoom tais cear?
Oh jeep the Dogfar vence,that's friend to men,
You! hypocrita tecteur!
mon semblable,
mon fTêre!'n~
Trata-se da última parte da primeira seção de "The Waste Land", cujo
título e tema é "a sepultura dos mortos". É um texto famoso (talvez o mais conhecido de toda a poesia do século xx). A cidade aparece de modo
Primeira Guerra Mundial cavou fundo, abriu abismos na memória histórica
explícito, solenemente definida como "irreal"
européia. A modernidade já tem um passado, recentíssimo: produziu um
as características do todo o poema são as mesmas que caracterizaram,
desde o primeiro verso. Mas
apocalipsereal, produziu ruínas e fez vacilar toda uma tradição. A belíssima
desde o início, quase todas as âgurações literárias do ambiente urbano:
nave do progressojá afundou (o naufrágio do 7zranzcantecedea guerra, é de lg12). Agora são visíveis os destroços, encontram-se pelas ruas os náu-
i. Presençado heterogêneoe fluir do heterogêneo.
fragos e sobreviventes. E eles parecem os náufragos e os sobreviventes de
2. Condensações e saltos temporais.
todos os naufrágios e guerras. Se caminharmos em certas horas por uma
3. O que aparece, logo em seguida desaparece.
de suasruas silenciosamente apinhadas, a cidade sedissipa na névoa do irreal.
4 A concretudedos detalhesobjetivos é intensaa ponto de tocar a
Estamos em Londres, com todas as indicações de espaçoe tempo. Mas esta-
abstração ou a alucinação.
mos realmente apenasali e naquele instante? O agzzz e agoraé habitado por
5. O universo parece reunido em um espaçoúnico.
muitos a zzreie inumeráveis gozando,que atacam o passante assim que ele se distrai ou tão logo sua atenção estranhada se faz mais clarividente:
6. Todas as épocas se concentram e convivem no presente. zi. "Cidade irreal,/ sob a fulva neblina de uma aurora de inverno,/ ruía a multidão pela Ponte de Londres, eram tantos,/ Jamaispensei que amorte a tantos destruirá./ Breves e entrecortados,
Unreat City, ,tnder the brown fog of
ÇL
winteT dava,
l crowd$owed ater London Bridge, se mmy, [had not thought death had undonese many. Sigla, short and infTequerlt, Hera exhaLed,
os suspirosexalavam,/ e cadahomem âncavao olhar adiante de seuspés./ Galgava a colina e percorria a King William Street,/ até onde Saint Mary Woolnoth marcava ashoras/ com um dobre surdo ao âm da nona badalada./ Vi alguém que conhecia e o fiz parar, aos gritos: "Stetson,/ Tu que estiveste comigo nas galeras de Mylael/ O cadáver que plantaste no ano passa' do em [eu jardim/ já começou a brotar? Dará flores este ano?/ Ou foi a imprevista geada que o
perturbou em seuleito?/ Conservao Cão à distância, esseamigo do homem,/ ou ele virá com
znd each man $xedhis eles before hb feet.
suasunhas outra vez desenterra-lol/ Tu! Hypocrite lecteur!
Flower up the hall and down King WiLtiam Street,
Trad. lvan Junqueira,in Poeira.Nova Fronteira: Rio de Janeiro, ig8í, p. gi.[N.T.]
mon semblable--, mon frêrel".
i65 l64
Cidades visheis na poesia moderna
Mais uma vez, o liame social é modificado pela multidão. E é da multidão que podem despontaros indivíduos mais inesperados,criando o choque do encontro. Eliot já faz aqui, como de resto em toda a sua obra,
L
Eliot é forçado a revela-los recorrendo a todo tipo de expediente estilís-
a história do tema escolhido. Nesse caso, ele cria uma profundidade de
tico. Especialmentepela aproximação de categorias alegóricas e morais hauridas de Dante e Baudelaire à banalidade onipresente daquilo que
perspectivavertiginosa, que chegaliteralmente a Dante e a Baudelaire,
escorrepelasruas apinhadasde Londres. A cidade é multiplicação de
especialistas do mal, do vício, do pecado(Baudelaire,analistado pior
planos espaciaise temporais, uma cena em que dialogam vozes heterogêneas.Mas isso não tem o propósito de celebrar esteticamente a fantas-
dos pecados modernos: a ignávia, /'ennuz), e historicamente alcança as 11.
A indiferença moral, o pecado inconsciente das massasurbanas,
guerras púnicas, a batalha de Milazzo, tomada como exemplo de uma das
tantas batalhas, todas iguais no curso dos séculos.Nas notas traduzidas
pelo próprio Eliot (em que a consistênciahistórica e literária, a marche-
magoria do heterogêneo. A pluralidade de vozes e de citações converge em um ponto: como poeta, talvez sobretudo por sua linguagem e pela re-
taria do heterogêneo, se torna transparente), no verso 6o (" Unrea/ Czg"),
presentação da vida urbana, Eliot é um crítico da civilização. Ele desarticula a estrutura da civilização ocidental em busca de passagense frestas
o autor cita os dois versos que abrem "Les Sept Veillards" de Baudelaire:
que levem a um tempo não-histórico. O desfecho de "The Waste Land"
: FourmiLLante até, até pleine de rêdes,/ Oà le spectve en pleinjour
racçtoche
cepa.sianr".zz E, no verso 63, remete em nota aosversos 5S-57do canto iii üo " \nÇelno" = " . . .si tanga tratta/di gente, ch'io non avrei mai credito/che mortetanta n'avessedisfatta" 2a Estamos na City, em meio a uma multidão de empregados (o próprio
é uma fórmula
ritual
tirada
dos Upas;xadei:
".9Áan ;Ã s,4a/zz;Á Ãan//Ã",
isto é, paz inefável, paz invocada na visão da queda de todas as cidades capitais do mundo antigo e moderno. Na mesma seção final, lê-se: Falling
towersl JeruscLLem Ache
41exandricl/
yienna
London/
unTeat' IL'
Todas cidades irreais, cujas torres desmoronam. E, pouco antes do fim
Eliot, como funcionário de banco, fazia parte dela), mas também estamos
da 'poema, a pequeria can ção " l.andor bridge is falling down faLLing dowrt
às portas do inferno. Além disso, um dessesanónimos empregados da City
faltingdown..." z'
é também um sobrevivente, um velho companheiro de armas (o srenon, ao que parece, era um tipo de chapéu usado no exército australiano e neozelan-
De igzg (publicadopostumamenteem i94o) é um violentíssimorepor-
dês). E mais: no verso 74, Eliot anota que, dessa vez, a referência é ao Z)/aóo
ragepoético da capital do século xx, Nova I'ork. Estamos no ano do crmÀ
ór.zncode John Webster: "Mas mantém longe daqui o lobo, que é inimigo dos
financeiro de Wall Street. Nessecaso,a crítica da civilização é formulada
homens, porque com suasgarras os exumará". O velho combatente deve ter cometido um delito e ocultado um cadáver no Jardim; por isso, precisa ficar
por um poeta que parecia bastante alheio ao estilo da denúncia e da crítica social: Federico García Lorca. No entanto, com Poeta en.Nüeva Hora:,Lorca
atento para que sua culpa não venha à luz. A culpa e os cadáveres escondidos
escreve talvez a obra-prima poética do surrealismo, um poema surrealista
são o substrato da cidade. Também você, leitor, sabe alguma coisa sobre isso
de denúncia, representação crítico-visionária acurada de Nova York como centro da civilização moderna e do capitalismo avançado.
ainda que seja apenasaquela culpa de que fala Baudelaire em seu prólogo 'Au lecteur", uma culpa delicada e monstruosa, a acedia.
Seuguia nessa"Nova York de lama,/ Nova York de aramee de mor-
te" é o "belo velho" Walt Whitman. Mas a paisageme o panorama(há zz. "Cidade a fervilhar, cheia de sonhos, onde/ O especüo, em pleno dia, agarra-se ao passante!".
Trad. lvan Junqueira,in .ü.Paresdoma/. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, ig85,p. 33i.[N.T.] z3' "Atrás enorme multidão surgia,/ tantos que eu não podia imaginar/ tivesse a morte
z4. "Torres cadentes/JerusalémAtenasAlexandria/ VienaLondres/ Irreais".Trad.lvan
aniquiladoum dia." Trad. CrisdanoMartins, in .4 dzl,inacomédia.Belo Horizonte: Itadaia,
Junqueira,in Poexza.Rio deJaneiro: Nova Fronteira, ig8t, p ío3 [N.T.]
i979) p. iz% verso l. IN.T.J
z5. "A Ponte de Londres está caindo caindo caindo". Id. ibid., p. io5. [N.T.]
t66
Cid(ües visíveis na poesia moderna
i67
vários e horripilantes, a começarpelo "Paisaje de la multitud que vomita")
tos interminables tremesde sangre
são demoníacos. Sobretudo o comércio, o mundo do cálculo económico e
y tostremes de roammanútada
a indústria alimentícia são mostrados enumerativamente como um inferno.
poí los comerciantes de perfumes.
Tudo dito por negação, correção e antítese: ".Azoei e/ zn#erno, ex Za ca/Ze./
Los patosalas paLomas,
.Nb ei Za mzzerle, ei Za z;anda defmlm".
y tos cardos elos
No poema "New
denuncia", lemos:
York.
Oficina y
coTderos
ponen sus gota de sangre
debajo de tm multipticaciones, Debajo de Lw multipticaciones
y tos terribles ataridos de Lasvmm estmjadas
hay uncl gota de sangre depato;
ttenan de dotar et vat e
debajo de L© divisiones
donde et Hu&aK se embarracha con aceite.
hay una gota de sangrede marLnero;
Yo denuncb a toda La gente
(Lebajode Laófumas, un rb de sangre Eterna.
que ignora [a obra mitad, a mitad irredimible
Un rÍo que vieae cantando por LosdarmitoTios de los arrabales,
que levantcl sus montes de cemerlto
y es placa,
,l..,l.
comento o bl'kct
en et alba mentiria de New York.
Existem {w montafim. Lo sé.
l.t,.
l..
,.,.anHO.
'\"-'"
de los animalitos quese olvidar
y donde caeremostodos
r Losanteoios parca Lctsabiduíía.
en LaÚltima festa de Lostal(tiros.
Lo sé. Pêro yo KOhe vertido CLver et ciclo.
Os escudoen Lacara.
ro he vertido parca veT la turbia sangre.
La tetra mitad me escucha
La sangre que eleva tm maquinas a Lm catarata
cle'parando,
yel espírita a La língua de La cobrcl.
como los nifios en t© porteríu
Todos !os dím se matar en New York
orinando,
votando
que llevan fTágileS palitos
quatro mittones de patos,
a tos suecos dando se oxidar
cinco mittones de ceTdos,
t
las milpalomas
No es el inferno,
parca et Busto de tos agonizantes,
en su Fure Ta
antena de Losir,sextos. es Lct calhe.
u%mitlÓn {ie vcLca,
Na esla muerte, esla tienda defruta.
un mittón de corderos
HaN un mundo de rios quebradosydistancias inmibtes
y dos mittones de galgos,
en lctpalita de esegato quebradapor el automóvel
que dqan tos ciclos fechos aüicos. MÜ
l68
vale solto qar afiando la navaja
No, no, no, no;yo renuncio,
o mesinar a tos perros en Lu alucinctntes cacerías
Yo denuncia [a codura
que resistir en la m(ümgada
de estasdesiertu ojicin-.s
LosinteTminabLes tiGRes de feche,
que no radiar l© agonias,
Cidades visíveis napoesü moderna
i69
lue borrar tosprograma de la selva, yme opte Tco CLser comido poí t% vaca estrujadas
quanto sobre Moscou. Mas sua descrição é isenta de qualquer excitação estética.Não há lugar para o caleidoscópio das puras percepções.Ao con-
cuartdo sus grites lknan el volte donde eIHudson se emboTrachaconaceitou
trário:
"Arquitetura
extra-humana
e ritmo
furioso,
geometria
e angústia.
Sejacomo for, aí não existealegria, malgrado o ritmo. Homem e máquina
L
L.
IJ.
}E.
Quando o poeta surrealista nascido na Andaluzia, apaixonado por can-
vivem a escravidão do momento".27 Como assassínio sistemático da Natu-
çõesde ninar e folclore, Góngora e Lope de Vega, chegaao centro do
reza,inclusive da naturezahumana, a cidade não é mais adequadaao./Za-
mundo industrializado, o choquesó pode ser violento. Lorca faz um relato
rzéücé pura angustia.
que é também um manifesto sumário de judo o que o surrealismo poderia
Em poesia, essa talvez seja a última revelação da realidade urbana.
ter dito de Nova York em matéria de revolta e de denúncia. O estilo não-
Desde então, a cidade e suas imagens provocarão cada vez menos escânda-
estilo do surrealismo é usadopor Lorca na forma de manifesto-discurso.
lo. No entanto será um problema nomear formas de paisagemextra-urbana
Mesmo afirmando que se trata de "observação [...] lírica", Lorca aproxi-
(seriainteressante,por exemplo,ver de perto a lebre queinvade a paisagem
mou, numa entrevista de i933, sua descrição "do interior" às inumeráveis
bucólica e a psique bucólica, a província agrícola, de um poeta como Zan-
descrições"do exterior" que então circulavam tanto sobre Nova York
zotto). Nos poetas "enganados" dos anos iPSo, de Brecha a Auden, a cidade
z6. "Debaixo das multiplicações/ há uma gota de sangue de pato;/ debaixo das divisões/ há uma gota de sangue de marinheiro;/ debaixo das somas, um rio de sangue terno./ Um rio que vem cantando/ pelos dormitórios dos arrabaldes,/ e é prata, cimento ou brisa/ na aurora mentida de Nova York./ Existem as montanhas.Eu o sei./ E os antolhos para sabedoria./ Eu o sei. Mas eu não vim para ver o céu./ Eu vim para ver o turvo do sangue./ O sangueque leva asmáquinas àscataratas/ e o espírito à língua de cobra./ Todos os dias se
matamem Nova York/ quatro milhõesde patos/ cinco milhõesde porcos,/ duasmil pombaspara os agonizantes,/ um milhão de vacas,/ um milhão de cordeiros/ e dois milhões de
já estáem toda parte: agiu em profundidade, dissecoue privou de aura a próprialíngua dapoesia.
Em Wystan Hugh Auden, paisagemmental e paisagemurbana se interpenetram. A cidade é onipresente. A " Ciry H';r'êozzlwa/Zx" de Auden
é a cidade semmuros e semlimites de que fala Lewis Mumford no início dos anos ig6o: uma megalópole invisível, uma rede de funçõescomunicativas, aparato tecnológico que concentra e distribui informações
galos,/ que deixam os céusem pedaços./ Mais vale soluçar afiando a navalha/ ou assassinar
e imagens num espaço extra-urbano que não pode, apesar de tudo, ser
os cães nas alucinantes caçadas,/ que resistir na madrugada/ aos intermináveis trens de leite,/ aos intermináveis trens de sangue/ e aos trens de rosas manietadas/ pelos comer-
definido não-urbano, porque também ele é impregnado de cultura urbana. No poema sobre a morte de William Butler Yeats, de i939, ano da
ciantes de perfumes./ Os patos e aspombas/ e osporcos e os cordeiros/ põem suasgotas de
invasão nazista da Polânia, a presença póstuma do grande poeta irlandês
sangue/ debaixo das multiplicações,/
e os terríveis alaridos das vacas espremidas/ enchem
de dor o vale/ onde o Hudson se embriaga com azeite./ Eu denuncia a toda gente/ que ignora a outra metade,/ a metadeirredimível/ que levanta seus montes de cimento/ onde
é descrita por Auden em seu desmembramento"em cem cidades". O corpo do poeta, como uma cidade, [em subúrbios; e sua mente, como
palpitam os corações/ dos animaizinhos que seolvidam/ e onde cairemos todos/ na última festa dos trados./ Cuspo-vos na cara./ A outra metade me escuta/ devorando, urinando,
uma cidade, tem praças. A poesia não importa e não faz nada acontecer,
voando em sua pureza,/ como os meninos das portarias/ que levam frágeis palitos/ aos
dia urbana do amanhã:
ocos onde se oxidam/
as antenas dos insetos./
Não é o inferno,
é a rua./
Não é a morte.
éa
fruEaria./ Há um mundo de rios quebrados e distâncias inatingíveis/ na patinha dessegato quebrada pelo automóvel/ [-.] Não, nào, não, não; eu denuncio./ Eu denuncia a conjura/
destesdesertosescritórios/ que não irradiam as agonias,/ que apagamos programas da selva,/ e ofereço-me para ser comido pelas vacas espremidos/ quando seusgritos enchem
diz Auden. Ela encontra cada vez menos espaço de existência na balbúr-
The provincesof his body revoltei, thesquaresof his mina vete empty,
o vale/ onde o Hudson se embriaga com azeite." Trad. William Anel de Mejjo, in Federica Garcia Lorca, Obra /)oéfzfa Co/zydefa.São Paulo: Martins Fontes,zoom pp. 477-8o. [N.T.]
l 70 Cidades visíveis na poesü moderna
z7- Apud G. Caravaggi,/a ífo a/ZaZe!ura dí Garcz'a forca. Milho: Mursia, ig8o, p. 7z
i7i
silente inNaded the subuxbs. unte current
W
ofhi.s
feelingfaiLed=
donde amteras cmitu he became his CLdmirers.
Now he is scattered amarga hundred cities
por inmortaLes di.stancim.
("Las calles", igz3):9
and whotÇ given ater to unfamitiar a$ectiom .]
&.
hostililçüu
apenas se aventuram
I'he worü of Q dead man
Mas já então se percebe (pela melancolia e nostalgia meta histórica do poeta) que um mundo havia terminado. As periferias de que fala Borges
are modi$ed in the guts ofthe living.
são eternas como idéias platónicas.
IJ.
l$J
("ln Memoryof WB.Yeats" ) :; A acusação continua. Mas a cidade já não é mais representável nem visível
como conjunto e enquanto tal. Não há espectadorque possaenxerga-la. Não há espelho que possa restituir-lhe a imagem unitária. Talvez a cidade,
convertida em Megalópole Invisível, ressurja num sentido sarcasticamente perturbado em cidade-alma, como era a Trieste de Sabae a Alexandria de Kavaâs. Dessa presença da cidade-alma também falara Jorge Luis Borges,
noinício dos anosigzo: Lm catresde Bwms .vires ya son Laentraita de mi alma. No 1ascaulesenérgicas moLestçtda.s de prisu y qetreos, sino ta duLceca !e de arroba enternecida de árbolesboca.se
yaqueltas más afora ájenas de piedosos arrolados
z8. "As províncias do seu corpo revoltaram-se,/
vazias ficaram as praças da sua mente,/ os
subúrbiosforam invadidospor silêncio./ A corrente do seusentir cessou:ele tornou-se em admiradores seus.// Agora jaz espalhado por uma centenade cidades/ e de todo entregue a abetosnão-familiares/ [-.] As palavras de um homem que morreu/ modificam-se nas entranhas dos vivos." Trad. JoséPaulo Pães,in WH. Auden, Poema. São Paulo: Companhia das Letras, ig86, p. 75. [N.T.]
l-7z Cüades visheis na poesia moderna
zg. "As ruas de Buenos Aires/ já são as entranhas de minha alma./ Não as ruas enérgicas,/
perturbadas por pressae agitação,/ mas a suaverua de subúrbio/ enternecida de árvores e ocaso/ e aquelas mais remotas/ desprovidas de castos arvoredos/ onde austeras casinhas apenas se aventuram/ hosti]izadas por distâncias imortais" ("As ruas", igz3). [w.T.]
i73
Poesiae gênero lírico: vicissitudes pós-modernas
r
Ó
.1
Não estou convencido se sei o que podemos entender essencialmente por
poesia. Mesmo porque definir "essencialmente" algo requer uma fé nas essências" que eu não tenho. Quando falamos de poesia, entendemos um espaço que se define continuamente no interior do sistema dos gêneros lite-
rários. Assim, parafraseandoe invertendo um dito de Pasolini(segundo o qual "a prosa é a poesia que a poesia não é"), eu poderia dizer que a poesia
é também aquele tipo de prosa que a prosa não consegue ser. As fronteiras da poesia como gênero literário se dilatam e se restringem de acordo com a atitude de cada autor (nas diversas situações ou contingências históricas), que inclui ou exclui da linguagem poética aquilo que também pode ser dito (e é dito) em outros gêneros literários.
Por isso, desde o título desta comunicação, a poesia se distingue do
gênerolírico. Na modernidade, as fronteiras da poesia se restringiram notavelmente, talvez como nunca antes, até o ponto de coincidir com o território da lírica. Pense-sena poética de Novalis, de Leopardi, de Edgar Allan Poe e, finalmente, de Mallarmé. Mas também as poéticas
abrangentese inclusivas como as de Whitman e Rimbaud, antiintelectualistas e vitalistas (e, nessecaso,nos antípodasde Baudelaire), abriram as portas para a enumeraçãocaótica e a escrita automática, ou seja,
para aquelasformas de radicalismo antidiscursivo que terminaram por consolidar uma separaçãonítida, ontológica e de princípio (portanto, também sancionadano plano teórico) entre poesiae prosa, entre um uso "essencial"
da linguagem
e um uso "instrumental"
ou "relacional",
o
que levou à definição formalista e jakobsoniana de uma função poética da linguagem distinta de todas as demais funções. Um modo essenciai75
lista, ainda que aparentementelingüístico, de definir a poesia de uma vez portadas.
A um certo ponto,sobretudoa partir dos balançoshistóricos e teóricos dos anos t93o (com Béguin, Raymond, Anceschi; em direção oposta
ção (e pode-se lembrar que Baudelaire, fundador da Modernidade poética, ainda escreve ensaiosem versos: frequentemente há mais energia prosaica, descritiva e discursiva nas /azzr= dczma/ do que nos Pez/npoêmei enproie). Essa "lírica moderna" fundamentalmente
antidiscursiva e auto-refe-
vai Edmund Wilson, com O cm/eZode.4xeÕ,atéchegar ao "informal for-
rencial foi, porém, muito mais uma lenda ideológica, mais um mito teórico-
malista" das novas vanguardas ou vanguardas pós-modernas dos anos i95o-
polêmico que uma realidade:até um "lírico absoluto" como Gottfried
ig6o, a modernidadeé canonizadae teorizada,em geral, como negação,
Benn alterna os rigores do estilo nominal e do monologar abstrato com os
grau zero e fusão magmática, subversora dos gêneros (mais que "mistura
poemas-retrato, poemascotidianos e de intervenção. No entanto a idéia ou
de estilos": a mistura de fato requer que existam elementos heterogêneos a
ideologia dominante da poesia foi essa
serem misturados, isto é, gêneros suficientemente distinguíveis). E em poe-
base do ensino universitário e da divulgação pedagógica.
sia a modernidade
referencialismo, pura textualidade, evasão da semântica, automatismo psi-
Enfim: as "vicissitudes pós-modernas" indicadas no título apontam para uma virada fundamental no modo de considerar e de herdar a Moder-
colingüístico, antipoesia hiperpoética: antes, poesia da poesia; depois, poesia
nidade, uma virada que ocorreu, creio, antes do que normalmente se pensa.
da idéia da função poética ou poesia da teoria. Na França, entre Paul Valéry
e Ze/ Qzze/houve, nessesentido, uma continuidade. Embora Valéry apos-
O Pós-moderno começajá nos anos i94o, durante e sobretudo após o fim da SegundaGuerra Mundial, quando a centralidade européia declina e o
tasse no esvaziamento ou na imprecisão semântica posta em alexandrinos
'século americano" sai definitivamente
com rimas emparelhadas,ao passoque o formalismo informal de Ze/ Qzze/ (Jean-Pierre Faye, Macelyn Pleynet, Denis Roche) excluía inteiramente
formas mais evidentesem todos os campos:política, estilo de vida, cultura
os instrumentos métricos tradicionais. Entretanto, com seusalexandrinos
vez mais a si mesma com os olhos da América,
neoclássicos,Valéry era também um crítico conservador da modernida-
Unidos, consideradoso ponto culminante e mais avançadodo desenvolvi-
de, e não só um inovador audacioso, ao passo que, nos anos ig6o, muitas
mento ocidental. Contrariamente ao que tantas vezes se repete, a esquerda
razõese muitos espaçosinovadores da vanguarda do início do século esta-
européia não cometeu o pecado do contra-americanismo, ao contrário: o
vam exauridos: quase todas as inovações técnicas foram inventadas antes
mito da América (mais forte do que o da Rússia) habita estavelmenteas
de i95o; após i945 começaram os reP;v.z6e as redescobertas, as aplicações
vísceras da cultura européia, especialmente da cultura de esquerda, desde
e as réplicas. De resto, em Valéry havia um atrito entre hiperformalização e
os anos i93o. Mas essa é uma longa história. Queria apenas acenar rapida-
esvaziamento, enquanto na teoria da obra aterra a dialética entre grau zero
mente ao nascimento da Pós-modernidade como Modernidade européia
deâniu-se como anta-realismo, "fantasia ditatorial",
auto-
e se tornou nas últimas décadas a
do estado de latência e explode nas
de massae cultura das elites. Desde então a Europa "se aliena", vê-se cada do ponto de vista dos Estados
formal e grau zero semânticoproduz um belo vazio; ou seja,à força de es-
transferida" para a outra margem, a margem americana,em um mundo
crever frases reciprocamente imprevisíveis em obediência à teoria da infor-
agora dominado pelo modelo norte-americano. Uma Modernidade desar-
mação, deu-se uma peculiar ei eriÍafâo do vaÍ;o, entendido como o máximo
ticulada, transformada em arquivo e museu, exaurida como experiência e
de contestação linguística dos procedimentos literários tradicionais. Assim, muitíssimas coisas que, não digo até o .Serraram o (Pape, Voltai-
renda, reapresentadae reutilizada como património cultural acumulado. Uma Modernidade historicizada, ensinada nas universidades. absorvida
re), mas até Foscolo, Púchkin ou mesmo Baudelaire, podiam ser ditas em
pelas instituições como busca ininterrupta e obrigatória do "novo", ar-
versos, a partir do simbolismo da segunda metade do século xix até as últi-
quivada (é a tese de George Steiner) nas coleções americanas. Dos anos
mas vanguardas passaram a ser excluídas: falar em poesia se tornara exce-
r95o em diante, começa aquele en eZ3ec;mento da modernidadee da van-
l-76 Poesia e génerolírico: vicissitudes pós-modernas
i77
gu.ardatratado por Adorno em seuensaiosobremúsica.A continuidade
por uma ideologia anulam ou mascaramos problemasde maior ou menor
se rompera. Não era possível acreditar na continuação de experiências do
sucesso de cada artista e cada produto artístico.)
início do século. Seja como for, elas seriam transplantadas e reutilizadas
K
Feitas estas considerações preliminares, darei apenas alguns exemplos
de modo pós-moderno, em um contexto mudado, no qual o "público bur-
de como, na Pós-modernidade,a poesia forçou os seuslimites: i) recu
guês" clássico,escandalizadoe ultrajado pelas vanguardashistóricas, fora
gerando dimensões da prosa ou, às vezes, da teatralidade; z) reabrindo o
adestrado pela crítica e se transformara em público neoburguês avançado e condescendente, que considerava a transgressão vanguardista o primei-
diálogo com a tradição pré-moderna; 3) praticando uma pluralidade de vias possíveis e saindo da tutela de poéticas fundadas numa consciência
ro mandamento cultural. A vanguarda era ensinada nas academias.E isso
histórica de tipo monista; 4) mantendo, recuperando ou desconstruindo o
determinou, nos anos ig6o, o nascimento daquelapós-modernidade ma-
espaço clássico da lírica como absoluto monológico
dura, que transferia o choque moderno para um futuro paciâcado.
'universo humano" da experiência e "idioleto" estilístico.
a meio caminho entre
De qualquer modo, a pós-modernidadeé uma época. Uma situação
Os exemplos que apresentaremaqui são simplesmente exemplos; não ex-
da arte e da cultura que não pode ser resumida numa só poética e em um único estilo. A Pós-modernidade é ainda a crise do monismo historicista de
cluem que outros possamser apresentados ao lado ou em substituição a estes.
que nasciam seja a ideologia da vanguarda, seja a do engajamento, segundo
Os primeiros dois autores não são italianos, mas me parecem necessários
a qual, dada uma certa consciência da situação histórica e política da arte,
para definir a moldura geral e pós-moderna dos fenómenos poéticos da
não se podia senão deduz;r zzmmodo e ape
zzmde fazer arte à altura dos
segunda metade do século xx: se tratarmos de genealogias, de origens e
tempos As tendênciasartísticas militantes organizavam e interpretavam
descendências, creio que serádifícil evitar dois autores, porém muito dife-
a si mesmas segundo o modelo do partido político, mais ou menos revo-
rentes entre si, como Wystan Hugh Auden e Francês Ponge.
lucionário: um grupo, um manifesto técnico-político, uma praxis artística deduzida de certos princípios e defendida em grupo. Naturalmente é difícil encontrar esse esquema tipológico em estado
Em Auden,
os sinais
da virada
pós-moderna
são legíveis
no aprc?Óun-
damenropar.z [rú da óarrezra da modernidade, em direção iluminista, satírica, teatral, neoclássica. Auden é um dos raros grandes poetas que atuam entre
puro Mas ele está presente e age em numerosas experiências. O grupo
a primeira e a segunda metade do século e percebem (até mesmo como ví-
pode ser pouco homogêneo, o manifesto pode ser disseminado em várias
tima) a passagem de uma fase (próxima
intervenções críticas. O que conta é a dedução da forma artística mais Ãisfo-
americano, que ocupa grande parte de sua vida (de i959 a i973), é caracteri-
r;camen e regi ;Haja (ou a única justiâcada historicamente) por uma análise
zadopor uma perda daquelecontexto familiar inglês no qual e pelo qual ele
ou teoria do exato momento da História (história como processo unilinear)
havia escrito seus primeiros livros. A Europa se distancia, o engajamento
em que se encontra. (Relevo aqui o fato de que grupos e tendências orga-
político terminou para ele. Pareceque a certa altura Auden já não sabeo
nizadas, ou "partidos políticos da arte", têm também uma função autopro-
que fazer do seu talento e de suasextraordinárias qualidades de virtuose da
mocional: dão segurança, força, garantias, proteção aos artistas individual-
linguagem poética, de filósofo em versos, de moralista.
a Eliot e Brecht) a outra: o período
mente, em sua luta por concorrência no mercado. Em suma, os partidos
Mas toda a obra de Auden nasce num apor a Modernidade: depois de
políticos da arte também são agênciasde promoção e colocação. Os artistas
Eliot e Yeats, depois de Rilke e Valéry, depois de Kraus e Brecht. Desde o
de um grupo de vanguarda se apresentame se compram "em bloco". E
início, Auden escrevepoesia com tal largueza de meios, pondo em jogo uma
isso faz diminuir, para cada um deles, os riscos de fracasso e de exclusão.
tal variedade temática e estilística, que parece não só um poeta, mas sobretu-
A garantia oferecida por um manifesto e a legitimação histórica fornecida
do um dramaturgo e um ensaístaem versos. Auden libera a poesia moderna
l 78 Poesia e género!trica: vicbsimdes pós-modem.s
i79
de seuspurismos e rigores. Desata aquela espéciede "paralisia da discursi-
K P
llt
@
ácaro;parece comunicar-nos suasreflexões conâdencialmente, de modo ex-
vidade" que acometera os poetas do simbolismo às vanguardas, saindo seja
temporâneo,como faria com um amigo que o acompanhassepelas salas.
do culto da forma absoluta, sejado informe caótico
restituindo à poesia
Examina cada detalhe da tela e chega a uma idéia geral: a Natureza e a His-
uma riqueza semântica e uma robustez formal anteriormente perdida, que mesmo poetas intelectuais como Eliot haviam reconstruído com esforço (o
tória humana,a vida cotidiana com suasdistrações e cansaços,continuam
Eliot dos "Quartetos" já era contemporâneo de Auden, e não é improvável que ele tenha usufruído ensinamentosdo poeta mais jovem).
desgraçado ácaro perca as asas e se precipite no mar. Ironia e sentimento
Auden não é um poeta lírico. Não isola (como Pound) momentos de
sendo aquilo que são ainda que Jesus nasçae seja cruciâcado, ainda que um do trágico não se excluem: cada qual tem suas razões e suas finalidades, e essaconstatação é ao mesmo tempo trágica e irónica. A realidade não obe
intensidade. Fala e pensa em versos. E os versos dele, com a sua regula-
dece a uma racionalidade única. O cosmo é uma soma de microcosmos que
ridade polimórâca e imprevisível, parecem apenasinstrumentos técnicos para pensare falar melhor, jogo e música sem os quais a inteligência não
não repetem o conjunto e que raramente se comunicam entre si. É a visão
conseguiria funcionar tão bem. A obra poética de Auden tem uma fluência às vezesoratória e às vezes
coloquial, o que por si já assinalauma virada em relaçãoao estilo "modernista" concentrado, ascético, hermético, órâco, esotérico, característico no
tardo-simbolismo de autores como Rilke, Yeats, Valéry. "A poesianão é magia", escreveu Auden. "Se for possível atribuir à poesia [.-] um escapo
ulterior, este consisteem desencantare desintoxicar,dizendoa verdade' (em "The
Dyer's
Hand",'
ig6z).
A linguagem poética de Auden não aspira (como, depois dele, a de Dylan Thomas) a ser um sucedâneo'7o silmóó#co" da realidade. É acima de tudo um comer/.íno à realidade: mais observada a distância, de fora e do
alto, do que diretamente vivida. Auden não é um poeta do ser,mas do pensar. Em sua poesia,as palavras não querem ser coisas nem influir sobre as coisas. Os desconhecidos legisladores do mundo", escreveu no mesmo ensaio citado, "é uma definição adequada aos membros da polícia secreta, não aos poetas'
pré-moderna dos Antigos Mestres que põe em discussãoo monismo historicista. A História não é um processo unitário que, entendido em teoria, possaser modificado na prática em seu conjunto. A realidade é descrita por Auden como um cenário já existente (um quadro já pintado), que pode ser observado, mas não modificado. O poeta e o intelectual são testemunhas e intérpretes, não são legisladores nem políticos. Auden escreveu centenas de versos, longos poemas de reflexão redi-
gidos diligentemente em formas métricas tradicionais. Quase nunca fala de si, é capaz de versiâcar qualquer coisa, não impõe à sua poesia limites temáticos, de assunto ou de tom. Varia, comenta, retoma outros textos, cita outros escritores, divaga solene e humoristicamente sobre a história da civilização a que pertence. Diferentemente dos simbolistas, dos poetas puros, dos visionários, dos novos metafísicos e dos vanguardistas, em Auden não
vemos fusões de imagens nem aproximações por pura analogia, não encon-
tramos nem sequera técnica da imagem singular que salta do vazio e do escuro, não vemos colagem nem montagem de fragmentos. A teatralidade de sua versificação, às vezes paródica, às vezes oratória, recoloca a poesia
Um de seus poemas mais citados e típicos, "Musée des Beaux Ans" (em H/zo Ãer Time, i94o), define exemplarmente o procedimento de Auden e sua idéia de poesia. O poeta se aproxima de nós como o visitante de uma pinacoteca. Observa um quadro de Pieter Brueghel, o jovem, .4 gizadade
nas dimensões da conversação, da sátira, da écloga, da invectiva, do ensaio e da epístola em versos ou do sermão. De maneira completamente distinta, Francês Ponge também poderia ser considerado protagonista de uma virada neoclássica ou pós-moderna em relação à poesia francesa entre o simbolismo e a vanguarda surrealista.
i. Ed. liras.: "A mão do artista", in .4 mão da arfüfa, trad. José Roberto O'shea. São Paulo; Siciliano, i993. [N.E.]
1 %Q Poesia e género !írico:
Nesse sentido próximo a Henri Michaux, o "realismo"
poético de Ponge
nasce quando a poesia cessou de acreditar em si mesma, em sua idéia ou vicissitudes pós-moderam
i8i
M .[:
)
B
ideologia, em seu apnon estético. "Quem quer saber o que pode ser uma
Enquanto a pós-modernidade de Auden (assim como a de Borges) é
poesia puramente realista, isenta de qualquer contaminação subjetiva, deve
carregada de história e é ambientada familiarmente numa tradição secular,
busca-la em FrancêsPonge" (G. Picon) .
tornada de novo acessívelem todas as direções, a pós-modernidade de
Estamos nos antípodas da lírica segundo a definição clássica (e hege-
Ponge (assim como a de Beckett) nasce de uma desintoxicação (ou san-
liana) de expressão do sujeito que fala a si mesmo, mas também estamos
gria) anti-heróica da história, da tradição, de todo o passado.A cultura
fora do espaço surrealista definido pelos procedimentos de liberação do inconsciente. Ao renunciar metodicamente à versiâcação isso em uma
francesa sempre foi mestra em matéria de continuidades absolutas e de
literatura como a francesa,na qual o verso era uma instituição marmórea
após o fim do mundo cultural: e recomeça infantilmente,
que levara a uma separação nítida entre discurso poético e conversa coti-
muito pouco.
futuras radicais. O moralismo neoclássico de Ponge chega como se viesse senão do zero, de
diana --, Ponge também orientou o trabalho poético em direção à prosa. Os bizarros ensaiospoéticos ou poemetos em prosa de Ponge são interessantes
Vamos à Itália. Os casosde Montale e Pasolini me parecemparticular-
especialmentecomo programa de "higiene mental", pela desintoxicação da
mente interessantes no assalto à lírica por meio de estratégias prosaicas.
linguagem poética da massade suasescórias líricas. Há nisso uma posição
Na dilatação discursiva dos limites da poesia, a lírica termina se afogando.
de princípio que se esforça por tomar corpo em exercícios descritivos lvoluntariosos e humorísticos (uma barra de sabão,um seixo, uma aranha, um
Nessesdois autores, age a consciência de que a Modernidade, depois de
prado são alguns dos objetos sobre os quais o autor se concentra). Ponge
1945,se exauriu, não pode ser continuada na mesmadireção nem muito menos replicada: o escândaloformal tornou-se lugar-comum e atingiu a
finge levar pela mão, como a uma escola, a poesia em direção à prosa. Mas
sua última fronteira. A rrad+âo do no o estabeleceu-see agora impede que
em suas "férias" dos gêneros, pondo em cena um rigor objetivo, realista,
o "novo" possa conter simultaneamente
uma hipótese de teimosa honestidade descritiva um tanto inconcludente,
gressão. Nos ensaios de ..durodele', Montale percebe lucidamente o conven
Ponge termina por não assumir nem as responsabilidades da prosa, nem as
cionalismo das Neovanguardas da segunda metade do século.
da poesia: espera que a língua se torne mais verdadeira e real com a recusa
valor e choque, instituição
e trans-
A progressiva aproximação da poesia à prosa e o desenvolvimento
cândida e pertinaz dos gêneros estabelecidos, antecipando assim a "écnrzzre
da dimensãodiscursiva tanto no ideólogo Pasolini quanto no antiideólogo
fexrzze//e"dos anos ig6o. A escrita que perscruta o objeto obsessivamente
Montale surpreendem pela diversidade de temperamento e de cultura (para
tende a se tornar ela mesma o objeto descrito, o seu ectoplasma verbal.
não falar da distância geracional) entre os dois poetas-
Interessante é que Calvino tenha descoberto Ponge (como um dos
Montale havia sido um virtuoso maneirista do monólogo alusivo, ci-
mestresdo Pós-moderno, ao lado de Borges e Queneau) no momento em
frado em código. Pasolini partira do lirismo dialetal para chegar ao poemeto
que tentava levar sua prosa narrativa rumo à condensação da poesia ou do
cívico. Com os livros dos primeiros anos i97o, ambos levam a poesia cada
poemeto ensaística(das
vez mais perto da prosa. De Sarzzraem diante, Montale se torna um poeta
Czdadei ;nvúú,eú a Paço«?ar).
Os objetos singularessão usadospor Pongepara fazer explodir a
afável e maledicente, comunicativo, acessível, satírico, semijornalístico e le-
macro-unidade do mundo, bem como a razão sintética e totalizante, com
vementeautopromocional (mastambém autoliquidatório: liquida a sua Mo-
suas interconexões.
dernidade dramaticamente lacónica, agora distante e achada pelos críticos)
A descrição imanente do objeto se torn& uma espéciede épica ou
Pasolini, cada vez mais descontente de si, atinge com Zrmzzman'zre
lírica da singularidade,da diversidade,da multiplicidade irredutível em
org'zn;ÍÍaro limite do desleixoestilístico e da improvisação: seuspoemas
que estamos imersos.
se tornam artigos maltrapilhos em falsos versos. Sua versificação, sempre
\'82. Poesia e género!Írico: vicissitu.despós-moderam
i83
mais incerta e informe, era agora inadequada a uma poesia que estava se tornando agressiva e energicamente argumentativa.
Montale havia desembaraçadoe articulado em nexos racionais, em
No entanto a componente autobiográfica era decisiva: o estilo de testemunho moral em público, a conâssão que toma forma de denúncia social, o ódio pelaburguesia ou classemédia (sobretudo a italiana, masnão só) como
gradações inteligíveis, as suas alegorias peremptórias e intimidadoras, qua-
não-vida, anta-realidadeetc. Sejacomo for, não discuto aqui as idéias de Pa-
se como se cadenciasse os seus artigos e prosas de arte. Pasolini inventava
solini, "sociólogo" genial. Noto que os seus últimos ensaios são a sua obra-
um novo e eâcaz organismo estilístico: o poemeto ideológico-autobiográfi-
prima, inclusive pelo uso que o poeta faz de si mesmo como açor, figura
co em prosa, o artigo de poesia. Essa reconversão do poemeto cívico numa
pública. O talento maior de Pasolini(além de crítico) era teatral e retórico.
prosa argumentativa e energicamente ritmada é levada a cabo sobretudo na
obra-prima dramático-retórica, Carlm /uferanm. Tocar as "fronteiras da poesia", desloca-lase força-las se torna ne-
Parece-me que outros dois poetas italianos tiveram, no que diz respeito à
cessário para sair de sistemas estilísticos que tendem ao fechamento. Não
mas análogos aos de Pasolini. Refiro-me a Pagliarani e a Giudici.
creio que a última poesia de Montale
relaçãoentre lírica e gêneros poéticos digamos épico-dramáticos, proble-
sua produção, digamos, pós-mo-
Muitos anosatrás,ocorreu-me de deânir ElmoPagliarani um "populis-
derna (um Montale que pressupõee divulga Montale, um pós-Montale)
ta aóso/ame/zmoderna". Tratava-se de uma polêmica contra quem despre-
- seja melhor do que a dos primeiros três livros, longe disso.Todavia,
zava os populistas por princípio, isto é, contra quem acredita que no fundo ou do fundo da sociedadese vêem e se entendem mais coisas que do alto. A
no Pós-moderno é recorrente a "desdramatização" divulgadora e lúdica das tensõesdo Moderno. A obra de Montale é das mais exemplarespara
língua e a rítmica de Pagliarani nascem de um deslocamento "subterrâneo
entender a passagem de uma fase a outra: a figura do poeta muda, a afasta
do lugar da poesia: baixo o suficiente para impedir, tecnicamente,que a
sempre ameaçadorae a obscuridade quem sabe exibicionista tornam-se
poesia seja prejudicada pela idéia da poesia, isto é, pelos procedimentos da
agora poesia conversada, cear'poezry. O público já está academicamente
sublimação estilística.
preparado para acolher a arte moderna em bloco, arte consumida sem
Da Baga
a Car/a (tg6z)
à .Ba/safa dz'Raiz (i995),
para construir
os
incomodo, com uma certa indiferença hedonista. Montale então distri-
seuspoemas Pagliarani precisou inventar uma personagem-motor de uma
bui em poesia aquele saboroso e excitante pessimismo cético ou niilismo
história a ser encenada, em torno da qual outras personagens pudessem
elegantementetolerável que caracteriza a âgura do escritor como grande
girar. A tradição de Pagliarani é a do poema teatral, do monólogo dramati-
senhor desencantado.
zado e da balada (um pouco semelhante a Maiakóvski, Eliot e Brecht). No
Interessantee diametralmente oposto é o caso de Pasolini. Que, ao contrário, redramatizae torna teatralmentemais eficazo seu desencontro
que se refere a afinidades, acho que Pagliarani as tem provavelmente mais
com o público e com as opiniões políticas e culturais correntes. De poeta
Volponi de Co7oraZe)do que com poetascontemporâneoscomo Majorino,
ideologizante transforma-se em ideólogo poeticamente inspirado, mas não
Sanguinetti e Amena Rosselli.
com narradorescomo Bianciardi, Mastronardi e Volponi(especialmente o
por isso sem força de choque diante dos Zoc;commzznei dominantes entre os
Com Rude, Pagliarani inventa a personagem de uma história que par-
intelectuais de esquerda; os componentes da mistura podiam parecer previ-
te dos anos i94o e chega aos anos ig6o, um período de céleres transfor-
síveis e bastante heterogêneos: algumas páginas de Marcuse, os escritos de
maçõesna vida italiana. Mas, como sempre ocorre em Pagliarani, o que
don Milani, a Elsa Morante dos anos ig6o (de Prá ozzcontra .z óomóa além;fa
conta na .Ba/Zar.zdzRzzdié a sua voz, sua "fala" especial e sem confins, o seu
a O mzzndoia/vo pecosgarorüÃoi), o populismo soberanamenteestético e
anárquico falar de tudo e aos arrancos, aos saltos, dissimulado e agressivo,
absolutamente impolítico de Sandro Penna...
lançadopara frente: em que a interioridade lírica é zerada pela recitação,
i%4 Podia e gêmro lírico: vicüsit despós-motiernm
i85
e o pudor se torna humor arredio,intolerânciaem relaçãoà estética.Sua
poeta, um herdeiro de Auden (como ensaísta, nos faz pensar às vezes em
língua é sempre rigorosamente pré-literária, depurada de qualquer inflexão
Kraus ou em Orwell). Desde o início, demonstrou uma grande atençãoaos
lírica, uma espéciede prosa rítmica expandida e martelada.
gêneros literários. Pode mistura-los, mas não os ignora nem os anula. Seus
Assim como Pagliarani, Giovanni Giudici tem um forte sensodos gê-
poemas tendem à sátira, à descrição do real, ao aforismo.
neros literários. Evita ou teatraliza a lírica: quando se faz de lírico, o faz
No início de sua carreira, entre o final dos anos í95o e o início dos anos
como um ator em cena. Suas emoções e visões oníricas são sempre social-
ig6o, dois títulos chamam a atenção: -44üeü dapoeiza moderna (uma antolo-
mente (e até sócio-logicamente) localizadas. O gênero que, ao anal, emergiu de modo cada vez mais evidente em Giudici é o romance em versos.
gia de ig6o)
ig6z). Enzensberger se dá conta de que a poesia moderna passou a ocupar
Mas Giudici usa a métrica como técnica de estranhamentoem rela.
uma ala do Museu da Cultura: vista em seu conjunto, dá a impressão de um
e o ensaio
"As aporias
da vanguarda"
(em Qzzeizõea de dezaZÃe,
ção à fala pequeno-burguesa, à prosa funcionária e semijornalista que ele
processo único, mas também surpreende por uma variedade internacional
insere em seuspoemas. E, metricamente, re-usa, refaz, traduz para os pró-
das experiências e das formas que não permite mais pensar em termos de
prios propósitos uma vasta tradição. Ele aprende com Pascoli, Saba, com
oposição entre centro e periferia, capital e província. Aliás, um dos autores
os trovadores, Púchkin e os poetas novecentistas da boêmia (Holan, -Halas,
preferidos de Enzensberger era então um provinciano periférico, emigrado
Seifert, Orten). E finalmente reencontra a lírica à força de virtuosismos
e desenraizadoem Paris, o peruano César Vallejo, meio índio quéchua. Mes-
métricos, ainda que seusmonólogos não soem Jamaiscomo solos absolu-
mo em Paria, Vallejo nunca se torna um cosmopolita e morre de melancolia,
tos: são empastados de teatralidade, de correções realistas, de paródia e
nostalgia, angústias políticas e de pobreza na grande capital da esquerda e
autoparódia. Por meio da métrica (uma métrica mista, que vai do informe
dos artistas: "Me moraráe/zParZç con agu'zcero", escreve num famoso soneto
ao formalizado, do verso livre à redondilha e ao octossílabo rimados, capaz
de auto-epitáfio. E, em outro poema, ironiza: "Passa um manco que dá o
de nadar dentro da mais densa e misturada matéria ou do "lodo" verbal. e
braço a uma criança.
que pode transformar surpreendentemente qualquer segmento de frase em
O mundo
Depois disso, posso continuar a ler André Breton?"
periürico
cercou
as capitais.
Enzensberger
escrevem
versos tradicionais), por meio dessamétrica a mais exigente e sofisticada,
Giudici recuperao acessoà tradição do verso italiano. Uma tradição, pois,
,4 "província" está em todaparte, porque o centro do mundo não está emparte
que retorna.
alguma. \.. À Com a soberba dm capitais também se dissoll,e o sentido pejora
Agora mais um exemplo estrangeiro, para mostrar quanto a s;rzzafâo pós-moderna é algo distinto de umapoé /capór-modernúra programática, a ser exibida como solução historicamente privilegiada. Trata-se de Hans Magnus Enzensberger, um dos poetas e escritores
cito do termo "província". \.. À .4 língua franca da poesia moderna não é nem
uniformidade vaca riem uma espéciede esperandolírico. \..]\ Não signifca nem estandardizaçãonem denominador comum mínimo. Zo contráho. ELa
não libera a poesia dos limites daÂliteraturas naciortabpara arrancar-the
europeus mais "experimentalmente" inventivos e, ao mesmo tempo, mais
as raízesdo terrenoda província, projetando-m no vago da abstraçãoQn
neoclássicos (nesse sentido, ele tem uma semelhança extrínseca com Calvi-
Questõesde detalhes.
no ou talvez com Stanley Kubrick, que refaz diversos gêneros da tradição).
Enzensbergerusou as formais mais díspares:o ensaiopolítico, a reporta-
Nessa crítica do "esperanto lírico", da cultura das capitais, o cosmopolita
gem, o panfleto, o poema dialético-didático, o poema ensaístico, a monta-
Enzensberger desmonta o mito cosmopolita segundo o qual só se moder
gem de documentos, o romance-colagem etc. Na realidade, mais que de
niza deixando para trás a retaguarda das províncias, para precipitar-se na
Brecht ou de Benn
abstração de uma vanguarda "estandardizada". Se nas artes não ocorre
i$6
ou para além deste --, Enzensberger me parece, como
Poesia e género!Írico; vicksitudes pós-moderam
i87
progresso linear de mão única, a própria idéia de vanguarda é insustentável.
setebalada sobrea Itbtória do progressoe O naufágio do Titanic, em qxe anal\sa
A ideologia da vanguarda necessitado historicismo progressista.
asilusões, deformidades e loucuras da idéia do progresso e de seussacerdotes.
Em Enzensberger,a Modernidade é vista sobretudo como um processo
Em ambos os poemas, são frequentes descrições satíricas e inserção de citações,
concluído: mesmo porque a autoconsciênciahistórica eunitária que constituía
mas nunca com função meramente sugestiva, e sim descritiva, documentária,
o seu pressupostoexplícito ou (mais freqüentemente) implícito se fundava na
argumentativa. A História progressiva parece ser posta em xeque não só pela
centralidade das capitais européias da cultura. (O problema é que, depois de
racionalidade que seaninha no excessode coerência racional, mas também pelo
i945, e cada vez com maior autoridade, Parasfoi substituída por Nova York,
enorme imprevisto implicado na Natureza(o iceberg que afunda o Zzra/z;c).
e os EUAse tornaram o centro, a vanguarda indiscutível do planeta: nada que
não passepor lá consegueter um ar "universal" ou planetário.)
Mas é verdade que não há espaço para o gênero lírico na segunda metade
No ensaio sobre as "Aporias da vanguarda", Enzensberger começa ob-
do século xx? Dois líricos na plena acepção do termo e em grande estilo
servando que agora qualquer artista quer ser considerado de vanguarda, ao
foram, por exemplo, Paul Celan e Yves Bonnefoy, para os quais a tradição
passoque autores como Kafka, Proust, Faulkner, Brecht e Beckett teriam
hermética e simbolista parece uma corrente ininterrupta.
repudiado a denominação e o rótulo de vanguardistas. Simplesmente, como
Bonnefoy, em -44oP;mentoe ;moói#dade de Z)ozzve(i953), escreve poesia
observa Enzensberger, o debate sobre a questão não tem sentido, porque,
sobre a poesia, sobre o mito da palavra poética enquanto totalidade identiâ-
desdeos tempos em que Swift escreveu a .BaraZZa e/zfreos # roi 'z/zrzgoie os
cável com um discurso sobre o Ser: apresenta-se como poesia de amor sobre
moderada(i7io), "essagaere/Ze perdeu todo o seubrio e originalidade".
o corpo e sobre a essência feminina, resolvendo-se em ontologia poética.
Porém, ao criticar a vacuidade da oposição entre "velho" e "novo",
O casode Celan mereceria uma análise à parte. Porque, nele, a obscu-
Enzensberger também critica a oposição de Lukács entre arte "progressista"
ridade, a alusão, a obsessão pelo indizível e pelas experiências não-verbali-
e arte "reacionária".
O que seja de fato a Vanguarda só se pode entender
záveis tiveram como pressuposto os Lager nazistas. Assim, em sua poesia, a
a posrenon, pois é impossível estabelecê-lo de partida e autoproclamar-se
luta contra o silêncio e a convivência com o silêncio não se enraizam numa
seu representante:
ontologia mística ou numa teologia negativa, mas sobretudo numa atroz experiência biográfica e histórica.
C)esquema em que se modela a idéia de vanguarda é imprestávet. O avanço das
Na Itália, os maiores poetas mais propriamente líricos da segunda me-
unívoco, distintamente perceptível
tade do século foram Sandro Penna, Amena Rosselli e Andrea Zanzotto.
emseu coÚunto: cada um deverá sercapalde deFnir a própria posição, na ponta
Neles, a discursividade é cortada ou condensada em sentenças. E se percebe
ou na bme. \.. À 4 vanguarda quer introdu+r deforma doutrinária a Liberdade rLa
que, nos três, gostosamente, extaticamente, angustiadamente, a lírica é uma
arte, msim comoqueim..suÍLar o comunismon.asociedade.De forma semelhante
prisão, mas que no entanto coloca essesautores em contato com os grandes
aopani'io
arquétipos da poesia lírica, fechada em seu monologar. Eros (em Penna),
artes se con#gura como um movimento !luar,
\..l\ eLa acredita ser credora dofuturo
(Xn Questões de cletalheà.
paisagem(em Zanzotto), diálogo com os mortos (em Rosselli) impelem Diferentemente do pós-modernismo,que replica o moderno como eterna novidade" (como se viu na arte informal, na músicaserial e eletrânica, na
'poeticamente a-histórico" (jamais se consegue entender efetivamente de
poesia concreta, na ceargenerarün), Enzensbergertentará tornar produtivas
onde Penna deriva, quais são as suas "fontes"); em Zanzotto, se torna des-
algumas técnicas, como a montagem de documentos e a reportagem literária.
construção psicolingüística e meta-literária do sujeito poetante; em Rosselli,
Nos anos i97o, construirá dois poemasensaísticoscomo MamoZezzm. 7}znzae
descreve a luta de quem quer sair do labirinto do eu, mas não faz mais que
1%% Poesia e gêwro tírico= vicissitudes pós-moderna
essespoetas a variadas formas de monólogo: que, em Penda, aparececomo
i89
produzir, sempre de novo, novos labirintos, enquanto a realidade externa
Entrevista com Alfonso Berardinelli
não consegue alcançar significados estáveis. Embora nas últimas décadas do século xx se tenha difundido a idéia de que signiâcados "estáveis" (alguém diria "metafísicos") não ocorrem na realidade, na poesia de Rosselli vê-se quão pouco pacíâca e lúdica é a situação do indivíduo para quem isso
não é uma teoria, mas uma experiência real e cotidiana: o caráter enigmá-
tico e a instabilidade de signiâcado de cada gesto e objeto assumem,na poesia de Rosselli, uma evidência e seriedade trágicas. O paradoxo, porém, é este: não obstante o lirismo e em virtude deste, os três poetas aos quais nos referimos conseguem emitir mensagens surpreen-
Alfonso Berardinelli é hoje um nome reconhecido na crítica literária italiana. Como se deu
dentemente plausíveis (e alarmantes) sobre o estado do mundo que parece
sua formação de crítico?
escapar-lhes.O jogo de espelhos em que o eu se fragmenta e recompõe é
tambémo jogo em que o mundo se espelhano eu semadquirir unidade
Pode parecer um paradoxo, mas me tornei crítico quase sem querer. Nos
e univocidade. Até Penna, que finge com o seu tradicionalismo lingüístKO
anos da minha formação, a crítica era o caminho mais óbvio para se chegar
um equilíbrio ontológico entre eu e mundo, mostra não acreditar em nenhum
à literatura. Tanto o romance como a poesiarefietiam intensamentesobre
deles, mas só nos eventos incalculáveis que realizam o encontro momentâ-
sua própria situação. Desde menino achava que a literatura
neo entre o desejo e os seus objetos.
antesde ser invenção. Li Tolstói, Camus, Eliot entre os catorze e os dezoito anos: nos três encontrei um violento mal-estar em relação à vida social. Na
Definir a Pós-modernidade não é fácil. Tentar fazê-lo pode facilmente levar à invenção de uma manipulável doutrina histórico-estéticas ieparrozzr.Quem
universidade, quando comecei a ler ensaios de crítica literária, me atraía muito o estilo dos críticos, além de suas idéias e métodos. Gostava tanto
sentir a necessidadedisso e conseguir tirar bom proveito, que o faça. Pesso-
dos críticos-escritores como Leo Spitzer, Roland Barthes, Walter Benjamin,
fosse crítica
almente, creio que seja mais útil deter-se com muito vagar numa idéia terri-
Edmund Wilson, como da crítica escrita por poetas como Eliot, Montale,
velmente simples: por um lado, a Pós-modernidade ofereceu uma série de
Gottfried Benn, Auden, Enzensberger. Para mim a crítica literária estava
possibilidades novas; por outro, foi também uma Modernidade que não deu
sempre misturada com a crítica da ideologia, dos mitos contemporâneos,
certo, uma Modernidade que esgotou seuparÃoi antagónico e seusrecursos
das idéias correntes. Até hoje acredito que a verdadeira crítica seja também crítica da sociedade.
inventivos. Toda a segundametade do século foi marcadapor essedgoü. Cada escritor fez dessasituação factual um uso próprio. Acredito que
Comecei a escrever em uma revista de oposição, nos anos i97o, Qzza-
esselongo depois, que durou cerca de meio século, possa agora ser conside-
der/z;Piacenrifz;,e lá tive a conârmação de minhas idéias de juventude. Um
rado encerrado. A própria Pós-modernidade, se olharmos para o presente e o futuro, se torna uma categoria amplamente supérflua: exauriu sua função
artigo sobreum livro ou sobreum âlme tinha a mesmaimportância de um editorial de política. Depois estivena universidadepor muitos anos,
crítica e produtiva fundada no confronto com uma Modernidade ainda re-
colaborei com rádios, jornais e revistas. Sempre procurei me fazer enten-
cente; o resto, isto é, o presente, permanece não-cazegor;i:ado e sem etiquetas. De resto, qual é o autor que, querendo escrever, possa desejar conhecer
der, tentando evitar que os alunos se transformassem em pequenos inoós. Uma crítica literária entediante e obscura é um contra-senso, uma verda-
antecipadamente a própria colocação histórica?
deira traição. Nossa tarefa é, antes de mais nada, entender e fazer com
L 90 Poesia e género !írico: vicissitudes pós-moderam
i9i
que se entenda. É claro que se pode também escrever obras exemplares, de originalidade intelectual, masisso vem depois. Não deveria se basear
literário deixar para trás, e com satisfação, toda a crítica precedente e sua história. Na verdade, mesmo autores como Leo Spitzer, pai da Estilística,
somente em críticas ou no saber especializado. Deveria sempre partir de
ou Viktor Chklóvski, pai da Narratalogia, interessavammais como p'ecur'
conhecimentos comuns, compartilhados, até mesmo elementares.Para,
fores do estruturalismo do que por seu valor intrínseco. O que interessava
naturalmente, ir além.
era identificar os germens de uma teoria da Literatura sobre a qual fundar
como parte de uma sociedademodernizada -- o estatuto cientificamente controlado e culturalmente potente de uma nova crítica. E nesseponto o Já há algum tempo discute-se, e sua voz é das mais insistentes. sobre o rumo e destino
'século da crítica" alcançou o cume da sua "Utopia Epistemológica'
da "crítica militante" na ltália. Em que ponto estamos?
"Militante" é uma palavra estranha e belicosa. Com certeza é um tipo de crítica diversa do estudo literário por depender da mistura de várias aptidões:
Ecomo passamosdesse protagonismo epistemológico para as condições de uma crítica que hoje parece desorientada e dispersa?
a curiosidade do cronista, a imaginação e a preocupaçãocom o estilo db escritor, o gosto pela polêmica, a paixão pelas relaçõesvariáveis entre livros
Quando a crítica acreditou poder superar de uma vez po' todas sua dimen-
e leitores etc. Para um crítico é importante o que sonhou à noite, como seu
são pessoal e subjetiva, sua parcialidade, isto é, os riscos de uma atividade
humor mudou durante a leitura, do que falaram os jornais naquelesdias e
que não é somente cognitiva, mas também expressiva e comunicativa, per' deu sua vitalidade. O mesmo aconteceu com o marxismo. No momento em
tudo mais, enquanto para os estudiosos as coisas não funcionam do mesmo modo. Se alguém escolhe dedicar anos de trabalho a Virgílio ou Petrarca,
o faz também tentando evitar que seu trabalho seja influenciado pela sua atividade onírica e pelos decretos do governo. Naturalmente ocorreram interferências entre a crítica militante e o es-
que a crítica cultural, social, política de Marx foi apresentadapelos marxistas como a única e verdadeira teoria e ciência do capitalismo burguês a única forma coerente, radical, rigorosa de crítica do mundo moderno -- todas as outras formas de crítica pareceram insuficientes.
tudo literário. É o que aconteceu por volta da metade do século xx: a crítica
Com a Teoria e a Metodologia estruturalista acreditou-se passar do
se sentiu atraída pelo prometode superação de si mesma, por se liberar do
subjetivismo para o conhecimento abalizado, e, ao invés disso, a crítica
seu impreciso fundo humanista, subjetivo, oscilante entre o arbítrio do gos-
se atroâou enquanto ponto de vista subjetivamente orientado e motivado.
to e o da ideologia. Entre o final dos anos i95o e os anos ig8o a crítica quis
Esquecer-se deste aspecto não a ajudou, tornou-a estéril e asséptica. Em
entrar para o mundo da ciência, abandonar a coxa e abraçar a epúfeme.
seguida -- diminuída a força da utopia epistemológica do estruturalismo -- transformou-seem uma atividade muito marginal e instrumental. Contracapase orelhas editoriais, livros didáticos, resenhasde trinta linhas...
Abria-se assim a época de ouro dos "métodos" derivados das ciências humanas: linguís-
Devo, entretanto, circunscrever meu pessimismo à década de ig8o-
tica estrutural, semiologia. psicanálise. No início produziramo efeito de ampliação do
Nos últimos tempospossoafirmar com segurançaque a cr(tica literária ita-
panorama. quase uma aventura cognitiva ilimitada...
liana é substancialmente melhor do que a narrativa e do que a poesia, e não sou o único a pensar assim. Nove entre dez dos atuais narradores e poetas
No momento em que a lingüística estrutural e a semiologia foram assumidas
não resistem ao confronto com aqueles da geração precedente (onde estão
como do âmbito geral do estudo científico, parecia que só restava ao crítico
os autores à altura de Volponi, Parise, Zanzotto, Calvino, Pasolini etc?)
L
9z Entrevista com Zífomo Beíaídimlíi
i93
Enquanto os ensaístase os críticos não levam a pensarem "decadência",
Ou a confirmação do fato de que a melhor crítica de inspiração marxista
muito pelo contrário. Além disso,há uma troca maior entre gerações.
veio de ensaístasde forte gosto herético, polêmico, idiossincrático, como Fortim e Cases.
Isso significa que deve ter ocorrido, em algum momento, a partir de algum ponto, uma
E
reviravolta que reanimou o andamento e o destino da crítica je do críticos.
Mas considerandoque a crítica mais especializada.decorrente dos métodos científicos anteriores, não desapareceu,de que modo está presente na crítica atual?
P Acredito que a revalorização da crítica como empreendimento pessoal isto deva-se à publicação em livro dos ensaios e artigos de
Há algumasdécadasatrásse falava muito de pluralidadede métodos
alguns escritores importantes. Em particular houve a lenta redescoberta do
maior crítico-ensaístado No ecen/oitaliano, Giacomo Debenedetti. Mais
sociológico, psicanalítica, formal, semiológico ctc. Hoje acredito que se deveria ressaltar a pluralidade de estratos, o conjunto de motivações,
tarde surgiram os escritos de Pasolini e Calvino, que demonstraram com
instrumentos e objetivos necessáriospara o crítico fazer o tipo de crítica
quantos ingredientes, muitas vezesimprevisíveis, é feita a crítica. Dois ZzvroJ-
que quer (e sabe) fazer. A atividade cr(tecaé composta de muitas coisas:
é, como ensaísmo
feirame/zro, ambos póstumos, como Z)escr;Ízon;dí deicrf{/onz e ZeÍ;oaí ame-
razõespessoais,idéias, convicção política, gosto, combinação entre cultura
rzcane,influenciaram seus leitores tanto ou mais que suas obras narrativas e poéticas. Aliás, Pasolini e Calvino encerraram suas carreiras sob o signo
literária e outras culturas, conhecimento suficientementeprofundo de um número suficiente de autores, energia intelectual, capacidade mimética,
do ensaísmo. Além desses, penso na publicação dos escritos críticos de Zan-
sentido do ambiente e do público, e muito mais ainda. Mesmo os estudiosos
zotto, que se revelou um dos maiores críticos de poesia da segunda metade
defensores de uma linha teórica sabem que não podem simplesmente "apli-
do século. Por fim, a prosa autobiográfica, literária e crítica de Serem, Ber-
car" um método.
tolucci, Caproni, Luzi, La Capria. Definitivamente os melhoreslivros de crítica publicadosnas últimas décadas,trouxeram à luz uma crítica de tipo ensaístico,muito misturada com a autobiografialiterária.
Esseretorno à instrumentalizaçãotradicional talvez tenha algo a ver com um território de pesquisa por longo tempo reservado para os estudos acadêmicos e hoje amplamente freqüentado pelos críticos "militantes", isto é. os clássicos antigos e modernos.
A forma-ensaio é um /e/fmoür da sua pesquisa. No livro [a forma de/ saga/o' você de. dicou-se a percorrer todo o /Vovecenfo, retornando aos séculos precedentes. 0 ensaio
Sim. Tanto a crítica filológica como a historicista acabarampor dar bons
aparece como um verdadeiro indicador da vitalidade literária e. sem dúvida. a dimensão
mais alta e completa da crítica. 0u melhor, um gênero literário autónomo. E nos melho-
resultados: permitiram reabrir uma relação proHcua com a tradição da crítica e favoreceram a produção de obras teoricamente menos pretensio-
res casos, literatura.
sase abstrusas,masmais úteis para um público maisvasto. As coleções económicas dos clássicos puseram em ação uma série de ótimos estudiosos,
Temos confirmações eloqüentes.Por exemplo,para continuar em âmbito italiano, a redescobertade Roberto Longhi, Emilio Cecchi, Mano Praz.
empenhados em trabalhos de edição, tradução, introdução, comentários, cuja utilidade e, muitas vezes, originalidade são um resultado realmente notável. Em particular nos anos que segundo alguns teriam sido de "crise'
i. Veneza: Marsilío, zo02
l 94 EnnevisEa com Ai$omo Berardineíli
para a crítica. Estou me referindo a Cesare Segre e a seu livro Nor; ;e da/7a i95
T crú;,z que não leva em conta o fato de que a crise daquela crítica semioló-
D percurso "retrospectivo" enfrentado pela crítica defronta-se. porém. a partir da meta
gico-estrutural tão cara a ele, foi ao invés salutar, liberou mais energia posi-
de do século. nos anos 1950-1960, com os movimentos neovanguardistasque surgem
tiva do que a que foi despertadaanteriormente pelo prometode transformar
no coração da Europa.0 que isso representa: desmente. é uma contradição ao esque
todas as atividades críticas em Teoria e Metodologia do Estudo Literário.
mahistóricodo Pós-Moderno?
l Não. As neovanguardas foram um fenómeno de escolarizaçãodo Moderno. Portanto, no seu entendimento, esse "retorno à ordem", seria responsável pela recuperação
Replicavam uma série de imperativos à inovação abstrata e contínua cujos
da vitalidade criativa. e também de utilidade social, que a crítica literária está registrando?
frutos, melhores e mais maduros, já tinham sido colhidos antes da Segunda
Guerra Mundial. Essaé a razãopela qual a crítica militante produzida pela Sequiséssemosdestacar uma única característica dominante na crítica lite-
Neovanguarda não era muito original. Sua tendência era dizer: prestem
rária a partir da segunda metade do século xx, talvez pudéssemos citar a
atenção, é assim que se deve escrever para serem modernos! E era assim
tendênciaà retrospectiva.Enquantoa crítica feita até iPSopareciaforte-
que se fazia já no início do século. Mais do que militante, era uma crítica
mente projetada para o futuro, para a inovação, para a descoberta, para o
legitimadora... Estruturalismo, teoria e metodologia do estudo literário
programa, para a utopia.
acompanham, sustentam e nutrem toda a fase da neovanguarda até o exaurimento dos anos ig6o. São tendências que "resfHam" a atividade crítica no
sentido neo-retórico, científico-acadêmico. E sobretudo preparam o rena Qual é o desenho final traçado por esse movimento de ir e vir da crítica a partir da se-
mente dos romances de Eco: romances que pressupõem a Narratologia, que
gunda metade do século xx?
revestem intencionalmente de imagens presas aqui e acolá, um esqueleto de funções narrativas ensinadas na escola.
Acho que as basesdo Pós-Moderno, no sentido do que vem depois, o fim do impulso propulsor e inovador da Modernidade clássica.O retorno de um forte sentido do passadoe de uma forte exigência de classificação.Deste
A esta altura, parece que as observações apocalípticas associadas aos seus discur-
ponto de vista, o casomais significativo é o de Northrop Frye que, em .4na-
sos. no decorrer dos anos, estão se transformando em declaração de vitória. A partir
rom/a da crúlca,; constrói uma espéciede mandala dos gêneros literários e
dos anos 1980 a crítica italiana teria recuperado autonomia e significado social. E
de toda a âsiologia temática e estilística da literatura ocidental, enquanto o caso mais recente é O cânoneocldenfa/4 de Harold Bloom, onde se passa
possível então concluir que os alarmes reiterados de Berardinelli deixaramde ter l
caráter de urgência?
da fixação da classificação formal para a âxação da classificaçãode valores.
Mas existe um denominador comum: o olhar retrospectivo, o balanço de todo o passado.
Não exatamente.Os problemas que me levaram a falar repetidamente -- a partir, ao menos, de /7 cr;f;co sen a mail;ere,5 que é de ig83
de declí-
nio da crítica militante, dizem respeito sobretudo à combinação clássica
de crítica literária e crítica da sociedadee da cultura. Uma combinação z. Turim: Einaudi, i993. 3. Ed. bus.: 4naromza da crúica, trad. Péricles Eugênio da Sirva Ramos. São Paulo: Cultrix,
que, com o Iluminismo, marcou historicamente o nascimento de uma
i973. tN.E.J
4. Ed. bus.: O c.inoneoczde/zra/, trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objedva, í995- [N.E.]
96
Entrevista com .{ífon.se Beíardinelíi
5. Milho: il Saggiatore, ig83
i97
T crítica literária propriamente moderna. Essacombinaçãofez da ativi-
E quais são os exemplos possíveis, conhecidos, atualmente?
dade do crítico, por quase dois séculos, uma atividade central no desen-
volvimento da cultura moderna. Para compreender melhor basta citar
Dou três exemplos:um (negativo) Derrida, e dois outros, mais interessan
os nomes de Schiller, Sainte-Beuve, De Sanctis, Baudelaire, Belinskil Lukács, Chklóvski, Eliot, Benjamin, Edmund Wilson... Sem falar da
tes, Hans Magnus Enzensberger e George Steiner. Três casos exemplares
tendência de alguns pensadorespolíticos e filósofos que escolheram como ponto de apoio a crítica literária: Croce, Adorno, Gramsci, Sartre. Daqui nascetambém uma tendência, ou escola, que nos Estados Unidos reuniu, com resultadosum pouco patológicos, a lição universitária e a demagogia antiacadêmica.Estou falando de Derrida e do seu "desconstrutivismo".
casosque confirmam a aliança constitutiva entre a crítica da cultura e a
das formas assumidas, nos últimos trinta anos, pela crítica da cultura. Três
forma ensaística, talvez satírica, mas certamente anta-sistemática.
Entre as tais transformações sociais no sistema da cultura e na relação intelectual sociedade quais as mais importantes?
Não existe mais a confiança no valor objetivamente libertário e subversivo Aqui passamos para a figura do intelectual, protagonista-alvo dos ensaios do seu livro:
da arte autêntica e autónoma. Por outro lado, a arte dinâmica e ativista da
['erre c/le pe/7sa6j1 997j. E e]e portanto que mantêm acesos os alarmes que, tempos atrás, eram disparadospelo crítico militante.
vanguarda acabou há muito tempo. Os artistas como categoria anárquica
e rebelde não existem mais. Não existem mais doutrinas e filosofias da história que permitam lutar culturalmente pelo progresso da sociedade
Sim, porque cada vez mais é menos presente uma pré-condição, até há
e pela emancipação de certas classes sociais. Não há utopias. Nenhuma
pouco tempo natural: a centralidade da literatura como "espelho" de uma sociedadeinteira. Como instrumento fundamental de autocons-
cultura extra-européia é contraposta criticamente ao modelo de vida do
ciênia e de intervenção na cultura, na opinião de classessociais com papel político e histórico relevante: primeiro, a burguesia, depois o proletariado. E é bom que se diga que se as coisas mudaram, não se
rios consistentes de valoração em confronto com os da cultura de massa,
trata de "culpa" ou "responsabilidade"dos críticos, masde transformaçõesdo sistemacultural, e da relaçãointelectual-sociedade.Foi a
passado sentem como um peso a responsabilidade e o inevitável "tradicio-
"crítica da cultura" (ou da ideologia, em termos marxistas) em si mesma
ocidente desenvolvido. A própria "alta cultura" não fornece mais critépotentíssima e onipresente. E parece que mesmo os intelectuais institucionalmente participantes da conservação, transmissão e manutenção do nalismo" de suas proâssões.
Mais uma vez o caso de Eco é um sintoma interessante, porque nos
que nos anos i97o perdeu motivação, perspectivas, canais de expressão.
permite ver com que felicidade o intelectual culto, o estudioso especiali-
E é neste ponto, como já disse antes, que a crítica literária deve ser
zado, o acadêmico, liberou-se do peso da aristocracia cultural, abraçando
diferenciada do estudo literário. Este último não me parece em perigo,
com alívio a cultura de massa.Pode ter parecido, no início, tratar-se de uma
não corre o risco de se "academizar"porque é acadêmicopor definição
operação de "rejuvenescimento" das disciplinas humanísticas. Mais tarde
(também em sentido positivo).
seviu que a "jogada" era estender a todo o passado e a toda a tradição cul-
tural os critérios de análise,o gosto e a lógica própria da cultura de massa (e da indústria cultural americana). 6. Turim: Einaud, i997
9S Entrevbta com .41fomo Berardine{ i
i99
'v No seu livro ['esfera e // po/í?7co.Su//a nuo a pícco/a óorghes/a' j19861 encontramos um
O poder intelectual é de outro tipo. Não deve pensar em se potencializar
Berardinelli que parece ter assumido o papel de um fenomenólogo dos costumes e hábitos
aliando-se com outros poderes. O crítico "sem poder" é mais livre, na ver-
literários. divertido e sarcástico. Em 2001 saem dois livros C3cfus8e SM d8#'8sfrpM/Smas
dade.Deve ser livre para dizer, da melhor maneira, o que é um livro, mas
e esse perfil e modo tão pessoal de fazer crítica são definitivamente confirmados.
não impedir que aquele livro seja publicado, ou ao contrário, torna-lo um sucesso.O crítico deveria ser preferivelmente sem outros poderes que os
O que me interessavademonstrar, em particular no Sl;ZI..., é que o extre-
dainteligência e da escritura.
mismo mais do que audácia e coragem intelectual tornou-se, a uma certa
altura do século xx, rigidez e padrão estilístico, forma estética,linguagem que paralisa e esvazia o pensamento de seus objetos e conteúdos reais. O FONTES
.Azovecearo foi o séculoem que a política, a estética,a filosofia e a teoria orientadas no sentido extrelüista tornaram-se norma. O empirismo, o gosto da precisão e da concretude descritiva sofreram portanto uma nítida
Entrevista de A. Berardinelli para Michele Gulinucci, Z;pera/, 12 ago. i999, pp. 64-7i
desvalorização diante do fascínio de teorias nas quais roer ie r;ent, de filo-
M.uorni, "Le opinedel critico entomologo",Z'Z:/alia,z6 jun. zoar, p. zj
sofias essencialistas, do neologismo e do racionalismo nas quais as cone-
M. BETANiA AMOROSOE juiz nui.cl, "Poetas às pencas", /b/Ãa de S.PazzZo,z5 ]ul. i999.
Caderno -44aü./, p. g
xões lógicas valem mais do que a referência aos objetos em si e uma noção acaba por ser deduzida de outra, sem ser confrontada com a realidade, a qual deveria ser levada em conta. A retórica do extremismo tornou-se uma moda acadêmica.
l Voltando à crítica literária. A nova crítica que vem sendo feita na ltália é episódica. ou significa uma retomada efetiva da atividade?
A crítica se mostra como uma atividade a ser reinventada. Quanto à "crítica
militante" acredito que é preciso se desvencilhar das ilusões que nascem por conta do adjetivo "militante". A ilusão consiste em acreditar que a crítica se encontre em uma situação perfeita quando muda as coisas, quando exerceum poder e uma forte influência sobre o presente da literatura. Não é de modo algum verdade que isso tenha acontecido no passado, e se pro-
SBD/FFLCH/USP Bib. Florestan Fernandes Aquisição: Doação
Tombo: 380930 Verba:
Proa. N.F.
R$
40,00 04/05/2018
por a ser um que "conta" é sempre perigoso, além de um pouco ridículo.
7. Turim: Einaudi, ig86. 8. Nápoles: L'âncora del Mediterrâneo, zoom g. Romã: Editora Riuniti, pool.
ZOO Entrevista com.4ífomo Beraídineili
201
T Sobre o autor
Ai.ronco BERARDiNELI.i,nascido em Romã em i943) faz parte da geração de intelectuais que cresceu no pós-guerra e viu a Itália passar pelo
zoomeconómico dos anos i95o e lg6o e entrar tardiamente na moder-
nidade. Acompanhoude perto o surgimento da neovanguarda,dos movimentos sociais de ig68, bem como a consolidação da cultura de
massa.Filho de antifascista,de uma família compostapor todos os matizes da esquerda, do comunismo ao anarquismo, depois de freqüentar uma escola salesianano popular bairro do Testaccio, matriculou-se na Universidade de Romã, em Letras Modernas. Nesseperíodo entrou
em contato com as lições do crítico Giacomo Debenedetti, presença reconhecível no ensaísmoque fará depois. Teve uma brilhante carreira
universitária: foi professor de História da Crítica Literária na Universidade de Cosenza e professor titular de História da Literatura Moderna
e Contemporânea na Universidadede Veneza.Em i995, depoisde quasevinte anos ensinando literatura, num gesto único e raro, se demitiu, deixando perplexos amigos e colegas.
A partir daí é chamado constantemente a participar de simpósios, congressos, dar conferências e cursos em toda Itália e fora dela, além de aduar junto a editoras e jornais.
Desde a tumultuada década de i97o, das grandes esperançase dasterríveis derrotas da Nova Esquerda, Berardinelli vem confeccionando ciclicamente panoramas,quadros gerais, síntesesnas quais a sociedadeitaliana é observada através das idéias, dos movimentos e da produção de seus escritores, poetas, filósofos, políticos, jornalistas, acadêmicos e das relações que estabelecem com o Poder, seja o do zo3
'v Estadoou o mediático.A partir de i998, Berardinelli tem visitado o Brasil com freqüência: na primeira vez, a convite da Bienal de Poesia,
Netpaesedei balocchi.l.a politica vista da chi néontara. Rama: \)anzeNN{, pool
realizada pela Secretaria da Cultura de Belo Horizonte; mais recente-
S ;/í de#'eilremismo.CHE;ca de/pe/z.fíero eiien laje. Romã:EditoraRiuniti, 200i.
mente, em 2005, esteve na usp dando aulas e conferências.
Z..aforma deisaggio, De$ni iene e att taiità di un genere [etterario. ''geneza: \Âaxs3\o, zoom.
De sua autoria foram traduzidos os ensaios "Calvino moralista.
ou: como permanecersãosapós o fim do mundo?" (M070i Exfudo.f Ceórap,jul. i999, n. 54,pp. 97-ii3, trad. M. BetâniaAmoroso)e "Os conânsda poesia" (/nímzgoRitmar, l semestrede 200), n. i4, pp i38-45, trad. O. M. Silvestre). Foram publicados ainda, em italiano, "La fine del postmoderno" (-Revüza de -#a/ianúr;ca, x-xi, 2005, pp. izi-4z) e "Classici del romanzo europeo: da Stendhal a Kafka" ([email protected] de
Caclw. Meditazioni, sabre, scherzi. Nápoles: L'Âncora del Mediterrâneo, zoom.
Z'Mc de/mo/zdo con e/npormzeo.4uzonzomü,óeaeiiere, caz Fc!#e.Romã; Minimum Fax, zoo4
StLtbanco dei cattivi. A proposito di Badcco e di aítri scriltori alta moda Çcom G. Veçtalü.
M. OnofH, F. La Porta). Romã; Donzelli Editore, zoom. C%e/laia Za/oei;a. Proa o iaccor=oper /eflon' ineiial/(com
Hans Magnus Enzensberger)
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Mana Betânia Amoroso nasceuem i6 de outubro de 1952,em Piquête(São Paulo). Ao final da graduação na Faculdade de Letras da usp, morou de
i979 a ig84 na Itália, onde concluiu mestradoem Lingüística em Pádua. De volta ao Brasil, novamente na usp, apresentou sua tesede doutorado sobrea crítica literária de Pier Paolo Pasolini no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada. Deu aulas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo de ig85 a lg86 e na Universidade Estadual de Assis, de ig87 a ig8g. Ensinou de ig8g a t997 língua italiana no Centro de Estudos de Língua, na Unicamp, tendo então se transferido para o Departamento de Teoria Literária. Publicou: Pior Pacto Pasolini A paixão pelo real. Pmoiini e a crítica iitefária. São Pau\o: EDUSP,i997.
Piar PaoZo.f)mo#rzi.São Paulo: Cosas Naify/Mostra Internacional de Cinema, zoom
zo6 Sopreo azzor
zo7
'v índice onomástico
ADORNO,Theodor, 9, 3l> 33-38, 89, 95,
i36,l78,l98 AuiN, Émile-AugusteChartier,z5
BECCARIA,GIan LUIgI, IO8-IO BECKETT,Samuel, i83, i88 BÉCUiX, Albert, z4, i3o> 176
ALSERTO,Rei Carlo, 8z 83
BXI.iNSKIJ)Vissarion Grigorevic, ig8
i.LÍCniERI, Dante, i8, z6, 5o, 83, iog, i33:
BELA.oc, Hilalre,
l i4
BENS,Gottfried, ig, zo>z8, 63-64, 8o, 94,
i66-67 ANCELLI, Narcisse-Desire, 46, 48
iz8,l3o,l35>i6z,l77,i86,i9i
ANCESCni, Luciano, 24> 85, iol, i76
BERTOLUCCI, AttIIIO, 90, 96, 112, 194
ANGEUS,Enricó de, 31
BETOCCHI,Caril, 90, 96
APOLLiNAiRE,Guillaume, 20, z8, 86,
BiAnCiAROI, ]-uciano, i85
i49-5b i53, i57
BLANCnOT,Maurice, i3
AKACOK,Louis,69
BOOK, Aleksándr.
ARNO1.D,Matthew, 50
BLOOM,Harold, ig6
ARONDEL,48
BO, (=arlo, lol
Auoxx, Wystan Hlugh, 8, 20, z8, go, g6,
BOINE,Giovanni, 93
i33) i4q i7i-7% i79-8i, i83, i87, i9t
BONNEFOY, YVes, I89
AUERBACn,Erich, g, zo, 38-39, 5q 8g AUPiCK,Jacques,46-47
BALZAC, Honoré
i39)i87 BKioscni,Franco,i4
86
de, 5i, 79
BARTUXS,Roland,
i5, io8, i4i,
igi
BROCH,Hlerm.ann, 4o
BKOnSKV,Joseph,loi
BARraR, Béla, 128 BAUDELAiRE, Charles,
BORGES, Jorge Luas,6z, l7z-73) l82-83 BRZCnT, Bertold, 20,36 37,64, io8, iz3-z6, iz8, i33, z7l>i79 i85-86,i88 BRETON, Andre, t5, 27) 6z-64, 6g, 74, 77>
BAccnEI.i, Riccardo, z4 BACnMAnN, Ingeborg,
20, i6i
5, 7> g} ii) t8-tg,
BRUEGHEI., Pieter (o jovem), i8o
zl, z3-z4,3z}35-39)4i) 43-j7)6i-63, 67-69, 89, 96, iil, iz8, i36, i38-39, i4l> i43-47) i49} i5z} l58, t66-67, i75-779i98 BAUDEI.giRE, Joseph-François,
46
CALViNO, 1talo, l8z, i86, i93-94 CAMPINA, Dano, z4, 85, 93, lol-oz,
iiz
CAMUS, Albert, 4o, tgi CAPRONI, Giorgio, go,g6, li2, 194
209
l CARAv:AGGI, Giovanni, l71
l
CARDARELLI, Vincenzo, 24, 939l i4
6z-63, 69, 88, 96, io8, i12, 128, i33,
nEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, i34 HEinEGGER,Martin, 64
CARDUCCI, GIOSUe, 65,91
i359i37) i4o, l64, i66-67, i79>18o,
rEiNE, Heinrich, 45,iii, t41
CARRO, Carão, tl4
i85, i91, i98
nEiSSENBUTTEL, Hlelmut, i3i
LONGni, Roberto, i94
nEn.ER, Erich, 3o-3; 8g
FORCA,Federico García, 8, 23, 36-37,
CASALZGNO, Andrea,
45
EUOT, T.S., 8, l7-20,
ELUARI),
CASES, Cesare, 125) l95
z4> z7-3o, 39,
Paul,I9,28
UNZENSBERGER,Hans Magnus, go) g6,
cnccni?Emilio, tl4, l94
i86-88,l91,199> 205
cxl.ÀN,Paul, 86, 94, loi> i8g
HERNANDEZ,MIgUeI, 20, 64
I.EISER, RUth, 124
LEOPARDO, GIaCOmo, 9) I9> 50} 65, 68, 91 94} lli)
ii3-i4>
ll8,
i36-37, i75
iz8,l33,i67,i7o-7i
mERZEN,Aleksandr, i4i
LUCAKO,49
nETZn., Pierre-Jules, 49
cÉuNE, Louis-Ferdinand, z8, 78-79
FAULKNEK,William, 78, i88
nEYM, Georg, li8, t57-59) i6i-6z
l.uclNI, Gian Pietro, io3 LUKÁcs,Georg, 45, 88, iiz, i88, ig8
cÉzANNE,Paul,74
CAVE, Jean-Pierre,
nOFMANNSTHAL, HUgO VOn, 32
Luzi, Mano, ioi-02, iiz, i94
CHAGALL> M.arc, 128
FLAUBERT,GUStaVe, 39} 45) 48, 6l-62, 141
noi.AX, Vladimir, i86
CnAMPFLZUnV(Jures-François-Felix
FORTINl9 Franco, go> g6, loi-o3}
nõi.nnRI.iN, Friedrich, tg, 68, t36- 37 HOMER0,26
Husson), 48
l76
1 1%
iz3-z4)i95) zo4
CEAR,René, I9 CHKLÓvsKI,Viktor, r93) ig8
nOPKINS,Gerard M., 20
FOSCOL0, UgO, i76
MAccniA,
Giovanní,
5z
MACnAnO,Antonio, 20, 64, 77-78, 88, lli
MXiAKOVSKI, Vladimir, 20, 64, 125-26,
nOKACIOll33,i45
CLAIJDEL,Paul, 23
FRiEDRICH, Hugo, 8, il, i7-z4) z8-3i, 34-35)4o, 43, 6i, 87, 96, tz8-3o, i3z
HoussAVE,Arsêne, 49} 54
MAJORINO,Giancarlo, iiz,
coi.ERinGE, Samuel Taylor, ig) r37
PRVE,Northrop, ig6
JUGO, Vector, 8, l7, 329 43) 47} 6i, 87:
MX].i.ARME, Stéphane,
96, lz8
coNTiNI, Gianfranco, ioi, i6z
CORAZZiNI, Sergio,93,io4 CROCZ,Benedetto, ig8
DAuuiKK,
H.onore,
5i
OE CniRiCO, Giorgio,
tt4
DX PAI.LA, Manuel, iz8
nE SANCTis,Francesco, 65, ig8
i4o,i6i,l85
Gansos.i,
i4i, i75
Cesare, g8
GAUTnR, ThéOphIIe,47,49) 51 GEOKGE,Stefan,3z,7o)i77)i99
IESSIENIN,Sierguei, 20
CEDE,André, 38, 74
JAnIEK,Piero,93
MANÁ, Thomas, 39, 75
GiOTTI, Virgilio, 93
JAKOBsoN, Roman, i4} g6-97, i4z
MARCUSZ,Herbert, i84
GiUDiCI,Giovanni, go, g6, g8, to3,
Jxsus}i8i
MARiNETTI,Filippo Tommaso, 85-86, l i4
io7 o8,lio-tz,ii6,i85-86
MAI.RAUX,Andre, 74 MANDZLSTAM,0SSiP, ZO, iiZ, i33
JIMÉNEZ,Juan Ramón, 64
i39>149
GOXTnE,JohannWolfgang von, z6
JOYCK,James, z4} z8, 38, 78
MARX, Kart, 67, i5o, i93
GÓNGORA,dom Luas de, i33, i7o
JozsxF, Attila, zo
husTxns, Edgar Lee, ii4
DEI.ACROiX,Eugene, 49> 5i
GOVONI,Corredo, z4, 93
JUVENIL,I45
MASTRONARDI, (:arlos, i85
DERRmA,Jacques, ig8-99
GOZZAnO,Guido, 8i, 83-85, 93, 97-g8,
GiROLAMO,
(l:ostanzo,
i4
oicKiNsoN, Emily) zo, 94 OÕBI.iN,Alfred, z8
OOXiNI,Filippo,io4
io3-o4)lo6-o8,lio)llz GRAMSCI, AntOnIO, 10, 11% I98 GRANDViLLE,J.J. (Jean lgnace lsidore
Gérard), 51
nONNE,John,l33
GRvpniUS,Andreas, ij7
oosToiÉvsKI, Fiódor Mikhailovitch, t44
GIJli.LZN, Jorre, ig) 64, i4i
OUFAVS, Caroline Archimbaut, 45
GurS, Constantin, 49, 5b j3
ouvxl, Jeanne, 47 48
MELVILLE,Herman, ii4
KAFKA,Franz, 66, 78, i53-54>i88 KAV.Afãs, K.onstantinos,
EnRZNBURG, llya Grigoryevich, 74
1.10 .Ín.alceon,omástico
i86
20, 17z
MENGALDO,Pier Vincenzo, gq 95-g6,
toi-oz,i63
KinKKKaAAKD,Soren,78,i36,i4i
MERKER,NICOIao, I34
KRAUS, Karl, l79, i87
MICUAUX,Hlenri, i81
K(JaRICK, Stanleyj
Mli.ANI, Don Lorenzo, l84
i86
MIRÓ,Juan,i28 MONDKIAN,Piet,88 LABRuvÊRE,Jean de,45 LA CAPRiA, Raffaele,
HAI.AS, Frantisek,
Eco, Umberto,io, t3o} i97) i99
z3 z4)
z6, z9, 3t> 39) 5o) 6z, 67, 74, 86, 94,
OEBENEDETTI, GIaCOmo, 9} 90>95)II5-I6, i94)zo3-o4
oi
i85
i5, rg-zi)
L.ACROiX, Albert,
49
HAMBURGER, MIChaeI, 50, 90
i.AFORGux,Jures,i8
Hi.RnY, Thomas, it4
I.EAR, Edward,
28
i94
MONTEI.E,EUgenIO, 10, 50, 83, 93-94) 96, i03-04) i06, i09, 1129129>i33) i40}
i83-84,i91 MOORE,Mlarianne, 20 MORANTE,EISa, 112, 184
211
l
'1 PONGE,Francês, l79, l8i-83 popa, Alexander, i76
SnAKESPEARE, William,
Paul.ET-MAI.ASSIM, AUgUSte, 48-49
soNTAG>Susan)l42
PRAZ,Mano, i94
SPnZER,Leo, g, z3, i33} i47) igi) i93
va.tLEJO, C:esar, 8, 20, 7i-7z) li2} iz8, i87
STALiN,Josef, iz5
VAGA,Lopede,l7o
NxnunA,Pablo,z3,iz8
PREZZOI.INI,GIUSeppq 23 PKOKOriEV,Sergei,iz8
STEiN,Gertrud, z4, 78
VERBOECKnOVEN,49
NERVAL, Gérard de, 47
PXOUST, Marcel, z4, 38-39, 78-79, i88
STZiNER, George,
t77} i99
vIGNV, Alfred de, 49
NiETzscnE, Friedrich, 67, 84
pucnKIN, Alexander, 5o, 111)125-26,
STEvzNS, Wallace,
20, 47
MORETTI,Marino, 8i, 93 MUMFORD,LeaIS, I71 MUSSOI.iNI,Benito, 85, ii2
NAOAK (Félix Tournachon),
47
Novxus, Friedrich, ig, 3% i37) i75
ONOFRI, Arturo,
93
l76,l86
z6
VAI.nnt,
snAW,Bernard, l i4
VIRGIL10,26,l92
STEVENSON, RObert LOUIS,I I4
voLpoKI,Paolo,i85,i93
STRAVINSKÍ,lgor,i28
VOtTAiKE,l76
svxvo,Italo,78
QuENEAU,Raymond, i8z
swiFT, Jonathan, i88
WAGNER,Richard, 76
TKssA, Delio, 93
WEBSTER, JOhn, I66 wniTMAN, Wãlt, 8, 20, 23) i3% i43-44>
R.âvuoNn, Marcel, z4, i3o> r76 REBOLA,Clemente, 93, i12> tl8, i20,
PAGLIARANI,EITO,112,185-86
PAIAZZESCnI, Ando,24, 93>97 98, IO4, l íz i3) i53-j4> i57
PApiNI,Giovanni, 23, S5 PARISE, GOffredo,
I93
TniBAUOET, Albert,
l6z-64 RU.KI, Rainer Mana, 20, 3%39) íi% i79-8o RiMnAUD, Arthur, 2i, z3-z4) 39) 5o) 62,
74)94 ioi-oz,i39-4o)i75 aOCnE, Denis, i76
PASCAL, BIaISe, 45
ROSENBERG, HarOId, 90
PAscon, Giovanni, 65, 8i, 83, gi, g6, g8,
nossxi.i.i, Amena, líz, l85, i8g-go ROTA,Joseph,iz7
io9li86 PASOLTNI, Pier Paolo, io, go) g6, g8-ioo,
ioz-o3)io7} ii% ii6, i75, i83-85,
nOUSSEAU, Jean-Jacques,
l45) i47
TnOMAS, Dylan,
i47-49)i67,l75
43-44) 5o
39, 75) 78, i4o,
i8o
TOI.STÓi,Liév,i44,i9i rouBiN,
Charles,
SAIOTE-BEUVE,44,499571198
PERSA, Saint-John,
SAUNAS,Pedro, I9, I33) I41
PETRARCA, Francesco,83, l34 35>tgz PETKONiO,49
rRAKI.,Georg, 94) ii8, i6z
wrNn, Edgar, 8g
TZARX,Tristan, i39 TzviETAiEV.A,Marina, zo
YEATS,William Butler, zo, z4) zg)
i7i-7zlí79-8o UtnKiCnT, Walter, iz3} iz5 i38
ZANZOTTO, Andrea, 94) io% io7> ii%
i7b i89,i93-94
SANGUINETI, Edoardo, 83, 97-98, IOI,
io3-o4)io6-o9,iízll3i
PiCAriA, Francis, 7(5
SAnTRX, Jean Paul, 4o, 43-44>ig8
picAsso. Pablo, lz8
SAmNlo, Alberto, l i4
PICON,Gaétan, i8z PILNIAKsIBorls,112
SBARBARO,CamIIIO, 93, IO4> 112) 116,
pi.XVNET,Macelyn, l76
scniLI.En,Friedrich, ig8
pox, Edgar Allan, lg, z3>43} 48-5z, l iz,
SEGAR, Cesare,
i34) i36, i45, i75 POiNCARE,Henri, 25
SElrERT,Jaroslav, i86
poLLocK,Jackson,88
SERRA,Renato, 85
1.-11. Índice on,omású,co
89,i3o, l76,i9i,i98
SAfrA,Umberto, 20, 88, go, 93) 95) 97-g8, 110-16,ll8,120,172918(5
PENDA,Sandro,go, g6, i84, i8g-go 23, tz8
wn.soN, Edmund, g, 24-26, zg, 75-76,
48
83, 85-87, 93, 97-ioi} io3} itz-i3,
PÚVESE,Cesare, iog
wiLLiAMS, William Carlos, zo, 64, 78
UNGARETTI, GIUSeppe} 7) I9) 24)7% 81,
RUSSXI.L, (=harles, i4o
i93-94)zo7 PASTERNAK, BOAS, 1 12
93
96,iol,liz,i4i)i76,t79-8o
ORTEN, Júri, I86
ORWXI.i.,George, 7o) t87
Diego,
vxi.ERV, Paul, i5, ig} 24-2g} 3z>63, 8o,
ii8, 120
SERENA, VIttOIIO,
99) z95
9q
96, 112, 194
n3
'T © COSACNAIFY 2007 © Alfonso Berardinelli,2007 Coordenaçãoeditoria IURIPEREIRA Revisão THAIS TOTINO RICHTER Projeto gráfico da coleção RAUL LOUREIRO Capa e Composição
MARIACAROLINASAMPAIO Ilustração da capa MARCO BUTI
Foto do autor FRANCISCO DEGAN
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SF3Brasil) Berardinelli. Alfonso Da poesia à prosa: Alfonso Berardinelli
Título original: La poesia verso la prosa Tradução: Maurício Santana Dias Organização e prefácio: Mana Betânia Amoroso São Paulo: Cosac Naify, 2007. 216 PP ISBN 978-85-7503-590-0 l .Crítica literária 2. Poesia lírica 3. Poesia moderna - História e Crítica
1.Amoroso, Mana Betânia. 11.Título 07-4359
CDD-809.103
Índices para catálogo sistemático 1. Poesia moderna: Literatura: História e crítica 809.103
COSAC NAIFY
RuaGeneral Jardim. 770, 2 andar 01223-010 São Paulo - SP Te[t55-11] 3218 1444 Fax [55-11] 3257 8164
www.cosacnaify.com.br Atendimento ao professor [55-11] 3823 6595
Fonte FOURNIERII.5/I3 Papel poLXN soFT 8o g/m= Impressão RR DONNELLEY MOORE
Tiragem l.ooo