179 33 99KB
Portuguese Pages [8] Year 2018
b r u n o c a va murilo duarte costa corrêa [orgs.]
pensar a
séries de pop filosofia e políti ca
Copyright © 2018, D’Plácido Editora. Copyright © 2018, Os Autores.
Editora D’Plácido Av. Brasil, 1843, Savassi Belo Horizonte – MG Tel.: 31 3261 2801 CEP 30140-007
Editor Chefe
Plácido Arraes Produtor Editorial
W W W. E D I TO R A D P L A C I D O. C O M . B R
Tales Leon de Marco Capa, projeto gráfico
Letícia Robini
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, por quaisquer meios, sem a autorização prévia do Grupo D’Plácido.
Diagramação
Enzo Zaqueu Prates
Netflix é marca registrada de Netflix Inc. Os Autores e a Editora não possuem qualquer vínculo com a Netflix. As opiniões expostas nessa Obra são de responsabilidade dos Autores e as opiniões emitidas não contam com o endosso ou exprimem o posicionamento da Netflix.
Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica Pensar a Netflix: séries de pop filosofia e política. CAVA, Bruno; CORRÊA, Murilo Duarte Costa [Orgs.] -- Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018. Bibliografia. ISBN: 978-85-8425-xxx-x 1. Direito. 2. Filosofia do Direito. 3. Filosofia Política. I. Título. II. Autor CDU340.12
CDD340.1
CRÍTICA E CÍTRICA
Bruno Cava e Murilo Duarte Costa Corrêa Há que ser absolutamente moderno! Foi o grito de guerra de Arthur Rimbaud no capítulo final de “Uma estação no inferno”, ao se despedir da literatura. Tinha à época 19 anos. O poeta afirma violentamente o imperativo modernista no mesmo movimento que nega o moderno como tradição possível. O moderno não pode ser questão de constituir uma história, um acúmulo sucessivo de experiências. Eis aí a mesma fome do absoluto que acomete Paulo Martins, o poeta militante de Terra em Transe, filme de Glauber Rocha de 1967 que procede por uma mobilização total e anárquica do inconsciente colonial. Deleuze definiu a modernidade pela “potência do simulacro”, ressalvando que à filosofia não cabe ser moderna a todo custo. É preciso sê-lo, com efeito, absolutamente. Destacar da modernidade aquilo que retorna contra ela própria, que a desestabiliza como bloco sucessivo de tempo e cadeia organizada de signos. O que Nietzsche chamava de intempestivo: o fantasma do eterno retorno, a reinvenção de um tempo que elude o presente para reconquistar o passado e a crença no futuro. É assim que a Pop Art levou o modernismo para além da vertigem do simulacro, tomando consciência do próprio movimento infundado, absolutamente moderno em relação a qualquer modernidade relativa, seja ela a dita cultura popular, pop ou populista. O Nietzsche da Segunda Consideração Intempestiva que se pergunta sobre a utilidade e a desvantagem da História para a vida nunca foi mais urgente para combater um tempo em que o materialismo histórico-dialético permanece dialético e historicista, mas abjura o 9
1
materialismo axiomaticamente. E esse materialismo negado não é o dos fatos brutos, mas o dos fluxos de intensidade mutante segundo os quais o real opera. Por outro lado, este também é o tempo cuja forma régia de pensamento se define pela maximização de uma teoria crítica que, de bom grado, se resume em crítica desprovida de teoria - o que torna preciso exercitar a teoria como uma renovada espécie de calma ars contemplativa, mantendo a crítica na mais baixa intensidade possível: na imanência do campo social, das formações atualizadas crivadas por binarismos, linhas de segmentariedade e linhas de fugas por todos os lados. É aí que se passa da crítica teórica à efetiva práxis de uma teoria cítrica - a contemplação segundo os modos de um juízo suspenso ou dissolvido dá origem a uma possibilidade de crítica ainda mais insidiosa e radical, que atesta sua pertença ao real fazendo série com ele. No entanto, o fundo comum dos historicismos sem matéria (impotentes diante da vida) e das críticas sem teoria (impotentes diante do pensamento) é o platonismo diante da ação dos artistas imitadores e das suas imagens monstruosas. No diálogo O Sofista, Platão tenta encurralar os falsos filósofos. Se os poetas e artistas tinham que ser expulsos da cidade ideal platônica porque, ao fabricar cópias, distorciam-nas deliberadamente em relação aos modelos, o sofista era o filósofo que utilizava os mesmos efeitos de deturpação na linguagem, incapaz de chegar ao Conceito ou de resvalar nas formas essenciais (Eidos ou Ideia) definidoras do Ser. Para Platão, era preciso então definir um critério para separar o joio do trigo e selecionar o que era boa filosofia comprometida com o ideal da verdade e o que seria apenas exercício de estilo ou jargão pós-moderno, comprometido com demagogias de auditório, floreios retóricos e effets de manche. Daí a necessidade de vincular o pensamento a uma transcendência que lhe fosse interna. É a filosofia celeste que postula a Ideia para servir de medida e padrão ouro de valor, a fim de julgar as cópias boas e as ruins, como também as más, descomprometidas com a verdade. Dessa guilhotina idealista se inicia a história de um longo erro que se poderia resumir, grosso modo, em Crítica: a mania da Ideia, a obsessão em levar os signos a um tribunal para que suas pretensões sejam propriamente sopesadas e sentenciadas: com que direito? Toda a obra de Platão é um tremendo esforço para dobrar o mundo num céu repleto de ideias-valores que possa ordenar aquele, de cima para baixo, livrando-o do caos, da desordem, 10
da apoliticidade. Esse empenho diligente do filósofo aparece sistematicamente em seus diálogos. Há um zelo meticuloso, um esmero incansável por colmatar quaisquer fissuras, aparar as pontas e reacondicionar os excedentes, como se Platão enfrentasse a todo o momento um inimigo sorrateiro. Logo em seu encalço, uma espécie de duplo obscuro precisa ser contra-argumentado, refutado e mantido sob controle, sob pena do edifício como um todo vir abaixo. De olho na posteridade, Platão ergue barricadas aos rivais de seu tempo e do futuro. Mas na mesma medida em que o filósofo teve cuidado de blindar sua obra monumental, terminou por suscitar um inimigo inesperado, um duplo interior, que atesta essa preocupação maníaca e lhe revela pela negação as próprias rachaduras. Não teria sido por isso, talvez, que o cristianismo tenha transado tão bem com o platonismo? O homem foi criado à imagem e à semelhança de Deus. Separado, contudo, na origem pela incidência do pecado primeiro, o homem conservou a imagem divina, mas perdeu a semelhança com Ele. Daí derivam os muitos procedimentos pelo que as doutrinas cristãs prometem a religação com o Deus perdido: a imitação de um modelo de vida, a união extática, a transubstanciação. Nesse sentido, o mais traiçoeiro inimigo do edifício dogmático cristão, o Diabo não é o negativo de Deus, como uma realidade maniqueia invertida. O Diabo, na realidade, é o próprio Deus, porém levado à potência do simulacro. O crente que se compromete com a fé pressente como Lúcifer não está distante, como há uma palpitação na sombra pronta a pular a primeiro plano, à menor oportunidade, ao menor descuido. Descomprometido com a verdade, Satanás vive nas imagens sem vínculo com uma medida ou padrão ouro que o pudesse julgar. Desligou-se não exatamente da realidade de Deus, mas de seu modelo, de sua corte judicativa.Vive assim além do bem e do mal, algazarra dos demônios, um Duplo em que divino e natural se confundem, Deus sive Natura. Nietzsche, ao escrever o Anticristo, não nega Cristo nem busca simplesmente destruir o cristianismo como uma má ideia. Nada mais longe da filosofia dionisíaca do que atacar as coisas reais em nome de valores mais altos ou profundos: o “verdadeiro x”. O Anticristo, em vez disso, afirma duas vezes Cristo, a primeira vez para destituir o fundamento da semelhança, a segunda para reafirmá-lo renovado, absolutamente moderno. Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche expõe 11
como a tentativa de fundar um reino das essências em oposição ao reino das aparências está fadada à própria dissolução da fronteira entre os reinos. Toda vez que Platão se posiciona para desmascarar o sofista e denunciar essa filosofia descomprometida com a verdade, se levarmos até as últimas consequências o procedimento crítico platônico, o próprio terreno de onde Platão ataca o sofista termina ficando sem chão. O filósofo da verdade não pode evitar ser consumido pelo próprio fogo que conjurou, pois o feitiço chamejante escapa ao controle. A tentativa de abolir o mundo das aparências conduz à autoabolição das essências. Daí que, assim como o duplo de Platão é o próprio sofista - Sócrates-sofista -, o platonismo batizado, quando levado ao eterno retorno, não é outro senão Cristo-Dioniso, a multiplicidade-simulacro, Legião, Belzebu (o Senhor das Moscas). Está restituído o direito aos simulacros, a dignidade das cópias e suas adulterações e perversões. O mesmo se passa com os ideais modernos, o platonismo pós-moderno. A Crítica, quando conduzida ao extremo de sua mania depressiva (nunca verdade o bastante!), não deixa de reconhecer a própria inutilidade da crítica, reduzida a mal da paisagem, a fatalismo e ironia pós-moderna. O pós-modernismo, na realidade, irrompe dos libelos acusatórios do próprio pós-modernismo. Eis aí por que nos reivindicamos absolutamente modernos. Se o platonismo é o inimigo necessário a ser revertido, se as ideias modernas são os móveis que sempre devemos deslocar e destituir do chão, então não há como evitar a imersão no simulacro. A afirmação alegre da imagem sem semelhança, do espetáculo sem infraestrutura, do caos criativo que não é indiferenciado, mas o poder da dissimilitude, da nuança, da multidão de semióticas. A grande leveza de Dioniso, Serafim Ponte Grande ou Chacrinha arremessando abacaxis. Só assim poderemos ser absolutamente modernos: insinuando um duplo fugidio por dentro dos temas correntes. Para fazer variar a potência do Pop em seu desvio mínimo, a pequena diferença que faz toda a diferença. Mas o que é fazer um duplo - esse efeito de expressão do pop que prova a banalidade desmontável do juízo ao dissolver os sentidos do capital citricamente, em associação diferencial com seus circuitos? Fazer um duplo não é espelhar um elemento, nem explorar o clichê como repetição, mas arrancar do procedimento de repetição fagulhas de diferenças mínimas capazes de destronar o modelo. Fazer um duplo condiz com o paciente trabalho, político 12
antes de ser ontológico, de instaurar diferenças mínimas, para usar uma expressão de David Lapoujade. Sua condição é reverter também o sentido dos materialismos, para que desertem o lastro histórico e assumam o ponto de vista dos devires, abandonando a lógica dialética em prol da lógica das multiplicidades (dos simulacros). Esse é o sentido do absolutamente moderno de Arthur Rimbaud: o absolutamente está mais do lado do virtual e de suas heterogêneses do que da homogeneidade do conjunto dos fatos. Contudo, só se pode fazer um duplo ao preço de pinçar um elemento circulante e escandi-lo em uma série. Prova disso é que, como quisera Deleuze, o serial parece esconder-se sob o processo de regressão indefinida do platonismo - processo cujo sentido vai da cópia menos similar à mais similar (como na crítica adorniana à obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica), e da mais similar ao seu suposto modelo. Uma forma serial implica, já, uma realidade da ordem do multisserial. Por isso, qualificar uma imagem como simulacro não passa da expressão judicante de uma consciência interessada que toma por referência um modelo qualquer - que do ponto de vista de uma teoria cítrica, é uma imagem entre as imagens, desprovida de qualquer valor de verdade superior. Correndo o risco de fazer um filho pelas costas de Platão, é preciso reconhecer que toda homogeneidade projetada sobre uma determinada série não é mais que aparência. As diferenças, mesmo mínimas, percorrem as séries, fazem séries, produzem séries de séries de séries... Mesmo o mais especular dos duplos que toma para si a tarefa crítica de nomear o real e assegura a convergência entre palavras e coisas implica “a propriedade de ser sempre deslocada em relação a si mesma”, dirá o Deleuze de Logique du Sens (1969). É esse deslocamento sempre em variação, essa heterogênese excessiva entre séries múltiplas que remetem sem cessar uma à outra e, nesse processo, se afetam e fazem variar, que Pensar a Netflix - um livro que não deveria ser lido como livro (embora o possa), mas visto como uma série - se propõe a perscrutar e distender. Assim como a popfilosofia faz série com a política, a Netflix constitui um campo de provas e um registro especulativo que permite estimar as forças do campo social se, como quisera Félix Guattari, o inconsciente social está maquinicamente afogado nas semióticas. Na Netflix, nos seus circuitos capitalísticos e espetaculares, circulam elementos de 13
desejo e crença, intensidades sociais, políticas e semióticas tanto quanto estes formam a matéria emaranhada do campo social. Pensar a Netflix: séries de popfilosofia e política é uma forma de abordar os elementos do campo social e quem sabe agenciá-los com a senha de uma teoria cítrica.
14