266 96 11MB
Portuguese Pages [141] Year 1995
" OSCAR CORREAS
Outros livros de nossa edição: ALcÀNTARA NOGUEIRA (prof. da Universo do Ceará) Poder e Humanismo (Humanismo em B. Espinoza, em Feuerbach, em K. Marx AZEVEDO, Plauto Faraco de Crítica à Dogmática e HermenêuticaJuridica CAPPELLElTI, Mauro (prof. da Universidade de Florença, Itália) Acesso àJustiça Juízes Legisladores? COELHO, L. F. (prof. Titular da Universo Federal do Paraná) Teoria Crítica do Direito CRESCI SOBRlNHO, Elício de justiça Alternativa· FARIA, José Eduardo & CAMPlLONGO, C. (professores da Universo de São Paulo) Sociologia Jurídica no BrasilKELSEN, Hans Teoria Geral das Normas MELO, Osvaldo F. de (Prof. da Universo da UFSC) Fundamentos da PolíticaJuridica NOVOA MONREAL, E. (Ex·prof. da Universo de Santiago, Chile) ODireito como Obstáculo àTransformação Social OLIVEIRA Jr., A. 'de (prof da Universo Federal de St~ Catarina) Bobbio e a Filosofia dos juristas SANTOS, B. de S. (Prof. da Universidade de Coimbra) O Discurso e o Poder - Ensaio sobre a Sociologia da Retórica jurídica Críticas da ideologia jurídica SOUSA PaI SOUTO 00000038860 de Modernidade Ciê o Mestrado em WARAT Direito ~ O Direito e Sua Linguagem
" CRITICADA IDEOLOGIA JURÍDICA·
1111.11\ 1111111111
\
Sergio Antonio Fabris Editor
CRÍTICA DA IDEOLOGIA JURÍDICA Ensaio Sócio-Semiológico
ÓSCAR CORREAS.
CRÍTICA DA IDEOLOGIA JURIDICA ;#
Ensaio Sócio-Semiológico
Tradução: ROBERTO BUENO
Sérgio Antonio Fabris Editor Porto Alegre I 1995
•
'lfdiloração EJetrónk:a eFilmes: GRAFUNE- Assessoria GráfICa e Editorial Ltda. Rua Tupi, 205 cjs. 203/205 Volta do Guerino POA 9103Q.520/RS Brasil Fone/FAX/Modern (051) 341-1100
Para Óscar Correas, meu pai
Reservados todos os direitos de publicação. total ou pardal, a SERGIO ANTONIO FABRIS EDITOR Rua Miguel Couto, 745 CEP 90850-050 caixa Posta14001- Telefone (051) 233-2681 Porto Alegre, RS - Brasil . CEP 90131-970
APRESENTAÇÃO À EDiÇÃO BRASILEIRA
o grito de vitória do capitalismo, pronunciado com toda a pompa poso sível ante a queda do muro de Berlim e a destruição da União Soviética, foi acompanhado de sisudas disquisições sobre o "fim da história", que, parecia então, terminava com esse triunfo. Passados poucos anos do festejado triunfo, já o capitalismo, que não consegue-se alimentar dessas fanfarrices - que agora não parecem tão severas - volta a mostrar a sua face horrível. Este livro aparece quase ao mesmo tempo em que se conclue a Conferência de Desenvolvimento Social, convocada pela ONU, em Copenhague, aberta pelo Secretário Geral Boutros Ghali, que informou que não, menos da metade da população da Terra vive na miséria. Qual é, então, o afamado triunfo do capitalismo? Ou será que seus apologistas ~e atreverão a proclamar, cinicamente, que essa vitória consiste na melhoria do nível de vida do primeiro mundo, unicamente? Na verdade, poucos anos foram suficientes para demonstrar que o ideário socialista não foi destruído com o muro de Berlim. Por pouco tempo, os apologistas do capitalismo gozaram sua vitória. O fantasma do marxismo, embora como bom fantasma seja hoje pouco conhecido, pouco lido, conti· nua percorrendo, e corroendo, as entranhas do mundo opulento. As ilusões de que as contribuições teóricas do marxismo tinham sido "superadas" pouco duraram. Este livro foi escrito entre 1989 e 1990 e publicado no México pela primeira vez em 1993. Na época, o marxismo deixara de ser um corpo teórico de grande presença nas universidades latino·americanas. Também, de pronto, o discurso juridico deixou de postular que o estado moderno protegia os fra· cos e começou a apresentar o capitalismo, e seu direito, sem o antigo rubor, como "gestor do bem comum". De certa forma este livro desobedece esta espécie de regra de trânsito, que parece indicar uma só direção correta. Ele vem "pela contramão' como se diz em meu país. Contudo, atrevo-me a augu7
rar que o tempo da crítica marxista voltará muito antes do desejado pelos apologistas do capitalismo. Recentemente, no Brasil, em 1991, ocorreu um fato significativo na história do pensamento jurídico latino-americano: o calor do escândalo que em algumas "boas consciências" jurídicas causou o surgimento de um pequeno, mas ruidoso grupo de "juízes alternativos" ocorrido em Florianópolis, no Pri- . meiro Congresso Internacional de Direito Alternativo. A presença de professores, advogados, juízes, promotores de justiça e estudantes, foi inesperada· mente numerosa. A partir de então foram realizados outros encontros, todos com êxito e pode-se dizer que o Brasil é hoje o país latino-americano onde menos deveriam contar vitória os juristas a serviço do capitalismo. É nesse meio - e penso que graças às oportunidades que me foram concedidas nesses congressos -, que este livro é publicado hoje pela prestigio osa editora dirigida pelo Sr. Sergio Antonio Fabris, a quem muito agradeço a confiança e o destaque que, graças a isso, tem a partir de agora, o presente trabalho. Trata·se de uma abordagem inspirada no pensamento Marx. Acredito que ele apresente algumas páginas originais e espero, fervorosamente, que tenha alguma influência em juristas que não desejem colocar os seus conheci· mentos, nem enlamear sua vida, a serviço de um sistema social que condena a metade do mundo à miséria. De seu êxito ou de seu fracasso, serei responsável: permitir-me-ei, contudo, o entusiasmo de acreditar que seja bem recebi· do, e que contribuirá para demonstrar que o marxismo é um corpo teórico que, melhor do que qualquer outro, pode explicar - e criticar - o direito moderno. Não sendo assim, nem por isso conseguirei crer no definitivo triun· fo do capitalismo. De qualquer forma, é necessário continuar insistindo em que os ideais socialistas permanecem, tanto ou mais vivos que antes, na medida em que esta sociedade é tão ou mais injusta que antes. E em que os juristas têm um importante papel a cumprir na transformação deste em um mundo melhor.
Barcelona, março de 1995.
SUMÁRIO
Introdução
......................................................................................
15
Capítulo Primeiro A IDEOLOGIA E OS DISCURSOS ~. ~s textos que contém ;·i·d~~·I~~i·~·j~ridi~~ .. . Sl~t~mas formalizadores ou linguagens 3. Codlgos, 29 ' 4. Os sis~~m~s formalizadores e os Conteúdos de conSClencla, 30
28
5.
6. 7. 8. 9. 10.
II. 12.
27·..........··..
27
~deologia, ideologias, discurso e discursos 31 '.1. Ideologia,31 ' 5.2. As ideologias, 32 5.3. Discurso, 32 5.4. Os discursos, 33 Os usos de "ideologia" e "discurso" 33 Ideo~ogia em significado amplo, 34 ' A unl~a~e de uma ideologia, 36 Coer~nc~a sintática dos textos, 37 ~oerencla semântica ou de sentido dos textos 38 SIstemas significantes, 40 ' Denotação e conotação, 42
Capítulo Segundo O DIREITO COMO DISCURSO PRESCR.rI1V< 1.
2.
As palavras do discurso do direito ~5"'''''''''' 1.1. O signo, 46 '
..
45
1.2. O significado, 46 1.3. O referente, 47 O sentido dos discursos, 48
8
9
3. 4.
5. 6.
Sentido e ideologia, 50 Uso descritivo e uso prescritivo da linguagem, 50 4.1. A diferença desde o ponto de vista semântico, 51 4.2. Avontade do produtor do discurso, 51 4.3. A diferença desde o ponto de vista pragmático, 52 Discursos com sentido prescritivo, 53 Os discursos e os operadores lógicos, 54
Capítulo Terceiro O CONTEÚDO DO DISCURSO DO DIREITO
1.
2. , 3.
.
57
O direito como discurso organizador da violência, 57 1.1. O direito como discurso que ameaça com a violência, 58 1.2. O direito como instrumento de resolução de conflitos, 61 1.3. O direito caracterizado pela possibilidade de submeter algo a justiça, 62 1.4. O direito como modelo para julgar condutas, 63 1.5. O direito como unidade de dois tipos de normas (Hart), 6; A qualidade do produtor do discurso do direito, 67 O direito como discurso autorizado, 69 3.1. O sentido autorizado, 70 3.2. Avontade do produtor, 70
Capítulo Quinto AS CffiNCIAS jl.JlÚDICAS , . 1. O uso dos critérios teóricos, 89 2. O discurso da ciência, 90 3. Ciência e política, 91 4. Aeleição de uma teoria, 95 5. As ciências do direito, 96 ;.1. Dogmática jurídica, 97 ;.2. Sociologia jurídica, 97 ;.3. Psicologia jurídica, 97 ;.4. Análise do discurso do direito, 97 ;.5. Análise dos discursos jurídicos, 98 6. A Dogmática]urídica ou]urisprudência Normativa, 98 7. O reconhecimento do direito como atividade intelectual, 99 8. AMetodologia]urídica, 104 8.1. Adescrição de normas, 106 8.2. Ainterpretação, 106 8.3. O estudo do ato produtor do discurso do direito, 107 Capítulo .Sexto A ANÁliSE DO DISCURSO DO DIREITO
1.
Capítulo Quarto O RECONHECIMENTO DO DIREITO
1. 2. 3. 4. 5. 6.
10
Os destinatários do direito, 7; O reconhecimento do direito, 78 O reconhecimento do funcionário, 80 O reconhecimento do sentido autorizado do discurso, 84 O reconhecimento generalizado do direito, 85 O reconhecimento profissional do direito, 87
..
89
75 2. 3. 4. 5. 6.
.
113
Discurso do direito e discurso jurídico, 114 1.1. As fundamentações, 114 1.2. As exposições de motivos, 115 1.3. . As explicações, 115 1.4. Os discursos cotidianos, 115 1.5. O uso do direito, 115 Aideologia no discurso do direito, 116 Sentido deôntico e sentido ideológico do discurso do direito, 117 A ideologia do direito e a ideologia jurídica, 118 Sistemas significantes, 119 A análise do discurso como ciência, 121 6.1. Discursos acerca da ideologia jurídica, 121 6.2. Discursos acerca do sentido ideológico do direito, 122
11
7.
As ciências jurídicas, ciências acerca do exercício do
2. 3.
poder, 122 Capítulo Sétimo A CRÍTICA JURÍDICA
1.
2. 3.
4. 5.
ACrítica]urídica na França, 125 1.1. A concepção científica de Critique du Droit, 126 1.2. A negação do jurídico universal, 128 1.3. O direito, seu uso, e a Sociologia]urídica, 129 1.4. O direito como discurso, 131 ATeoria Crítica do Direito, 133 Acrítica do direito como análise do discurso, 136 3.1. "Crítica", 136 3.2. A crítica do direito desde o ponto de vista interno, 138 3.3. Acrítica do direito e dos discursos jurídicos desde um ponto de vista externo, 140 3.4. Acrítica científica dos discursos nãocientíficos, 140 O problema do fundamento do discurso crítico de outro discurso, 141 A cientificidade da Crítica]urídica, 142
Capítulo Oitavo O REFERENTE DO DISCURSO DO DIREITO
1. 2. 3.
4. 5.
6.
12
..
~
A necessidade da explicação causal, 173
.
4. 5. 6. 7. 8. 9.
Capítulo Décimo A CAUSA NA SOCIOWGIA JURÍDICA
1. 2. 3. 4. 5.
145
1. 2. 3. 4. 5. 6.
173
191
.
209
.
227
O direito, as relações sociais e suas descrições, 209 As relações sociais e o referente do direito, 212 Aapologia do direito, 214 Uma teoria sociológica geral, 216 Os modelos em ciências sociais, 217 Relações sociais e condutas, 219 6.1. As condutas, 220 6.2. As relações sociais, 221 . 6.3. O discurso do direito e as relações sociais, 222
Capítulo Décimo-segundo A ClÚTICA JURÍDICA
1.
..
A "causa" em Sociologia, 191 O discurso como causa do discurso, 195 A origem das ficções do sentido ideológico do direito, 199 As descrições nO discurso do direito, 204 Causa e referência fictícia do direito, 205
Capítulo Décimo-Primeiro AS RELAÇÕES SOCIAIS E O DIREITO
Os fatos e o sentido, 145 O sentido e seu referente, 149 O discurso do direito, seu sentido ideológico e as relações sociais, 153 3.1. O direito para o usuário, 154 3.2. O direito para o sociólogo, 156 3.3. O direito frente a análise do discurso, 157 Causa e referente, 160 Os códigos e o deciframento do discurso do direito, 167 Denotação e conotação de ficções, 171
Capítulo Nono A EXPLICAÇÃO CAUSAL
1.
125
..
A causa na Sociologia]urídica e na CríticaJurídica, 175 "Causa" no pensamento grego, 176\ 3.1. Aitía como geração, 177 3.2. A homogeneidade entre os termos, 179 "Causa" como atividade de um sujeito, 181 "Causa" como razão, 183 "Causa" como ficção, 184 "Causa" como função, 185 Causa sistêmica, não linear, 186 O uso científico da palavra causa, 186
ATeoria Sociológica do direito, 227 1.1. A descrição de um modelo sociológico e as normas, 227 1.2. O modelo normativo, 228 1.3. A "necessidade" das normas, 228 13
2. 3.
4.
Capítulo Décimo-Terceiro EPíLOGO E BALANÇO 1. As perguntas e atitudes iniciais, 259 1.1. Apergunta pelo ser assim do direito, 260 1.2. O estado dos exploradores, 260 1.3. Aideologia jurídica, 260 2. Acrítica da ideologia jurídica, 261 3. As contribuições, 263 3.1. O marxismo como hipótese, 263 3.2. ATeoria Geral do Direito, 264 3.3. O direito como discurso, 264 3.4. ATeoria Sociológica do Direito, 264 3.5. Acausa do discurso do direito, 265 3.6. As categorias utilizadas, 266 3.7. Apluralidade de discursos, 267 3.8. O reconhecimento do direito, 267 3.9. Acrítica do conceito de causalidade entre relações sociais e direito, 268 4. Acrítica do direito moderno, 269 4.1. O direito privado, 269 4.2. O direito do 'trabalho, 271 4.3. O direito econômico, 273
14
INTRODUÇÃO
1.4. Anecessidade da coerção, 230 1.5. Modelo e sociedade, 231 ASociologia Jurídica, 233 ACrítica do Direito, 239 ACrítica do Direito como análise do discurso, 242 4.1. Denotação e conotação, 243 4.2. Sistemas significantes, 244 4.3. Categorias e técnicas jurídicas, 250 .
259
O presente ensaio tem por objeto propor fundamentos para a Critica do Direito e, principalmente, para a crítica da ideologia jurídica. Apretensão de oferecer uma proposta provém de que considero de escasso valor os funda· mentos deste trabalho, tal e como foram propostos até o momento. Esta afiro mação implica, por suposto, em explicar por qual motivo me parecem insufi· cientes (II). Mas antes será necessário precisar muito mais o que se entenderá por "Crítica do Direito" e crítica da ideologia jurídica (1). Como veremos, a proposta que desenvolveremos nesta pesquisa conduz àconsideração da Critica do Direito como análise do discurso, instalada no espaço das ciências sociais (III), mas com os fundamentos críticos do pensamento de Marx que, contrariamente ao que parece, não foram enterrados junto aos cimentos do muro de Berlim (IV).
I. A Crítica do Direito e da ideologia jurídica
O que seja "crítica" do direito, ou da ideologia jurídica, tem relação com o conceito de direito. Com efeito, não parece sensato realizar a crítica de algo que não foi definido previamente. Isto explica que para conseguirmos que esta pesquisa seja, à medida do possível, completa em si mesma, deve lograr·se previamente uma definição aceitável daquilo que constituirá o obje· to da crítica, ainda que nosso interesse ao tentar obter um conceito de direito seja isolar o que é a ideologia do direito e não as normas. Para o tratamento disto estão dedicados os primeiros capítulos. Por esta razão, tendo sido impossível evitar a discussão sobre o que, para este trabalho, será considerado direito, foi necessário adentrar neste tema que c,?nstitui o objeto da Teoria Geral do Direito, da qual se extraíram as conclusoes a que chegamos. Como se sabe, a definição do significado da palavra "direito" é um dos temas presentes em todo estudo sobre este fenâ15
meno normativo. Sobre este problema, desde há muito tempo, e precisamente por força da falta de entendimento na discussão entre positivistas, marxis.tas e outras correntes de origem sociológica, ficou claro que o estudo do direi· to não se esgota no estudo das normas, ainda que se possa aceitar que estas constituem sua própria essência. Mas, precisamente, este último ponto é atu· almente duramente discutido. Mas bem, se existe esta discrepância, e se bem é possível aceitar que o direito não é somente norma - sob condição de que se explique esta afirma· .ção -, de todas maneiras há um ponto de acordo absoluto: nunca ninguém negou que o direito contém normas, embora alguns considerem que contém algo mais que isto. O ponto de convergência está em que todos aceitam que o direito contém normas. Mas, então, resulta imprescindível lograr um conceito de "norma" ou da parte do direito que é normativa, que permita separar, distinguir, estaj)ãrte da outra que não é normativa, e que é a parte para cuja crítica este trabalho pretende oferecer fundamentos metodológicos. Mas bem, no mesmo momento em que se propõe que contém algo mais que normas, o direito deve aparecer como um discurso mais entre outros muitos, dentre os quais deve, por sua vez, ser diferenciado. Enquanto o direi· to era somente norma, definindo "norma" o problema tinha terminado. Mas, tão pronto é considerado como um conjunto de normas e outros enunciados, o que é direito fica instalado em outro nível distinto, "superior", como uma estrutura que contém diversos elementos, e que coexiste junto a outros fenômenos discursivos também complexos. Enquanto o direito eraiOmente nor· ma parecia demasiado determinado por sua relação com a moral: o problema consistia em saber qual era a diferença entre normas morais e normas jurídicas. Não obstante, tão logo o direito deixa de ser unicamente norma sua dife· rença com a moral perde o caráter de ser a diferença definitória. Com isto o direito ficou instalado, junto com a moral, no nível de todos os demais discursos existentes na sociedade, e· agora é do resto deles dos quais deve dife· renciar-se. À primeira vista poderia parecer que, então, já não tem sentido perguntar·se pelas notas distintivas deste discurso. Mas não é assim, e isto precisamente porque o direito já não é somente norma, embora, de qualquer maneira, também compreenda normas. Por isto mesmo, agora é o momento em que se faz mais necessário dispor de um conceito da parte normativa deste discUrso. Contudo, este conceito não seria utilizado para distinguir o direito da moral, mas sim para distinguir, no interior do próprio direito, qual é sua parte normativa e qual sua parte não normativa.
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Mas bem, porque é necessário distinguir a parte não normativa deste discurso? Em realidade, isto está determinado pela intenção do estudo. Com efeito, se do que se trata é de saber como é que este discurso consegue sua eficácia, como é que consegue controlar aos indivíduos, como é que se produz a regulação jurídica, então, talvez não tenha muita importância saber qual parte está constituída por normas e qual parte por outros discursos não normativos, como definições, nulidades, etcétera. Como veremos, este é o rumo atual de uma parte da crítica francesa, precisamente aquela que esta pesquisa reconhece como um de seus principais interlocutores. Trata-se de um tipo de pesquisa sociológica interessada no que ocorre depois da produ· ção do direito. Em troca, a presente pesquisa pretende oferecer fundamentos para responder a outra pergunta: "Porque o direito diz isto que diz e não outra coisa?" Ou seja, perguntamos pelas causas do direito e não pelo como se produz a dominação através dele. Neste aspecto se trata também de Sociologia Jurídica. O que acontece é que, e aqui é onde devemos fazer intervir outras disciplinas além das sociológicas, a pergunta pelas razões que explicam que o direito diga o que diz não pode ser desvinculada da pergunta acerca do que, e sobretudo do como o diz. Neste aspecto já não se trata de Sociologia senão do estudo do próprio discurso, de seu sentido imanente, e isto pode ser visto como aná/içe do discurso do direito. Para a concepção que preside este trabalho é nisto que consiste a Crítica do Direito. Por isto é que este ensaio pode ser considerado como uma tentativa de insistir no mesmo ponto que há dez anos, isto é, na crítica jurídica. Neste exato ponto, a tarefa está a meio caminho entre a Sociologia e a análise do discurso. Por um lado está apergunta: "Porque o direito - o Código Civil, por exemplo - diz isto que diz e não qualquer outra coisa?", ou seja, "porque este discurso é assim e não de outro modo?" Por outrO lado está a pergunta: "Qual é o sentido deste discurso?" As duas perguntas permanecem juntas porque é impossível perguntar·se porque o discurso é este e não outro sem responder também como (ou qual) é o sentido deste discurso. Mas, por Outra parte, é impossível tentar averiguar o sentido de um discurso sem per· guntar·se por aquilo que constitui oreferente deste discurso. Com efeito, como conhecer o sentido de um discurso sem perguntar·se sobre aquilo ao que se referem as palavras que o compõe ou, como veremos que é o nosso caso, sobre aquilo ao que reputa referir·se o usuário? Como pode ser visto com facilidade, o núcleo da questão se instala na confluência da causa e o referente d? discurso. Ao exame destas antigas questões estão destinados os capítulos OItavo, nono e décimo.
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Mas, voltando à pergunta "porque é necessário estabelecer uma djferença entre a parte normativa do direito e a que não o é?", nos encontramos com o objetivo da Crítica do Direito. Com efeito, esta não é uma crítica da justiça das normas. Não se trata de apontar a notória injustiça do capitalismo e, portanto, da maldade intrínseca do direito que o reproduz ao contribuir a reproduzir as relações em que consiste aquele. ACrítica do Direito se propõe algo distinto, e a revisar esta questão está destinado o capítulo sétimo. Para a Crítica do Direito o importante não são as normas em si mesmas enquanto tais, mas sim a ideologia que elas reproduzem cotidianamente ao ser usadas, ainda que para estudar a ideologia contida nas normas seja necessário poder identificá-las: a dogmática é ineludível, é necessário conhecer o direito. Dito de modo mais simples, é necessário ser jurista, e possivelmente isto tenha contribuído para que os sociólogos, a menos que tenham a cultura de um Weber, não estejam capacitados para dizer coisas interessantes a respeito. Isto, por sua vez, conduziu a esta lamentável clausura que, como uma maldição, pesa sobre os estudos jurídicos. Em resumo, o que interessa à crítica que este trabalho pretende apoiar teoricamente não são as normas, mas sim, precisamente, o outro das normas, o que chamaremos, no capítulo sexto, sentido ideol6gico do direito e ideologia jurídica. Eé justamente porque isto nos interessa que se torna necessário saber que parte deste discurso é norma e que parte não é norma. ACrítica do Direito, como aqui a definiremos, não se interessa pelo como se produz a regulação jurídica, mas sim pela ideologia cujo uso reproduz a sociedade capitalista. Uma coisa é esta ideologia e outra coisa seu uso. Quando o que interessa é a critica da ideologia jurídica e da ideologia do direito (estabeleceremos esta djferença no capítulo sexto), e seu estudo constitui o objetivo das propostas metodológicas deste trabalho, então a djferença entre as normas e os outros discursos incluídos no direito se converte em essencial, porque nem todos cumprem a mesma função ou, talvez, cumprem a mesma função mas não são os mesmos discursos. Este último ponto é da maior importância, posto que quem produz as normas pretende conseguir determinados efeitos. Mas, apesar de tudo, "o outro" do discurso do direito pretende conseguir outros efeitos ou, então, o mesmo efeito, isto é, o controle social ou regulação jurídica, embora de modo djferente. Eisto é algo que, sem dúvida, é digno de estudo. Não obstante, ao estudar o efeito, a regulação que se alcança com "o outro" das normas, implica conhecê-lo, e nisto consiste, creio e defendo, a Crítica do Direito.
IL A causa, a função e o referente do direito Partindo do pressuposto de que temos uma definição aceitável do que é direito enquanto norma, e do que acompanha o direito mas não é norma, podemos perguntar-nos pela causa de que sejam assim as normas e a ideologia que as acompanha. Quando nos perguntamos pela causa das normas estamos em plena Sociologia Jurídica, o que também ocorre quando nos perguntamos pela causa da ideologia do direito. Em uma primeira etapa a crítica francesa se propôs este problema sob a forma da pergunta pelafunção do direito. "En primiere aproximation, en effet, ce droit a au moins une double fonction il protege avec ostentation mais réelIement la classe ouvriêre d'une exploitation effrené, mais ii organise non moins réellement cette exploitation... "(1) Perguntar-se pela função é uma maneira de perguntar-se pelas causas do direito. Com efeito, a causa de que o direito diga isto que diz consiste na necessidade de que se cumpra talou qual função. Quando não cumpre sua função os sociólogos dizem que o direito não é efetivo ou que é ineficaz, ou ambas coisas. Esta é uma maneira de ver o problema da causa, mas não é a única maneira de,perguntar-se pelas causas do direito. Como veremos no capítulo oitavo.;o~ e os sociólogos chamam causa do direito, desde o ponto de vista da análise d discurso, é seu referente. A Crítica o Direito tal como foi proposta há dez anos no México (2) utilizava diversas palavras, entre as quais "causa" e "função" apareciam de modo mais esporádico que outras como "expressão" e "forma". Contudo, a releitura deste texto mostra que não fomos conscientes de que o problema é que o direito "fala" -das relações sociais. O livro está repleto de expressões 'como:
1 - JEAMMAUD,Antoine, "Lesfonetionsdudroitdutravai1" emCOlliNF.,etal.,Ledroitcapila/isle du travail, Grenoble, Ed. PUG, 1980, p. 152. ar.: "Laconditionessentielledel'ejJicadtédudroit, dilns lalondion idéoIogique, estqu 'ii apparaisseromme indépendtmt de 11Ul1lipukItfongrossieres etsemble juste", p. 201. 2 ,- Consegui não citar no corpo do ensaio nenhum trabalho anterior. Somente fIZ ao finalizar, para t~tarfazer um balanço. Mas neste ponto permitido referir-me auma obraanterior, porque, caso COntrário, seria ininteligível a razão pela qual creio que aquela critica tinhafundamentos de escasso ;:t0r, que é o que justifica este novo trabalho. Aobra é CORREAS, Oscar,lntroducción a la critica et ~erecho moderno (Esoozo), Puebla, Ed. Universidad de Puebla, 1982, embora o livro tenha sido ~~~o em 1978. Há uma segunda edição, da mesma editora, de 1986. Me refiro a esta edição na
°
,_o.
18
19
Note.se, por último, que o direito civil opera como se as merc~dorias que circulam tivessem sido produzidas segundo o modelo da produçao mercantil simples. Em outras palavras, que opera supondo que o portador das mercadorias as produziu ele próprio, de forma autônoma, com meios de produção que "possui", que detém materialmente. Mas, atentemos, o direito civil faz disto um suposto tácito, em nenhuma parte fala deste problema... Mas de nenhuma maneira o direito civil faz referência a eles como meios de produ· ção. Ao direito civil não importa que produzam ou que nã~ produ~m ... o único que lhe interessa é designar um "dono" que possa ou nao vende·los (p.
49). O tipo de palavras usadas informa perfeitamente sobre esta clara falta de consciência: o direito é um sujeito que "fala" de outra coisa, que são as rela· ções sociais tal qual as descreve Marx; o direito civil "opera", "supõe", "faz disto um suposto tácito", "em nenhuma parte fala", "atende", "designa", e, principalmente, a idéia que logo se torna central, "faz referên~~". ~isto desde o presente ensaio, o que havia era uma clara falta de consclencla de que o .direito é um discurso - palavra também utilizada muitas vezes - que tem como referente as relações sociais. Ehavia, também de modo claro, uma confusão entre as descrições, que podem ter referente, e as normas que não podem tê·lo. Es:es são os dois pon· tos frágeis daquela proposta: a inexistência de uma reflexao sobre os problemas advindos da consideração do direito como um discurso com,referente, real ou pretendido, e a indistinção entre o que agora chamaremos sentido deôntico e sentido ideol6gico deste discurso com referente. Em outras pala· vras a diferença entre as normas e os outros discursos coexistentes no mesmo ;exto. Este segundo problema aparece tão logo adquirimos clara consciên· cia, agora sim, de que introduzimos as questões da referência dos discursos, posto que, como creio que com toda razão a Teoria Geral do Direito afirma, as normas não tem tal referente, nem real nem pretendido. Somente podem ter causa, isto é, podemos perguntar·nos legitimamente porque a lei ordena pa· gar pelo trabalho ao menos o salário mínimo estabelecido pelo estado, en· quanto que é algo totalmente distinto p~rguntar.se p~l~ re~ere~te ~as pa~av~ "trabalho" e "salário". O primeiro, que e uma prescnçao, obngatorio p ,nao tem referência, e vamos chamar·lhe sentido deôntico do discurso do direito. Mas o segundo, as palavras "trabalho" e "salário", têm referente e são discur· sos que transmitem uma ideologia precisa, qu~ chamare?,o~ sent!d?ideo~6 gico do direito. O objeto da Critica do Direlt~ e este sentido Ideologlco e nao o estudo ou a crítica das normas ou seu efeito, como se fosse o estudo de como é produzida a regulação jurídica através do seu uso. 20
Por outra parte, este estudo é também sociológico, porque é evidente que o referen_te do d.ir~ito é .?m~ém sua causa. O direito é um discurso "que fala" de relaçoes SOCiaiS, e nao ha nenhuma SociologiaJuridica que não pre· tenda que tais relações sejam a causa do direito (salvo que alguém pretenda que a causa é deus ou algo assim). Por isto a Critica do Direito está na metade do caminho entre a Sociologia e a análise do discurso ou, talvez, a Semi6tica
Jurídica. Certamente que a crítica francesa também entendeu que o direito "fala· van de um referente: "Par réaetion contre la représentation dominante du droit qui laisse croire que les rapports sociaux son réllement ce que le droit en dit et qu'i1s son 'justes' dans la mesura ou i1s lui son conformes, ..." (idem, p. 153X3) OU seja, também na crítica francesa aparece esta clara consciência de que o direito é um discurso que "fala" de algo que é seu referente. Contudo, me parece que há uma diferença: no texto francês comentado há uma certa reticência em considerar o direito plenamente como discurso. Por exemplo, logo depois da citação anterior, o autor continua: "...conformes, on peut être tenté de dire que le droit du travail (comme toute autre branche) releve de l' 'ideologie'. C'est-à-dire d'un corps de répresent~~tio des rapports sociaux destinées à les rendre acceptables en les naturalisant et n édulcorant leur realité. A I'évidence pourtant, ce n'est pas seulemen tant que représentations de I'ordre social que les institutions juridiques contribuent au maintien de cet ordre, mais aussi comme faeteur 'matériel',". (idem, p. 153) Esta espécie de retirada - mais aussi commefacteur matérlel- ante a consideração do direito plena e totalmente como discurso, talvez explique a posterior inclinação desta parte da crítica francesa para o trabalho preferentemente sociológico, para o estudo da regulação jurídica. Enquanto isto, a explicação de que hoje a variante mexicana se incline pela considera· ção do direito plenamente como discurso possivelmente se deve à intenção inicial de crítica ideológica. A idéia de que o direito é um fator "material", a menos que se deixe claro em qual sentido um discurso pode ser matéria, não
3 - ar.: "Le droit ne parle évidement pas d'exploitation de la force de travailpar te capital. A bien des égards, ii 'dit' les rapports de production en les déguisant et ce travestissement est Itl Prlncipale moda/ité de leur expressionjurldique~ p. 172. Este livro também contém diversas :sagens nas quais o direito "diz·. cfr.:pp. 175, 158. Na p. 176: 'Toutsepassecomme si la question ~ P,roPriété était étrangere à la question du trava{/~ "Tudo ocorre·, como na versão mexicana Odu'eitOcivil·operacomose..... nap. 49.
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é compatível com a convicção de que existe uma distância insuperável entre os fatos e o sentido atribuído aos fatos, tema que será tratado no capítulo oitavo. Para evidenciar esta diferença de objetivos para o qual parecem apontar as variantes francesa e mexicana desde o princípio desejo assinalar que a incli· nação desta última, desde seus primeiros escritos, era preferentemente para a crítica da apresentação do direito moderno feita pela ideologia universitária corrente(4). Adebilidade da apresentação anterior consiste em que, conforme o fun· damento teórico aceito, que é a teoria marxiana da sociedade capitalista, re· sulta que o direito moderno, seu sentido ideológico, oculta as verdadeiras relações sociais(5). Para explicar o ocultamento, Marx proporciona uma au· têntica teoria, condensada no que ele denominoufetichismo da mercadoria e que em sua juventude chamou "alienação". Mas a explicação marxiana mostra somente o fetichismo que a relação mercantil produz no portador de merca· dorias quando este considera que as coisas são naturalmente mercadorias ou o valor delas lhe aparece como uma virtude tão natural como o é que sejam "coisas". Até aqui Marx. Ese se aceita isto, resulta também aceitável que quan· do o direito - seu sentido ideológico - "fala" de, ou se refere às relações mercantis, e o faz de uma maneira que não é coincidente com a descrição marxiana, então, o direito "oculta", "encobre", "desvia a atenção", "distorce", "mente". Isto me parece válido para um sociólogo, mas não para estudar o direito.
4 - Visto desde esta distância me parece evidente esta leitura de um trabalho datado de abril de 1978 mas publicado um ano após: Correas, Oscar, "E) contrato de compraventa de fuerza de trabajo" em Revista dei PoderJudicial dei Estado de naxcala, ano II, número 6, abril·junio, 1979. É surpreendente asimilitude deste trabalho com o citado de Critique du Droit, embora seja evidente que a preocupação principal era a de combater a ideologia dos professores de direito do trabalho muito mais do que explicar algo sobre ele. Quero destacar que este artigo antecede em dois anos a publicação do texto francês, e que o contato entre os autores não aconteceu antes de 1981. Isto revela que as preocupações latino-americanas e francesas eram parecidas, mas não idênticas. 5 ..,. O tema do ocultamento é também surpreendentemente similar entre as versões francesa e mexicana. No texto francês, veja-se p. 167 ("L'expression déformante de ces rapports par les relarions de travail teUes que le droit les agence..."), p. 173, la "nature vérltable du contrat de travai~ qui estforme jUridique d'un achat de force de travaf~ se trouve escamoté), idem, le "rapport social capital-travaiIsalarié est donc parfaitemente dissimulé dons et par le contrat de travail". Definitivamente, o único traço diferencial é esta caraeteóstica inicial da versão mexicana de privilegiar a questão da ideologia juódica como discurso acerca do direito sobre qualquer outra. É também a única explicação de que o presente trabalho tenha desembocado na cótica juódicacomo análise do discurso e não no estudo da regulação juódica.
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Quando o objeto de trabalho muda, quando o auditório não está com· posto por sociólogos mas sim por jovens juristas e estudantes de direito de espírito crítiCO frente a sociedade capitalista, é necessário uma aproximação distinta. É certo que, como eu desejava na primeira apresentação, a Critica do Direito pode ser instalada no nível dos discursos políticos sem fazer maiores esforços para instalar·lhe em competição com a ciência tradicional do direito. Naquele caso o auditório está composto por pessoas que, por motivações éticas plausíveis, são proclives a um discurso crítico de um direito que prote· ge umas relações sociais injustas, ou seja, se tratava de uma crítica dirigida aquelas pessoas que já estavam convencidas. Mas tão logo tentamos instalar a crítica inspirada em Marx em franca competição com outras teorias, quando nos propomosprovaro que dizemos do direito moderno, que é mentiroso, ocultador e diversionista, o aspecto do problema é outro. Quando nos propomos convencer, mas instalando·nos no espaço discursivo das ciências sociais, algo muda. O que muda fundamentalmente é isto: quando o auditório está compos· to por juristas e quando a sede da discussão é o espaço das ciências jurídicas, dizer que o direito se refere a relações que oculta é, no mínimo, pouco claro. Com efeito, neste.âmbito, a resposta forte é: Como se sabe que o direito tem como referente as relações capitalistas se ao mesmo tempo as oculta? Como podemos saber que o referente é algo que não aparece no discurso, posto que é ocultado por ele? Não é uma contradição dizer que o referente é precisa. mente o que não está no discurso? Quando dizemos que o contrato de traba· lho se refere ao intercâmbio entre capital e força de trabalho mas que este último fica oculto, como provamos tal afirmação? Tudo isto, desde logo, quando nos instalamos em um espaço onde seja necessário "provar" indicando algum dado empírico que possa servisto como o referente do enunciado. Quando um sociólogo fala de uma classe social, por exemplo, para que seu discurso seja considerado científico ele deve estar em condições de indicar algum dado empírico que se constitua no referente da expressão "classe social". Quando um economista fala de tendências de inves· timento de capital deve estar preparado para indicar, por exemplo, com um gráfico representativo de dados empíricos algum referente da expressão "ten· dências de investimento de capital". Por sua vez, quando o jurista crítico diz qUe a palavra "salário" na realidade se refere ao preço da força de trabalho, como pode provar que é assim se o próprio discurso do direito diz outra coisa, por exemplo, que é a contraprestação do trabalho entregue pelo trabalhador? Como provar que com os contratos o direito civil se refere à circulação mero
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cantil se o próprio discurso diz que se refere a acordos de vontade? Em todo caso, é necessário provar que a expressão "acordos de vontade", contra toda a tradição jurídica e toda a tradição semântica, não se refere a isto que todo mundo entende quando se diz "acordos de vontade", mas sim que se refere a algo que ninguém se refere com esta expressão: a circulação r:nercantil. O presente ensaio pretende oferecer uma resposta a esta perplexidade. Esta resposta é a seguinte: a prova de que o sentido ideológico do direito moderno se refere a circulação mercantil, a produção capitalista de mercadorias e a circulação do capital, é que o sentido deôntico do discurso do direito é o que corresponde ao modelo da sociedade capitalista proporcionado por Marx. Aclarar isto é o objeto do ensaio.
III A Crítica do Direito como ciência Apretensão de instalar a Crítica do Direito no mesmo espaço das ciên· cias sociais tem algumas conseqüências que devem ser analisadas. Em primeiro lugar penso que deve ser estabelecida sua posição entre as ciências jurídicas. Não obstante, isto torna inevitável uma reflexão sobre a ciência em geral e sobre estas ciências em particular. A isto se destinam os capítulos cinco e seis deste trabalho. Esta discussão é inevitável porque a posição epistemológica adotada, que é evidente desde o primeiro capítulo, de· clara que a ciência nada mais é que um discurso que se propõe a si mesmo regras especiais, e é este último ponto o único que o diferencia de qualquer outro. Isto significa instalar a ciência no espaço dos discursos dirigidos a um auditório, isto é, instalar·lhe neste espaço em que os discursos convencem ou não. Com isto, o discurso dos cientistas já não pode propor-se como o que se diferencia dos outros porque enuncia a verdade. Se realmente a enuncia ou não, se convence ou não, será resultado de outros fenômenos como, por exem· pio, da eventual comprovação empírica que somente ocorre com o tempo, mas também das possibilidades de divulgar o pensamento, do espaço conce· dido em revistas e editoras, em institutos e universidades. Aciência não é um discurso à margem da política. Mas isto, por outro lado, não quer dizer que não seja possível aceitar certas regras às quais se deve sujeitar o discurso que se pretende científico. Estas regras são relativamente conhecidas e mais ou menos aceitas, e se denominam "regras do método científico". O desafio, para a Crítica do Direito, é, agora, o de instalar-se neste ambiente e competir com os discursos emitidos por aqueles que são reconhecidos oficialmente como cientistas do direito.
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Este tema me pareceu ineludível em um ensaio que se propõe fundamentar esta disciplina. Aconclusão será que a Crítica do Direito pode constituir-se como uma disciplina mais entre as que se denominam, acredito que ainda de modo incipiente, como "análise do discurso". Aesta proposta se dedica o capítulo sétimo. Mas antes das propostas que constituem o objetivo deste ensaio, é necessário examinar o ponto central deste assunto, a questão da referência e da causa nas ciências sociais em geral, e naSociologiajurídica em particular. Os capítulos oitavo, nono e décimo se dedicam a discutir esta questão.
IV. O marxismo comofundo teórico As mentiras sobre a decadência do marxismo devido aque aUnião Sovié· tica, finalmente, confessou que não era socialista, são flor de um dia. Tão logo os trabalhadores russos e poloneses terminem de descobrir que no capitalis· mo os supermercados estão abarrotados de mercadorias que não são acessí· veis a todos eles terão de voltar a suas eternas lutas pelo salário que os próxi. mos donos também lhes negarão. De qualquer modo, é perfeitamente possível que, por algum tempo, o estudo do direito e da Sociologia jurídica, principalmente, esteja ofuscado pelas teorias que superaram ao marxismo na explicação da sociedade capita. lista, que é o que está ocorrendo atualmente. Isto faz com que este ensaio surja, sem dúvida, um tanto quanto fora de contexto. Contudo, quem queira deixar de lado o marxismo como teoria fundamental para a Sociologiajurídi. ca terá que responder as mais simples perguntas com maior plausibilidade do que se pode fazer desde o pensamento de Marx. E aqui é onde aparece o inevitável caráter político desta ciência: as teorias hoje estão em competição e de nenhuma se pode dizer que tenha todas as respostas. Este ensaio preten· de defender uma teoria com plena consciência de que há outras e que a ado· ção de alguma requer o convencimento do cientista. Esta é aúnica justificativa deste trabalho. Resta dizer que a presente obra é a versão em português, com algumas reduções, da tese de doutorado defendida em junho de 1992 na Universidade de Saint Etienne, frente a banca examinadora composta porAntoineJeammaud, como presidente, André-]ean Arnaud, Michel Miaille, Evelyn Serverin e Marie· Claire Rondeau-Riviere.
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Capítulo Primeiro AIDEOLOGIA EOS DISCURSOS
SUMÁRIO: /. Os textosque conléma ideoIogiajurídica;2. Sistemasfomudizadoresou linguagens; J Códigos; 4. Os sistemasformalizadoreseos conteúdosde consciêtuia; 5. Ideologia, ideologias, discurso e discursos; 5. 1. Ideologia; 5.2. As ideologias; 5.3. Discurso; 5.4. Os discursos; 6. Os usosde "ideologia" e "discurso"; 7. Ideologia em signijicadoamplo; 8 A unidadede uma ideologia;9. Coerênciasintática dos textos; 10. Coerénciasemântica ou desentido dos textos; I 1.Sistemassignificantes; 12. Denotaçãoeconotação.
1. OS TEXTOS QUE CONTÉM A IDEOLOGIA JURíDICA Em primeiro lugar, denominaremos "textos" a quaisquer objetos culturais, ou seja, objetos nos quais se manifesta o trabalho humano, enquanto que "cultura" designará qualquer produto do trabalho humano. Denominaremos "textos" a estes objetos para destacar o fato de que transmitem - ou que neles se pode ler -, idéias ou pensamentos, no sentido amplo deste termo, isto é, quaisquer conteúdos de consciência ou, como diremos em seguida, ideologia. É óbvio que este conceito é conveniente ao tipo de objeto - textos jurídicos - a cuja análise pretendemos oferecer elementos metodológicos. Como veremos depois, podemos falar de discurso do direito e de discurso jurídico, ambos coexistindo no mesmo texto. Por exemplo, uma sentença será um texto no qual coexistem o direito - a parte resolutiva - com o discurso fundamentador, que não é vinculante mas fala do direito, e que denominaremos "discurso jurídico". Desde logo, os textos aí estão como tais porque alguém os cria, mas também porque alguém decide tomar-lhes como tais. Deste modo, os leitores fazem os textos tanto como os autores, embora a identificação de algo como um "texto" dependa do leitor. Caso este último não aceite o texto, de nada adianta a vontade do produtor. Em nosso caso, o dos textos jurídicos, sua 27
identificação dependerá do investigador e da teoria do direito aceita. Por exemplo, um código civil é, evidentemente, um texto que oferece em sua própria materialidade - um livro -, sua unidade. Mas no caso das sentenças os textos serão os protocolos que as contém ou cada sentença um texto em particular? Em um tribunal o texto será todo o recinto ou apenas o estrado? No caso das normas, serão as produzidas como tais ou as eficazes? Como se pode observar, a identificação de um setor do discurso social como texto "jurídico" dependerá do investigador e da teoria aceita. Aqui ensaiaremos uma em parti· cular, que conduzirá à identificação de certos textos como direito. Os textos são compostos de signos, que consideraremos as unidades básicas dos discursos. Entenderemos por "signos" as palavras, que os especi· alistas costumam chamar sememas, de modo que "compra·e·venda", " admi· nistração", "salário", aqui serão signos. Contudo, estenderemos o nome de signos a conjuntos de palavras que tem um significado, tais como "pagamento do preço" ou "relação de trabalho". Certamente com isto estaremos ignoran· do algumas precisões já desenvolvidas pelos semiólogos. O objetivo disto é que nos mantenhamos em um nível de significações que seja familiar para os juristas. Indubitavelmente, em outras oportunidades será necessário refinar nossa Iigguagem. Contudo, este trabalho não será afetado por estas impreci· sões devido as suas reduzidas pretensões. Cabe acrescentar que com estes conceitos de texto e cultura nos afilia· mos a certa concepção filosófica sobre o homem e sua relação com o mundo, mas este não seria o momento apropriado para discuti·lo. Depois de tudo, não é possível dizer absolutamente nada sem fazê·lo desde alguma concepção filo· sófica prévia. Podemos, simplesmente, dizer que com isto aceitamos que o mundo humano é o mundo do sentido, do qual tentaremos uma definição.
2. SISTEMAS FORMALIZADORES OU UNGUAGENS
As idéias ou conteúdos de consciência não podem manifestar-se, aparecer, sem adquirir uma forma através de sistemas de signos que são os que constituem estes textos. Estes sistemas de signos serão designados aqui com a palavra "linguagem". Entre estes estão as linguagens chamadas "naturais" (espanhol ou francês, por exemplo), mas também outras linguagens, como a musical, a màtemática, a lógica ou a ideográfica dos sinais de trânsito. Os lingüistas falam de linguagens e lfnguas, mas este problema não nos concerne neste momento.
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Estes sistemas de signos que permitem às idéias ou conteúdos de consciência aparecer sob uma forma são sistemas formalizadores porque outorgam "forma" aos conteúdos de consciência e, acrescente-se, sem esta forma não poderiam aparecer.
3. CÓDIGOS O que permite que um conteúdo de consciência que aparece em uma forma - linguagem - seja identificável por outra consciência é o fato de que existe um código contido no texto que é conhecido pelo leitor do texto ou receptor da mensagem. Sem a existência de um código não existe a manifestação nem o entendimento de um texto. É possível que uma certa disposição ..de elementos não produzidos por nenhum ser humano sejam lidos como textos por outro ser humano, por exemplo, porque tal disposição pode ser lida como tal conforme certo código. Este caso não nos concerne porque o direito não pode ser produzido por outro ser que não o humano. Pode ocorrer, por outro lado, que um texto produzido segundo certo código, seja lido com a utilização de um outro código. Este é, precisamente, um dos casos que nos interessa. Com efeito, a.realização da crítica de um texto jurídico implica que, produzido segundo um código e portando uma mensagem, possa ser lido com um outro código segundo o qual a mensagem aparece distinta. Mas bem, os códigos são apenas outros discursos que permitem entender os textos que, por isto mesmo, podem ser mensagens. Para que qualquer conteúdo de consciência seja transmitido a outra consciência é necessário que se formalize em um sistema de signos, sistema cujo princípio de inteligibilidade-é conheCido previamente por outro. O que permite conhecer este princípio de inteligibilidade é o código. Em tal caso se estabelece uma comunicação ou transmissão de sentido. Diremos, conseqüentemente, que um conteúdo de consciência existe em um texto na forma que lhe proporciona o sistema formalizador que embasa este texto e que pode ser transmitido se o destinatário da transmissão conhece o código do sistema formalizador. O tipo de textos que é objeto deste trabalho existe sob a forma de lin. guagens naturais, isto é, do espanhol, do francês ou do inglês, que são siste. mas formalizadores chamados linguagens naturais. Estes textos são produzi. dos para ser transmitidos a indivíduos que conhecem o código da linguagem natural em que se formulam.
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Mas, como veremos, além do código constituído pelas regras da linguagem natural há outros códigos que permitem transmitir outros sentidos. Por exemplo, um artigo jornalístico sobre economia pode ser lido utilizando, pelo menos, dois códigos, o da linguagem em que está formulado e o da teoria econômica na qual está instalado o autor do artigo. Já desde aqui podemos indicar para onde apontamos: os textos jurídicos podem dizer muitas coisas segundo os códigos com que sejam lidos.
4. OS SISTEMAS FORMALIZADORES E OS CONTEÚDOS DE CONSCI~NCIA Aconseqüência do fato de que todo conteúdo de consciência - ou ideologia - possa existir somente em textos constituídos por signos qu~ pertencem a algum sistema formalizador é que a ideologia é compelida a aparecer dentro dos limites deste sistema, ou seja, está compelida a aparecer dentro dos limites proporcionados pelo significado dos signos. Por exemplo, algumas idéias jurídicas não podem existir em certas sociedades porque estas não dispõem de palavras - signos - para expressá-Ias. Este é o caso da diferença entre moral e direito, não existente no mundo grego porque este não dispunha de palavras que a expressassem (1), assim como o conteúdo de consciência que a palavra nomos contém não poderia ser expressado em francês ou castelhano, por exemplo. Isto é muito importante se levamos em consideração que a ideologia expressada em textos na língua francesa ou espanhola está limitada pelo significado das palavras da linguagem natural, que é o sistema formalizador destas porções da ideologia que, por outras delimitações, logo qualificaremos de "do direito" e/ou "jurídica". Da mesma maneira, o discurso do direito somente pode existir sobre a base das palavras existentes na linguagem natural e com o significado que as mesmas tem nesta linguagem. Precisamente disto se trata aqui, de analisar criticamente a ideologia do discurso do direito, esta ideologia que adquire forma no texto, mas adstrita ao valor semântico dos signos que o compõe. Resultará, esta é a hipótese, que a ideologia criada pelo grupo no poder desfigura as relações sociais, mascarando-as com o significado das pala-
vras que se utilizam cotidianamente para fazer referência a estas relações. O "desmascaramento" depende, como se pode adivinhar, de que possa justificar-se razoavelmente que o uso cotidiano das palavras constitui um uso "incorreto" ou, então, que estas palavras se referem a ficções e não às relações sociais as que pretendem referir-se.
5. IDEOLOGIA, IDEOLOGIAS, DISCURSO E DISCURSOS Considere-se as seguintes expressões: 1) O texto conhecido como Minha luta, de AdolfHitler, expressa uma ideologia totalitária. 2) O discurso fascista combinava uma ideologia nacionalista com uma ideologia popular. 3) O discurso do direito civil expressa uma ideologia liberal. 4) O discurso estético do estalinismo é coerente com seu discurso político. Nestas expressões de uso comum entre juristas e outros cientistas sociais podemos perceber a ambigüidade dos termos "discurso" e "ideologia". Como é impossível prescindir deles no tratamento dos textos jurídicos é recomendável defini·los de maneira que seja possível manter o matiz que se percebe em seu uso comum. Para isto proponho aceitar, neste trabalho, o seguinte:
5.1. Ideologia Proponho usar a palavra "ideologia" para fazer referência a qualquer COnteúdo de consciência, com o que lhe outorgamos a máxima amplitude. Por sua vez, nos colocamos fora da concepção do mundo segundo a qual existe a verdade à margem e acima dos discursos humanos. Desta maneira, "verdade" será uma propriedade adjudicada, convencionalmente, a certos enunciados.
1 - "...0 léxico de Aristóteles não somente arece de um termo cujo sentido corresponda de modo exato ao de "lei" como também de um vocábulo que possa ser traduzido corretamente pordireito (seja no sentido objetivo ou no sentido subjetivo desta dicção)", GARcIA MÁYNEZ, Eduardo, Doctrlna aristotélica de Itljusticia, México, UNAM, 1973, p. 131.
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5.2. As ideologias A mesma palavra, no plural, "ideologias", acrescendo-lhe uma qualificação, é utilizada de maneira distinta. Proponho, conservando este uso comum, usar a palavra "ideologia" acompanhada de um qualificativo para designar uma porção da ideologia que é o conjunto dos conteúdos de co~sciê~cia exi.stentes. Desta maneira, "ideologia jurídica" se refere a uma porçao da IdeologIa diferenciável- segundo critérios que é necessário precisar - de outra porção como a ideologia partidária, por exemplo.
5.3. Discurso Como já dissemos, a ideologia somente pode aparecer graças ao serviço de um sistema formalizador como a linguagem natural. O mesmo pode ser dito a respeito das ideologias. Proponho usar neste trabalho a palavra "discurso" para fazer referência a ideologia já formalizada. Se o discurso é formalização de ideologia podemos usar, em geral, a expressão "contínuo discursivo" para referir-nos a totalidade da ideologia que devido a estar fom1alizada, e somente por isto, pode circular na sociedade. Deste "contínuo" indiferenciado logo será necessário delimitar seções para proceder a sua análise, tal como um físico ou um biólogo devem delimitar dentro do conjunto dos fenômenos aqueles que se propõem estudar. O que chamamos "natureza" é um "contínuo" de fenômenos dentre os quais é necessário determinar um setor. Dito de outro modo, o cientista deve estabelecer o campo de sua atividade através de uma definição a partir do ~ontín~o qu~ lh: :oi oferecido. O resultado desta delimitação dentro do contmuo dIscursIvo e '.l!!~ di;;eii'~,~~. particular, e por isto há infinita quantidade de discursos, onde cada discurso não é (nitra COisa quê O i\:~ultado de uma definição produzida pelo analista. Não há discursos em si mesmos diversos uns àos vutros como não há fenômenos físicos em si mesmos distintos aos biológicos, a menos que sejam definidos como tais peio cientista, que, deste modo, os constitui em objetos delimitados de seu trabalho. Vale a pena dizer que se, conforme propusemos, "discurso" tem como referente a ideologia quando esta aparece formalizada, e esta somente pode aparecer formalizada, então a ideologia não existe fora de um discur~o. ,Pode perguntar-se, então, porque não se equiparam ambos termos. A razao e que teoricamente é possível pensar na diferença entre ideologia e discurso de tal modo que seja possível entender que a ideologia pode existir em distintos
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discUrsos ou que a própria ideologia, a totalitária, por exemplo, possa existir em distintos discursos, no jurídico ou no científico, por exemplo. Poderia dizer-se que a diferença entre ideologia e discurso, conforme propusemos aqui, é similar a diferença entre a matéria e a forma em Aristóteles.
5.4. Os discursos Proponho usar o plural "discursos" para fazer referência a formalização das ideologias, de modo similar ao caso da palavra "ideologia". Desta maneira poderemos usar a palavra "discurso", sempre que a acompanhe um qualificativo, para referir-nos a certa porção da ideologia, ou seja, a alguma ideologia em particular, que aparece em um setor do contínuo discursivo. Assim, por exemplo, poderemos dizer que o discurso liberal é distinto do discurso fascista ou que o discurso do direito é distinto do discurso da moral.
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os USOS DE "IDEOLOGIA" E "DISCURSO"
Considere-se agora as mesmas expressões vistas anteriormente: O texto conhecido comoMinha luta, de AdolfHitler, expressa uma "ideologia totalitária". "Ideologia totalitária" é, então, uma parte do conjunto de conteúdos de consciência existentes. Há, portanto, outras partes que não são "totalitárias". 2) O discurso fascista combinava uma ideologia nacionalista com uma ideologia popular. "Nacionalista" e "popular" são duas ideologias, ou seja, duas frações da ideologia. O discurso "fascista" é uma seção - a delimitar - dentro do discurso ou contínuo discursivo circulante, na Itália, por exemplo. Este "discurso fascista" constitui a formalização destas ideologias, a totalitária e a popular, em uma linguagem, neste caso uma linguagem natural como o italiano. 3) O discurso do direito civil expressa uma ideologia liberal. Neste caso a seção do contínuo discursivo que delimitamos e denominamos - de acordo com um método a especificar - "direito civil" ou "discurso do direito civil", formaliza uma seção da ideologia que, por razões a ser estabelecidas, delimitamos e denominamos "ideologia liberal". l)
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4) O discurso estético do estalinismo é coerente com seu discurso político. Neste caso se trata de uma seção da ideologia, a qual delimitamos e denominamos (discurso) "estalinista", que forma parte do contínuo discursivo, e que se formaliza em um sistema jormalizador, neste caso o castelha~~. Dentro ~~sta seção ~a ideologia distinguimos os discursos politico e estetlco, que sao duas seções deste contínuo. Poderemos dizer, assim, se oferecemos critérios diferenciadores, que o "discurso do direito" constitui a fomlalização de uma parte da ideologia, parte que devemos delimitar como tal para diferenc~ar.da ~a~e que não seja "do direito". Epoderemos dizer que o discurso do direito CIVil, por exe~plo,.contém uma ideologia "burguesa" se dentro deste discurso pudermos Identlfic~r uma seção da qual possamos dizer que faça surgir uma ide?l~gia que seJa "burguesa". Ehaverá tal "ideologia burguesa" se pudermos delimitar, segundo certo critério por estabelecer, uma seção no interior da ideolo.gia da qual possamos dizer que seja uma seção "burguesa". O problema, aSSim, se :o"~ve;t~ neste outro: O que permite definir uma ideologia como ."bu~guesa: Jun~l. ca" "totalitária" "nacionalista" ou "fascista"? O que permite diferenCiar o dls" "juódico" do discurso "cient!fico~, ou do ,d~scurso do parti'do nazIs . t a:., curso Para encontrar uma resposta plauslVel e necessano recorrer a outras. defintções. Mas se não as encontrássemos não podeóamos analisar n~~ o dlsc~rso do direito nem o discurso do direito civil, nem qualquer outro discurso .
7. IDEOLOGIA EM SIGNIFICADO AMPLO O termo "ideologia" geralmente não é usado no mesmo sentido ~~ que foi proposto aqui. "Ideologia" significa, em seu uso corrente, o contrano.de ciência. É, portanto, um adjetivo que desprestigia o re:~rente d? ~~bstantlvo ao que se aplica: tudo o que é qualificado co~ o te~o Ideol?gl~ e vaIorado de modo negativo, contrariamente a valoraçao posItiva que e feita acerca do que é qualificado com o termo "ciência". O termo "ideologia" também é utilizado para denotar o camp~ do~ va~o res e em tal caso já não tem conotações pejorativas, embora tambem slgntfi· qu~ o outro da ciência porque é um discurso não descritivo. . A dificuldade destes usos de "ideologia" consiste em que se aceitamos que existe uma "falsa" consciência então terá de e,,!sti~ uma c_onsciência "verdadeira". Contudo, como cada teoria tem sua propna versao da verdade a
respeito da sociedade, então toda discussão se converte em uma competição de proclamação de epítetos contra os que sustentam a teoria rival, com os membros de cada grupo reclamando para si a qualidade de cientistas e de "enunciados científicos" para suas afirmações. Isto tem o efeito de despolitizar a disputa entre os apologetas e os críticos da sociedade capitalista. Adiscussão se despolitiza, apesar de que pareça o contrário, porque se instala no nível de um discurso que supostamente está à margem da política. O nível discursivo da ciência, quando se supõe separado da ideologia, leva a crer que os que "falam cientificamente" estão fora da política, com o que conseguem fazer qu~ ~ sua "ciência" pareça indiscutível. Mas como a ciência tem objetivos poht1cos, e como se desenvolve em espaços institucionais nos quais se concentra o poder, e já que o enunciado pelos cientistas é "verdade", então fica justificada a repressão dos que não estão de acordo, dos equivocados, dos que somente fazem "ideologia", dos que querem "misturar a ciência com a política", dos que, em conseqüência, há que expulsar das universidades, dos institutos, e, se ainda não tiverem ingressado, há que impedir-lhes o acesso. Com isto resulta que, sob o disfarce de ciência, se terá exercido o poder e reprimido aos contestadores. . Por outro lado, muitos dos que impropriamente se denominam marxistas procedem deste mesmo modo, ou seja, quando tem o poder dizem que eles faze~ ciência e que os demais não passam de "ideólogos". Não obstante, quando nao tem o poder seu objetivo é desalojar os adversários do trono da ciência, mas para que eles próprios se sentem. Pelo contrário, do que se trata é, segundo creio e defendo, precisamente, de instalar a discussão no nível político, ali onde não tenha validez como argumento a desqualificação a priori do outro, conseguida pelo simples fato de possuir o poder nos institutos científicos. A discussão científica deve ser instalada ali onde o que se deve fazer em matéria de decisões políticas depende da capacidade de persuasão dos argumentos. A discussão científica deve ser instalada ali onde a verdade, como não pode ser de outra forma, e como de todos modos é embora queira ocultar-se, depende de uma competição entre argumentos que podem convencer ou não. Os ~lósofos da ciência, principalmente os neopositivistas ou analíticos, mas tambem os marxistas althusserianos, entendem que a ciência é irrefutável e que, por suposto, eles são os encarregados de decidir sobre a cientificidade do que se diga. Não obstante, escondem que o fundamento de suas decisões é uma .~los.Ofi~ em particular, pois desejam conduzir à crença de que a definição de Clencla e independente da história, que não é um produto social como qualquer outro. Estão dispostos a aceitar a historicidade de tudo, exceto do
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fundamento da ciência. Assim como os racionalistas metafisicos sempre acre· ditaram que o conhecimento apreende o mundo porque o mundo coincide com o pensamento, assim como pensam que este último é "verdade" indiscu· tível, também os neopositivistas pensam ser indiscutível a definição da ciên· cia que elaboram. Contudo, ocultam que a definição que fazem também é o produto da escolha de uma postura filosófica que podem "provar" de modo tão insuficiente como os metafisicos podem provar sua definição de verdade. Ambas visões do mundo e da ciência coincidem em que por uma parte existe a verdade e por outra a ideologia, e também no resultado que obtém, a separação da ciência em relação a política. Ambos grupos pretendem excluir das universidades, dos centros de pesquisa, das possibilidades editoriais, das revistas prestigiosas, aos que fazem parte de um grupo contrário. Ambas posições constituem uma des-historização do pensamento humano. Pelo contrá· rio, o uso de "ideologia" para fazer referência a todo tipo de conteúdos de consciência, para referir-se, finalmente, a todo o mundo cultural, o mundo do sentido, corresponde a uma concepção distinta das relações entre o pensamento e o mundo. Este uso também se baseia em uma filosofia, mas não pre· tende excluir a ninguém: pretende convencer. Mas voltaremos a isto mais adiante. Deste ponto em frente, salvo advertência, o uso de "ideologia" será este: conteúdo de consciência.
8. A UNIDADE DE UMA IDEOLOGIA A crítica da ideologia jurídica supõe que é possível determinar um setor da ideologia circulante em uma sociedade como distinta de todos os demais setores, um setor que seria, precisamente, "jurídico". Por outra parte, a crítica da ideologia juridica civilista (ou trabalhista, ou constitucionalista), por exem· pIo, igualmente estaria supondo que é possível identificar dentro da ideologia jurídica um setor que pudesse ser plausivelmente denominado deste modo. Mas, e este é o problema desta pesquisa, também supõe que se possa dizer, plausivelmente, que nodireito civil, além da ideologia normativa propriamen· te dita, que logo chamaremos de sentido deôntico, coexiste e se retransmite a ideologia da circulação mercantil, isto é, a ideologia segundo a qual esta circu· lação é natural, boa, etcétera. Portanto, para tornar plausível esta análise criti· ca da ideologia jurídica é necessário propor os fundamentos da identificação destes:distintos setores da ideologia. A identificação do direito em relação a outras ideologias constitui o tema clássico do conceito de "direito", do qual nos ocuparemos nos capítulos seguintes. A identificação de ideologias no in·
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terior do direit? constitui ~ objetivo principal desta pesquisa e, portanto, nos ocuparemos dIsto nos capltulos finais. Previamente a isto será necessário de. senvolver os temas do referente e da causa do discurso juridico. Uma seção da ideologia, uma ideologia particular, se destacaria do resto sempre que pudesse ser considerada, arbitrariamente, desde logo, como um conjunto de elementos - "idéias" - cuja unidade esteja dada por algum ele. mento reconhecível que permitisse dizer que este conjunto é "coerente". Definir este elemento seria construir um conceito que permitiria delimitar certo setor da ideologia separando-o do resto. Caso não pudéssemos construí. lo seria impossível a análise da ideologia jurídica ou a do direito tanto como a de qualquer outra ideologia. A questão apresenta dificuldades sufi. cientemente relevantes como para adiantar que, neste momento, qualquer tentativa de definir uma ideologia no interior de um texto jurídico, como ten. taremos aqui, deve ser considerada apenas como um primeiro ensaio.
9. COERÊNCIA SINTÁTICA DOS TEXTOS Os textos podem ser coerentes tanto desde o ponto de vista da sintaxe como desde o ponto de vista dasemântica. Os textos podem transmitir qual. quer ideologia porque são coerentes, inteligíveis, ou seja, tem sentido ainda quando expressam mentiras. Os textos podem transmitir uma mensagem que pode ser recebida por um receptor distinto do emissor. Como se trata de uma relação, isto é, da mútua posição que estabelecem entre si dois atores de um fenômeno de comunicação, um texto é inteligível somente se o é para outro ator distinto do produtor, o que é possível devido a que o receptor dispõe do c,ódigo necessário para decifrar a mensagem. Deste modo, ainda que um soli. loquio possa ser inteligível apenas para o emissor, de qualquer maneira este tipo de textos carece de interesse para nós neste momento. Somente interessam aqueles textos dos quais se possa dizer que transmitem uma "mensagem" desde o produtor até um receptor. Por isto é que a coerência sintática de um texto, que é o que lhe outorga sua inteligibilidade, é o que torna este texto um produto cultural intersubjetivo, ou seja, em algo que possui a característica de poder servir de veículo para a transmissão de ideologia de um produtor a um receptor. Com a palavra "coerência" aplicada aos textos não desejo significar ou· tra coisa que obediência a certas regras. Um texto é coerente, em primeiro lugar, se seus signos estão organizados conforme a certas regras preestabelecidas e previamente aceitas. Estas regras constituem um conjunto,
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um sistema, do qual dizemos que é a sintaxe da linguagem em que se expressa a ideologia aparente no texto. A sintaxe de uma língua é um código que permite decifrar a mensagem que o texto contém. O código constitui, neste caso, -a descrição das regras e as regras para o uso destas. Portanto, é um outro discurso, prévio, que tanto o produtor como o receptor do discurso reconhecem. Ambos o reconhecem como o conjunto de regras que foram seguidas para dispor a ordem dos signos que compõe o texto (2). O que texto possui, em primeiro lugar, é coerência sintática, ou seja, seus signos estão ordenados conforme as regras sintáticas da linguagem de que se trate. A ideologia que o texto possui pode ser compreendida apenas por quem conheça o código ou regras de ordenação dos signos.
10. COERÊNCIA SEMÂNTICA OU DE SENTIDO DOS TEXTOS Mas bem, um texto, que para sê-lo deve possuir um discurso sintaticamente coerente, pode conter distintas ideologias. Um exemplo disto são as constituições modernas, que possuem algumas partes das quais freqüentemente dizemos que expressam uma ideologia liberal e outras partes das quais dizemos que expressam uma ideologia socialista. Isto é perceptível tanto na Cons· tituição Federal do México como na de alguns de seus estados. Ali podem ser lidas - pelo menos nas Constituições originais surgidas da revolução - pará· grafos inteiros de inspiração liberal e parágrafos inteiros provenientes das fontes populares e revolucionárias fortemente influídas pelo socialismo. Nes· te caso seria tão erróneo dizer que neste texto aparece a ideologia liberal como dizer que ali aparece a ideologia socialista. Contudo, igualmente impróprio seria dizer que se trata de uma ideologia "mixta" ou atribuir-lhe um nome especial com o escopo de evitar a questão proposta pela convivência de dis· tintas ideologias. Ao mesmo tempo diríamos que é incoerente um texto constitucional que, por exemplo, prescrevesse o respeito aos direitos humanos e ao mesmo 2 - "Os signos elementares configuram o léxico da linguagem. A ordem que lhes é imposta combinand(}()s costuma ser denominada sintaxe. As regras que dizem respeito a ordem e aforma dos signos, enquanto integram seqüências admissíveis em uma linguagem, constituem a gramática da linguagem. Aseqüência de signos bem ordenada... tem apropriedade de servir de unidade transmissora de uma mensagem nesta linguagem: dizemos que tem sentido", VERNENGO, Roberto J., Curso de teoria general deI derecho, Buenos Aires, Ed. Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales, 1976 p. 23.
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tempo concedera a algum funcionário a faculdade de entrar em domicílios sem uma ordem fundada em sérias suspeitas da existência de provas da prática de um delito em tal lugar. Mas a palavra "coerência", nestes casos, não pode remeter à obediência de regras de ordenação intersubjetivas do mesmo tipo que as das regras de sintaxe. Trata-se de algum tipo de ordem ou inteligibilidade que deve ser encontrada a partir do ponto de vista semântico. Tampouco se trata de coerência lógica, pois a lógica sempre demon~tra que os textos relativos à política carecem quase totalmente de "lógica". E conhecida, por outro lado, a discussão sobre a inaplicabilidade da lógica aos textos que pretendem derivar normas de outras normas, de modo que se a algo pode remeter-se a afirmação de que no exemplo citado acima há "coerência" não é à Lógica. Muito provavelmente um falante comum fique perplexo frente aos textos que definem a evicção ou a anticrese, apesar de que compreenda o signif~ca?~ da maioria de suas palavras e de que note a correção no uso das regras slOtatlCas. Os textos, para transmitir uma mensagem inteligível, devem possuir outro tipo de "coerência", que chamaremos de sentido, que será uma coerência semântica e não sintática. Considere-se, por exemplo, os enunciados: " proibido matar" e "amanhã é quinta ". Ambos tem coerência sintática. Mas o conjunto "Proibido matar. Amanhã é quinta" não tem sentido e, ainda que sintaticamente seja coerente, não parece ser nada mais que um solilóquio de alguém que não está em seu juizo. A razão pela qual poderíamos dizer isto é que constitui uma expressão lingüística composta por um conjunto de elementos que não mantém entre si nenhuma coerência de sentido. Se diz deste tipo de expressões "que não tem sentido". E como o estudo do sentido - ou significado: nem sempre ambos termos resultam ~iferenciáveis - é a tarefa da semântica, diremos que estamos na busca d~qutlo que permite dizer que certa ideologia ou certa fração do contínuo dlscu.rsivo possui coerência semântica, eis que não parece possível distinguir um discurso jurídico de outro não jurídico, nem o discurso do direito do discurso do discurso de algo que não seja direito, nem o discurso do direito civil do discurso do direito trabalhista, sem fazê-lo conforme um critério semântico. Será, sem dúvida, um critério arbitrário, como todo critério científico de
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delimitação de parcelas do conhecimento. Mas, de qualquer modo, será um critério que destacará os critérios próprios da semântica. Construiremos, para tentar esta identificação ou delimitação de ideologias, o conceito de "sistemas significantes".
11. SISTEMAS SIGNIFICANTES Chamaremos sistemas significantes a conjuntos de enunciados pertencentes a um ou a vários textos, que podem ser identificados como parte de uma unidade conforme aos seguintes critérios. A unidade que proporcionaria coerência de sentido a uma fração do contínuo discursivo seria, em primeiro lugar, construída teoricamente. A ordem pertence aos instrumentos teóricos produzidos para realizar este estudo e não aos objetos de estudo, ou seja, a ordem é, em realidade, um discurso. O mesmo ocorre com a coerência de sentido que se procura: é inteligível somente na recepção do discurso. Que um discurso seja coerente depende da ordem que possa proporcionar-lhe um código que lhe anteceda. "Descobri.r" o sentido de um discurso, sua coerência, é apenas uma forma de falar, pOIS, em realidade, não há "descobrimento", mas sim identificação entre sentido do discurso e sentido do código que o decifra ou "descobre". Por outro lado, esta identidade entre discurso e código de recepção é absolutamente subjetiva: deve haver "alguém" que receba, ou seja, que produza o discurso que diz que o sentido do discurso analisado corresponde ao do código ~tilizado. O máximo que se pode pedir é que esta subjetividade seja compartIlhada, que seja "intersubjetividad~", ou seja, que "?U~ros" ~a.mbém identifi~~em a coerência do discurso anahsado com a do códIgo utlhzado para a anahse. Um sistema significante seria, então, o resultado da atribuição de coerência de sentido a um setor de um complexo discursivo em vista de que este setor possa identificar-se com o discurso que funciona co~o código. Mas bem, o código, por sua vez, deve ser construIdo como qualquer outro discurso. Para o que nos interessa aqui, o código, se trata de um discurso construído desde o ponto de vista de outras ciências distintas da ciência que estuda o sentido normativo do discurso do direito. O que nos interessa é mostrar os outros discursos presentes no discurso do direito e propor que tais discursos constituem sistemas significativos cuja origem se encontra nas relações sociais e que o objetivo de sua presença no direito é ~ostrar tai~ rela~ões como naturais, justas, boas, etcétera. Como se trata de SIstemas, a IdentIficação de apenas um de seus elementos pelo receptor do direito permite que a
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mensagem do conjunto do sistema seja recebida de maneira subliminal ou "inconsciente". O princípio de coerência do sistema significativo será proporcionado pelo discurso das ciências sociais ou, mais exatamente, pelo discurso da teoria social aceita. Ateoria social produz um discurso que, segundo o sociólogo, descreve as relações sociais objetivamente existentes. Este discurso será nosso ponto de partida para construir o código ou princípio da coerência de sentido dos outros discursos incluídos no discurso do direito. O resultado constituirá um sistema significante. Os problemas com os quais nos enfrentaremos são a qualidade do discurso científico do sociólogo (problemas da verdade e da causa), a natureza do referente do direito e, principalmente, a referência fictícia, problemas aos quais dedicaremos capítulos especiais. Chamaremos tema ou princípio de coerência ao elemento unificador dos enunciados que constituirão o sistema significante e que será proporcionado pela teoria social. Para dar um exemplo, pensemos que fosse possível falar do discurso da ideologia "burguesa" em geral, e que dentro dela tentamos identificar um setor ou sistema significante, que chamaremos "da livre empresa", suponhamos que devido a que em uma primeira análise nos pareceu possível identificar um tema que permitiria construir este novo objeto de estudo. Suponhamos, simplificando, que chegássemos a conclusão de que esta ideologia está organizada em torno ao tema da "livre contratação". Intuitivamente todos conhecemos o discurso que sustenta esta ideologia, mas se não o conhecêssemos deveríamos defini-lo em um discurso que constituiria um código. O tema, neste caso, seria a idéia de que o estado não deve intervir, em absoluto, nos contratos que os empresários realizam. O sistema significante estaria constituído pelo conjunto de enunciados cujo sentido é esta idéia. Estes enunciados poderiam ser organizados de muitas maneiras para seu estudo, e nada impediria que, construindo outro tema, pudessem pertencer a outro sistema significante. Diríamos, então, que este conjunto de enunciados pertence ao sistema significante da livre empresa, que é um setar da ideologia burguesa. Contudo, isto apenas constituiria a definição de um tema encontrado no próprio discurso. Suponhamos, então, que temos uma aceitável e pacífi.ca definição do fenômeno que denominamos "circulação do capital" proporCIonado pela Economia. Desde o ponto de vista desta última ciência, este fenômeno é reputado como sendo o referente do conjunto de enunciados q~e constituem o discurso da livre empresa. Com efeito, quando o usuário do dISCUrso burguês se refere a livre empresa, em realidade, fantasia sobre fenômenos que não compreende e que constituem o que a Economia denomina
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12. DENOTAÇÃO E CONOTAÇÃO
sa uma vez que este pôde ser construído. Sendo assim, é claro que a função de transmissão de ideologia pode ser cumprida com a presença de apenas um elemento em um discurso, mas sob a condição de que o receptor conheça o código que serve para identificaI" este elemento como parte do sistema ausente, ou seja, sob a condição de que na ideologia geral do receptor esteja contido o sistema significante ao que pertence o elemento presente. Mas bem, estes sistemas significantes poderiam estar denotados ou simplesmente conotados no discurso analisado (3). Diremos que um sistema significante está denotado em um texto quando seus elementos estão presentes neste texto. Por exemplo, um texto no qual um empresário explica os aspectos generosos do f.10delo econômico no qual ele pode fazer o que quer é um texto que possui um discurso que denota o sistema significante da livre empresa. Isto é assim porque o denotado - o referente - é sempre um discurso ou construção cultural, como veremos. O significado de um signo "denota" um referente ou, então, o referente é o denotado pelo usuário do signo. Não obstante, o referente é, em realidade, outro discurso, posto que nunca há contato entre discurso e mundo empírico. A relação entre ambos está sempre mediada por construções culturais. O denotado é, portanto, um discurso, pois é sempre um resultado anterior da cultura, é sempre um sistema significante que os usuários reputam como referido a fenômenos objetivos e independentes dos sujeitos. Contudo, em um discurso que denota certo sistema significante podem coexistir um ou vários signos que pertencem a outros sistemas significantes que estão presentes apenas através deste elemento. Em tal caso diremos que este ou estes signos "conotam" outros sistemas significantes, que, deste modo, estão presentes no discurso analisado apenas através de um de seus motivos ideológicos, com apenas um de seus elementos. Neste uso específico dos vocábulos "denotação" e "conotação", proposto somente para este trabalho, talvez tenhamos alterado um pouco o uso freqüente dos mesmos naSemiótica. Nesta ordem de coisas pode dizer-se que no discurso jurídico do cientista está denotado o sentido deôntico do direito, posto que este discurso tem ~or objeto evidenciá-lo. Em troca, outros sistemas significantes, o Jusnaturalismo do produtor do direito, por exemplo, pode estar conotado
Dado que é possível identificar sistemas significantes no interior de um texto, então também será possível identificar signos isolados que formam parte destes sistemas. Um exemplo disto é a expressão "livre contratação", facilmente identificável como pertencente ao sistema significante da livre empre-
3 :-. Sobre esta questão, DELGESSO CABRERA, Ana Maria, "E! derecho, un discurso connotado", em CrztlCajurídica, número 12.
circulação do capital. Se isto é aceitável, então o tema do discurso da "livre empresa" está constituído pelo mO,delo, pa~ nós tem~ ?u~rincíp~o, ~enomi nado "circulação do capital" que e construIdo pela ClenCla economlca, que lhe reputa como referido a um fenômeno objetivo e independente. Neste segundo caso o tema organizador do sistema significante é exterior ao discurso analisado e provém de outro discurso que é o da Economia. No caso do direito pretendemos que possam ser identificados no texto jurídico os sistemas significantes que possuem e transmitem ideologias plausivelmente identificáveis que constituem ficções em relação às relações sociais. Resulta mais que evidente a convencionalidade da identificação de um sistema significante. No exemplo do sistema significante da livre empresa percebe-se imediatamente que apenas pode ser descrito como expressão da circulação do capital caso aceitemos a teoria do capital expressa por Marx. Contudo, um empresário pensaria que tal descrição é falsa e diria que se trata somente da expressão da liberdade natural do homem: Quem teria razão? Obviamente, então, o tema de um sistema significativo é obtido de um modelo teórico descrito a partir de uma teoria social previamente aceita. Este mode· lo permitiria qualificar o setor de um discurso como coincidente com o mode; lo e proceder logo a sua análise. Como qualquer hipótese, o modelo revelara sua pertinência no êxito da análise que deverá ser contrastada empiricamente ou oferecer novas hipóteses. Cabe acrescentar, finalmente, que a pretensão de encontrar sistematicidade em uma ideologia poderia ser respondida por quem utilizasse o termo em sentido estrito. Com efeito, possivelmente se dissesse que somente cabe adjudicar sistematicidade à ciência. Não obstante, a sistematicidade, é necessário advertir outra vez, pertence ao modelo criado ou aceito pelo analista e nunca ao discurso analisado. O analista é quem decidirá estudar uma ideologia a partir de um modelo que será um conjunto sistemático de enunciados, por exemplo, a sistematicidade no exemplo anterior é uma qualidade do modelo marxista de explicação da circulação do capital e não uma qualidade da ideologia da livre empresa.
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· nos ue tem determinado significado neste discur: pela pr~sença de certos S;g se ~ma norma diz que "na sentença o juiz devera so filosoficod:o~teX~~~a~os" há um sentido deôntico denotado, que é "obrires~e~tar os I.rtearl"ose o sentido'da expressão "direitos humanos", que conota, gatono respel , . . . e se apresente a ideologIa Jusnaturahsta. . faz cO~e~~ivamente à transmissão de ideologia podemos dizer. qu~ se esta f,?1
cumprida através da presença de um e1e~ent? de um siste;a Slg~~~s~~d:a~ resente no texto é porque o receptor Identtficou acerta a~en , P, . o de ue dis õe a este elemento como integrante do SIstema ausente: codlg Mas ~em c~mo'poderia sabê-lo o analista deste discurso? Como sa~en,a que o receptor'realizou esta identificação? Unicam.e~t~ pode~~mos aven~:s~ lo com os rocedimentos habituais acerca da eflcaCla d~s Iscursos: suponham~ que realizar tal identificação deveria condUZI-lo a pr~d~z.lr u:: conduta, a comprovação empírica da exis~ência da ~e.s~a ~onstltU1na u _ comprovação da eficácia do discurso, isto e, nos permlttna dIzer que o ~~c~a tor realmente identificou aquele elemento como pertencente a este SIS e
~;;~~:~~~~~o:~~l~~fi~~~i;u;e~e0ri~:~:~~:~:o~~~~~~~:e~:~::~:~:se;~~r: os estudiosos da ideologia, como as entrevistas, po~ exem~lo~r t Desenvolveremos e utilizaremos estes conceItos maIs a lan e.
Capítulo Segundo
o DIREITO COMO DISCURSO PRESCRITIVO
SUMÁlUO:I.Aspalavrasdodiscursododireito; 1.1. Osigno; 1.2. Osignificado; 1.]. o referente; 2. Osentido dos discursos;]. Sentido e ideologia; 4. Uso descritivo e uso prescritivo ela linguagem; 4.1. A diferença desde oponto de vista semântico; 4.2. A vontade doprodutordo discurso; 4.]. Adiferença desde oponto de vistapragmâtico; 5. Discursos com sentidoprescritivo; 6. Os discursos e os operadores lógicos.
o que Marx chamou "superestrutura" hoje deve ser chamado discurso. Marx esteve completamento acertado ao estabelecer diferença entre a base econômica, que podemos ver como conjunto de fenômenos empiricamente verificáveis, e os discursos que versam, "que se erguem" sobres eles. A este respeito disciplinas como a Semiótica e a Filosofia da linguagem oferecem conceitos que podem ser utilizados pela crítica do direito. Na seqüência trataremos de esclarecer alguns conceitos tomados destas disciplinas e que nos permitam encontrar a especificidade formal do discurso do direito (capítulo segundo) em relação com o restante dos discursos de sua espécie e, finalmente, diferenciar o discurso do direito dos demais discursos de seu tipo, mas atendendo a seu conteúdo (capítulo terceiro). 1. AS PALAVRAS DO DISCURSO DO DIREITO Os especialistas no estudo da linguagem não chegam a um acordo sobre o significado da palavra "significado" e nem tampouco sobre a diferença entre "significado" e "sentido". Tudo leva a crer que a discussão e a reflexão sobre esta questão continuará durante muito tempo ainda. Por nossa parte, com o objetivo de definir algumas das palavras utilizadas neste trabalho, deveremos conformar-nos com conceitos úteis ainda que provisórios. Aceitaremos, dentro dos limites desta pesquisa, que as palavras, individualmente consideradas, possuem um significado, enquanto que os enuncia-
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dos têm sentido. Aceitaremos, além disto, que o significado é distinto de seu referente.
1.1. Osigno
o signo, significante ou representantem, em geral, "é algo que, para alguém, representa ou se refere a algo" (1). O signo está no lugar de outra coisa, que é sempre uma idéia ou uma construção cultural. Em nosso caso, como nos referiremos somente a textos jurídicos escritos, podemos aceitar que os signos são as palavras -sememas segundo outra nomenclatura -, que são as unidades básicas dos textos onde se encontra a ideologia do direito. Não obstante, também são signos os enunciados compostos por um conjunto de palavras que, conforme admitimos anteriormente, possuem significado enquanto que os primeiros possuem sentido. 1.2. Osignificado O significado é a idéia, o conteúdo de consciência para usar nossa terminologia, onde se encontra o signo. Em palavras de Peirce, o signo "se dirige a alguéin, isto é, cria na mente desta pessoa um signo equivalente ou, talvez, un signo mais desenvolvido" (idem). O elemento de um sistema significante, então, é um signo que cria na mente do receptor um signo equivalente, ou seja, um conteúdo de consciência, ideologia. O signo "cachorro" cria em nossa mente a idéia de um mamífero definido por certas características. Desta mesma forma, a palavra "produção" se encontra no lugar das idéias sugeridas por esta palavra, a palavra "salário" se encontra no lugar da idéia que temos desta transferência de dinheiro, e a palavra "direito" se encontra no lugar da idéia sugerida pela palavra. Em síntese, as palavras são representações de certas idéias. Por sua vez, os enunciados têm um sentido que está no lugar das idéias sugeridas por este conjunto de palavras. Um exemplo disto é a assertiva "é obrigatório pagar o salário estabelecido pela lei", que contém, entre outros, o sentido de que o salário é a contraprestação do valor que o trabalhador entrega e que a lei - aqui no lugar de "estado" - preocupa-se que o trabalhador obtenha esta contrapresta-
1 - PEIRCE, Charles Sanders, La ciencia de la semiótICa, BuenosAires, &I. Nueva Vi5ión, 1986, p. 22.
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ção. Há muitas outras idéias, que ocupariam várias páginas, que constituem o sentido deste enunciado. A análise do sentido transmitido pelo discurso do direito - que é um signo - é exatamente o objeto final deste trabalho, que pretende oferecer um fundamento científico para esta análise mas isto sim com mtençao cntlca. •
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I.]. O referente O referente ou denotatum das palavras é a parte do mundo exterior sobre a qual o emissor do signo acredita poder dizer algo. Não importa que seja falso ou que, em realidade, não exista tal referente ou que nada possa ser dito sobre ele. Há umdenotatum toda vez que o usuário da linguagem acredita dizer algo de algo que acredita existir. "Mundo exterior" não é aqui o mesmo que este "mundo material" exterior e distinto do sujeito que postula a ideologia realista ingênua. Em realidade, o referente é sempre uma construção cultu. ral e não uma coisa ou um fenômeno (2). Esta questão se tratará detalhadamente mais adiante, no capítulo oitavo. Pensemos, por enquanto, como exemplo, no referente da palavra "deus". Embora deus não exista, constitui, de qualquer maneira, um objeto exterior ao sujeito emissor, acerca do qual este pretende dizer algo. O fato de que diga mentiras ou se refira a uma ficção não impede que o sujeito pretenda dizer algo acerca de um objeto que ele crê exterior. O referente da palavra "administração" - poradministraçãopública - assim como deus, é uma ficção e, ainda assim, se trata de um objeto exterior ao sujeito emissor sobre o qual este pretende dizer algo. Da mesma maneira, tampouco existem os "acordos de vontade" aos quais o direito civil se refere, mas sim apenas a circulação de mercadorias. Os chamados "acordos de vontade" são apenas aaparência dos intercâmbios de mercadorias e , não obstante, o usuário do discurso do direito civil se refere a "acordos de vontade" quando usa a palavra "contrato", ainda que tais acordos sejam somente uma ficção. Em outras palavras, acordos de vontade são odenotatum ou referente de quem usa a palavra "contrato" sem que importe que se trate de uma aparência do fenômeno intercâmbio. Esta diferença entre afirmar a existência de um mundo objetivo e a de afirmar que o referente é uma coisa ou fenômeno do mundo exterior tem a 2 - Esta afinnação constitui wna afiliação auma concepção filosófica que foi resumida por Umberto Eco no Tratado de semióticageneral, México, Ed. Nueva Imagem, 1978 (veja-se cap. 2.5 e 2.6, pp. 117 e 55.)
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maior importância, como veremos, porque indica que realmente não há aceso so a este mundo exterior chamado "relações sociais" tal como deseja o realismo vulgar sustentado pela maior parte dos sociólogos. As palavras se referem a elementos interiores tais como conteúdos de consciência ou construções culturais e não a elementos exteriores. Há relação entre o signo e o significado sem que o significado mantenha unidade ontológica com o referente. Sobre esta convicção se baseia, e trataremos disto adiante, o fundo teórico desta pesquisa. Como veremos, as palavras utilizadas no discurso do direito e nos discursos daqueles que falam sobre ele provém da ideologia do produtor do discurso e não das "relações sociais".
2. O SENTIDO DOS DISCURSOS Considere-se os seguintes enunciados: 1) O objeto da Sociologia é a ação com sentido. 2) As normas são o sentido de atos de vontade. 3) Quem dá o sentido tem o poder. 4) Esta rua tem sentido contrário. ;) O sentido da norma X é Y. 6) As normas outorgam sentido a nossas condutas. 7) O que Saul diz não tem sentido. 8) Não tem sentido proibir o que não é possível realizar.
Podemos dizer que este é o tipo de uso da palavra "sentido" que nos interessa porque é o tipo de uso com o qual nos enfrentaremos. Acerca destes usos seguramente é possível dizer uma enorme variedade de coisas. Para o que nos interessa bastará com advertir que se trata do uso de "sentido" para significar - para estar em lugar de - um conteúdo de consciência. Relativamente aos dois primeiros casos, notoriamente expressões de Weber e Kelsen, respectivamente, o sentido é um "conteúdo de consciência". No caso 1, a ação que tem "sentido" é aquela através da qual o ator pensa dirigir-se a outro. O ator pensa, acredita, tem a idéia, de que com esta conduta se dirige a outro - e Weber pensa, sobretudo, no poder, que para ele determi· na a conduta de outro -. É possível que objetivamente não seja possível dizer que "se dirige a outro", por exemplo, porque o outro não toma conhecimento, mas isto não elude que o ator "pense" dirigir-se a outro. Este pensamento ou conteúdo de consciência constitui o sentido de sua ação.
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No caso 2, . a meu juizo, Kelsen quer dizer o mesmo que Weber, isto'e, prod UZlr uma norma, quem o faz, pensa em - "quer", diz Kelsen _, dinglr a" con~ut~ de outro, quer que a conduta de outro "deva ser" (3). A palavra ~:nt~do, do mesmo modo q~e no caso anterior, significa conteúdo de conSClenCla. (Em Kelsen este conteudo de consciência é conteúdo de "vontade" e não de conhecimento. Nossa acepção de "ideologia" como "conte'd de consciência" per;nite inc~uir estes atos de vontade de que fala Kelsen)~ o ,No ca~o 3 - quem da o se~tido tem o poder" - a palavra "sentido" tambem esta no lugar de um conteudo de consciência: o que é transmitido a outro que o entende e obedece. (Se não obedecesse não poderíamos dizer que se deu "sentido" nem que se tem o poder). Mas o que o outro "obedece" é um conteúdo de consciência, é um "dever ser". Recordemos que Kelsen diz que o dever "se encontra imediatamente dado a nossa consciência" (4). ~os casos 4 e.~ se.trata de normas. No caso da rua, "sentido" significa o conteudo de conSClenCla segundo o qual é obrigatório - "dever" como no caso 3 - caminhar neste sentido e que é proibido fazê-lo em sentido'contrário. No caso da explicação do "sentido" da norma X se trata de transmitir um conteúdo de consciência: o que é proibido, permitido ou obrigatório segundo a norma que se explica. " No caso 6 se trata de explicar o que é uma norma, se diz que dá "sentido a nossas condutas, ou seja, permite um "conteúdo de consciência" em relação a elas, permite dizer que são boas ou más, justas ou injustas devidas ou indevidas. ' Nos casos 7 e 8 se trata, obviamente, de conteúdos de consciência. No caso 7, onde ~ que Saul diz não tem sentido, "sentido" está no lugar do pensamento que nao se pode ter porque Saul não transmite nenhum. No caso 8 "~en~ido" t:mbé~ está no lugar do pensamento que não se pode ter porque nao e POSSI;el, nao o pensar a conduta descrita na norma, mas sim o fato de que e~ta seja "devida" ou "proibida". Neste caso o que não é possível é o c?nteudo de consciência"dever", embora seja possível o conteúdo de consciência que descreve a conduta. .~ .Em síntese, em todos estes casos "sentido" significa conteúdo de consClenCla segundo o sentido antes atribuído a esta expressão. "Sentido" é uma palavra que significa um conteúdo de consciência muito mais complexo do qu~ ~o
3 - "Quemftxa uma norma, i.e., impõe,prescreve uma certa conduta, querque umapessoa (ou Pessoas)t/eva (ou devam)conduzir-sede umadeterminada maneira" Teoria GeraJdasNormas Porto Alegre, Fabris Editor, 1986, p. 35. ' , 4 - KE1.SEN, H., Teoriapura dei derecho, México, UNAM, 1969, p. 19.
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que o de "significado". Não obstante, com esta~ acepções a~bas palavras sigo nificam o mesmo, ainda que com importante diferença relatIvamente ao grau de complexidade.
de discurso do direÍLll. ':,au uostante, a diferenciação não deixa de apresentar dificuldades.
4.1. A diferença desde o ponto de vista semântico 3. SENTIDO E IDEOLOGIA Apesar dos distintos usos de ambas palav~as, em realidade significa~ o mesmo: conteúdos de consciência. Contudo, nao se usam da mesma maneIra. Um exemplo disto é que não se diz "sentido" - por "ideol~gia" - ~as~ista, embora se diga "sentido" - por "visão do mundo" - burgues ou crtstao da vida. Trata-se de usos mais do que almejar a busca de exatidão no significado. Neste trabalho utilizamos as expressões "ideologia juódica" e" ideologia do direito", sendo a primeira delas utilizada, como v~re~os, pa~ referir-se ao "sentido" que os juristas conferem ao discurso d? dIreIto, sentl~o ~ue re· sultará apologético do estado caso transmita conteudos de consclencl~ que sejam apologia do estado. Por outra parte, a cótica juódica tam?ém e um discurso que pretende mostrar o sentido oculto, mas eficaz, do dIscurso .d? direito. Esta cótica juódica também tem seu sentido, ela pretende transmItIr uma ideologia que contém o sentido de uma cótica do sentido ideológico, como diremos depois, do direito positivo. Estes são os usos, aqui, de "sentido" e "ideologia".
Apesar de uma aparente simplicidade a diferença não é nada óbvia. Os critérios elaborados pelos especialistas são muito sutis mas não muito convin· centes. Em uma primeira aproximação freqüentemente se diz que as descrições limitam-se a informar objetivamente sem tentar interferir no desenvolvimento do mundo, enquanto que as prescrições tem como objetivo mudar o mundo, isto é, fazer que alguém faça algo. Contudo, o que aos especialistas parece ser o fato determinante para que um enunciado seja considerado des· critivo é que ele possa ser qualificado de verdadeiro ou falso(5). Mas, observe· se, o fato de que possa ser verdadeiro ou falso não provém do próprio enun· ciado, mas sim da consideração que o analista faça sobre ele. Depois de tudo, a verdade não é outra coisa que uma afirmação que alguém faz a respeito de um enunciado. Mas "alguém" o faz, e este "alguém" quase nunca é o mesmo que produz o enunciado qualificado de "verdadeiro". (Com efeito, não resulta relevante afreqüência com que quem pensa dizer algo verdadeiro, além disso, o repete). Dito de outra maneira, um enunciado é verdadeiro, mas para ai· guém, e nem sequer se pode dizer que um enunciado é verdadeiro sem fazêlo desde outro enunciado. Esta é uma primeira dificuldade frente a definição que quase sempre se encontra nos textos que falam da descrição.
4. USO DESCRITIVO E USO PRESCRITIVO DA LINGUAGEM
Até aqui vimos que os discursos, e o direito é um deles, tra?smitem um sentido. Entretanto, também podemos dizer que o sentido dos dISCUrsos provém do uso dos signos. É o uso da linguagem de certa maneira o que permite transmitir determinado certo sentido através de seus signos, e por isto se pode falar, sem perda de sentido, de sentido descritivo e senti~? pres~ritiVo dos enunciados como efeito do uso descritivo e do uso prescrttlvo da hnguagem. Na Semântica foi desenvolvida a diferença entre descrição e prescrição, ou entre enunciados descritivos e enunciados prescritivos, ou, mais pruden· temente entre uso descritivo e uso prescritivo da linguagem. É óbvio que o tipo de t~xtos que nos interessam são os de sentido presc~tivo: de modo q~e a diferença entre ambos nos proporciona uma nova aproXlmaçao ao conceIto
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4.2. A vontade do produtor do discurso Outra dificuldade é posta pelo fato de que há enunciados que tem forma descritiva mas que não o são. São realmente prescritivos, e devem ser conside· rados, ao que parece, válidos ou inválidos, e não verdadeiros ou falsos. Produ5 - "As leis do estado são prescritivas. Estabelecem regulamentos... Não tem valorveritativo. sua finalidade é influenciara conduta", von WRIGHT, Go Henrik, Norma y Acción, Madrid, Ed. Tecnos, 1979, po 22oAssim mesmo: "Mentreteproposizionisono il contenuto di sign/ftccato di enunciati
Usati per formulare conoscenze e trasmettere inlormazion~ te norme (o rego/e) sono il contenuto di significado di enunciati usatiper dirigere i comportamenti egli atteggiamenti. Le proposizioni sono dotate de la proprletà semantica di poter essere vere olalse, mentre te norma non hanno taleproprletà ~ GUASTIN1, Riccardo, "Regole costitutive e grande divisione", em Lezionisullinguaggio giurldico, Torino, Edo Giappichelli, 1985, po 41".
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zimos enunciados dos quais, segundo sua forma, se poderia dizer que são verdadeiros ou falsos e, no entanto, constituem ordens. Nestes casos é necessário recorrer ao conceito de "sentido" dado pelo emissor ao enunciado e ao muito mais etéreo conceito de "vontade". Não há mais possibilidades que o recurso à forma gramatical, que codifica como "descrição" todo enunciado que inclui o verbo ser e como "prescrição" todo enu~ciado que inclui ~ verb~ "dever" ou então o recurso ao produtor do enuncIado, quando entao sera descriti~o ou prescritivo segundo tenha sid