Contracultura através dos tempos 8500016655


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Contracultura através dos tempos
 8500016655

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Contracultura através dos tempos Do mito de Prometeu à cultura digital

KenGoffman (R. U. Sirius) e

DanJoy TRADUÇÃO

Alexandre Martins

Ediouro

Título original Counterculture through the ages: from Abraham to Acid House. Copyright © 2004 by Ken Goffman Copyright da tradução © Ediouro Publicações S.A., 2007 Tradução publicada mediante acordo com Villard Books, selo da Random House Publishing Group, uma divisão da Random House, Inc.

DeKen: À minha noiva, Eve Berni, sem a qual o sol se apagaria.

Capa Tita Nigrí

À falecida Rosemary Woodruff Leary, que ajudou a tornar isto possível.

Foto de capa Roger-Viollet/Topfoto

Ao meu pai ausente e à minha mãe muito viva, Arnold e Roberta: livres-pensadores.

Copidesque Paulo Corrêa

A São Judas, meu brilhante e engraçado parceiro de redação em tantos projetosdescanse em paz.

Revisão Elisa Rosa Maryanne B. Linz Produção editorial Felipe Schuery

DeDan:

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

A Cate Leggett e Randi Mates, que me ajudaram; e a Trmothy Leary, que me mostrou.

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. S634c

Este livro não existiria se não fosse pelo falecido Kathy Acker; por James Fasci; Sirius, R. U., 1952Contracultura através dos tempos: do mito de Prometeu à cultura digital/ Ken Goffman (R.U. Sirius) e Dan Joy; introdução de Trmothy Leary; tradução Alexandre Martins. - Rio de Janeiro: Ediouro, 2007

editor, Bruce Tracy; e nossa agente extraordinária, Laurie Fox. Assistente de desenvolvimento: Leon Fernandez

Tradução de: Counterculture through the ages ISBN 85-0001-665-5 1. Contracultura - História. I. Joy, Dan. II. Título.

06-4169

Douglas Goffman; Harriett Joy; David Latimer; nosso incrivelmente estimulante

Assistentes de redação: Gracie e Zarkov CDD 306.1 CDU316.723

Agradecimentos também a: Lenny Bailes, Ben Ballard, John Perry Barlow, Claire Burch, Linda Chester Literary Agency, Michael Coblentz, Helen Donlon, Benjamin Feen, Steve Follmer, Norman Girardot, Evan Gourvitz, Peter Hudson, Jason Keehn, Alison

Todos os direitos reservados à Ediouro Publicações S.A. Rua Nova Jerusalém, 345- Bonsucesso

Kennedy, Beth Kennedy, Phil Leggiere, Linda Lowrance, Sharon Martin, Walter Miles,

Rio de Janeiro - RJ- CEP 21402-235

Jay Schwartz, Dan Sieradski, Jeremy Tarcher e Peter Lamborn Wilson.

Tel.: (21) 3882-8200 Fax: (21) 3882-8212 I 3882-8313 www.ediouro.com.br

Sumário

9 11 19

Introdução de Timothy Leary Prefácio de Dan Joy Des/Orientação de R. U. Sirius PARTE I

A construção de contraculturas 23 45

Abraão e Prometeu: Rebeldes contraculturais míticos cAPITULo Dois: Uma outra forma de excelência humana: Definindo contracultura

cAPITULO UM:

PARTE 11

Superando os intervalos de tempo e lugar 67 85 109 125 143 161 18 9 219

Politicamente incorreto: Sócrates e a contracultura socrática cAPITULo QUATRo: Mergulho no infinito: Taoísmo cAPITULo ciNco: A mão que parou a mente: A contracultura zen cAPITULo sEis: Amor e evolução: A contracultura oculta dos sufis CAPITULO sETE: Refazendo amor: Os trovadores e o espírito herético da Provença cAPITULo OITo: Revolução cultural e política: O Iluminismo dos séculos XVII e XVIII cAPITULo NOVE: A cada qual, seu próprio deus: Os transcendentalistas americanos CAPITULo DEz: Brilhantes explosões de riso: A Paris boêmia, 1900-1940

cAPITULO TRÊS:

PARTE IIl

Introdução

Após Hiroshima, ''X' contracultura 249

CAPITuLO oNzE: Rebeldes sem causa: Os anos 1950

2 71

CAPITULo noZE: Quando você muda a cada novo dia: A contracultura jovem,

1960-1967 309

CAPITULo TREZE: Selvagens nas ruas: A contracultura jovem, 1968-1972

339

CAPITULo QUATORZE: O que não me mata me deixa ligado: As contraculturas

363

hedonistas/niilistas dos anos 1970 cAPITULo QUINZE: Global. Digital. Condenada?: A contracultura aponta para ofuturo

397

Bibliografia

405

Índice

Nota: esta introdução não é uma mensagem de além-túmulo, mas um dos últimos textos de Timothy Leary, escrito assim que o trabalho neste livro começou.

A contracultura floresce sempre e onde quer que alguns membros de uma sociedade escolham estilos de vida, expressões artísticas e formas de pensamento e comportamento que sinceramente incorporam o antigo axioma segundo o qual a única verdadeira constante é a própria mudança. A marca da contracultura não é uma forma ou estrutura em particular, mas a fluidez de formas e estruturas, a perturbadora velocidade e flexibilidade com que surge, sofre mutação, se transforma em outra e desaparece. A contracultura é a crista movente de uma onda, uma região de incerteza em que a cultura se toma quântica. Tomando emprestada a expressão do Prêmio Nobel de física llya Prigogine, a contracultura é o equivalente cultural do "terceiro estado da termodinâmicà: a "região não-linear" em que equihbrio e simetria deram lugar a uma complexidade tão intensa que a nossos olhos parece caos. Aqueles que fazem parte de uma contracultura se desenvolvem nessa região de turbulências. É o seu meio natural, a única matéria maleável o bastante para ser moldada e remodelada rapidamente o bastante para dar conta da velocidade de suas visões internas. Eles conhecem a corrente, são engenheiros do caos, migrando na crista da onda da máxima mudança. Na contracultura, as estruturas sociais são espontâneas e efêmeras. Os que fazem parte de contraculturas estão constantemente se reunindo em novas moléculas, se fissionando e reagrupando em configurações adequadas aos interesses do momento, como partículas se esbarrando em um acelerador de grande potência, trocando cargas dinâmicas. Nessas configurações eles colhem a vantagem de trocar idéias e criações por intermédio de resposta rápida em pequenos grupos,

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

conseguindo uma sinergia que permite que seus pensamentos e suas visões cresçam e se modifiquem quase que no mesmo instante em que são formulados.

Prefácio

A contracultura não tem uma estrutura formal nem uma liderança formal. Em certo sentido, ela não tem liderança; em outro sentido, é abarrotada de líderes, com todos os seus participantes inovando constantemente, invadindo novos territórios em que outros podem acabar penetrando. A contracultura pode surgir em alianças (algumas vezes constrangedoras) com grupos políticos radicais ou mesmo revolucionários ou forças de insurreição, e os participantes das contraculturas e desses grupos muitas vezes são os mesmos. Mas o que interessa à contracultura é o poder das idéias, imagens e da expressão artística, não a obtenção de poder pessoal e político. Assim, partidos políticos minoritários, alternativos e radicais não são, em si, contraculturas. Embora vários

Certo belo dia, no auge de sua conquista do mundo mediterrâneo, Alexandre, o Grande, estava no campo, perto de Atenas - que acabara de se render às suas forças -, contemplando a paisagem acidentada banhada pelo sol que cercava aquela cidade, que era para ele a jóia mais brilhante do vasto território que ele então controlava. Enquanto desfrutava daquilo, Alexandre chegou perto de um homem querela-

memes* contraculturais tenham implicações políticas, a conquista e a manutenção de poder político exige a adesão a estruturas inflexíveis, incapazes de acomodar a inovação e a experimentação que são a base da razão de ser contracultural.

xava ao lado de um córrego. Aquecendo-se ao sol da tarde, o homem estava tão

A contracultura- como este livro mostra- é um fenômeno perene, provavelmente tão velho quanto a civilização e possivelmente tão velho quanto a própria cultura. De fato, muitos dos personagens que acabaram ocupando lugar de destaque nos livros escolares- de Sócrates a Jesus, Galileu, Martinho Lutero e Mark Twain - eram contraculturais em sua época.

Alexandre reconheceu de imediato o homem e se aproximou dele, dizendo: - Eu

Este livro levanta a pergunta "O que é contracultura?" e identifica os temas

conhecido interrompia seu momento de glória para humildemente oferecer seus

comuns que perpassam as contraculturas em diferentes épocas e lugares. Também descreve o importante papel de catalisador de mudanças desempenhado pelas contraculturas no desenvolvimento das grandes culturas, mostrando de que maneira a cultura como um todo surge da contracultura.

serviços- apenas para receber uma resposta arrevesada? O homem ao lado do córrego era Diógenes - um renomado autor teatral e ao mesmo tempo um completo miserável e excêntrico criador de casos ateniense sem

absorto em alguma espécie de transe bucólico que não se dava conta da presença do conquistador nem do tumulto que acabara de tomar conta da cidade próxima. sou Alexandre. Há algo que eu possa fazer por você? O homem abriu os olhos preguiçosamente, olhou para cima e respondeu: - Sim. Saia da frente da minha luz. Quem era aquele homem, por quem o recém-empossado regente do mundo

Essa discussão serve como um ponto de referência em um passeio divertido por

residência fixa. Diógenes vivia ao ar livre, freqüentando as ruas e as áreas públicas de Atenas e normalmente perturbando os cidadãos com seu humor iconoclasta e

um enorme número de contraculturas, do taoísmo à acid house. Espero que você leia e goste deste livro, e que ele o inspire a viver a mensagem contracultural de

suas brincadeiras maliciosas, algumas vezes grosseiras, mas sempre brilhantes. Famoso em todo o mundo grego por sua sabedoria aforística e suas criações

individualidade, coragem e criatividade com seu próprio esplendor e glória.

dramatúrgicas, ele também era um dos principais nomes do movimento socrático,

Timothy Leary

uma contracultura grega que iria mudar a face do mundo ocidental para sempre. A resposta de Diógenes a Alexandre -"Saia da frente da minha luz"- simboliza a atitude das contraculturas através dos tempos frente à autoridade imposta: ela

* Termo criado em 1976 por Richard Dawkins em O gene egoísta, é considerado uma unidade

bloqueia a luz. A luz - a força brilhante de uma expressão individual sem amarras, o brilho radiante da criatividade humana liberta de roteiros e controles externos. A luz- o

autônoma de informação que se multiplica de cérebro em cérebro. (N. do E.)

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

PREFACIO

brilho liberado quando, individualmente, e em especial coletivamente, os seres humanos livremente compartilham recursos internos e externos para criar seu mundo de acordo com os ditames do verdadeiro eu. E o brilho numinoso do próprio mundo nos olhos daqueles que exercitam esse tipo de liberdade. Se Alexandre tivesse se recusado a sair da frente da luz de Diógenes, o filósofodramaturgo mais provavelmente se levantaria e sairia da sombra do conquistador do que iniciaria um pugilato com ele. Porque se Diógenes reagisse à separação de seu amado sol tentando derrotar aquele que o tinha separado dele, o sol- como Diógenes tinha a sabedoria de reconhecer - muito provavelmente se poria antes que o conflito fosse resolvido. O objetivo primordial das contraculturas, portanto, não é tomar as rédeas ou eliminar o controle externo nem mover uma guerra contra aqueles que o detêmembora em alguns momentos as contraculturas possam participar de forma apaixonada de tais empreitadas. Em vez disso, as contraculturas buscam basicamente viver tão livres das restrições à força criativa quanto seja possível, onde e como quer que seja possível fazê-lo. E quando as pessoas buscam esse tipo de liberdade com compromisso e vigor, elas desbloqueiam a passagem da luz, de modo que as gerações posteriores podem se aquecer com seu calor.

Tradição sem convenção Eu deliberadamente escolhi romper com as tradições de modo a ser

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O impacto final da contracultura na história freqüentemente é determinado pela adoção de seus símbolos, artefatos e práticas pela cultura dominante de uma forma que os isola violentamente de suas fontes na experiência real. Ainda assim, os traços históricos deixados pelas contraculturas podem ser identificados ao se observar a história com uma compreensão da essência da contracultura. Essa forma de ler os registros culturais oferece uma interminável fonte de inspiração, informação e afirmação, permitindo que as contraculturas extraiam muita energia de épocas e personagens históricos anteriores. A contracultura é "rupturà' por definição, mas também é uma espécie de tradição. É a tradição de romper com a tradição, ou de atravessar as tradições do presente de modo a abrir uma janela para aquela dimensão mais profunda da possibilidade humana que é a fonte perene do verdadeiramente novo- e verdadeiramente grandioso na expressão e no esforço humano. Dessa forma, a contracultura pode ser uma tradição que ataca e dá início a quase todas as outras tradições.

Três fios de ligação Três diferentes cabos de conexão organizam o mosaico heterogêneo de contraculturas em uma tradição contínua: contato direto, contato indireto e ressonância. Os dois primeiros são trilhas óbvias ao longo das quais idéias, influência e inspiração são transmitidas de uma cultura a outra, enquanto o terceiro envolve uma espécie mais sutil e misteriosa de ligação entre culturas.

mais fiel à Tradição do que as atuais convenções e idéias permitem. O caminho mais vital normalmente é o mais dificil, e passa por convenções muitas vezes transformadas em leis que precisam ser rompidas,

Contato direto

com a conseqüente liberação de outras forças que não suportam a liberdade. Portanto, uma ruptura dessa natureza é algo perigoso, embora indispensável para a sociedade. A sociedade reconhece o perigo, e faz com que a ruptura normalmente seja fatal para o homem que a produz. Ela não deve ser feita sem que sejam avaliados o perigo e o sacrificio, sem a capacidade de suportar violentas punições, nem sem a fé sincera em que o fim justifica os meios, nem eu acredito que isso possa ser efetivamente conseguido sem tudo isso. Frank Lloyd Wright

O mais poderoso e óbvio tipo de ligação entre contraculturas é o contato direto. Nesse caso, participantes de uma contracultura interagem diretamente com participantes de outra, abrindo canais de comunicação que encorajam a individualidade e amplificam o impulso contracultural. O contato direto foi fundamental no impacto histórico do sufismo, a contracultura islâmica, tema do capítulo 6. Por intermédio do contato direto com os sufis na relação entre as culturas islâmica e cristã na Europa Ocidental, os trovadores aprenderam a arte de afirmar o primado do amor em verso e música - que se tornaria a

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PREFACIO

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

marca de excelência da heresia erótica mais transcendental da cristandade. Influenciado por encontros com "iluminados" sufis, frei Roger Bacon subverteu a autoridade religiosa de seu tempo, criando as bases para o "método científico': O contato com modelos sufis também inspirou São Francisco de Assis a abraçar um cristianismo radicalmente pacifista durante o período mais violento daquela religião. O contato direto também teve papel importante durante o século XX. Personagens fundamentais dos movimentos de vanguarda europeus se misturaram com escritores americanos nas livrarias, nos salões e nos ateliês de Paris, ajudando a catalisar o movimento literário da Geração Perdida. Algumas décadas mais tarde, muitos dos integrantes das contraculturas jovens dos anos 1960 foram inspirados e instruídos por muitos dos beatniks, herdeiros literários da Geração Perdida.

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produtos artísticos, meios de desenvolvimento e formas de vida que se apresenta em contraculturas entre as quais não há nenhum indício de contato, direto ou indireto. O fenômeno da ressonância se destaca em semelhanças entre as mais antigas contraculturas discutidas longamente nestas páginas, a dos socráticos e a dos taoístas. Embora separados por metade da circunferência do planeta, esses movimentos filosóficos surgiram praticamente ao mesmo tempo e foram surpreendentemente semelhantes em seu desenvolvimento inicial. Mais de duzentos anos mais tarde, a vida e o trabalho do prototípico contraculturalista americano Henry David Thoreau remetiam intensamente ao taoísmo. Como destacou Alan Watts, o particular toque de anarquismo de Thoreau, seu panteísmo e sua louvação à natureza tinham uma clara característica taoísta. Embora Thoreau, como outros transcendentalistas, tenha mergulhado no estudo de filosofias orientais como hinduísmo e vedanta, não há indícios de que ele tenha

Contato indireto Influência e inspiração também são transmitidas de uma contracultura a outra por contato indireto, ou mediado. Nesse caso, uma cultura fecunda outra através do tempo por intermédio de obras de arte, registros e lendas. Nos últimos cem anos, à medida que as contraculturas proliferaram a um ritmo sem precedentes e a facilidade de acesso ao depósito planetário de idéias e imagens chegou a níveis cibernéticos, esse cabo ligando contraculturas começou a se emaranhar com fascinante intensidade. Embora não tenha a vitalidade e o imediatismo do contato direto, o contato mediado tem sido fundamental para definir o conteúdo conceitual das contraculturas. Platão, cuja jornada filosófica teve como ponto de partida seu envolvimento com a contracultura socrática da Grécia antiga, deixou um substancial legado escrito. Desde então, várias permutações de pensamento neoplatônico serviram de base a um grande número de contraculturas, do gnosticismo dos primeiros cristãos ao transcendentalismo da Nova Inglaterra do século XIX. E no século XX, os escritos do poeta Ezra Pound reviveram o legado dos trovadores, de influência sufi, e o transmitiram à contracultura literária da Geração Perdida. Em todos esses exemplos, uma tradição contracultural anterior é revivida e uma posterior é formatada e definida por intermédio do contato indireto.

Ressonância O terceiro fio de ligação de continuidade contracultural é um tipo de ressonância cuja fonte é um mistério. É a freqüentemente impressionante semelhança de idéias,

estudado taoísmo. Portanto, a impressionante semelhança entre o taoísmo e o transcendentalismo de Thoreau pode ser creditada unicamente à ressonância. Como demonstram os escritos de Thomas Jefferson, a contracultura revolucionária do Novo Mundo buscou inspiração e modelos nas formas de vida e de governo adotadas pelos povos nativos americanos. De fato, os Artigos da Confederação foram estruturados a partir de acordos intertribais nativos. Muitos dos grupos contraculturais que nasceram no mesmo terreno dois séculos mais tarde, durante a explosão contracultural dos anos 1960, se voltaram para essa mesma fonte, adotando modelos de vida tribal e mesmo formas de vestir baseadas nos padrões dos americanos nativos. Porém, parece pouco provável que o entusiasmo disseminado entre contraculturalistas dos anos 1960 pelos índios americanos tenha tido sua origem nos documentos escritos pelos pais da pátria. Mais uma vez, a semelhança deve ser creditada à ressonância. A chave para compreender ressonâncias aparentemente misteriosas entre contraculturas distantes no tempo e no espaço pode ser os valores profundos e básicos que as contraculturas partilham. Esses valores, bem como outras características que as contraculturas têm em comum, são apresentados no capítulq 2.

Prévia A parte I de Contracultura através dos tempos começa investigando as antigas histórias de Prometeu e Abraão. Essas histórias nos dizem muito acerca das

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CONTRACULTURA ATRAvts DOS TEMPOS

motivações que movem as contraculturas e os papéis que elas desempenham na cultura como um todo. Assim, a parte I, então, busca identificar os elementos definidores da contracultura. A parte II é um relato cronológico de contraculturas fundamentais que surgiram de 500 a.C. até o início do século XX, começando com o movimento iniciado por Sócrates na Grécia antiga e terminando com a boêmia parisiense do inicio do século XX que produziu o cubismo, o dadaísmo, a "Geração Perdida'' e aquele solitário criador de uma linguagem alternativa chamado James Joyce (além de outras tendências artísticas e culturais). Cada contracultura abordada na parte II exerceu uma influência que se desdobrou através do tempo, conseguindo uma enorme expressão geográfica. A parte III pesquisa a impressionante profusão de contraculturas que floresceram na segunda metade do século XX, da agitação pós-Hiroshima dos hipsters americanos dos anos 1950 até os ciberpunks e os ativistas antiglobalização dos anos 1990.

PREFACIO

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O principal critério para a inclusão de contraculturas foi a sua identificação pelo amplo público contemporâneo. Os autores acreditam que muitos leitores irão apreciar novas visões de movimentos e personagens conhecidos- de Sócrates aos beats- oferecidas por este quadro da evolução de contraculturas de todo o mundo através do tempo. No caso do leitor desapontado por descobrir que sua contracultura predileta ficou de fora deste livro, os autores esperam que ele possa encontrar nestas páginas muitas expressões de criatividade, coragem e visão que reflitam fielmente o personagem ou grupo excluído.

De legados e vidas O verdadeiro poema não é aquele que o público lê. Há sempre um poema não impresso no papel, que coincide com a produção deste, estereotipado na vida do poeta. É aquilo em que ele se transformou por intermédio de seu trabalho. A questão não é como a idéia é ex-

Arranhando a superfície

pressa em pedra, tela ou papel, mas em que grau ela conquistou forma e expressão na vida do artista. Sua verdadeira obra não estará na

Como investigação de contraculturas mundiais, contraculturalistas e sua importância para a história, Contracultura através dos tempos é necessariamente incompleto. Contraculturas de algum tipo e magnitude muito provavelmente surgiram em quase todas as regiões do mundo, em quase todas as épocas da história. Da mesma forma, muitos indivíduos isolados com valores e inclinações contraculturais - em outras palavras, contraculturalistas solitários produziram trabalhos de importância e influência, a despeito da falta de um grupo contracultura! de apoio. Seria praticamente impossível registrar, na estrutura narrativa de um único livro, cada contracultura ou contraculturalista que deixou um registro histórico. Os autores fizeram muitas escolhas dificeis - e algumas vezes arbitrárias -, que implicaram a exclusão de importantes grupos e personagens contraculturais. Pode-se argumentar que muitos dos que foram descartados - desde sábios da floresta e antigos hereges tantristas da antiga Índia até Mark Twain, o grande iconoclasta americano do século XIX - são tão importantes quanto aqueles que foram incluídos. De certa forma, este livro só é capaz de arranhar a superfície de seu tema sem se transformar em uma enciclopédia de verbetes curtos.

galeria de nenhum príncipe. Henry David Thoreau

Embora novidades revolucionárias em arte, no pensamento ou na espiritualidade costumem com maior freqüência ter surgido de um ambiente contracultura!, a grande inovação - não importa quão contrária ao status quo possa ser- não constitui em si uma contracultura. A verdadeira contracultura é movida por um impulso muito mais profundo do que apenas o desejo de inovar ou derrubar convenções. A contracultura não pode ser construída ou produzida: precisa ser vivida. Se a contracultura valoriza ampliar as fronteiras da arte, ela valoriza muito mais levar a vida como uma experiência artística em progresso. Se a contracultura valoriza o pensamento inovador, ela se empenha ainda mais em exprimir essa idéia na ação do momento. Se a contracultura abraça o espírito, ela não defende o contato periódico com a divindade por intermédio de qualquer gestual arbitrário; em vez disso, busca viver cada dia como a expressão dinâmica e constante do próprio espírito.

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Os artefatos de uma determinada contracultura são subprodutos, não produtos

Des/Orientação

finais de uma vida contracultural. Por esse motivo, Contracultura através dos tempos se dedica tanto a contar histórias quanto a analisar obras de arte, idéias e crenças. Algumas das histórias incluídas neste livro são bem documentadas- as experiências de vida de Thoreau, as complicadas mas férteis interações sociais de Sylvia Beach, James Joyce e Ezra Pound, as palhaçadas dos Merry Pranksters. Outros casos reproduzidos são origi-

Antes de tudo, obrigado a Timothy e Dan por essas introduções otimistas de-

nalmente apócrifos- os estranhos e subversivos ensinamentos das tradições taoísta,

mais. Como o idiota proverbial de muitas histórias contraculturais de outrora, eu

zen e sufi; as lendas românticas deixadas na trilha dos trovadores. Os dois tipos de

mergulhei de cabeça na impetuosa corrente caótica da história humana armado

histórias nos ajudam a estabelecer uma ligação com as vidas em meio aos legados.

apenas de suas belas visões e mapas.

São histórias daqueles que criaram e fizeram parte de contraculturas. De como

É, eu tentei tecer uma colcha adoravelmente simétrica com os fios multicoloridos

essas pessoas coexistiram, criaram, arriscaram, ousaram, sacrificaram, conquista-

desses períodos culturais altamente diferentes, esperando, por fim, encontrar um

ram e fracassaram

objeto bem definido cuja coerência seria óbvia até mesmo para a inteligência

que revelam a fonte viva de onde brota o legado contracultural.

O julgamento de Sócrates nos diz muito mais sobre a essência da contracultura do que as longas dissecações e sistematizações do pensamento socrático feitas por

mediana. Mas, maldição, as pessoas são engraçadas - inclusive não intencionalmente.

Platão; a visão de Timothy Leary de sua própria morte diz muito mais do que

Olha, turma, as coisas que eu descobri ainda me fazem tremer. Grandes pessoas,

manuais acadêmicos sobre como usar LSD.

pessoas espertas, pessoas ligadas, pessoas extremamente criativas, obviamente en-

A distinção estabelecida aqui- as vidas das pessoas e o legado cultural produ-

volvidas não apenas em trabalhos transformadores, mas em extravagante insensa-

zido por suas vidas - reforça a distinção entre as definições formal e informal da

tez e contradição; deixando atrás de si não apenas um legado de luta destemida

própria palavra "cultura': Formalmente, cultura se refere às crenças, aos costumes,

pela verdadeira autonomia contracultural, mas uma pletora de questões sem res-

hábitos e práticas tradicionais segundo os quais as pessoas vivem, bem como às

posta. Mas deus( es ), estejam eles vivos ou mortos, são todos humanos -humanos

linguagens de artes e ofícios que elas empregam. A palavra também é utilizada,

demais. E iríamos querer que fosse de outra forma?

menos formalmente, mas talvez mais freqüentemente, para se referir às próprias pessoas, aos indivíduos, grupos e sociedades que criam, perpetuam

e algumas

vezes rejeitam - essas práticas e tradições.

E você, caro leitor? Eu só posso humildemente pedir que, ao mergulhar nesta narrativa histórica, deixe suas expectativas junto à porta. Você poderá pegá-las intactas, se quiser, ao final da viagem.

Contracultura através dos tempos incorpora essas duas definições de cultura. Ao

Há muitos tipos relacionados aqui, e eu acredito que todos vocês irão encontrar

mesmo tempo em que conta histórias, este livro também estuda hábitos, sistemas de

coisas merecedoras de seu interesse e atenção. Mas, atenção: nos últimos dois anos,

crença e formas de arte. Mas ao dar ênfase à definição menos formal de cultura, busca

enquanto escrevia isto, eu revelei o título a algumas pessoas. Muitas vezes, alguém me

extrair a essência viva dos episódios culturais que investiga.

falava, excitado, sobre certa sub cultura realmente obscura, eXXX:trema, normalmente envolvendo a palavra "tântrico': Entre os charmes atribuídos a essas culturas estava o DanJoy 23/6/2003

fato de que eles faziam coisas como comer cérebros ou arrancar cabeças de morcegos a dentadas e beber o sangue deles. (Insira aqui a piadinha sobre Ozzy.) Isto não é um show de horrores, galera! Embora um livro sobre esse tipo de fenômeno cultural exerça um profundo fascínio sobre este autor (não, eu não estou

20

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

sendo irônico), este trabalho em particular é sobre culturas que tiveram um impacto muito mais amplo. Claro que eu quero que o mais ligado dos ligados

sabe,

aqueles com retratos de AntoninArtaud e Lynette "Squeaky"Fromme nos monitores de seus computadores- reconheça valor neste livro. Mas a minha maior esperança é a de que ele tenha algo a dizer às pessoas comuns que foram influenciadas ou sofreram o impacto da "contraculturâ'; de que ele tenha algum interesse para aqueles que falam contra a contracultura; e, finalmente, que seja acessível ao curioso, que talvez nem saiba o que a palavra representa. Por isto eu resisti bravamente ao impulso de me envolver no tipo de discussão acadêmica, tão popular nas últimas décadas, que questiona nossa compreensão co-

PARTE I

mum de certas palavras que eu uso com freqüência neste texto, como individualidade e liberdade. Eu não necessariamente nego o valor desses discursos, mas eu os considero no mínimo impraticáveis para este estudo. Portanto, se sua idéia de Fab Four é Foucault, Deleuze, Derrida e Lacan, talvez ache esse procedimento um tanto pueril. O.k., agora que algumas das maiores expectativas dos meus leitores foram adequadamente frustradas, podemos seguir em frente. Bem-vindo à primeira história das contraculturas. Dan Joy teve a idéia deste livro em 1994, durante conversas com Trmothy Leary, cujo trabalho posterior em particular deu inspiração para algumas idéias fundamentais. Dan foi o responsável pela maior parte do esboço e das bases conceituais deste livro e contribuiu com dois capítulos, bem como com outras passagens fundamentais do resultado final. Leon Femandez deu uma inestimável contribuição ao projeto inicial, na seleção de contraculturas e idéias básicas. Eu também contribuí com o esboço e com a articulação dos conceitos fundamentais, assumindo total responsabilidade pelo projeto em 2001, quando foi assinado o contrato com a editora. Grade e Zarkov contribuíram com algumas linhas e parágrafos dos capítulos 1 e 8, e Dan retomou ao projeto para a última rodada de trabalho editorial. Eu sou responsável pela maior parte do texto e por pontos de vista específicos expressos aqui. Portanto, quando o pronome pessoal "Eu'' é usado, refere-se a mim (R. U. Sirius), e quando é empregado o "Nós': refere-se a Joy e a mim. Finalmente, no que se refere a pronomes de gênero como "dele" ou "delâ: eu gosto de misturá-los. Algumas vezes utilizo o genérico no masculino, outras, no feminino. Não se preocupe com isso. Ken Goffman ou R.U. Sirius 23/6/2003

A construção de contraculturas

CAPÍTULO UM

Abraão e Prometeu Rebeldes contraculturais míticos

As contraculturas míticas Uma nova mitologia é possível na Era Espacial, quando voltaremos a ter heróis (... ) no que diz respeito ao nosso interesse nesse planeta. William S. Burroughs, 1978 Para o inferno com os fatos! Nós precisamos de histórias! Ken Kesey, 1987

O mito é tão importante para os contraculturalistas quanto o fato histórico, e talvez mais pungente. Vanguarda por natureza, as contraculturas em sua maioria incorporam o imaginário e o ideal, bem como o real. Em Segunda consideração intempestiva: Da utilidade e desvantagem da história para a vida (1874), o filósofo prometéico do século XIX Friedrich Nietzsche chegou mesmo a sugerir que deveríamos evitar a história em benefício do mito. Para Nietzsche, o mito criava sentimentos de comunhão espiritual. A história amortecia tais sentimentos. Com algumas poucas exceções (talvez incluindo nosso momento histórico atual), as contraculturas foram episódios históricos inspirados, otimistas, talvez mesmo míticos. Sempre que pessoas corajosa e apaixonadamente adotam comportamentos desafiadores que buscam libertar os humanos de limitações opressivas (ou limitações percebidas como sendo opressivas), certamente pode-se esperar excitação, conflito e escândalo- e, portanto, histórias cativantes. E se romancistas modernistas e pós-modernos nos ensinaram que essas histórias podem ser construídas a partir das vidas mais comuns - e até mesmo da própria banalidade -, os mitos

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

emergem do heroísmo, seja ele vitorioso ou derrotado, seja vivido ou imaginado. Algumas vezes intencionalmente, freqüentemente por acaso, as contraculturas mesmo contraculturas despojadas e contemplativas como as dos taoístas, zen-budistas e transcendentalistas (como veremos mais tarde) -produzem heróis lendários que algumas vezes atingem o nível de mitos. Eni Prometeu e Abraão temos dois dos mitos ocidentais mais claramente contraculturais. Prometeu é pura ficção - parte do panteão de deuses gregos -, enquanto a narrativa da tribo de Abraão tem pelo menos alguma base em fatos históricos. Embora eu discuta rapidamente o possível Abraão histórico, fundamentalmente estou vendo essas histórias apócrifas como mitos, cumprindo sua função como dois diferentes arquétipos rebeldes cujos estilos e provações ainda podem ser identificados hoje nas contraculturas.

ABRAÃO E PROMETEU

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E toda noite o fígado imortal do deus Prometeu se regenera, de modo que ele possa ser torturado novamente no dia seguinte. Esta não era apenas uma história para os antigos gregos. Como escreve Carl Kerényi em Prometheus: Archetypal Image of Human Existence, "Isso era matéria sagrada.( ... ) O mito, como existe em sua( ... ) forma primitiva, não é meramente uma história, mas uma realidade vivida': Ademais, os gregos não distinguiam os deuses dos humanos no mesmo grau em que os monoteístas contemporâneos se distinguem de suas divindades singulares. Como escreveu Hesíodo, "Os deuses e os homens mortais vêm da mesma fonte': Da mesma forma, nossa compreensão do mito de Prometeu nasce quase que inteiramente de uma única fonte, o trabalho do escritor épico És quilo (Hesíodo teve menos influência). Embora se acredite que Ésquilo tenha escrito pelo menos quatro épicos sobre Prometeu, o único a sobreviver intacto foi Prometeu acorrentado. Esta obra conta a história do grande sofrimento de Prometeu e sua arrogante e insubordi-

Prometeu: O deus hacker

nada autoconfiança face à tortura, mas não nos concede sua libertação. Isso foi deixado a cargo de Percy Shelley, que escreveu Prometheus Unbound nos anos 1810.

Prometeu roubou o fogo dos deuses em benefício da humanidade. É só do que

Nossos jovens amigos hackers não se enganam quando vêem o roubo do fogo dos deuses por Prometeu como uma metáfora para a tecnologia. No Prometeu

precisam saber jovens hackers fora-da-lei para que decidam adotar Prometeu como o seu ícone e usar o nome da divindade grega em seus nicknames. O verdadeiro mito grego é um pouco mais complexo. Em um resumo reducionista: Prometeu é um deus grego do Olimpo, comandado por Zeus. Ele fazia sacrifícios de animais. Certo dia, durante um sacrifício, ele fala de forma temerária com Zeus. Ele corta um touro e o divide em duas partes: uma contendo a carne e os intestinos, embrulhados na pele; e a outra consistindo apenas de ossos e gordura. Prometeu pede a Zeus que escolha sua parte; o restante deverá ser dado ao homem. Zeus pega os ossos e a gordura, o que o faz sentir raiva de Prometeu e da humanidade. Zeus pune os mortais tomando deles o dom do fogo. Prometeu o rouba de volta. Então, Prometeu- que tem o dom de ver o futuro - é ainda mais temerário com o grande deus Zeus, prevendo que um dos filhos de Zeus irá um dia derrubá-lo do trono, mas recusando-se a dizer qual deles. Zeus, furioso, pune Prometeu amarrando-o com correntes de aço a uma rocha no monte Cáucaso. Lá, todos os dias, por toda a eternidade, uma águia bica e come o fígado de Prometeu.

acorrentado de Ésquilo, Prometeu deixa isso muito bem claro, dizendo que ele deu à humanidade a arquitetura - "Eles não sabiam como construir casas de tijolos para enfrentar o sol, nem como trabalhar em madeira. Eles viviam debaixo da terra como colônias de formigas em cavernas escuras:' E ele deu à humanidade o calendário - "Eles não tinham noção precisa do inverno, nem da primavera florida, nem do verão com suas colheitas, mas faziam tudo isso sem inteligência, até que eu mostrei a eles - sim, fui eu:' E ele deu a eles a matemática e a escrita "E também a numeração, com diversos instrumentos, e combinações de letras que guardam tudo na memória:' E ele deu a eles o transporte - "Eu atrelei ao carro cavalos obedientes à rédea (... ) E carruagens que andam pelo mar, os barcos alados, eu inventei:' E, o mais importante, ele deu a eles a medicina - '1\.cima de tudo havia isto: quando alguém da humanidade ficava doente, não havia defesa para ele nem comida, nem bebida, nem ungüento curativo; por falta de drogas eles definhavam, até que eu mostrei a eles misturas de plantas medicinais com as quais eles eliminam todos os tipos de doenças:'

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Embora o Prometeu de Ésquilo seja o orgulhoso gênio tecnológico e científico,

divino foi ser gentil/ Preocupar-te menos com teus princípios que/ A totalidade da

esse tipo não era bem visto pelos antigos gregos como acontece hoje. E embora Pro-

miséria humana/ E fortalecer o Homem com sua própria mente': Mais tarde, ainda

meteu tenha sido visto como uma inspiração para alguns contraculturalistas e artistas

no século XIX, Nietzsche, Keats e, acima de todos, Goethe, adotaram Prometeu.

desde que os românticos o trataram como celebridade no século XIX, para os gregos

Pela voz de Prometeu, Goethe expressa a exaltação romântica à experiência h uma-

essa história era um alerta. Húbris, ou soberba, era o seu maior pecado, e Prometeu era

na, sua joie de vivre, sua ânsia de viver... E sua revolução contra deuses autoritários:

o seu maior pecador. Como aconteceu mais tarde com muitos seguidores do cristianis-

"Olhe para baixo, ó Zeus, para o meu mundo, ele vive. Eu o criei à minha imagem,/

mo, a húbris científica era vista como um atravessar de fronteiras que perturbava a

uma raça semelhante a mim,/ para sofrer, para chorar,/ para desfrutar e ser feliz,/ e como eu, não ter respeito por você".

ordem divina. De fato, os gregos não desenvolveram plenamente suas ciências técnicas por causa do medo que tinham da húbris. Como escreveu R. J. Zwi Werblowski em

Lucifer and Prometheus, "para Ésquilo (...) Prometeu está cometendo uma transgressão (... ) ele é um pecador, e não apenas o herói de uma justa guerra de libertação contra

Prometeu e Lúcifer

cruéis tiranos, como uma certa escola gostarià: Mas na linha seguinte, Werblowski revela um bom motivo para rejeitar a visão que os gregos têm de sua mitologia e adotar

Embora agora tenhamos quatro séculos de iluminismo, o uso por Goethe da voz

o ponto de vista prometéico, quando escreve: "Como a ordem de Zeus é a de cosmos

de Prometeu para desprezar a autoridade de Deus não caiu no gosto da maioria. A

estático, toda aspiração e todo esforço humano são uma revoltà:

visão prometéica permanece controversa, quando não verdadeiramente impopular. Na mitologia judaico-cristã, o arquétipo que mais lembra Prometeu é a figura de Lúcifer (o anjo de luz), também conhecido como Satã, e, apesar dos esforços de

Amando Prometeu

Anton LaVey e Marilyn Manson, Lúcifer não é exatamente um sucesso de público.

O maior pecador dos gregos começou a merecer algum amor moderno quando

suas agonias sob a luz do sol. A noite o cura. E ele é possuído pelo que Edgar Allan

os românticos o abraçaram, no início do século XIX. O Prometheus Unbound de

Poe chamou de "demônio da impertinêncià: o espírito brincalhão. Quando ele faz

Percy Shelley manteve a bola rolando. Shelley completou as partes que faltavam da

a primeira brincadeira com Zeus, deixando-o com o esqueleto descarnado do ani-

Repare nas implicações ocultas, infernais do mito de Prometeu. Ele sofre as

história de Ésquilo, libertando o deus grego de seu sofrimento eterno e dando a ele

mal, a cena parece não ser uma provocação. Como diz Kerényi, "ele é um trapaceiro

o posto de herói da época pós-iluminismo. Como escreveu Theodore Roszak,

e um ladrão.( ... ) Ao tentar confundir as idéias de Zeus, Prometeu demonstra ser

"Prometheus Unbound é uma canção das alturas, uma vertiginosa rapsódia que

(... ) falho". Ele depois afirma que Prometeu apresenta "uma certa deformação men-

propõe a superação e a transcendência de todos os limites". De fato, onde os gregos

tal, variando da trapaça à inventividade': A ambivalência humana acerca de nossos

viam húbris, Shelley viu "a mais alta perfeição de natureza moral e intelectual,

próprios engenhosos desejos e esforços criou uma ligação conceitual intelectual

movida pelos motivos mais puros e verdadeiros, com os melhores e mais nobres

entre inventividade e criminalidade. Nietzsche foi levado a abraçar a criminalidade

objetivos". Se Prometeu é o defensor da humanidade contra o cruel deus grego

da criatividade. Em O nascimento da tragédia, ele afirmou: "O melhor e mais bri-

Zeus, Shelley utiliza o mito para unir os mortais a Deus, definindo o homem em

lhante que o homem pode obter precisa ser obtido pelo crime': Ele segue em frente,

Prometheus Unbound como "uma harmoniosa alma de muitas almas, cuja natureza

citando, como apoio à sua tese, o Prometeu de Shelley. Como defensor do homem,

é seu próprio controle divino".

o deus grego deve ser visto como representando sua versão do pecado original.

Pouco depois, um amigo de Shelley, o revolucionário malandro Lord Byron, faria seu próprio tributo ao tecno-deus grego, oferecendo os versos: "Teu crime

Kerényi diz: "Prometeu se mostra como um duplo do homem, uma imagem eterna da basicamente imperfeita forma de ser do homem''.

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Werblowski, em seu livro Lucifer and Prometheus, encontra correspondências

A obra de Roger Shattuck Forbidden Knowledge: From Prometheus to

entre o Satã do Paraíso perdido de Milton, o mito de Prometeu e a noção de "bufão cosmogônico dos povos primitivos': Para algumas culturas, o bufão é uma parte

Pornography é uma tese, ou ladainha, como a chamariam alguns, de 342 páginas a

aceitável do todo cósmico, mas tanto no panteão grego quanto na cosmologia judaico-cristã ele é relegado às sombras. Para Werblowski, tanto Prometeu quanto o Satã de Milton se mostram como rebeldes contra um mesmo tipo de autoridade cósmica: Prometeu perturba "a ordem de Zeus (... )perfeita, regulada e estática''. O Satã de Milton, enquanto isso, é "um rebelde contra os desígnios fundamentalmente imutáveis de Deus, [e ele] se torna símbolo do forte que contrai cada músculo, nervo e fibra contra um destino supremo e implacável e ipso facto frio e hostil': Ademais, Milton - que, apesar de seu retrato bem simpático e romântico de Satã, reafirma sua fé cristã condenando-o direta e repetidamente- ecoa os gregos

favor do estabelecimento de limites ao conhecimento humano e à invenção. Shattuck considera certa literatura responsável pela leviandade arrogante do homem, incluindo o Prometeu de Shelley, o Fausto de Goethe, o Ulisses de Dante, o Don Juan de Byron, o Dom Quixote de Cervantes e até mesmo o glamurizado Satã do bom cristão Milton em Paraíso perdido. Sattuck exprime o desejo de um tipo diferente de herói. "Se parecemos tão fascinados por criaturas humanas que aspiram superar seu destino e atingir a divindade, como poderemos nos reconciliar com uma equivalente tradição de heroísmo baseado na humildade e na serenidade, na idéia de conhecer e aceitar nosso destino? A tradição que liga Sócrates, Buda, Jesus, São Francisco, Thoreau, Tolstoi, Gandhi e Martin Luther King:' Como se pode ver, Shattuck apresenta uma impressionante lista de pensadores

ao dar criatividade, relações pessoais e tecnologia ao Príncipe das Trevas. Werblowski: "o fato de que [em Paraíso perdido] os seguidores de Satã constroem,

alternativos poder-se-ia mesmo chamá-la de uma lista de contraculturalistas em oposição ao impulso prometéico. Não podemos evitar uma conclusão impres-

buscam ouro, fazem música e filosofam significa que toda a cultura do homem é condenada''.

sionante: há contraculturas antiprometéicas e pró-prometéicas. De fato, a divisão acerca do impulso prometéico pode ser utilizada para caracterizar a principal oposição entre as maiores tendências contraculturais de hoje.

Analisando um dos episódios da obra de Milton sobre a guerra entre as forças de Deus e de Satã, Werblowski observa: "A verdadeira questão do episódio é a equação bondade com natureza por um lado e o satânico desejo ardente de poder e húbris explosiva de técnica e maquinário, por outrô: E você que pensava que o ócio era a oficina do Diabo ...

Entre os contraculturalistas antiprometéicos há uma série de tipos conhecidos, como hippies que sonham com comunidades rurais, adeptos introspectivos de religiões new age orientais ou de influência oriental, certos tipos de feministas, certos tipos de anarquistas e certos tipos de ambientalistas. Poderíamos até dizer que as contraculturas antiprometéicas partilham características com a contracultura de Abraão, que será abordada mais à frente neste capítulo. Eles tendem a ser

Antiprometéicos x novos prometéicos

antiurbanos, primitivistas, tribais e moralistas. No extremo dessa tendência encontramos a nova influência (pelo menos na resistência) do teórico anarquista

Dadas as referências satânicas em Prometeu, não surpreende que os teólogos

anticivilização John Zerzan, que deu a inspiração ideológica para os "anarquistas de negro" de Seattle, que fizeram violentas manifestações em sua cidade quando da

conservadores abominem a romantização desse mito. Mas você esperaria que acadêmicos iluminados e de renome como Roger Shattuck e contraculturalistas como Ted Roszak fizessem eco ao grito de "afasta-te de mim, Prometeu!"? Se você se surpreende

conferência da Organização Mundial do Comércio em 1999, inspirando muitos imitadores em todo o mundo nos anos seguintes.

com uma forte corrente antiprometéica entre pensadores sofisticados, é porque você

Um representante um pouco mais moderado da contracultura antiprometéica é

deve estar momentaneamente se esquecendo de alguns dos outros bônus da descoberta científica e da invenção tecnológica: a fissão atômica e a bomba de hidrogênio,

Theodore Roszak, autor cujo livro The Making of a Counter Culture tornou essa expressão popular em 1969. Roszak- membro de uma confraria de críticos contraculturais da tecnocultura que também inclui Jerry Mander, autor de Four

o aquecimento global, a guerra biológica e a tecnocracia empresarial.

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contraculturais prometéicas que se uniram online para roubar o fogo da música dos

Arguments for the Elimination of Television, e Neil Postman, autor de Amusing Ourselves to Death -visita o livro de Mary Shelley, Frankenstein, ou o Novo Prometeu, de 1804, em busca de uma visão claramente oposta da lenda de Prometeu.

software livre que acreditam que todos os códigos digitais devem ser partilhados e

Ironicamente, a sra. Shelley era casada com Percy Shelley, o homem que pela

usados livremente. O contraculturalista Robert Anton Wilson falou do surgimento

deuses da indústria fonográfica (Napster e seus substitutos) e os fanáticos do

primeira vez retratou Prometeu como um personagem romântico. Mary esperta-

da cultura tecnófila plugada ainda em 1983, quando escreveu: "Esse não é o colap-

mente tomou a obsessão de seu marido com a glória e o poder da tecnologia e com o

so da civilização, mas Prometeu se erguendo!".

espírito prometéico e a subverteu. Ela criou a persona do dr. Frankenstein, cientista louco cuja tentativa de fabricar uma nova vida humana (pense hoje em biotecnologia, clonagem, vida artificial, robótica) sai pela culatra, criando um monstro que leva

A contracultura é prometéica em sua essência

morte e destruição à aldeia do dr. Frankenstein e ao próprio médico. Como Roger Shattuck, Roszak acredita que os gregos estavam certos em temer a busca arrogante

Os entusiastas da tecnologia que fazem a cibercultura e os libertários políticos

de conhecimento humano e desenvolvimento tecnológico. Mas Roszak vai ainda

são aqueles que especificamente hasteiam a bandeira de Prometeu. Mas, de forma

mais longe, vendo a moderna obsessão mundial com o avanço científico e tecnológico

mais ampla, o espírito de Prometeu é o espírito contracultura! fundamental, no

como um produto de uma culturamasculina,machista.Ele sustenta que "Mary [Shelley]

sentido em que ele é definido neste livro. Como é explicado no próximo capítulo,

tinha consciência de quão tênue é a linha entre ânsia prometéica e postura machista':

nós vemos as contraculturas como um estimulo ao livre-pensar e ao conhecimen-

De fato, Prometeu é um deus claramente masculino. Soando um pouco como Arnold

to, e como uma estética de constante mudança. Um exame cuidadoso das

Schwarzenegger, o Prometeu de Ésquilo apresenta a suavidade e o recuo como carac-

contraculturas antiprometéicas anteriormente abordadas iria não apenas revelar

terísticas femininas às quais ele não irá sucumbir, dizendo: "Não espere que eu, para

algumas dessas qualidades prometéicas nelas embutidas, como apresentá-las como

arrancar um sorriso de Jove,/ Derrame uma virginal suavidade sobre rninh'alma/ E

prometéicas em seu âmago, apesar de seu viés antitecnológico.

importune o inimigo que eu mais odeio/ Com efeminados trejeitos de mão':

Por exemplo: a maioria dessas contraculturas apresenta uma característica for-

Embora o machismo assumido de Prometeu possa constranger alguns de nós

temente humanista. Prometeu, que considerou a humanidade merecedora de

hoje, não é o suficiente para impedir que uma nova cultura de tecnófilos plugados

incontáveis presentes e poderes, bem como de um anteriormente inirnaginável

(aí incluídas mulheres) se identifique com o espírito de Prometeu. A contracultura

grau de independência dos deuses, é uma antiga encarnação daquilo que hoje é

dos Novos Prometéicos é um conglomerado peculiar de hackers de computador e

chamado de humanismo. E o humanismo de Prometeu, embora para alguns pareça

outros experimentalistas tecnológicos, acelerados novos hippies fascinados por

irresponsável e libertino, é, ainda assim, humanismo.

música eletrônica, especialistas em negócios digitais e tecnocratas empresariais

Mas a contracultura - incluindo suas formas supostamente antiprometéicas

que ainda acreditam no poder da tecnologia para democratizar as comunicações e

é essencialmente prometéica de um modo ainda mais importante e fundamen-

mudar o mundo (ao mesmo tempo em que ela os faz extremamente ricos), libertários

tal: todas as contraculturas, aparentemente antiprometéicas ou outras, são

políticos e artistas visionários que utilizam a nova tecnologia para nos ajudar a ver

arquetipicamente prometéicas no sentido de seu relacionamento com a autorida-

de formas diferentes. No ponto extremo desta tendência nós encontramos os

de. Isso se aplica à autoridade em geral, assim como às autoridades ou deuses do

extropistas, que acreditam em utilizar a tecnologia para nos dar poderes divinos,

tempo e lugar de uma contracultura especifica. Assim como Prometeu foi contra

uma noção chamada de transumanismo ou pós-humanismo. Os ex:tropistas acredi-

Zeus e os deuses da Grécia, da mesma forma as atuais contraculturas antitecnológicas

tam que nós estamos a ponto de nos transformarmos em uma nova espécie imortal,

recusam-se a adorar cegamente a tecnologia, ela mesma um dos mais poderosos

pós-biológica, viajante do espaço. São mais populares e difundidas as comunidades

deuses de nossa época.

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Contraculturas antitecnologia que defendem a volta à terra freqüentemente de-

interpretaram Canaã corno significando "um lugar de dinamismo, tensão ou

fendem a transferência da agricultura e de outros elementos indispensáveis à sobrevivência, corno fontes de energia e suprimento de água, para o âmbito da residência

rnudançà:) Essa história simples tem sido interpretada por muitos corno a experiência primai do exílio.

individual ou de urna comunidade auto-sustentável. Agindo assim, elas recuperam a

Mesmo após terem trocado Ur por sua nova casa em Canaã, os primeiros judeus

capacidade de sobrevivência autônoma, garantindo para si mesmas necessidades

mantiveram sua identidade dropout/outsider. Embora generosos com os pastores

básicas que hoje são quase que universalmente controladas por um vasto complexo

que lá viviam (pelo menos inicialmente), eles se separaram ideologicamente. No

agroindustrial. Agindo assim, elas negam àquele complexo o poder sobre a vida

Velho Testamento, Abraão declara: "Eu vivo entre vocês, mas eu sou um estrangei-

privada e comunitária e se recusam a alimentar seus projetos autoritários e econômi-

ro': Claro que esse sentido de diferenciação intencional atravessou os tempos e

cos. Dessa forma, mesmo a fonte de energia solar de mais baixa tecnologia e a horta

permanece vivo hoje. De fato, indivíduos e comunidades antenadas positivamente

orgânica de comunidades alternativas rurais, contraculturais e supostamente

se divertem com isso.

antiprornetéicas representam, a seu próprio jeito, um gesto fortemente prornetéico.

O dropout Abraão foi o primeiro judeu. Nesse nível fundamental, sua história produziu urna religião de exílio e diáspora.

Assim, enquanto a expansividade filosófica do projeto iluminista continuar a ser reduzida a urna mera obrigação de aumentar indefinidamente a produção e o consu-

Quando o rabino reformado Arthur Hertzberg fazia sua turnê para promover seu

mo sem dar atenção à qualidade da experiência ou ao dano ambiental, a contracultura

livro fews: The Essence and Character ofa People, sua principal mensagem era a de

"antitecnológicà' continuará sendo urna importante força de reação.

que o judaísmo é "urna eterna contraculturà: Em seu livro, Hertzberg declara: o primeiro judeu, é o personagem judaico arquetípico. Corno líder de urna pequena minoria dissidente, vivendo precariamente à margem da sociedade, ele define o

Abraão e os primeiros exilados

papel de resistente do judeu corno outsider. Os ternas recorrentes da história judaica estranhamento, rebeldia, fragilidade e moralidade

Deus disse a Abraão, sai da tua terra, da tua parentela e da casa de seu pai, rumo à terra que te mostrarei.

estão presentes em sua vida'

Partindo da Bíblia, Hertzberg pinta um painel que pareceria familiar a alguns membros hippies da moderna Rainbow Tribe. "Deus ordena que Abraão deixe sua

Gênesis 12:1

terra natal e parta com a esposa Sara para urna terra distante. Lá eles vivem em barracas corno beduínos. (... ) eles são estranhos entre as tribos de adoradores de

God said to Abraham kill me a son I (...) man, you must be putting me on. Bob Dylan

imagens:' Mas ser um alienígena não necessariamente implica alienação. Hertzberg escreve: "Homem imensamente caridoso, ele abre sua barraca dos quatro lados. Os famintos e os miseráveis podem chegar até ele em linha reta, sem que precisem

Embora o mito contracultural rebelde e iconoclasta de Abraão tenha chegado a

gastar um só passo em busca da entrada:' A generosidade desinteressada de Abraão

nós a partir das histórias do Midrash do século II, a identidade de Abraão corno o

e a impaciência com fronteiras desnecessárias (derrubem os muros!), barreiras e

primeiro auto-exilado, ou dropout, * da história pode ser traçada até o Velho Testa-

formalidades são arquetipicamente contraculturais. E Abraão vai ainda mais longe

rnento. Na Bíblia original, Abraão ouve a voz de Deus e deixa para trás sua casa em

na prática do coletivismo voluntário. "Na terra de Canaã, onde a água é a mais

Ur em busca de renovação espiritual na terra de Canaã. (Mais tarde, alguns cabalistas

preciosa das mercadorias e os pastores sobrevivem apenas se seus rebanhos podem beber, Abraão cava poços e dá o passo inédito de fazer com que eles estejam dispo-

* Pessoa que abandona a sociedade convencional (N. do E.).

níveis para todos:'

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

ABRAÃO E PROMETEU

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O rabino Michael Lerner, um produto da contracultura da Nova Esquerda dos

De acordo com os indícios arqueológicos, provavelmente o Abraão histórico

anos 1960, vê Abraão como o primeiro revolucionário. Em seu livro Jewish Renewal,

deixou uma avançada civilização suméria do terceiro milênio a.C. A economia da

ele afirma: "Há quase quatro mil anos, um idólatra chamado Abraão revolucionou

Suméria era baseada em cevada e trigo, cultivado graças a um sofisticado sistema de

a história da humanidade ao acreditar em um Ser que ele não podia ver. Juntamente

irrigação. Como nas outras cidades da Suméria, as fazendas de Ur abrigavam uma

com sua esposa Sara, ele deixou para trás a civilização e se transformou em um

grande população numa área cercada por muros fortificados. Entre os habitantes

pioneiro espiritual. Assim começou a história judaica:'

havia cervejeiros profissionais, padeiros e tecelões, bem como artesãos em madeira,

Em seu livro Remember my Soul, Lori Palatnik afirma que a ordem de Deus

cerâmica, pedra e metal, e joalheiros. Nas cidades e entre elas viajavam mercadores,

em Gênesis 12:1 para Abraão "ir( ... ) de sua terra, da sua parentela, da casa de seu

negociando com as cidades acadianas mais ao norte, através do Levante, até a ainda

pai, rumo à terra que eu lhe mostrarei" demanda alguma interpretação, já que

mais antiga civilização do Egito, bem como com os montanheses bárbaros do leste.

"nesse ponto, na Torá, Abraão já tinha deixado sua terra e sua terra natal".

As estruturas mais altas eram os zigurates, montanhas artificiais de tijolos de

Palatnik acredita que Deus está pedindo a Abraão "que faça uma viagem não

barro que sustentavam templos cujos sacerdotes e escribas organizavam os festi-

apenas com o corpo, mas com a alma. Deus está pedindo a ele que deixe o

vais anuais e controlavam a distribuição de comida. Esses ícones religiosos se

conforto das certezas que tem acerca do significado da vidà'. Ela mais tarde se

destacavam acima das muralhas da cidade. Reis-guerreiros governavam a todos,

refere a esse processo como "deixando o familiar", uma metáfora apropriada

protegendo as cidades de invasões bárbaras e movendo guerras territoriais contra

para qualquer processo contracultura!.

outras cidades-estado, algumas vezes se tornando senhores de várias cidades. Eles eram vistos como instrumentos dos deuses. Essas teocracias urbanas rigidamente estratificadas eram legalistas, litigiosas, hierárquicas e burocráticas.

O Abraão histórico

A religião era politeísta- baseada nos mitos e no culto aos deuses especiais de cada cidade-estado. Cada cidade tinha uma divindade titular. A maioria dos habi-

Com a exceção de um reduzido grupo de fiéis religiosos, a maioria dos historia-

tantes desempenhava um papel específico nesse culto divino, que incluía todas as

dores desde 1850 considera a história de Abraão como puro mito. Ironicamente,

classes sociais: fazendeiros trazendo grãos e frutas; tecelões e padeiros que abaste-

arqueólogos desencavaram indícios cada vez mais detalhados de que o VelhoTes-

ciam os templos; artesãos, escribas, sacerdotes e a corte real. Os reis tinham obriga-

tamento é, nas palavras do historiador Paul Johnson, um "guia complexo e ambí-

ções religiosas formais, mesmo reis de muitas cidades-estado, que algumas vezes

guo para a verdade". A cidade de Ur foi encontrada e desenterrada por Leonard Woolley na década

instalavam filhas em altos postos sacerdotais com grandes propriedades, poder e prestígio. O poder político era organizado em torno do culto e da corte.

de 1920, no que hoje é o sul do Iraque. Desde então, a compreensão da linguagem

Há evidências escritas da existência de uma clara subcultura nessa época, espa-

suméria utilizada em dezenas de milhares de placas cuneiformes encontradas por

lhada da Suméria ao Egito, passando pela Mesopotâmia, ao longo da costa do

toda a região confirma a plausibilidade de muitas das histórias do Gênesis, incluin-

Levante. Esses habiru (uma possível raiz para a palavra hebreu) parecem ter sido

do a de Abraão. Os nomes Abrão (grafia original de Abraão no Velho Testamento),

uma classe de outsiders em meio à civilização do Oriente Médio. Aparentemente,

Jacob-el e José foram encontrados em documentos legais da Mesopotâmia (entre

eles eram ciganos urbanos, negociantes de mulas, mercadores em caravana, em-

os rios Tigre e Eufrates, no atual Iraque) e de Canaã (atuais Israel e Jordânia),

pregados governamentais, soldados mercenários e famílias não-aparentadas. Abraão

datando de 2.100 a.C. a 800 a.C. Mais significativo ainda, a tradução de detalhes de

provavelmente foi o fundador de uma subcultura ou contracultura "não-aparentadà' alternativa como essas.

contratos imobiliários e matrimoniais corrobora os tipos de acordos e disputas descritos nas histórias do Velho Testamento.

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Ouvindo Deus Afirma-se que Abraão se rebelou contra uma cultura politeísta, transformando-se no primeiro monoteísta. Hoje, claro, muitos contraculturalistas rejeitam o

ABRAÃO E PROMETEU

O iconoclasta Se seus filhos um dia perceberem quão imperfeito você é, eles irão massacrá-lo durante o sono.

monoteísmo, e alguns abraçam o politeísmo como uma alternativa. Obviamente, diferentes épocas e situações produzem respostas diversas. Por outro lado, o puro antagonismo não produz uma contracultura. Colocando a suposta história de Abraão em um contexto contracultura!, vemos que ele rompeu com uma cultura em que todas as crenças eram determinadas por consenso social. Em contraposição, a ligação de Abraão com a sua divindade singular surgiu de (literalmente) dar ouvido à

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Frank Zappa, 1966

A lenda mais influente acerca de Abraão, tirada das histórias do Midrash escritas por rabinos nos séculos após a diáspora romana, soa como um episódio particu-

voz individual em sua cabeça, que Abraão interpretou como sendo a voz de Deus. Ele corajosamente ignorou a onipresente realidade consensual de sua sociedade e

larmente melodramático dos conflitos de gerações dos anos 1960. Ele, claro, envolve um filho que é um pirralho pretensioso que questiona o sistema de valores de seu pai, vendido e sem-graça, e bagunça com o ganha-pão do velho homem. Papai fica tão aborrecido que entrega seu filho às autoridades.

se aferrou aos seus princípios individualistas. Abraão mais tarde afirmou que o

O pai de Abraão, Taré, ganhava a vida fazendo ícones de pedra na politeísta e

acesso a esse relacionamento direto com a divindade era possível a qualquer um que desse atenção à sua voz interna. O Deus de Abraão era mais portátil que fixo, e imediatamente presente, mais que distante. A cultura dos primeiros judeus era

idólatra Ur. Ainda jovem, Abraão começou a duvidar da adoração a esses ícones. Ele começou a perturbar seu pai com isso. Certo dia, quando o pai deixouAbe tomando conta dos negócios, Abraão afastou um cliente perguntando a ele: -Quantos anos você tem?

nômade, tribal e antiurbana. Eles, aparentemente, não se identificavam com unidades políticas estabelecidas. Ao contrário, eram mercenários, criadores de caso, escravos, rebeldes e teimosos fanáticos religiosos visionários. O suposto Abraão histórico e sua tribo judaica primitiva apresentam alguns

- Cinqüenta anos de idade - foi a resposta. - Que tristeza! - exclamou Abraão. - Tem 50 anos de idade e vai idolatrar um objeto que tem apenas um dia?

aspectos do trapo contracultura!: abandonar ou se exilar da sociedade estabelecida; relacionamento direto com a divindade sem a intermediação de ícones e ídolos; e uma profunda individualidade. Contudo, é impossível atribuir ao Abraão histórico

Certo dia, perturbando seu pai acerca de suas crenças, o jovem Abraão perguntou a ele: "qual foi o deus que criou o céu e a terra e os filhos dos homens': Como

uma das principais características da contracultura: não-autoritarismo e/ ou antiautoritarismo. O monoteísmo de Abraão estabeleceu uma nova forma de tota-

resposta, Taré o levou para ver doze grandes ídolos e dezenas de pequenos ídolos. Taré disse a Abraão: 'L\ qui estão os que fizeram tudo o que vês sobre a Terra, os que

litarismo, um patriarcado autonomeado no qual o líder já não era uma divindade

criaram a mim e a ti e a todos os homens sobre a Terrà:

em si, mas um profeta, um homem que podia ouvir a voz da divindade. A identidade cultural judaica foi estabelecida com base em rígidas regras legais para o sexo e o comportamento social, como um meio portátil e permanente de distingui-los das

Abraão então procurou a mãe e pediu a ela que lhe desse um pouco de "carne temperadà' como uma oferenda aos deuses de seu pai, para torná-lo "aceitável para eles': Abraão levou a carne para os ícones e viu que "eles não tinham voz, não

culturas circundantes. Para encontrar um Abraão mais puramente contracultura!, voltamos ao âmbito

tinham audição, não tinham movimento, e que nenhum esticou a mão para comer': Abraão debochou dos deuses. Ele fez uma outra oferenda. Então sentiu o espírito

do mito, os contos do Midrash, histórias contadas por rabinos e escritas a partir do

de Deus. Nas palavras do conto do Midrash, "Ele gritou, e disse: 'vergonhoso meu pai e sua iníqua geração, cujos corações estão todos voltados para a vaidade, que

século II a.C.

O homem ficou envergonhado e partiu.

servem a ídolos de madeira e pedra, que não podem comer, cheirar, ouvir ou falar,

38

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

ABRAÃO E PROMETEU

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que têm bocas sem fala, olhos sem visão, ouvidos sem audição, mãos sem tato e

freqüentemente partilhada pelos jovens, mas ela se intensifica e se espalha para

pernas sem movimento!' Abraão então tomou uma machadinha e quebrou todos os

pelo menos alguns membros de todas as faixas etárias em períodos de excitação

deuses de seu pai, e quando terminou de quebrar todos eles, colocou a machadinha

contracultura!. (Claro que grupos fascistas também tiram partido desse tipo de

na mão do maior deus de todos eles, e saiu". Mesmo que você não conheça a história, pode adivinhar o final: Taré ouviu o

energia primai, atávica, portanto isso claramente não é um bem absoluto.)

barulho do filhote destruindo a loja da família e correu até ele, gritando:

Abraão e Taré com o espírito da revolta dos anos 1960 quando ele afirma que '1\.braão

Michael Lerner implicitamente contamina o antigo conflito de gerações de

- Que mal fizestes a meus deuses?

entra para a história, consciente de que algo está fundamentalmente errado, recusan-

Abraão respondeu: - Eu ofereci carne temperada a eles, e quando me aproximei deles, para que

do-se a aceitar a idolatria. Abraão consegue sentir( ... ) algum potencial maior que( ... ) a pura idolatria- poder, beleza, riqueza, etc. Quebrando os ídolos ele está simbolica-

pudessem comer, todos esticaram as mãos para pegar a carne, antes que o maior

mente tentando chegar a Taré, seu pai, para dizer: 'Essa matéria morta que é utilizada

deles esticasse a mão para comer. Este, furioso com os outros por causa de seu

para justificar uma organização social opressiva não é real, e nem eu nem você

comportamento, pegou a machadinha e quebrou todos eles, e, cuidado, a machadinha

precisamos nos manter presos a ela, não é verdade?' A incapacidade de seu pai de

ainda está nas suas mãos, como podes ver.

responder, de ver a energia da vida e a realidade em seu filho e dizer 'Sim, filho, algo

Em resposta, Taré provou a tese de Abraão: - Mentes para mim! Há espírito, alma ou poder nesses deuses para fazer tudo

mais é possível: significa que em vez disso ele vê o filho como o problema. Para o pai

que me disserdes? Não são eles de madeira e pedra? E eu mesmo não os fiz? Foi tu

cional, espiritual e política que seria sufocante e ameaçador': Ao enfatizar que este é

quem colocou a machadinha na mão do grande deus', e disseste que ele atingiu

Abraão, o primeiro judeu a entrar para a história, Lerner também afirma que o povo

todos eles. E Abraão, o pirralho contracultura!, desmontou o argumento do pai com sua

judeu está marcado por uma espécie de espírito rebelde, justiceiro.

resposta: - Como, então, podes tu servir a esses ídolos nos quais não há poder de fazer

de Abraão, romper com as convenções sociais iria exigir um grau de vitalidade emo-

Radicais judeus

nada? Podem esses ídolos nos quais tu confias fazer isso? Podem eles ouvir tuas preces quando tu chamas por eles? Então Taré enquadrou o filho, levando-o ao rei para reabilitação.

De fato, a dissensão judaica está presente em toda a história. Quando Alexandre, o Grande, conquistou o Oriente Próximo, os judeus protestaram. Quando a cultura inte-

Embora o Abraão bíblico apresente um tantinho de audácia antiautoritária no

lectual grega se tornou de rigueur na Roma helenística, os judeus se recusaram a fazer

Velho Testamento quando discute com seu Deus todo-poderoso sobre seus planos

parte daquilo. Sua rebelião contra Roma deflagrou uma reação imperial que destruiu o

para a destruição de Sodoma, é o Abraão mítico dos contos do Midrash, um rebelde

Templo e deu início à grande diáspora. Durante o Império Romano, quando o cristia-

geracional iconoclasta, que nos surpreende por seu contraculturalismo. Todos conhecemos a história do conflito de gerações dos anos 1960, mas quantos

nismo foi declarado a religião do Estado, os judeus resistiram à perseguição naquele

de nós que estávamos lá se lembram daquela sensação, arrogante, mas inegável, de

provocaram perturbações teóricas e existenciais no século XIX e início do século XX.

que nós, jovens, estávamos apaixonadamente vivos, inflamados por pura energia e

Depois do Holocausto do século XX, quando William Burroughs, Allen

espírito, enquanto nossos pais estavam de certa forma amortecidos? Embora essa

Ginsberg e Jack Kerouac surgiram como os principais ícones da contracultura

observação esteja fora do âmbito do argumento conceitual contracultura!, a inefá-

beat, foi o judeu Ginsberg que se apresentou defendendo uma mudança social

vel sensação de vitalidade superior como uma espécie de bem moral é

radical. (Na verdade, podemos considerar Ginsberg o pai da fusão hippie/Nova

momento, e durante séculos. Karl Marx, Franz Kafka e Sigmund Freud, todos judeus,

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

ABRAÃO E PROMETEU

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Esquerda que nos deu a palavra contracultura. Afinal, foi a magnânima solidariedade

experiência humana, mas então elas criaram a 'experiência espiritual' visando a algu-

de Ginsberg, combinada com sua disposição tipicamente judaica de insistir na ver-

ma realidade superior em um (... ) mundo espiritual que é desligado do mundo da

dadeira liberdade e justiça para todos, que abriu o caminho. Consideremos os outros

vida cotidiana. O judaísmo insiste que essa divisão não é uma necessidade ontológicâ'

competidores: Ken Kessey, seguindo suas tendências obscurantistas, recusou a lide-

Hoje, o rabino Lerner coloca em prática sua crença em uma espiritualidade

rança, e Tnnothy Leary sempre se equilibrou na linha entre populismo e elitismo.) O comediante judeu Lenny Bruce chamou a atenção para as hipocrisias sociais e

moral e ativista, protestando contra as políticas militaristas do governo israelense. Nisso ele recebe o apoio do rabino Hertzberg e de uma importante minoria de

políticas de começo e meados dos anos 1960 com tal contundência que foi atacado

judeus em Israel e em todo o mundo que não conseguem resistir ao impulso -

dez vezes e levado à morte pelas autoridades morais. E os comediantes do absurdo, os

transmitido a eles pelo Abraão dos contos do Midrash- de questionar a autorida-

judeus radicais yippies Abbie Hoffman e Jerry Rubin perturbaram os hippies-

de e assumir posições contra a injustiça.

recusando-se a permitir que eles recuassem para um retiro espiritual psicodélico. Em vez disso, os arrastaram para "levitar o Pentágono': jogar notas de dólar no pregão da Bolsa de Valores de Nova York, enfrentar a polícia em protesto contra a guerra nas

O mito da contracultura reflete a história da contracultura

ruas de Chicago, e apoiar as rebeliões universitárias e o movimento militante negro. E finalmente, o mais influente judeu anticonformista do século XX, Bob Dylan, nos

Este capítulo em grande parte lidou com os mitos como histórias apócrifas de

dignificou ao mesmo tempo com seus versos inspirados e por ser provavelmente a

um heroísmo maior que a vida. Mas podemos entender o mito em diversos níveis.

pessoa mais absolutamente inexplicável que já abrilhantou a Terra.

É necessário pelo menos um rápido passeio pelas principais abordagens atuais do

O rabino Hertzberg vai ainda mais longe, afirmando que os judeus estimulam o anti-semitismo quando irritam as pessoas com seu intelecto rebelde e questionador. Segundo Hertzberg, "os judeus são críticos e subversivos': Hertzberg conclama seus colegas judeus a honrarem e darem continuidade a essa antiga tradição que fez com

mito antes que possam ser avaliadas as mais amplas implicações da presença da contracultura no mesmo. Psicólogos, antropólogos e historiadores contemporâneos -

destacando-se

entre eles o psicanalista do século XX Carl Jung e o mundialmente famoso mitógrafo

que corressem tantos riscos ao longo da história. Em meio às lendas da religião

Joseph Campbell

judaica, o rabino Lerner identifica a oposição à opressão e a luta por justiça: ''A

vêem os mitos como chaves para a alma humana, como passagens simbólicas para

atribuem enorme importância ao mito. Muitos acadêmicos

afirmação do judaísmo de que Deus é a Força que( ... ) nos ajuda a transformar o

a nossa mais profunda natureza individual e coletiva.

mundo(... ) [significa] que todos estão convocados a tomarpartenaluta para mudar

A mitologia mundial apresenta certos arquétipos míticos que são comuns a

o status quo. A concepção da Torá acerca do reino de Deus nos diz( ... ) que o único

praticamente todas as culturas humanas. O trickster* contracultural, por exemplo,

verdadeiro poder a comandar nossas vidas é a Força que nos faz( ... ) abandonar

tem assombrado as mentes dos seres humanos com sua viva intangibilidade em

sistemas de opressão e recomeçar, criando algo fundamentalmente diferente e novo:'

constantes aparições em todo o planeta desde antes do alvorecer da história.

Lerner também vê o ativismo moral implícito no judaísmo como sendo superior a escolas contemplativas de educação espiritual, declarando: "O judaísmo inclui a

mundial como indícios de qualidades humanas básicas que transcendem barreiras

transcendência na agenda humana. Os seres humanos não precisam chafurdar em

culturais e temporais. Nas mãos de Jung, Campbell e outros, o mito se transforma

um mundo de dor e opressão. Nós podemos restabelecer contato com um nível de

em uma espécie de memória racial pré ou extra-histórica, nem tanto de o que

existência mais profundo( ...) seres que são criados à imagem de Deus, que incorporam

aconteceu quanto de o que somos.

Campbell e suas legiões de seguidores consideram essas presenças na mitologia

uma tendência inata à bondade e à santidade, a serem 'espiritualmente incorporados: (... )Muitas outras religiões tiveram a intuição de que faltava algo fundamental na

* Arquétipo que personifica o caráter de "pregador de peças'; "enganador'; "malandro" (N. do R.).

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

ABRAÃO E PROMETEU

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Este ponto de vista encara os mitos como codificações literárias das mais básicas

sob a terra (... ) em cavernas escuras"). Não é difícil ler a história de Prometeu como

crenças, motivações, aspirações, anseios e temores da humanidade. Ou, mais simples-

uma sugestão de que as inovações hoje associadas à era Neolítica, e, portanto, a

mente, os mitos são as histórias que contamos a nós mesmos sobre nós mesmos, sobre

própria civilização, surgiram do impulso contracultura!.

a nossa natureza fundamental e sobre as coisas que são importantes para nós.

O papel e a importância da contracultura na dimensão mítica abordada neste

Este capítulo identificou símbolos de contracultura nos mitos de fundação das

capítulo se reflete no terreno histórico mapeado pelo restante deste livro. Os capí-

duas grandes correntes a partir das quais surgiu a moderna civilização ocidental:

tulos seguintes mostram a contracultura como uma fonte fundamental de mudan-

as tradições clássica e judaico-cristã. Aqui, os papéis de Prometeu e Abraão não são

ça em cada momento crucial da história.

periféricos, secundários. Ao contrário, são fundamentais para suas respectivas mitologias. Se o mito, como é comum afirmar hoje, nos fala sobre a construção psíquica da humanidade, então as impressionantes presenças míticas de Abraão e Pro-

Outros mitos contraculturais

meteu, juntamente com a proeminência do trickster e de outras figuras contraculturais no mito mundial como um todo, indica que o impulso

Antes de deixarmos a pura mitologia para entrarmos no mundo das verdadeiras

contracultura! é um elemento integrante da natureza humana. De fato, o mito nos

contraculturas históricas, podemos mencionar algumas outras figuras mitológicas

ensina que a contracultura é muito importante.

que nos aparecem como contraculturais. Pensamos em Eva, a primeira mulher, que

Alguns estudiosos consideram o mito importante para praticamente todos os

deu uma mordida naquela proibida fruta do conhecimento, deflagrando o primeiro

aspectos da existência humana. Joseph Campbell disse a frase famosa: "A última

barato com drogas. E pensamos naquela outra menina levada, Pandora, que certo dia

encarnação de Édipo, o perpétuo romance da Bela e da Fera, está esta noite na

resolveu abrir a sua caixa, espalhando as maldades pelo mundo. (Veja como essas

esquina da Rua 42 e Quinta Avenida, esperando o sinal abrir:' Campbell está nos

mitologias gostam de culpar as mulheres!) Pensamos na favorita de Jim Morrison,

dizendo: na vida humana, como no mito.

Dioniso, o hipersexualizado consumidor de vinho e alucinógenos que foi arrasado

E, como no mito, na história humana. As histórias de Prometeu e Abraão refle-

por groupies selvagens. Pensamos na feiticeira Circe, com suas poções mágicas. Pen-

tem a realidade histórica da contracultura de formas notáveis. No mito de Prome-

samos no bad boy Fausto de Goethe, em busca da imortalidade. Pensamos em Robin

teu, o personagem contracultura! é visto - pelo menos nos antigos relatos

Hood e sua alegre banda de weathermen. Pensamos em Alfred E. Neuman...

como sendo, acima de tudo, uma péssima influência sobre a humanidade. Na história de Abraão, o papel do personagem contracultura! é profundamente positivo; ele é a fonte do enorme legado que foi adotado por todo um povo como os fundamentos da vida. Essa disparidade reflete os sentimentos opostos, o violento antagonismo e a lealdade sacrificial que contraculturas históricas evocam nas épocas e nos locais em que surgem. Mais importante ainda, as histórias de Prometeu e Abraão são sobre começos, origens e fontes. Abraão surge como o progenitor literal e espiritual da grande tribo cuja história é a base de um dos mais importantes documentos do mundo. Prometeu, com sua disposição para a rebeldia, a inovação e o humanismo revolucionário, é escalado como o responsável por tudo, da escrita à matemática, passando por transportes e medicina (antes do que, como já foi dito, os seres humanos "viviam

CAPÍTULO DOIS

Uma outra forma de excelência humana Definindo contracultura

Há um diferente tipo de excelência humana (... ) uma concepção de humanidade como tendo sua natureza concedida a ela por outros propósitos que meramente abnegação. (... ) Não é reduzindo à uniformidade tudo o que é individual neles, mas cultivando e buscando isso (... ) que os seres humanos se transformam em um nobre e belo objeto de contemplação (... ) e o que quer que esmague a individualidade é despotismo, qualquer que seja o nome que dê a si mesmo e não importando se afirma estar cumprindo a vontade de Deus ou as exigências dos homens.

John Stuart Mill, Da individualidade De certo ponto de vista, a contracultura parece ser um desafio à própria noção

de história. Para os que se rebelam contra a tradição, os exploradores que buscam novos territórios conceituais e (em alguns casos) os defensores do Eterno Agora, a história parece ser, na melhor das hipóteses, exótica e, na pior, o inimigo. No final das contas, o conceito ocidental de história como uma narrativa continuada, definida basicamente por grandes líderes, estruturas sociais variáveis e as mutáveis fronteiras entre nações-estado antagônicas parece quase que explicitamente projetado para nos amarrar a uma visão hegemônica do potencial (muito limitado) da humanidade. Nesse contexto, o registro histórico conspira para nos convencer de que o predomínio de comportamentos não-contraculturais, como conformismo e autoritarismo, é o que define a humanidade. Algumas vezes somos tentados a dizer que, na verdade, aqueles que recordam a história são os condenados a repeti-la.

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

UMA OUTRA FORMA DE EXCELÉNC!A HUMANA

47

Mas como a cultura ocidental, e particularmente suas gerações mais jovens, se encaminha rapidamente para épocas crescentemente não-históricas, o quadro

O espírito contracultura! fundamental se reinventa perpetuamente de formas imprevisíveis, estilos chocantes e novos modelos. Ainda assim, muitos jovens

não parece agradável. Para começar, a amnésia histórica descontextualiza situações passageiras no mundo contemporâneo, produzindo resultados negativos. Assim,

contraculturalistas do século XXI poderiam lucrar se aprendessem a história de seus antecedentes do final do século XX, e todos nós nos beneficiaríamos se apren-

podemos, por exemplo, reagir ao rancor dos colonizados (ou ex-colonizados) com incompreensível irritação, como se sua falta de passividade fosse um defeito de

dêssemos sobre os movimentos contraculturais das profundezas do tempo.

caráter, uma grosseria inexplicável que algumas vezes atinge o grau de violência. Ou nós (nos Estados Unidos) podemos simplesmente aceitar o senso comum de que nossa nação-estado é "a terra da liberdade': sem realmente compreender os direitos assegurados em nossa Constituição e nossa Declaração de Direitos e as formas pelas quais eles foram ampliados e reduzidos. No nível da contracultura, encontramos muitos jovens influenciados pelo hedonismo hippie, mas sem nenhuma verdadeira consciência dos princípios illo-

O que é hip? I walk forty-seven miles of barbed wire/ Use a cobra snake for as necktie

Bo Diddley

Pouquíssimas pessoas têm uma definição prática e adequada para o que seja contracultura, mas têm a certeza de que sabem reconhecer uma quando a vêem. Na

sóficos mais profundos daquele movimento. E, o que é ainda mais perigoso, eles talvez consumam as plantas sagradas e as substâncias químicas do movimento sem

verdade, quando Theodore Roszak popularizou a expressão em seu livro The Making

terem as informações práticas adequadas acerca da segurança, ou sobre como integrarem harmoniosamente essas experiências em suas vidas cotidianas.

ofa Counter Culture, de 1969, ele literalmente podia ver quais eram as pessoas que se encaixavam em sua concepção. Qualquer pessoa do sexo masculino com cabelos

Essa busca da não-historicidade chega mesmo a privar alguns dos movimentos

compridos e, provavelmente, uma barba, vestindo jeans esfarrapados, uma bandana e talvez uma camiseta estampada quase certamente era um contraculturalista. Qual-

contraculturais jovens de profundidade e humanidade. Ao longo dos anos 1990, a Geração X/tecnocultura abraçou o culto do novo. A revista Wired, soando exatamente como o Camarada Mao durante a sua violenta Revolução Cultural na China dos anos 1960, celebrava a rápida mudança tecnológica como um "furacão" apagando todas as lembranças. Essa rejeição a todas as coisas passadas teve a sua apoteose naquele glorioso surto de exuberância contracultura! conhecido como o movimento rave. Em meados dos anos 1990, a arma mais devastadora do arsenal dessa cultura era a frase "Era assim há cinco minutos". Ao ignorarem a história, mesmo a história recente, os contraculturalistas do "culto ao novo" se privam de coisas esplêndidas - como as maravilhosas músicas expansoras da mente de John Cage e Iannis Xenakis ou as afirmações intensamente contraculturais de Beggars Banquet, dos Rolling Stones, ou Never Mind the

Bollocks Here's the Sex Pistols, dos Sex Pistols, ou mesmo o impressionante PreMillennium Tension, de Tricky, que hoje parece ter acontecido há looongos cinco anos. Claro que cada geração gosta de achar que inventou a sua própria cultura rebelde, e, como esse livro irá demonstrar, na maioria das vezes ela está certa.

quer mulher com cabelos ainda mais longos, vestindo a mesma coisa que o rapaz, ou, opcionalmente, um vestido de camponesa, também provavelmente era uma contraculturalista... Em outras palavras, praticamente todo mundo que naquela época estava na faculdade. Essas pessoas representavam uma síntese do movimento hippie - dedicado a fazer experiências com drogas que expandiam a consciência e a seguir a onda, e ligado ao movimento da Nova Esquerda/pacifista-, que se dedicava a desafiar a autoridade, acabar com o imperialismo e a guerra e a um mal definido comunalismo. Do ponto de vista de Roszak, aquela era uma revolta contra uma civilização alienante, mecanizada e excessivamente materialista, em prol de uma forma de vida mais natural, intuitiva, harmoniosa e generosa. Mas para outros, como T!m Leary e (em menor grau) os yippies e os diggers, eles estavam se rendendo antecipadamente a um mundo no qual a tecnologia nos libertava da miséria humana e do trabalho alienante, garantindo-nos uma vida de espontâneo e divertido autoconhecimento e, até mesmo, auto-indulgência. Qualquer que seja a visão (e havia milhares de outras)

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UMA OUTRA FORMA DE EXCELÊNCIA HUMANA

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

da contracultura dos filhos do baby boom que escolhamos, podemos estar certos de uma coisa: Newt Gingrich acredita que ela destruiu a América.

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Claramente, a definição de contracultura é questionável, mas nós sustentamos que, quaisquer que sejam as diferenças, havia uma intenção mútua específica que motivou

Claro que características culturais que são inicialmente vistas como desafiadoras,

praticamente todos os que se definiram em termos contraculturais até os últimos

novas ou mesmo revolucionárias podem acabar se revelando rançosas - uma cari-

anos. Eles eram todos antiautoritaristas e não-autoritários. Nossa definição é a de que

catura Hoje, um cara de cabelos compridos pode muito bem ser um caipira reacioná-

a essência da contracultura como um fenômeno histórico perene é caracterizado

rio, e o Zeitgeist contracultura! hippie foi superado por uma cultura alternativa mais

pela afirmação do poder individual de criar sua própria vida, mais do que aceitar os

ampla e eclética formada por subculturas contraculturalmente afetadas. Punks, artis-

ditames das autoridades sociais e convenções circundantes, sejam elas dominantes

tas de vanguarda, o movimento hip-hop, ativistas antiglobalização e anarquistas Black

ou subculturais.Afirmamos ainda que a liberdade de comunicação é uma caracterís-

Bloc, tecnoculturalistas leitores de Wired e hackers, ligados na cultura clubber, rappers

tica fundamental da contracultura, já que o contato afirmativo é a chave para liberar

conscientes, psicodelistas educados, Buming Man, modernos primitivos com im-

o poder criativo de cada indivíduo. (Ao longo de todo este livro, faremos afirmações

plantes e piercings de aço pendurados em cada órgão, habitantes do submundo sexual,

acerca da natureza da contracultura. Reconhecemos que essas observações são base-

pagãos, acadêmicos pós-modemos,funkeiros, adeptos daNewAge, riotgrrrls*, desertores,

adas em nossos pontos de vista, e que outras visões são possíveis. Contudo, fazer esse

freqüentadores de raves, dreadsters, zen-budistas, gnósticos, iconoclastas solitários,

tipo de ressalva para cada uma de nossas afirmações seria algo cansativo tanto para o

vagabundos, poetas performáticos, góticos, abraçadores de árvores, libertinos e libertários

leitor quanto para os escritores.)

- todos algumas vezes definidos (e autodefinidos) como contraculturais.

Fenômenos culturais são entidades altamente multifacetadas. Esse fato deter-

Como se essa lista de supermercado de "doidões" não fosse longa o bastante,

mina enormes desafios para qualquer esforço de definir e generalizar movimentos

alguns grupos tradicionalistas - cristãos fundamentalistas e grupos judaicos orto-

culturais. Essas dificuldades são descritas por Roszak no prefácio de The Making of

doxos - começaram a se referir a si mesmos como contraculturas. O Websters New

a Counter Culture:

World Dictionary define contracultura como "uma cultura com um estilo de vida que é oposto à cultura dominante': portanto, não surpreende que grupos que se opõem

Eu tenho colegas acadêmicos que chegaram a ponto de tentar me con-

profundamente ao pluralismo, ao aborto, ao racionalismo, à liberdade sexual, à ciên-

vencer de que nunca existiram coisas como "o movimento romântico"

da, a auto-indulgência materialista, à liberdade de opinião e a muitos outros aspectos

ou "a Renascença" - não se você começar a vasculhar os microscópicos

de nossa cultura que são mais ou menos dominantes possam ver a si mesmos como

fenômenos da história. Nesse nível, a tendência é ver apenas diferentes

contraculturais. De acordo com essa definição, até mesmo muçulmanos praticantes

pessoas fazendo muitas coisas diferentes e pensando muitas coisas di-

da jihad que vivem em países ocidentais constituem uma contracultura.

ferentes. (... ) Certamente seria muito conveniente se esses Zeitgeists teimosamente ectoplásmicos fossem movimentos organizados, com um quartel-general, uma diretoria e um arquivo de manifestos oficiais. Mas

"Contraculturà' é questionável

é claro que eles não são. Assim, você é obrigado a abordá-los com uma

certa cautela, esperando que a maior parte das generalizações passe

Embora possam ser encontradas poucas semelhanças entre alguns elementos contraculturais e esses grupos fundamentalistas, nós rejeitamos a definição de contracultura simplesmente como um estilo de vida que difere da cultura dominante. * Movimento iniciado na década de 1990, por zines e bandas femininas, que repudiava o sexismo. (N.doE.)

pela peneira, mas sempre torcendo para que a maior parte do que é sólido e valioso permaneça em vez de se perder.

Os problemas dos quais Roszak se queixa se multiplicam à medida que tentamos definir não apenas um único acontecimento cultural, mas toda uma categoria de acontecimentos culturais históricos.

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CONTRACULTURA ATRAV!lS DOS TEMPOS

UMA OUTRA FOAA!A DE EXCELÊNCIA HUMANA

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Uma olhada rápida no sumário deste livro pode facilmente causar confusão,

e do livre-pensar. Defender o primado da individualidade implica estimular, enco-

dado a ampla gama de fenômenos sociais que nós definimos como contraculturais.

rajar e defender a expressão pessoal, não apenas no sentido de "liberdade de opinião':

As contraculturas que escolhemos são extremamente diferentes e disparatadas -

mas também no que diz respeito a crenças, aparência pessoal, sexualidade e todos os

por exemplo: é difícil ver uma relação imediata entre a Idade da Razão, os sufis e os

outros aspectos da vida. O espírito contracultural rejeita apenas aquelas expressões

surrealistas. Alguns movimentos são vistos como sendo fundamentalmente espirituais, enquanto outros são conhecidos por suas contribuições artísticas, políticas

de individualidade que claramente oprimem os outros. Nossa visão de contracultura centrada na individualidade é, reconhecidamente,

ou filosóficas. Algumas contradizem as outras em certos aspectos. Os socráticos

repleta de riscos. Muitos dissidentes e contraculturalistas passaram a associar a palavra

introduziram o raciocínio dedutivo, enquanto os dadaístas o detonaram. Os liber-

individualismo com avareza, egoísmo, falta de compaixão e à solidão existencial que

tinos do século XVII debochavam da espiritualidade, enquanto os sufis a buscavam de uma forma algumas vezes libertina.

é fruto da rejeição da comunidade (ou da rejeição pelacomunidade).A individualida-

Essa diversidade por vezes contraditória pode levar alguns leitores a concluir que

é uma profunda individualidade, partilhada. Ela inclui pessoas e culturas que seguem

de contracultural não significa puro egocentrismo. A individualidade contracultural

nós basicamente reunimos todos os movimentos culturais e políticos que achamos

o conselho socrático de "conhece-te a ti mesmo': Essa distinção traz à mente uma

legais ou interessantes, e chamamos isso de uma história da contracultura. Não é

entrevista que eu (Ken) certa vez li em um jornal nanico com o cineasta de vanguarda

verdade. Os movimentos contraculturais, não importa quão diferentes uns dos outros

Kenneth Anger. Comentando a famosa frase de Aleister Crowley "Faze o que decide

possam parecer, surgem de diferentes combinações dos mesmos princípios e valores.

ser o conjunto da lei': Anger disse (estou parafraseando) que isso não significa que você só deva fazer o que quiser. O objetivo da investigação encantada é encontrar a sua "verdadeira motivação" por intermédio de uma auto-exploração profunda e discipli-

Princípios definidores da contracultura

nada.Aquele que procura precisa descobrir qual é a sua vontade, antes de fazê-lo. Apesar dessas definições, nossa interpretação da contracultura inegavelmente

Os humanos são seres multifacetados, teimosamente difíceis de enquadrar, e os

permanece um pouco libertária (com "1" minúsculo). Não iremos discutir aqui se o

tipos contraculturais costumam estar entre os mais difíceis de definir. Ainda assim,

direito de indefinidamente acumular bens pessoais e riqueza é uma garantia fun-

existem certos princípios fundamentais, ou metavalores, que distinguem

damental da liberdade individual ou se, na verdade, é um obstáculo a ela. Mas

contraculturas da sociedade hegemônica, bem como de subculturas, minorias étni-

afirmamos que, da mesma forma que rejeitamos o simples egoísmo, também excluí-

cas e religiosas e grupos dissidentes não-contraculturais. As características fundamentais da contracultura são três.

mos de nossa definição o puro comunalismo. As culturas que impedem ou desencorajam o individuo de explorar plenamente e expressar seu autêntico serseja por coerção direta, seja por pressão populista de seus colegas- não podem ser

As contraculturas afirmam a precedência da individualidade acima de convenções sociais e restrições governamentais.

consideradas contraculturais. Portanto, a participação nas contraculturas mais re-

As contraculturas desafiam o autoritarismo de forma óbvia, mas também sutilmente.

ditem em algo específico. Tudo o que é exigido é um compromisso com o processo

As contraculturas defendem mudanças individuais e sociais.

inculcada, de modo que a verdadeira individualidade possa florescer.

finadas normalmente não exige que os indivíduos façam, digam, pensem ou acrede eliminar a submissão à autoridade externamente aplicada e internamente--

A individualidade é algo fundamental para a contracultura. De certa forma, nós

Outra característica básica das contraculturas - que é fruto direto de seu indi-

poderíamos facilmente ter batizado este trabalho de uma história de livres-pensadores

vidualismo - é que elas desafiam o autoritarismo tanto de forma óbvia quanto

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

UMA OUTRA FORMA DE EXCEI.llNCIA HUMANA

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sutilmente. Algumas contraculturas podem desafiar o explícito controle dos indi-

idealistas de colocar em prática o puro anarquismo em larga escala se mostrariam

víduos pelo Estado ou por poderes religiosos. Mas todas desafiam o autoritarismo

desastrosas e simplesmente levariam as massas a clamar por um renovado e forte

mais sutil exercido por sistemas de crença rígidos, convenções amplamente acei-

governo autoritário. A maioria preferiria limitar severamente a hierarquia e a coerção

tas, paradigmas estéticos inflexíveis e tabus explicitados ou não.

utilizando mecanismos democráticos e de liberdade civil grandemente ampliados.

A ampla gama de fenômenos autoritários que as contraculturas desafiam é

Outra característica básica de todos os episódios contraculturais é um entusias-

sugerida pelo continuum dos movimentos contraculturais do Novo Mundo, desde

mo por mudanças pessoais e sociais. Esse princípio pode ser formulado de uma

o levante democrático americano até as experiências literárias da Geração Perdi-

forma quase abstrata, como na descoberta do filósofo taoísta Lao-tsé de que a mu-

da, passando pelo transcendentalismo da Nova Inglaterra. O primeiro desses epi-

dança é a única constante ou na afirmação semelhante do grego Heráclito de que

sódios eliminou a autoridade do Império Britânico sobre suas colônias. Os

"tudo muda, nada permanece". Na contracultura taoísta, essa sabedoria era associa-

transcendentalistas libertaram a espiritualidade individual da autoridade da reli-

da a uma política anarquista, mas basicamente passiva. Outros contraculturalistas

gião organizada. E os românticos da Geração Perdida desafiaram a tirania da sin-

preferiram incorporar o princípio da mudança a ações concretas em larga escala.

taxe sobre o pensamento, subvertendo as convenções literárias em busca de uma linguagem natural da mente.

cesso fluido, camaleônico de perpétua transformação na identidade pessoal, nos

No nível individual, os contraculturalistas demonstram mutabilidade: um prointeresses e nos objetivos almejados. Os contraculturalistas realizam apaixonada-

O humanismo antiautoritário da contracultura é algumas vezes afirmado por

mente aquilo que Nietzsche chamou de "transposição de valores"

uma filosofia

intermédio de rebelião explícita e revolução. Mas, diferentemente da maioria dos

e um estilo de vida que implica uma contínua transformação, com sistemas de

revolucionários, o revolucionário contraculturalista não quer estabelecer um regi-

valores, percepções e crenças mutáveis, como um objetivo em si.

me autoritário alternativo no lugar do antigo, e sim buscar crescente liberdade e fortalecimento democrático para o maior número de pessoas.

Nesse ponto, contraculturas ativistas como o radicalismo dos anos 1960 e contraculturas passivas como o taoísmo têm um ponto em comum. Assim como

Alguns indivíduos e grupos contraculturalistas identificam a si mesmos como

muitos conhecidos contraculturalistas dos anos 1960 evoluíram por intermédio de

anarquistas. Hoje, o anarquismo geralmente é associado a situações caóticas e vio-

uma impressionante série de permutações no estilo, na estética, na política e na

lentas, períodos durante os quais - na ausência de uma autoridade - as pessoas se

filosofia ao longo de alguns poucos anos, os mais conhecidos representantes do

engajam em atividades destruidoras, "ilegais': que tornam difícil, ou mesmo impossí-

taoísmo e da filosofia zen foram tradicionalmente inescrutáveis pelos outros em

vel, que a maioria das pessoas consiga o indispensável para víver. Quando dizemos,

função de seu comportamento imprevisível e contraditório momento a momento,

por exemplo, "O Iraque está em uma situação de anarquià: sabemos que isso não é bom. A crença comum é a de que um anarquista é uma pessoa que defende a "ausência

dia a dia, ano a ano. O apego contracultura! à mudança constante é algumas vezes confundido com

de governo". Isso geralmente é verdade, mas a expressão "governante" seria mais

modismo ou com a aceitação de qualquer mudança. Especialmente hoje, qualquer

precisa, já que pode haver regras aceitas (preferencialmente por consenso) e formas

atividade au courant na mídia e na cultura jovem (que se estende quase que até a

de obrigar ao cumprimento dessas regras quando absolutamente necessário.

velhice) pode ser descrita como "avançadà'

desde se alistar no corpo de Fuzilei-

Os anarquistas acreditam que as pessoas podem viver melhor e organizar suas

ros a participar de pegas nas ruas, participar de disputas íntimas em rede nacional

vidas sem hierarquia ou coerção. Há dezenas de teorias acerca de como esse ideal

de TV ou acompanhar a banda de rock Phish. Mesmo correndo o risco de parecer

pode ser atingido e qual forma ele deveria assumir. O anarquismo é a própria síntese

óbvio, algumas mudanças, como uma mudança da democracia para a ditadura, ou

de filosofia política não-autoritária. A dúvida é se ele é factível, particularmente

de uma cultura libertina para uma cultura matrimonial claramente não são

no caso de grandes populações. Muitos antiautoritaristas acreditam que tentativas

contraculturais por natureza.

54

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Naturalmente, todos os princípios contraculturais básicos são expressos de acordo com parâmetros estabelecidos pelo momento histórico. Contraculturas históri-

UMA OUTRA FORMA DE EXCELÊNCIA HUMANA

55

(os versos de Rumi, por exemplo, atualmente o maior best-seller entre os poetas) e os ideais democráticos que hoje merecem rasgados elogios por todo o planeta.

cas específicas representam os princípios básicos de contracultura em aspiração e

Se uma aparente contracultura se parece com uma monocultura conformista, é

rumo, mas a concretização desses princípios no mundo é limitada pela imperfei-

porque ela pode ser tanto uma subcultura quanto uma verdadeira contracultura

ção humana. De fato, as próprias contradições e imperfeições humanas encontra-

tentando lidar com a popularização de massa. As contraculturas apresentam uma

das nesses episódios históricos oferecem a esta narrativa várias oportunidades de

excepcional diversidade, e as subculturas normalmente são definidas por um tipo

crítica irreverente, dando a ela, espera-se, um cunho mais verdadeiramente

de conformismo alternativo ou minoritário.

contracultura! do que um mero exercício de animação de torcida - ou uma árida enumeração de acontecimentos.

alguma espécie de comunalidade, mesmo se for uma reunião de pessoas que -

Por outro lado, a adesão a um grupo cultural definido será sempre motivada por como Groucho Marx - não gostariam de participar de nenhum grupo que os aceitasse como membros. Além disso, particularmente na adolescência e na juven-

Características quase universais da contracultura

tude, costuma haver uma busca de identidade. Os verdadeiros anticonformistas também podem continuar a sentir a necessidade de ostentar estilos e símbolos com

Outras características que se manifestam na maioria das contraculturas abor-

algum toque alternativo contemporâneo. No extremo oposto, alguns

dadas neste livro derivam dos princípios definidores fundamentais que acabamos de ver. Essas características quase universais da contracultura são:

contraculturalistas são facilmente identificáveis por sua absoluta recusa a admitirem que são contraculturais. Por que eles escolheriam aceitar um rótulo? Eles são

esse tipo de contraculturalistas. De qualquer forma, a distinção entre subcultura e Rupturas e inovações radicais em arte, ciência, espiritualidade, filosofia e estilo de vida. Diversidade.

contracultura pode ser sutil, e passível de discussão. A comunicação aberta- o livre intercâmbio de arte e pensamento entre men-

Comunicação verdadeira e aberta e profundo contato interpessoal, bem

tes semelhantes - é freqüentemente um importante elemento de multiplicação de

como generosidade e a partilha democrática dos instrumentos.

comunidades contraculturais. A comunicação intelectual é fundamental para a

Perseguição pela cultura hegemônica de subculturas contemporâneas. Exílio ou fuga.

formação de contraculturas. Quando um contraculturalista se dispõe a divulgar suas noções heréticas para um ouvinte interessado, é estabelecida uma ligação que pode se tornar a primeira de uma corrente de uma comunidade contracultura!.

As contraculturas são movimentos de vanguarda transgressivos. O apego

O valor que os contraculturalistas atribuem à comunicação interpessoal pode

contracultura! à mudança e à experimentação inevitavelmente leva à ampliação

ser visto na declaração do sufi Califa Ali Ben Ali: "Um diálogo refinado - Ah! Esse

dos limites da estética e das visões aceitas. Os maiores exemplos de descoberta e

é o verdadeiro Jardim do Éden:' E Ralph Waldo Emerson disse que caminharia cem

criação contracultura! como resultado deste impulso - vistos em conjunto -

milhas sob uma tempestade de neve por uma boa conversa. A comunicação emocional íntima - a prática de abrir a alma plenamente - é

compõem uma das principais narrativas deste livro. Nós estamos vendo transgressões radicais que mudam a história.

tão importante quanto a comunicação intelectual na maioria dessas comunidades.

As inovações podem ser políticas, espirituais, filosóficas, artísticas ou mesmo

Basta recordar como a terna coragem de revelar os mais profundos segredos de

difíceis de classificar. Os exemplos vão do estabelecimento do método socrático

alguém estava no cerne do movimento beat, e não apenas nas confissões públicas

como base do pensamento ocidental às conquistas estéticas produzidas pelo sufismo

publicadas de Ginsberg, Kerouac, Diane di Prima e outros. Antes que suas obras

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

UMA OUTRA FORMA DE EXCEUNCIA HUMANA

57

circulassem amplamente, os beats passaram centenas de noites falando intimamente uns com os outros até o amanhecer.

foram profundamente subversivos para os estados totalitários stalinistas que caíram

Por outro lado, mesmo os aspectos mais comercializados do meme contracultural

O movimento beat, claro, saiu dessa intimidade privada, atraindo a atenção dos

no final dos anos 1980. E mesmo nas relativamente abertas democracias empresa-

meios de comunicação de massa. De fato, a maioria das erupções contraculturais

riais a cooptação pode sair pela culatra. Terá a comercialização da irreverência

foi estimulada pela utilização criativa de qualquer meio de comunicação ou espaço

antiautoritária por intermédio da música, da comédia, da animação infantil e de

público disponível. Sócrates conseguiu alunos discursando nos ginásios públicos

muitos outros meios produzido uma contracultura ainda mais disseminada e sóli-

e mercados de Atenas. Os trovadores difundiram por toda a Europa um novo con-

da entre muitos dos jovens de hoje, como pode ser visto no ceticismo, na cultura de

ceito de amor viajando e cantando suas canções. Não teria havido Revolução Ame-

software livre, no movimento rave e no movimento antiglobalização da Geração

ricana sem uma incansável panfletagem. Picasso mudou para sempre a percepção

X? E pode o espírito contracultural sobreviver à febre bélica em uma nação atacada

visual do mundo utilizando como meio a tela. E os anos 1960 poderiam ter sido um

por um inimigo invisível? Essas perguntas continuam sem resposta.

estalinho em vez de uma bomba de fusão se não fosse pela sublime subversão sôníca gravada nos sulcos dos discos de viníl de consumo de massa.

mo quando não são forçadas ao exílio, as contraculturas freqüentemente buscam

A maioria dos contraculturalistas acredita em absoluta liberdade para divulgar

maior liberdade para explorar e viver segundo seus valores, afastando-se da cultura

o conteúdo de suas mentes e de sua imaginação. Não surpreende, portanto, que as

hegemônica. Essa separação pode implicar isolamento geográfico ou pode ocorrer

contraculturas normalmente sejam submetidas a algum grau de perseguição. Quando uma contracultura nasce, a sociedade encontra estrangeiros em seu meio. Que-

segundo mecanismos mais sutis. Como ocorreu com os transcendentalistas americanos antes deles, muitos mem-

bra de tabus, violação de normas, desafio a idéias sacrossantas: o espírito

bros da contracultura jovem dos anos 1960 pegaram o caminho geográfico, estabe-

antiautoritário inerente à contracultura é uma ameaça potencial a qualquer ordem estabelecida. Normalmente se segue a eliminação.

lecendo comunidades experimentais em regiões rurais remotas. Os escritores e

Os tipos de perseguição variam de campanhas oficiais de convencimento do pú-

mando em expatriados nos territórios mais sofisticados de Paris e outras regiões

blico, promovidas por autoridades governamentais, ao ostracismo social e à rejeição do indivíduo contracultural por seus pares e sua família. O grau em que uma determi-

européias. Outros contraculturalistas escaparam da cultura hegemônica, continuando a

A fuga freqüentemente é uma reação contracultural a essas dificuldades. Mes-

artistas americanos da Geração Perdida escolheram o exílio pleno, se transfor-

nada cultura foi ou é perseguida depende em grande medida do nível em que aquele

viver no meio dela. Os beats se destacaram da sociedade hiperconformista america-

movimento pratica o ativismo social explícito e do grau de difusão de sua mensagem.

na dos anos 1950 por intermédio de um dialeto distintivo, de estilos de vestir

Quando a perseguição fracassa na tentativa de esmagar uma contracultura ati-

atípicos e de uma recusa a participar do joguinho econômico mesmo com o risco

va, a cultura dominante tende a assimilá-la, sutilmente enfraquecendo, distorcendo

da pobreza. (Alguns podem debochar, dizendo que os principais nomes beat aca-

ou mesmo algumas vezes invertendo seus memes, tirando deles seu poder subver-

baram conseguindo uma situação econômica confortável como fruto de seus escri-

sivo. O establishment força a incorporação do discurso contracultural em sua pró-

tos e conferências. Contudo, Allen Ginsberg foi o único que chegou a correr o

pria propaganda, ao mesmo tempo em que o poder econômico reduz a arte e a

risco de ter uma renda verdadeiramente alta, e ele torrou a maior parte do seu

estética çontracultural a mercadoria de consumo de massa. Theodore Roszak es-

dinheiro.) Mas a maioria dos beats permaneceu nas cidades em vez de pegar o

creve em The Making of Counter Culture que "é o experimentalismo cultural dos

caminho das montanhas. Da mesma forma, as invasões dos punks, as comunas

jovens que freqüentemente corre o maior risco de exploração comercial - e,

"hippies" urbanas e a ocupação ilegal de armazéns por participantes de raves

assim, de ter a força de sua dissensão dissipadâ: O filósofo da Nova Esquerda Herbert

abriram "zonas autônomas temporárias"

Marcuse chamou esse processo de cooptação.

libertação do reino das leis

lugares e momentos de autoconcedida

no coração do poder hegemônico.

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UMA OUTRA FORMA DE

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

HUMANA

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A generosidade é outra característica importante e quase universal da contracultura. Abraão abriu sua tenda para alimentar os pobres. O bodisatva zen

século XVIII. Nos anos 1960, o humor estava no cerne do ativismo radical dosyippies de Abbie Hoffman. Os yippies levaram as autoridades à loucura tentando fazer

leva uma vida de trabalho, sem sucumbir à hipocrisia caritativa. Gertrude Stein e Ezra Pound deram apoio a artistas que na Paris do início do século XX buscavam

"levitar o Pentágono': levando um porco para as ruas de Chicago como seu candidato à Presidência em 1968, jogando notas de um dólar do último andar da Bolsa de

superar limites. As contraculturas tendem a dar mais valor à humanidade que à propriedade, e muitas amam acima de tudo abrir mão do que têm. Outras

Valores de Nova York e realizando outros atos políticos absurdos numerosos demais

contraculturas exprimem sua generosidade por intermédio do impulso prometéico de partilhar democraticamente descobertas e invenções tecnológicas, idéias, visões e obras de arte. O famoso slogan hacker "A informação quer ser livre" é basicamente um conceito contracultural fundamental.

para serem relacionados. Os Merry Pranksters de Ken Kesey levaram muitos jovens americanos a um país das maravilhas de LSD estridente e sublimemente tolo. E no final dos anos 1960, os artistas mais populares do mundo, os Beatles, lançaram uma avalanche de canções maliciosas repletas de piadas e duplos sentidos psicodélicos. Hoje, ravers divertidos se vestem como crianças em uma festa de aniversário em algum futuro ciência-ficcional, usando luzes brilhantes, acessórios iridescentes e chupando chupetas fluorescentes penduradas em seus pescoços. A perseguição não conseguiu dar um fim à diversão irreverente dos contra-

As personalidades dos contraculturalistas

culturalistas dos anos 1960. Os acusados no julgamento dos Sete de Chicago transformaram as audiências em uma escandalosa comédia - mesmo quando a sua

You see this one-eyed midget shouting the word "now". Bob Dylan

liberdade estava em jogo. Timothy Leary, repetidas vezes detido pelas autoridades,

Contraculturalistas costumam ser debochados, boêmios e libertinos. Essas qua-

sempre dava um sorriso selvagem para as câmeras. A famosa imagem de um manifestante colocando uma flor no cano do rifle de um soldado é uma arquetípica

lidades subvertem análises sérias, mas não devemos reduzir a importância dessas sub correntes estilísticas. Os comportamentos divertidos e a natural sensualidade

reação serena à autoridade implacável. Para alguns cidadãos pós-modernos embotados sob outros aspectos - que há

encontrados nas contraculturas através dos tempos são, de certa forma, os ingredientes especiais que tornam muitas contraculturas atraentes.

muito suportaram a total liberdade de expressão e a morte tanto da ideologia quanto de Deus (o convencional monoteísta) -, é apenas o hedonismo de alguns de nossos

Moleques, bufões, enigmáticos contadores de histórias e corajosos desafiadores de tudo aquilo que é pomposo habitam muitas de nossas histórias. A brincadeira contracultural representa a recusa antiautoritária a levar muito a sério qualquer pessoa, ideologia ou código de comportamento.

contraculturalistas que ainda incomoda. A honestidade nos obriga a admitir que os estilos de vida libertinos tendem a produzir resultados ambíguos. O filósofo do sécu-

Entre os socráticos, recordamos as travessuras de cunho filosófico que Diógenes fazia na academia de Platão. O humor era um instrumento para transmitir sabedoria profunda nos ensinamentos do taoísmo, do sufismo e do zen. As histórias de todas essas tradições se baseiam, de forma muito semelhante, em perturbadoras piadas existenciais que modificam as percepções do ouvinte. Transformar o porto de Boston em uma gigantesca xícara de chá para debochar do governo britânico foi ao mesmo tempo um ato de radical desobediência civil e uma fina ironia da parte dos contraculturalistas revolucionários americanos do

lo XIX S0ren Kierkegaard se envolveu em um estudo que tentava mostrar que um estilo de vida voltado para o prazer era insustentável. O grande boêmio decadente Oscar Wilde exprimiu suas próprias ambigüidades no clássico O retrato de Dorian

Gray. Ao longo da segunda metade do século XX, os conservadores se queixarame não sem motivo - de alguns dos resultados mais sórdidos da boêmia massiva. As liberdades contraculturais podem abrir caminhos para o bem-estar que não são reconhecidos pela cultura hegemônica -, mas também podem produzir um irresponsável descaso para consigo mesmo e os outros. A liberdade de criar a si mesmo de novas formas e a liberdade de destruir a si mesmo por intermédio de mecanismos socialmente inaceitáveis foram evidentes em Haight-Ashbury nos anos

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

UMA OUTRA FORMA DE EXCEUNCIA HUMANA

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1960. Enquanto multidões de haightsters faziam ioga, aderiam ao vegetarianismo e

contracultura!, portanto é preciso ter uma perspectiva de como elas se encaixam

utilizavam cuidadosa e conscientemente plantas e substâncias químicas expansoras da consciência para a descoberta pessoal - todas essas práticas de que a cultura hegemônica americana mal tinha ouvido falar -, um igual número estava sendo

no quadro contracultura!. Na contracultura desde os beats, as chamadas drogas pesadas- estimulantes e narcóticos como anfetaminas, heroína e cocaína - ocasionalmente estimularam

vítima de heroína, metanfetamina e doenças sexualmente transmissíveis, questões igualmente distantes da cultura de classe média. A liberdade de explorar modos de

um frutífero frenesi criativo (alguma poesia beat) ou criaram um contexto para histórias de hilariante morbidez e engenhosa melancolia (William Burroughs).

vida alternativos se manifestou na forma de uma mistura complexa de tendências opostas. Alguns junkies se transformaram em iogues; alguns iogues se tornaram junkies; e outros sentavam humildemente na posição de lótus tomando pico. Mesmo

Essas drogas foram utilizadas com prazer e aparente impunidade por alguns. Mas em função das síndromes de desintegração freqüentemente associadas ao uso prolongado, tais drogas normalmente prejudicaram o projeto de dotar o impulso

alguns que praticavam recém-descobertos métodos de ínvestigação pessoal e bemestar o faziam de uma forma destrutiva. Vegetarianos se privavam de proteína. Adeptos da meditação e viciados em ácido se permitiam passar por lavagens cerebrais em

contracultura! de ação efetiva e formas de vida sustentáveis. Por definição, a contracultura luta pela liberdade, enquanto o vício em drogas é um tipo de escravidão. Nesse sentido, o vício em drogas pode ser considerado um anátema de contracultura,

cultos deturpados ou psicóticos. Aqueles que buscavam a espiritualidade passaram por tantas permutações do novo misticismo tão hipocritamente que se tornaram rígidos e opressivos "fascistas da iluminação':

apesar de sua ampla presença em recentes episódios contraculturais. Há um longo histórico sobre a utilização de plantas psicoativas (expansoras da

Se é desejável seguir os impulsos libertinos contraculturais - em comparação

tuais e religiosas e poderes curativos xamânicos, permitindo que indivíduos e grupos tenham acesso ao reino numinoso sem a intermediação de nenhuma autorida-

com caminhos de maior disciplina pessoal -, isso é, em última instância, uma questão pessoal. A intensidade da experiência deve ser privilegiada em detrimento da saúde e da longevidade? Jack Kerouac escreveu: "Para mim as únicas pessoas são as loucas, as que são loucas para viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, que querem tudo ao mesmo tempo, aquelas que nunca bocejam nem dizem um

consciência) como psilocibina, peiote e maconha para obtenção de visões espiri-

de religiosa. Essa história é amplamente ignorada na cultura hegemônica, mas os leitores podem aprender tudo o que precisam saber simplesmente lendo a obra de Huston Smith Cleansing the Doors of Perception: The Religious Significance of

Entheogenic Plants and Chemicals.

lugar-comum, mas apenas queime, queime, queime:' Será que o caminho de exces-

No que diz mais respeito à nossa história, estados alterados de consciência

sos pode realmente levar ao palácio da sabedoria ou- como no caso de Jerry Garcia e outros psicodelistas veteranos que acabaram armando suas barracas nas terras de Oblívio -vice-versa?

algumas vezes podem ajudar as pessoas a conceber verdades alternativas ou deixá-

Contracultura e drogas em perspectiva O uso de drogas, claro, é o grande bicho-papão, a questão polêmica que está à espreita em qualquer discussão sobre contracultura contemporânea. O que surpreende, talvez, é o grau em que o uso de drogas não é fundamental para essa exploração (pelo menos não até que cheguemos ao século XX). Mas plantas e substâncias químicas que afetam a mente realmente aparecem ao longo da história

las abertas a múltiplas perspectivas. Bruce Eisner e Peter Stafford descreveram na revista High Frontiers a utilização de numerosas drogas alteradoras da consciência como sendo "como trocar os filtros de percepção em sua câmera para dar a você um grande número de retratos da realidade". Psicodélicos como LSD, mescalina e, mais tarde, MDMA (ou ecstasy), embora certamente apresentem alguns riscos, foram um combustível para o impulso contracultura! ao iluminarem visões utópicas, inspirarem desvios artísticos e exporem a realidade consensual como um imperador bufão com pés de barro e sem roupas. Mesmo o lado escuro da experiência psicodélica deu sua contribuição, estimulando o desejo por mudanças radicais urgentes ou apresentando os horrores da vida moderna nas imagens vívidas e pulsantes de uma viagem centrada em realidades sombrias.

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Nesses contextos, a utilização de certas plantas e drogas, particularmente mas não necessariamente as psicodélicas, deve ser compreendida como indício de um exemplo particularmente incontido de contraculturalidade. Ao mesmo tempo, vamos deixar claro que esse nem sempre é o caso para todos os indivíduos e culturas, histórica ou atualmente. Mesmo as contraculturas relativamente saturadas de drogas de décadas recentes deram lugar a contraculturalistas que não estão nem um pouco interessados em drogas. Por exemplo: membros do movimento situacionista francês - uma influência fundamental em grande parte da contracultura jovem dos anos 1960 - claramente evitaram drogas. Da mesma forma, o influente elemento "caretâ' do punk rock hardcore do início dos anos 1980 foi uma voz poderosa contra as drogas, embora seus membros normalmente demonstrassem uma tolerância adequadamente contracultural para com os usuários de drogas. No melhor dos casos- mais uma vez, principalmente, mas não exclusivamente com os psicodélicos -, o uso de drogas pela contracultura vai além da usual busca química por diversão, alivio ou esquecimento. Em vez disso, torna-se uma manifestação da eterna adesão da contracultura às novas idéias, tecnologias, experiências e formas de viver. Foi nesse contexto que nasceram obras como As portas da percepção, de Aldous Huxley, Breaking Open the Head, de Daniel Pinchbeck, e a música "Tomorrow Never Knows': dos Beatles, demonstrando a mesma grandeza que tão freqüentemente surge quando o impulso contracultural é seguido com paixão e coragem.

A contracultura ainda é contra? Hoje, a cultura ocidental e mundial é uma confusão de valores. Mas quem hoje pode negar que- em meio à caótica complexidade desta Nova Desordem Mundial- cada vez mais indivíduos ampliaram a liberdade individual de não se adequar a convençÕes e de transmitir suas próprias idéias excêntricas? Antes da popularização da internet e da grande disponibilidade de outras formas de tecnologia de comunicação, a maioria dos cidadãos ocidentais não tinha meios adequados de se expressar ou de espalhar os resultados. Hoje, embora a liberdade de pensamento e expressão, o questionamento da autoridade, a mudança constante,

UMA OUTRA FORMA DE EXCELÊNCIA HUMANA

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a liberdade sexual e a maioria dos outros aspectos da contraculturalidade não sejam do gosto da maioria, essas liberdades são permitidas e estão disponíveis a um enorme número de cidadãos globais, se não à maioria deles. Talvez a contracultura já não seja contra. Por outro lado, continuamos a experimentar ataques à liberdade. Conservadores culturais estão particularmente alertas contra o sucesso conseguido pela contracultura em afrouxar os laços da população com estruturas de crença rígidas e absolutistas. Os conservadores consideram que esse "relativismo moral" é responsável por um vácuo ético. Eles afirmam que em uma sociedade de massa as pessoas precisam de regras e códigos precisos segundo os quais viver- preferencialmente estabelecidos pela autoridade religiosa e reforçados pelo temor de um Deus julgador e punitivo. Eles consideram que a falta de uma ideologia social claramente definida e inflexível é responsável pela anomia social e a decadência, uso de drogas, abusos sexuais, gangsterismo e a grosseria geral que hoje reina na cultura ocidental. Eles culpam os anos 1960. Embora possamos relacionar muitos outros fatores que são igualmente responsáveis por todo esse comportamento perturbado e perturbador que preocupa qualquer um que queira viver em paz e prosperidade, e não apenas os conservadores culturais, não podemos negar que a liberdade desempenha um importante papel em todo esse "caos". Apesar da aparente adoção da doutrina iluminista da liberdade individual no século XVIII, desde então a maioria das pessoas viveu em sociedades e comunidades que impuseram convenções sociais muito bem definidas e ofereceram a elas papéis produtivos para toda a vida. À medida que as convenções, os papéis, as comunidades e as famílias que sustentaram estáveis identidades conformistas ruíram sob o poderoso tufão do desenvolvimento tecnológico, da interpenetração cultural global e da liberdade individual, muitos - talvez a maioria - dos cidadãos pós-modernos se descobriram perdidos. A idéia taoísta de pegar a onda da constante mudança; o método científico de buscar experimentalmente o conhecimento em vez de chegar à certeza; a herança surrealista de transformar o caos em arte e "significado sem sentido" - essas formas de ver e ser no mundo ainda não são compreendidas pela maioria das pessoas que vivem nas terras (relativamente) livres. E mesmo quando elas compreendem intelectualmente, não é fácil viver verdadeiramente livre.

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

O verdadeiro caminho contracultura! é difícil. É incerto se uma maioria pode ser feliz em algum tempo próximo Vivendo sem algum tipo de sistema de crença externamente determinado. A libertação da certeza e dos rígidos códigos de comportamento sem dúvida continuará a produzir confusão, inquietação e um comportamento destrutivo em muitos. E no nível da massa, nos Estados Unidos pós-li de setembro, todo o projeto de espalhar e expandir as fronteiras do nãoconformismo e da autonomia se tornou muito mais complexo. Talvez o melhor que a contracultura possa esperar seja perseverar, embora outra visão identifique oportunidades para mudanças radicais em meio à turbulência. Qualquer que seja o caso, pegue a onda!

PARTE II

Superando os intervalos de tempo e lugar

CAPÍTULO TRÊS

Politicamente incorreto Sócrates e a contracultura socrática

Eu não me importo com as coisas com as quais a maioria das pessoas se importa - conseguir dinheiro, ter uma casa confortável, um alto posto militar ou civil e todas as outras atividades, encontros políticos, sociedades secretas e organizações partidárias que existem em nossa cidade. Sócrates, por intermédio de Platão Sócrates sustentava que o objetivo da vida humana é buscar a verdade da natureza das coisas como elas são, não como elas são interpretadas pela mente convencional. (... ) Como o Flautista de Hamellin, Sócrates foi um agente de juvenilização, acusado por mentes conservadoras de praticar o perigoso jogo de atacar toda a autoridade em um círculo de jovens impressionáveis e de tirar do Estado a estabilidade da tradição ( ... ) seu perturbador efeito sobre os jovens e sua crítica persistente eram intoleráveis para qualquer establishment. Timothy Leary Afinal, quem foi Sócrates? Um grego com uma argumentação muito boa que tinha uma esposa chata e que finalmente foi obrigado a cometer suicídio porque era um estorvo! (... ) Evidentemente, há muito tempo Sócrates deu vida a algo muito explosivo. Dinamite intelectual! Uma bomba moral! Winston Churchill

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

POLnJCAMENTErNCORRETO

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Em 399 a.C., a primeira democracia do mundo ocidental, em Atenas, Grécia,

casaco, que usava todo o tempo, e freqüentemente precisava de um banho. Comé-

executou um homem de setenta anos de idade pelo crime de filosofia. As verdadei-

dias (a diversão mais popular de Atenas) freqüentemente ridicularizavam sua apa-

ras acusações eram: "Sócrates é culpado de recusar-se a aceitar os deuses reconhe-

rência feia, rude, sua baixa estatura e seus hábitos peculiares.

cidos pelo Estado e de introduzir outras novas divindades. Ele também é culpado

Como ele escolheu não colocar no papel suas idéias e experiências, tudo o que

de corromper a juventude': Na verdade, as acusações foram apresentadas, pelo me-

sabemos de Sócrates vem das muitas, porém algumas vezes contraditórias, histó-

nos em parte, como vingança por um conflito político no qual Sócrates não desem-

rias, transmitidas por muitos de seus seguidores, principalmente Platão e Xenofonte.

penhou diretamente nenhum papel.

"Sócrates é um tema muito difícil para os historiadores': escreveu Bertrand Russell.

No dia em que ele iria morrer bebendo cicuta, jovens admiradores se reuniram ao

"Há muitos homens acerca dos quais é certo que sabemos muito pouco, e outros

redor dele, como tinham feito por quarenta anos, para falar da vida e de seus signifi-

homens acerca dos quais é bem certo que sabemos muito. Mas no caso de Sócrates,

cados mais profundos e verdadeiros. Embora alguns de seus seguidores chorassem,

a incerteza é se sabemos muito pouco ou se sabemos muito:'

Sócrates mantinha face à morte o mesmo espírito brincalhão de questionamento

Nós sabemos que nasceu de uma família relativamente humilde em Atenas,

reflexivo que apresentara durante toda a vida. O velho sábio conduziu seus jovens

Grécia, em 470 a.C. Acredita-se que seu pai trabalhava com cantaria. Ele teve uma

seguidores por uma discussão dialética acerca de justiça, morte e vida após a morte, e

criação de classe média - nem era membro da aristocracia nem fazia parte da

disse a eles que ansiava ir para um lugar "em que eles não assassinassem pessoas por

maioria de pobres. Herdou do pai uma casa modesta, que iria oferecer a ele todo o

fazer perguntas': Esse foi o final da vida de Sócrates, o grego, o homem que introduziu

conforto e a segurança de que parecia precisar. Após um período como soldado na

o pensamento crítico independente na cultura ocidental, tornando-se uma influên-

Guerra do Peloponeso - em que chamou a atenção por sua capacidade física e pela

cia que é vital ainda hoje. A brava serenidade quase cristã que ele demonstrou em seus

disciplinada capacidade de ignorar os extremos desconfortos que provocavam

momentos finais é tão importante para a lenda de Sócrates quanto seus ideais,

queixas dos outros soldados -, talvez tenha feito uma rápida tentativa de seguir a

exemplificando a autenticidade que ele pregava.

profissão do pai. Mas Sócrates rapidamente abandonou qualquer idéia de seguir

Pelo menos esta é uma forma de vê-lo. A contracultura socrática não é uma que

uma carreira. Durante a maior parte de sua vida escolheu viver como um filósofo

os filhos da democracia possam facilmente endossar. As questões acerca de classe e

andarilho sem tostão (embora não um sem-teto). Passava os dias na ágora e nos

elitismo levantadas pela história de Sócrates necessariamente levarão esta investi-

ginásios falando com todos e qualquer um, e freqüentemente passava as noites

gação a um exame talvez desconfortável do conflito inerente entre o inconformismo

como convidado de amigos aristocratas, conversando e bebendo.

exuberante e "auto centrado" (isto é, centrado no indivíduo) e "as pessoas comuns".

A Atenas do século V a.C. era uma cidade que vivia o esplendor da era de Péricles. Recentemente livres das ameaças ao desenvolvimento independente pela decisiva vitória sobre os exércitos persa e cartaginês, os gregos tinham adotado um novo

Um bando de gregos sentados conversando

sistema marcante: a democracia. Cidadãos do sexo masculino de todas as classes tinham não apenas direito ao voto, mas uma participação direta na elaboração das

Sócrates era um cara esquisito, um personagem urbano, um famoso excêntrico,

políticas que ainda não foi alcançada pelas democracias de hoje. Os cidadãos nor-

admirado por alguns, mas uma figura engraçada para as massas. Incapaz de ter um

malmente podiam falar livremente (embora, como veremos, ainda não tivesse sido

comportamento social comum, ele freqüentemente era visto em público sentado

desenvolvido um conceito de liberdade civil individual). A cultura ateniense exercia

ou de pé inteiramente imóvel por horas, mergulhado em seus pensamentos. Quan-

sua liberdade para buscar novos patamares em arte, arquitetura e erudição.

do não estava inteiramente desligado, ele passava todo o tempo caminhando des-

Lamentavelmente, Atenas era guerreira e imperialista, colonizando

calço por Atenas ansiosamente procurando uma conversa. Ele possuía apenas um

impiedosamente outras cidades-estado gregas e mantendo um conflito perpétuo

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

POLITICAMENTE INCORRETO

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com a igualmente poderosa Esparta pelo domínio do restante do mundo grego. Os

batalha, com o alto desempenho em eventos esportivos e com a generosidade no

inimigos derrotados eram transformados em escravos. Ninguém nessa grande de-

serviço público. A aristocracia buscava a excelência principalmente para afirmar sua

mocracia chegou a questionar a instituição da escravidão, nem mesmo Sócrates. Enquanto os inimigos espartanos simbolizavam uma cultura rígida na qual o

superioridade sobre o homem comum. Por esse mundo de "pessoas bonitas" vagava o feioso filósofo itinerante Sócrates.

desfrute dos prazeres da carne e o bem-estar material eram proibidos, Atenas era

Talvez ele tenha sido atraído pela abundância de comida e bebida (embora pregas-

culturalmente liberal, se não libertina. Um animado mercado livre (cerâmica, pei-

se e praticasse a moderação). Sócrates definitivamente foi atraído pela idéia de

xe, artesanato) atraía visitantes de todos os portos próximos. Muitos atenienses

buscar a excelência. Ele adotaria a idéia em um sentido pessoal, aplicando-a à vida

participavam de festas noturnas. O vinho jorrava em festas públicas (gymnasia) e

da mente. E, sem dúvida, todos aqueles rapazes bonitos desempenharam um papel

privadas (symposia ). Além do prazer da comida e do vinho, essas festas giravam em

em introduzi-lo no ambiente aristocrático.

torno de conversas e debates públicos- mas também incluíam música, dançari-

Embora o grupo básico fosse formado por alguns poucos insatisfeitos itinerantes

nas e comédias. Cidadãos do sexo masculino, fossem eles casados ou não, eram

como ele mesmo, os seguidores de Sócrates - a contracultura socrática - seriam

considerados habilitados a uma plena liberação sexual, que incluía mulheres sol-

encontrados basicamente entre aqueles filhos da aristocracia. Isso garantiu a ele não

teiras, prostitutas e -principalmente - seus colegas homens. A beleza masculina

apenas o deboche e o desprezo das massas, mas também algumas suspeitas entre pais

era valorizada, particularmente entre a aristocracia.

e outros membros da elite. Claramente, assim como muitos contraculturalistas ao

As mulheres, por outro lado, não mereciam um tratamento tão liberal. Elas eram excluídas do âmbito público e não tinham direito à educação. Por volta dos

longo da história, o pensador de bom coração chamado Sócrates estava destinado a figurar nas listas negras de todas as facções políticas e econômicas.

14 anos de idade, a garota ateniense devia se casar, por acordo, com um homem com aproximadamente o dobro de sua idade. As mulheres permaneciam dentro de casa, cozinhavam e teciam. Apenas Sócrates argumentava que as mulheres eram iguais e

A filosofia socrática: pense por si mesmo e questione tudo

deveriam ser tratadas como tal, embora não haja indícios de que ele tenha se preocupado em criar confusão por causa disso.

Uma vida não examinada não merece ser vivida.

Apesar da democracia, os aristocratas atenienses do sexo masculino viviam em

Sócrates, por intermédio de Platão

um mundo diferente daquele do cidadão médio. Na cultura rica, a homossexualidade era particularmente endêmica, normalmente unindo homens mais velhos e rapazes

Sócrates foi, acima de tudo, um crítico. Questionou tudo e todos e nunca rece-

adolescentes. E seus symposia, ou festas, eram privados e selecionados. Como qual-

beu uma única resposta que o satisfizesse. Não excluía a si mesmo de sua total

quer exclusividade era uma espécie de ofensa na hiperdemocrática cidade-estado, a

rejeição ao que passava como sendo conhecimento humano. Tendo sido declarado

maioria dos atenienses imaginava os symposia dos aristocratas como cenas deca-

o homem mais sábio vivo pelo oráculo de Delfos, ele argumentava que tinha rece-

dentes de embriaguez, exploração sexual e traição política à democracia. Essa visão,

bido a honra apenas por ser sábio o suficiente para saber que não sabia nada.

embora exagerada, não era inteiramente incorreta.

Embora estivesse

uma filosofia, que envolvia um processo dialético

Os aristocratas gregos associavam o belo ao bom. A belos rapazes bissexuais bem-

para buscar a verdade e conquistar o autoconhecimento, Sócrates não estabeleceu

nascidos, se exibindo em gymnasia e sobre cavalos, era concedida uma espécie de superioridade moral em relação à media. Esses jovens aristocratas competiam entre

uma doutrina. No século XX, o revolucionário marxista Vladimir Lenin (que achava saber

si exibindo arete (excelência). A excelência era demonstrada com a bravura em

quase tudo) disse que a forma de fazer com que as pessoas compreendessem era

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

POLITICAMENTE INCORRETO

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"explicar, explicar e então explicar novamente': Sócrates, cujo objetivo era levar as

com verdade, etc.? E a idéia precisava ser provada. Como George Santayana afirma-

pessoas à autocompreensão, expondo as falácias do que elas achavam saber, poderia

ria mais tarde, "Sócrates resgatou a lógica e a ética da autoridade para sempre".

ter dito: "questionar, questionar e então questionar novamente': Isso é o que passou

Mas, embora duvidasse de- e até mesmo ridicularizasse- todo o conhecimen-

a ser conhecido como método socrático em estado bruto, como praticado pelo

to existente, Sócrates acreditava- como Fax Mulder- que a verdade está lá fora ...

próprio homem- incansavelmente questionando e ridicularizando cada resposta no contexto de mais uma pergunta.

Em algum lugar. Ele não era um completo relativista filosófico. Esse papel era ocupa-

O estudioso de Platão Walter J. Black descreve o método socrático:

do pelos sofistas, outro grupo de professores andarilhos que tinham seu lar em Atenas. Os sofistas negavam que existisse qualquer verdade absoluta e imutável, qualquer certo e errado absoluto. Eles consideravam a verdade, a justiça e todos os outros

Comece com uma pergunta simples, sugerida por algo que uma outra

valores como sendo algo consensual-social - acordos temporários sem qualquer

pessoa tenha dito. Peça a ela inocentemente para explicar o que pensa

referência definitiva ou fonte de legitimidade. Na verdade, os sofistas foram, de mui-

ser o significado de alguma palavra familiar, o nome de algo imaterial,

tas formas, os primeiros "pós-modernistas" ocidentais. Contudo, os sofistas não se

mas comumente visto como sendo algo importante - amizade, cora-

interessavam por obscuras teorizações acadêmicas ou por demonstrar preconceitos

gem, justiça, verdade. Mostre a ela, por intermédio de mais questões

contra culturas estrangeiras. Atenas era uma sociedade litigiosa e altamente politizada.

perscrutadoras, como é estúpida a sua definição convencional e estimu-

Cidadãos comuns podiam levar qualquer um à corte, e todos participavam de debates

le seu interesse em tentar alguma coisa melhor, alguma coisa que atinja

políticos públicos e dos processos de tomada de decisões. Assim, os professores sofis-

o âmago do problema dos valores humanos. Mesmo que ela não che-

tas aplicavam pragmaticamente sua crença na elasticidade dos conceitos básicos.

gue a nenhuma conclusão, tanto ela quanto todos os que estiverem

Eles eram pagos por seus jovens alunos para ensinar a eles a arte da persuasão.

ouvindo terão se dado conta, pelo menos por um instante, quão tola-

Sócrates considerava a abordagem dos sofistas ignóbil e superficial. Sócrates

mente consideraram como sendo absolutos certos hábitos, opiniões e

percebia que, mais que questionar valores em busca de algo melhor, uma espécie de

atitudes que eram preconceituosos, prejudiciais e falsos, e como pode

excelência intelectual, os sofistas estavam apenas defendendo e praticando o opor-

ser emocionante e inspirada a busca pela verdade e a honestidade.

tunismo na ausência de valores absolutos. Como não havia verdade, o sofista esperto podia usar a retórica e uma lógica sedutora para seguir seu caminho e vencer

Na democracia ateniense, os cidadãos eram livres para ter opiniões, mas o valor dessa liberdade era limitado, porque na verdade ninguém sabia como pensar por

uma discussão, sem nenhuma preocupação com a verdade. Assim, embora partilhasse com os sofistas a obsessão por desafiar e mesmo

sua própria conta. Até Sócrates, e outra escola filosófica contemporânea, a dos

demolir a sabedoria recebida, para Sócrates o processo de peneirar e descartar

sofistas, ninguém tinha postulado que as afirmações recebidas acerca da natureza

falsidades era parte de uma profunda busca intelectual pelo conhecimento, mais do

das coisas que tinham sido passadas de geração para geração eram inadequadas ou

que algo a ser usado para obter vantagens pessoais. Em uma passagem de Platão,

passíveis de discussão. Como Aristóteles, um estudante de Sócrates de segunda

Sócrates explica por que sua idéia de que a verdade pode ser finalmente conhecida

geração (ele foi aluno de Platão, seguidor de Sócrates) iria afirmar: "Há duas coisas

serve melhor à humanidade que a afirmação dos sofistas de que não pode: "Seremos

que com justiça podem ser creditadas a Sócrates: o raciocinio indutivo e a definição geral':

melhores, mais valentes e menos desamparados se pensarmos que devemos ques-

Em outras palavras, Sócrates ensinou os gregos a pensar e a pensar sobre o

tionar do que seríamos se aceitássemos a vã ilusão de que não há conhecimento e nenhum valor em tentar conhecer':

pensamento. Valores abstratos que receberam rótulos, como verdade, justiça, amor,

É dificil para nós, hoje, compreender como era radical a mensagem de Sócrates.

bondade e beleza, já não podiam ser usados simplesmente. O que você quer dizer

Em um sentido muito real, Sócrates foi o primeiro indivíduo. Até os socráticos, a

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

POLITICAMENTE INCORRETO

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cultura coletiva da cidade-estado, fosse ela autocrática ou democrática, era o lo cus do

das outras pessoas para dar conselhos particularmente, mas não me anime a me

pensamento e da identidade. Você era aquilo que sua tribo era, mesmo que você fosse

colocar frente à sua assembléia e aconselhar o Estado". Como destacou o grande

o líder. O indivíduo funcionava como uma molécula indistinta na entidade singular

jornalista americano de esquerda I. F. Stone em seu livro O julgamento de Sócrates,

que construía uma comunidade em particular, programada pelos hábitos, rituais,

o uso que ele faz da frase "sua assembléia'' é revelador. A assembléia era de todo o

crenças e papéis atribuídos por aquela cultura. Sócrates foi o primeiro a sugerir que

povo de Atenas, mas Sócrates se colocava à parte da massa politizada.

um indivíduo poderia "conhecer a si mesmo': de que potencialmente havia algo de

Ele era fundamentalmente um dropout político que criticava todos os sistemas.

único em todos os seres humanos. Nas palavras do illósofo austríaco do século XIX Frank Brentano: "Ele arrancou o indivíduo de seu contexto histórico':

Mas, como a maioria dos dissidentes e intrometiàos naturais, ele certamente dirigiu seus opróbrios mais duros contra a sua própria sociedade, que por acaso era

Portanto - pensando sobre como pensar -, Sócrates não apenas fez nascer a lógica aristotélica que se tornaria o modelo dominante de investigação illosófica

tura quanto como resultado de uma série de incidentes acontecidos durante a sua

pelo menos até o século XX (e que, por sua vez, iria produzir o eternamente aplicá-

vida- como um espalhafatoso antidemocrata.

uma democracia participativa.Assim, o Sócrates político emerge- tanto da litera-

vel método científico). Sócrates nos deu a discreta psique humana, em essência

Qualquer discussão do problema político socrático deve, antes de tudo, dar

inventando a psicologia e o potencial humano. Nós devemos toda a noção de introspecção, como ela é compreendida no Ocidente, a Sócrates.

conta das distinções entre Sócrates e a grande estrela entre seus alunos, Platão,

E podemos ir ainda mais longe. Como a psicologia hegemônica se transformou

creveu nada. Após a morte de Sócrates em 399 a.C., Platão deu início à sua longa

uma tarefa que é tecnicamente impossível. Sócrates, como já notamos, nunca es-

em métodos de ajudar os indivíduos a se conformarem e se adaptarem aos costu-

carreira de illósofo. E ele escreveu tudo. Ele escreveu muito. Embora tenha sido

mes sociais e aos acordos de sua época- ou pelo menos claramente o fazendo por

inspirado por Sócrates, é consenso que ele também desenvolveu suas próprias

intermédio do stress diário da crescente estranheza -, Sócrates pode ser visto

idéias. Afinal, Platão foi o criador e principal professor da primeira academia pú-

como o padrinho da psicologia alternativa. Ele foi o primeiro malandro ocidental

blica do mundo, portanto sua evolução foi acompanhada. De fato, as diferenças

a utilizar terapia de choque para desprogramar indivíduos das crenças e dos hábi-

entre Platão e Sócrates foram destacadas por ninguém menos que Aristóteles, o

tos de sua cultura, um projeto hoje associado a gente como Georges Gurdjieff,

qual, como aluno do instituto de Platão, tinha algumas informações privilegiadas.

Aleister Crowley, R. D. Laing, William S. Burroughs e Genesis P-Orridge. Ter a

Mas Platão usou Sócrates como porta-voz em todas as suas obras, sem estabele-

posse de sua própria psique independente continua a ser algo controverso, e algumas vezes passível de punição, ainda hoje.

cer uma distinção entre suas próprias idéias e aquelas atribuídas a seu principal personagem, "Sócrates': Estudiosos fazem conjecturas acerca de onde poderia estar a linha divisória entre Sócrates e Platão. Tudo não passa de especulação, mas talvez possamos chegar a algumas conclusões aceitáveis considerando uma enorme dife-

Elitista contracultura}

rença de temperamento entre os dois homens.

É no campo da filosofia política que a história de Sócrates se torna mais compli-

em nenhuma espécie de função oficial, e rejeitava a noção de sucesso material.

cada. Está claro que Sócrates era basicamente apolítico. Seus vários alunos relatam

Recusava qualquer pagamento por seus ensinamentos. Levava uma vida de com-

repetidamente que ele rejeitava a participação na política, em benefício da "perfei-

pleta espontaneidade. Caminhava e conversava. Especulava em voz alta acerca de

Sócrates era um excêntrico extremo, um dropout. Ele não admitia se engajar

ção da alma''. Na Apologia de Platão - o discurso platônico que a maioria dos

qualquer idéia Era um provocador, que brincava, implicava e intencionalmente

estudiosos e historiadores acredita ser o mais próximo das palavras de Sócrates-,

chocava os ouvintes. Nada fugia à sua análise, embora nada pudesse ser considera-

o personagem Sócrates diz: "Pode parecer estranho que eu interfira nos problemas

do verdadeiro.

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Platão, diferentemente, era vistoso, muito sociável e quase conformista - um filho bem criado da aristocracia. Ele tinha as habilidades burocráticas necessárias

POLITICAMENTE INCORRETO

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saudável e um sistema de seguridade social decente que permitia aos filhos da classe média e mesmo de alguns pobres o luxo de "sair em busca de si mesmos':

para fundar e administrar a primeira academia do mundo. Fazia palestras em um

Ainda assim, o elitismo, de um tipo ou de outro, é inegavelmente um elemento

ambiente formalmente institucionalizado, recebendo dinheiro por sua sabedoria. E ele fixou suas idéias na forma estática impressa.

básico da contracultura. Qualquer livre-pensador não-conformista honesto deve

Provavelmente há uma razão para Sócrates não ter escrito nada. Ele mesmo disse

nação dos julgamentos políticos das massas democráticas. De fato, o próprio nome

admitir algum grau de desprezo pela média, e deve experimentar períodos de alie-

que não sabia nada. O que interessava a Sócrates era o processo. Cada discussão na

contracultura implica um assalto em oposição à suposta cultura popular do povo. E

qual ele tomava parte era uma experiência, e o discurso podia se mover em qualquer

sempre que alguém se ergue e diz "eu acho que todas as suas crenças comumente

direção, sobre qualquer terreno, em sua tentativa de chegar à verdade. E mesmo

aceitas e bem guardadas são besteira e eu tenho uma abordagem melhor': está

quando registrada nos escritos do sério Platão, a satisfação de Sócrates se destaca. Ele experimenta idéias, brinca com elas. Na época em que Platão escreve A república, seu

criticando o cara comum em algum grau. Imagine-se na sociedade que Sócrates enfrentava. Não há o conceito de liber-

personagem "Sócrates" se tomara um filósofo altamente restritivo, cheio de regras,

dades civis individuais nem o de direitos civis. Há um vago conjunto de leis, mas

leis e recomendações explícitas para organizar uma boa sociedade; de fato, apresen-

essencialmente a única lei é o que quer que a maioria decida naquele dia específi-

tando em detalhes um caminho de características fascistas para a utopia.

co. Impostos são algumas vezes cobrados de indivíduos específicos por motivos

Podemos dizer com alguma segurança que este é um trabalho de Platão. Como

pessoais. E se a maioria decidir votar que piercings no nariz são feios e, portanto,

William K. C. Guthrie destaca em Sócrates, "Sua [de Sócrates] missão não era oferecer

ninguém deve usar um, você pode ser preso por esse crime. E mesmo que eles não

um corpo doutrinário positivo, mas dar aos homens suas necessidades intelectuais e

votem para banir os piercings no nariz, qualquer um pode levar qualquer um para

então convidá-los a juntar-se a ele na busca da verdade': Mas isso não deixou Sócrates

o tribunal e fazer acusações, quaisquer acusações. E cabe a um júri de quinhentas

completamente livre de problemas. O homem que escolheu partilhar sua sorte com

pessoas decidir, por maioria, não apenas sua culpa ou inocência, mas também se

os jovens aristocratas de Atenas claramente expressou algum grau de desprezo pela

usar um piercing no nariz é, de fato, um crime ou não, e se cabe a pena de morte ou

democracia e, além disso, um preconceito a favor de algum tipo de elite governante.

um soco naquele nariz. Tudo é sempre passível do voto da maioria. De fato, o

A faceta de Sócrates que talvez possamos dar crédito a Platão é que ele acreditava em

pessoal é político na Atenas do século V a.C., e agora você é capaz de perceber quão

uma meritocracia, o governo comandado por "aqueles que sabem'' como governar.

invasivo é esse conceito! Atenas também era tomada por uma infeliz patologia que se manifestou em

Isso seria coerente com o ideal aristocrático ateniense de excelência que Sócrates adotara e aplicara ao desenvolvimento da mente.

muitas culturas superigualitárias, desde a Revolução Francesa até a China de Mao,

O que temos aqui é sua básica situação da "teoria da classe ociosa': Era inevitável

passando pelo Partido Verde alemão dos anos 1970. O povo era hostil a qualquer

que o filósofo da profunda contemplação se tomasse professor dos filhos da aristo-

um que se destacasse, que conquistasse coisas demais, que fosse carismático de-

cracia de Atenas, Grécia, no século V a.C. Apenas a aristocracia tinha tempo para o

mais, que fizesse algo tão bem que fizesse as pessoas comuns se sentirem inferiores.

luxo de buscar o autoconhecimento e o crescimento pessoal. Exatamente por essa

E a vingança ciumenta era muito fácil de provocar no sistema judicial ateniense. O

razão, boêmias, contraculturas e subculturas ao longo de toda a história tenderam a

culto da excelência dos aristocratas, na verdade, era em parte uma compreensível

ser território dos economicamente privilegiados (embora, como iremos ver ao longo

revolta contra essa eliminação popular de qualquer extraordinariedade.

deste livro, alguns heróis operários corajosos e dedicados também tenham tido os

Embora a maioria de suas críticas mantivesse um tom bem-humorado, Sócrates,

seus movimentos contraculturais históricos). Um dos motivos para a contracultura

com o passar do tempo, certamente começou a se tomar amargo com a tirania da

dos anos 1960 ter se tomado tão poderosa e massiva foi a presença de uma economia

maioria. Mas não parece provável que esse filósofo de boa natureza, em sua busca

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CONTRACULTURA ATRAVES DOS TEMPOS

POLffiCAMENTE INCORRETO

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pela autêntica bondade, estivesse disposto a oprimir as massas. Sócrates estava

Democrata de Chicago, 1968), ou mesmo abatidos a tiros (Kent State, Partido dos

simplesmente tentando libertar a evolução do próprio pensamento das garras da ignorância e da reação das massas. Como destacou Bertrand Russell: "É preciso

Panteras Negras). Momentos históricos como a "revolução" da Nova Esquerda à parte, essas con-

notar que a visão que substituía o consenso de opinião por um padrão objetivo acarretava certas conseqüências que poucos estavam dispostos a aceitar. O que dizer de inovadores da ciência como Galileu?" Provavelmente era esse padrão

tradições geralmente foram menos graves durante a época contemporânea pósiluminismo, com o advento das liberdades civis, a difusão do ensino e da educação

objetivo que Sócrates estava tentando introduzir no campo político quando defendia o governo por expertise. Provavelmente foi um erro fundamental de sua parte, mas um erro coerente com o princípio da defesa pessoal contra a extensão exagerada da democracia a áreas que ficariam melhor a cargo de indivíduos. É preciso lembrar que ninguém tinha sugerido ainda um sistema em que o governo da maioria fosse contrabalançado pelos direitos individuais. A noção que um defensor da democracia poderia definir, como fez Thomas Jefferson, como '1\.quele que governa bem governa menos': teria sido completamente estranha aos atenienses. O cardápio político oferecia apenas alternativas autoritárias. Assim, enfrentamos o fato

e a evolução da tecnologia. (Essas observações ficam um pouco duvidosas particularmente no período pós-11 de setembro. Muitos de nós estão vendo com nervosismo a evolução do "novo normal" por seu impacto nas liberdades civis.) De fato, muitos contraculturalistas contemporâneos resolvem essa questão -pelo menos para sua própria satisfação - defendendo igualdade quase que unicamente no sentido de acesso a idéias e ferramentas, e mesmo desenvolvendo ferramentas que democratizem esse acesso. O computador e a internet surgiram como uma espécie de bálsamo. Por um lado, elitistas contraculturais podem alegar uma independência cada vez maior da de massa, ignorando a mídia hegemônica- criando

de que Sócrates, enquanto tentava se manter acima da briga, implicitamente se

suas próprias regiões autônomas mediadas. E, por outro lado, eles podem oferecer às pessoas comuns a oportunidade de fazer o mesmo (ou o contrário, se preferi-

aliava aos aristocratas elitistas contra a democracia. Como iremos ver, essa propensão levou a um final infeliz.

rem), tornando essas ferramentas baratas e fáceis de usar. Ainda assim, continua a haver tensões e contradições entre a natureza individualista não-conformista e o

Aqui, por intermédio do dilema de Sócrates, nós enfrentamos uma das principais contradições inerentes a uma contracultura dentro da democracia. Livres-

espírito democratizante da contracultura. Particularmente, aqueles contraculturalistas que se identificam com as visões igualitárias democráticas de

pensadores não-conformistas são marginais, estrangeiros por natureza. Vale repetir: a simples idéia de que um indivíduo, ou um pequeno grupo, possa criticar e

esquerda precisam lidar tanto com a animosidade que sentem em relação à cultura de massa quanto com a animosidade que a cultura de massa sente em relação a eles.

propor alternativas à política e à cultura da massa é elitista. As contraculturas se mantêm isoladas. Ao mesmo tempo, à medida que as contraculturas evoluíram, a maioria passou a defender alguma espécie de igualitarismo. Elas tendem a acreditar que a riqueza deve ser dividida, se não igualmente, pelo menos generosamente, e que todas as pessoas devem ser tratadas como plenamente humanas, independentemente de classe social, raça, gênero, nacionalidade, etc. Dessa forma, nós testemunhamos muitos declarados contraculturais defenderem "o povo': E também vimos que muitos desses não-conformistas são desprezados pelas mesmas pessoas que eles consideram estar defendendo. De certa forma, essa contradição chegou ao auge durante a contracultura da Nova Esquerda do final dos anos 1960, início dos anos 1970. Enquanto os novos-esquerdistas estavam cantando "poder para o povo': pesquisas mostravam que o povo defendia que eles fossem expulsos (Convenção

Mártir marrento Enquanto isso, de volta a Atenas, a violenta crítica de Sócrates à cultura de massa chega a um final infeliz, tanto para a cidade quanto para ele mesmo. Vários alunos de Sócrates e seguidores da contracultura socrática se transformaram em adultos nojentos. Alguns envergonharam a si mesmos. Outros levaram o assassinato e a tirania à sua cidade-Estado. E eles levaram o velho ffiósofo para o fundo junto com eles. Alcebíades foi o primeiro produto da contracultura socrática a cair em desgraça. Como jovem aristocrata, Alcebíades era o rapaz mais bonito de toda Atenas. Ele

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POUTICAMENTE INCORRETO

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

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também era espirituoso, um excelente esportista e tinha uma espécie de arrogância

seguidores ou acólitos do círculo socrático -

e extravagância que freqüentemente é privilégio de beleza e talento combinados

quadro. Eles também eram parentes próximos de Platão, na época um jovem mem-

dependendo de como você vê o

com juventude e riqueza. Sempre irreverente,Alcebíades era um dos poucos segui-

bro do círculo socrático.

dores de Sócrates que conseguia trocar farpas com o próprio mestre, e Sócrates

O grupo passou a ser conhecido como os Trinta Tiranos. Eles estabeleceram um

o amava por isso. Nos Diálogos de Platão, Alcebíades aparece como provavelmente o

reino de terror que, negando os direitos democráticos à maioria, era voltado prin-

jovem discípulo favorito de Sócrates.

cipalmente para os seus colegas aristocratas proprietários. Venal até os ossos, Crítias

Adulto, Alcebíades tornou-se um dos líderes militares de Atenas, mas isso não modificou seu comportamento auto-indulgente. Ele tinha um apetite sexual colos-

e companhia lançavam mão de falsas acusações e sentenças de morte judiciais para assassinar e roubar a maioria dos outros cidadãos ricos de Atenas.

sal e era um bebedor voraz. Era também um exibicionista, uma diva, com uma

Sócrates, claro, permaneceu fiel à sua natureza. Ele criticava os novos patrões,

propensão de astro do rock a pequenos atos rebeldes de comportamento anti-

assim como o fazia com os antigos patrões. De fato, uma das táticas usadas pelos

social.Assim, apesar de seu em geral excelente registro de bons serviços à socieda-

Trinta para confiscar propriedades era forçar ou intimidar cidadãos a agir como

de ateniense, ele acumulou inimigos, particularmente entre os austeros igualitaristas.

sua polícia. Os cidadãos eram enviados às casas de aristocratas de posses para acusá-

Ele finalmente se descobriu em apuros exatamente no momento em que estava

los e prendê-los por crimes. A pena de morte era imposta, e os oligarcas no poder

prestes a partir de Atenas como um dos comandantes de uma expedição militar

se apossavam da riqueza do aristocrata. Certo dia, os Trinta convocaram Sócrates

contra a Sicília. Foi acusado de vandalizar uma estátua sagrada de Hermes. Alguns

para se juntar a um grupo de outros quatro cidadãos para fazer seu trabalho sujo para

populares (pró-igualitaristas) acreditaram que aristocratas rebeldes tinham for-

eles. Enquanto os outros seguiram as ordens, Sócrates simplesmente saiu andando.

mado uma sociedade secreta "socratizadà' dedicada a atividades como essas, e os

Gandhi mais tarde chamaria essa atitude inspirada de resistência passiva.

historiadores ainda discutem se as acusações contra ele eram verdadeiras. Seja

Sócrates só não foi condenado à morte por seus antigos alunos porque pouco

como for, ele foi condenado in absentia enquanto liderava as tropas de Atenas em

depois eles foram derrubados. A tirania durara apenas um ano. A democracia foi

batalha. Em vez de voltar para casa e enfrentar a punição, ele preferiu o exílio junto

restabelecida. Sócrates não perdeu o ritmo, criticando e ridicularizando o novo go-

ao inimigo mortal de Atenas, Esparta, dessa forma maculando ainda mais não

verno da mesma forma que tinha feito com todos os anteriores. Enquanto isso, para

apenas sua própria reputação, como também a de seu velho professor, Sócrates.

estabelecer a paz, a nova democracia concordara com uma anistia geral para os

Embora ele depois retornasse a Atenas, chegando mesmo a reclamar postos no

oligarcas - aqueles que tinham aterrorizado Atenas não poderiam ser julgados por

comando militar, o restante da carreira de Alcebíades foi marcado por exílios oca-

seus crimes políticos. Contudo, na litigiosa e democrática Atenas, os cidadãos logo

sionais e desfigurado por sua defesa peculiar e antiintuitiva da cultura altamente

descobriram outras desculpas para levar a julgamento alguns de seus antigos opres-

disciplinada e severamente autoritária de Esparta.

sores, e outros ligados a eles. Entre os tiranos criminosos, o nome de Sócrates conti-

A carreira cheia de altos e baixos de Alcebíades ajudou a dar a Sócrates a repu-

nuava sendo falado. Quando jovens, muitos dos acusados tinham caído sob o feitiço

tação de corromper os jovens com heresias filosóficas que produziam um perigoso

de Sócrates. Embora tenha sido um resistente solitário à tirania quando chamado a

comportamento anti-social. Mas foram as ações dos Trinta Tiranos que cimenta-

agir como um de seus capangas, Sócrates acabou sendo inculpado por seus alunos

ram o seu fim. Em 404 a.C., após quase dois séculos como uma das duas civilizações

caprichosos. Como foi dito no início deste capítulo, ele foi levado a julgamento por

de sucesso na Grécia, Atenas finalmente foi derrotada em batalha pela outra, Esparta.

corrupção de jovens e por heresia. Mas, principalmente, ele foi julgado e condenado

Com a derrota, os aristocratas atenienses, em colaboração com os vitoriosos

pelos atos terríveis de seus antigos seguidores e amigos.

espartanos, dissolveram o estado democrático e estabeleceram sua própria oligar-

Por mais que algumas de suas teorias políticas possam ter sido teimosas, poucos

quia. O golpe antidemocrático foi comandado por Crítias e Cármides, ambos antigos

questionaram a integridade de Sócrates. Embora ele acreditasse firmemente que as

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

POLITICAMENTE INCORRETO

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verdades importantes estavam no interior e que a política deveria ser evitada sem-

muros da prisão, ele continuava com seu discurso inquisidor. Com o momento da

pre que possível, Sócrates quase se queimou na fogueira política da democracia ainda

morte se aproximando, a discussão freqüentemente se voltava para a questão de deus

bem cedo por permanecer fiel a seus princípios. Obrigado a participar do equivalente

e da vida após a morte. Tipicamente, Sócrates abordava essas questões de modo

ateniense de um corpo de jurados, ele fez algo inédito. Permaneceu só, em oposição

jovial, não afirmando alguma espécie de certeza, mas calmamente listando as pos-

a outros 499 votantes, recusando-se a condenar um velho herói de guerra que, no

sibilidades e então declarando que nenhuma delas o deixaria pior do que a situa-

frenesi de uma necessária retirada durante uma batalha, deixou para trás soldados

ção dele em vida. Ele morreu como viveu, encorajando seus seguidores a conhecer a si mesmos e a destemidamente buscar as verdades.

mortos e feridos, em uma violação do código de honra ateniense em batalha. O julgamento de Sócrates por heresia e corrupção de jovens foi realizado em um fórum público, para uma enorme platéia de seguidores e críticos. De fato, por mais que as massas atenienses se escandalizassem com Sócrates, elas adoravam ouvir o

Contraculturas socráticas através dos tempos

homem. Seu discurso durante o julgamento, como foi relatado por Platão em Apologia (considerado o momento em que Platão esteve mais perto de ser fiel às palavras

Pode-se argumentar que enquanto o filósofo histórico Sócrates foi um grande

de Sócrates) continua a ser uma inspiração para todos aqueles que desafiam a autori-

sucesso, a contracultura socrática propriamente dita foi um desastre. Mas certa-

dade permanecendo fiéis a seu ser mais íntimo, independentemente do risco. A

mente a maioria dos jovens no círculo socrático usou em silêncio as valiosas lições

Apologia apenas em alguns momentos resvala no tipo de estridente hipocrisia que se

socráticas sobre o auto-exame para ter vidas mais reflexivas e plenas, sem se trans-

poderia esperar de alguém prestes a ser martirizado por suas crenças. Permanecendo

formarem em arrogantes tiranos assassinos. E, além disso, as palavras e ações de

fiel à sua voz interna, grande parte da autodefesa de Sócrates é divertida. Ele continua

Sócrates ecoaram por toda a história, inspirando livres-pensadores e espíritos bri-

a fazer suas malditas perguntas. Em alguns momentos ele é quase como um toureiro,

lhantes como Coleridge, Byron, Shelley, Popper, Emerson, Whitman, Rabelais e

provocando o público enfurecido com seu despudorado desprezo por figuras públi-

Voltaire. De fato, até hoje, onde quer que encontremos individualistas irritantes

cas, homens de Estado e qualquer um que "se considere sábio, mas não seja': Apesar de

e incomodando politicamente todas as facções por pensarem por conta própria e

sua postura descarada, Sócrates foi condenado por uma maioria de apenas 56% dos

questionarem tudo, estamos vendo uma contracultura socrática saudável.

jurados. Sócrates recebeu a oportunidade de sugerir uma pena alternativa à de morte, e normalmente acredita-se que as autoridades democráticas esperavam que ele sugerisse o exílio, que teria sido aceito. Elas não queriam passar à história como carrascos do grande filósofo. Mas Sócrates teimosamente argumentou que ele na verdade deveria ser recompensado por fazer o papel de "chato': e propôs - como um compromisso

pagar apenas uma pequena multa. A última dose de insolência era mais do

que o júri podia tolerar. Mais jurados votaram pela pena de morte dos que tinham, antes, votado pela condenação. Muitos estudiosos e historiadores supõem que Sócrates rejeitou o exílio, preferindo a pena de morte, para provar sua virtude, que tinha sido colocada em questão pelo comportamento de alguns de seus filhos intelectuais. E sua bravura e dignidade enquanto esperava morrer representaria exatamente isso no plano histórico. Enquanto seus jovens seguidores o visitavam diariamente do lado de dentro dos

CAPíTULO QUATRO

Mergulho no infinito Taoísmo

A felicidade é mais leve que urna pena, mas ninguém sabe corno carregá-la

Chuang-tzu O terna central do Chuang-tzu pode ser resumido em urna única palavra: liberdade. Burton Watson

"Vai na onda:' O popular aforismo dos anos 1960 era um presente do taoísmo, a illosofia chinesa de suave e graciosa espontaneidade. Tendo os seus textos básicos aparecido pela primeira vez aproximadamente quinhentos anos antes do nascimento de Cristo, o taoísmo continua a ser, até hoje, uma das mais refinadas e avançadas expressões daquilo que Timothy Leary chamou de ''chaotics"- a prática de acolher e habilidosamente surfar nas ondas da mudança. Os verdadeiros praticantes dotao (que significa simplesmente "o caminho'') reconhecem a impossibilidade de concretizar sua sabedoria como dogma. Os dogmas represam a corrente. Mesmo a própria linguagem fixa a mente e interrompe o fluxo de tao. O principal illósofo taoísta, Lao-tsé (na verdade, provavelmente uma combinação de muitos sábios chineses), disse: "O tao que pode ser falado não é o verdadeiro tao': Ainda assim, usamos a linguagem para situar o taoísmo em uma história de culturas praticando a liberdade de pensamento e percepção, o comportamento não-autoritário e a constante mudança. Enquanto a maioria das contraculturas abordadas neste livro teve uma época histórica- elas foram movimentos culturais que podem ser localizados em

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

MERGULHO NO INFINITO

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filosofia. Seus primórdios são dificeis de identificar, e ainda há divergências acerca

Oscar Wilde, chamou o TaoTe King de Lao-tsé de "a crítica mais cáustica à vida moderna que eu já encontrei".

de se os principais textos escritos, Tao Te King, de Lao-tsé, e as histórias do Chuang-

Quase rivais em influência, as histórias reunidas em Chuang-tzu são contos

determinados períodos de tempo-, a história do taoísmo é tão difusa quando a sua

tzu, foram realmente criadas por indivíduos ou transmitidas por diversas gerações

divertidos, travessos e instrutivos que, como veremos nos próximos capítulos, apre-

de sábios e simplesmente atribuídas a um nome. A história taoísta é cercada de

sentam uma semelhança com os koans zen e as histórias sufi do Nasruddin. Elas

mistérios; o que não surpreende no caso de uma filosofia que foge da atenção

são freqüentemente descritas como um trabalho de "individualismo anarquistà'; o

pública. Ainda assim, a influência taoísta permeia a história e o pensamento chi-

estudioso chinês Wu Zhuangzi foi levado a chamá-las de "uma satírica punhalada

nês, e se infiltrou no discurso ocidental, particularmente durante o século XX.

nas costas de nossas convenções e nosso senso comum': Seria preciso esperar pelo

Estranhamente, embora os detalhes da evolução do taoísmo sejam misteriosos, a

movimento libertino na França do século XVII antes que esse tipo de afirmação

espiritualidade taoísta não é transcendental ou particularmente abstrata. De fato,

extrema fosse legitimamente provocado no Ocidente.

ele rejeita qualquer idéia de um grande além transcendente ou metafísico, e está

No capítulo 2 nós afirmamos que um valor fundamental das contraculturas é que elas conferem primazia à individualidade à custa das convenções sociais e da

firmemente emaizado na arte de viver no corpo. Com a sua consistente negação das fronteiras comuns da linguagem, da lógica

repressão governamental.

J. J. Clarke, autor de The Tao of the West, identifica no

e da moralidade de pensamento em favor da experiência pura, não diferenciada e

taoísmo "uma valorização e um refinamento da vida pessoal acima do servir ao

livre, o taoísmo talvez seja a mais psicodélica de nossas contraculturas anteriores

Estado". Contudo, o individualismo taoísta difere do individualismo ocidental, com

aos anos 1960. Os leitores que viajaram até os antípodas da consciência, que senti-

sua ligação com o ego forte e com o eu romântico. Kristofer Schipper, o decano dos

ram cada uma de suas crenças - a própria noção de eu e de mundo - se dissolver,

acadêmicos taoístas ocidentais, e possivelmente aquele que realmente aprendeu

apenas para se sentirem ainda muito corpóreos, vivos e realmente refrescados e

em uma escola religiosa taoísta na China, afirma: "Freqüentemente os homens

libertados pela experiência, serão particularmente receptivos ao tao.

definem as suas personalidades por seus gostos. Eles costumam dizer 'eu não gosto disso e gosto daquilo: assim como se manter distantes e tentar preservar uma aparência de individualidade. Mas essa forma de escolher, de cortar a existência em

O taoísmo filosófico de Lao-tsé e Chuang-tzu

pedaços e de utilizar o corpo de alguém na busca de alguma satisfação hipotética é fatal:' Ainda assim, Schipper também sustenta que "o Tao Te King (... ) considera o

Quando perdem sua noção de respeito,

ser humano em seu papel como sendo soberano". Não há contradição. Apesar de

As pessoas se voltam para a religião.

recomendar que nós nos livremos de (o que os taoístas vêem como) uma sensação

Quando elas já não acreditam em si mesmas,

ilusória de uma individualidade bem contida, o taoísmo afirma que a humanidade

Elas começam a depender da autoridade.

é livre dos ditames de um deus governante que dispensa a moralidade Lao-tsé, Tao Te King

(freqüentemente também reforçada pelo Estado) e encoraja uma delicada e espontânea excentricidade humana.

Tantos tropos contraculturais estão perdidos no TaoTe King e no Chuang-tzu

Não surpreende que o taoísmo algumas vezes seja visto por muitos chineses

que surge a tentação de oferecer uma das muitas traduções desses dois livros aos

convencionais como um embaraço. Em 1961, o historiador chinês C. K. Yang o

leitores e eles que se virem. Cada palavra de La o-tsé questiona a luta convencional

descreveu como uma "humilhação (... )suas atividades não beneficiaram a nação de

por sucesso e controle, e nos estimula a relaxar e buscar uma harmonia com o fluxo

forma alguma [e sim] repetidamente desencaminharam o povo com sua mágica

da natureza e dos acontecimentos. A grande autoridade inglesa em irreverência,

pagâ'. O ocidental Athanasius Kirchner, escrevendo em 1667, descreveu o taoísmo

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como "cheio de abomináveis falsidades [e praticando] rituais repulsivos': Um ana-

resistindo a ela, freqüentemente a ignorando. Apesar do fato de que grande parte

lista chinês mais simpático se queixou de que esta é "a menos compreendida e mais

do Chuang-tzu é, nas palavras de Edouard Chavannes, "uma condenação da inteli-

comumente ignorada e vilanizada de todas as principais religiões do mundo': Os

gência, da piedade filial e do legalismo, princípios essenciais dos ensinamentos de

taoístas têm sido tratados basicamente como uma espécie de bem-vindo elemento

Confúcid' (o confucionismo era a filosofia conservadora poderosa e dominante na

aleatório por tradicionalistas chineses ao longo da história.

China), o Chuang-tzu parece pregar o conformismo e o seguir em frente: "o sábio irá manter fielmente os costumes (... ) mesmo que as preferências dos homens pareçam ridículas para ele': Há, de fato, um encantador aspecto de se livrar dos

Ignore a autoridade

problemas na postura taoísta. Os taoístas oferecem uma crítica jovial e impiedosa das convenções e do poder, mas seguem o "caminho de menor resistência': o que na

Quando ricos especuladores prosperam

maioria das vezes significa não resistir em absoluto. Como diz Stephen Mitchell-

Enquanto fazendeiros perdem sua terra;

americano cuja tradução do Tao Te King, embora controversa entre estudiosos do

Quando funcionários do governo gastam dinheiro

taoísmo, foi o grande best-seller de meados dos anos 1980: "O mestre simplesmen-

Em armas em vez de em curas;

te reage às circunstâncias da forma adequada. Se o presidente, ou o papa, ou um

Quando a classe superior é extravagante e irresponsável

guarda de fronteiras tiver uma pergunta, ele terá prazer em responder. Do contrá-

Enquanto os pobres não têm para onde ir -

rio, ele cuida de sua própria vida e deixa o resto a cargo do tao:' Revolucionários

Tudo é roubo e caos.

modernos também encontrarão pouca afinidade com a defesa do Chuang-tzu do

Não está de acordo com o tao.

sistema de classes: "governante e governado, superior e inferior, mão e pé, externo Lao-tsé, Tao Te King

e interno se adequam a um princípio natural de paraíso. (... ) Deixe que os servos simplesmente aceitem o seu fardo( ... ) sem insatisfação:'

A citação de Lao-tsé acima se encaixaria perfeitamente em um manifesto con-

Mas, como em tantos aspectos da filosofia e da história taoístas, para cada exem-

temporâneo da esquerda radical. Mas não comece ainda a agitar as bandeiras ver-

pio há um exemplo contrário (Na verdade, por favor, aceite que quase tudo o que eu

melhas e pretas ao redor do altar taoísta. O relacionamento taoísta com a autorida-

digo sobre o taoísmo foi contestado ou modificado por um estudioso ou outro em

de política e social é complexo e ambíguo. O não-autoritarismo taoísta é, por natureza, amplamente conceitual. Ele é fruto de sua visão do universo. Mais do que idolatrar um criador, os taoístas vêem o universo como emergindo do caos, e eles só idolatram o sempre mutável processo da vida.

algum ponto da literatura.) Assim, a filosofia taoísta tem sido ocasionalmente utilizada a serviço da insurgência contra a implacável autoridade ou a impiedosa opressão de classe. Paralelamente à sua participação em revoltas ocasionais, a prática pelos taoístas

Comparando essa visão com aquela do monoteísmo ocidental, o grande orientalista

de excentricidade não-conformista algumas vezes produziu pequenas revoluções

contracultura! Alan Watts disse: "O tao não pode ser compreendido como (... )

pessoais. De fato, apesar do caminho da menor resistência, o taoísmo tendeu a produ-

governante, monarca, comandante, arquiteto e criador do universo.A imagem de um

zir indivíduos que eram um incômodo para os poderosos. Um exemplo: durante a

senhor militar e político ou de um criador externo à natureza, não tem lugar no tao:'

dinastia Chou (1122-256 a.C.), dois irmãos taoístas se tornaram heróis entre as mas-

Da mesma forma, Joseph Needham comparou a visão taoísta como sendo melhor que

sas locais por intermédio da resistência passiva. Quando eles tomaram conhecimen-

a do Deus cristão, que ele classificou como "um César impiedoso':

to de que o fundador da nova dinastia Chou tinha lançado uma campanha militar

Ao longo da história chinesa, o taoísmo teve diferentes relações com a autori-

injustificada, eles se recusaram a comer o que era produzido pelo reino, sobrevivendo

dade; algumas vezes a complementando e cooperando com ela, algumas vezes

de uma "inocente dieta de leite de cabra e brotos': Para afastar suas mentes da fome,

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eles cantavam uma pequena canção de protesto: "Suba aquela encosta ocidental/

claro, sugeriu que forças opostas, por mais que possam lutar, normalmente acabam

Colha aqueles brotos/ Trocando o mal pelo mal/ Eles não sabem que é errado?': Eles

em síntese, mas não há nenhuma prova de que o pétreo filósofo alemão conhecesse

acabaram morrendo de fome, mas a população os honrou mais na morte do que o

o tao.) Schipper notou que uma peculiar dinâmica entre con:fucionismo e taoísmo

governante contra o qual protestavam, e que morreu pouco depois.

entrou em cena após o con:fucionismo ter se estabilizado como a ideologia oficial

Colocando de lado eventuais exceções, os taoístas costumavam mais ser conse-

do Estado (em 140 a.C.): "Por um lado, havia o Estado e a sua administração, o país

lheiros das cortes governamentais do que ativistas revolucionários. De fato, grande

oficial, pedindo a tradição 'con:fucionistà. ( ... ) Por outro lado, havia o país real,

parte do Tao Te King é formulado como conselhos para aqueles que governam,

estruturas locais que se exprimiam em formas regionais e não-oficiais de religião".

embora o conselho seja para governar o mínimo possível: "Renuncie aos planos e

Em outras palavras, além de freqüentemente serem conselheiros da elite governante,

conceitos fixos, e o mundo irá governar a si mesmo. (... ) Quanto mais proibições

os taoístas também foram capazes de desfrutar de relativa autonomia em certas

vocês tiverem, menos virtuoso será o povo. Quanto mais armas tiverem, menos

regiões ao longo da história chinesa.

seguro estará o povo. Quanto mais subsídios tiverem, menos confiante será o povo. Então o Mestre diz: Eu abro mão da lei, e o povo se torna honesto': E: "O Mestre compreende que o universo está para sempre fora de controle, e que tentar contro-

Além do livre-pensar

lar os acontecimentos vai contra a corrente do tao': Durante séculos, a maioria dos governantes chineses manteve em suas cortes um contingente de conselheiros

Anteriormente afirmamos que este livro poderia facilmente ter sido batizado

taoístas, tanto como reconhecimento de sua sagacidade quanto para garantir um

de "uma história de livres-pensadores': No geral isso é verdade, embora no caso do

contraponto minoritário à enfadonha maioria con:fucionista cujos conselhos cos-

taoísmo "pensar" não seja exatamente o caso. A liberdade mental defendida pelos

tumavam prevalecer. As freqüentemente inebriadas brincadeiras da facção

taoístas é tão extrema que eles podem ser vistos como o alvo perfeito para aquela

conselheira taoísta em muitos sentidos desempenhavam um papel semelhante ao

brincadeira popular: "Sua mente está tão aberta que o seu cérebro vai escorrer para

dos bufões da corte da Europa medieval, que falavam de um modo tão direto que os

fora':

teria colocado em perigo não fosse a impunidade conquistada com sua bufonaria.

Deixando de lado o antiautoritarismo, a concepção taoísta de liberdade mental

O relacionamento taoísta com a filosofia ultraconformista do con:fucionismo,

é quase que diametralmente oposta à de contraculturas prometéicas como o

que geralmente governava o império, fluía como o próprio tao. Na maior parte das

iluminismo, com a sua ênfase no livre-pensar racional e no método científico. Na

vezes havia cooperação, colaboração e até mesmo um tipo de fusão entre as duas

verdade, de muitas formas o taoísmo antecipa contraculturas ocidentais pós-

tendências opostas. Mesmo Chu Hsi, líder de uma ortodoxia neocon:fucionista um

iluministas que se revoltaram contra o racionalismo e os limites da linguagem,

pouco mais linha-dura no século XII, escreveu comentários sobre os livros sagrados

como os surrealistas e os membros da Geração Perdida. Como afirma o Chuang-

do taoísmo. O I Ching é o mais conhecido produto da interpenetração dessas duas

tzu: "A armadilha de peixe existe por causa do peixe; assim que você tiver capturado

filosofias. Nesse caso, a idéia de deixar o tao "falar" por intermédio da ordenação de

o peixe, pode se esquecer da armadilha. (... )As palavras existem por causa de seu

gravetos ou moedas lançadas "aleatoriamente'' reflete as tendências mágicas e filosó-

significado; assim que tiver captado o significado, pode esquecer das palavras:' De

ficas taoístas, enquanto os valores de comportamento expressos nas passagens escri-

uma forma tipicamente brincalhona, o Chuang-tzu acrescenta: "Onde eu posso

tas que acompanham os hexagramas freqüentemente são de cunho con:fucionista.

encontrar um homem que tenha esquecido palavras, para que eu possa trocar umas

Isso reflete o conceito chinês de yin/yang, a união de opostos complementares,

palavras com ele?". Para o especialista em Chuang-tzu A. C. Graham, a filosofia

uma filosofia muito diferente daquela do Ocidente, onde se espera que filosofias

taoísta representa a "libertação da experiência do pensamento e da linguagem" e

opostas "troquem sopapos" para mostrar qual delas está certa. (A dialética de Hegel,

"reduz a força de categorias tornadas habituais por serem nomeadas [e] liberta a

Ji

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corrente de pensamento''. Apesar de suas diferenças, muitos pensadores iluministas

apenas ao convencional sistema de valores humano, mas também a seus convencio-

eram romanticamente atraídos pelo taoísmo, como um elemento do pluralismo

nais conceitos de tempo, espaço, realidade e causalidadê: penetramos no terreno

filosófico e religioso que eles identificavam na história chinesa. (O fato de que os

alucinatório que o filósofo psicodélico Terence McKenna chamou de "dissolução

governantes chineses apoiavam as artes e algumas vezes ouviam os conselhos de

das fronteiras': O Chuang-tzu afirmou explicitamente: "O Caminho nunca encon-

sábios visionários sem dúvida também era um apelo fundamental para homens que

trou fronteiras( ...) esqueça os anos; esqueça as distrações. Mergulhe no mundo infi-

algumas vezes eram capazes de influenciar seus próprios "déspotas iluminados".)

nito e faça dele o seu lar!" Ele também captura o sentimento -familiar a quem está

No final do século XX, a subversão da linguagem e do discurso racional defendi-

no caminho das drogas - de se transformar em um claro canal ao exorcizar a razão

da pelos taoístas foi apropriada por algumas pessoas no movimento desconstrutivista

e o eu limitado pelo ego por intermédio de métodos extremos e mesmo agressivos,

acadêmico pós-modernista. J. J. Clarke identifica uma definição quase escolar da

quando escreve: "Eu esmago meus membros e corpo, expulso percepção e intelecto,

estética pós-moderna em sua leitura do Chuang-tzu: "Há uma forma de pluralismo

renego a forma, suprimo a compreensão e me torno idêntico ao Grande Caminho':

epistemológico, a crença de que há muitas perspectivas no mundo, de que não

Kristofer Schipper diz: "Ele [o sábio taoísta] sobrevive [ênfase dele] à dissolução dos

há formas racionais de discriminar entre essas perspectivas e, portanto, que não há

valores". E Ziggy Stardust cantou: "Eu explodi meu cérebro pelo mundo''.

forma de identificar a única maneira correta de conceitualizar a realidade. As convenções humanas são historicamente contingentes em um sentido radical.( ... ) O que é comum ao taoísmo e ao pós-modernismo( ...) é que ambos estão preocupados não

Épater le bourgeois*

com o estabelecimento de uma forma nova e mais legitima de conceitualizar o mundo, e sim com a subversão da própria possibilidade de fazê-lo". Como no caso da estética mistura-e-manda dos pós-modernistas de hoje, os taoístas praticavam um grande ecletismo, atraindo para o taoísmo elementos das tradições xamânicas e mágicas chinesas, bem como amostras de seu oposto confucionismo. Mais tarde, o budismo foi acrescentado à mistura. Nas palavras de Clarke: "O taoísmo revela uma forte tendência sincrética a buscar inspiração de uma grande variedade de fontes aparentemente incompatíveis. (... ) [os taoístas praticam] uma absoluta promiscuidade (... ) que inclui não apenas uma grande variedade de ensinamentos religiosos e filosóficos, mas também incorpora métodos de dieta, medicina, ginástica, exercícios respiratórios e técnicas de meditação': Entre os pós-modernistas, a falta de certeza objetiva algumas vezes é experimentada como um pânico vertiginoso de cair em um vazio assustador, o que Richard Bernstein define como "a ansiedade cartesianà: Mas no caso dos taoístas isso representava uma libertação -

a aniquilação da mente conceitual era vista como

uma forma de permitir que a mente natural vagasse livremente. É mais fácil que pós-modernistas psicodélicos sejam capazes de se dar bem com o

Há alguns aspectos do não-conformismo taoísta que nos fazem recordar alguns dos mais rígidos sentimentos antiburgueses expressos no século XX por intelectuais radicais de esquerda como Jean Genet, que glorificava a criminalidade como o único refúgio honrado da hipocrisia. Watson escreve: "De modo a arrancar dos homens seus conceitos convencionais de bondade e beleza, o Chuang-tzu deliberadamente glorifica tudo o que aos olhos comuns parece sórdido, impuro ou bizarro- ex-criminosos que foram punidos com mutilações, homens que são terrivelmente feios ou deformados, criaturas de formas e tamanhos grotescos': O próprio Chuang-tzu diz: "Quem pode me convencer( ... ) de que a benevolência e a correção na verdade não são os cadeados desses grilhões?". Robert Anton Wilson coloca a questão desta forma: "Convenções produzem condenados': Lao-tsé apresenta a rejeição taoísta à moralidade sob uma luz mais favorável, escrevendo: "Jogue fora a santidade e a sabedoria e as pessoas serão cem vezes mais felizes. Jogue fora a moralidade e a justiça e as pessoas farão a coisa certa. Jogue fora o trabalho e o lucro e não haverá mais ladrões:' Esse antimoralismo não é apenas mais uma tentativa dos sábios taoístas de arejar nossas mentes conceituais.

tao que os acadêmicos. Quando Burton Watson, que traduziu o Chuang-tzu, escreveu que este tinha sido "um dos mais ferozes e mais fascinantes ataques já feitos não

* Embasbacar o burguês (N. do R.).

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Também está em funcionamento uma espécie de democratização espiritual. A visão taoísta de divindade é covarde, terrena e disponível para o mais baixo dos baixos. Chuang-tzu "escreveu": "Essa coisa chamada O Caminho- onde existirá? (... ) Está no mijo e na merdà:

MERGULHO NO INFINITO

O rei Wen estava vendo a paisagem em Tsang quando percebeu um velho pescando. Embora sua pescaria na verdade não fosse uma pescaria. Ele não pescava como se estivesse pescando alguma coisa, mas como se fosse uma forma de constantemente ocupar os peixes. O rei Wen quis convocá-lo e transferir a ele o governo, mas temia que os altos funcionários e seus tios e irmãos ficassem desconfortáveis. Ele pensou

Dando uma chance à paz

que talvez fosse melhor esquecer o assunto e deixar para lá, mas ele não conseguia privar os cem clãs de uma oportunidade como aquela, envia-

De modo algum devemos considerar o ataque taoísta à moral comum como um comportamento coercivo e violento. Os taoístas, como tantos críticos sociais contraculturais ao longo da história, estavam apenas expondo as hipocrisias do "bom

ministros, dizendo:

e decente" cidadão da alta sociedade. O comentário do Chuang-tzu de que ''Aquele

no e barbado, montado em um cavalo malhado que tinha patas verme-

que rouba uma fivela de cinturão paga com sua vida; aquele que rouba um Estado se transforma em um senhor feudal" nos remete aos famosos versos de Woody Guthrie:

lhas de um dos lados. Ele se dirigiu a mim, dizendo: "Transfira seu

''Alguns irão roubá-lo com um seis-tiros I E outros com uma caneta-tinteiro':

seja curado!

De fato, o taoísmo prega uma forma única de relativo pacifismo (você não esperava que eles fossem absolutistas acerca de alguma coisa, esperava?). O Tao Te

Os ministros, aterrorizados, disseram: - Era o rei, seu falecido pai!

King diz: ''Armas são as ferramentas da violência; todos os homens decentes as

- Então talvez devamos conjecturar para descobrir o que deve ser feito

detestam.( ... ) A paz é o mais alto valor:' Mas os taoístas não codificam a sua rejeição da violência. A violência deve ser evitada apenas porque interfere com a arte de

- disse o rei Wen.

viver bem. Nas palavras de Clarke, "taoístas (... )tentam elaborar uma forma de lidar

Majestade não deve ter dúvidas. Que necessidade há de conjecturas?

com o conflito da forma menos destrutiva possível, e se baseiam no refinamento das técnicas defensivas que minimizam o uso da forçà: Hoje, com tantos conserva-

Assim, no final, o rei mandou que o velho de Tsang fosse levado à

dores culturais afirmando que a única forma de minimizar os comportamentos destrutivos, violentos e anti-sociais é convencendo a ralé a retomar os estritos códigos morais dos monoteísmos autoritários estabelecidos, a abordagem pragmá-

Ao cabo de três anos, o rei Wen fez uma viagem de inspeção pelo

tica dos taoístas -buscar a paz apenas porque é a melhor forma de viver- se nos apresenta como uma alternativa mais feliz e mais alcançável.

governamentais não tinham nenhuma distinção especial e que as pes-

da pelos céus. Assim, ao amanhecer do dia seguinte ele falou com seus - Noite passada eu sonhei que tinha visto um homem distinto, more-

governo para o velho de Tsang e então talvez o sofrimento de seu povo

-

É uma ordem de seu falecido pai! -

disseram os ministros. - Sua

capital e transferiu o governo para ele. Estado. Ele descobriu que os funcionários locais tinham eliminado as barreiras e acabado com as panelinhas, que os chefes dos escritórios soas que cruzavam as quatro fronteiras vindas de outros Estados já não

O tao diz respeito a levar a vida na boa, a escolher o caminho de menor resistênda. Discussão, conflito e guerra simplesmente não se adequam ao perfil. A flexibilidade da "éticà' taoísta está bem expressa nessa maravilhosa história do Chuang-

traziam consigo seus próprios instrumentos de medição. Os funcioná-

tzu justificando um rei que -para continuar no caminho da menor resistência-

fes dos escritórios governamentais não mereciam qualquer distinção

lança mão de uma pequena mentira para evitar uma controvérsia:

especial porque eles viam qualquer tarefa como merecedora de igual

rios locais tinham eliminado as barreiras e acabado com as panelinhas porque tinham aprendido a se identificar com seus superiores. Os che-

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MERGULHO NO INFINITO

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

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distinção. As pessoas que cruzavam as quatro fronteiras vindas de ou-

De fato, no taoísmo, as presunções marciais machistas de "heroísmo'' hegemônico

tros Estados já não se preocupavam em trazer consigo seus próprios

são inteiramente reviradas, colocadas de cabeça para baixo.

instrumentos de medição porque os senhores feudais tinham deixado de desconfiar das medidas locais. O rei Wen então concluiu que tinha encontrado um grande Professor e, olhando para o norte em sinal de respeito, perguntou: Podem esses métodos de governo ser estendidos a todo o mundo? Mas o velho de Tsang não respondeu, murmurando alguma desculpa de forma evasiva; e quando na manhã seguinte chegaram ordens para que ele fizesse a tentativa, o velho fugiu (... ) e nunca mais se ouviu falar dele. Yen Yulan questionou Confúcio [nota: o Chuang-tzu inseria personagens históricos reais em suas histórias educativas] sobre essa história, dizendo: - O rei Wen afinal de contas não se importava muito com nada, não é? E por que ele apelou para aquela história de sonho? - Quieto! - disse Confúcio. Chega de falar! O rei Wen era a perfeição em pessoa - como pode haver espaço para censuras e criticas! O sonho foi apenas uma forma de escapar de uma dificuldade momentânea.

De fato, a atitude machista do guerreiro absolutamente correto e inabalável não tinha lugar na tradição taoísta. O taoísmo é uma das poucas filosofias da história

Não precisamos de educação Alguns aspectos do radicalismo conceitual do taoísmo vão um pouco além do razoável mesmo para alguns pós-livres-pensadores (como seu humilde autor). Por exemplo: os taoístas expressam uma espécie de hostilidade para com as mais aceitas noções de educação. O Chuang-tzu louva os dias antes que o povo fosse desencaminhado pelo conhecimento, dizendo: "Eles ficavam em casa sem saber como fazer a menor coisa, eles vagavam sem o conhecimento de para onde estavam indo. Eles se enchiam de comida, davam tapas nas costas uns dos outros e viviam livres e felizes. Eles não tinham talento para nada mais:' E Lao-tsé rejeitou o progresso científico e tecnológico como a maioria de nós o entende quando escreveu que pessoas satisfeitas "desfrutam o trabalho de suas mãos e não perdem tempo inventando máquinas que poupam trabalho". Em Lao Tzu e Taoism, Max Kaltenmark observa: "Os taoístas condenam o simples aprendizado como sendo perigoso, por ser uma fonte de dissipação': E Watson observa que partes do Chuang-tzu "atacam

conhecida a privilegiar aquilo que geralmente é classificado de qualidades femininas. Lao-tsé afirma: "Nada no mundo é tão macio e complacente quanto a água. Nem mesmo para dissolver o duro e inflexível algo a supera. O macio supera o duro, o macio supera o rígido:'

todas as invenções do homem, todas as civilizações humanas e culturas com uma

Segundo Schipper, esse tipo de "feminismo" se refletia na cultura taoísta. Ele afirma: "O movimento do Mestre Celestial era organizado com base na absoluta igualdade entre homens e mulheres, que partilhavam( ... ) a liderança. Instruídos a

todas as idéias e todos os preconceitos estabelecidos, uma forma de introduzir um forte relativismo em tudo o que os homens fingem saber sobre algo". E Lao-tsé de fato mostrou um apreço pela ciência quando escreveu: "Um bom cientista libertou-

não se afastarem do feminino, os líderes religiosos do Mestre Celestial instruíram os seguidores do sexo masculino a nunca olhar fixamente, carregar armas, caçar ou

se de conceitos e mantém sua mente aberta para o que é". De fato, como naturalistas, os taoístas freqüentemente eram os cientistas da China. Mas eles tinham uma dife-

urinar de pé:' (Tudo isso na terra do encolhimento de pés! Entre os chineses nãotaoístas, ao longo de grande parte da história as mulheres foram reduzidas ao nível de virtual escravidão.)

rente concepção da ciência, baseada não na investigação das leis ocultas dos fenômenos, mas na observação do comportamento dos animais, das plantas, dos elementos e dos céus. Watts observa que "o importante é compreender os ventos, as

fúria estridente, quase patológicà: Contudo, Schipper argumenta que a defesa taoísta do que alguns poderiam chamar de um tipo de ignorância é "nada mais que uma saudável desconfiança de

Longe de desenvolverem uma cultura violentamente niilista na ausência de

marés, as correntes, as estações, e os princípios de crescimento e deterioração. (... )

rígidas estruturas de crença e de obediência disciplinada a regras, os taoístas evitaram conflitos cultivando qualidades como suavidade, tranqüilidade e submissão.

A postura taoísta não é oposta à tecnologia per se.( ... ) A questão é que a tecnologia só é destrutiva nas mãos de pessoas que não se dão conta de que são parte de um

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MERGULHO NO INFINITO

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

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criou a Escola de Sabedoria que iria dominar a cultura e a filosofia da China até

uma abundância de escolas filosóficas, incluindo os legalistas, os sofistas, e a estóica e militarista escola Mo Ti. O con:fucionismo e o taoísmo foram os únicos a sobreviver, embora - de uma forma tipicamente chinesa - os dois movimentos filosóficos tenham absorvido aspectos das outras escolas como sendo seus. Geralmente acredita-se que o Ta o Te King teria sido passado de geração a geração por vários sábios, e concluído por volta de 400 a.C., enquanto o Chuang-tzu teria sido escrito por volta de 300 a.C. Pouco se sabe do "taoísmo" inicial, embora ele possa ser concebido mais como uma escola filosófica que como uma religião. (Essa distinção provavelmente não faria nenhum sentido para os adeptos chineses daquela época.) Uma escola chamada neotaoísmo parece ter surgido no século I a.C., com a disseminação do budismo vindo da Índia. Acredita-se que o neotaoísmo fosse uma mistura sincrética de taoísmo, budismo e con:fucionismo. Alguns de seus adeptos acreditavam que Buda e Lao-tsé eram a mesma pessoa. Nessa época, Con:fúcio já estava bem estabelecido na cultura chinesa como o grande sábio. Em A History of Chinese Philosophy, Volume II, Fung Yu-Ian destaca que muitos neotaoístas viam Con:fúcio como o governante e Lao-tsé e Chuang-tzu como seus conselheiros. Embora provavelmente tenha havido alguns poucos cultos organizados anteriores, o taoísmo religioso parece ter aparecido nos registros históricos durante o "Período da Desunião" (221-589 d.C.). Segundo o professor Russel Kirkland, da Universidade da Geórgia, essa "Tradição dos Mestres Celestiais" era "sistemática e hierárquica até o nível laico. (... )A escola dos Mestres Celestiais via a si mesma como uma ortodoxia, em oposição às outras religiões': Como os cristãos, os membros da igreja buscavam a salvação de doenças e de pecados herdados por intermédio da confissão e de boas ações e acreditavam em um apocalipse futuro durante o qual apenas os escolhidos seriam salvos. Essa ortodoxia foi reduzida em uma espécie de "reformá' da igreja taoísta, sob a liderança de Ling-pao no final do século IV d.C. Profundamente influenciado pelo budismo, esse foi o começo do que passou a ser conhecido como "taoísmo organizado". Nas palavras do professor Kirkland: "O taoísmo se tornou uma tradição ecumênica e não-sectária, na qual qualquer texto e qualquer grupo devotado a objetivos espirituais elevados tinha espaço. Durante esse período, o taoísmo em geral manteve fortes ligações com o governo e com a elite cultural. Esse 'Novo Taoísmo' era orientado para o crescimento espiritual por intermédio da meditação Os mosteiros taoístas que existem hoje na China são de e da 'alquimia

Mao. Na verdade, esse foi um período de renascimento na cultura chinesa, com

certa forma sobreviventes dessa tradição.

processo com o universo:' Joseph Needham, de fato, foi um grande defensor da idéia de que os taoístas foram os primeiros cientistas. A filosofia taoísta parece fundamentalmente desinteressada da livre e aberta circulação da informação. Isso não é fruto de nenhum desejo autoritário de enfraquecer o povo, mas da crença de que o puro conhecimento é impossível para a linguagem e se aproximar demais do conhecimento é uma distração inútil. Como escreve Clarke: "O objetivo fundamental do taoísmo, especificamente a transformação pessoal, é completamente diferente da busca pelo conhecimento objetivo".

O Tao flui através da história Como já foi dito, a história do taoísmo é difusa e difícil de classificar. Como diz Clarke: "Nós não estamos engajados na interpretação de uma única entidade cultural ou na leitura de um único conjunto de textos, mas, na verdade, em uma intertextual seqüência de leituras, um mosaico de citações, interpretações, traduções e reconstruções que podem ser datadas de mais de dois milênios de história cultural e intelectual': A forma segundo a qual o taoísmo flui (aquela qualidade taoísta!) para dentro e para fora do con:fucionismo e do budismo chinês aumenta a complexidade. Centenas, talvez milhares de culturas taoístas distintas surgiram e desapareceram ao longo do milênio. O sinólogo Holmes Welch foi levado a se queixar da promíscua variabilidade da história taoísta, destacando que - ao longo do tempo - o termo abrangeu "a ciência da alquimia; expedições marítimas às Ilhas dos Abençoados; uma forma chinesa nativa de ioga; um culto do vinho e da poesia; orgias sexuais coletivas; exércitos da igreja defendendo um Estado teocrático; sociedades secretas revolucionárias". Não é minha intenção aqui dissecar a história do taoísmo. Mas uma visão geral necessariamente fragmentada nos ajuda a conhecer alguns episódios fundamentais da contracultura taoísta. Embora tenham sido antecedidas e influenciadas pelo xamanismo, as expressões do que iria se transformar em taoísmo geralmente são vistas como surgindo no século V a.C. na China, aproximadamente na mesma época em que Con:fúcio

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Aquela antiga religião Uma de nossas afirmações é a de que contraculturas libertárias tendem a ser controladas com o passar do tempo. O impulso majoritário para criar mitologias dominadoras e rígidas estruturas autoritárias se reafirma, mesmo acerca das no-

MERGULHO NO INFINITO

1Ü1

Felizmente, as distinções entre as filosofias libertárias de Lao-tsé e Chuangtzu e o taoísmo religioso formal de modo algum são tão drásticas quanto, por exemplo, a distinção entre o progressivo humanismo do Jesus Cristo histórico e a Inquisição espanhola. Na verdade, o impulso anarquista taoísta sobreviveu a suas muitas transições.

ções mais transgressoras. Certamente havia enormes diferenças entre as idéias lúcidas e honestas expressas no Tao Te King e o que Edouard Chavannes chamou de "barafunda de superstições grosseiras" dos taoístas religiosos. Este texto religioso taoísta, cheio de trabalhosas visões de uma espécie de Lao-

Anarquismo taoísta

tsé poderosamente deísta, fornece um exemplo de quão longe eles se afastaram da simples claridade do seu texto original: "Lao-tsé transformou seu corpo. Seu olho

Hakim Bey, cujo manifesto TAZ: Zona Autônoma Temporária se transformou

esquerdo tornou-se o sol; seu olho direito, a lua; sua cabeça tornou-se o monte K'un-lun; sua barba, os planetas e constelações; seus ossos, dragões; sua carne, criaturas quadrúpedes; seus intestinos, cobras; seu estômago, o mar; seus dedos, os Cinco Picos; seu cabelo, árvores e grama; seu coração, o Dossel Florido; quanto a seus rins, eles foram unificados e se transformaram em um, o Real e Verdadeiro Pai e Mãe". Não é que não haja algo de prazeroso e poético nessas visões. Mas enquanto

em um dos textos fundamentais do anarquismo contracultura! dos anos 1990, afirmou que '1\.s mais antigas definições de anarquia são encontradas no Chuang-tzu e em outros textos taoístas': Schipper observa que a "administração da propriedade comum - prédios, terra, móveis e renda era estritamente igualitária. (... ) A sociedade era formada por incontáveis comunidades, todas interligadas por uma rede de alianças bastante densa. Essa rede de organizações religiosas e litúrgicas, cuja importância econômica e cultural era suprema, mantinha-se quase que inteiramente fora do controle do Estado:' De fato, as formas de organização de muitos enclaves taoístas

o Tao Te King tende a estimular a sua concentração, uma hora gasta com esses textos deixa a cabeça de qualquer um em meio a um nevoeiro. O taoísmo religioso introduziu mitologias deístas e ritualismo na mistura taoísta,

soam como a sociedade descentralizada e ligada em rede dos sonhos de um anarquista contemporâneo (e eles o fizeram sem a internet). A identidade do templo era

aparentemente ignorando o alerta de Lao-tsé de que "o ritual é apenas a casca da verdadeira fé': Mas, apesar dessas contradições, seria um equívoco achar que o

construída em festivais de celebração envolvendo "leitura, xadrez, caridade, peregrinações, escrita, pesquisa médica, pipas de papel': De modo semelhante, muitos indi-

taoísmo chegou aos extremos autoritários dos monoteísmos ocidentais. Clarke escreve: "De fato houve muitas seitas religiosas taoístas que surgiram e floresceram

víduos e grupos anarquistas do século XX, de George Bataille aos yippies, propuseram utopias anarquistas organizadas em torno de festividades comunitárias.

no período subseqüente à fundação da seita dos Mestres Celestiais e que têm claras analogias com o sectarismo cristão, mas esses movimentos taoístas constituem

A política libertária taoísta foi institucionalizada pela primeira vez pelo imperador Han Kao-tzu, fundador da dinastia Han em 206 a.C. Ele proclamou que

uma coletividade indefinida que não tinha qualquer tendência no sentido de uma

"daqui por diante haverá apenas três leis simples: o assassinato deverá ser punido com a morte e ataque e roubo deverão ser punidos de acordo com os fatos de cada caso". Como alguns leitores devem ter conhecimento, hoje uma forma pura de

forte [ênfase minha] coerência doutrinária ou hierarquia institucional': O estudioso taoísta Norman Girardot afirma que após o taoísmo ter sido institucionalizado como uma religião, ainda mantinha suas características alegres e divertidas, "em certo grau( ... ) sempre havia uma dimensão individualista em ser

libertarismo defende exatamente essa idéia- embora seus adeptos expressem isso

taoísta. Ademais, uma pessoa não pertencia realmente a alguma espécie de Igreja Taoísta. Na verdade, você era parte de uma comunidade local na qual o ritual

em termos de haver apenas duas leis: uma contra a violência e outra contra roubo e fraude. (Acreditem ou não, eu li esta idéia pela primeira vez defendida por Andy Warhol e Truman Capote em um editorial escrito a quatro mãos a convite da

taoísta era parte da vida cotidiana da comunidade:'

revista High Times no final dos anos 1970.)

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

MERGULHONOINFINITO

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Segundo o historiador chinês Lin Yu-lan, em 201 a.C., "um General Ts'ao (... )

aquela em que o papel do governo é reduzido ao mínimo ou inteiramente abolido,

foi feito governador do populoso e economicamente avançado estado de Ch'i, na

ao passo em que um taoísta está mais preocupado em remover supostos empecilhos

costa oriental. Ele escolheu um velho filósofo( ... ) seguidor de Lao-Tsé (... )como

artificiais ao funcionamento espontâneo e natural do Estado do que em aboli-lo

seu principal conselheiro( ... ) [O conselheiro] disse ao governador que a melhor

completamente': De fato, minha leitura de Lao-tsé sugere que o taoísmo deve prefe-

forma de governar seu grande estado, que incluía setenta cidades, era não fazer

rir uma matriarca extremamente benevolente e não-autoritária - embora todo-

nada e dar um descanso ao povo. O governador seguiu religiosamente este conse-

poderosa- do que o processo tedioso e iriitante da tomada de decisões participativa,

lho durante os nove anos de seu governo. O povo se tornou próspero, e sua admi-

igualitária e democrática. Mas idéias e impulsos anarquistas e libertários obviamen-

nistração foi considerada a melhor do império:'

te fazem parte da filosofia taoísta, e anarquistas de hoje e do futuro certamente farão uso dessas idéias.

Em 179 a.C., o imperador Wen Ti e sua imperatriz taoísta Tou subiram ao trono. Seu regime liberal aboliu a responsabilidade coletiva da família por crime, a tortura como forma de punição e os impostos sobre o comércio entre os estados. Eles reduziram drasticamente os impostos sobre a terra e tentaram ao máximo evitar

A dança boêmia

guerras nas fronteiras do império. A imperatriz Tou convenceu toda a sua corte a Dedicado à vida mansa e à arte de viver, o estilo de vida taoísta em muitos casos

ler Lao-tsé. A primeira insurreição liderada por taoístas a ser registrada foi a rebelião dos

não era tão diferente das várias comunidades artísticas boêmias e contraculturais a

Turbantes Amarelos, que começou em 182 d.C. A revolta teve um grande apelo em

que estamos acostumados no Ocidente.

todas as classes e só foi sufocada após se espalhar pela maioria das províncias da

Um dos exemplos mais antigos tem uma ligação particularmente moderna

China. Ela não apenas enfraqueceu a dinastia Han, como foi bem-sucedida em esta-

com isso. Em algum momento por volta de 100 a.C., os neotaoístas desenvolveram

belecer um bom número de comunidades autônomas, de autogoverno e quase anar-

uma tendência intelectual que foi chamada de "Conversa Pura''. Ela era popular

quistas. Um Estado baseado explicitamente nos ideais taoístas foi estabelecido por

entre a intelligentsia despossuída e sem cargos; seus expoentes mais conhecidos

um breve tempo na China pelo movimento dos Mestres Celestiais taoístas durante

foram chamados de Sete Sábios do Bambuzal. Lembrando os socráticos, esses não-

esse período. De acordo com Isabel Robinet, "Ele se mostrou insustentável no amplo

conformistas promoviam discussões públicas informais e festivas, regadas a vinho,

contexto político da China, mas mereceu o interesse e o patrocínio imperial':

sobre questões espirituais e literárias. Os membros dessa cultura eram, de acordo

Durante o século V, uma escola utópica de taoísmo inspirou rebeliões que pretendiam implantar o reino do "Caminho da Grande Paz': o sonho do retorno a uma

com Clarke, "intencionalmente excêntricos e contra o establishment". De certa forma, Conversa Pura e o neotaoísmo como um todo pregavam uma

sociedade livre da opressiva interferência do Estado e da exploração econômica.

espécie de taoísmo desesperado que é impressionantemente similar ao

Uma série de revoltas camponesas no século XIV foi relacionada à seita budista do

existencialismo e ao niilismo do século XX. Soando um pouco como Beckett, o

Lótus Branco, de inspiração taoísta.

filósofo neotaoísta Lieh-tzu escreveu:

Essas revoltas taoístas foram uma exceção, mais que uma regra. Como já afirma-

mudanças naturais e as atividades h uma-

nas são igualmente mecânicas em sua operação, e não há nada como liberdade

mos, os taoístas normalmente defendiam a acomodação. E quando eles realmente

divina ou humana, objetivo divino ou humano. (... )Infância desamparada e velhice

lideraram uma insurreição, normalmente o objetivo era apenas mudar o comporta-

vacilante tomam cerca de metade desse [nosso] tempo. O tempo que é perdido

mento de um império opressor, não derrubar o regime e substituí-lo por um "siste-

dormindo durante a noite e aquele que é desperdiçado quando acordado, durante

ma taoísta': Clarke sugere que os taoístas na verdade não eram anarquistas políticos,

o dia, correspondem à outra metade do restante, assim, portanto, há apenas o espa-

no sentido ocidental do termo. "A sociedade ideal para os anarquistas ocidentais é

ço de aproximadamente dez anos que alguém tem (para seu próprio desfrute), e

. I

104

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

mesmo assim não há uma única hora que não esteja ligada à ansiedade:' (E esses pobres fodidos nem mesmo tinham Prozac.)

MERGULHO NO INFINITO

105

sexuais contemporâneos. No taoísmo, o intercurso sexual reflete a harde céu e terra. Portanto, nas palavras de Schipper: "O status sublime e mes-

A solução de alguns taoístas para essa miséria existencial era o "abandono': que

a sacralidade atribuída à sexualidade significa que ela não era praticada com o

realmente em muitos casos significava irrestrita indulgência hedonista. dia prazeres que eram imediata e facilmente atendidos -basicamente prazeres do

ti 0 de liberdade pessoal que passamos a valorizar no mundo moderno': Por outro p . . 'bli ( ) lado, Clarke descreve "práticas sexuais (... ) incorporadas a ntums pu cos ··· liturgias transformadas em orgias sexuais( ... ) condenadas pelos confucionistas".

Contextualizado por essa visão pessimista da situação do homem, Lieh-tzu defencorpo. Mas nem tudo estava perdido. Em uma bela guinada, Lieh-tzu tentou mos-

Como um todo, parece que os taoístas tinham uma abordagem equilibrada do sexo,

trar como o hedonismo egoísta podia melhorar o mundo. Segundo a interpretação

considerando-o, nas palavras de Schipper, "bonito, bom para a saúde e certo': mas

do historiador Lin,Lieh-tzu acreditava que "uma vez assumido que todos no mun-

praticando formas mais extremas de libertinagem sexual apenas em raros momen-

do buscam apenas o seu prazer imediato, isso automaticamente elimina a luta pelo poder e pelo lucro pessoal entre os homens, já que tais poder e lucro só podem ser

tos históricos. 0 que nos leva, naturalmente, às drogas. Por mais implicitamente psicodélicas

obtidos por intermédio de uma difícil preparação e de laboriosos esforços': Essa

que sejam as visões taoístas de eliminação de fronteiras, há poucos indícios de envol-

filosofia "playboy': de licenciosa auto-indulgência como sendo um caminho para a

vimento com drogas alteradoras da consciência. Segundo Bill Porter, autor de Road

paz e a vida mansa certamente deve fazer com que os leitores se lembrem de várias

to Heaven: Encouters With Chinese Hermits, "O único membro do sexo feminino de

correntes no hedonismo do século XX.

um mítico grupo taoísta que durante o século XIII ficou conhecido como os Oito

Uma passagem do historiador chinês Liu Hsün revela o estado de liberdade dos

Imortais foi algumas vezes retratado segurando um cogumelo mágico [Amanita

devotos da Conversa Pura de forma especialmente vívida: "Juan Chi costumava se

muscaria]". Hakim Bey relata que só pode ser comprovada uma única personificação

entregar ao vinho e ao vício. Ele descobria a cabeça, soltava o cabelo, tirava as

de Cannabis como uma divindade em qualquer religião: Ma Ku, "Senhora Maconhà:

roupas e se esparramava no chão. Mais tarde, os filhos da nobreza (... ) seguiam

da escola de taoísmo Mao Shan. Segundo Bey, seu estilo de meditação envolvia inalar

todos o seu exemplo. Eles diziam que essa era a forma de chegar à origem do

incenso de maconha e vagar sem rumo "em um mundo de imaginação que era parti-

grande tao. Assim, eles iriam tirar seus chapéus, arrancar as roupas e apresentar

lhado por todos os iniciados e codificado em uma fantasia elaborada, geografia de

comportamento vergonhoso, como se fossem pássaros e feras. Levar isso ao grau

montanhas, gratas, cidades submersas no mar, utopias de ilhas distantes, o centro da

extremo era chamado de 'conhecimento': fazer isso em um grau menor era chama-

Terra, os palácios de nuvens do céu e o espaço sideral".

do de Como colocou Wang Ch'ung-yang, patriarca do movimento taoísta Perfeição Total no século XII, "Todos deveriam primeiramente aprender a relaxar e se entre-

Queimados e alienados

gar': De fato, o tao dança. Embora o tao tenha um lugar relativamente sublime entre alguns historiadores chineses, e uma espécie de misterioso, exagerado verniz Nova Era hoje no Ociden-

Sexo e drogas

te, alguns aspectos da postura mental taoísta na verdade parecem impressionantemente semelhantes ao estado ao qual veteranos dos anos 1960 se referem como

O taoísmo, em sua defesa de tudo o que é natural, é um caminho espiritual pró-

"combustão hippie" ou "baixa por ácido". Sendo alguém que de certa forma aban-

sexo. Contudo, com a exceção daqueles períodos de "entrega" orgástica, a maioria

donou qualquer ambição com vinte e poucos anos de idade e passou algumas

dos taoístas não abordou a sexualidade com o mesmo tipo de licenciosidade de

tardes incapaz de falar, passando areia de uma mão para a outra (algumas vezes sem

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

MERGULHO NO INFINITO

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a ajuda de nenhuma planta ou química), as histórias de (nas palavras de Michel

ele falou das virtudes de ser corcunda, destacando que humanos saudáveis e eretos

Strickman) "idiotas e bobos taoístas" têm um interesse particular. Lieh-tzu disse da

são alistados como soldados ou colocados para trabalhar como servos em "Maggie's

seguinte forma: "Interno e Externo foram mesclados em Unidade. Após isso, já não

Farm''. Em vez disso, como os anarquistas da ética contra o trabalho do século XX,

havia distinção entre olho e ouvido, ouvido e nariz, nariz e boca: tudo era o mesmo.

os situacionistas, Lieh-tzu defendia "perambular ao acaso, sem destino". E Lao-tsé

Minha mente estava congelada, meu corpo em dissolução, minha carne e meus

"escreveu": "Outras pessoas são brilhantes; eu, sozinho, sou escuro. Outras pessoas

ossos fundidos juntos. Eu estava inteiramente inconsciente de onde meu corpo

são espertas; eu, sozinho, sou burro. Outras pessoas têm um objetivo; eu, sozinho,

estava, ou do que estava sob meus pés. Eu singrei o vento de um lado para o outro,

não sei. Eu vago como uma onda no oceano. Eu sopro tão sem objetivo quanto o

como feno seco ou folhas caindo de uma árvore. Na verdade, eu não sabia sequer se

vento:' A descrição de Watt do honrado idiota taoísta é, provavelmente, a mais

o vento viajava em mim ou eu no ventd: Para a mente ocidental, isso se parece com

extremada: "O idiota( ... ) senta-se ao lado da estrada falando coisas sem sentido. O

a descrição de um completo colapso psicológico. Para Lieh-tzu, descrevia um estado sublime.

idiota é como uma criança mongolóide que não está interessada em sobrevivência

De fato, quando alguém abandona o instinto por status e permite que todo

e que irá pegar um prato de comida, correr seu dedo ao redor dela, fazer um maravilhoso lamaçal com a gororoba, e então vê-lo pingar da ponta do seu dedo':

pensamento e categorização se dissolvam, algumas vezes acaba simplesmente olhan-

O ocidental típico irá objetar, afirmando que se a todo mundo for permitido

do para a proverbial folha de grama, olhando para todo o mundo como um idiota

brincar como uma criança incoerente, quem irá fazer o trabalho duro para garantir

inútil. Na verdade, talvez até mesmo sendo um idiota inútil. Em uma cultura oci-

a sobrevivência? Mesmo o ícone beat Jack Kerouac fez objeções à chegada da

dental que é paranóica com ladrões, desocupados, encostados na previdência, va-

cultura psicodélica alienada hippie, perguntando: "Quem vai lamber os selos?".

gabundos e perdedores, isso simplesmente não pode ser tolerado. Em outras cultu-

Mas os taoístas não se preocupam porque ... Taoístas não se preocupam. (HÁ!) A

ras, incluindo a cultura que prevaleceu na China por milhares de anos, é permitida

maioria das pessoas, obedecendo à sua natureza, irá trabalhar o suficiente. Elas irão

a entrada dos loucos sagrados. De alguma forma, apesar do fato de que eles não têm

plantar, criar crianças, construir abrigos, cortar madeira e carregar água. As comu-

aquecimento central, fechaduras elétricas, jeans de grife, computadores e salmão

nidades taoístas sobreviveram e prosperaram. Alguns fazem mais. Alguns fazem

transgênico, os chineses não vivem com medo de que o seu mundo desmorone se alguns poucos entre eles não forem tão produtivos.

menos. Alguns poucos não fazem nada. Os taoístas não se permitem comparações

O taoísmo prezava a inutilidade. O alienado, idiota, eremita, piadista é - em certo sentido- o supremo taoísta. Chuang-tzu "escreveu":

invejosas e ciúme. Eles não se aborrecem com isso. Os eremitas são os honrados alienados do taoísmo. A primeira ermida taoísta conhecida começou no século III d.C. Segundo Porter

se retiraram para

atingir seus ideais, alguns se afastaram para manter seus princípios, alguns esco[Chuang-tzu] estava viajando por uma montanha quando viu uma gran-

lheram a quietude para conter suas paixões, alguns escolheram escapar para pre-

de árvore com folhagem esplêndida. Alguns lenhadores que lá estavam

servar suas vidas, alguns para envergonhar outros e forçá-los a mudar seus com-

pareciam desdenhar dela. Ele perguntou a eles por quê. "Ela não serve

portamentos, alguns para se purificar". Muitos viam sua ermida como uma renúncia

para nada': ouviu em resposta.

à cobiça e acreditavam que poderiam mudar a sociedade mudando primeiramente

Após o que Chuang-tzu disse: "Essa árvore, como sua madeira não ser-

a si mesmos. Como no caso das contraculturas contemporâneas, a maioria dos dropouts veio

ve para nada, irá morrer de morte natural".

das classes privilegiadas. Porter relaciona aqueles que buscam a ermida como "arisEm outra passagem, que aos desertores contemporâneos parecerá quase que o

tocratas cansados da vida na corte, candidatos a funcionários incapazes de passar

mesmo que para um dos que outrora fugiram do alistamento e não se arrependeu,

nos exames, estudiosos que não queriam ferir seus princípios, burocratas exaustos,

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

ministros exilados, homens um passo à frente do carrasco': Mas, diferentemente de hoje, os dropouts da China eram vistos como grandes benfeitores. Sua busca do puro tao - e quanto mais excêntrico e recluso, melhor era vista como uma boa influência.

CAPÍTULO CINCO

A mão que parou a mente A contracultura zen

Moleques e palhaços Há pouco no Ocidente que se compare com o espaço que os chineses deram para os dropouts e idiotas taoístas. As tradições quietistas monásticas de nossas principais religiões talvez apresentem alguma semelhança, mas elas são sombrias demais, faltando a elas a divertida noção de ultraje que era o métier dos taoístas. Mais perto disso estão as tradições ocidentais do palhaço e do bufão. Na China, o

Assim que tivermos nos dado conta da comédia que é nossa situação, estaremos no caminho para o zen. Conrad Hyers

tao pode ter a permissão de se esconder; no Ocidente, seu espontâneo espírito errante pode ser encontrado entre gente do mundo do espetáculo, ou gente do

The laughing Buda: zen and the comic spirit

mundo de espetáculo paralelo. Aqui, o espírito livre precisa contribuir pelo menos com alguma coisa para "a economia': mesmo que seja apenas nossa diversão. O próprio taoísmo está repleto do espírito enganador. Lin Yu-lan fala de "uma

Sidarta Gautama (o Buda) se reuniram no Monte do Abutre para ouvir seu mestre iluminado em um de seus famosos discursos. Mas naquele dia, o iluminado sim-

certa non-chalance marota, um perturbador e devastador ceticismo( ... ) [e] humor malicioso': Clarke foi levado a perguntar: "O taoísmo, com seu humor desconstruidor

plesmente permaneceu de pé frente ao público e segurou uma flor. Um dos membros da platéia- um monge chamado Kashyapa- sorriu. Ele "entendeu". Conrad

e ceticismo irreverente, é algo mais que uma gloriosa fraude, produto talvez nem tanto de irônicos filosóficos, quanto de debochados filosóficos?':

Hyers escreve sobre o sorriso de Kashyapa: "É a feliz compreensão do momento de

A resposta está voando com o vento que o sábio taoísta está cavalgando.

Certo dia, em algum momento por volta de 500 a.C., mais de mil discípulos de

descoberta que tomou de surpresa todo o mundo, um momento de visão com o frescor e o imediatismo de criança pequena, plena de estupefação e deslumbramento- urna 'santificada realização' que é capaz de transformar até mesmo partículas de poeira em estrelas e sapos em Budas". Costuma-se dizer que a espontânea transcendência de Kashyapa, do simbólico/verbal em benefício de urna compreensão direta da divina perfeição da natureza foi a inspiração para o zen-budismo.

Nada é sagrado Nascido na vizinha Índia, o budismo lentamente invadiu a China ao longo dos séculos que se seguiram à vida de Gautama. Por séculos, os relativamente poucos praticantes chineses aparentemente aceitaram as convenções que tinham sido

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

estabelecidas por várias escolas budistas na Índia, onde a simples mensagem de

A MÃO QUE PAROU A MENTE

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A descrição de Bodhidharma para o Caminho tornou-se a definição clássica de zen: "Ensinamento exterior; destacado da tradição/ Não baseado em palavras e

Gautama de paz interna por intermédio da transcendência do ego sequioso e sofredor foi carregada de uma grande variedade de rituais e divindades. Mas em algum momento do século V d.C., os chineses desenvolveram um autêntico budis-

cartas./ Diretamente apontado para a mente humana./ Vendo a natureza de cada um e chegando à comunhão com Buda:'

mo chinês chamado de zen. De fato, o nascimento do zen (inicialmente chamado

Nos dois séculos que se seguiram ao surgimento de Bodhidharma, o zen chinês

de Ch'an) foi descrito por D. T. Suzuki- o monge zen japonês que foi o principal responsável pelo salto qualitativo do século XX ocidental na consciência da práti-

se transformou em um grande movimento populista. O personagem mais marcante desse período é Hotei, "o Buda sorridente". A imagem familiar de um Buda sorri-

ca espiritual - como uma "revolução" chinesa contra o budismo indiano.

dente, jovial, barrigudo os braços erguidos para o céu em êxtase- não é, como muitos acreditam, um retrato de Gautama. Ela retrata Hotei. A lenda de Hotei seria baseada na vida de Keish, um monge zen itinerante.

Diz a lenda que um monge peregrino chamado Bodhidharma levou o zen da Índia para a China em 520. A iconografia zen representa Bodhidharma como um vagabundo carregando sua mochila no ombro. Alan Watts o descreve como um "camarada de aparência bárbara com uma barba cerrada e olhos bem abertos e penetrantes - nos quais, porém, há apenas a insinuação de um brilho': Embora alguns acreditem que Bodhidharma é apenas um mito, criado para ligar o zen diretamente à terra de Gautama, isso tem pouca importância. A história de Bodhidharma incorpora a natureza contracultura! brincalhona do zen. Em um conto de Bodhidharma, o imperador chinês Wu se vangloriou para Bodhidharma

Keish decidiu demonstrar que o despertar budista levava a uma espontaneidade alegre e bem-humorada, não a um monasticismo rígido e sóbrio. Em seu livro Sabedoria radical, Wes Nisker reconhece o mérito de Keish de mostrar que "Você pode ter grandes realizações de sofrimento e vazio e ainda assim surgir um (... ) gordo feliz que bebe um pouco de vinho aqui e ali e prefere brincar de esconder com as crianças o dia inteiro do que cantar sutras com um bando de monges velhos

acerca das muitas formas pelas quais ele promoveu o budismo sob seu governo. O

em um sufocante templo quente". Desinteressado de qualquer reconhecimento formal de sua iluminação, Keish

imperador, claro, estava buscando uma magnânima confirmação, por um especialista, de seu bom carma, o conceito de pontos espirituais cumulativos que era a base

recusou o título de "mestre'' zen e escolheu permanecer de fora das limitações da vida monástica zen. "Em vez disso': escreve Conrad Hyers, autor de The Laughing Buddha,

do tipo de budismo que era familiar a Wu. O imperador perguntou ao monge:

"[ele] andava pelas ruas com a sacola nos ombros, dando presentes às crianças:' Hotei, o arquétipo sorridente que a posteridade criou a partir da vida de Keish, encarna

- Que mérito espiritual o meu patrocínio do budismo me garantiu? Bodhidharma respondeu:

a incansável e prestativa generosidade da espontânea e desperta "Natureza de Buda': Então vieram o Gordo e o Magro do Zen. "Montanha Gelada'' e ''Abandonado".

- Mérito algum! Perturbado, o imperador então perguntou:

As histórias zen retratam esses dois como estando sempre cantando, brincando e zombando dos monges mais compenetrados. A iconografia os retrata com expres-

-Então qual é o primeiro princípio da doutrina sagrada? Bodhidharma replicou: -Isso é vazio. Nada é sagrado.

sões alucinadas, recostados e rindo ruidosamente. Essa gargalhada zen é inteiramente subversiva. Hyers: "a gargalhada [zen] leva ao desmascaramento do orgulho

O imperador insistiu: -Então quem é você para se apresentar a nós? Bodhidharma respondeu: - Eu não sei, uma aparente impertinência exprimindo a visão zen de que a crença em um "eu" fortalecido pelo ego é absurda.

e ao esvaziamento do ego. Ela debocha se agarrando a ele e aplaca o desejo.( ... ) Ela subverte a hierarquia como um prelúdio para sua derrubada. (... )Toda a estrutura intelectual e de avaliação da mente minuciosa, discriminadora é questionada, tendo como resultado iluminação e libertação:' Além de esvaziar o ego refinado, o riso zen chinês também debocha dos preconceitos de classe que tinham impregnado o budismo indiano. Os indianos

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

tinham definido seis tipos de riso, variando do elegante, um sorriso discreto e quase imperceptível, ao desclassificado, que Hyers chama de "turbulento,(. .. ) gargalhadas estridentes, convulsões, cair de joelhos e histerià: Naturalmente, os zenbudistas se entregavam ao último.

A MÃO QUE PAROU A MENTE

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sincrética dos chineses, não causa espanto que o budismo indiano tenha sido expurgado de sua modorra carregada de ideologia e levado de volta às suas raízes primitivas sob a influência dos sábios taoístas. Em Uma breve história do mundo, H. G. Wells é ao mesmo tempo dogmático e

Apesar de suas constantes palhaçadas, Montanha Gelada era muito bem conhe-

eloqüente no que diz respeito à ausência de crença no budismo primitivo. "Não se

cido por suas profundas descobertas e pela poesia densa que criava sob seu nome

aferrava a superstições enfeitadas': ele nos diz. "Era basicamente uma religião de

verdadeiro - Han Shan (Han Shan significa "montanha geladà'). Sua alta reputa-

conduta, não uma religião de observâncias e sacrifícios. Não tinha templos( ... ) não

ção resultou em uma visita inesperada de um renomado sacerdote zen. Mas Mon-

tinha ordens sagradas de sacerdotes. Nem tinha qualquer teologia. Não afirmava

tanha Gelada rejeitava de tal forma a idéia de se associar a autoridades formais, que

nem negava a realidade dos inumeráveis e muitas vezes grotescos deuses que eram

quando o sacerdote apareceu ele fugiu para terras remotas. Ele passou lá o restante de sua vida, escrevendo poesia em pedras e pedaços de madeira.

idolatrados na Índia naquela época. Ela os ignorava:'

Em um de seus poemas, Montanha Gelada descreve a satisfação que seu status de dropout deu a ele: "Eu vago por florestas e ribeirões,/ E me demoro observando as

método científico, Gautama ignorou cosmologias e teologias, em vez disso ensi-

coisas./ Os homens não vêm tão longe nas montanhas,/ Nuvens brancas se juntam e

humano e suas causas. Essa investigação culminou nos Oito Passos, um conjunto

crescem,/ Grama macia serve de colchão,/ O céu azul dá um bom cobertor./ Feliz

de princípios de vida que prometia a libertação do sofrimento. A libertação não era

com uma pedra sob a cabeça,/ Que o céu e a terra processem suas mudanças:'

reservada para um futuro indeterminado ou para após a morte, nem dependia da

Com um respeito pela verdade experimental que de certa forma prefigurava o nando o resultado de seu trabalho de toda uma vida investigando o sofrimento

Embora nós vejamos o zen como uma contracultura dentro da cultura mais

duração ou da qualidade da adesão da pessoa a certos comportamentos ou doutri-

ampla do budismo, os chineses estavam apenas retomando o espírito original do

nas. Essa salvação era possível no presente- por intermédio, como disse Wells, "da

budismo inicial. O próprio Gautama era um contraculturalista no contexto da

imersão do estreito globo da experiência individual em um ser mais amplo''.

ortodoxia hindu. Ele era um sadhu (pedinte errante) hindu cuja experiência visio-

Embora nesse ponto de origem o budismo não chegasse a ser uma religião

nária transformadora ocorrera pouco após ele ter violado o extremo ascetismo de

como nós costumamos compreender, rapidamente se transformou em uma. Wells

sua seita de iogues da floresta comendo doces. Sentado sob uma árvore, Gautama

escreve: "Desde o início, esse novo ensinamento foi mal compreendido( ... ) um

mergulhou em um "estado alterado" natural. Ele viu e compreendeu o infinito

vasto acúmulo de maravilhas vulgares( ... ) em pouco tempo se ergueu em torno da

sofrimento e esforço da humanidade, e esse estado de consciência permitiu a ele

memória de Gautamà'. Os seguidores de Gautama não perderam tempo em enco-

sentir uma compaixão serena e desligada por essa miséria coletiva, bem como para

brir os seus ensinamentos simples e diretos em meio a uma densamente povoada

com suas próprias dificuldades pessoais. Ele abandonou os complexos sistemas e

tapeçaria de deuses, semideuses, demônios, instituições, hierarquias, rituais, cren-

mitologias do hinduísmo e passou a ensinar aos outros como experimentar diretamente essa nova forma de ser e estar no mundo.

ças e mistérios ocultos que refletiam a cultura religiosa hindu que Gautama tinha tentado desconstruir.

Os zen chineses pegaram um budismo que tinha se transformado em algo impressionantemente barroco na Índia e o levaram de volta à sua base de expe-

mesmo a declarar que ele era a reencarnação de Buda, um grande ser que periodi-

riência, procurando vê-lo pelas lentes do taoísmo. Os paralelos são claros. Como

camente retornava à Terra para transmitir à humanidade a sabedoria divina. A

disse A. C. Graham (no capítulo anterior), "a filosofia taoísta representa a liberta-

história, claro, agora recorda Gautama como "o Budà'.

ção da experiência do pensamento e da linguagem". Dada a notória tendência

Embora ele tenha rejeitado aquele conceito hindu, seus seguidores chegaram

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

O zen sufocado Em 845, sob o imperador Wu-tsung, a rápida popularização do zen foi confrontada por uma perseguição intensa e disseminada. Templos zen foram incendiados e seus tesouros, confiscados.

A MÃO QUE PAROU A MENTE

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À medida que o zen se tornava altamente estruturado, passava cada vez mais a

lembrar outras formas de budismo, e religiões per se. O zen chinês acabou simplesmente desaparecendo, dissolvido no budismo chinês em geral. ·Pelo que sabemos, não há hoje na China escolas claramente zen (embora algumas escolas budistas incorporem o pensamento e a prática zen).

Felizmente, pelo menos para o destino do zen, Wu-tsung morreu jovem, pela ingestão de uma erva venenosa. Sua lealdade espiritual era para com uma convencionalizada escola ocultista de taoísmo, e o auto-envenenamento foi resultado de sua busca por um elixir alquímico de imortalidade. O zen sobreviveu à tentativa do imperador de apagá-lo, iniciando um segundo período de crescimento e prosperidade. Mas o dano já tinha sido feito. Em parte como reação defensiva à perseguição movida por Wu-tsung, o caráter do zen na China mudou. Ele se tornou cauteloso, domesticado e formal. Boa parte de seu sabor contracultura! foi sacrificado em prol do que alguns estudiosos do zen chamam de "facção clerical': Essa formalização da tradição de ensinamento monástico zen também foi um resultado quase inevitável da popularização.Alan Watts descreve essa transformação de uma forma que ilustra bem os processos pelos quais as contraculturas se tornam "hegemônicas': (... )os bens da escola [zen] aumentaram tanto e seu número cresceu tanto, que a preservação de seu espírito se tornou um problema muito sério. Quase que invariavelmente, a popularidade leva a uma deterioração da qualidade, e à medida que o zen se tornava menos um movimento espiritual informal, e mais uma instituição estabelecida (... ) tornou-se

Tornando-se japonês Como freqüentemente é o caso, o caráter contracultura! zen não morreu, ele migrou. O budismo de sabor tao ressurgiu no Japão nos séculos XII e XIII. Ao chegar ao Japão, o zen quase que imediatamente se bifurcou. Um monge chamado Essai comandou um zen do establishment, com mosteiros financiados pelo imperador japonês. Mas o mestre zen Dogen recusou ofertas de patrocínio semelhantes, sustentando a tradição zen de manter distância tanto das autoridades seculares quanto das espirituais. O zen japonês é habitado por uma corte de personagens pitorescamente contraculturais que exprimem a consciência zen em estilos únicos, excêntricos, individuais. Um foi o professor zen do século XV, Ikkyu Sojun, que chamava a si mesmo de "Nuvem Loucà'. John Stevens o descreve em Zen Masters: "O radical Ikkyu (...) era anticonvencional, intransigente e combativo. Ele atacava incansavelmente a falsidade e a hipocrisia, ele mesmo não escondendo nada, nem mesmo sua vida sexual, o que faz dele personagem único entre sacerdotes zen pétreos, que

necessário "padronizar" seus métodos e encontrar meios segundo os

normalmente escondem muito bem as suas emoções:' Ikkyu fez de tudo para subverter as formalidades que, na época, tinham toma-

quais os mestres pudessem lidar com um grande número de alunos.

do conta do zen japonês. Por exemplo: escolas zen começaram a distribuir diplo-

Também havia os problemas especiais que se apresentam para as co-

mas para simbolizar que os alunos tinham atingido a iluminação. Ikkyu denunciou essa prática em alto e bom som, recusando o inka dado a ele por seu próprio

munidades monásticas quando o número de adeptos aumenta, as tradições se fortalecem e os noviços tendem cada vez mais a ser garotos sem vocação natural, enviados para treinamento por suas famílias fiéis. O efeito desse último fator no desenvolvimento do zen institucional

professor e não dando nenhuma espécie de certificado a seus próprios alunos. No espírito do verdadeiro zen, comenta Suzuki: "Copiar é escravidão. O texto nunca

uma associação de homens maduros com interesses espirituais para se

deve ser seguido:' E também havia Bankei, um populista pregador rural zen do século XVII. Ele ficou conhecido por sua articulação direta, nada pretensiosa, algumas vezes gros-

tornar cada vez mais um internato eclesiástico para adolescentes.

seira, dos preceitos zen; seus sermões atraíam uma multidão de pessoas das classes

não pode ser subestimado. Porque a comunidade zen deixou de ser

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

inferiores, mas os estudantes de nível social mais alto o evitavam. A desgastante presença poderosa mas deselegante do homem sábio afastava os membros das classes superiores e outros que valorizavam o refinamento convencional. "Ele falava para um grande público de fazendeiros e gente do campo': nos conta Watts, "mas ninguém 'importante' parece ter querido segui-lo:' Como já foi insinuado, o zen era- por sua própria natureza- uma espécie de revolução de classe contra o budismo indiano. O zen despiu as imagens de semideuses etéreos, inatingíveis, cobertos de jóias que infestavam a iconografia indiana. Em seu lugar, nos deu o que Hyers chama de "a celebração do comum': Os novos ícones eram pobres monges humildes. E o ditado zen '1\.ntes da iluminação, corte madeira e carregue água. Após a iluminação, corte madeira e carregue água'' nos mostra que esse era um caminho para o homem comum. O poeta Ryokan foi outro mestre zen que se manteve cercado apenas de gente comum. Um gentil errante com uma reputação de sabedoria espiritual, ele recusou altos cargos na hierarquia de escolas e templos zen. Em vez disso, o inocente e honesto Ryokan chamava a si mesmo de "O Grande Tolo': e evitava a companhia de monges e sacerdotes. Sua propensão a beber saquê com aldeões e fazendeiros, seu prazer especial em brincar com as crianças e seus modos generosos - estava sempre disposto a recitar sua poesia quando solicitado - faziam de Ryokan uma espécie de contrapartida japonesa a Keish.

A MÃO QUE PAROU A MENTE

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Nada realmente é sagrado O que é o primeiro princípio da doutrina sagrada? Um grande vazio com nada sagrado nele. Da Lenda de Bodhidharma

A filosofia zen é centrada na noção de vazio, o que a torna ainda mais difícil de discutir que o taoísmo. Como os taoístas viam o mundo como tendo emergido do caos sem sentido, eles enfatizavam os processos da vida. O zen reverte essa ênfase, se concentrando no vazio ontológico que os adeptos do zen consideram a base existencial. Em essência, o zen acredita que apenas depois que alguém se esvazia, tornando-se inteiramente despojado de significância, pode experimentar o fluxo da vida de uma perspectiva iluminada. O zen rejeita a metafísica e o teísmosistemas de crença que constroem significados a partir da manipulação de símbolos. Nas palavras de R. H. Blythe, autor de Zen in English Literature and the Oriental

Classics, "Zen é a dessirnbolização do mundo e de todas as coisas nele': E não são apenas símbolos e crenças que são eliminados. Como mostra Suzuki, "toda a estrutura de personalidade é subvertida': Os adeptos do zen descreveram a iluminação como sendo "a base de uma tina se desfazendo': Como o budismo original de Gautama, o zen tenta evocar (ou, na verdade,

O amor de Ryokan pela natureza e pelos animais também estimulou comparações com São Francisco. Ele adorava a natureza como ela era, sem ilusões românticas. Em um poema, ele comparou os parasitas em seu queixo com insetos na

provocar) um estado de mente liberta. Embora não necessariamente livre da expe-

grama. E a natureza foi tudo de que Ryokan precisou para esquecer sua dor quando foi roubado: "Deixada para trás pelo ladrão.. ./ A lua/ Na janela':

ciência é acessível a todos os seres humanos, todo o tempo. Mas a consciência zen não pode ser buscada ativamente. Na verdade, ela não pode ser produzida por nenhuma espécie de atividade. Ela só pode ser atingida espontaneamente- quan-

O zen conquistou o Japão, se transformando em um dos aspectos da cultura japonesa, e continua assim hoje. Alan Watts escreve que, no Japão, o zen "penetrou em praticamente todos os aspectos da vida das pessoas - arquitetura, poesia, pintura, jardinagem, atletismo, artesanato e negócios; penetrou na linguagem cotidiana e no pensamento do cidadão comum': (Pode-se, claro, especular sobre a tendência japonesa ao conformismo. Vou deixar essa ambigüidade em suspenso... De um modo zen.)

riência da dor, essa consciência não está escravizada a ela. E, de acordo com o princípio contracultural de acesso livre e democrático, o zen declara que essa cons-

do as atividades da mente racional comum são abandonadas. Suzuki explicou a natureza antiautoritária do conceito zen de satori espontâneo: "Quando a doutrina da iluminação( ... ) é ser atingido imediatamente sem qualquer meio conceitual, a única autoridade em sua [do praticante de zen] vida espiritual precisa ser encontrada dentro dele mesmo; o tradicionalismo ou o institucionalismo irão naturalmente perder toda a sua força de coesão': Sejam eles chineses do século VI, japoneses do século XII ou ocidentais contemporâneos, os homens se perdem nas exigências da vida cívica e da sobrevivência

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

A MÃO QUE PAROU A MENTE

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pessoal. Nós acabamos de tal forma mergulhados em aborrecimento e necessidade,

E então há as parábolas e as histórias educativas zen- histórias sem significa-

pensamento e símbolos, que confundimos as identidades que carregamos em nos-

do óbvio, geralmente consistindo de breves fragmentos de interação entre um

sas interações sociais com a nossa essência. Essas identidades nos ligam ao passa-

mestre e um aluno. Essas histórias abalam a tranqüilidade racional com explosões

do. Nossos desejos nos ligam ao futuro. Em raras ocasiões, a atividade mental produ-

súbitas e inesperadas de absurdo, paradoxo e, algumas vezes, violência. Uma histó-

zida por essas questões pode cessar, e acordamos para nossa extraordinária presença

ria desse tipo é recontada por Alan Watts: "O mestre Shih-kung perguntou a seu

no momento. Essa experiência é uma insinuação de satori, e zen nos convida a

discípulo se ele poderia pegar o espaço vazio. O discípulo fez no ar um movimento

experimentar este estado como uma forma de ser no mundo. O mundo tenta nos

de agarrar com a sua mão, mas Shih-kung exclamou: 'Você não pegou nada!' O

convencer de que isso é impraticável, mas como mostrou o mestre zen Huig-neng,

discípulo então perguntou: 'Qual, então, é a sua forma?' Aí então Shih-kung pegou

"desde que nossa mente permaneça desligada de qualquer pensamento em particu-

o nariz de seu discípulo, o torceu e disse: 'É assim que você segura o espaço

lar, é capaz de pensar quaisquer pensamentos adequados a todas as situações".

Em muitas narrativas zen, o satori do aluno é obtido apenas depois que ele se rebela contra a autoridade do professor. Por exemplo: quando um mestre afirmou que todo discurso de alguma forma tem relação com a verdade, seu monge pergun-

Muito além do jardim Já vimos que a consciência zen não pode ser buscada- o esforço não leva a

satori. Mas o zen não nos deixa paralisados e confusos, esperando que uma iluminação espontânea surja de repente. O zen desenvolveu práticas e técnicas para atingir aquilo que não pode ser obtido por intermédio de práticas e técnicas (se você não consegue lidar com essas contradições absurdas, já está vindo um capítulo sobre a Idade Européia da Razão!). Há duas práticas zen básicas. Zazen, a prolongada e silenciosa meditação na posição sentada que se transformou na principal atividade zen, aumenta a possibilidade de que o praticante se aperceba dos momentos em que sua consciência espontaneamente se torna centrada no presente. A prática do zazen nos dá tempo para perceber o agora. A segunda técnica implica em interromper à força a atividade mental de modo a que o presente possa ser experimentado. Mestres zen e seguidores que utilizam esta técnica são como moleques surrealistas espirituais, dedicando suas vidas a

tou: "Então, eu posso chamá-lo de burro?". O desrespeito brincalhão aparece freqüentemente nos discursos de zen radical. Deixe a sua vaidade na porta juntamente com os seus sapatos. Outro método zen de interrupção mental que irá despertar o interesse dos advogados mas horrorizar trabalhadores contemporâneos envolve acordar o aluno para a realidade presente com fortes golpes na cabeça, normalmente com um duro bastão de madeira. Essa prática é característica do Rinzai, a "escola durà' do zen. Embora seja bem sabido que professores zen acertam seus alunos dessa forma, é menos conhecido que alunos também golpeiam uns aos outros, e algumas vezes até mesmo seu mestre! (Mosteiros Rinzai se parecem com verdadeiros "Clubes da lutà'!) Nessa prática zen, a mão que segura o bastão quase literalmente se torna a mão que paralisa a mente. Alguns mestres zen também são conhecidos por utilizarem gritos confusos e altos e, nas palavras de Nisker, "gargalhadas e blasfêmias" para interromper a cognição. Não surpreende que esses comportamentos fossem vistos como bizarros, ameaçadores e esquisitos pela sociedade chinesa convencional.

arrancar alunos e discípulos de seus hábitos mentais. A ferramenta básica desta metodologia são os koans - brincadeiras sem finais claros, enigmas sem respostas óbvias -, que provocam um curto-circuito nos processos de pensamento comuns e induzem mentes racionais a desistir. O exemplo mais famoso é: "Qual é o som de uma mão batendo palmas?" Igualmente perturbadora é a declaração do mestre zen Hui-chung: "Quando você tiver um cajado, eu lhe darei um; quando você não tiver nenhum, eu o tirarei de você':

Zen versus autoridade Provavelmente nunca houve nenhum movimento religioso mais radicalmente iconoclasta que o zen. Conrad Hyers

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A MÃO QUE PAROU A MENTE CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

As técnicas radicais fizeram do zen uma ameaça contracultura! à ordem estabelecida. Jung observou: "Se o budismo era uma 'Igrejà no sentido que damos à palavra, o movimento zen certamente foi um fardo intolerável para elà: Mas as formas mais radicais do zen ameaçavam até mesmo a ordem estabelecida zen. Adeptos radicais do zen dispensavam todas as autoridades convencionais e espirituais. Seus praticantes rejeitavam até mesmo o poder dos "patriarcas': uma linhagem de mestres conhecidos na tradição zen como líderes de todo o movimento zen em suas respectivas gerações. E, como fica claro no famoso aforismo zen "Se você encontrar o Buda na estrada, mate-o" o zen radical rejeita até mesmo a autoridade do próprio Buda. O mestre zen Feng anunciou certa vez: "O Buda é um carcereiro cabeça-dura, e os Patriarcas são solteironas de rostos eqüinos!". E, respondendo

à pergunta "O que é o Buda?': o mestre zen Ummon teria respondido: "Merda seca!': Isso, claro, relembra a antiga citação taoísta do Chuang-tzu: "Essa coisa chamada de 'O Caminho' onde está? (... ) Está no mijo e na merdà: Tanto o zen quanto o taoísmo querem demolir o elitismo espiritual- a presunção de que o Caminho, ou a Natureza de Buda, só está disponível aos bons e aos belos. Em The Laughing Buddha: Zen and the Cosmic Spirit, Conrad Hyers reconta a seguinte história dos anais do zen: "Yun-men certa vez contou a seus monges a lenda segundo a qual o Buda em seu nascimento apontou para o céu com uma das mãos e para a Terra com a outra e, dando sete passos à frente, olhou para os quatro quadrantes da Terra, exclamando: e abaixo da Terra, eu sou o único honrado: Yun-men então declarou: 'Se eu o tivesse visto naquela época, eu o teria derrubado com meu cajado e dado sua carne para os cães comerem, de modo que a paz pudesse reinar sobre o Alan Watts, falando sobre os mosteiros que praticam o zen radical, escreve: "O aluno (... ) é livre para desafiar o mestre, e pode-se imaginar que nos dias em que o treinamento zen era menos formal os membros das comunidades zen deveriam se divertir muito preparando armadilhas uns para os outros. Em certo sentido, esse tipo de relacionamento ainda existe.( ... ) O falecido Kozuki Roshi estava entretendo dois monges americanos durante o chá quando perguntou casualmente: 'E o que os senhores sabem sobre zen?'. Um dos monges arremessou seu leque fechado diretamente contra o rosto do mestre. No mesmo instante o mestre inclinou sua cabeça ligeiramente para um lado, o leque atravessou o shoji de papel atrás dele, e ele desatou em um surto de riso:'

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A maioria das mais conhecidas figuras do zen permaneceu fiel a essa essência contracultura!, recusando os laços formais, os diplomas de iluminação e altos postos na hierarquia sacerdotal oferecidos a eles pelas escolas e instituições zen de sua época.

I O zen pega a trilha do ocidente Feliz. Apenas de calção, descalço, com cabelo despenteado, na escuridão vermelha, cantando, me enchendo de vinho, cuspindo, pulando, correndo - esse é o jeito de viver. Completamente só e livre na areia macia da praia junto ao mar logo ali, com as virginais falopianas estrelas quentes refletidas nas fluidas águas protegidas do canal externo. Jack Kerouac, Os vagabundos iluminados O zen se introduziu na civilização ocidental quando Suzuki publicou uma versão em inglês de Essays in Zen Buddhism. Suzuki depois viajou diversas vezes para os Estados Unidos e a Europa para falar sobre zen. Ele era um anúncio ambulante da iluminação. Mais do que o seu discurso erudito, intelectuais e ocidentais em busca de iluminação foram cativados por sua presença- seu comportamento sereno, sua quieta dignidade e sua inteligência. A popularidade do zen no Ocidente cresceu tão rapidamente desde o surgimento de Essays in Zen Buddhism que alguns previram que a sua publicação -juntamente com as atividades posteriores de Suzuki - seria vista pelas futuras gerações como comparável à viagem épica (embora mítica) de Bodhidharrna à China. Como fruto dos esforços de Suzuki, o zen se transformou em uma força importante nas contraculturas beat e dos anos 1960. Jack Kerouac, o primeiro escritor beata excitar o interesse (e o opróbrio) do público, estava particularmente apaixonado pelo zen. Seu popular romance Os vagabundos iluminados estruturou esse amor. De fato, o zen foi adotado, em maior ou menor grau, por muitos importantes nomes beat, incluindo Neal Cassady e os poetas Allen Ginsberg e Gary Snyder. É fácil imaginar como esses dropouts dos conservadores e capitalistas Estados Unidos dos anos 1950 devem ter ficado excitados com as palavras de Suzuki: "O desejo de possuir é considerado pelo budismo como uma das piores paixões pelas

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

quais os mortais podem ser obcecados. O que, de fato, produz tanta miséria no mundo é o impulso de aquisição (... ) enquanto se cobiça a riqueza, os ricos e os pobres estão sempre terçando espadas em terrível inimizade. As guerras internacionais grassam, a inquietação social aumenta sempre, a não ser que esse impulso para obter seja completamente eliminado. Não pode a sociedade ser reorganizada em bases completamente diferentes( ... )?(. .. ) O ideal zen de colocar os pertences de um monge em uma pequena caixa é seu protesto mudo (... ) contra a atual organização da sociedade:' Ninguém levou mais a contracultura jovem dos anos 1960 para o zen do que Alan Watts. Ex-ministro episcopal, Watts emigrou da sua Inglaterra natal para a Califórnia e se tornou o mais popular expoente das filosofias orientais no Ocidente. E, como milhões de jovens nos anos 1960, Watts experimentou extensivamente plantas e drogas psicodélicas. Em The foyous Cosmology ele documentou suas viagens de LSD, relacionando-as a diversas formas de misticismo oriental. Naturalmente, seu livro atraiu a atenção da emergente contracultura dos anos 1960, saturada de ácido, transformando Watts em um popular líder espiritual independente. Watts, por sua vez, voltou as atenções dos hippies para o zen. A influência do zen no Ocidente continua a crescer hoje. Antes da primeira metade do século XIX, o Novo Mundo e o continente europeu não tinham seus próprios templos, escolas e mosteiros zen. Hoje há centenas, se não milhares de estabelecimentos desse tipo. E, como no Japão, as práticas zen escaparam dos mosteiros. Centenas de milhares de cidadãos americanos ativos, por exemplo, praticam técnicas zen ao mesmo tempo levando a vida ocupada de uma pessoa contemporâneamédia. O professor de religião comparativa Huston Smith identificou de forma eloqüente a força do apelo zen para o mundo ocidental:

Nós compreendemos a específica atração do [zen] quando nos damos conta do grau em que o Ocidente contemporâneo é movido por uma "fé profética': a noção da santidade do algo, o arrasto da forma que as coisas poderiam ser e deveriam ser, mas não são. Tal fé tem virtudes óbvias, mas, a não ser que seja contrabalançada por uma equivalente noção da santidade do é, torna-se desequilibrada. Se os olhos de al-

A MÃO QUE PAROU A MENTE

guém estão sempre no futuro, o hoje passa despercebido. Para um Ocidente preocupado em reorganizar o paraíso e com a Terra correndo o risco de deixar a atualidade da vida - a única vida que realmente temos - escapar por entre os dedos, o zen se mostra como uma lembrança de que se não aprendermos a perceber o mistério de nossa vida atual, nossa hora atual, não perceberemos o valor de qualquer vida, em qualquer momento.

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r

CAPÍTULO SEIS

Amor e evolução A contracultura oculta dos sufis

Venha, vamos semear rosas e colocar vinho na taça;/ Vamos estilhaçar o teto do paraíso e criar uma nova fundação./ Se a dor levantar exércitos para derramar o sangue dos amantes,/ Eu me aliarei ao bodegueiro para derrotá-los./ Com um lindo instrumento nas mãos, uma doce canção, meu amigo, para que possamos bater palmas e cantar uma canção, e nos perdermos na dança.

Hafiz Se um arbusto pode dizer "Eu sou a verdade': um homem também pode. Ditado Sufi

De todas as contraculturas, o sufismo talvez seja o que mais se parece com um acontecimento quântico. O sufismo é praticamente impossível de definir e difícil até mesmo de localizar, parecendo estar, ao mesmo tempo, em todas as partes e em nenhuma. Sua exata origem se perdeu em uma névoa de possibilidades. Sabemos de sua presença principalmente por intermédio da interpenetração com outras culturas, a assinatura clara que deixa nas propriedades e padrões das culturas com as quais se choca. Mesmo a origem da palavra sufi é duvidosa. Os primeiros sufis vestiam roupas simples de lã, e a maioria das pessoas diz que sufi é simplesmente a palavra árabe para lã. Mas outros afirmam que ela vem da palavra persa para puro. Segundo Richard Smoley e Jay Kinney, no livro Hidden Wisdom, "Os primeiros registros históricos do sufi.smo como um caminho místico surgiram

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AMOR E EVOLUÇÃO

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

127

aproximadamente dois séculos após a fundação do islamismo, no século VII d.C.

Claro que, como no caso de todos os acontecimentos fundamentais, para cada

(... ) Diz-se que o profeta Maomé ensinou a seu genro, Hazrati Ali, as técnicas e a

opinião expressa há outras com uma diferente visão. Um estudioso contemporâneo

verdade interna de seu misticismo. Ali, por sua vez, instruiu outros muçulmanos

do islamismo, Othman Ali, argumenta: "Estereótipos orientalistas de literalistas

antes de ser morto em uma das disputas de poder que sacudiram o islamismo nas

legalistas, inflexíveis e militantes e de sufis ecléticos, compassivos e pacíficos são

décadas que se seguiram à morte do profeta. Hoje, praticamente todas as ordens

distorcidos. (... ) Os sufis podiam pertencer, e pertenceram, a escolas jurídicas

sufis traçam suas origens( ... ) até Ali:'

literalistas; alguns lideraram movimentos jihad e muitos defenderam a implanta-

Uma história ligeiramente diferente localiza as origens do sufismo em um círculo

ção da Sharia [a lei islâmica] tão vigorosamente quanto qualquer literalista:'

de amigos que regularmente se sentava com Maomé em seus últimos anos. Essa

As características que ocultam o sufismo nessa névoa de incerteza também

comunhão teria sido cultivada pelo profeta de modo a fazer brotar no coração de seus

ilustram sua natureza radicalmente contracultural. Não importa quantas versões

colegas uma consciência orgânica e vital que continuasse a se manifestar e a ser

surjam ao longo da história; o sufismo surgiu- de modo informal e não-autoriza-

transmitida a outros após sua morte como sendo o seu legado espiritual dinâmico. Há

do - nas franjas da religião muçulmana. Era - e continua a ser - baseado na

ainda uma outra história alternativa segundo a qual o sufismo recua até a construção

experiência. Portanto, sua interpretação permanece mutável.

do Templo de Salomão (um acontecimento também mitificado como o nascimento da maçonaria). Esse relato histórico coloca Maomé mais como um iniciado do que como um iniciador do sufismo, e afirma que o próprio Jesus era um dervi:x:e sufi.

Deus é amor

No século VII, a mística muçulmana, nas palavras de Smoley e Kinney; "atraiu seguidores com base em sua santidade pessoal. Esses seres iluminados ensinaram a

O islamismo não admite um pecado original, apenas negligência com

seus alunos as técnicas que tinham empregado para se tornarem 'amigos de Deus',

o Real.

e aqueles que conseguiram a realização espiritual, por sua vez, ensinaram outros".

Peter Lamborn Wilson, Scandal: essays on islamic heresy

No século VIII, essas associações livres evoluíram para o estabelecimento de comunidades informais chamadas Sufiyay. No final do século XIII, as ordens sufis se

Amor/ fendeu a cortina/ do puritanismo/ e revelou meu desejo/ de

transformaram em uma força a ser enfrentada no mundo árabe e na Índia.

paraíso .. ./ Minha banheira caiu/ do telhado.

A história religiosa convencional caracteriza o sufismo como uma seita do

Salman Savaji, em seu clássico poema sufi

islamismo, e a mística original era, quase que certamente, muçulmana. Contudo, mui-

persa do século XIV, "The drunken universe"

tos sufis recusam essa limitação sectária, reconhecendo a gênese divina de todas as religiões e recusando alegações de superioridade ou exclusividade da parte de qual-

Diferentemente do taoísmo e do zen-budismo, que podem ser confortavelmen-

quer uma Alguns mestres sufis trabalharam como parte das tradições judaica ou cristã.

te definidos como filosofias, ou mesmo métodos, o sufismo - com poucas exce-

De fato, o sufismo se vê como a raiz de todas as religiões. O mestre sufi Hazrat

ções- se define como uma religião. Os sufis estão envolvidos com Deus (singu-

Inayat Khan escreveu: "Há uma religião e há muitas capas. Cada uma dessas capas

lar). De fato, os sufis são apaixonados por Deus e toda a sua criação.

tem um nome: cristianismo, budismo, judaísmo, islamismo, etc; e quando você

O sufismo é uma religião de paixão, uma religião do coração. Enquanto o bu-

retira essas capas, descobre que há uma única religião, e é essa religião que é a

dista busca o "fim do desejo': os sufis perdem a individualidade por intermédio da

religião de sufi': Segundo Khan, os sufis viam Jesus como um dos seus, um "Mestre

intensidade de seu desejo de união com Deus e, freqüentemente, com o amado

do Caminhô: A ]ewish Encyclopaedia nos diz que a cabala também tem suas ori-

representante da beleza de Deus- o tema humano do ardor do praticante. Pode-se

gens nas práticas sufis.

dizer que o sufi queima a vela de seu coração nas duas extremidades, acabando por

128

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

AMOR E EVOLUÇÃO

129

queimar seu ego, levando em conta a fusão com o Um. O grande poeta sufi Ibn al1\rabi descreve a intensidade dessa paixão em seu "The Young Woman at the Kàbà':

"rindo loucamente/ gemendo na prolongada união de amante e amado/ Essa é a verdadeira religião. Todas as outras/ são curativos descartados perto dela:'

"Fascinante! Como pode ser que aquele que tem o coração trespassado pelo amor

Hoje, os fundamentalistas islâmicos são um paradigma da histeria anti-sexual

tenha alguma lembrança do próprio eu para ser desnorteado? O principio do amor é ser exaustivo. Ele nubla os sentidos, afasta o intelecto, espanta os pensamentos. (... ) Onde está a confusão e o que resta para ser confundido?"

- com o seu pânico voltado particularmente para o desejo feminino. Mas Peter Lamborn Wilson, contraculturalista norte-americano e estudioso sufi, afirma: "O

Em sua introdução ao livro de poemas Stations of Desire, de Arabi, Michael Sells afirma: Quando o amante místico é esvaziado e abatido, quando ele já não pode se agarrar à sua individualidade ou a seus pensamentos, quando ele é esvaziado de suas próprias palavras e argumentos, o amado revela-se. (... ) esse é o momento de paixão. Para os sufis em geral e para Ibn al1\rabi em especial, a paixão é análoga ao estranhamento místico que ocorre quando os limites normais entre identidade, razão e vontade são eliminados. A individualidade do amante desaparece. Nessa "aniquilação" ele se torna um com o divino amado.

O sufi Rumi, do século XIII, expressou a vigília do apaixonado em busca de iluminação quando escreveu: "Se o amor escapar de suas mãos/ Não se desespere. Continue a procurar. Lute para encontrá-lo/ Até você encontrá-Lo, vê-Lo, não durma, não coma, não relaxe:' Esse fragmento serve perfeitamente tanto como um poema romântico franco quanto como um poema de amor a Deus. E, de fato, a devoção sufista deve funcionar das duas formas. Em algumas das suas obras Arabi cria uma espécie de dialética, ou debate, em torno da questão de se o amado é a forma humana atual ou Deus. Arabi parece rodopiar ao redor do leitor ao estilo dervixe, até que tudo seja uma mancha e já não consigamos ver a diferença. O hllinano amado e Deus são um e o mesmo ... Ou o humano amado é um sinal de Deus, dependendo da interpretação. Freqüentemente -

embora nem sempre - há um componente erótico no

amor sufi. Tanto a poesia de Rumi quanto a de Arabi estão repletas de imagens sexuais. Arabi escreveu: "Quando um homem ama uma mulher, ele busca a união com ela, ou seja, a mais completa união possível no amor, e não há( ... ) união maior do que aquela entre os sexos". E Rumi ilustra a sensibilidade de forma mais vívida:

modelo do islamismo nunca foi a castidade. O profeta falou de 'prazeres que são decentes aos olhos de Deus: com o que ele queria dizer poligamia e concubinato. (... )O sexo é uma forma de adoração ou contemplação. Você faz amor porque Deus é amor:' O amor sufi

algumas vezes poligâmico e algumas vezes monogâmico - não

pode ser confundido com simples erotomania. Os sufis abraçam todos os atributos normalmente associados ao amor. Escreve Wilson: "O amor é importante (... )para praticamente todos os sufis, que aceitam que as qualidades divinas de amor e generosidade superam suas qualidades de justiça e temor (... ) o sufismo oferece uma interpretação mística geral da experiência psicológica do amor( ... ) entre marido e mulher, mestre e discípulo ou amante e amado': Embora o erotismo sufi nunca, nas palavras de Wilson, "leve a um culto ao sexo': tem havido episódios do que ele classificou gaiatamente de "sagrada pedofilià'. (Cabe destacar que a utilização provocativa dessa palavra por Wilson não deve ser compreendida da mesma forma como ela é usada hoje, para descrever uma obsessão sexual patológica e/ou a exploração criminosa dos jovens. É preciso notar também que essa prática era marginal no sufismo histórico.) Uma prática chamada nazar ill'al-murd, ou "contemplação do imberbe': envolvia homens iniciados contemplando jovens rapazes atraentes- alguns deles mal entrados na puberdadecomo um sinal da beleza de Deus. Também chamado de "O jogo da testemunhà: ele não era tão escandaloso nos primórdios do islamismo quanto seria hoje para a maioria dos ocidentais. Ahmad Ghazali, uma importante figura do sufismo na Pérsia do século XII, foi um antigo defensor do "jogo". Wilson descreve um retrato sufi em que Ghazali é representado "sentado em seu cubículo, olhando para um rapaz, com uma única rosa no chão entre eles': Ibn Taymiyya, um inimigo arquiconservador do sufismo, do século xrv; dizia que beijos e abraços também faziam parte dessas cerimônias, e Wilson reconhece que "quando tomados pelos êxtase durante o sarna ('harmonia espiritual') [alguns] costumavam tirar as blusas dos imberbes e a dançar com eles de peitos colados".

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AMOR E EVOLUÇÃO

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

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teria acerca da sexualidade adolescente e onipresente excitação popular comercial sobre a mesma-, provavelmente é importante notar que isso é quase nada. É mais

A cosmogonia sufi é complexa demais para ser abordada com alguma justiça em um capítulo dedicado a seus aspectos contraculturais. Mas eu vou fazer uma rápida tentativa. Em uma complicada manobra, o Deus sufi é inerente a um miste-

provável que a maioria dos místicos intoxicados de Deus e amor separassem sua apreciação da beleza pré-adolescente de qualquer compulsão lasciva de penetra-

rioso local metafísico que os humanos mal podem compreender, e do qual só podem começar a se aproximar por intermédio de uma vida de estudos e devoção. Ao

ção sexual, embora, de acordo com Wilson, "um sufi, acusado de imoralidade sexual

mesmo tempo, o sufismo também sustenta que "tudo é um': ou seja, que tudo o que existe é uma manifestação de Deus. As coisas encarnadas são consideradas semelhantes a Deus, enquanto, ao mesmo tempo, Deus é "incomparável" para coisas

Dado o peculiar clima sexual nos Estados Unidos de hoje - combinando his-

pelo arquipuritano Taymiyya, respondeu: 'E daí se eu fiz?"'. Claramente, estamos em um terreno movediço emocional (e legal) no contexto contemporâneo, mas naquele tempo, segundo Wilson, "o grande problema para os moralistas islâmicos( ... ) não era a pederastia ou a pedofilia per se( ... ) O verdadeiro perigo da 'pedofilia sagradà era a idéia de que os seres humanos podiam se realizar mais perfeitamente no amor do que na prática religiosà: Os sufis foram acusados da heresia da corporificação. Embora teólogos conservadores afirmassem que Deus só podia ser visto após a morte, os sufistas afirmavam ver Deus com seus próprios olhos; nas palavras de um conservador chocado, "enquanto olhando para um atraente e jovem escravo': Para os sufis, esse erotismo não dizia respeito à satisfação pessoal. (Bem, pelo menos não conscientemente.) Afinal, a idéia era perder o eu, o ego, na paixão por Deus. Como os budistas e os hindus, os sufis estão entre os "mortos agradecidos". Eles buscam a libertação do eu enquanto encarnam. Rurni escreveu: "Morram agora, morram agora, em seu Amor, morram; quando vocês tiverem morrido nesse Amor, irão receber uma nova vidà'. E Wilson faz eco, escrevendo: '1\.quele que busca deve renunciar a seu próprio eu.( ... ) Ele precisa viajar das coisas para o Nada, da existência para a não-existência. Como alguém se perde de propósito?" Os sufis têm uma abordagem romântica do se perder em Deus. Como os budistas, a maioria dos sufistas renuncia ao desejo material e aos pequenos prazeres. Porém, mais do que tentarem concentrar suas mentes no vazio, a iluminação dos sufis é estética, bem como ascética. Eles "vasculham" Deus em toda parte, manifesto no mundo físico. Eles são avessos ao materialismo e à simples busca do prazer porque esses atributos interferem com a sua completa devoção ao Deus que formou o mundo manifesto. A frase "devoção completà' é fundamental. Os sufis são fervorosos amantes de Deus. Como o grande romântico, eles são completamente desinteressados de desejos menores.

encarnadas. Em outras palavras, o mundo físico não é Deus per se, mas a semiótica/ hermenêutica de Deus. Henry Bayman, escritor ocidental que estudou com mestres sufis na Anatólia Central, escreve: "No pensamento islâmico e sufi, o mundo do significado complementa o mundo da matéria, precisamente porque fornece o significado que falta ao mundo material".

Alto Islã Uma libra de carne assada, alguns pedaços de pão/ Um jarro de vinho, pelo menos um rapaz propenso/ Um cachimbo de haxixe. Agora o piquenique está pronto/ A alegria de meu jardim do éden de pedintes. Abu Nuwas, Séculos VII/VIII, Traduzido para o inglês por Hakim Bey

Feche a loja da discussão e do mistério. Abra a casa de chá da experiência. Idries Shah

Os sufis buscam a intoxicação. Em outras palavras, eles concebem a experiência de se perderem no amor e em Deus em termos de ficarem doidões. Embora a maioria dos sufis deseje um barato natural, ao longo da história uma minoria de círculos sufis literalmente ficou intoxicada com vinho, haxixe, maconha ou mesmo café, como parte de sua prática espiritual. A Sharia, o documento central da lei islâmica, condena qualquer tipo de intoxicação. Contudo, muitos círculos sufis simplesmente não seguem a Sharia. Alguns não se definem como muçulmanos. De qualquer forma, a maioria dos sufis

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

"indisciplinados" acredita que assim que você tenha atingido um certo nível de iluminação, não há regras. Al-Iraqi, um altamente respeitado poeta e mestre sufi do século XIII, escreveu: "Nós transferimos nossos cobertores da mesquita para a taverna da decadência/ nós rabiscamos páginas de ascetismo e apagamos todos os milagres de piedade/ Agora fazemos parte das fileiras de amantes na trilha de Magi/ E bebemos um copo das mãos das dissolutas assombrações da taverna./ Se o coração agora precisa puxar a orelha da respeitabilidade, por que não?I Pois erguemos bem alto a bandeira de nosso destino./ Nós superamos toda a abnegação, todas

AMOR E EVOLUÇÃO

Em 1973, Peter Lamborn Wilson testemunhou o que chamou de "impressionante" cerimônia movida a THC em um santuário sufi em Lahore, Paquistão, em honra a Madho Lal Husayn. Escreve Wilson: "Uma grande quantidade de bhang [uma bebida à base de maconha] foi consumida em um ambiente de grande fraternidade - embora um pouco insana. Era tocada música qawwali e dervixes rodopiantes travestidos se apresentaram': Para Wilson, Husayn

as posturas místicas:' Os qalandares, que segundo a história teriam sido a primeira ordem a utilizar o

parecia exemplificar o espírito qalandar (... ) dervixe selvagem, intoxica-

haxixe como parte de seu processo, se parecem(ciam) com hippies radicais. Segundo o historiador do islamismo dr. Carl W. Ernst, a partir do final do século XIII,

(... ) um sufi pio e ascético que costumava passar todas as noites mergulhado no rio até a cintura, lendo o Corão. Certa noite, contudo, ele repen-

"Grupos nômades de ascetas vestindo peles de animais( ... ) que raspavam todos os

tinamente riu e jogou o livro na água, onde ele afundou entre as ondas.

pêlos do corpo e normalmente agiam de forma ultrajante começaram a ser vistos em todo o Oriente Médio e no Sul daAsia. (... )eles não se preocupavam com( ... ) o ritual islâmico (... ) freqüentemente ficavam nus (... ) e eram conhecidos por( ... )

Ele raspou a barba e passou a vestir brilhantes túnicas vermelho-rubi,

usarem alucinógenos e substâncias que provocam intoxicação. (... ) Conhecidos como qalandares, eles( ... ) eram vistos como sendo( ... ) perigosos pelas autoridades

133

do e erótico.

vagando por Lahore declamando poesia e absurdos. Certo dia ele viu um belo e jovem rapaz brâmane chamado Madho e se apaixonou por ele (... ) [e] tornou-se seu mestre espíritual e amante.

políticas [e] (... )associados a levantes camponeses, particularmente na Anatólia:' Wilson, um despudorado entusiasta de vinho e THC, se deparou com um gran-

Os qalandares continuam a ser uma ordem sufi no Paquistão. Escreve Wilson: "Por todo Afeganistão e Paquistão, a prece mais popular antes de acender um

de número de ordens sufis quase secretas de bebedores de vinho e fumantes de haxixe durante suas viagens pela região nos anos 1970. Ele descreve uma reunião de qalandares em um cemitério com "o tipo certo de pessoas( ... ) faquires intoxica-

cachimbo de charas (haxixe) ou tomar um copo de bhang é: 'Ya! Lal Shabaz Qalandar!":

dos e dançarinos travestidos - era mais um festival público que uma reunião privada( ... ). "A coisa era voltada para uma dança extática de uma natureza mais ou menos improvisada( ... ) Autores de iluminuras adoram representar dervixes selvagens rodopiando, as longas mangas de suas túnicas voando como asas. O objetivo da música é conduzir o participante a uma experiência espiritual:' Dançarinos extáticos sufis, claro, ficaram conhecidos no Ocidente como dervixes rodopiantes em função dos movimentos circulares e (algumas vezes) giratórios que alguns usam (usa-

O poeta turco Fuzuli, que escreveu o famoso tratado sufi Layla and Majnun (sim, Vrrginia, Eric Clapton tinha essa história sufi em mente quando batizou seu grande sucesso pop com Derek and the Dominas), disse que o vinho era apenas "um discípulo ansioso incendiando o mundo, mas o haxixe é o próprio mestre sufi': Segundo Idries Shah, a droga favorita dos Estados Unidos do século XXI - o café- foi descoberto por Abu-el Hasan Shadhilli, um xeque dervixe. Alguns sufis o utilizavam cerimoniosamente para aumentar a consciência. Não é interessante que um tema comum à maioria das práticas espirituais

vam) como parte do ritual. Embora a maioria das seitas fosse pacifista, os primeiros colonizadores ocidentais ficaram tão chocados com a dança extática que deliraram

contraculturais que estamos discutindo envolva praticantes experimentando o êxtase- pessoas se sentindo realmente bem, altas e felizes enquanto ao mesmo tempo essas mesmas pessoas tenham renunciado à ambição material e à gratifica-

pensando que os dervixes eram perigosamente insanos e "sedentos de sangue':

ção do sucesso social e da fama? Talvez essa seja uma mensagem para nós.

134

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Despertando o sonâmbulo interior Era uma vez Kidr, o Professor de Moisés, que deu um aviso à humanidade. Em um dado momento, disse ele, toda a água do mundo que não tivesse sido especialmente armazenada iria desaparecer. Ela então seria substituída por uma água diferente, que deixaria os homens loucos. Apenas um homem prestou atenção ao sentido daquele aviso. Ele recolheu água e a levou para um local seguro, onde a estocou, e esperou que a água mudasse as suas características. Na data marcada, as fontes pararam de correr, os poços ficaram secos e o homem que tinha prestado atenção, vendo o que estava acontecendo, foi pra o seu refúgio e bebeu da sua água preservada. Quando viu, em segurança, as fontes de água voltarem a jorrar, esse homem desceu para junto dos outros filhos do homem. Ele descobriu que eles estavam pensando e falando de uma forma completamente diferente da anterior, e que não tinham lembrança do que tinha aconte-

AMOR E EVOLUÇÃO

135

Muitos contraculturalistas contemporâneos- e psicólogos que se dedicam ao segmento de "potencial humano" dessa vocação - são obcecados com a idéia de que as pessoas precisam ser desprogramadas ou livradas da lavagem cerebral das percepções herdadas de sua cultura, bem como dos preguiçosos hábitos mentais que naturalmente se acumulam na psique de qualquer um durante o processo de viver e utilizar a linguagem. Um exagero particularmente violento dessa idéia é o de que todos nós estamos caminhando pela vida como sonâmbulos, e que são necessárias medidas desesperadas para nos acordar. James Joyce, William Butler Yeats, G. I. Gurdjieff, Aleister Crowley e Timothy Leary estão entre os pensadores do século XX que utilizaram o tropo do "sonâmbulo". Gurdjieff e Crowley foram infectados com essa idéia em seus estudos do sufismo (e Leary por intermédio de seu estudo de Gurdjieff em meados da década de 1960). Como escreve Shah: "O sufismo vê a consciência comum como inconsciência. Em todos os nossos dias acordados nós estamos literalmente adormecidos. O projeto do sufismo é nos despertar e nos manter despertos para 'o Real':' Superar a lavagem cerebral e permanecer "desperto"- não recair em preguiço-

cido, nem de terem sido alertados. Quando ele tentou falar coro eles, se deu conta de que todos pensavam que ele tinha enlouquecido, e de-

sas respostas condicionadas - parece exigir uma espécie de abordagem pouco amorosa. Shah escreve: "O sufismo não trabalha com materialidade, admiração

monstraram hostilidade ou compaixão, não compreensão. Inicialmente ele não bebeu da nova água, retornando ao seu abrigo

mútua ou generalidades desinteressantes. Quando a disposição desaparece (... ), desaparece o elemento sufi (... ) o professor sufi não pode dar a seu discípulo nem

diariamente para beber de seu estoque. Porém, ele finalmente tomou a decisão de beber da nova água, porque não conseguia suportar a soli-

mesmo um pequeno volume de sufismo:' De acordo com um famoso aluno de Gurdjieff, J. G. Bennett, a escola Khwajagan

dão de viver, se comportar e pensar de uma forma diferente de todos os outros. Ele bebeu da nova água, e se tornou igual a todos os outros. Ele

de sufismo que influenciou seu mestre enfatizava "a vigilância constante e (... ) a luta contra a fraqueza de cada um. Eles também utilizavam métodos de despertar

se esqueceu completamente de seu próprio estoque de água especial, e seus companheiros passaram a vê-lo como um louco a que tinha sido

que envolviam choques e surpresas': Uma das técnicas que Gurdjieff utilizava em suas escolas de sabedoria era freqüentemente fazer soar um sino. Os alunos que estavam cuidando de seus assuntos cotidianos deviam parar onde estavam e fazer

miraculosamente devolvida a sanidade. Idries Shah, Tales of the dervishes Eu preciso descobrir, a qualquer custo, alguma forma ou meio de des-

com que suas mentes supostamente dispersas voltassem para o presente. Crowley, sempre uma diva, algumas vezes se cortava durante meditações quando se dava

truir nas pessoas a predileção pela sugestão que faz com que elas se

conta de que a mente estava vagando e retornando a antigos padrões familiares. Em um poema, Rurni recomenda uma forma diferente de cortar... antigos laços

tornem suscetíveis à hipnose coletiva. G. I. Gurdjieff, no início do século XX

familiares: ''A mãe e o pai são sua ligação/ com crenças e laços de sangue/ e desejos e hábitos reconfortantes./ Não dê atenção a eles!/ Eles parecem proteger/ mas eles aprisionam./ Eles são seus piores inimigos:'

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AMOREEVOLUÇÃO

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Sobre mestres e autoridade

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que parece ter sido descondicionado com sucesso: "Meu professor me libertou do cativeiro em que (... ) eu pensava que estava livre, quando, de fato, eu na verdade

Deus não precisa de nossa adoração, nós, sim. Henry Bayman

O sufismo, em sua essência, se opõe ao autoritarismo. A maioria dos sufis não reconhece formalmente graus de crescimento espiritual com a atribuição de títulos, status ou postos de relativa responsabilidade ou privilégio; eles não reconhecem nenhuma autoridade espiritual absoluta em forma humana nem dão a qualquer pessoa o poder de juiz absoluto de questões espirituais em assuntos humanos. Ao mesmo tempo em que afirma que a inspiração divina guiou as vidas dos profe-

que ao longo da história e até hoje, alguns artistas medíocres se fizeram passar por mestres sufis (e alguns grandes mestres sufis com tendências vigaristas se fizeram passar por artistas medíocres). O iniciado precisa confiar em sua própria inteli-

litária - a verdadeira fonte da vida espiritual, segundo o sufismo - o princípio básico da verdadeira comunidade sufi e da expressão social.

ram "infiéis" por não participarem dele. Historicamente, os sufistas insistiram que alguns indivíduos iluminados po-

Ao estudar o sufismo como um caminho não-autoritário, não se pode deixar de notar uma aparente contradição: a exigência de que o iniciado sufi se entregue

dem interpretar o Alcorão, enquanto fundamentalistas insistiram em que sua visão "abalizadà' não era de modo algum uma interpretação, mas a "própria essência do

inteiramente às instruções de um professor ou mestre. Como vimos, o iniciado sufi precisa de surpresa constante para permanecer desperto. Um programa

livro". Contudo, a interpretação autoritária da religião muçulmana pode não estar baseada de modo algum no Alcorão. Segundo Ernst, "o termo árabe islã [significando rendição] (... )era de( ... ) menor importância nas teologias clássicas baseadas no Alcorão; e denota as mínimas formas externas de submissão a deveres

de de um relacionamento com um mestre vivo. (Como em quase tudo neste livro, há exceções à regra. Em Sacred Drift, Wilson analisa um caminho sufi que não tem

religiosos. (... )O termo fundamental da identidade religiosa não é islã, mas imã, ou fé.( ... ) A fé é( ... ) mencionada centenas de vezes [no Alcorão]. Islã é mencionado

gurus.) É, talvez, uma charada peculiar para uma religião não-doutrinária. Mas, então, é precisamente a ausência de doutrina e de rituais repetitivos que não deixa

apenas oito vezes:' De fato, Ernst assevera que a ênfase no islã foi um presente de orientalistas

outro caminho para a esperança sufi. O verdadeiro mestre sufi trabalha intuitivamente com cada iniciado, provocando sua psique para tirá-la da modorra- esti-

europeus e foi utilizada para definir a cultura muçulmana como atrasada em comparação com o Ocidente pós-iluminismo. Ernst acrescenta que, à luz dos horrores de sua atual forma dominante, muitos dos que hoje (serenamente) abraçam o

com seus próprios termos.( ... ) o discípulo [sufi] (... )não pode estabelecer condições. (... )No desenvolvimento da mente humana há uma constante mudança e um limite para a eficácia de qualquer técnica específica. Essa característica da prática sufi é ignorada em um sistema repetitivo:' Shah continua, citando um iniciado sufi

i '

entregarem a um "mestre': De fato, dadas as tendências humanas, é preciso admitir

tas de todas as grandes religiões, o sufismo também afirma que todo e qualquer ser humano pode ser divinamente inspirado. Esse nivelamento faz da irmandade igua-

mulando-o por intermédio de práticas e processos estabelecidos especificamente para descondicionar aquele individuo. Shah escreveu: '1\s pessoas( ... ) tentam se envolver em misticismo de acordo

'. 1

cos - gurus e pessoas do tipo Werner Erhard, que na verdade estavam nisso por dinheiro e poder - são compreensivelmente cautelosos no que diz respeito a se

gência e intuição na escolha de um professor ou não se envolver com o processo sufi. E, diferentemente do fundamentalismo islâmico, ninguém que conhecemos tentou forçar as pessoas a praticarem o sufismo (isso não iria funcionar) ou mata-

preestabelecido de meditações, procedimentos e/ou exercícios não é suficiente. Ainda mais do que no caso da iluminação zen ou taoísta, a iluminação sufi depen-

,I

estava andando em círculos segundo um padrão". Ocidentais que conheceram várias gerações de escrotos espirituais e psicológi-

sufismo no mundo islâmico se recusam a acreditar que sua amorosa prática poética tenha qualquer coisa a ver com a religião muçulmana. O status sagrado atribuído à vontade individual no sufismo também se reflete na prática da medicina sufi. Nesse caso, o pedido de cura, bem como o diagnóstico e o tratamento, precisa se originar do paciente, deixando ao médico o papel de conselheiro e facilitador.

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Apesar de suas diferenças óbvias, os sufis e os muçulmanos conservadores vive-

AMOR E EVOLUÇÃO

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Quanto mais as coisas mudam ...

ram em relativa tolerância mútua ao longo da maior parte da história da religião. Surgiram problemas sérios na pessoa de um estudioso muçulmano conservador cha-

A evolução pessoal- a característica contracultura! básica da mudança cons-

mado Muhammad ibn Abd al-Wahhab, no final do século XVII, início do século

tante - desempenha um papel significativo na ordem sufi. Mas a evolução sufi

XVIII. O wahhabismo é o cerne dos mais virulentos e autoritários movimentos

funciona de uma forma pouco usual. Por um lado, Shah distingue o sufi do

fundamentalistas islâmicos de hoje. A eliminação do sufismo pelo islamismo chegou

antidinamismo do budismo ou hinduísmo convencional, e afirma que "O sufi (... )

ao ápice durante o governo do aiatolá Khomeini no Irã, após a revolução de 1978.

está indo para algum lugar, não sendo mantido em (... ) alguma espécie de normà:

O conflito continua hoje. Em uma conferência sobre o extremismo islâmico no

E ele amplia esse ponto para além do pessoal, de modo a incluir a evolução social:

departamento de Estado dos Estados Unidos em 1999, Shaykh Muhammad Hisham

"Os sufis acreditam que( ... ) a humanidade está evoluindo para um certo destino.

Kabbani destacou que os wahhabistas são "inteiramente contra o sufismo porque

Todos tomamos parte dessa evolução. Os órgãos passam a existir como resultado da

pensam que podem ir diretamente a Deus sem a intercessão de qualquer santo':

necessidade de órgãos específicos. O organismo do ser humano está produzindo novos órgãos em resposta a essa necessidade:' De fato, essas e outras extraordinárias antecipações sufistas pré-darwinianas da teoria evolucionária levaram Shah a

Escondido à vista de todos O caráter misterioso (literalmente, "escondido") do sufismo parece divergir de uma significativa característica contracultura! secundária (como a definimos). O sufismo não defende o compartilhamento da informação per se. Há no sistema de crenças sufi uma hierarquia meritocrática na qual a informação é presumivelmente

afirmar que "a mais antiga teoria conhecida da( ... ) evolução é de origem sufi". Por outro lado, Shah declara: ''A psicologia aprende à medida que evolui. O sufismo já sabe:' Presumivelmente, Deus sabe, e os humanos evoluem na direção de Deus. Ou talvez a verdade acolha a pura contradição - a verdade é enigmática. Vamos deixar assim.

transmitida aos iniciados com base em o quanto eles estão preparados para recebê-la. Mas há poucos comentários sobre isso na literatura. Isso não parece ser uma questão

Sufi em ação

importante a ser enfatizada. Na verdade, como a religião inclui um número mais do que suficiente de escritores e poetas, os sufis provavelmente partilham excessiva-

Dado o caráter não-nonsense das práticas sufi de descondicionamento, pode-

mente todos os seus segredos. A dimensão oculta parece se dever principalmente à

mos concluir que ele é uma filosofia religiosa seca e sem humor (e mesmo ocasio-

inabilidade de alguém de fora da experiência compreender o que está sendo revelado.

nalmente pétrea). Mas esse não é o caso. Na verdade, ao lado de Rumi, as mais

Em outras palavras, o não-iluminado não pode receber certos tipos de informação

populares manifestações públicas do pensamento sufi são as histórias de N asruddin,

nem tanto por ser ela proibida, mas por sua própria incapacidade.

contos educativos bem-humorados baseados em um mulá errante. As histórias de

Consideremos novamente as palavras de Henry Bayman, citadas anteriormente

Nasruddin são semelhantes aos koan zen e às histórias taoístas do Chuang-tzu.

neste capítulo: "No pensamento islâmico e sufi, o mundo do significado complementa

Contudo, mais do que encarnar o inescrutável mestre sábio, Nasruddin encarnao

o mundo da matéria, exatamente porque fornece o significado que falta ao mundo

idiota, imitando o comportamento repetitivo. O exemplo famoso tem Nasruddin

material': Esse conceito da criação como a significação manifesta de Deus dá um

buscando suas chaves em um lugar, embora ele as tenha deixado cair em outro

sentido misterioso à cosmogonia sufi. Para os sufis, a iluminação exige não apenas a

ponto, apenas porque uma luz está brilhando no lugar onde ele conduz a sua busca

libertação do ego, mas estudo e esforço para revelar a mensagem de Deus. Pesquisa

inútil. Nós rimos, mas também nos está sendo mostrado como nós ficamos (física,

matemática, numerológica, cosmológica, lingüística, alquímica e científica, tanto

psicológica e/ou espiritualmente) onde nos é conveniente e como inutilmente

"sagradà' quanto prática, surgem naturalmente desse desafio.

tentamos resolver problemas que podem ser superados apenas nos movendo.

140

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Nasruddin foi um exemplo do espírito brincalhão su:fi. Reforçando nossas primeiras descrições de mestres zen radicais, Ernst escreve: "O mulá [Nasruddin] tomou o caminho do idiota para a sabedoria e a sobrevivência. Face às vicissitudes de seu tempo, ele manteve um sorriso sereno e irônico e adotou uma abordagem mutável da vida. (. .. )Ele viajava regularmente. Com uma mente afiada, uma inteligência aguda( ... ) ele também tinha a inabalável ingenuidade de uma criança:'

A contaminação su:fi

AMOREEVOLUÇÃO

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tempos em tempos - escondem sua filosofia ainda mais subversiva sob uma capa sufi.) Burton, ele mesmo um iniciado sufi, integrou a transcendência sufi de cegueiras religiosas e étnicas em seus estudos de culturas nativas no século XIX. Isso estabeleceu um contraponto naturalista- embora não acrítico -aos paradigmas etnocêntricos desenvolvidos por muitos de seus contemporâneos no estudo antropológico. A ênfase do sufismo na experiência individual como forma de atingir a verdade desempenhou um papel direto na origem do método empírico como base da ciência moderna. Frei Roger Bacon, que estabeleceu as fundações do método científico no século XIII, deu o crédito a certos "iluminados" orientais em suas famosas

A influência sufi na cultura ocidental é profunda, mas difícil de traçar com precisão. A maioria dos historiadores considera que o sufismo viajou do Marrocos

conferências de Oxford. Essas referências crípticas foram consideradas como alusões a uma irmandade sufi também reverenciada por São Francisco de Assis -

árabe para a Espanha. Annemarie Schimmel, autora de Mystical Dimensions of

outro portal fundamental para a entrada da influência sufi no Ocidente. (Tanto Bacon quanto São Francisco pertenceram à mesma ordem de monges - uma que

Islam, diz que o estudioso catalão do final do século XIII Ramon Lull foi o primei-

ro europeu a apresentar uma influência sufi. Alguns séculos mais tarde, escreve Schimmel, o chanceler de Luís IX transmitiu à Europa a lenda de Rabia alAdawiyya, uma santa sufi do século VIII. A difusão histórica do sufismo é grande e impressionante. A História das mil e uma noites, a história de Guilherme Tell e grande parte do Dom Quixote de

foi claramente submetida a alguma forma de treinamento sufi por pelo menos algumas gerações.)

O que vem, volta

Cervantes apresentam influência sufi. Por volta do ano 1000, os sufis produziram a primeira enciclopédia a surgir no mundo ocidental. Se não fosse pela documentação e preservação da cabala que fazia parte dessa obra, poderia nunca ter ocorrido a democratização e o renascimento do judaísmo no século XIX por intermédio do advento do hassidismo, para o qual a cabala é fundamental. No próximo capítulo, nós mostramos a influência que o sufismo teria tido sobre os trovadores e, portanto, sobre a música, a poesia e o romance ocidentais.

1

verdade, poderia ser dito imposto) aparentemente considerou que um pouco de influência da contracultura poderia ser saudável para o povo após o regime ultrapuritano do Talibã. Um artigo publicado na edição de 24 de abril de 2002 do Financiai Times e intitulado '1\fegãos oferecem antídoto sensual ao Talibâ' afirmou:

O cônsul britânico, explorador e protótipo de etnógrafo Sir Richard Burton

O governo interino do Afeganistão está tentando quebrar o controle

chamou a atenção para o fato de que o sufismo era "o pai oriental da maçonaria". De fato, um exame atento da influência do sufismo revela um papel multifacetado

moral e intelectual do Talibã sobre a sociedade afegã divulgando a poe-

como antepassado do pensamento democrático ocidental. (Wilson sugere que era tecnicamente provável uma dissidência muçulmana relacionada e mais radical

\

Para o bem ou para o mal, o governo afegão apoiado pelos Estados Unidos (na

sia do poeta do século XIII Jalal al-Din Rumi, que defendia o uso de narcóticos e vinho, amor sensual e dança como antídoto para a intolerância religiosa. O Afeganistão foi um importante centro do sufismo.

que influenciou esses apóstatas europeus - uma seita ismaeliana liderada pelo xeque Hassan I Sabbah, um guerreiro consumidor de haxixe muito mitificado por

pela Unesco, o Ministério da Informação gostaria de estimular o

William S. Burroughs. Os ismaelianos são primos próximos dos sufis que - de

renascimento da heterodoxia sufi: em síntese, a construção de uma

Patrocinador de uma conferência de dois dias sobre Rumi financiada

142

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

ordem social e cultural pós-muçulmana. O primeiro-ministro Hamid Karzai abriu a conferência destacando que o sufismo de Rumi "irá reabilitar o eu e a sociedade [pós-Talibã] como um todo': Rumi chegou até mesmo a ser rebatizado de Jalal al-Din al-Balkhi por sua origem em

CAPÍTULO SETE

Refazendo amor Os trovadores e o espírito herético da Provença

Balk.h, Afeganistão. A conferência incluiu tradicionais dervixes rodopiantes turcos [Mevlevi]. Como Rumi observou em um poema: "Não sou muçulmano nem hindu./ Não sou cristão, zoroastrista nem judeu,/ não sou Oriente ou Ocidente/ ... Eu sou o todo divino:' Em outro poema, Rumi observa: "Quando nos tornarmos nós mesmos vinho,/ o vinho será eliminado!! Quando nos tornarmos totalmente haxixe,/ o haxixe será destronado!:'

Pela primeira vez as pessoas escreveram sobre o amor: amor cortês, amor adúltero, amor dos trovadores, e foram fundo nas coisas. Os trova-

O procurador-geral dos Estados Unidos, John Ashcroft (do governo George W. Bush), não participou.

dores, por exemplo, eram pessoas que escreviam sobre um "tremendo" e "inacessível" amor e respeito pela dama. Pela primeira vez, a dama é elevada ao nível do homem, e isso é o mais marcante na cultura e talvez o elemento simbólico da efervescência cultural dos séculos XII e XIII. Gerard Zuchero, Rosamunda Os trovadores eram poetas e músicos que cruzaram o sul da França, a Espanha mediterrânea e o norte da Itália entre 1100 e 1300, apresentando composições dedicadas ao Espírito Feminino e a suas manifestações físicas. Concentrados na região da Provença que mais tarde se tornou parte da França, os trovadores eram patrocinados por lordes e damas, viajavam com eles e se apresentavam em suas cortes. A própria palavra trovador vem do árabe, significando algo como "inventor de canções" e trazendo embutidas as idéias de criatividade, descoberta e originalidade. O registro histórico avalia os trovadores em aproximadamente quatrocentos indivíduos que viveram duráilte o período de dois séculos conhecido como Alta Idade Média. Os trovadores expressavam sua adoração da feminilidade escrevendo canções dedicadas a uma mulher real- especificamente uma nobre que já estava comprometida. O deslumbramento com o qual o trovador via a mulher que inspirava suas canções é exemplificado nesse poema de Arnaut Daniel, considerado por muitos o principal poeta do movimento, composto em homenagem a sua jovem amada:

II

r

144

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Estou cego para as outras, e o que dizem Não ouço. Só nela eu vejo, me movo Encanto. (... ) E não brinco. E palavras espalham Não a verdade, mas a boca não revela o todo do coração:

REFAZENDO AMOR

obedecesse às ordens dessa dama, não importando o que pudesse um de seus poemas, Arnaut faz piada com os dilemas dessa prática.

145

Em

Na história de Arnaut, uma certa lady Edna pede que seu trovador pretendente participe de um ato sexual que ele considera desagradável- na verdade, tão desagra-

Enquanto Deus não a tivesse lá para esse valor revelar.

dável que ele se recusa. Sua recusa, sendo uma completa violação do código de amor do trovador, lança toda a cultura dos trovadores em uma terrível controvérsia. Na história de Arnaut, os trovadores se dividem em dois times; um defendendo a recusa; outro a

E passei por muitos sítios formosos

criticando. O posterior debate é resumido em cinco versos grosseiros sobre o mérito (ou a falta dele) associado ao ato sexual em questão, cuja exata natureza pode ser

Não podia cruzar estradas, planícies, vales, montanhas ao acaso E encontrar toda a graça em uma só imagem

Para nela descobrir mais encanto que contraste afinal. (... ) Apenas nela. Razão e sentimento unidos

deduzida a partir de trocadilhos queArnaut faz com o local de origem do pretendente, "Cornil"- um homófono de "corn-hole': uma expressão coloquial para sexo anal.

Mocidade e beleza em glória, A nobreza a acalentou e assim conduziu Bem além de tudo o que é ruim,

Tomando liberdades

Onde sua excelência brilha, sem sombras a macular.

O claro erotismo e os audaciosos sentimentos adúlteros da canção do trovador O amor do trovador pela mulher cresceu até o ponto de devoção religiosa. Como diz o estudioso francês Louis Gillet: "Dirigindo-se a uma platéia de mulhe-

eram absolutamente revolucionários para aquele tempo e lugar. Consideremos, por exemplo, as linhas seguintes, compostas por Cercamon no século XII, apresen-

res, [os trovadores] inventaram o culto a elas. (... ) A mulher se tornou uma religião:' Inspiradas por essa devoção espiritual, suas canções eram tão frescas, tão inovado-

tadas em prosa por Robert Briffaut: "Envie o Deus salvador e eu poderei entretê-lo enquanto minha gentil dama trabalha; e talvez ela me envolva em meio a ela, e me

ras, tão inéditas que os ouvidos da Europa logo foram seduzidos.

ceda o que mantém bem guardado; deixe ela desavergonhadamente livre, depois destrave a fechadura e nem peça exclusiva veneração".

Riso e devoção A fervorosa devoção do movimento dos trovadores a todas as coisas femininas não retirou deles o humor. Pelo contrário, eles eram brincalhões. Um cronista descreve a frivolidade de Guilhem IX, considerado o primeiro trovador: "Ele não levava nada a sério, transformava tudo em brincadeira e fazia seus ouvintes rirem

Aproximadamente nesse mesmo período, Guilhem IX foi mais direto, declarando: "Quero falar a vocês sobre a boceta, qual a sua natureza( ... ) Embora tudo o mais diminua quando se faz uso dela, a boceta aumenta''. A total subversão da convenção e da moralidade contemporâneas representada por um erotismo tão explícito é apenas uma das demonstrações do caráter claramente contracultura! do movimento dos trovadores. Os trovadores também tinham uma atípica liberdade de expressão pessoal em questões políticas, religiosas,

descontrolados". O movimento trovador demonstrava uma das mais importantes qualidades

e mesmo nos negócios das cortes nobres que eles divertiam. Os trovadores eram tolerados - e, ao que parece, freqüentemente até mesmo

contraculturais, a capacidade de rir de si mesmo. Arnaut Daniel satirizava a

encorajados a tomar essas liberdades - pelas princesas e pelos príncipes que os patrocinavam. Tinha surgido na Provença uma nova nobreza, de tendências contraculturais, que admirava a arte corajosa e a eloqüência mundana dos trovadores.

contracultura que dera a ele fama. Como o estilo de vida do trovador era baseado na devoção e no servir à dama dona de seus afetos, era comum que ele sempre

146

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Os trovadores usavam sua liberdade de expressão para questionar as características da cultura hegemônica. Em seu clássico e lírico estudo de 1945, The Troubadours, Robert Briffault descreve sua crítica ampla e fundamentalmente contracultura!: " [O trovador] açoita todas as formas de egoísmo, trapaça e falsida-

de, tanto nas mulheres quanto em grandes senhores de súditos, e sua revolta dá a esse poeta arcaico um sabor moderno': A caracterização de Briffault traz à mente a iconoclastia socrática, o "Uivo" dos beats contra a injustiça e a hipocrisia de seu tempo e as provocações anti-sociais do movimento punk. Como contraculturalistas de outros períodos, muitos trovadores eram essencialmente itinerantes. Trovadores viajavam muito, sendo recebidos e apoiados por cidades, aldeias e cortes nobres por toda a sua terra em função de seu charme e do apelo poderoso de sua audaciosa nova música. Como no caso de muitos contraculturalistas, a defesa, pelos trovadores, da liber-

REFAZENDOAMOR

147

atribuíram esse feliz desvio legal a uma série cumulativa de "enganos" que com o tempo acabaram se estabelecendo como precedentes, enquanto outros o atribuem a uma abertura generalizada ocorrida naquela época. Com a grave perda de vidas masculinas como resultado das Cruzadas, tornou-se real a possibilidade de as mulheres assumirem o poder sob as leis daquelas regiões. As tendências contraculturais da nobreza eram estimuladas pela introdução de novas perspectivas por uma nova geração de poderosas mulheres nobres, que deram um apoio fundamental à arte dos trovadores, estimulando vigorosamente a sua presença nas suas cortes. Essas novas, muito corajosas e algumas vezes muito jovens princesas do poder feminino se enrolaram na música dos trovadores como um manto simbólico, indicando sua estatura e afirmando sua capacidade para a liderança. A veneração e

dade algumas vezes levou ao que muitos poderiam considerar "irresponsabilidade"

elevação da mulher pelos trovadores serviram como um bálsamo publicitário que abrandou e sutilmente doutrinou os elementos mais conservadores da sociedade.

e excessos libertinos. A descrição de Arnaut Daniel, a seguir, feita por um de seus contemporâneos no movimento dos trovadores, retrata um tipo familiar de dissi-

A música, o estilo e os modos dos trovadores encantaram, distraíram e fascinaram - amenizando o medo conservador dessa transformação.

pação contracultura!: '1\rnaut, o estudioso que é arruinado pelos dados e pelo gamão e segue como um penitente, pobre de roupas e dinheiro': O trovador que traçou essas linhas poderia estar escrevendo sobre o ícone beat Neal Cassady ou muitos outros bem conhecidos personagens contraculturais.

Contracultura palaciana Os trovadores eram sustentados por elementos da nobreza espanhola que também formaram alianças com grupos heréticos e algumas vezes desprezaram abertamente a Igreja. Ademais, mulheres bem-nascidas tinham assumido posições de poder na hierarquia da nobreza. As leis feudais de herança na Provença, berço do movimento dos trovadores- especialmente na Aquitânia, região da Provença que era o exato local de nascimento do movimento -, eram muito mais liberais em relação às mulheres do que as de outras regiões. Nessas áreas, as mulheres não recebiam apenas a autorização de administrar a propriedade durante o período em que não havia um mandatário do sexo masculino disponível, elas tinham a permissão de herdar, possuir e administrar seus próprios bens. Alguns historiadores

A mágica da Provença A Provença da Alta Idade Média foi o produto de uma impressionantemente multifacetada, culturalmente dinâmica e historicamente fundamental interação islâmico-cristã. Os mouros, ramo do "império" islâmico que dominou grande parte da Espanha durante aquela época, eram caracterizados por sua profunda apreciação e prática das artes e de todas as formas de estudo, bem como por uma refinada devoção à arte de viver. Entre os mouros, as mulheres igualmente tinham um status inusitadamente alto para a época nos campos artístico, político e intelectual. Enquanto isso, o feudalismo e a cavalaria evoluíam e se espalhavam por toda a Europa cristã. Com as mulheres atingindo um grau de poder econômico e político sem precedentes na cristandade, o status das nobres na Provença e em outras regiões logo igualou e até mesmo superou o status de suas irmãs mouras. Em primeiro lugar entre as recém-fortalecidas mulheres da cristandade estava Eleanor da Aquitânia, que se tornou rainha da França e, mais tarde, rainha da Inglaterra. As cortes de Eleanor eram importantes patrocinadoras do movimento dos trovadores e de sua arte.

148

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Impressionantemente semelhantes em temperamento, a Europa cristã e o islamismo mouro se misturaram e se fecundaram mutuamente ao longo da fronteira entre a Provença e a Espanha moura. Como destaca Briffault: "Nenhum (. .. ) fanatismo existiu ao longo dos três séculos durante os quais os dois povos, cristãos e muçulmanos, viveram lado a lado. A questão religiosa não fazia parte da política dos governantes da Espanha; eles não se colocavam como defensores da fé. (. .. ) Mesmo depois que os reinos cristãos tinham começado a se expandir, os reis cristãos não estavam preocupados em expulsar os mouros da península:' Influenciada pela íntima interação com a tolerante, artística e espiritualmente refinada corrente moura do império islâmico, a Provença cristã se tomou um abrigo para a heresia. Alfonso I, o Batalhador, derrubou o arcebispo católico local e estreitou as ligações entre o ramo espanhol da igreja e a "Mãe Româ: Os cátaros e os cavaleiros templários, grupos heréticos que se espalhavam da Terra Santa à Alemanha, receberam abrigo e apoio na Provença, conseguindo aliados e financiadores entre os mesmos nobres livre-pensadores que apoiavam o irreverente e subversivo movimento dos trovadores. E os trovadores foram expostos às influências poéticas e musicais mouras, transmitindo-as a toda a Europa ocidental. Agindo assim, os trovadores abriram um canal de inseminação cultural que desempenharia vários papéis importantes nas rápidas mudanças que ocorriam na cristandade européia.

Amor verdadeiro Em uma época em que a união e o casamento eram determinados basicamente pelos interesses econômicos e políticos das famílias, os trovadores introduziram ou, pelo menos, reintroduziram- a noção de amor romântico na cultura ocidental. Esse tipo de amor tinha sido negligenciado no Ocidente desde que os mitos greco-romanos- caracterizados por romances apaixonados e turbulentos entre deusas e deuses- tinham sido substituídos pela teologia romanticamente árida da cristandade. De fato, quando os trovadores surgiram, aproximadamente no início do século XII, a idéia de que uma união pudesse ser fruto de escolhas do coração - em oposição à necessidade material ou às forças das convenções sociais - era uma grande novidade, inteiramente oposta a séculos de sólidas tradições.

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REFAZENDO AMOR

149

Contudo, à medida que os trovadores conquistavam popularidade, eles modificaram a cultura. O conceito de amor romântico se ergueu como um sol resplandecente sobre o mundo ocidental, assumindo sua atual posição como a força primordial por trás da corte e da união- o ritmo subjacente que conduz toda a dança que brota como parceria íntima. Graças aos trovadores, hoje as parcerias ocidentais não são arranjadas e impostas por interesses sociais, mas determinadas pelo amor (idealmente, pelo menos) entre duas pessoas que escolhem uma à outra. Hoje, claro, alguns contraculturalistas consideram o amor romântico, limitado a dois indivíduos, algo burguês e reacionário, ou pelo menos esvaziado de significado por uma avalanche de banalidades e comercialização exagerada. Mas, no contexto daquela época, a reinvenção, ou reconstrução, pelos trovadores, do amor para todo o mundo ocidental foi, como escreveu Gillet, "uma revolução de enorme alcance. Aqueles poetas arcaicos, que hoje ninguém lê (... )escreveram suas obras para séculos de posteridade e cravaram bem fundo em nossas mentes a característica fundamental de nossa civilização. ( ... ) Eles produziram uma mudança que era tão sem precedentes que os seus efeitos foram incalculáveis. Foi um verdadeiro ato de criação moral, o mais original da Idade Média, um tipo de amor totalmente desligado da idéia de geração e de reprodução da espécie:'

Raízes sufis Uma precisa caracterização do movimento dos trovadores é difícil, em função de um registro histórico confuso - embora ricamente ambíguo -, repleto de lendas, hipérboles e textos apócrifos. De fato, estudiosos que documentaram esse grupo ao longo dos sete séculos após seu desaparecimento se dividem em dois campos opostos, em função de questões fundamentais acerca da natureza dos trovadores e dos objetivos e das influências que comandaram sua arte. Uma divisão envolve a origem do verso e da música dos trovadores. Tradicionalmente, os historiadores supunham que eles tinham surgido do nada os trovadores simplesmente os tinham inventado. O historiador Frances Gies destaca que a poesia dos trovadores foi freqüentemente comparada com "uma flor que parece surgir de repente, sem raiz ou tronco".

150

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Essa visão claramente tem um forte viés ocidental. Não é preciso procurar além

REFAZENDOAMOR

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Sexo, Deus ou ambos?

da presença moura na Provença para encontnir as raízes do idioma dos trovadores. Os trovadores utilizavam instrumentos musicais mouros (!), incluindo a rabeca, um antepassado do violino.

As mulheres às quais os trovadores dedicavam seus poemas de amor eram invariavelmente casadas - normalmente com um poderoso lorde nobre. Alguns tro-

Em The Troubadours, Robert Briffault oferece um longo e convincente argumento para as origens mouras da arte dos trovadores. Seu estudo detalhado traz um exame

vadores chegaram mesmo a escrever relatos bastante explícitos de seus casos com essas mulheres.

particularmente cuidadoso da estrutura da música, a estrutura do verso e a métrica,

Os sentimentos adúlteros professados nos versos dos trovadores -juntamente

demonstrando como a obra dos trovadores reproduz claramente os idiomas mouros.

com o franco erotismo da poesia do movimento em geral- estão no centro de outra

A presença sufi na cultura da Espanha moura foi forte, e Briffault cita especifi-

grande divisão acadêmica. Há duas visões inteiramente opostas acerca de quão lite-

camente formas sufis de poesia e música devocional como raízes da arte dos trovadores. Em Os sufis, Idries Shah

ralmente devem ser consideradas as imagens eróticas dos trovadores.

o mais importante expoente e historiador do

Alguns estudiosos, apresentando atitudes que vão da condenação moral à

sufismo radical no século XX - se concentra nas correspondências lingüísticas e

bajulação explícita, aceitam quase que literalmente o desejo expresso dos trovado-

semânticas entre os idiomas sufi e dos trovadores, remetendo as palavras, sílabas

res por- e relatos ocasionais de suas ligações sexuais com- as bem-nascidas

e frases provençais usadas repetidamente nas canções dos trovadores às raízes

mulheres comprometidas de seu tempo. Assim, os trovadores foram chamados de

árabes e aos significados sufis subjacentes. O historiador Robert Graves endossou

um "culto do adultério".

o trabalho de Shah nessa área. Os trabalhos de Briffault, Shah e Graves demonstraram

quase que incontestavelmente - que a arte dos trovadores foi alimentada

por expressões devocionais do sufismo místico.

Tradicionalmente, porém, a maioria dos estudiosos tem insistido em uma rígida interpretação metafórica do conteúdo erótico dos versos dos trovadores, defendendo uma perspectiva que lembra muitas das interpretações judaico-cristãs das

Embora as canções sufis e dos trovadores fossem intimamente ligadas na for-

vívidas imagens sexuais contidas no bíblico Cântico dos cânticos. Esses estudiosos

ma, elas diferiam no conteúdo. Os dois idiomas eram devocionais por natureza:

sustentam que os trovadores eram celibatários místicos cujas imagens eróticas

enquanto os sufis cantavam louvor ao Ser Divino do islamismo esotérico, os trova-

eram metáforas para o intercurso puramente espiritual que ocorria entre a alma de

dores louvavam suas musas femininas vivas.

um homem profundamente religioso e a divindade à qual ele se entregava.

Músicos de rua fornecem o último elo na cadeia entre a contracultura sufi do

Essa abordagem espiritual casta da poesia sexual dos trovadores é coerente com

islamismo e a contracultura trovadoresca do cristianismo. A primeira geração de

a influência das canções devocionais sufis sobre a obra do movimento e com a

trovadores tomou sua linguagem das ruas da Provença. Ali, músicos errantes de classe

superposição entre os trovadores e os cátaros heréticos do mesmo período. Os

baixa- como os músicos de rua de hoje- tinham começado a cantar suas próprias

cátaros abraçavam uma forma de gnosticismo que tinha uma concepção profunda-

versões de canções mouras e sufis em sua língua provençal nativa.

mente dualista do relacionamento entre espírito e matéria. Eles abstinham-se da

A elite educada da cristandade debochava dessa linguagem das ruas, conside-

carne e de seus desejos como parte do âmbito material, que eles consideravam

rando-a primária, vulgar e não merecedora de atenção. Mas os jovens nobres da

como sendo um reflexo corrupto, degradado e distorcido do puro e perfeito âmbito

Provença a consideraram fascinante. Eles ignoraram as opiniões da elite educada,

do espírito.

abandonando suas nobres pretensões para aprender a nova arte com os composi-

Ainda assim, essa visão dos trovadores como praticantes castos de uma poesia

tores itinerantes das ruas. Esses jovens nobres refinaram e divulgaram essa forma

erótica puramente metafórica é difícil de sustentar. A poesia dos trovadores de-

até que, no espaço de algumas gerações, ela se transformou na diversão musical

monstra um conhecimento detalhado tanto da mecânica corporal quanto da dinâ-

preferida da corte para um grande segmento da cristandade nobre regional.

mica psicológica das relações sexuais humanas. E embora o desejo dos trovadores

152

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

REFAZENDOAMOR

por sua dama fosse freqüentemente expresso em um tom transcendentalmente espiritual, também era algumas vezes expresso em termos obscenos e vulgares que dificilmente sugeririam um misticismo erótico puramente casto.

153

literal. Uma dimensão espiritual claramente cobre grande parte das imagens sexuais dos trovadores. É assim que K H. Maahs descreve a devoção de um minnesinger

Finalmente, temos a (felizmente apócrifa) história do falecimento, no final do

alemão à sua dama: "Seu amor é tecido com fios de experiência visionária e fervor quase religioso':

século XII, de um trovador chamado Guilhem de Cabestanh. Guilhem, ficamos saben-

Mais que interpretar a poesia erótica dos trovadores exclusivamente de modo

do, encontrou seu fim quando o ciumento marido do objeto de suas canções de amor

literal ou como sendo exclusivamente metafórica, nós propomos uma síntese. Talvez

o matou -:- e deu o coração de Guilhem à sua mulher, esperando que ela preparasse

muitos- ou mesmo a maioria- dos trovadores fossem igualmente místicos influen-

uma refeição com o órgão vital do falecido trovador. Verdadeira ou não, essa história

ciados pelos cátaros ou pelos sufis e ousados aventureiros sexuais. Talvez os trovado-

de adultério vingado não é do tipo que poderíamos esperar encontrar dizendo respei-

res fossem uma espécie mbrida místico-carnal, exploradores intrépidos das alturas e

to à vida (ou à morte) de um casto e puro compositor de poesia mística devocional.

das profundezas da experiência sexual humana que- como os tantristas da Índia ou

De fato, a documentação histórica sugere claramente que a interpretação ex-

aqueles iniciados pelas "prostitutas sagradas" dos antigos Cultos de Mistério - en-

clusivamente metafórica do erotismo dos trovadores surgiu pela primeira vez de-

contraram uma passagem para o êxtase espiritual na união sexual com uma mulher

pois que o movimento dos trovadores, em si, tinha se dissipado. Como afirmaBriffault,

da qual eles se aproximaram como sendo uma encarnação do Divino Feminino.

antes da "aniquilação (... ) da sociedade que produziu o desenvolvimento da litera-

Qualquer verso erótico saído da pena de sexualistas místicos como esses teria

tura [dos trovadores] (... )não há nada na poesia dos trovadores que sugira uma

- como a maior parte da poesia de qualidade - múltiplos níveis de significado,

idealização platônica da paixão':

permitindo simultaneamente leituras literais e metafóricas. Assim, parece mais

A influência da Igreja Católica nessa satanização ex postJacto da herança dos

provável que tanto a luxúria carnal quanto a comunhão transcendente cátaro-

trovadores não pode ser subestimada. Depois de o movimento dos trovadores per se

gnóstica com Deus recobrem o corpo do erotismo dos trovadores em diferentes graus, dependendo da obra que está sendo estudada.

ter chegado ao fim, a Igreja estava sendo confrontada por um enorme desafio: o legado artístico dos trovadores - inteiramente em conflito com a moral sexual que a Igreja estava tentando impor

continuava a ser extremamente popular.

Os interesses da Igreja foram muito bem atendidos por uma escola de escribas

Troveiras

italianos que manteve a tradição da composição dos trovadores depois que o movi-

I

I1' - 1..

mento em si tinha desaparecido. Eles eram católicos ortodoxos - nas palavras de

Os trovadores geralmente são identificados como se o movimento fosse formado

Briffault, "expoentes conformistas do gosto eclesiástico". Esse grupo estimulou a

inteiramente por homens. Mas houve importantes contribuições femininas à lin-

interpretação casta e catolicizada da imagística erótica dos trovadores.

guagem dos trovadores. Elas eram conhecidas como troveiras. Na verdade, antes de

Essa distorção da herança dos trovadores é um exemplo típico de como a cultu-

sua obra, nunca se tinha ouvido falar de mulheres poetas. Não surpreende que oito

ra hegemônica lida com uma erupção contracultura! tão forte que seu impacto não

das nove troveiras conhecidas tenham vivido na Aquitânia - a região em que o

pode simplesmente ser apagado - e, portanto, precisa ser integrado de uma forma

florescer do poder feminino da Alta Idade Média atingiu o ápice.

que ainda assim preserve os interesses do establishment. O establishment divulga

A obra das troveiras é tão audaciosa, franca e adúltera quanto a de seus colegas

uma interpretação conservadora e desonesta de um legado contracultura! e, graças

do sexo masculino. Veja, por exemplo, os versos abaixo, compostos pela condessa

ao seu poder, a transforma na "verdade" absoluta.

de Dia, no século XII, contendo o que a historiadora Gilda Lerner chama de "ex-

Nossos argumentos contrários a uma abordagem estritamente metafórica do

pressões incomumente francas do jogo de poder sexual": "Belo amigo, charmoso e

erotismo dos trovadores não pretendem defender uma interpretação puramente

gentil/ quando irei tê-lo sob meu poder?/ Se eu ao menos pudesse me deitar a seu

154

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

lado por urna hora/ e abraçá-lo amorosamente/ saiba que eu daria quase tudo; para

REFAZENDOAMOR

155

Essa manobra permitiu que o establishment católico pelo menos parcialmente

ter você no lugar de meu marido,/ mas só com a condição/ de que você prometa

reduzisse a ameaça representada pela crescentemente popular ética erótica dos

seguir as minhas ordens:'

trovadores. Ao perpetrar a prestidigitação por intermédio do qual o "culto do adul-

É urna pena, embora seja previsível, que os homens que transcreveram as

obras das troveiras tenham freqüentemente dado o crédito a si mesmos. Assim, os versos das troveiras foram muitas vezes atribuídos a trovadores supostamente escrevendo na voz feminina.

tério" dos trovadores reapareceu como o "culto à dama'' dos cavaleiros, a Igreja ofereceu um tema alternativo, relativamente inofensivo e aceitável. O segundo motivo pelo qual a Igreja criou a cavalaria cavalheiresca a partir do material bruto da contracultura dos trovadores tem a ver com a natureza da própria cavalaria original. Assim como a abordagem do romance e da sexualidade pelo trovador, a cavalaria de alguma forma precisava ser domada para se adequar às

Ao Senhor, com amor: trovadores e cavaleiros

necessidades da Igreja. A prática da cavalaria surgiu nos séculos IX e X como urna forma de ocupação

O relacionamento do movimento dos trovadores com a crescente classe con-

mercenária procurada por membros materialmente ambiciosos da classe camponesa.

temporânea dos cavaleiros teve um enorme significado histórico. Muitos trovado-

Apenas mais tarde os cavaleiros assumiram sua duradoura posição como a mais baixa

res eram cavaleiros, e muitos cavaleiros eram trovadores. Além das populares bala-

-embora altamente honrada- categoria da nobreza feudal. Os primeiros cavaleiros

das de amor, os trovadores escreveram e cantaram relatos de batalha e guerra que

geralmente eram rufiões obstinados, independentes, incontroláveis e armados (e

celebravam a coragem da cavalaria e da infantaria.

freqüentemente violentos). Inconstantes, eles certamente não eram nem de longe

Como nos diz Frances Gies, ''A mais importante influência do século XII sobre a

"cavalheirescos': Suas brincadeiras, aventuras e disputas mortíferas freqüentemente

classe dos cavaleiros está na (... ) profusão da literatura da cavalaria, acima de tudo da

perturbavam a paz civil de suas comunidades. No que dizia respeito à Igreja, os primei-

poesia dos trovadores': Sob a influência dos trovadores, a classe dos cavaleiros desen-

ros cavaleiros representavam urna ameaça aos códigos de comportamento católicos,

volveu sua influente ética da ''cavalaria" em relação às mulheres, também conhecida

bem como à propriedade da Igreja nas cidades onde os cavaleiros viviam ou iam lutar.

como a etiqueta do amor cavalheiresco ou "cortesão': Esse conjunto de compor-

Frances Gies resume vividamente a crise que se aproximava: "o cavaleiro real

tamentos altamente estruturado - cujos vestígios podem ser identificados hoje

do século X (... ) [era] ignorante e iletrado, grosseiro na fala e nos modos; ele

no costume de os homens abrirem portas para as mulheres - coloca o cavaleiro no

ganhava a vida principalmente por intermédio da violência, e não era controlado

papel de serviçal, protetor e (se necessário) responsável pelo resgate da mulher.

por urna justiça pública que praticamente desaparecera. Disputas civis, bem como

A ética cavalheiresca adotada pelos cavaleiros foi urna formalização e codificação

questões criminais, tinham deixado de ser solucionadas pelo enfraquecido poder

do estilo de romance mais individualizado, mais fluido e espontaneamente orgâ-

real, passando a ser resolvidos pela espada. A parcela desarmada da população, a

nico praticado pelos trovadores. Em outras palavras, a ética do amor cortesão era

Igreja e os camponeses eram vítimas ou testemunhas. (... ) A anarquia dominante

urna cooptação ou "hegemonização" das contraculturais formas românticas e se-

estimulou urna ação reparadora. Ela veio de parte da Igreja:'

xuais dos trovadores. Em oposição às escapadas eróticas incontroláveis, imprevisíveis e freqüentemente

I 1

Em urna manobra magistral concebida para reduzir a ameaça representada pela crescente classe dos cavaleiros profissionais

e para colocar as suas grosseiras

adúlteras da contracultura dos trovadores, o código do cavalheirismo era aceitável

mas consideráveis energias a serviço do establishment feudal controlado pela Igre-

para o cristianismo hegemônico. De fato, a recriação do estilo romântico dos

ja -, a Igreja passou a acolher (e, portanto, controlar e civilizar) a classe dos

trovadores na instituição do cavalheirismo foi estabelecida e imposta à nascente

cavaleiros. A Igreja transformou a imagem da cavalaria de mercenários campone-

classe dos cavaleiros pela Igreja Católica.

ses em corajosos e elegantes servidores da nobreza, patrocinando aqueles que

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

queriam ser cavaleiros, fazendo-os passar por um treinamento cristão e instituindo o ritual de iniciação no qual os aspirantes eram "consagrados" na cavalaria e recebiam o título de "Sir': A Igreja treinou cavaleiros em um código de cavalaria que eles criaram metamorfoseando a ética do romance dos trovadores para seus próprios objetivos. Cavaleiros que de outra forma poderiam ter sido inspirados pelo modelo trovador a viver aventuras românticas adúlteras - executadas com a força bruta do camponês armado em oposição à refinada maestria lírica do trovador- foram doutrinados pela Igreja a acreditarem que tinham sido treinados como exemplos do que de melhor o trovador tinha a oferecer. A cavalaria se tornou genuinamente refinada por intermédio da influência da Igreja e posteriormente elevada por sua inclusão nos escalões da nobreza. À medida que esse processo tinha lugar, o movimento dos trovadores e a classe de cavaleiros passaram a se superpor e se misturar. Hoje - como se pode ver nos filmes, nos romances e em outros meios - nós recordamos e festejamos a ética conservadora da cavalaria muito mais freqüentemente do que lembramos da origem da cavalaria no audacioso mas refinado erotismo dos trovadores. Nesse sentido, a contracultura dos trovadores consegue seu impacto histórico mais visível por intermédio da revisão hegemônica de sua herança - em vez de por intermédio da prática continuada por sucessivas gerações da essência original daquela contracultura.

Uma cadeia de heresias

REFAZENDO AMOR

157

intermédio de seu contato com a cultura islâmica. Esses grupos abriram caminho para a clara marca sufi na maçonaria. A ligação entre o sufismo e a maçonaria é clara para qualquer um que esteja familiarizado com os princípios básicos dos dois movimentos, e tem sido destacada pelo historiador Robert Graves, pelo expoente sufi Idries Shah e pelo etnógrafo Sir Richard Burton- que era ao mesmo tempo maçom e iniciado sufi. Embora certamente heréticos, os cavaleiros templários, os cátaros e os primeiros maçons eram formais demais em suas estruturas para poderem ser considerados verdadeiras contraculturas. Mas a maçonaria do século XVIII desempenhou um importante papel nos levantes democráticos contraculturais abordados no próximo capítulo deste livro, "Revolução cultural e política''. Devido à cadeia de ligações que vai do sufismo à maçonaria e ao idealismo democrático, passando pelos cátaros e templários, o atual conceito de democracia ainda ecoa com a igualitária defesa da humanidade que foi pregada e praticada pelos sufis.

Ninguém espera a Inquisição espanhola No final do século XII, o espectro da perseguição pelo establishment católico se erguia sobre o movimento dos trovadores. A Igreja, de fato, tinha lançado uma campanha organizada contra todas as formas de heresia. A Inquisição espanhola foi em grande medida uma reação punitiva ao caldeirão de heresias em que tinha se transformado a Provença. A Igreja Católica declarou guerra aberta aos cavaleiros templários como resposta à ameaça representada pela formidável combinação de riqueza, independência da autoridade externa e força militar que os templários tinham conseguido. A

Nenhuma visão contraculturalmente orientada da Alta Idade Média poderia ser completa sem alguma noção dos importantes antecedentes da maçonaria localizados nesse período. Embora as primeiras lojas maçônicas não tenham sido

Igreja também estava furiosa com as alianças e as propriedades que os templários tinham estabelecido no Oriente islâmico, onde o grupo tinha sido encarregado

estabelecidas antes de 1717, a maçonaria foi em grande parte moldada com base

longo das rotas abertas pela Primeira Cruzada. Ao mesmo tempo, ·a Igreja foi atrás dos cátaros por causa de seu perigosamente

nos grupos de cátaros e especialmente de cavaleiros templários. De fato, a erradicação dos templários pela Igreja Católica provavelmente desempenhou um importante papel na decisão dos fundadores da maçonaria de protegerem sua organização operando como uma "sociedade secreta': Como os trovadores, os movimentos de cátaros e cavaleiros templários foram fortemente influenciados pelo sufismo esotérico ao qual tinham sido expostos por

pelo establishment católico de garantir a segurança dos peregrinos cristãos ao

atraente redespertar herético da cristandade gnóstica. As canções dos trovadores tinham se tornado parte da adoração cátara. A visibilidade da ligação entre os cátaros e os trovadores certamente não caiu bem para os trovadores. As autoridades religiosas começaram a declarar que a poesia em si era um pecado. A Igreja obrigou os cavaleiros a fazerem um juramento de que nunca mais

158

REFAZENDO AMOR

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

iriam compor versos. A ameaça que o novo militarismo católico representava para os trovadores se reflete nos atos de Guilhem de Montanhagol, uma espécie de agente duplo do movimento dos trovadores. Ele mesmo um importante trovador,

O renascimento dos trovadores A importância histórica da poesia [dos trovadores] (... ) talvez seja mai-

Montanhagol, que tinha composto uma invectiva contra monges católicos, fugiu

or do que a de qualquer outro agente isolado que tenha influenciado o

da Provença quando a Inquisição começou e buscou refúgio na Espanha moura. Mas após algum tempo retornou à Provença e tentou apaziguar as autoridades

desenvolvimento de nossas literaturas.

católicas, alegando que o movimento dos trovadores tinha surgido em uma casta e pura visão do amor. Embora o movimento pudesse ter sido corrompido,Montanhagol

159

Robert Briffault, The Troubadours

insistia em que podia ser reformado - com sua ajuda - e realinbado com seus

Além de outros aspectos da influência de seu movimento, a herança de composição dos trovadores, sozinha, mudou para sempre a face da poesia e da canção no mundo

valores originais. Nos versos compostos por Montanhagol nesse período encontramos a primeira utilização da palavra castidade na poesia dos trovadores.

ocidental. Ao longo de dois séculos eles praticaram, melhoraram e refinaram um estilo de verso e canção que se tornou fundamental para muitos desenvolvimentos posterio-

Sordello e outros que tinham criado a escola italiana que promoveu a interpretação puritana da poesia dos trovadores eram, de fato, discípulos e amigos de

res da literatura e da música folclórica e popular do Ocidente. A linguagem do trovador está, por exemplo, na origem da balada de amor em todas as suas muitas formas. Na época em que os próprios trovadores tinham deixado de existir, sua lingua-

Montanhagol. Briffault refere-se à versão desinfetada do conceito de amor dos trovadores como a "fraude devota de Montanhagol': Assim começou a distorção catolicizada da herança dos trovadores. Parece claro que os trovadores eram um importante alvo subjacente das campa-

gem já tinha sido adotada e estava sendo desenvolvida pelos minnesingers da Alemanha e os trouveres do norte da França. A música folclórica das Ilhas Britânicas foi revolucionada pelas formas e sensibilidades dos trovadores, que tinham sido

nhas católicas contra os cátaros e os templários. Mas, como um grupo não estruturado, desorganizado e não-hierarquizado, os trovadores não eram um bom alvo para um

levadas da Provença por Eleanor da Aquitânia- a grande defensora real da cultura dos trovadores- ao desembarcar na Inglaterra para tornar-se rainha. Por inter-

ataque direto. Contudo, para acabar com os templários e os cátaros, a Igreja mirou em seus

médio desses e de outros caminhos, a influência dos trovadores se espalhou, se transformando na matriz fundamental da música e da poesia ocidentais.

patrocinadores e aliados estabelecidos entre a nobreza- freqüentemente os mes-

Depois do desaparecimento dos trovadores originais, a Itália se transformou em um nexus crucial para a preservação e expansão de sua forma de arte. Como

mos reis que garantiram o foro cultural para o movimento dos trovadores. A Igreja acusou um grande número de nobres de diversos crimes e heresias, confiscou suas propriedades, aprisionou e algumas vezes os executou. Essa estratégia foi igualmente bem-sucedida na erradicação da ameaça dos trovadores. O colapso final de sua próspera subcultura financiadora precipitou o rápido desaparecimento do movimento dos trovadores. "Na França': lamenta Briffault, "a poesia dos trovadores não foi simplesmente condenada a cair no esquecimento; ela foi propositalmente colocada de lado e

explica Briffault, "a Itália foi a herdeira do legado dos trovadores, e se tornou, por assim dizer, a executora daquela herança': Por exemplo: a dívida da obra de Dante para com a poesia dos trovadores é enorme. Dante disse de Arnaut Daniel: "Na poesia do amor( ... ) [ele] supera todos os outros". Gerações de poetas e escritores, por sua vez, foram influenciados pelo corpus de Dante. O movimento dos trovadores forneceu um arquétipo fundamental para um

enterrada sem a menor consideração". Mas, como ele afirma, 'Mtes de mergulhar

grande leque de contraculturas e contraculturalistas do século XX. Vachel Lindsay; por exemplo, o influente visionário poeta-artista norte-americano que vagou pelo

no abismo do esquecimento, a arte dos trovadores tinha deixado sua marca em todas as literaturas líricas da Europa''.

país "sem um centavo e a pé" para espalhar sua profecia de uma iminente revolução contracultural, chamou a si mesmo de "trovador" e utilizou o trovador como imagem central para descrever sua missão. E Ezra Pound - freqüentemente

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

classificado como o maior poeta em língua inglesa do século XX- escreveu vários volumes analisando e pagando tributo ao legado poético dos trovadores. Como provocativos bardos da estrada, os trovadores serviram de modelo para o levante popular contracultura! dos anos 1960 nos Estados Unidos. Cantores folclóricos viajantes dos anos 1960 freqüentemente invocavam a identidade do trovador, e os jornalistas que documentavam o movimento ecoavam a afirmação. Bob Dylan e Donovan, entre outros, foram classificados de trovadores. Um popular clube de música folk em Los Angeles foi chamado de Troubadour, e uma banda americana de breve sucesso na época chegou mesmo a adotar o nome de The Troubadours. À medida que a década de 1960 corria, Dylan, Donovan, The Byrds, Jefferson Airplane e muitos músicos populares ao estilo trovador criaram um cenário musical audacioso e cortante para mover seus ataques poéticos crescentemente complexos à rigidez e ao convencionalismo. Eletrificados e psicodelizados, esses inovadores do folk ao rock se uniram a estrelas pop britânicas e músicos influenciados pelo blues para criar a trilha sonora tecnologicamente elaborada para uma grande e quase planetária explosão contracultura!. Essa revolução no som pode ser historicamente tão importante quanto o movimento original dos trovadores, na medida em que deu à luz uma linguagem rockhoje ouvida diariamente em todo o mundo. E em muitas composições do rock o ouvido atento ainda pode identificar ecos das canções dos trovadores da Provença medieval. Entre os incontáveis exemplos que poderiam ser citados está "Lady Janê: sucesso dos Rolling Stones de meados dos anos 1960: "Seu servo sou eu e humildemente serei.( ... )/ Eu me entrego a Lady Jane:' Esses versos exemplificam a total rendição do trovador à mulher que seu coração deseja. Sentimentos desse tipo estavam ausentes da poesia e da canção ocidentais antes da época dos trovadores. O que provavelmente é mais marcante na profundidade e amplitude do impacto original dos trovadores na história é o tamanho do movimento propriamente dito. Ele consistiu apenas de aproximadamente quatrocentos indivíduos espalhados ao longo de dois séculos em uma região geográfica relativamente pequena. Como os poucos socráticos originais, os pouco mais de doze fundadores do cristianismo e, talvez, os cem membros da Geração Perdida, e outras contraculturas abordadas neste livro, os trovadores foram, na verdade, um grupo muito pequeno. Essa é a prova de que um punhado de indivíduos de fato pode mudar o curso da história- especialmente se eles são movidos pela corajosa expressão pessoal, pelo desejo de inovar e pela independência das convenções sociais que caracterizam a contracultura.

CAPíTULO OITO

Revolução cultural e política O fluminismo dos séculos XVII e XVIII

[Leibniz] escreveu que o pecado original necessariamente era parte do melhor dos mundos. (... ) O quê!? Ser expulso de um lugar de delícias onde teríamos vivido para sempre se não tivéssemos comido uma maçã! O quê!? Para produzir na miséria crianças miseráveis, que irão sofrer tudo, que irão fazer outros sofrerem tudo! O quê!? Para passar por todas as doenças, sentir todas as aflições, morrer na dor e para recompensar ser queimado na eternidade por séculos! Essa é realmente a melhor das opções? Voltaire, Dicionário filosófico, 1765 Nós temos o poder de começar o mundo todo de novo. Thomas Paine, Senso comum, 1776

O iluminismo europeu/Idade da Razão dos séculos XVII e XVIII é talvez a mais importante e influente contracultura apresentada neste livro, e aquela cujo status de contracultura será o mais contestado. Ela institucionalizou muitos dos valores que já discutimos, mas o fez desigualmente, e mesmo exclusivamente para homens brancos (e freqüentemente apenas para certos homens brancos privile-

giados), uma cegueira oportunista que tem repercussões ainda hoje. Ela também institucionalizou o racionalismo, tentando apesar da resistência natural de seres humanos teimosos e pouco cooperativos- colocar a lógica dedutiva na posição de autoridade absoluta. E, talvez o mais importante de tudo, a própria formalização do constructo lingüístico e legal "liberdade" foi formulado como um contrato social que - de acordo com os desenvolvimentos tecnológicos da época

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CONTRACULTURAATRAVÉSDOSTEMPOS

REVOLUÇÃO CULTURAL E POLITICA

163

-lenta mas seguramente atraísse todos para a sociedade, da qual cada vez mais não

hereditariedade que foram escolhidos por Deus para exercer o poder como eles

havia escapatória. Os espaços escondidos e ocultos fora da história e da civilização

quiserem nesse mundo. Esse poder deve ser utilizado especialmente para forçar a

ocidental foram lentamente incorporados a esse sistema dúbio e muito mal percebi-

conformidade religiosa, mesmo a ponto de massacres coordenados de outras seitas

do baseado no "contrato': que - embora afirmando e algumas vezes até mesmo

religiosas. Imagine viver em um mundo em que, em algumas regiões, a guerra re-

diligentemente tentando estabelecer um "consenso dos governados" - forçava as

ligiosa mata aproximadamente 50% da população e em que expressar uma opinião sobre a natureza da Trindade pode levar você a ser queimado na fogueira.

pessoas, desde o nascimento, a participar com a sua própria presença em seu território. O filósofo francês Michel Foucault mostrou como, nesse contrato social, "era

Bem-vindo à Europa continental às vésperas do iluminismo.

estabelecido um implícito sistema de obrigações: ele [aqueles de fora da elite; os

Agora, imagine como, ao longo de aproximadamente cem anos, tudo mudou.

pobres indigentes] tinha o direito de ser alimentado, mas precisava aceitar a coerção

Agora havia uma aceitação popular crescente da idéia de que o universo funcio-

física e moral do confinamento': A liberdade e a justiça para todos algumas vezes

na de acordo com leis facilmente compreensíveis que não dependem da interfe-

exigiam o encarceramento em massa, como vemos hoje nos Estados Unidos.

rência de Deus; que a aplicação da razão por intermédio da ciência pode melho-

Por mais profunda que essa objeção (que de certa forma é uma descrição resu-

rar a vida de todos os indivíduos no mundo; e que todos os homens devem ter

mida da visão da esquerda acadêmica contemporânea) possa parecer, ela presume

direitos legais e políticos idênticos. E, naquela que talvez seja a mudança mais

a ampla existência de algo melhor, mais autárquico ou mais intrinsecamente coo-

chocante de todas, as autoridades constituídas concederam aos pensadores um

perativo, antes ou do lado de fora do âmbito da Idade da Razão. Embora seja vir-

grande grau de liberdade para discutir e disseminar essas idéias subversivas.

tualmente impossível avaliarmos as qualidades de vida e liberdade experimentadas por aqueles inteiramente fora dos territórios (Europa e América) onde a Era do iluminismo aconteceu, nós sabemos sobre o mundo onde ela aconteceu. E é em

A nova filosofia do final do século XVII

comparação com- e no contexto daquele mundo - o nosso mundo histórico que essa contracultura representa uma e:x-plosão de inovação, autonomia individual e revolução antiautoritária que ainda não foi superada com sucesso.

A Idade da Razão realmente começou de verdade na segunda metade do século XVII. Aproximadamente a partir de 1650, vários defensores de uma nova filosofia partilhavam uma visão de mundo que suplantava a hegemonia absoluta da fé religiosa e da Bíblia com razão, investigação cética e método científico. Entre eles,

O contrato social

Descartes foi o primeiro a propor sistematicamente que a razão podia compreender o mundo físico, incluindo os humanos, e teorizou explicitamente a física mate-

Imagine viver em um lugar em que a vida cotidiana e suas instituições são

mática como a forma de compreender a natureza. John Locke regularizou a idéia

organizadas em torno da idéia de que há uma fé verdadeira que fornece todas as

de governo civil baseado no consentimento e na contratação do governo, em vez

respostas; que toda autoridade e tradição são resultado direto do projeto de Deus;

de no direito divino hereditário. Os descendentes diretos de seu pensamento são a

que rezar e fazer soar os sinos das igrejas são a única forma de afastar a peste e a

Declaração de Independência e todas as constituições civis baseadas na soberania

fome. Imagine um mundo em que quase toda a discussão intelectual e as publica-

individual. E Baruch Spinoza propôs uma base para a ética e a moral que não tinha

ções dizem respeito a questões de doutrina religiosa; onde a hierarquia, a desigual-

função ou lugar para Deus. John Amos Comenius defendeu idéias educacionais

dade, o sofrimento e o lugar de cada um são preestabelecidos por Deus e não podem

liberais como abandonar a pura disciplina e alegremente se comprometer com os

ser questionados ou mudados. Imagine viver em um mundo em que quase todo o

interesses e a imaginação dos estudantes. Isaac Newton mostrou que o movimento

poder político é concentrado em um grupo muito pequeno de aristocratas por

de todos os objetos materiais, de ondas de água e maçãs à Lua e aos planetas obedecia

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REVOLUÇÃO CULTURAL E POLfTICA

CONTRACULTURA ATRAVJ'ls DOS TEMPOS

a algumas poucas regras simples. Depois disso, o universo já não precisava de anjos

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Luis Vives antecipou a ciência de Bacon, encorajando seus contemporâneos a

para continuar em movimento, precisava apenas da Lei de Newton (como Alexander

serem mais agressivos e confiantes em fazer observações sobre as leis da natureza,

Pope, o poeta inglês definiu a contribuição de Newton para banir a superstição da

liberando-os da adoração da antigüidade. Nas palavras de Barzun: "Ele contrariou

visão de mundo: "Deus disse, faça-se Newton!, e a luz se fez"). Finalmente, não houve personagem mais importante nessa emergência do sé-

o clichê dos filósofos da época que dizia que as atuais gerações eram 'anões de pé nos ombros de gigantes"'.

culo XVII que Francis Bacon. Embora Bacon não tenha feito descobertas científi-

Na segunda metade do século XVII, o livre-pensar começou a espalhar para

cas ou criado avanços tecnológicos, ele inventou a filosofia da moderna ciência e

além dos poucos lembrados pela história. Muitos intelectuais radicais hoje esque-

tecnologia que reverteu inteiramente as crenças medievais de que Deus, anjos

cidos começaram a atacar a religião revelada; negando milagres, o Diabo e a neces-

e Satã interferiam continuamente no mundo. Segundo a concepção medievalista,

sidade da contínua intervenção de Deus no mundo. Para a maioria,- essa não era

não havia razão em estudar o mundo em busca de padrões, já que toda causalidade

necessariamente uma divergência filosófica ateísta. Newton, por exemplo, acredi-

vinha desses seres sobrenaturais. Portanto, não há nenhuma forma de manipular

tava que os planetas foram arremessados pela mão de Deus na criação, mas que

este mundo de modo a reduzir o sofrimento humano ou aumentar a felicidade. A

Deus não precisava intervir mais em seu "relógio" celestial.

felicidade estava disponível apenas quando se concordava com os planos de Deus; sofrimento, morte e então acesso ao paraíso. O plano de Deus é revelado apenas por

iluminismo. Ela era, no conjunto, uma cosmogonia bastante vaga (pense hoje nos

intermédio da autoridade eclesiástica. Bacon argumentou que a natureza, embora complexa, era consistente; portan-

Essa visão, chamada deísmo, tornou-se a vertente religiosa favorita da era do unitaristas). Parece que o deísmo era uma proteção para eles não dizerem o que ainda não estavam prontos para dizer.

to, estudar a natureza por intermédio da técnica do método experimental era o

Não ... Não que Deus esteja morto ou não exista, mas que conhecer a natureza de

único caminho para o verdadeiro conhecimento. Ele acreditava que por intermé-

todas as coisas, o sentido da vida, o que Deus é- é um projeto científico.A primeira

dio de um livre e coordenado intercâmbio dos resultados desses estudos científi-

vista isso pode soar terrivelmente frio e banal. Mas, de fato, esse exercício da mente

cos, comunidades de cientistas -utilizando lógica dedutiva- fariam progressos

humana experimental levou ao nascimento das elegantes e beatíficas matemática

consistentes e verdadeiros na direção de um crescente conhecimento. Finalmente,

e física, que algumas vezes chegam mesmo a afirmar poderem provar a imanência

e mais importante, ele acreditava que esse conhecimento podia ser utilizado para

de uma simetria divinamente conduzida ou mesmo um caos divino em operação

beneficiar de modo prático a humanidade, reduzindo o sofrimento e aumentando

em nosso universo.

o bem-estar. Essa afirmação é o cerne da heresia do iluminismo: que o aqui-e-

A partir do ataque à religião e à autoridade da Igreja, os alvos passaram a incluir

agora pode ser melhorado - não precisamos esperar pelo paraíso. Comentando o que Bacon tinha a dizer para sua época, o historiador Jacques

a política. Os filósofos começaram a questionar a hierarquia tradicional e a defen-

Barzun revela qualidades contraculturais essenciais: '1\.utoridade não tem importân-

radicais chegaram mesmo a questionar toda a estrutura da moralidade e do com-

cia.A noção de que algo é verdade porque um homem sábio disse é um mau princípio:'

portamento tradicional e divinamente sustentado. Para horror das elites, por volta

E: "O livre intercâmbio de idéias e resultados corrige erros e acelera a descoberta: Essa incipiente era do individualismo livre-pensante tinha estado reunindo energia durante séculos. Ainda no século XI\T, Francesco Petrarca declarara: "Todos deveriam escrever em seu próprio estilo". No início do século XVI Martinho

der que os interesses do indivíduo deveriam ser primordiais. Alguns spinozistas

de 1700 os filósofos mais radicais pareciam estar lutando por um mundo em que a busca pela felicidade individual nesta vida estava tomando o lugar da obrigação de atender a Deus. De muitas formas, foi o inglês John Locke que deu início à mudança política.

Lutero destroçou a autoridade religiosa centralizada e absoluta, declarando que

Em Tratados sobre o governo civil e em outros tratados ele descreveu o homem

todo cristão tinha igual acesso a Deus. Também no século XVI, o espanhol Juan

como tendo o direito de acreditar, dizer e fazer o que quiser, dentro de certos limites

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

REVOLUÇÃO CULTURAL E POL!TICA

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razoáveis para a sociedade civil. Locke não era um defensor da democracia ou um

negativos'( ... ) mas, na verdade, a energia que os movia era um desejo de conheci-

libertarista civil per se; suas liberdades e seus poderes democráticos ainda deve-

mento e controle, uma incansável insatisfação fáustica com as aparências. Seu

riam ser limitados a uma elite de "notáveis': Mas suas idéias foram um passo gigantesco nesse caminho.

instrumento predileto era a análise, sua atmosfera fundamental, a liberdade; seu objetivo, a realidade. As metáforas mais populares não eram simplesmente metáfo-

Talvez ainda mais importante, Locke apresentou em seu Ensaio sobre o entendi-

ras de batalha, mas metáforas de penetração: eles falavam da luz que penetra na

mento humano argumentos que iriam libertar a humanidade da tirania de sua crença em absolutas limitações natas como o pecado original. Em The Culture ofPower and the Power of Culture, T. C. W. Blanning escreveu que Locke nos apresentou a idéia de que '1\s crianças normalmente aprendem seus hábitos e preconceitos com os mais

esquina da escuridão, os golpes que derrubam barreiras da censura, do vento fresco que levanta o véu da autoridade religiosa, o bisturi que retira o acúmulo de tradição (... ) o olho que vê através da máscara de traficantes de mistérios políticos:'

velhos, de modo que a raça humana é presa de um círculo vicioso de brutalidade, ignorância, superstição, vicio e miséria. Ele pode ser rompido (... ) se um educador

A corte festiva do rei Luís XIV

intervier para abrir uma janela para experiências alternativas:' Esse fértil discurso do final do século XVII ainda estava limitado à elite intelectual. As discussões eram travadas principalmente em densos textos filosóficos em

Enquanto os pobres dormem, todas as estrelas surgem à noite. Donald Fagen e Walter Becker, Steely Dan

latim, em manuscritos de pouca circulação e em debates em várias academias eruditas. Mas, embora o número de participantes fosse pequeno, o impacto sobre

Ironicamente, a revolução cultural que brotou no século XVIII também foi

a intelligentsia altamente centralizada foi esmagador. No final do século XVII, a

alimentada pelos interesses e pela perversidade cultural de um monarca absolutis-

disseminação do iluminismo livre-pensante para outros segmentos da sociedade

ta dos 1700. O rei da França, Luís

era, provavelmente, inevitável.

egoísmo, criou uma corte animada, com banquetes cerimoniais noturnos e cele-

x:rv, possuído por um gigantesco e poderoso

A hierarquia da Igreja tentou erradicar a heresia, mas os que propunham uma

brações rigidamente elaboradas e altamente ritualizadas que deram a muitos artis-

nova filosofia e uma nova ciência passaram a perna nela. Porque pensadores como

tas um espaço de apresentação e uma generosa forma de ganhar a vida. Frederico, o

Locke e Newton afirmaram explicitamente que suas visões, não importava quão

Grande, um "déspota iluminado" prussiano do século XVIII que era ele mesmo um

radicais parecessem aos olhos de religiosos conservadores, eram compatíveis com

abutre cultural da mais alta ordem, falaria com ternura da corte do rei Luís, dizen-

uma cristandade libertada da superstição. Em geral, a profusão de idéias originais

do: "Sequioso de todos os tipos de glória, ele queria fazer sua nação tão superior em

deve ter tido um efeito corrosivo na unidade daqueles que se opunham aos novos

questões de gosto e literatura quanto já era em poder, conquista, política e comér-

filósofos, já que as seitas cristãs brigavam e discutiam acerca de quais partes da

cio': (Entre os artistas financiados por Luís XIV estava o dramaturgo Moliere, cuja

nova filosofia de fato eram compatíveis com as suas crenças.

obra sobrevive e continua a nos interessar ainda hoje.)

Muitos, talvez a maioria, dos livre-pensadores do final do século XVII (e mes-

A corte de Luís foi um antecedente do tropo boêmio noturno e se parece com algo

mo aqueles do iluminismo do século XVIII) enfatizou sua oposição às filosofias

com o que Elton John poderia ter sonhado durante os anos 1970. Blanning escreve:

religiosas totalitárias do passado, até mesmo acima da produção de novas idéias. Locke escreveu que era "suficientemente ambicioso ser empregado como um ope-

A primeira grande atração [em Versalhes era] evocativamente chama-

rário para limpar um pouco o terreno e remover parte da sujeira que se acumula no

da "Prazeres da Ilha Encantada". (... ) Em todas as celebrações noturnas

caminho do conhecimento". Mas, como comentou o historiador do iluminismo

realizadas em 1668 ( ... ) todos os sentidos dos seiscentos convidados

Peter Gay, "Os filósofos foram freqüentemente acusados de serem 'meramente

eram estimulados - por um banquete, um baile, uma comédia (George

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Dandin, de Moliere) e um show de fogos de artifício. (... ) A música era

REVOLUÇÃO CULTURAL E POL!TICA

169

Escritores rebelados

onipresente (... ) tudo acontecendo em um parque transformado em terra encantada por transparências iluminadas.( ... ) Essa mudança para

Correntes contraculturais mais extremadas também podem ser encontradas

festividades noturnas também servia para distanciar o desocupado

durante o século XVII. Um círculo de poetas franceses que se tornou conhecido

mundo da corte da rotina da faina mundana. (... ) Os cortesãos esta-

como os libertinos antecipou certas correntes niilistas da cultura contemporânea.

vam indo dormir quando os simples mortais começavam a deixar

Como escreveu Louis Gottschalk em The Foundation of the Modern World, 1300-

suas casas para o trabalho. Para o súdito real comum, havia uma clara

1775, "Eles eram escritores livre-pensadores, anticonvencionais, até mesmo ateus,

divisão entre dias de festa e dias de trabalho, entre espaços festivos e

dos quais um dos mais proeminentes era Theophile de Viau. Eles rejeitavam, junta-

espaços de trabalho, mas no mundo da corte, todo espaço era um

mente com a religião tradicional, grande parte da fé no homem, sua moralidade e

espaço festivo e todo tempo era tempo de festa. A vida da corte era

autoridade secular, dessa forma parecendo aos olhos dos devotos na (... ) França (... )

inteiramente festiva.

uma conspiração contra Deus, o homem e o governo. (... ) [Mais tarde] novos escritores acabaram sendo acusados disso [serem libertinos], entre eles Cyrano de

Em meio à devassidão, algo de substancial estava acontecendo. Artistas criativos estavam se tornando um elemento importante no esplendor do reino. Nesse

Bergerac - autores de poemas picantes ou mesmo obscenos, burlescos não religiosos e sátiras explícitas:'

sentido, a influência de Luís se estenderia pelos reinos da Prússia e da Rússia no século seguinte, e com o tempo os artistas se transformaram claramente em vetores do contágio pelo iluminismo.

A revolução cultural no século XVIII

Os primeiros sinais das revoluções políticas contra o absolutismo religioso e a monarquia que iriam acontecer no final do século XVIII tinham precedido o

Na virada para o século XVIII, os cem anos de guerra religiosa intermitente, a

xrv. Em 1598, na França, o rei Henrique proclamou o Édito de

revolução científica e o fermento intelectual da nova filosofia tinham provocado

Nantes, declarando que o governo não podia prescrever crenças e práticas religio-

uma crise de crença entre as elites. Cortesãos, funcionários, acadêmicos, clero e

sas. O édito não foi inteiramente seguido. (Em 1685 o édito foi revogado, e as

outros tipos privilegiados já não podiam acreditar incondicionalmente na tradi-

conseqüentes perseguições provocaram a emigração em massa dos huguenotes, de

cional visão de mundo. Não havia um consenso sobre como chegar a um acordo

modo que cidades e regiões inteiras ficaram arruinadas e desocupadas.) Ainda

com a nova filosofia. A visão de mundo ocidental tinha sido abalada e as elites

assim, isso mostra que noções relativas à separação entre Igreja e Estado já estavam ganhando força. Na Inglaterra, em 1688, uma rebelião liderada pela pequena no-

estavam inseguras sobre o que iria tomar seu lugar. Em meio a esse caos epistemológico surgiram centenas de pensadores rebeldes,

breza dona de terras e apoiada pela (naquela época em pequeno número) classe

artistas e finalmente ativistas políticos prontos a consolidar, popularizar e expandir

média estabeleceu constitucionalmente significativas limitações legais e práticas

o trabalho que tinha começado com gente como Locke, Descartes, Spinoza e outros.

ao monarca Guilherme de Orange. Chamado de Revolução Gloriosa, o levante

Um grande gesto de consolidação e popularização foi a publicação, em 1751, da

retirou a autoridade governamental da monarquia, transferindo-a para as mãos das

Encyclopédie de Denis Diderot. Diderot era um conhecido crítico da moralidade e

classes proprietárias e comerciais. Historicamente significativa, a Revolução Glo-

da religião convencionais que tinha permanecido preso durante um breve período

riosa mostrou que a monarquia, geralmente considerada como sendo garantida por Deus, era, na verdade, vulnerável à insurreição.

por seus escândalos (liberdade de expressão era algo ambíguo na França durante

reinado de Luís

todo o século). Além de oferecer um bom panorama da polêmica antiautoritarista pós-Locke, a Encyclopédie tentava organizar todo o conhecimento e o tornar

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS REVOLUÇÃO CULTURAL E POLITICA

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acessível aos leitores comuns. Nesse processo, Diderot revelou um enorme volume

Alguns outros importantes personagens do século XVIII são Paul Holbach,

de informação que tinha sido exclusividade de diversos especialistas e guildas. A Encyclopédie de Diderot foi a cerimônia de abertura do longo processo de demo-

alemão por descendência mas cidadão francês que chocou a sociedade européia com a sua amplamente divulgada defesa do ateísmo; o prussiano/alemão Johann

cratização da informação que continua a ser um tema fundamental e uma fonte de

Wolfgang von Goethe, que romantizou a revolta de Prometeu contra um Deus

conflitos no auge da chamada era das comunicações. Por seus esforços, ele foi caçado pelos censores franceses.

despótico e criou o demoníaco Fausto, personagem de ficção em busca da imortalidade, e o filósofo Immanuel Kant, que resumiu o Zeitgeist no primeiro parágrafo

Nos anos 1720, Jonathan Swift aumentou a aposta no conflito filosófico entre

de seu ensaio "O que é o Iluminismo?": "O Iluminismo é a saída da humanidade de

antigo poder e nova filosofia ao escrever Modesta proposta, uma sátira violenta à

sua auto-inflingida imaturidade. Pense corajosamente! Tenha a coragem de utili-

crueldade e à postura pomposa dos privilegiados que sugeria de forma bem prag-

zar a sua própria compreensão! É o motto do iluminismo:' Mas ninguém foi mais

mática que as muitas crianças famintas da Irlanda poderiam se tornar úteis como

representativo do Zeitgeist do século XVIII que o 'Apóstolo da Dúvida': Voltaire.

comida. A mordacidade e a total irreverência expressas no escrito de Swift, e pouco depois também por Voltaire, marcaram uma importante escalada na revolta contra as elites autoritárias. Diferentemente dos livre-pensadores do século XVII, muitos dos radicais do novo século não queriam simplesmente questionar a autoridade. Eles estavam dispostos a mandá-la à merda.

O descaradamente arrogante mas bem-vestido M. Voltaire O maravilhoso dessa empreitada infernal é que todo chefe de assassino

Outro importante personagem do iluminismo, Jean-Jacques Rousseau, era contemporâneo e algumas vezes amigo de outros personagens do iluminismo. Mas

tem as suas bandeiras abençoadas e solenemente invoca o Senhor an-

Rousseau traçou seu próprio caminho, e nesse processo criou uma diferente linha de

mem todos os seus livros. Enquanto milhares de seus irmãos forem

pensamento filosófico que produziu seu próprio legado, associado ao que hoje chamamos de esquerda política. Em comum com outros personagens do iluminismo,

honestamente massacrados pelo capricho de alguns homens, a parte da humanidade consagrada ao heroísmo será a coisa mais horrível em

Rousseau atirava pedras contra o dogma religioso e defendia a liberdade de expres-

toda a natureza.

são. Mas Rousseau concentrava suas paixões nas desigualdades econômicas e na

tes de sair para exterminar seus vizinhos. (... ) Filósofos da moral, quei-

Voltaire, Dicionário filosófico, "Guerra"

situação difícil dos pobres. E, embora a idéia de que a ciência podia iluminar a escuridão da condição humana fosse a base da maior parte da lógica iluminista, Rousseau,

Voltaire, nascido François-Marie Arouet, não foi um filósofo particularmente

em seu ensaio "Discurso sobre as ciências e as artes': de 1750, questionava os novos

original. Mas ele reuniu os pensamentos e as atitudes rebeldes de sua época e os

dogmas. Na verdade, de certa forma Rousseau foi o pai de uma crítica bastante con-

expressou por intermédio de sua escrita com perspicácia tão mordaz que é celebra-

temporânea que considera a ciência e a tecnologia como sendo instrumentos invasivos

do como o representante da insubordinação cultural do século XVIII. Ele foi cha-

que substituem a velha tirania por uma nova e mais insidiosa. Ele acreditava que a

mado de "o filósofo-punk da Idade da Razão': De fato, seu nome ainda é sinônimo

ciência e a razão pura tinham o efeito de alienar as pessoas de si mesmas e dos outros, e se preocupava com a busca de uma forma "natural" de viver. Rousseau também

de mau comportamento filosófico para todas as épocas.

divergia do princípio central do iluminismo de que o interesse pessoal iluminado e

um desprezo - que iria durar por toda a vida- pela pompa e hipocrisia, e passou a

a propriedade privada ajudavam a garantir a liberdade e o aumento do bem público.

freqüentar os salões de uma conhecida dama da sociedade, chamada Ninon de l'Enclos.

Em seu ensaio O contrato social, Rousseau defendia menos liberdade para buscar 0 interesse pessoal e maior responsabilidade coletiva.

Ainda jovem, Voltaire abandonou a escola de Direito, onde tinha desenvolvido

Por seu intermédio, Voltaire se descobriu vivendo em um círculo social ocioso, no qual trocar detestáveis misticismos era a principal diversão. Se descobrindo melhor

172

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

REVOLUÇÃO CULTURAL E POLITJCA

173

do que todos os outros, Voltaire rapidamente concentrou suas habilidades depre-

indivíduos podem se tornar felizes. Depois veio a sua coleção de ensaios curtos,

ciativas em atacar as vacas sagradas de seu tempo - particularmente a religião -

Dicionário filosófico, no qual Voltaire organizou seus comentários irreverentes em

por intermédio da sátira literária. Em 1717, aos 23 anos de idade, foi acusado de ser

uma série de tópicos em ordem alfabética.

o autor de poemas satíricos debochando do recentemente falecido Luís XVI e aprisionado na Bastilha por mais de um ano.

inimitável estilo impertinente de Voltaire, ele negou ser o autor... Ao mesmo tempo

A partir desse ponto, a vida de Voltaire seria marcada por breves prisões ocasio-

em que se deliciava publicamente com o sucesso. Isso se devia em parte ao fato de

nais e exílios freqüentes, resultado não apenas de sua pena insolente, mas de sua

que a censura francesa, embora utilizada de forma imprevisível, podia algumas

falta de interesse em utilizar a diplomacia nos conflitos pessoais e filosóficos com

vezes levar à prisão do autor. Mas isso era principalmente outro exemplo de Voltaire

seus (eventuais) amigos e contemporâneos. Aqueles anos que ele não passou na

brincando descaradamente com seu público. De fato quando a primeira edição foi

França foram gastos na Inglaterra, na região da Prússia que hoje é a Alemanha e

lançada em Paris em 1734, o livro foi queimado como sendo subversivo.

Embora fosse óbvio para todos que o Dicionário filosófico era produto do

na Suíça. Além de ter habilidades literárias, Voltaire era um especulador e um investi-

Os absurdos da religião eram o principal alvo de Voltaire, particularmente as

dor financeiro tão bom que se tornou muito rico. Diferentemente da maioria dos

tradições cristãs e judaicas (embora o islamismo também tenha recebido alguns

outros filósofos, e apesar de sua existência um tanto nômade, ele era capaz de viver

golpes da pena do escritor). E seu método de ataque era fazer qualquer sistema de

confortavelmente onde quer que estivesse, mantendo uma corte como uma espécie

crenças· ser vítima de si mesmo. Peter Gay escreveu: "Suas apresentações eram

de filósofo-rei. Gay traça o seguinte perfil de Voltaire no semi-exílio: "Na década

dominadas por uma única técnica agressiva: ironia. Em um mundo de censura, de

de 1750 ele( ... ) se instalou em Ferney (... )em território francês, perto da fronteira de

eclesiásticos caçando hereges e de leitores influentes a serem aplacados, a ironia

Genebra ( ... ) [com] sua torrente de visitantes ilustres e seu incessante fluxo

era um agente de dupla libertação; liberava o escritor para dizer a verdade e libera-

de correspondência. Ele se tornou o rei do governo literário no exílio. Onde Voltaire estava, estava Paris:'

va o leitor para vê-la:' Veja o tom sardônico de Voltaire ao recontar a história de Abraão de uma forma

Em certo sentido, o caráter de Voltaire marca o surgimento neste livro, pela

que expõe a sua irracionalidade: "Ele levou sua mulher Sara consigo (... ) ela era

primeira vez, de um interessante arquétipo contracultural. Com todo o seu radicalis-

extremamente jovem e quase uma criança em comparação com ele, pois tinha

mo inteiramente sincero, Voltaire também era um homem que conscientemente

apenas 65 anos de idade. Como ela era muito bonita, ele resolveu levar em conta a

cultivava sua imagem de bad boy junto ao establishment. O biógrafo A. J.Ayer, em seu

sua beleza. 'Dize que és minha irmã, para que me tratem bem por causa de ti e, por

livro Voltaire, refere-se ao seu "vício em travessuras': Tendo passado toda a sua vida se

tua causa, me conservem a vida: Ele teria dito melhor: 'Diga que é minha filhà. O rei

vestindo no estilo dândi de sua juventude, ele era um homem que desfrutava plena-

se apaixonou por Sara e deu ao suposto irmão 'muitas ovelhas, bois, servos e servas':

mente da atenção pública (e feminina). Como autor e dramaturgo, ele acompanhava

o que prova que o Egito era, então, um reino muito poderoso e altamente civilizado

minuciosamente as críticas a seu trabalho e a elas reagia emocionalmente. Em outras

e, conseqüentemente, muito antigo, e irmãos que chegavam e ofereciam suas irmãs

palavras, ele era, em todos os sentidos, um artista comercial contemporâneo.

aos reis( ... ) eram generosamente recompensados:'

Como dramaturgo, Voltaire atendia aos gostos basicamente formais dos salões

Com algumas poucas palavras sarcásticas, Voltaire podia torcer qualquer fonte

e da aristocracia. A história considerou as suas peças exageradas e quase medíocres.

religiosa: "São Tomás ( ... ) diz que ( ... ) há três almas vegetativas, a nutritiva, a

Ele teve apenas dois grandes sucessos literários. Primeiramente, a peça Candide, na

aumentativa e a generativa; que a memória das coisas espirituais é espiritual e

qual Voltaire explorou seus temas principais: em poucas palavras, o otimismo é

a memória das coisas corpóreas é corpórea, que a alma racional é uma forma

tolo e a especulação filosófica é inútil; e em toda parte o indivíduo sofre inutilmen-

'imaterial para operações e material para ser'. São Tomás escreveu duas mil páginas

te em função da opressão política e religiosa. Mas, com esforços práticos, grupos de

tão substanciais e claras quanto estas, ele é o anjo dos escolásticos:'

174

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Por mais anti-religiosa que fosse a pena de Voltaire (Gay classificou seu ensaio "O sermão" como uma "declaração de guerra à cristandadê'), ele não era um ateu.

REVOLUÇÃO CULTURAL E POLÍTICA

175

grau de hostilidade mútua- chegou a declarar: "Se os turcos (... ) chegarem e quiserem habitar este país, então iremos construir mesquitas e templos para eles':

Escreve Gay: "Ele era a favor da tolerância e de crenças simples e razoáveis( ... ) ele

Os historiadores retratam a Prússia do século XVIII como uma espécie de idade

se opunha ao fanatismo, à perseguição e à superstição.( ... ) Voltaire atacava a idéia

do ouro de liberdade de fé e liberdade de pensamento, uma sociedade- que lem-

de um Deus cruel:' Em Dicionário filosófico, o próprio Voltaire escreveu: "O fana-

brava a Grécia de Sócrates - em que a investigação da filosofia era a preocupação

tismo é certamente mil vezes mais desastroso [que o ateísmo], pois o ateísmo não

primordial. Contudo, o reinado de Frederico não deve ser visto através de lentes

inspira paixões sanguinárias como o fanatismo; o ateísmo não inibe os crimes, mas

cor-de-rosa. Como o do rei Luís XIV da França, que ele admirava, o culto regime de

o fanatismo considera que eles são um compromisso". Como tantos outros em sua

Frederico também sustentou terríveis guerras de conquista contra inimigos exter-

época, Voltaire era um deísta.

nos. E qualquer direito que possa ser concedido, como a liberdade de imprensa

Embora fosse o maior exemplo de revolucionário cultural do século XVIII,

(1740), também pode ser facilmente revogado (1743). Um déspota, afinal de con-

Voltaire morreu antes das revoluções políticas nas colônias inglesas na América e na França, e não demonstrou nenhuma inclinação para a democracia. Na verdade,

tas, é sempre um déspota. Ainda assim, uma fértil revolução cultural estava acontecendo, e Immanuel Kant

Voltaire era um grande defensor da monarquia absolutista benevolente. Isso não

e C.P. E. Bach estavam entre os importantes nomes que prosperaram com o apoio de

surpreende. Em certa ocasião ele recebeu asilo, honras e apoio do maior "déspota

Frederico. (Outros grandes artistas, como Haydn, Goethe e Mozart também floresce-

iluminado" do século XVIII, o rei Frederico da Prússia, com quem ele mantinha

ram durante o regime, embora o relacionamento deles com o rei fosse mais frio.)

uma amizade complexa e algumas vezes hostil. Catarina, a Grande, da Rússia, também era uma fã e correspondente.

Enquanto isso, Catarina, a Grande, da Rússia, também disseminava o meme iluminista publicando seus trabalhos. Diderot recebeu proteção em sua corte, e Rousseau e Voltaire foram ambos beneficiados por seu entusiasmo. De acordo com as idéias que nós expressamos em capítulos anteriores, os leito-

Déspotas fazem a revolução (cultural)

res podem esperar que concluamos que Frederico e Catarina, cada qual a seu modo, estavam tentando cooptar os ideais perigosamente liberais do iluminismo, mas os

É uma das curiosas ironias do iluminismo que muitas de suas idéias tenham

indícios históricos são de que eles eram verdadeiros entusiastas dessas idéias. Não

sido propagadas por monarquias absolutas, um sistema que as doutrinas do

irei especular se eles estavam conscientes de seu papel gorbacheviano na destrui-

iluminismo iriam finalmente condenar à proverbial lata de lixo da história. O rei

ção da monarquia como uma instituição viável.

Frederico da Prússia era a personificação do despotismo iluminado. Ele mesmo um intelectual respeitável, Frederico leu incansavelmente e escreveu tratados sobre estética (incluindo críticas negativas apaixonadas acerca da qualidade de seus es-

Sementes da próxima revolta contracultura!

critores prussianos/alemães, que ele acusava de excessivo pedantismo e pompa, preferindo a irreverência folgazã do francês Voltaire).

O escritor contracultura! do século XXI Erik Davis escreveu em um número de

Após assumir o trono ele publicou um édito determinando que "Todas as reli-

2003 da revista Bookforum: "O Ocidente deixou o universo em alvoroço quando

giões devem ser toleradas e a única preocupação dos funcionários deve ser garantir

seguiu Descartes ladeira abaixo em sua estrada de racionalismo mecanicista. (... )

que uma denominação não interfira na outra, pois aqui todos podem buscar a salva-

Até aquele momento, a Europa tinha conseguido sustentar uma desconfortável

ção da forma que pareça melhor a cada um': Frederico pregava a tolerância religiosa

mas produtiva dialética entre materialismo e misticismo (... ) episteme e gnosis."

a tal ponto que - em uma época em que turcos e prussianos mantinham um certo

Para nós é fácil esquecer como a razão e a falta de religiosidade eram revolucionárias

176

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

durante os séculos XVI e XVII. Aluz dos séculos anteriores de vários absolutismos religiosos, complementados com um freqüente e ridículo tabu contra a utilização

REVOLUÇÃO CULTURAL E POúTICA

177

imaginação dissoluta do tipo que ninguém nunca viu, ateu até o ponto do fanatismo': Embora Sade obviamente fosse completamente privado de idealismo e não passasse

da lógica para investigar a realidade e resolver problemas, o simples senso comum

de um espectador ambíguo e eventualmente participante distante das revoluções

era um sopro libertador, produzindo claridade e mudança social. E, mesmo então,

políticas de sua época, ele se mostrou uma mítica contracultura mundial em si. A

as sementes das rebeliões contraculturais seguintes, contra os limites da

revolta sexual de Sade provavelmente poderia ser contextualizada. A maioria dos

racionalidade, já eram evidentes.

revolucionários iluminados do século XVITI, por exemplo, renunciou à masturbação.

Rousseau e Goethe, por exemplo, identificaram limites à razão e buscaram uma

As idéias de Rousseau e Goethe penetrariam no movimento Romântico do

unidade de mente e coração. O Marquês de Sade, enquanto isso, ampliava os ultra-

início do século XIX e, além disso, no transcendentalismo e no movimento

jes dos libertinos do século XVII. A obra de Sade tentava abalar as próprias bases da

psicodélico, enquanto as perversas mutações do racionalismo por Sade afetaram as

personalidade civilizada. Seus ataques vis e pornográficos à autoridade pregavam a

culturas surrealista e punk.

liberdade completa contra as restrições morais. A sua era uma resposta particular ao fato de ter nascido na elite em uma cultura brutal e extremamente hierarquizada, e ele reagiu deixando explícita essa brutalidade tanto no seu comportamento pes-

As revoluções políticas na América e na França

soal quanto na sua obra. Em contraste com os filósofos do iluminismo, Sade usava a razão contra ela mesma; ele se deleitava com violência carnal e perversidade, mas

Consideramos essas verdades evidentes em si, de que todos os homens

freqüentemente representava seus gostos em episódios peculiarmente estruturados.

são criados iguais, que eles receberam de seu Criador certos direitos

Nas palavras do site Art and Culture Network,

inalienáveis, que entre esses estão Vida, Liberdade e a busca da Felicidade. Thomas Jefferson, Declaração de Independência dos Estados Unidos da América

A ironia de Sade questiona a própria distinção entre razão e perversão, entre o correto cidadão burguês e o criminoso pervertido. Em Os 120 dias de Sodoma, o tema de Sade é um grupo rigidamente estratificado

Um ateuzinho imundo.

de pessoas que fugiram do mundo social para um castelo remoto. A

O presidente norte-americano Theodore Roosevelt sobre Thomas Paine

vida cotidiana é estruturada com meticulosa e imutável precisão, com esta mudança súbita: esses hábitos cotidianos são completamente per-

A primeira grande revolução contra a monarquia a aplicar os princípios do

versos. Os habitantes do castelo estão empenhados em levar ao máxi-

iluminismo não aconteceu na Europa, mas nas colônias norte-americanas. As

mo sua dedicação ao vício, mas eles o fazem de acordo com uma ordem

colônias eram habitadas por antigos europeus que eram um produto da longa

fastidiosa que é sustentada apesar da incansável devassidão. Mais que

história de monarquias divinas daquele continente, com toda sua pompa e circuns-

rejeitar a ordem e a razão em sua apreciação dos instintos criminosos,

tância e o tipo de respeito reflexivo pela antigüidade que ainda é evidente hoje na

Sade optou por uma síntese paródica: uma afirmação do poder tanto

Grã-Bretanha. Mas o tempo, a distância e os grandes espaços abertos do continente

da razão quanto da paixão vulgar capaz de construir a alma adequada-

americano tinham dado aos colonos uma independência de psique e espírito que

mente pervertida.

permitiu a eles aplicar o mais novo produto de exportação da Europa- as crenças iluministas - de forma mais eficaz que seus criadores.

O próprio Sade escreveu: "Todos os princípios morais universais são fantasias inúteis". E descreveu a si mesmo como "irascível, extremado em tudo, com uma

A colonização da América do Norte começou com um grupo de exilados que eram, de muitas formas, diametralmente opostos ao contracultura!. Os puritanos

178

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

tinham voltado as costas à decadência européia e partido para o Novo Mundo para viver de acordo com estritos princípios religiosos autoritários. (Em Da alvorada à decadência, Barzun se estende para mostrar que os puritanos não eram tão rígidos quanto a história popular os imagina. Ainda assim, eles estavam basicamente evi-

tando qualquer tendência ao livre-pensar- ou ao livre-viver.) Mas quando a herança de trabalho duro e autoconfiança independente dos puritanos entrou em sinergia com os ideais liberais clássicos vindos da Europa, algo explosivo ocorreu. Era um novo tipo de liberalismo clássico, menos abstrato e estéril, conduzido por colonos desgastados acostumados a lidar com condições comparativamente primitivas. Essa característica, esse rude estoicismo individual, provou ser exatamente o necessário para fazer as idéias libertárias funcionarem no final do século XVIII.

REVOLUÇÃO CULTURAL E POL!TICA

179

Fundadores se concentrava na elite. Paine era o único a se concentrar nas pessoas trabalhadoras comuns. O idealismo e o otimismo arquetipicamente americano de Paine garantiram o entusiasmo necessário para fazer uma revolução de livrespensadores. (Voltaire tinha escrito: "É extremamente raro encontrar razão unida a entusiasmo". Em outras palavras, é loucura ser fanático acerca de uma posição política que se opõe ao fanatismo, mas algumas vezes, no curso dos acontecimentos, isso se torna necessário.) Paine foi um autor de panfletos, especialmente Senso comum. Esse ensaio curto foi publicado em janeiro de 1776, apenas meio ano antes que a independência fosse declarada. Ele teve meio milhão de cópias vendidas, um número absoluta-

A Revolução Americana, como o restante da história do país, é rica em ironia e

mente fantástico para a época (a população total era de apenas 2,5 milhões de pessoas). Virtualmente todas as pessoas alfabetizadas nas colônias leram Senso

contradições. Por um lado, sua ideologia libertária começou realmente a se espa-

comum, incluindo os legalistas britânicos, que pediram aos uivos a cabeça de Paine.

lhar quando as Cato Letters, publicadas anonimamente em The London Journal de 1720 a 1723, se tornaram um estrondoso sucesso nas colônias. As Cato Letters

O general George Washington se comprometeu pessoalmente com a causa após ler o livro. A Revolução realmente poderia não ter acontecido sem ele.

criticavam a Revolução Gloriosa da Inglaterra por ter fracassado em cumprir sua promessa, defendiam absoluta liberdade de pensamento e expressão e criticavam a

É necessário um tipo de alma apaixonada para escrever panfletos. Como disse

pretensão em um estilo acessível que tinha grande apelo para os colonos. Por outro lado, a revolta contra a Inglaterra na verdade era pró-expansionista, ganhando

Sidney Hook, "Ele era o grande frasista de sua épocà: Vejam esta passagem de Senso comum: "Vocês que amam a humanidade! Vocês que se opõem não apenas à

força quando o rei Jorge III assinou a Proclamação de 1763 proibindo qualquer

tirania, mas ao tirano, apresentem-se. Cada canto do velho mundo foi tomado pela opressão. A liberdade está sendo caçada por todo o planeta. Ásia, África, há muito a

assentamento inglês a oeste das montanhas Apalaches. O objetivo da proclamação era impedir os colonos de conquistar mais terras dos nativos americanos.

expulsaram - a Europa a vê como uma estranha, e a Inglaterra já deu a ela ordem de partir. Oh! Recebam a fugitiva e preparem em tempo um asilo para a humanida-

Com todas as suas contradições, o caráter contracultural da Revolução Americana realmente vem de livres-pensadores como Jefferson, Franklin e Paine, que fizeram com que ela acontecesse. Os construtores da Revolução eram homens da Renascença que- além de serem pensadores- eram homens de negócios sensatos, cientistas amadores e membros de suas assembléias coloniais. A maioria deles era deísta (embora a influência puritana se manifestasse na forma de uma forte ética de trabalho) e muitos viviam muito bem, sendo conhecidos por sua predileção por vinho, mulheres e música. (Nenhum deles, contudo, era mulher.) O bem-nascido Thomas Jefferson, autor da Declaração da Independência e que se tornou o terceiro presidente, era, sem dúvida alguma, o mais eloqüente e filoso-

de:' Uma análise cuidadosa dessa retórica hiperbólica revela jogos de palavras e sofismas. Por exemplo: para que a liberdade possa ser caçada e expulsa, ela em primeiro lugar precisa existir. Mas quem mudaria uma palavra disso? Paine é lembrado por sua enorme fé na bondade fundamental da humanidade. Esse legado foi concretizado, como veremos, durante os movimentos transcendentalista/abolicionista e durante as primeiras fases das contraculturas hippie e da Nova Esquerda nos anos 1960. O idealismo de Paine não deveria ser confundido com ingenuidade ou credulidade. Ele, por exemplo, escreveu: "Supostamente, a atual raça de reis no mundo tem uma origem honrada; contudo, é mais

ficamente sofisticado líder da Revolução. Mas o sincero Thomas Paine, de classe

que provável que, se pudéssemos retirar o manto escuro da antigüidade e traçar suas origens, acabaríamos descobrindo que o primeiro deles não era nada além do

média, se apresenta como o representante mais próximo. O restante dos Pais

principal rufião de alguma gangue indócil". Essa crítica - identificando rufianismo

180

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

e gangsterismo na raiz do poder político do Estado - continua a ser até hoje uma sofisticada visão contracultural. Outra ironia da história norte-americana é que muitos dos Pais Fundadores eram "blasfemos". Em outras palavras, eles diziam coisas sobre Deus e a religião que os levariam a ter problemas em Washington no século XXI. Jefferson escreveu que o Livro do Apocalipse era "apenas os delírios de um maníaco, não mais merecedor ou passível de explicação que a incoerência de nossos próprios sonhos noturnos". E James Madison escreveu: Durante quase quinze séculos o establishment legal da cristandade tem sido julgado. Quais foram os seus frutos? Um pouco mais ou um pouco menos em todas as partes, orgulho e indolência no clero, ignorância e servilismo entre os leigos; em ambos, superstição, fanatismo e perseguição.

REVOLUÇÃO CULTURAL E POL!TICA

181

Americana pouco fez para mudar isso. Os direitos de governo democrático concedidos na Constituição eram de exclusividade de proprietários brancos. Pobres, nativos americanos, mulheres e, obviamente, os escravos africanos que formavam aproximadamente 35% da população estavam excluídos. Por outro lado, a Declaração de Direitos deveria se aplicar a um segmento mais amplo da população, basicamente excluindo apenas escravos e nativos americanos (que eram considerados estrangeiros) de sua proteção das liberdades civis. (Tecnicamente, até a Guerra Civil, os estados que tiveram um alto grau de independência- podiam ignorar a Declaração de Direitos, e sua aplicação variava muito.) Segundo Howard Zinn, o influente historiador alternativo de esquerda que escreveu livros como A People's History of the United States, que conta a história dos Estados Unidos do ponto de vista dos oprimidos e despossuídos, os revolucionários norte-americanos estavam lidando com uma séria violência insurrecional vinda de baixo, ao mesmo tempo que estavam construindo a sua revolução.

Que influência, na verdade, as estruturas eclesiásticas tiveram na sociedade? Em alguns momentos, viu-se que estavam construindo uma tira-

Começando com a Rebelião de Bacon na Virgínia, por volta de 1760,

nia espiritual sobre as ruinas da autoridade civil; em muitos momentos

houve 18 revoltas com o objetivo de derrubar governos coloniais. Tam-

foram vistos sustentando os tronos da tirania política; em nenhum

bém houve seis rebeliões negras, da Carolina do Sul a Nova York, e

momento foram guardiões da liberdade do povo. Governantes que

quarenta tumultos de origens diversas.

querem subverter a liberdade pública podem ter considerado o clero

Trabalhadores estavam pedindo democracia política nas cidades colo-

estabelecido como sendo ajudantes convenientes. Um governo justo,

niais: encontros abertos de assembléias representativas, galerias públicas

instituído para assegurá-la e perpetuá-la, não precisa deles.

nas salas legislativas e a publicação dos votos nominais, de modo que os constituintes pudessem controlar os representantes. Eles queriam reu-

Espalhem a mensagem! A revolução norte-americana cumpriu a promessa da Revolução Gloriosa de separação entre Igreja e Estado. Ao longo dos anos, a qualidade da adesão da nação a esse princípio (como muitos outros) teve os seus altos e baixos. De fato, hoje devemos ficar de olho na situação.

Conflito de classes: a outra história dos Estados Unidos Como já vimos, embora o iluminismo tenha levantado a bandeira da igualdade e dos direitos democráticos, ainda assim excluía deles a maioria. A Revolução

niões ao ar livre em que a população pudesse participar da elaboração de políticas, impostos mais justos, controle de preços e a eleição de operários e outras pessoas comuns para cargos governamentais.

Após a Revolução, os trabalhadores comuns e fazendeiros levaram a Declaração a sério e imediatamente começaram a pressionar o oligopólio, exigindo inclusão. Revoltas e rebeliões armadas (incluindo a Rebelião do Uísque) das classes mais baixas faziam parte da paisagem política inicial da nação. Poucos dentre a elite americana de ativistas revolucionários apoiavam as revoltas das classes baixas, mas Thomas Paine estava freqüentemente entre eles. Entre outras reformas, Paine propôs derrubar a exigência da constituição de propriedade, de modo a

182

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

incluir os trabalhadores, e se opôs a uma estrutura de impostos que era injusta com os trabalhadores comuns. Apesar da enormidade de certas cegueiras dos revolucionários do Novo Mundo, eles foram os verdadeiros livres-pensadores de seu tempo, impulsionando radicalmente para frente a liberdade individual, o livre intercâmbio de idéias e o espírito da transformação social. As idéias dos Pais Fundadores seriam utilizadas como seus princípios por aqueles que buscaram e conseguiram inclusão: primeiramente os homens não proprietários, depois abolicionistas, defensoras do sufrágio feminino, sindicalistas e ativistas dos direitos civis, todos adotaram os ideais da Revolução Americana para conseguir maior participação no sistema.

REVOLUÇÃO CULTURAL E POL(TICA

183

e burguesia -, antes de ser eliminada pela imposição da monarquia absolutista. Durante o mês seguinte, o estado burguês se reuniu em segredo e fez o Juramento da Quadra de Tênis para formar um governo constitucional. (O encontro aconteceu em uma quadra de tênis. Poderia haver local mais apropriado para iniciar uma revolução burguesa? Talvez a Insurreição do Campo de Golfe?) No dia 14 de julho de 1789, a ralé pegou o espírito da coisa quando atacou e derrubou a Bastilha, uma ação comemorada até hoje com descontrole etílico por franceses e diferentes fãs revoltados por toda parte. Embora a Queda da Bastilha continue a ser um poderoso símbolo de insurreição contra a aristocracia, o objetivo prático da ação era que a pólvora utilizada pelas milícias do rei (em sua maioria mercenários alemães) fosse estocada ali. Imediatamente após a Queda da Bastilha foi estabelecida a Comuna de Paris, estabelecendo Paris como um território livre do

A França perde a cabeça no iluminismo

governo monárquico. (Essa Comuna de Paris não deve ser confundida com a lendária Comuna de Paris do final do século XIX, cujo clima boêmio geral e a tentativa

A terra natal de Diderot, Rousseau, Voltaire e tantos outros luminares da Idade da Razão seria a próxima nação a experimentar umà revolução política em

de viver de acordo com a teoria anarco-comunista inspirou tributos românticos de situacionistas e outros sonhadores e radicais de extrema esquerda do século XX.)

nome da liberdade no final do século XVIII. Na verdade, a Revolução Francesa foi uma série de revoluções.

Em agosto de 1789, a Assembléia Nacional escreveu a Declaração dos Direitos do Homem, um documento influenciado pela Constituição dos Estados Unidos e a

A insatisfação geral com a monarquia francesa crescia em todos os setores da população desde a morte de Luís XIV; em 1715. Os sucessores de Luís- Luís XV e

Declaração de Direitos, que estabelecia liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade religiosa e proteção contra prisão ilegal. De fato, o rascunho

Luís XVI -não eram administradores particularmente competentes dos assuntos de Estado em casa, e também sofreram derrotas humilhantes em guerras contra Inglaterra e Prússia. Combinadas a gastos pródigos em suas cortes, essas aventuras internacionais levaram a França à falência.

original foi feito com a ajuda de Jefferson (na época embaixador americano na França). Contudo, nas mãos da assembléia dividida ela perdeu muito de sua clare-

Famílias nobres ainda estavam sofrendo com a usurpação de seus poderes políticos pela monarquia absolutista em meados do século anterior. Enquanto isso, os

Americana, a Declaração também anunciava a intenção de abolir o sistema de classes. (Não no sentido marxista. A idéia era apenas a de que todos deveriam ter

trabalhadores comuns padeciam em função dos privilégios econômicos feudais e os poderes ainda preservados pela nobreza, que era em grande parte isenta de

direitos iguais de participar do Estado e de conquistar e adquirir, independente-

impostos e do serviço militar e controlava as guildas de comércio e grande parcela da riqueza do país. A primeira fase da revolução política da França começou em maio de 1789, quando um grupo de nobres convenceu o rei de que a única saída para a depressão política era convocar os Estados Gerais, a assembléia parlamentar que representava os interesses dos três estados franceses- nobres da Igreja, nobres hereditários

za, transformando-se numa afirmação bastante vaga e moralista acerca do bem comum e dos direitos universais. Diferentemente dos documentos da Revolução

mente de sua ascendência.) Olympia de Gorges respondeu à Declaração dos Direitos do Homem francesa com uma Declaração dos Direitos das Mulheres. Segundo Barzun, "Ela propôs para o casamento uma forma simples de contrato com direitos recíprocos, recurso à lei em casos de sedução e paternidade e( ... ) participação no governo. Mais radical foi Theroigne de Mericourt. Sua organização, chamada Amazonas, participava de protestos com um seio nu:' Essa imagem poderosa é freqüentemente repetida em

184

REVOLUÇÃO CULTURAL E POL!TICA

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

185

pinturas e desenhos sobre a Revolução Francesa. Mericourt era urna das líderes da

maioria associe o nome Napoleão a almofadinhas baixinhos que querem governar

marcha a Versalhes para protestar contra a falta de pão, o que levou o rei de volta a

o mundo, ele preservou e ampliou (e algumas vezes reduziu por conta própria)

Paris, onde a Revolução podia ficar de olho nele. Em 1791, urna facção da Assembléia Nacional, urna coalizão da burguesia cha-

muitas das características da revolução do iluminismo, ao mesmo tempo em que obtinha suas conquistas internacionais.

mada de girondinos, estabeleceu urna monarquia constitucional, dividindo o po-

Em termos reducionistas, a Revolução Francesa foi protocomunista e a Revolu-

der desconfortavelmente com o rei, mas a tentativa de chegar a um acordo com a

ção Americana foi protolibertária. A Revolução Americana nasceu de urna mistura

monarquia estava condenada ao fracasso. Os historiadores discordam sobre se fo-

peculiar de idealismo iluminista acerca dos direitos de cada individuo e de um

ram os nobres ou o rei que não queriam o acordo, mas, seja como for, a patuléia

aparentemente contraditório conjunto de crenças elitistas e oligopolistas susten-

estava ficando cansada e exigia o fim da monarquia.

tado pela maioria dos Pais Fundadores. Os revolucionários franceses eram influen-

Finalmente, a revolução da ralé se tornou irresistível. Os girondinos foram

ciados pelas mesmas idéias acerca dos direitos individuais, mas - a longo prazo -

derrubados do poder pelos jacobinos, urna conspiração de tendência comunista

estavam mais concentrados nas necessidades e nos desejos dos despossuídos como

(pré-marxista) que era profundamente influenciada por Rousseau, liderada por

um grupo enfurecido, e em seu ataque ao elitismo e ao oligopólio os direitos indi-

il:

Jean-Paul Marat e um juiz dispéptico e hipócrita chamado Robespierre. Parte da

viduais acabaram sendo atropelados.

,IIJ'

atração exercida pelos jacobinos se devia à promessa feita por eles de acabar com o

A Revolução Francesa entrou em colapso, enquanto a Revolução Americana

caos e restaurar a ordem na França. Altamente organizados e populares entre os

foi bem-sucedida. Os leitores certamente são bem-vindos se quiserem encontrar

artilheiros (membros das "formas armadas") e os habitantes da Comuna de Paris,

aqui algum absoluto silogismo histórico, mas nós passamos. A história é longa e

eles de fato estavam em boa posição para restaurar a ordem. Tudo o que eles preci-

inacabada e a visão contracultura!- pelo menos no que diz respeito à política -

savam fazer era dar ao povo o que ele queria.

deve ser ornnicética e perpetuamente insatisfeita. Mas as questões levantadas por

E o que ele queria era sangue. Na época do Terror, milhares de aristocratas e

essas correntes políticas divergentes e basicamente opostas que surgiram do

outros inimigos políticos do regime foram mandados para a guilhotina. E então,

iluminismo podem lembrar observações feitas acerca da contracultura socrática

em vez do racionalismo ser esmagado pela autoridade religiosa, a religião era

no capítulo 3. A característica básica da contracultura, o individualismo profundo

esmagada e "a Deusa da razão" era entronizada na Notre Dame.

e radical, tem relações complicadas e ambivalentes com o populismo e o elitismo,

A época do Terror foi ao mesmo tempo urna temporada de terrível loucura e

que talvez nunca sejam resolvidas. Claramente, o valor contracultura! do não-

urna extraordinária tentativa de acelerar o processo na direção de um conjunto de

autoritarismo é muito difícil de ser politicamente institucionalizado em grandes

objetivos utópicos que incluía a completa igualdade e o que poderia ser visto

sociedades. Tanto as elites quanto a malta devem ser vigiadas atentamente. A liber-

idealisticamente como democracia participativa ao nível das ruas (embora se pare-

dade exige vigilância.

cesse mais com o governo da malta). Robespierre declarou: "O povo francês parece ter se distanciado do restante da raça humana por dois mil anos; tem-se a tentação de vê-lo como urna espécie diferente': e personagens do iluminismo em outros países- de Thomas Jefferson a Goethe cesa praticamente até o fim amargo.

A primeira revolução da mídia

se empolgaram com a Revolução FranA mídia como a conhecemos surgiu no início do século XVIII. Periódicos,

Em dois anos, os governantes jacobinos tinham se voltado uns contra os outros

jornais, volantes se tornaram facilmente disponíveis no recém-criado espaço pú-

e, urna a urna, suas cabeças rolaram para a cesta. Alguns anos depois, seu fracasso

blico dos cafés. Em meados do século, as publicações já tinham abandonado quase

levou ao reinado de um outro tipo de déspota, o imperador Napoleão. E embora a

que completamente a anterior utilização pro forma do latim, substituído pelo

li

186

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

REVOLUÇÃO CULTURAL E POL!TICA

187

vernáculo popular. E não era apenas texto que estava sendo popularizado. A mídia

artistas talentosos que eram apaixonados pelo novo espírito de liberdade "conspiras-

estava transformando a esfera pública. Blanning observou: ''A mídia cultural( ... )

sem" para espalhar a palavra. O fato de que as lojas maçônicas, com seus rituais

agora se tornou acessível ao público - sociedades de leitura, salas de leitura, tea-

ocultistas, se tornassem um dos centros de atividades de propaganda intrigou des-

tros, museus e concertos. O que todos esses espaços tinham em comum era a sobe-

confiados e assombrou fundamentalistas religiosos desde então.

rania do argumento racional ( ... ) exigências superiores de status ou riqueza:'

A revolução tecnológica e da mídia marcou o século XVIII. Como sempre, foi

O mercado popular para a arte e a literatura libertou escritores e artistas da

uma faca de dois gumes. Diz Blanning: ''Assim como a esfera pública era social-

necessidade de patronos na corte. Já não precisando satisfazer seus financiadores,

mente heterogênea, também era politicamente multidirecional. Não era um pro-

eles podiam experimentar, e falar tão impetuosamente quanto quisessem. Claro

grama, mas um espaço em que todos os tipos de opinião podiam ser expressos,

que as exigências do mercado estabeleceram a nova pressão de satisfazer o público,

incluindo aqueles que defendiam o status quo:' Além disso, as mesmas tecnologias

com a qual estamos todos acostumados hoje, mas no conjunto a transição permitiu

que espalhavam o poder libertário da mídia e do comércio já estavam começando

um grande florescimento de formas criativas e visões diferentes.

amostrar seu lado negativo. Como afirmou corretamente o ubertecnófobo Jeremy

Os editores capitalistas de Amsterdã não se preocupavam com o radicalismo de

Rifkin, os trabalhadores pré-industriais davam pouca atenção ao tempo e tiravam

suas idéias desde que a conta da impressão fosse paga. E o ancien régime do século

férias freqüentes, mas a cultura de mercado amarrava a maioria dos cidadãos ao

XVIII se transformara em um opressor esporádico e muito ineficiente. Contraban-

relógio. Os alemães começaram a conceber a educação basicamente como uma

distas de livros e editores brincavam de gato-e-rato com as autoridades. As próprias

forma de instilar obediência, e em sua maioria o mundo seguiu o modelo. Um

autoridades viviam um profundo conflito, algumas vezes dando alertas antecipa-

melancólico industrialismo, com suas "negras fábricas satânicas': assomava no

dos de suas operações. Todo o pensamento radical do início do iluminismo que

horizonte. Uma cultura fabril conformista de produção em massa iria inspirar

tinha sido seguramente codificado no latim desconhecido para a maioria estava

novas rebeliões contraculturais.

então passando por um debate "público': A obra Lady's Cuide to Newtonian Physics era um dos assuntos quentes dos salões já nos anos 1730.

Blanning argumenta que "a emancipação cultural das massas foi um completo fracasso. A cultura de massa transformou-se em cultura manipulada; seus receptores

A disseminação das idéias radicais não tinha sido por acaso. Ao longo do século

foram reduzidos a consumidores passivos. A indústria cultural é apenas um sustentá-

XVIII, alguns indivíduos se dedicaram a divulgar a causa do iluminismo. Grupos

culo do status quo:' Esta certamente é uma popular visão contracultura! contemporâ-

de indivíduos conscientes e cada vez mais organizados, freqüentemente formados

nea, embora o estudo de um certo número de fenômenos culturais pop, como a

em torno de lojas maçônicas (a sociedade secreta dos maçons), faziam agitações em

popularidade do filme neo-situacionista Clube da luta entre jovens e o perversamen-

defesa de mudanças radicais. Muitos dos personagens do iluminismo eram maçons,

te satírico desenho animado Os Simpsons, combinados com a ainda viva cultura do

incluindo Wolfgang Mozart, George Washington, Benjamin Franklin, Isaac Newton,

ativismo dissidente, recomende uma análise um pouco mais bem-dosada.

Voltaire, Diderot e Frederico, o Grande, e sabe-se que havia aproximadamente 150

Muitas das facções do mundo moderno

esquerda, centro, libertarismo,

lojas maçônicas nas Américas na metade do século. Os historiadores discordam

neoprirnitivismo, cienti:ficismo, hedonismo, romantismo e materialismo - esta-

quanto à importância da sociedade secreta. Para alguns, que preferem destacar que

vam presentes no iluminismo. O livre-pensar produziu pensamento e (surpresa!)

esses valores estavam sendo expressos aberta e audaciosamente tanto por maçons

boa parte dele era contraditório. Como as contraculturas já abordadas neste livro,

quanto por outros indivíduos naquela época, a maçonaria não passa de um coadju-

o Iluminismo expandiu as fronteiras do comportamento pessoal, da liberdade de

vante histórico. Para outros, inclinados a ver a história em termos conspiratórios, a

associação, do livre pensamento e da comunicação aberta ... Praticamente todas as

era do iluminismo em si- e as revoluções culturais e políticas que estimulou- foi

características contraculturais primárias e secundárias discutidas no segundo

uma "operação" maçônica. Na verdade, era inevitável que pensadores e escritores e

capítulo deste livro estão presentes nestes ideais.

n 188

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Mas a Razão (o coração tem a sua própria) deixou muitos se sentindo despojados. O lado escuro da herança política do iluminismo - racismo, colonialismo, desigualdade econômica, devastação ambiental -

continua por resolver.

Holocaustos biológicos e nucleares assombram nossos sonhos, religiosos radicais

CAPíTULO NOVE

A cada qual, seu próprio deus Os transcendentalistas americanos

buscam a teocracia (alguns violentamente) com crescente vigor e "o iluminismo" está armado até os dentes. Assim, hoje é uma tendência entre intelectuais pósmodernos ver o iluminismo como um produto deficiente de homens brancos mortos, enquanto alguns espiritualistas da Nova Era e ambientalistas também descartam a cultura ocidental em sua totalidade como uma opção errada. Bom para eles! Todas as opiniões e todos os pontos de vista são tolerados, até mesmo bem-vindos. E se quiséssemos calá-los, a resposta deles seria a mesma que a nossa: EU CONHEÇO MEUS DIREITOS!

Há sempre dois partidos, o partido do Passado e o partido do Futuro: o Establishment e o Movimento. Algumas vezes a resistência é revivida, a

dissidência corre o mundo e surge na literatura, na filosofia, na Igreja, no Estado e nos hábitos sociais. Ralph Waldo Emerson Um resultado comum e natural de um indevido respeito à lei é que você pode ver urna fila de soldados, coronel, capitão, cabo, praças, carregadores de pólvora e tudo o mais marchando em ordem admirável por montanhas e vales para as guerras, contra seus desejos, oh, contra seu senso comum e suas consciências.(...) Eles não têm dúvida de que é um negócio abominável esse no qual estão metidos; todos eles preferem a paz. Então, o que eles são? Homens de verdade? Ou pequenos fortes móveis (... ) a serviço de algum homem inescrupuloso que está no poder? Visite o Arsenal e contemple um fuzileiro, o tipo de homem que um governo americano pode construir (...) mera sombra e lembrança de humanidade. (... ) A massa de homens serve ao Estado não corno homens, mas principalmente corno máquinas. Henry David Thoreau Os grandes presentes não são fruto da análise. Tudo de bom está na estrada. Ralph Waldo Emerson

190

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Por volta de 1830, a Revolução Americana, baseada nos princípios do iluminismo do século XVIII, estava bem garantida. A democracia e a liberdade política básica se consolidavam, embora conquistadas de modo imperfeito e conduzidas com contradições que ainda hoje continuamos tentando resolver. O ataque iluminista ao dogma religioso não teve tanto sucesso. A grande massa de homens e mulheres não está hoje mais engajada em um pensamento independente acerca das origens cosmogônicas do universo e de seu lugar nele do que estava no século XVI. A maioria- particularmente nos Estados Unidos, terra nascida da peregrinação dos puritanos - confia seu relacionamento com o suposto divino criador à Igreja que herdou de nascença, e aceita- pelo menos superficialmente - seus ainda rígidos códigos de conduta e ritual. Apesar de um verniz da religiosidade e da devoção que caracterizavam os primeiros colonos americanos, Deus na realidade já não está no centro da vida norteamericana. A luta por dinheiro, posses e status é, manifestamente, o real valor da época. Enquanto isso, os unitaristas, uma religião centrada especialmente na Nova Inglaterra e baseada no austero calvinismo, deu alguns pequenos passos no sentido de amenizar os rígidos códigos da filosofia religiosa, embora eles ainda fossem bastante ortodoxos segundo os padrões de hoje. (A absoluta adesão a certos rituais tradicionais continuava a ser compulsória e Jesus Cristo ainda era o único salvador, exigindo obediência e respeito formal.) Uma pequena fissura na coerência entre a cosmologia cristã e aquela de alguns unitaristas se revelou pela primeira vez na pessoa de William Ellery Channing em um sermão em 1819. O ministro unitarista derrubou Deus de seu trono celeste, pregando, nas palavras de Perry Miller, a existência de um "Deus residente e o significado do pensamento intuitivo (... ) a unidade entre o mundo e Deus e a imanência de Deus no mundo': Embora a assinatura transcendentalista não fosse anexada a essa noção (e a muitas outras) antes de 17 anos, este foi, em essência, o início do movimento. Olhando para trás, Channing iria comentar: "O

A CADA QUAL, SEU PRÓPRIO DEUS

191

comunhão face a face com o indescritível Espírito de seu espírito, e se entregava ao abraço do pleno deleite da natureza:' Alguns unitaristas foram influenciados pelas idéias iniciais de Channing, entre eles um brilhante mas um pouco tímido jovem rebento chamado Ralph Waldo Emerson, que se tornou ministro em meados da década de 1820. Em meados da década seguinte, os poucos que eram influenciados passaram a se reunir, principalmente na casa de Emerson, para discussões livres sobre filosofia e espiritualidade. Esse grupo de unitaristas, ao qual logo se juntaram outros intelectuais em busca da luz, também era fortemente influenciado pelo romantismo alemão. Inspirados por A crítica da razão pura, de Immanuel Kant, de 1781, os românticos tinham criado uma contracorrente ao racionalismo empírico de John Locke, que dominara o iluminismo. Como explica Paula Blanchard, autora de Margareth Fuller: From Transcendentalism to Revolution, Kant "abalou os racionalistas dominantes afir-

mando que a consciência (... ) não pode ser explicada pela ciência ou pela teologia (... )ela simplesmente existe. Kant chamou o misterioso( ... ) poder da mente de 'conhecimento transcendental' porque ele transcende a todas as tentativas racionais de analisá-lo". No início do século XIX, os românticos alemães, especialmente Goethe, privilegiavam a intuição e a "lógica do coração" - como expressa por intermédio da poesia e de outras artes- em detrimento dos cálculos frios da razão. Para Goethe, o mundo natural era divino, pleno de maravilhas, e o homem deveria se exaltar com sua presença como um participante ativo. Embora as meditações cosmológicas de Channing tenham dado inicio à convergência dos nascentes espiritualistas livres-pensadores, foi Emerson quem animou o grupo com a publicação, em 1836, de sua monografiaNature. Nesse volume Emerson expressou belamente a crença kantiana do grupo em uma divindade que não podia ser apreendida pela investigação lógica do mundo material, já que era imanente na natureza. E ele casou esses insights espirituais com uma crítica à cobiça, à hipocrisia

tradição e fórmulas, e o Oráculo Sagrado podia ser ouvido por intermédio da intui-

medíocre e à majoritária inconsciência da sociedade que o cercava. Foram os elementos contraditórios de Nature que galvanizaram o grupo, deixando explícita sua alienação na maioria e sua conseqüente noção de singularida-

ção dos ingênuos e puros de coração. Cercado de materialistas, fanáticos e céticos, o transcendentalista acreditava na inspiração perpétua, no poder miraculoso da

de. Os vizinhos, claro, começaram a fazer comentários acerca daqueles estranhos homens, e na época mulheres, que se mantinham distantes mas ocasionalmente

vontade e em um direito de nascença ao bem universal. Ele buscava conseguir a

começavam a recitar suas filosofias "não-cristãs" independentes nas lojas e nos

transcendentalismo, como visto por seus discípulos, era uma peregrinação do mundo idólatra de credos e rituais para o templo do Deus vivo na alma. Era um silenciar de

192

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

A CADA QUAL, SEU PRÚPRIO DEUS

193

espaços públicos da Nova Inglaterra, e que se reuniam conspiratoriamente na casa

encontrados sob folhas de repolho". Os unitaristas ficaram ofendidos, assim como

do (já então ex) ministro unitarista dissidente Emerson. Os vizinhos batizaram o grupo de "o Clube Transcendentalista''.

um resenhista do jornal presbiteriano, que, segundo Blanchard, "declarou que

Como os beatniks e os hippies, este grupo foi classificado por pessoas de fora cuja única intenção era se divertir um pouco à custa deles. Mas é preciso dar aos vizinhos

sugeriu que Alcott deveria ser processado por blasfêmia''.

algum crédito por terem a sofisticação de escolher um bom nome. O bando não fez objeções, e logo adotou o apelido. O transcendentalismo iria se tomar uma filosofia influente e muito discutida em meados do século XIX, acrescentando seu próprio sabor característico ao que iria se transformar em um período de tumulto radical nos Estados Unidos que acabaria culminando na Guerra Civil.

Conversations era o livro mais obsceno e indecente já publicado na América e Margaret Fuller, uma mulher sem-graça cujo intelecto e poder pessoal encantavam quase todos que conhecia, ingressou no círculo transcendentalista logo após conhecer Emerson, no verão de 1836. Fuller era, de muitas formas, o oposto de Emerson. Enquanto ele era fundamentalmente um recluso, ela era o que hoje chamaríamos de uma natural formadora de redes pessoais. Mesmo com pessoas reticentes, ela insistia em derrubar os limites e estabelecer amizades íntimas. Diz Blanchard: "Socialmente, ela alargou a experiência [de Emerson], levando a Concord uma seleção daqueles amigos que [dizia-se] ela usava como 'um colar de diamantes no pescoço": Fuller rapidamente tornou-se um dos personagens principais das

Reunião: os amigos A amizade, assim como a imortalidade da alma, é algo bom demais para acreditar. Ralph Waldo Emerson Emerson tinha o hábito de descobrir jovens rapazes promissores. Ralph Rusk, The Life of Ralph Waldo Emerson

conversas do clube, assumindo o papel socrático de fazer perguntas provocativas e conduzir as discussões. Em 1840, reconhecendo que as mulheres que estavam desacostumadas a exprimir seus pontos de vista em público se sentiam intimidadas na presença de tantos homens letrados, ela criou uma série separada de conversas para mulheres. As mulheres a idolatravam, algumas chegando a ponto de expressar um desejo romântico... "se ela fosse homem': Fuller era um comitê de recrutamento transcendentalista de uma só, levando bandos de jovens promissores de ambos os gêneros, muitos dos quais se tornaram parte importante de seu círculo de amigos.

Por mais que eles possam ter parecido uma conspiração de aberrações para alguns dos vizinhos de Emerson em Concord, Massachusetts, na metade da década

E havia o maior escritor entre os transcendentalistas, Henry David Thoreau. Thoreau era um jovem rude e impetuoso; a intensidade de seu distanciamento da

de 1830, os transcendentalistas realmente eram apenas um pequeno círculo de amigos, que se ampliava. Mas como eles valorizavam tanto a amizade, e como eles

sociedade fazia os outros transcendentalistas parecerem escoteiros. E, embora sua participação da comunidade fosse parcialmente limitada por sua tendência à re-

se sentiam compelidos a viver de acordo com seus valores, os transcendentalistas logo iriam se transformar em uma contracultura identificável, mesmo no sentido

clusão, Thoreau entrou para a história como equivalente a Emerson como líder do movimento transcendentalista graças ao poder de sua pena.

dos anos 1960, que tinha inclusive periódicos alternativos e comunas. No início, A. Bronson Alcott, um espiritualista gentil e sonhador, era o persona-

O grande escritor americano N athaniel Hawthorne era uma estranha presença nos círculos transcendentalistas. Embora em última instância não corroborasse a

gem central do grupo, papel mais tarde assumido por Emerson. Aproximadamente na época do advento do Clube Transcendentalista, ele tinha iniciado uma contro-

sua filosofia, ele era plenamente aceito como parte da comunidade. Ele chegou mesmo a ajudar a estabelecer a comuna de Brook Farm, onde viveu por vários anos,

vérsia com a publicação de Conversations on the Gospels. Seus pecados incluíam chamar Cristo pelo primeiro nome, e o que Paula Blanchard chamou de "várias

não por idealismo, mas por necessidade (ele estava permanentemente quebrado), e por apreciar boas companhias. E embora com má vontade admirasse Emerson

pequenas insinuações (... ) de que os bebês eram paridos pelas mulheres e não

como "um grande e original pensador': Hawthorne era basicamente um estóico

194

A CADA QUAL, SEU PRÚPRIO DEUS

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

195

que algumas vezes podia passar descomposturas nos seguidores do transcen-

sobre uma reunião: "Nos encantou a todos dizendo que nos odeia a todos". Na

dentalismo. Em um de seus ensaios ele escreveu que sua "pobre aldeia rural [estava]

realidade, suas fantasias de grandeza e a insistência em receber atenção especial

infestada de ( ... ) uma grande variedade de mortais estranhos e bizarros,

irritaram grande parte da comunidade transcendentalista. Mesmo Emerson, em-

estranhamente vestidos, a maioria dos quais se considerava importantes conduto-

bora defendendo a validade da alegação de Very, recusava seus ocasionais pedidos de ser tratado como o Messias renascido.

res do destino do mundo, embora fossem apenas enfadonhos". Como os beats nos anos 1950, os transcendentalistas davam uma enorme im-

Hoje, Very provavelmente seria classificado de esquizofrênico e seu gênio

portância à amizade e estavam dispostos a partilhar os mais profundos pensamen-

fantasioso seria embotado por drogas psiquiátricas na esperança de tomá-lo adequa-

tos e esperanças dos outros. Emerson, Thoreau, Fuller e Alcott, por exemplo, parti-

do à sociedade. Há um relacionamento complicado entre estados mentais anormais

lhavam seus diários íntimos. E reuniões de transcendentalistas não eram simples

e contracultura. Que mundo árido seria este se todas as excentricidades fossem elimi-

colóquios intelectuais. Eles rapidamente adquiriram uma característica festiva, com

nadas. E quando a norma social é considerada patológica, a questão da sanidade se

a ajuda da mulher de Emerson, Lidian. Blanchard escreve: ''Aqueles estavam( ... )

toma questionável. De fato, algumas das visões de Very eram decididamente prescien-

entre os primeiros americanos a serem libertados da crença de que qualquer coisa

tes: "No mundo físico nós estamos caminhando para a eliminação do espaço e do

prazerosa devia ser pecaminosa. Lidian Emerson [era] uma anfitriã generosa( ... )

tempo': Por outro lado, pessoas gravemente perturbadas tendem a adotar comporta-

quando seus convidados se reuniam ao meio-dia para a refeição em setembro eles

mentos coercivos (uma característica decididamente não contracultural) e

encontravam a mesa repleta de carne, carneiro assado com molho de alcaparras,

freqüentemente criam problemas para os movimentos contraculturais.

presunto, língua, milho, feijão, tomates, macarrão, pepinos, alface, molho de maçã, pudins, creme, frutas e nozes:' Ela mesma uma pensadora independente, Lidian Emerson sustentava crenças que pareciam estar em algum ponto entre a liberali-

Reurüão:aidentidade

dade dos transcendentalistas e visões cristãs mais tradicionais, mas gostava de É uma grande ironia que um homem tão naturalmente arredio quanto Emer-

fazer parte daquela comunidade de camaradas. No final da década de 1830, o pequeno círculo de amigos baseado na Nova

son tenha se transformado em uma espécie de patrono de uma comunidade de

Inglaterra tinha se transformado em uma multidão, e sua influência se espalhara

sonhadores e lunáticos, mas é verdade. Ele, e sua mulher Lidian, igualmente brava

muito, principalmente graças à popularidade dos livros de Emerson e das confe-

e generosa, sustentaram uma espécie de open house ao longo de toda a época

rências que ele fazia em outras regiões. Como acontece em qualquer reunião de

transcendentalista, e Emerson usou de uma considerável influência para que seus

não-conformistas, eles começaram a atrair alguns trapaceiros e verdadeiros luná-

companheiros fossem ouvidos e publicados (um papel muito parecido foi desem-

ticos. Ellery Channing (sobrinho de William Ellery Channing), por exemplo, era

penhado de forma mais

um poeta de segunda categoria que levou as idéias de Emerson e Thoreau ao extre-

depois). Igualmente interessante foi a forma pela qual Emerson- apesar de sua

pelo gregário Allen Ginsberg nos anos 1950 e

mo. Ele se recusava a lidar com trabalho ou dinheiro, mas, diferentemente de

desconfiança fortemente individualista da identidade grupal e do pensamento

Thoreau, não tinha a disciplina e as habilidades de sobrevivência para ser auto-

coletivo

suficiente fora do sistema. Para grande desgosto de Margareth Fuller, ele se casou

sasse o pedido do público de falar diretamente sobre transcendentalismo em cada

com sua irmã. Em uma impressionante demonstração de tolerância, Emerson e

palestra, ele eventualmente discutia a identidade de seus colegas. Em 1842 ele

aceitou a oportunidade de falar pelo seu movimento. Embora ele recu-

(relutantemente) Fuller ajudaram o casal por toda a vida. E havia Jorres Very, um

finalmente ousou, dando uma palestra intitulada "Os transcendentalistas': em que

talentoso poeta visionário que certo dia decidiu que era o segundo advento do

ele descreveu amorosamente os seus compatriotas:

Cristo. Emerson foi o seu grande defensor. Em certo momento, Emerson escreveu

196

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

(... )eles evitam a sociedade em geral, eles tendem a se trancar no quarto

A CADA QUAL, SEU PRÓPRIO DEUS

197

suas tarefas obter suas próprias importantes revelações sem depender

da casa, a viver no campo e não na cidade, e a descobrir suas tarefas e

de um intermediário entre ele próprio e Deus. Eles tinham o fervor e a

diversões em solidão. A sociedade, na verdade, não gosta muito disso;

consciência dos puritanos do século XVII. (... ) Seus horizontes intelectuais

ela diz: aquele que sai para caminhar sozinho acusa todo o mundo; ele

tinham sido ampliados pelo racionalismo do século XVIII e pelas novas

declara que ninguém serve para ser seu companheiro; isso é muito

teorias dos cientistas naturais. Eles sentiam o empurrão liberalizante da

incivilizado, mais ainda, insultuoso; a sociedade irá retaliar (... ) [mas]

democracia política e a expansividade do movimento romântico na lite-

essas pessoas não são por natureza melancólicas, amargas e anti-sociais

ratura. Mas eles também retiraram muito da poderosa essência de vários

elas não são obtusas ou ignorantes -, mas alegres, suscetíveis, afetuo-

idealismos, misticismos, panteísmos e platonismos. (... ) Eles tinham a con-

sas; eles têm, mais que os outros, um grande desejo de serem amadas.

vicção de que o mundo era sua província e eles o vasculhavam em busca

Como o jovem Mozart, elas estão prestes a chorar dez vezes por dia,

de alimento espiritual e mental. Eles, contudo, não corriam o risco de

"mas você tem certeza de que me ama?" Elas querem uma camaradagem

excesso de autogratificação como se poderia supor. Mesmo que o

justa e sincera, ou nenhuma. Elas não conseguem fofocar com você, e elas

transcendentalismo algumas vezes parecesse ser a saturnália da fé, os

não querem (... ) satisfazer qualquer mera curiosidade que você possa

membros do clube transcendental eram, afinal, principalmente intelectuais

ter. Como fadas, elas não querem que falem delas.

que exercitavam um bom grau de senso crítico e autocontrole.

Na mesma palestra, Emerson também indicou que os transcendentalistas não

Como freqüentemente é o caso com vanguardistas, os nobres transcendentalistas

eram apenas uma reunião de tipos sensíveis, mas muito possivelmente um movi-

não eram avessos a louvar suas próprias qualidades. Emerson via a si mesmo e a

mento pela transformação social: "Em certos momentos, nós sabemos que um

seus amigos como uma "aristocracia natural': e declarou que "as pessoas que cons-

novo modo de vida (... ) é possível; os elementos já estão presentes em muitas

tituem a aristocracia natural não são encontradas na verdadeira aristocracia, ou

mentes ao redor de vocês, de uma doutrina de vida que pode transcender qualquer

apenas nos seus limites; como a energia química do espectro é maior exatamente

registro escrito que tenhamos':

do lado de fora do espectro. (... ) Eu vi um indivíduo cujas maneiras, embora intei-

Na biografia The Life of Ralph Waldo Emerson, Ralph Rusk explorou de forma eloqüente a gênese da identidade transcendentalista, escrevendo:

ramente adequadas às convenções da sociedade elegante (... ) eram originais e imponentes( ... ) um que( ... ) trazia os olhos em festa, que exalava a confiança de estar às portas de novas formas de existência( ... ) com uma postura alegre e corajo-

Se o Symposium era um clube amorfo sem mensalidades a recolher e

sa, afável e livre como Robin Hood; mas com o porte de um imperador -

sem membros regulares, as pessoas que participavam de suas discussões

necessário, calmo, sério e pronto para enfrentar o olhar de milhões fixo nele:'

se

eram, ainda assim, facilmente identificadas e sua orientação intelectual

Se os transcendentalistas estavam empenhados em transformar a sociedade ame-

gradualmente passou a ser compreendida. Os [primeiros] trans-

ricana, a lógica convencional determinaria que uma de suas características partilha-

cendentalistas pareciam ser principalmente ministros unitaristas extre-

das não ajudava a atingir essa grandiosa ambição. O grupo se rebelara contra a lógica

mamente liberais que estavam tão interessados em literatura, ffiosofia ou

protestante de trabalho. De fato, eles algumas vezes defendiam o ócio absoluto. Os

mesmo reforma social quanto na Igreja. Muitos (... ) estavam em busca de

transcendentalistas não gostavam do modo pelo qual o capitalismo industrial tinha

novas verdades e se impacientavam com as limitações dos credos. (... )

imposto sua tirania do relógio. Além disso, em meados dos anos 1800 a transforma-

Embora não pretendessem fazer de Deus, humano, eles tendiam a fazer

ção do ethos social que hoje está mais ou menos concluída ainda estava apenas

do homem, divino, e seu incipiente homem divino tinha como uma de

começando. "Fazer dinheiro" estava se transformando no grande programa de ação

198

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

A CADA QUAL, SEU PRÓPRIO DEUS

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da sociedade americana. Todas as outras considerações, por mais que se falasse delas,

inventor, J.A. Etzler, declarou: "Eu prometo mostrar a forma de criar um paraíso em

na realidade estavam sendo relegadas à periferia. Os transcendentalistas acreditavam que a constante negação do ócio (negócio) atrofiava a alma e obliterava a mente. O

dez anos, onde tudo desejável para a vida humana esteja disponível para cada homem em superabundância, sem trabalho e sem custo': Ele foi chamado às falas

tempo era mais bem gasto contemplando, lendo, apreciando a natureza ou partilhando pensamentos íntimos com outros seres humanos. Como escreveu Ralph Gabriel

pelo antiprometéico Thoreau. Gabriel comenta: "Para Thoreau, as máquinas eram engenhocas que tornavam a vida tão complicada que se tornava difícil viver; elas

em seu ensaio "Emerson and Thoreau': de 1940, "Passar um dia de semana só ou com um amigo, como Emerson e Thoreau faziam freqüentemente, caminhando ao redor do lago Walden sem sequer a desculpa de estar caçando ou pescando, não chegava a

eram fardos que os homens carregavam nas costas. Elas sugavam tanto as vidas das crianças que as operavam nas fábricas quanto as dos empreendedores que as construíram. Thoreau nunca chegou a um acordo com a máquina; ele nunca deixou de

ser um pecadô: Nesse aspecto, Thoreau era e sempre foi o rei dos preguiçosos. Aluno de Harvard, ele recebeu a honra de falar na sua cerimônia de formatura. Thoreau

desprezar - e se compadecer de aqueles homens cujos dias eram preenchidos com negócios e cujo objetivo era a riqueza:'

aproveitou a oportunidade para sugerir que a ordem bíblica deveria ser invertida, e que deveríamos trabalhar um dia da semana e descansar seis! Já adulto, Thoreau liberou a si mesmo do mundo do trabalho. Segundo Carl · Bode, editor de uma coletânea de trabalhos de Thoreau, ele decidiu "reduzir suas

Reunião: o movimento

necessidades e viver uma vida simples': Em Walden, Thoreau escreveu: "Eu estou

Era uma época em que o ar estava cheio de reformas. (... ) Loucos,

convencido, tanto pela fé quanto pela experiência, de que permanecer nesta terra não é um sofrimento, mas um passatempo se vivermos de forma simples e sábia.( ... )

loucas, homens com barbas, protestantes dunkers, puritanos radicais,

Não é necessário que um homem ganhe a vida com o suor de sua testa, a não ser que ele sue mais facilmente do que eu:' Ele também descreveu sua dieta trivial como sendo "centeio e fubá sem fermento, batatas, arroz, um pouquinho de carne de

quacres, abolicionistas, calvinistas, unitaristas e filósofos - todos che-

cristãos abolicionistas, queixosos, agrarianistas, Batistas do Sétimo Dia, garam sucessivamente ao topo, e aproveitaram seu momento, quando não sua hora, para admoestar, ou rezar, ou pregar ou protestar.

porco salgada, melado e sal; e minha bebida é águà: Mas ele confessou fazer algu-

Ralph Waldo Emerson

mas raras visitas a restaurantes na cidade. O desejo de escapar do trabalho duro associado à civilização ocidental é um

Nós tinhamos muita companhia - turistas curiosos de outros lugares,

tema recorrente na contracultura, mas os pensadores divergem radicalmente sobre

artistas e socialistas.

como conseguir isso. Os antiprometéicos gostariam de que retornássemos a um modo de vida anterior, menos corrido. Alguns, de fato, nos levariam de volta à época dos caçadores-coletores, enquanto outros gostariam de combinar de alguma forma o charme daquele estilo de vida com uma tecnologia de comunicação por computador onipresente, uma estética que é uma entre muitas definições de "primitivismo moderno". Prometéicos que se opõem à ética do trabalho, por outro lado, querem acelerar a produção de tecnologias que teoricamente fariam o trabalho chato por nós (mas que em nosso atual sistema social parecem apenas acelerar a competição, nos forçando a trabalhar 24 horas por dia, sete dias por semana). Essas abordagens contrastantes já eram visíveis na metade do século XIX. Um

Arthur Sumner, recordando a Comuna de Brook Farm

Em 1840, os transcendentalistas se transformaram em um verdadeiro movimento social com a publicação de seu primeiro periódico, The Dial. Margareth Fuller foi escolhida como editora. Em seu editorial de abertura, ela escreveu que a publicação deveria ser"um órgão inteiramente livre( ... ) para a expressão do pensamento e do caráter individuais. Não há um programa de ataques, nem padrão específico a ser seguido:' Veículo de um movimento sem ideologia, ele publicou trabalhos assinados por todos os principais transcendentalistas, bem como trabalhos de seguidores como Hawthorne e até alguns políticos liberais. Emerson escreveu

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A CADA QUAL, SEU PROPRIO DEUS

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sobre como ele cativou "todos os garotos e garotas brilhantes da Nova Inglaterra, que ignoravam uns aos outros, [que] levavam a vida( ... ) os rapazes que( ... ) não

Califórnia, e Ann Arbor, Michigan, logo iriam formar territórios liberados a partir do que iriam completar "a revolução"- não iria se transformar em realidade.

querem entrar para o comércio, as garotas que( ... ) não gostam de chamados mati-

Entre os principais transcendentalistas originais, apenas Ripleyfez parte de Brook Farm. Emerson e Fuller permaneceram próximos, passando lá períodos de até uma

nais e festas noturnas. Todos são religiosos, mas odeiam as igrejas; eles rejeitam todas as formas de vida dos outros homens:' Outras publicações transcendentalistas, com títulos como The Western Messenger, Harbinger, Aesthetic Papers e Spirit of the Age, seguiram os passos de The Dial, formando uma verdadeira imprensa alternativa. No final dos anos 1830, alguns membros do Clube Transcendentalista come-

ou duas semanas, mas nunca se comprometendo com a vida ou mesmo com a idéia. Como comentou Rusk, "a mera sugestão de algo semelhante a um esquema comunal (... ) dava calafrios no indivíduo Emerson( ... ) [que comentou] 'Eu não quero me

çaram a conversar sobre viverem juntos e colocarem em prática seus ideais acerca de uma boa sociedade. George Ripley, influenciado sobre um movimento socialista

transferir de minha prisão atual para uma prisão um pouco maior": Emerson também alfinetava os membros da comuna pela noção exagerada de sua própria importância, chamando seu ambiente de "um eterno piquenique, uma Revolução Francesa em

utópico chamado fourierismo, decidiu instalar uma comunidade baseada na partilha voluntária, na boa vontade e na cooperação. Em 1841, Ripley, juntamente com

miniatura, uma Idade da Razão em pequena escalâ: Fuller, por sua vez, não estava inteiramente confortável com o estilo de vida desleixado. Escreveu Blanchard:

Hawthorne e alguns poucos outros fizeram empréstimos de modo a comprar um

"Margaret ficava ligeiramente ofendida quando promovia um debate lá e a platéia ficava deitada no chão, bocejava e se espreguiçava e ficava entrando e saindo':

pedaço de terra em West Roxbury, perto de Boston. Lá eles poderiam conduzir sua experiência transcendentalista de vida. A comuna se dedicava à agricultura e tinha uma escola transcendentalista. Muito tempo era reservado à vida da mente e ao desfrute da natureza e da boa companhia. Como aconteceu em muitas das comunas hippies do início dos anos 1970, o trabalho na fazenda se mostrou menos agradável do que era na imaginação. Mas com Emerson e Fuller sempre presentes, ministrando cursos, a escola era um estrondoso sucesso, atraindo jovens alunos brilhantes de lugares tão distantes quanto as Filipinas. E socialmente a vida em grupo se mostrou ao mesmo tempo agradável e estimulante. Pouco depois do estabelecimento de Brook Farm, floresceram diversas outras

BrookFarm deixou de existir em 1846, em função de um trágico incêndio e das dificuldades econômicas pessoais, não relacionadas à comuna, vividas por Ripley. Diferentemente de muitas comunas hippies, o experimento de Ripley não foi destruído por choques de personalidade. Embora não tenha produzido a utopia que se esperava, ele foi no conjunto- uma experiência de sucesso de vida alternativa. No número de maio de 1894 do New England Magazine, Arthur Sumner, que tinha sido criança na comuna, relembrou que "a vida era pura, as companhias, selecionadas. Havia bastante trabalho duro e bastante diversão - música, dança, leitura, patinação, passeios à luz da lua... flertes:'

experiências comunais americanas. E embora elas provavelmente fossem mais influenciadas pelo socialista francês Fourier que pela espiritualidade de Emerson, alguns transcendentalistas, segundo Rusk, estavam começando a acreditar que "as diversas comunidades experimentais que então estavam sendo estabelecidas pode-

Emerson e Thoreau: filósofos de personalidade, personagens da Filosofia

riam realmente transformar a sociedade americana. (... ) Clapp [Elizabeth Clapp, acólita de Emerson] disse a ele [Emerson] que logo irá acontecer dessas comuni-

Mais de uma vez (... ) alguém (... ) gostaria de saber quando Henry iria

dades mudarem e controlarem o preço do pão, assim como as associações

começar a ter uma vida respeitável. Quando ele iria dar um jeito na

manufatureiras e comerciais fizeram com o preço do algodão, e os fazendeiros serão levados a formar associações de autodefesa:' Mas essa visão de comuneiros

vida? Exatamente o que ele estava planejando fazer? Essas eram per-

assumindo o controle da economia agrícola- curiosamente lembrando as alucinações de Tom Hayden em 1969 de que comunidades hips como Berkeley,

até o fim da vida de Thoreau.

guntas que muitos vizinhos de Concord fizeram e continuaram a fazer Carl Bode

- I

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A CADA QUAL, SEU PRÓPRIO DEUS

203

Ah, como eu prosperei na solidão e na pobreza! Eu não posso exagerar essa vantagem.

dizia respeito aos alunos e administradores da Divinity School e (mais tarde, com a

Henry David Thoreau

muito bem ter levado Satã com ele para a palestra. O principal periódico unitarista,

divulgação de suas palavras) uma grande parcela de crentes cristãos, ele poderia

The Christian Examiner, classificou raivosamente a palestra como "absolutamente Emerson era um homem muito entusiasmado no que dizia respeito a seus cole-

desagradável': e outro analista condenou Emerson como "um infiel ateu':

gas filósofos. Primeiramente Alcott, depois Fuller, e mesmo o louco Jones Very,

Embora os transcendentalistas tenham ficado entusiasmados com a fala, os

todos cativaram Emerson por algum tempo e receberam seu elogio extravagante.

moradores da cidade fecharam a cara para ele por anos a fio. Samuel Ripley (um

Mas nenhum impressionou tanto o deão do transcendentalismo quanto Thoreau.

primo do líder da comuna de Brook Farm, George Ripley), comentou: "Todo o

Pouco depois deles se conhecerem, em algum momento entre 1836 e 1837, Emer-

grupo de religiosos levantou sua voz contra ele( ... ) e as pessoas comuns( ... ) olha-

son declarou que Thoreau tinha "a mente mais livre e atenta de todos os que eu

vam solenes e tristes, e reviravam os olhos( ... ) 'Oh, ele é um homem perigoso"'. Rusk

conheci': Ele começou referindo-se a ele como "meu jovem David': e logo Thoreau

escreveu que "os conservadores de Boston eram ensinados a 'detestar e abominar R.

era seu parceiro favorito em suas freqüentes longas caminhadas dedicadas a elabo-

W Emerson como uma espécie de cachorro louco"'. Emerson, que já não era o

rar idéias filosóficas. O jovem Thoreau, por sua vez, virtualmente idolatrava Emer-

homem tímido de sua juventude, não se perturbou. Ele comentou: "Eu sou apenas

son, tendo escrito que "Mais do divino se realizou nele que em qualquer outro': Em

um experimentador (... )Eu desfaço todas as coisas. Nenhum fato é sagrado para

1841, Thoreau se tornou o único convidado de longa duração a ter permanecido

mim; nenhum é profano:'

na propriedade de Emerson, vivendo lá dois anos em troca de trabalho braçal.

Se Emerson parecia um "cachorro louco" para a velha guarda, Thoreau deve ter

Os dois tinham grandes semelhanças e também grandes diferenças de tempe-

parecido um lobo psicótico. Segundo as normas sociais comumente aceitas, poder-

ramento. Os dois buscavam distância do envolvimento mundano, mas esse desejo

se-ia dizer que Emerson tinha uma tendência anti-social {que ele superou muito

era contrabalançado por uma urgência igualmente forte de botar o dedo na ferida

bem), enquanto Thoreau era terminantemente anti-social (e gostava disso).

da autoridade. O temperamento rebelde de Emerson tornou-se tema de controvér-

Aos 21 anos de idade, Emerson escreveu em seu diário sobre sua própria "falta

sia pública como resultado de duas conferências ministradas em Harvard, o lugar

de afinidades comuns, ou mesmo de( ... ) uma certa frivolidade nos critérios( ... ) um

onde antes Thoreau tinha dito a seus colegas estudantes para relaxar. A primeira

opressivo desconforto na companhia da maioria dos homens e das mulheres,

palestra, dada na irmandade Phi Beta Kappa, foi chamada de "The American

um forte medo de ofender e uma inveja da desatenção, uma incapacidade de conduzir

Scholar".De acordo com Blanchard, "Emerson( ... ) desafiou os mais sagrados prin-

e uma má vontade de acompanhar as conversas( ... ) [não tendo] aquela indepen-

cípios da própria erudição, colocando a experiência pessoal do individuo acima

dência bem-humorada e a auto-estima que devem caracterizar um cavalheiro': Nesse

dos livros.( ... ) Foi( ... ) uma afirmação( ... ) do valor e da dignidade do indivíduo em

ponto, em sua juventude, o desconforto de Emerson entre outras pessoas é expresso

oposição à estrutura pesada e mecânica da tradição.( ... ) Embora de modo algum

em termos de timidez e autocrítica. Thoreau, em contraste, segundo as palavras do

negando a importância da história, Emerson insistiu em que ela era um processo

biógrafo Milton Meltzer, "simplesmente não se importava com as pessoas".

orgânico vivo:' Naturalmente, o público acadêmico ficou profundamente irritado.

De fato, por toda a sua vida, se Thoreau considerava uma conversa ou interação

Um ano mais tarde, convidado por um corpo de estudantes que já perdia a paciên-

estéril, ele rapidamente deixava claro que preferia ficar sozinho. Em Emerson Among

cia com o autoritarismo religioso, Emerson falou na Harvard Divinity School. Se-

the Eccentrics: A Group Portrait, Carlos Baker escreve que mesmo entre os

gundo o relato de Rusk, ele disse aos estudantes que "a cristandade construiu uma

transcendentalistas, "Thoreau era lacônico, cortante, dotado de um humor irônico.

monarquia absoluta [ao louvar a personalidade de Jesus] (... )isso é intolerável': Seu

(... )Emerson lembrou-se durante muito tempo de que, quando perguntado que

conselho era "seguir sozinho, e amar a Deus sem precisar de um mediador': No que

refeição preferia para o jantar, Thoreau respondeu azedamente: 'a mais próximà:'

204

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

A CADA QUAL, SEU PRÚPRIO DEUS

Diferentemente de Emerson, Thoreau nunca expressou a menor dúvida a respeito da forma pela qual se relacionava (ou não se relacionava) com seus colegas

205

uma forte tendência de (... ) sátira contra as tolices da época': Segundo esse resenhista, o público de Thoreau era mantido "em um divertimento quase constante':

humanos. Emerson certa vez se queixou de que havia "algo de militar" na postura

Emerson, e particularmente Thoreau, se esconderam da mediocridade huma-

de Thoreau em relação ao mundo, "não queria ser subjugado, era viril e capaz, mas

na que os cercava mergulhando na natureza e no sonho de uma sociedade humana

raramente terno, como se ele não se visse senão na oposição. Ele queria uma falácia

que se harmonizasse com ela. O amor de Emerson pela natureza produzia êxtases:

para desmascarar ( ... ) precisava de uma certa idéia de vitória:' Henry James Sr.

"Nas florestas nós retornamos à razão e à fé. ( ... ) De pé no chão nu- com minha

escreveu que Thoreau "era literalmente o egoísta mais infantil, inconsciente e

cabeça tocada pela brisa fresca e erguida para o espaço infinito -, todo o egoísmo

desavergonhado que eu tive a oportunidade de encontrar nas illeiras da humanida-

mesquinho desaparece. Eu me transformo em um globo ocular transparente;

de". Em Walden, Thoreau escreveu: ''A maior parte do que os meus vizinhos cha-

eu sou nada; eu vejo tudo; as correntes do Ser Universal circulam através de mim; eu

mam de bom, eu acredito em minha alma ser ruim, e se eu me arrependo de algo,

sou parte ou parcela de Deus:' Enquanto isso, Thoreau, que mergulhou muito mais

muito provavelmente é do meu bom comportamento':

fundo na natureza, queria não apenas amá-la, mas questioná-la: "Eu fui para a

Quando Walt Whitman impressionou o mundo em 1855 com seu livro Folhas da

floresta porque eu queria viver vagarosamente. (... )Eu queria viver profundamente

relva, Thoreau era um dos muitos líderes dos transcendentalistas que viajaram para

e sugar toda a seiva da vida,( ... ) roçar cuidadosamente um terreno, levar a vida para

a Nova York do poeta para homenageá-lo. Mas o magnânimo Whitman ficou

um canto e reduzi-la a seus termos mais baixos e, caso se mostrasse pobre, então

estarrecido com a "inabilidade [de Thoreau] de apreciar a vida comum

compreender toda a sua genuína mediocridade e revelar essa mediocridade ao

e mesmo

a vida excepcional: me parecia carente de imaginação. (... )Era uma enorme diferença: e foi muito surpreendente descobrir em Thoreau um grave caso de arrogância''.

mundo; ou se fosse sublime, sabê-lo pela experiência:' Para Thoreau, a natureza não era simplesmente um lugar agradável para fugir

insights não-

da vida. Ela era um local de onde criticá-la e lamentar. Em uma de suas meditações

conformistas -, claramente produtos de uma grave alienação inicialmente sentida

sobre a natureza, A Week on the Concord and Merrimack Rivers, ele elegantemente

pelos dois homens na adolescência. Emerson acreditava que tipos marginais "anti-

apresentou o contraste entre a vida natural e a vida social: ''Alguns homens são

Nós temos os presentes dos escritos de Emerson e Thoreau -

sociais" davam uma peculiar contribuição à sociedade por influenciarem seus mem-

juízes nestes dias de agosto, sentados em bancos (... ) entre as estações e entre

bros a tentarem fazer algo melhor. Ele provavelmente estava pensando em Thoreau

refeições, conduzindo uma vida civil política, arbitrando ( ... ) do meio-dia até que

quando escreveu: "O homem incivilizado, inacessível, que é um problema( ... ) para a

vésper mergulha no oeste. O pescador, contudo, fica de pé em três pés de água, sob

sociedade(... ) que ele( ... ) pode adorar ou odiar(... ) ele ajuda; ele considera a América

o mesmo sol de verão, arbitrando (... ) entre gusano de esterco e peixe, em meio à

e a Europa totalmente erradas, e destrói o ceticismo que diz 'o homem é um boneco,

fragrância de nenúfares, hortelã e pontedéria. ( ...)Para ele a vida humana é muito

nos deixe comer e beber, o melhor que podemos fazer' ao iluminar o mundo': E só

parecida com um rio:'

uma pessoa com algum grau de antipatia para com o homem comum poderia ter

Thoreau também achava seus pares literários incompletos, em função de seu

elaborado uma afirmação tão revolucionária quanto esta de Emerson: "Por toda

desligamento da natureza. Ele escreveu: "O poeta se trancou atrás das portas, e trocou

parte a sociedade está conspirando contra a humanidade de cada um de seus mem-

a floresta e o penhasco pelo lar (... ) [e] pela casa dos ingleses': Difícil não pensar na

bros.( ... ) Aquele que deseja ser um homem, precisa ser um não-conformista:'

afirmação de 1969 de Jim Morrison: "Nós fomos transformados de um corpo em

Surpreendentemente, enquanto Emerson tinha uma personalidade pública bem

êxtase dançando loucamente em uma montanha num par de olhos fitando a escuri-

mais generosa, Thoreau- quando ele finalmente foi convencido a se mostrar aos

dão': Algumas vezes Thoreau nos lembra muito o eremita taoísta "idiota'' do capítulo

olhos do público para uma série de palestras - divertia mais, demonstrando

4: "Eu me entreguei à natureza.( ... ) Eu passei dois anos (... ) sobretudo com as flores,

uma inteligência ácida. Um resenhista destacou seu "estilo de humor refinado, com

não tendo outro compromisso maior do que observar quando elas se abriam:'

I,

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A CADA QUAL, SEU PRÓPRIO DEUS

207

A aversão de Emerson e Thoreau à sexualidade é menos explicável. É estranho

Naquele que é provavelmente o trecho mais presciente de Walden, Thoreau demonstra um impressionante insight da cultura rnidiatizada, afirmando que uma vida vivida na abstração não deveria ser vivida. Ele escreveu: "Com um esforço

que aqueles defensores radicais da vida natural, para todos os objetivos e propósitos, ignorassem a sexualidade em seus escritos, com a exceção de algumas poucas

consciente da mente nós podemos nos manter distantes das ações e suas conseqüências. (... )Nós não estamos inteiramente envolvidos na natureza. (... )Eu posso

oportunidades quando os que escandalizavam os puristas religiosos se escandalizavam eles mesmos com a expressão erótica. E ficamos ainda mais surpresos quan-

ser afetado por uma apresentação teatral; por outro lado, eu posso não ser afetado

do consideramos os seus hinos ao excitado chifrudo deus Pã. Afinal, Thoreau es-

por acontecimento real que parece não dizer muito respeito a mim. Eu( ... ) tenho a consciência de uma certa duplicidade, pela qual eu posso estar tão distante de mim

creveu: "Em meu Panteão, Pã ainda reina em sua glória primitiva, com seu rosto corado, sua barba graciosa e seu corpo peludo': E Emerson exclamou: "Eu amo o

quando do outro. Por mais intensa que possa ser minha experiência, eu estou

poderoso PÃ!". Mas na época o ex-ministro religioso estava apenas se sentindo esmagado pela beleza natural de sua nova casa no campo.

consciente da presença e da crítica de uma parte de mim, que( ... ) não é uma parte de mim, mas um espectador, não partilhando a experiência, mas registrando-a. (... ) Quando a peça( ... ) da vida acaba, o espectador segue seu caminho. Foi uma espécie de ficção, apenas um trabalho de imaginação:'

Havia um forte elemento de puritanismo calvinista, provavelmente herdado, na natureza de ambos. Emerson ficou perturbado quando passou algum tempo com Margareth Fuller pela primeira vez porque ela o fazia rir "mais do que eu gostaria".

Por mais que fosse um recluso e um amante da natureza, Thoreau não parecia

De acordo com Bode, Thoreau nunca conseguia entrar no universo feminino sem

disposto- como John Zerzan- a retornar ao estágio de caçador-coletor. Na verdade, ele foi muito sincero quanto ao seu prazer de retornar ao conforto da

ruborizar. Descontadas essas características inerentes, a rejeição transcendentalista (ou transcendente?) à sexualidade, como aquela dos cristãos gnósticos, não era um mecanismo para satisfazer uma raivosa divindade disfórica. Era, na verdade, coe-

casa de Emerson após sua experiência de dois anos em Walden. Ele escreveu: "Foi um alívio retornar para nossa paisagem plana, mas ainda assim variada.( ... )

rente com o objetivo primordial dos transcendentalistas de considerar o ideal, o

Para residência permanente, não me parece haver comparação entre esta e a vastidão:' Como no caso de boa parte da obra transcendentalista, é difícil dizer

espiritual acima do material. Emerson filosofou que "A engenhosidade do homem sempre foi dedicada à solução de um problema- como desligar a delícia sensual,

que lição pode ser tirada disso, exceto que a inconclusividade é parte de seu pacote contracultura!.

a força sensual, o esplendor sensual, etc. da delícia moral, da profundidade moral, da pureza moral". (Notem que moral e espiritual eram praticamente sinônimos no

Do ponto de vista da solene Nova Inglaterra de influência calvinista, os transcendentalistas- homens e mulheres selvagens da natureza- eram desembaraçados demais. Mas eles decididamente não eram hedonistas. Na verdade, Emer-

mundo transcendentalista.) Acima e além de aprender a desfrutar da companhia de Margareth Fuller, Emerson acabou estabelecendo seu próprio senso de humor- sutil, mas ácido: "A natu-

son, Whitman e outros demonstravam uma simpatia pelo movimento de temperança- aqueles que estavam tentando banir o álcool (e em alguns casos o tabaco,

reza não nos quer irritados e enfurecidos. (... ) Quando saímos da reunião do partido, do banco, da convenção abolicionista, do encontro da temperança ou do clube

o café e o chá) da vida pública, embora se opusessem a sanções legais por parte do Estado. (É importante notar que a violência estimulada pelo álcool atingiu naque-

transcendental nos campos e florestas, ela nos diz: 'Tão quente assim, senhorzinho?"' Emerson claramente tinha algumas características conflitantes. Havia a alma

la época uma escala inimaginável para nós hoje, mesmo se tivermos passado uma temporada na Rússia.) Emerson escreveu para os boêmios de seu tempo: "Se

liberal que escreveu: "Não deve haver nenhum excesso no amor, nenhum no conhecimento, nenhum na beleza''. E havia a faceta pudica que disse do carnal e

encherdes a cabeça com Boston e Nova York, com moda( ... ) e estimulares vossos sentidos embotados com vinho e café francês, não vereis mais brilho de sabedoria nos solitários (... ) pinheiros':

festivo Folhas da relva, de Walt Whitman (que ele promoveu com seu entusiasmo típico): "Há partes do livro em que eu tampei o nariz enquanto lia. Não é preciso se melindrar quando um químico apresenta um bolo de sujeira e diz'veja também as

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

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grandes leis em ação aqui: mas é uma arte quando ele consegue desodorizar suas

dos poucos privilegiados. Um partido conservador, os whigs, representava esse status

imagens:' Enquanto Emerson se casou e teve filhos, Thoreau permaneceu um solteirão

quo. O Partido Democrata supostamente representava uma opção populista à elite, mas estava comprometido e envolvido com personagens corruptos. A esperança

por toda a vida. Embora tenha desenvolvido algum grau de intimidade com seus

experimentou um renascimento quando Andrew Jackson, um democrata, surgiu

colegas transcendentalistas, não há indícios de que esse homem freqüentemente

como um moderadamente mais bona fide representante das preocupações dos

deselegante tenha experimentado qualquer espécie de intimidade sexual. Corren-

populistas. Jackson era bem querido entre artistas e escritores, mas nosso bando de

do o risco de um julgamento injusto, parece um final infeliz para um homem que desejava "sugar toda a seiva da vidà'.

não-conformistas não foi seduzido. Em um ensaio histórico, o democrata liberal Arthur Schlesinger, conselheiro de Kennedy nos anos 1960, lamentou: Os transcendentalistas (... ) formavam o importante grupo literário que

Revolução: não é melhor libertar a sua mente?

nunca se impressionou muito com a democracia de Jackson. (... )Tanto os democratas quanto os transcendentalistas concordavam em afirmar os

seja abolição, temperança, seja

direitos da mente livre contra as intenções de antecedentes ou institui-

calvinismo ou unitarismo -, se transforma rapidamente em uma pe-

ções. Ambos partilhavam uma fé verdadeira na integridade e na perfei-

quena loja, onde os artigos, tenham sido eles inicialmente sutis ou etéreos,

ção do homem. (... ) Ambos detestavam grupos especiais que alegavam

agora são produzidos em porções portáteis e convenientes, e fracionados

ter autoridade para fazer a intermediação entre o homem comum e a

em pequenas quantidades para atender aos compradores.

verdade. ''A alma deve e irá afirmar a sua legítima autoridade': exclamou

Cada "causa", como é chamada -

Ralph Waldo Emerson

o Bay State Democrat, "acima de todas aquelas formas arbitrárias e convencionais que um falso estado de coisas cravou na sociedade:'(... )

Os piores, os puros transcendentalistas, incapazes de relações humanas

Mas o transcendentalismo em seu modelo de Concord era infinita-

verdadeiras, aterrorizados pela responsabilidade, tentaram transfor-

mente individualista, sem meios de reconciliar as várias instituições de

mar a fuga em triunfo moral.

homens diferentes e decidir qual era melhor e qual era pior. Arthur M. Schlesinger Jr. Paralelamente à reforma eleitoral de Andrew Jackson, estava surgindo uma

Um pregador é um rufião.

forma de ativismo mais profunda e mais radical- o movimento abolicionista. Por Ralph Waldo Emerson

volta de 1830, os nortistas estavam se tornando mais estridentes acerca de suas objeções morais à escravidão no Sul. Pessoas comuns se organizaram para prote-

Como deve ser um homem para se comportar em relação ao [seu] governo hoje? (... ) Ele não pode, sem desonra, ser associado a ele. Henry David Thoreau, A desobediência civil

ger escravos fugidos (entre eles a mãe de Thoreau) e jovens idealistas estavam espalhando uma violenta mensagem antiescravista. Mas os seus representantes políticos, mesmo os liberais jacksonianos, se recusavam a assumir a causa. Em uma imagem quase especular dos anos 1960 e 1970, os direitos dos afroamericanos e a oposição a uma guerra externa imperialista (naquele caso, com o

A dinâmica política dos Estados Unidos ao entrar nos anos 1830 era semelhante à atual. A propriedade e o poder oligárquico estavam se consolidando nas mãos

México) iriam fomentar uma rebelião política atrás da outra ao longo de toda a época transcendentalista. E o papel dos transcendentalistas naquele tempo equivale

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A CADA QUAL, SEU PRÚPRIO DEUS

211

quase que exatamente ao papel desempenhado pela cultura psicodélica hippie em

das várias doenças sérias (e mortes precoces) que eram comuns na vida familiar

seu relacionamento ambíguo com o movimento ativista de sua época. Nossos revolucionários espirituais e culturais se viram simultaneamente como parte de- e em

naquela época. Fugas ocasionais para a casa de Emerson e para a comuna de Brook

conflito com - uma rebelião política. Na medida em que os transcendentalistas tinham uma política, ela era repleta

Farm eram uma exceção, não a regra. E, na verdade, mesmo nesses primórdios, várias mulheres do grupo de "Conversas" de Fuller estavam liderando ativistas contra a escravidão na Nova Inglaterra.

de contradições, uma situação que não contradiz a visão transcendentalista do

Pelo que sabemos, todos os transcendentalistas simpatizavam com a causa

mundo. É famosa a frase de Emerson: "Consistência tola é o demônio das mentes pequenas': Mas, embora essa citação possa ser facilmente descartada como uma

abolicionista, embora, inicialmente, poucos tenham sido especialmente ativos. Eles,

desculpa para o oportunismo, para os transcendentalistas- que não tinham ambição de poder -

era simplesmente uma recusa a colocar a lógica no comando,

privilegiando os mais verdadeiros desejos do coração- ou do espírito. Por exemplo: se o coração que quer uma sociedade que respeite a autonomia individual e autoconfiança também quer uma sociedade baseada no amor e na comunhão, as oposições ideológicas comuns podem não se aplicar. Cada situação precisa ser

como grupo, acreditavam que as transformações pessoais iriam reconstruir o mundo de uma forma mais adequada aos seus desejos do que seria possível com qualquer reforma política. Rusk explicou: "Emerson, caracteristicamente, tentou buscar as origens do conflito social e econômico nas características privadas, [acreditando] que a maior de todas as reformas seria operada substituindo o amor por egoísmô: Refletindo as atitudes de muitos contraculturalistas dos anos 1960 - incluindo

analisada com cuidado, e todas essas necessidades humanas ostensivamente con-

Kesey; Leary e Lennon -, os transcendentalistas experimentaram a insistência dos políticos de que havia uma obrigação moral de fazer a revolução do jeito deles como

trárias precisam ser respeitadas. Harriet Martineau, romancista e radical política britânica, foi, provavelmente, a

sendo mais um ataque à sua tão valorizada autonomia. Por mais justa que fosse a causa, os ativistas eram como os políticos - sempre tentando dizer a você o quer

primeira voz do "movimentô' a passar uma descompostura nos transcendentalistas

fazer. Emerson expressou desprezo por seu fanatismo simplório, gracejando que considerava necessário "tratar os homens e mulheres de uma só idéia, os abolicionistas,

por serem alienados demais - divorciados das importantes batalhas de sua época -em um artigo de revista publicado em 1837 na Inglaterra sobre sua visita aos Estados Unidos. Um trecho da autobiografia que escreveu mais tarde, em que ela escolheu Margareth Fuller como alvo de suas críticas, exemplifica bem a sua visão:

''A diferença entre nós é que enquanto ela estava vivendo e se movimentando em um mundo ideal, falando em particular e discursando em público sobre as mais tolas e superficiais fantasias que os transcendentalistas de Boston consideravam filosofia, olhava de cima para as pessoas que agiam, em vez de falarem elegantemente, e dedicavam suas fortunas, sua paz, sua tranqüilidade e suas próprias vidas à preservação da república. Enquanto Margareth Fuller e seus pupilos adultos se sentavam 'deslumbrantemente vestidos' falando acerca de Marte e Vênus, Platão e Goethe, e imaginando-se os eleitos da Terra em intelecto e refinamento, as liberdades da república estavam desaparecendo rapidamente:' Dado este retrato da indulgência da opulenta classe ociosa, é importante destacar que Fuller - como praticamente todos os transcendentalistas - tinha uma renda modesta. Ela teve uma vida dura, cuidando de membros da família, muitos dos quais tinham muitas

os frenologistas, os swedenborgianos como pessoas insanas': E mesmo após se unir de forma militante às vozes abolicionistas, Thoreau iria declarar: "Eu não vim a este mundo para fazer dele um bom lugar para viver, mas para viver nele, seja ele bom ou mau': e "Eu não nasci para ser forçado. Eu irei existir do meu próprio jeito:' Enquanto isso, Margareth Fuller, embora de pleno acordo com os abolicionistas, concentrava sua energia nos direitos de um grupo ainda maior, ao qual era negada a cidadania: as mulheres. Em uma edição de 1843 de The Dial, Fuller publicou um artigo que afirmava a absoluta igualdade entre mulheres e homens e defendia plenos direitos políticos e econômicos. Em contraste com os abolicionistas, isso exigia uma bravura altamente individualizada- Fuller era uma de um punhado de americanos a chegar a sugerir tal coisa. Blanchard o classificou de "o mais radical documento feminista já produzido na América''. Fuller foi atacada quase que universalmente por membros da classe literária por sua afirmação, não apenas nos Estados Unidos, mas também na Europa (e tanto por mulheres quanto por homens). Edgar Allan Poe maliciosamente comentou que "a humanidade pode ser

212

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

dividida em três classes: homens, mulheres e Margareth Fuller". Carolyn G. Heilbrun escreveu em sua introdução à biografia de Blanchard: "A crença de que Margareth deveria odiar os homens porque competia intelectualmente com eles era disseminada e falsa, e forneceu, assim como a noção de que ela se tornou 'assexuada' pela escolha de uma vocação literária, uma conveniente desculpa para atacar as mulheres intelectuais em geral. Em sua época, Margareth Fuller tornou-se uma lendária bicho-papão, representando uma ameaça não apenas ao ego masculino, mas à farnilia, e, assim, à ordem social:' Os homens no movimento transcendentalista, por outro lado, continuaram tão confortáveis e defensores de Fuller quanto antes. Tendo percebido que tinha tocado em um nervo exposto, Fuller passou a reunir um conjunto de observações ainda mais radicais acerca de conflito de gênero e opressão em um livro intitulado Women in the Nineteenth Century. Dessa vez ela realmente provocou as pessoas boas e decentes. Ela criticou a sacrossanta instituição do casamento por reduzir a mulher a uma propriedade (o que era particularmente verdadeiro de acordo com as leis da época) e chegou mesmo a questionar a distinção absoluta de gênero, sugerindo uma espécie de estado natural de androginia. E, ainda mais escandaloso, sugeriu que as prostitutas, que naquela época eram condenadas a longas penas de prisão, eram moralmente superiores a, nas palavras de Blanchard, "às namoradeiras beldades da sociedade, que faziam uso do sexo para conseguir vantagens econômicas". A prostituta, afinal, era, pelo menos, honesta consigo mesmo acerca do que estava fazendo. Fuller argumentou que a opressão da prostituta caracterizava de forma exemplar a forma pela qual a sociedade tratava as mulheres em geral. Em 1846, Thoreau demonstrou sua própria versão peculiar de bravura política radical quando - cobrado por ter ignorado seus impostos dos quatro anos anteriores recusou-se a pagar, citando a instituição da escravidão, a guerra contra o México e, além disso, o quase alegre desinteresse em reconhecer a autoridade do Estado. Após passar uma noite na prisão, e apesar de suas objeções, um amigo pagou seus impostos e ele foi libertado. Egoísta brilhante, Thoreau colocou esse ato extemporâneo de desobediência em um contexto mais amplo três anos mais tarde, quando escreveu um ensaio motivado em boa parte por seu desejo de justificar sua posição. Inicialmente intitulado "Resistance to Civil Government': foi publicado em um obscuro periódico transcendentalista chamado Aesthetic Papers. Mas ele iria sobreviver, sob o título de A desobediência civil, como uma das mais populares

A CADA QUAL, SEU PRÓPRIO DEUS

213

defesas da recusa antiautoritária de todo o léxico de protesto. Ativistas influentes, de Mahatma Gandhi a Martin Luther King e Daniel Ellsberg, iriam destacar seu significado, e ele iria se tornar a bíblia dos ativistas não-violentos dos direitos civis, dos que resistiam ao alistamento, dos que protestavam contra a guerra e mesmo de alguns membros de milícias antigovernamentais nos Estados Unidos do final do século XX. Por mais que tenha sido útil a liberais como Gandhi e King para arrancar as correntes da violenta opressão e conseguir direitos civis básicos, para aqueles que levaram a sério a mensagem, o Desobediência civil de Thoreau foi um grito anarquista de autonomia individual de qualquer forma de governo. De fato, Thoreau nos disse que tinha declarado sua independência pessoal do Estado, dando ao secretário da câmara de sua cidade a declaração: "Saibam todos os homens, pela presente, que eu, Henry Thoreau, não quero ser visto como membro de qualquer sociedade estabelecida à qual eu não tenha me filiado': Fosse esse texto subversivo a uma realização plena da política dos transcendentalistas ou simplesmente um surto particularmente característico de Thoreau, ele era tão violentamente lúcido que "fez história'' de uma forma que os escritos do restante do grupo nunca conseguiram, sendo bem-sucedido em dar à posteridade um tom decididamente sedicioso do movimento. O texto contém tantos aforismos anarquistas audaciosos que vale a pena interromper esta narrativa para citar alguns deles: Eu aceito de todo coração o ditado: "O governo é melhor quando governa menos"; (... )Aplicado, ele fmalmente leva a isso, em que eu também acredito: "O governo é melhor quando absolutamente não governa"; e quando os homens estiverem preparados para isso, esse será o tipo de governo que eles terão. Não sou responsável pelo bom funcionamento da maquinaria da sociedade. Quando eu encontro um governo que me diz: "A bolsa ou a vida'; por que eu deveria me apressar para dar a ele meu dinheiro?

214

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

A CADA QUAL, SEU PRÓPRIO DEUS

215

Leis injustas existem: devemos ficar contentes em obedecer a elas, ou

crítica para o movimento abolicionista. Um grande número de habitantes da Nova

devemos nos esforçar para mudá-las e obedecer a elas até que tenhamos obtido sucesso, ou devemos transgredi-las imediatamente?

Inglaterra se ergueu em protesto. A maioria dos transcendentalistas, incluindo Emerson, agora estava a bordo. Segundo Carlos Baker, "Emerson perdeu seu res-

Eu silenciosamente declaro guerra ao Estado (... ) embora eu vá conti-

peito pela autoridade de seu governo. (... )Ele chegou mesmo a fazer tentativas de dar ajuda literária aos extremistas:'

nuar a fazer uso dele e conseguir dele qualquer vantagem que eu puder.

Thoreau usou sua resistência aos impostos para fazer duas coisas: eximir-se da

Em 16 de outubro de 1859, o radical antiescravista de inspiração bíblica John Brown e 21 de seus seguidores, tentando dar início a uma insurreição armada contra o Sul, tomaram o arsenal e a cidade de Harpers Ferry, na Virgínia, mantendo

responsabilidade pelas ações do Estado, e deixar claro a todos os bons pagadores de

os moradores prisioneiros até serem capturados no mesmo dia por Robert E. Lee.

impostos que na verdade eles eram responsáveis pela escravidão e pela guerra

Brown foi rapidamente levado a julgamento e enforcado. Tal era o clima daqueles dias, que uma considerável minoria de ativistas contra a escravidão apoiou Brown.

contra o México. Sua visão ética não era a do organizador político apresentando projetos para uma sociedade diferente; era pessoal e existencial: "Não é dever de um homem (... ) dedicar-se à erradicação de (... ) mesmo o maior de todos os erros

Nenhum deles era mais apaixonado que Thoreau, que escreveu: "Eu não conheço

(... )é seu dever( ... ) lavar suas mãos e, se já não pensa acerca disso, não dar a ele o seu

nenhum homem particularmente bravo e valoroso, mas meu primeiro pensamento é em John Brown. (... )Eu o encontro a todo instante. Ele está mais vivo do que

apoio prático". E, no ensaio, tendo se queixado da guerra e da política escravista do Estado, ele finalmente declarou: "Não é por item em particular que eu me recuso a

nunca. Ele conquistou a imortalidade. (. .. ) Ele já não trabalha em segredo. Ele trabalha em público, e na luz forte que brilha sobre esta terra:' A Guerra Civil não

pagar os impostos. Eu simplesmente quero negar vassalagem ao Estado, me retirar e efetivamente permanecer longe dele:'

estava distante, e o gentil idealismo da era dos transcendentalistas estaria entre as inúmeras baixas daquele massacre épico.

Thoreau claramente não era o tipo de anarquista que nós vemos organizando as coisas para derrubar governos mundiais e substituí-los por coletivos autônomos funcionando por consenso democrático - ou qualquer coisa assim. Thoreau não idealizava a libertação da humanidade; ele sonhava com a liberdade para os poucos

O transcendentalismo encontra as gangues de Nova York

que a escolhessem conscientemente: "Eu me satisfaço imaginando um Estado (... )

Logo não haverá mais padres.( ... ) Uma raça superior irá tomar seu lugar.

que (... ) não considerasse incoerente com sua própria tranqüilidade se alguns vivessem longe dele, não lidando com ele, não sendo acolhidos por ele".

Uma nova ordem irá surgir (... ) e cada homem será seu próprio padre. Walt Whitman

Com o tempo, as distinções entre os rebeldes filosóficos transcendentalistas e os ativistas políticos abolicionistas/reformistas começaram a desaparecer. Mais uma vez como nos anos 1960, era o tempo certo para mudança, e essas forças começaram a ver que estavam se movendo na mesma direção. No início da década de 1840, até mesmo Horace Greeley, o editor liberal reformista do establishment

Walt Whitman, um americano, um dos duros, um cosmo. Walt Whitman

do New York Daily Tribune, preferia referir-se a si mesmo como um

Nos anos 1830, enquanto os transcendentalistas cultivavam seu amor a Deus, à natureza e ao outro, uma improvisada boêmia de trabalhadores deitou raízes em

transcendentalista - para desgosto de Emerson.

Nova York e outras grandes áreas urbanas. Essa incipiente revolta contra as feias

A aplicação da muito odiada mas pouco utilizada lei do escravo fugitivo em Boston, em 1854, com a devolução de um escravo para o Sul; atraiu uma massa

realidades da nova economia industrial foi classificada de "vagabundagem" pelos tablóides de Nova York, e os participantes chamavam a si mesmos de b'hoys e g'hals.

216

CONTRACULTURA ATRAVIÕS DOS TEMPOS

Eles eram jovens desordeiros alienados - punks em um sentido muito real

A CADA QUAL, SEU PRÚPRIO DEUS

217

e

como Alcott, Emerson e Fuller, e ele era desconhecido deles ao longo de seus anos

ignoravam a ética protestante de trabalho, em vez disso se dedicando a pequenos

mais importantes. Mas em 1855, meses após a sua publicação, Emerson pegou um

crimes, romances, a parecer legais e à fina arte de se exibir. David Reynolds, autor

exemplar de Folhas da relva, um dos muitos livros de poemas que eram constante-

de Walt Whitman's America, escreve:

mente empurrados para ele. Sua mente levou um golpe. Ele nunca poderia ter imaginado que a jovialidade

Os b'hoys nasceram da cultura popular urbana e a realimentaram. A

espiritual dos transcendentalistas pudesse se casar com uma aceitação tão amorosa

fonte do personagem( ... ) [eram] peças populares baseadas nos esquetes

da humanidade em todo o seu rude caos e desejo carnal. Ele escreveu a um amigo

urbanos de Life in London, do autor britânico Pierce Egan (... ) [baseadas

dizendo que ele era "extraordinário por sua grandeza oriental( ... ) um Buda ameri-

em] jovens de rua que passeavam pela cidade de um modo picaresco.( ... )

cano". Escreveu a Whitman, classificando o livro de "a mais extraordinária peça de

Os b'hoys e g'hals tinham sua própria vestimenta e seus próprios hábitos.

perspicácia e sabedoria da América': e recomendou o livro de Whitman a todos que

O b'hoy cortava o cabelo bem curto atrás, mantinha as longas madeixas

pôde.

untadas com sabão e cravava uma cartola na cabeça elegantemente. Ele

Embora Whitman tenha sido muito influenciado pelos ensaios de Emerson,

sempre tinha na boca uni. charuto ou tabaco de mascar. Vestia uma camisa

Folhas da relva era o tipo de inovação formal que Emerson tinha sugerido, mas

vermelha fechada de um lado com grandes botões, gravata de seda preta

nunca conseguido. Combinando poesia e prosa, ignorando todas as regras exis-

com nó descuidado sob um colarinho alto e calças que se sobressaíam

tentes, o livro de Whitman certamente introduziu no mundo o "verso livre". Ele

ligeiramente sobre botas de couro de salto alto. A g'hal usava roupas

também recheou seus poemas de linguagem popular e gírias urbanas. Um impor-

multicoloridas, levava um guarda-sol no ombro e caminhava com ginga

tante resenhista classificou Whitman de "uma combinação de trancendentalista da

e um sorriso afetado. (... ) Eles adoravam (... ) Shakespeare.

Nova Inglaterra com arruaceiro de Nova York': Em parte, Folhas da relva paga um tributo a uma cultura marginal fértil mas

Antes de se tomar o poeta mundiahnente famoso por suas generosas visões

subestimada que, segundo Reynold, era feita de "Oradores cuspidores de gírias que

americanas, Walt Whitman foi um jornalista e editor de jornais urbano mal-

lutavam com suas platéias.( ... ) Os menestréis de rosto negro que parodiavam a

humorado e reformista radical. O jornalismo de tablóide era a ordem do dia e

cultura educada em canções relaxadas, desarticuladas. Os humoristas nativos. (... )

Whitman o adorava, considerando-o o jornalismo do povo e o utilizando como

Os médiuns, amantes, hipnotizadores e poetas arrebatados que desfilavam suas estranhas maravilhas:'

plataforma para denunciar a classe governante de seu tempo. Whitman estava na periferia dos b'hoys como um jornalista que os romantizava em uma visão poética

Outra invenção de Whitman era uma que Emerson e alguns outros poucos

de indiferença. Em um ensaio de 1840, ele escreveu: "Enquanto ele sopra a fuma-

transcendentalistas não podiam suportar. Folhas da relva incluia passagens clara-

ça de um charuto particularmente ruim diretamente sobre suas narinas, ele irá

mente eróticas, incluindo bissexualidade implícita. Após reações chocadas de co-

discursar cultamente sobre as apresentações clássicas no Chatham Theater': Em

legas da Nova Inglaterra, que não podiam entender como Emerson podia defender

outro ensaio de 1840, os b'hoys evocaram em Whitman o que poderia ser uma

aquela "sujeira'', ele reconsiderou e teve de admitir que não se sentia confortável

versão urbana da ética desertora de Thoreau: "Eu tenho me divertido algumas vezes

com o aspecto obsceno da obra. O esprit de corps de Emerson para com Whitman

retratando uma nação de vagabundos.( ... ) Pense nisso! Todo um reino vagabundo!

diminuiu quando Whitman citou a nota de cumprimentos pessoal de Emerson da

Adão foi um vagabundo, bem como todos os filósofos:'

contracapa de uma reedição de Folhas da relva sem pedir permissão.

A experiência juvenil de Whitman em vigorosa rebelião urbana estava a anos-

As diferenças de estilo e disposição exemplificam o que fez de Whitman, em

luz de distância da elegante dissidência espiritual de habitantes da Nova Inglaterra

certo sentido, o indômito desertor do transcendentalismo. Ele levou a divergência

218

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

filosófica dos transcendentalistas muitos passos além do calvinismo. Whitman

CAPÍTULO DEZ

escreveu e viveu com uma joie de vivre que Emerson de certa forma só conseguiu expressar abstratamente. Sua liberdade da repressão puritana abriu espaço para

Brilhantes explosões de riso

uma enorme generosidade que permitiu a ele ver Deus nos párias, nas prostitutas e

A Paris boêmia, 1900-1940

na gentalha. A mesma tranqüilidade natural permitiu a ele desfrutar do sexo e da fama. Os transcendentalistas tinham confinado o desprendimento ao âmbito espiritual e filosófico. Whitman abraçou essa causa e o aplicou também ao âmbito sensual. Seu "Song of Myself" continua a ser um dos maiores gritos de livre autoafirmação da história. Ele serviu de modelo para o "Uivo" de Allen Ginsberg. Nesse sentido histórico, Whitman talvez seja isoladamente o mais importante antepassado literário da "contracultura'' como a conhecemos hoje.

(... ) Ninguém aqui para ouvir. Hoje à noite habilmente em meio a conversas e bebidas desenfreadas, penetrar na malha reluzente de sua mente. O que então? Um bufão na corte de seu mestre, tratado com indulgência e

Dissipação Whitman, como Ginsberg e Burroughs, se tornou uma celebridade consagrada, aceito por um grande público que ignorava sua mensagem, mas apreciava sua fama e seu sucesso. Um charuto popular recebeu seu nome, e o maior ganancioso americano, J. P. Morgan, foi seu mecenas. O movimento transcendentalista, em si, se dissipou com o terror da guerra civil e a morte de seus criadores. Mas graças a seus esforços, foi muito mais fácil para as gerações seguintes questionar o dogma religioso e a autoridade do Estado.

menosprezado, conquistando um elogio clemente do mestre. Por que eles haviam escolhido toda essa parte? Não exclusivamente por uma carícia suave. Para eles também a história era um conto como outro qualquer ouvido demais, sua nação uma casa de penhores.* James Joyce, misses Ela [Josephine Baker] fez sua entrada inteiramente nua, exceto por uma pena cor-de-rosa de flamingo entre as pernas; estava sendo carregada de cabeça para baixo e nos ombros de um gigante negro. (... ) Ela era uma inesquecível estátua de ébano. Gritos de saudação se espalharam pelo teatro. Janet Flanner Pai nosso que estás no céu, por favor, fique aí. Jacques Prévert

No começo do século XX, Paris já tinha se estabelecido como o lugar onde as crias artísticas mais radicais e inovadoras do trapo romântico europeu se reuniam. Ao longo do século anterior, Gustave Flaubert tinha ampliado o âmbito do romance, introduzindo múltiplos pontos de vista. Paul Cessna tinha feito pela pintura o * Ulisses,

James Joyce. Tradução de Bernardi na da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

220

BRILHANTES EXPLOSÕES DE RISO

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

221

que Flaubert fizera pela literatura, introduzindo no campo visual uma nova

Sherwood Anderson, Yves Tanguy, Alexander Calder, E. M. Forster, Edgard Vares e,

dimensionalidade e uma nova multiplicidade. Os impressionistas -liderados por

André Gide, George Gershwin, Hugo Ball, John Dos Passos, Erik Satie, Philippe

franceses como Monet e Renoir - completaram uma evolução da pintura para

Soupault, Luis Buiiuel, Tristan Tzara, Max Jacob, Malcolm Cowley, William Carlos

além da estrita reprodução, privilegiando a visão interna do artista. Paul Gauguin se

Williams, Salvador Dalí, Sylvia Beach e Adrienne Monnier, Emma Goldman, René

transformara em nativo no Taiti - suas pinturas de cores brilhantes introduziram

Magritte,André Masson, James Joyce, Henri Michaux, Simone de Beauvoir, Samuel

um tipo de exuberância que os ocidentais discretos e civilizados consideraram extra-

Beckett, Edmund Wilson, Mina Loy, Edna St. Vincent Millay, Sinclair Lewis, René

vagante demais. O eterno herói da contracultura Arthur Rimbaud tinha tentado

Crevel, Ernest Hemingway, King Vidor, Man Ray, Henri Matisse, Henry Miller,

destruir a própria realidade com uma poesia de versos livres agressivamente visioná-

Constantin Brancusi, Thomas Wolfe, Leon Trotski, Max Oppenheimer, George

ria, anarquicamente declamativa e densamente imagística, que explodiu com uma

Antheil, George Bataille, Giorgio De Chirico, Igor Stravinski, Thornton Wilder,

ânsia de iluminação e uma raiva da monótona existência cotidiana com toda a ener-

Sarah Bernhardt, Ezra Pound, Marc Chagall, Mareei Duchamp, Ford Madox Ford,

gia de uma bomba literária. Charles Baudelaire, entre outros, tinha experimentado

Sergei Diaghilev, Virgil Thomson, Christopher Isherwood, Aaron Copland, Henri

ópio e haxixe, permitindo que os efeitos chegassem à sua poética visionária.

Rousseau, Harry e Caresse Crosby, Gertrude Stein e Alice B. Toklas, Josephine

Além de estabelecerem a busca de novidade como um elemento importante nas artes, os artistas franceses do século XIX tinham criado um café-society boêmio

Baker, Vaslav Nijinski, Natalie Barney, Antonin Artaud, Louis Aragon, Paul Éluard, Djuna Barnes, Maurice Ravel, Paul Valéry, Lawrence Durrel e Max Ernst.

caracterizado por uma bonomia empobrecida e exibida, estímulo mental e distorção

Muitos de vocês provavelmente estão experimentando um grande frisson ape-

por intermédio de drogas e álcool, a livre busca de prazeres sexuais (freqüentemente

nas por lerem a lista de pessoas acima que - brevemente ou por muito tempo, de

nos facilmente acessíveis bordéis da época), e tendência ao inconformismo pes-

leve ou profundamente

se reuniram em Paris durante esse fértil período, fazen-

soal e político. Embora essas características sempre tenham estado presentes em

do contato com alguns dos elementos do mundo boêmio. Como escreveu Dan

muitos, se não na maioria dos temperamentos artísticos, a França do século XIX

Franck, autor da obra histórica Boêmios, "Paris (... ) se tornou a capital do mundo.

consolidou essa imagem na cultura popular do Ocidente, concedendo aos artistas

Nas calçadas, já não havia um punhado de artistas (...)mas centenas, milhares deles.

uma espécie de permissão especial para serem malcomportados e excêntricos que

Era um florescimento artístico de uma riqueza e qualidade incomparáveis. (... )

desde então funcionou tanto como uma liberdade quanto como uma armadilha.

Pintores, poetas, escultores e músicos de todos os países, todas as culturas, clássicos

Nas primeiras décadas do século XX, essa boêmia artística parisiense explodiu,

e modernos, se encontraram e se misturaram''.

se transformando em algo que era quase que um movimento de massas. Literal-

Essa convergência infernal foi estimulada por muitos elementos. No início do

mente centenas de artistas, escritores e personagens históricos mundiais cujas

século, um período de paz e harmonia entre as nações permitiu viagens e a emigra-

obras inovadoras (e, em alguns casos, personas provocantes) são marcantes ainda

ção com poucos problemas. A vida em Paris era barata, e a indústria de viagens (por

hoje passaram através dos portais daquilo que o historiador da literatura Donald

navio) tinha crescido, de modo a abrir espaço para passageiros de classe média, e

Fizer classificou de "O momento Paris". Por exemplo: Jean Arp, Isadora Duncan,

até mesmo os relativamente pobres. Os serviços postais internacionais tinham

Chaim Soutine,Anais Nin, Vladimir Lenin, Juan Gris, Francis Picabia, Jean Cocteau,

melhorado, permitindo que o viajante se comunicasse com sua casa em questão de

Joan Miró, Jean-Paul Sartre, Lawrence da Arábia, Claude Monet, W. H. Auden,

semanas. A indústria de jornais e revistas tinha crescido. A distribuição de jornais

Robert Desnos, Pablo Picasso, Georges Bracque, Archibald MacLeish, F. Scott e

diários e revistas mensais, com repórteres em todas as partes do chamado mundo

Zelda Fitzgerald, Jacques Villon, e. e. cummings, René Daumal, Rodolfo Valentino,

civilizado (e, em menor grau, no mundo colonizado), chegava a cada recanto das

André Breton, Amedeo Modigliani, Sergei Eisenstein, Aleister Crowley, T. S. Eliot,

nações desenvolvidas, espalhando fantasias românticas sobre um estilo de vida

Theodore Dreiser, Stéphane Mallarmé, Stephen Spender, Pierre-Auguste Renoir,

livre e elegante na margem esquerda de Paris para mentes receptivas em locais

222

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

distantes como o Japão, a Rússia e os grotões dos Estados Unidos. Na década de 1910, uma vacinação contra febre tifóide reduziu os riscos embutidos em viajar, e na década de 1920 o automóvel estava unindo ainda mais a Europa continental. Finalmente, a população tinha crescido, havia um pouco mais de pessoas no planeta, portanto, naturalmente, aquela parcela da população interessada em sensibilidade artística, novidade e escândalo utilizou os meios disponíveis para convergir para o lugar quente do momento: Paris, França.

BRILHANTES EXPLOSÕES DE RISO

223

mas nunca tinha sido quebrada em pedaços e reconstruída, uma chocante noção do século XX que ainda domina a estética contemporânea. Como freqüentemente acontece em períodos de invenção e inovação, enquanto Picasso criava sua nova linguagem visual, Henri Matisse e Georges Braque trabalhavam em linhas paralelas. Depois que seus primeiros trabalhos cubistas tinham fraturado o espaço visual da tela, Picasso e Braque decidiram estender seu ataque revolucionário. Escreve Dan Franck: As obras do cubismo analítico (principalmente as pinturas de Picasso e

Cubismo e vanguarda antes da "Grande Guerrà'

Braque entre 1910 e 1912) buscavam representar o tempo, bem corno o espaço. Combinando diversos ângulos de visão em urna pintura, o artista

Como se fosse para anunciar que o LSD iria fazer a sua entrada na metade do

de fato está apresentando vários momentos no tempo - o tempo neces-

século, a pintura do século XX começou com um jorro de cores brilhantes. Influenciados por Gauguin, os fovistas (incluindo um jovem Henri Matisse) começaram a

sário para mover o olho do espectador de um ângulo para o outro -

apresentar obras que utilizavam cores impressionantemente vivas na Paris de 1904. Eles foram imediatamente denunciados como "selvagens" pela maioria dos aficio-

reira convencional entre a representação do tempo e a representação do

nados em arte, mas a corrida pela novidade- já um incipiente princípio artístico na Paris do século XIX - atingira máxima velocidade. A inspiração ·para a grande ruptura do século teve um sabor decididamente "primitivista moderno". Em 1907, o pintor espanhol exilado Pablo Picasso tinha

corno um único movimento no espaço. O pintor cubista superou a barespaço - a convenção segundo a qual algumas artes são espaciais, outras temporais - e também revelou o artificialismo da noção convencional de tempo absoluto, apresentando dois momentos de tempo corno existindo simultaneamente na consciência daquele que percebe um objeto.

constante abala a homeostasia, a calma identidade produzida por saber o que esperar da vida. Seja como for, a superfície da pintura (e assim, sugestivamente, a cons-

O cubismo, claro, foi batizado por um crítico hostil. De fato, a reação inicial ao cubismo foi amplamente negativa. A maioria dos apreciadores do impressionismo e do fovismo, que supostamente teriam a mente aberta, tinham a mesma queixaas pinturas eram "feias': Os pintores, que naquele momento sobreviviam no limite da pobreza, tinham, para simplificar, dificuldade para vender suas obras. A viabilidade comercial ganhou alguma força quando Picasso concluiu um retrato cubista da escritora americana expatriada e importante anfitriã Gertrude Stein. Stein, reconhecidamente vaidosa, expôs a pintura com destaque em sua famosa casa na rue de Fleurus, que era ponto de encontro para artistas, escritores, marchands e colecionadores. Stein e os artistas conspiraram em uma série de hábeis manobras teatrais dirigidas a alguns colecionadores desprevenidos e acabaram conseguindo convencer alguns deles de que as pinturas eram a trend du jour. Os colecionadores, que saíram com Picassos originais por alguns tostões, iriam rir por último. As pinturas iriam se mostrar mais valiosas economicamente que qualquer um poderia imagi-

ciência humana) tinha sido borrada pelos impressionistas e distorcida pelos fovistas,

nar naquele início de século.

ficado fascinando com uma exposição de arte africana em Paris. Fazendo experiências com a sua própria interpretação do que tinha visto, ele chegou à noção de segmentação da face humana em grandes cubos interligados. A pintura resultante, Les Demoiselles d'Avignon, foi batizada em homenagem a um proshbulo. Desmontando o rosto, principal elemento da representação humana, Picasso tinha conseguido revelar a distorção de personalidade e psique que era a prostituição das ruas. A natureza disjuntiva da pintura também parecia dizer algo acerca da natureza fragmentária da vida urbana acelerada, e sugeria a afirmação de Freud de que a própria consciência humana estava segmentada em consciente e inconsciente: o ego, o id e o superego. A pintura também podia indicar um aspecto difícil da própria postura de busca da novidade adotada por Picasso. A busca de mudança

224

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

BRILHANTES EXPLOSOES DE RISO

225

As obras de Picasso, Braque e Matisse inspiraram vários outros artistas, e em

todas as semanas.) Eles eram convidados de honra das festas semanais de Stein, onde

1912 a galeria parisiense La Boetie organizou uma exposição cubista que incluiu

interagiam com o restante da comunidade artística de Paris, incluindo Matisse, rival

pinturas de Jacques Villon, Francis Picabia e do jovem Mareei Duchamp. Picasso e

amigável de Picasso. E eles experimentavam ópio e haxixe juntos, embora o ambi-

Braque não participaram da mostra, alegando que os seguidores cubistas não pas-

cioso Picasso logo tenha perdido o interesse por longos períodos de confusão do ego.

savam de imitadores. Mais tarde, o marchand dos pintores, Daniel-Henry

Em meados da década de 1910, um bar chamado Rotonde se tomou a passarela

Kahnweiler, iria proibir os dois de se apresentarem em galerias de Paris. Ele queria

para a boêmia de artistas plásticos franceses. Também era popular entre revolucio-

criar uma idéia de exclusividade que fizesse aumentar os já então altos preços

nários russos em visita ou exilados em Paris. Tanto Lenin quanto Trotski estavam

pedidos pelas pinturas, que, enquanto isso, estavam expostas em galerias na Ale-

em Paris nessa época, e testemunhas alegam que eles foram parar no Rotonde

manha e na Inglaterra. Assim, em função de interesses mercenários, as obras de

algumas vezes. Imaginando o cenário, Franck retrata de forma eficaz o espírito da

Picasso e de vários outros artistas de vanguarda foram isoladas da comunidade

época: "Ver Lenin, Trotski (... ) e um grupo de( ... ) bolcheviques no meio da sala de

contracultura! durante os dias de glória da farra boêmia de massa de Paris.

jantar enfumaçada do Rotonde, cercados pelos vapores de éter e cocaína, é exage-

A troca livre e generosa de informação é, claro, um tropo contracultura! básico,

rar na imaginação. Mas é agradável pensar que os russos podem ter encontrado

que geralmente os revolucionários políticos, os exploradores da consciência e do

Modigliani berrando seus slogans antimilitaristas, Soutine resmungando, nu sob o

espírito e os filósofos consideram sociável. Artistas e escritores, por outro lado,

seu casaco, e Derain (... )construindo pequenos aviões de papelão habilmente pla-

ganham a vida com a "informação': e se descobrem na situação irônica de ergue-

nejados para cair diretamente nas xícaras de café daqueles cavalheiros:'

rem fronteiras (na verdade, torniquetes) em tomo de obras que rompem fronteiras.

Além de Stein, o apaixonado Apollinaire era a cola que mantinha junta aquela

Pablo Picasso encarnava um personagem interessante, um que era comum entre os

comunidade. Italiano transplantado, ele tinha se adaptado à sua nova terra, a Fran-

artistas no século XX. Ele, por um lado, era influenciado tanto pelo anarquismo

ça, com um patriotismo que seus amigos franceses estavam preocupados em rejei-

quanto pelo comunismo. Mas tinha uma paixão muito maior por sua própria car-

tar. Ainda assim, ele era universalmente amado como um defensor intensamente

reira, sua fama e seu dinheiro. Isso criou alguma distância entre o pioneiro da

católico de todas as correntes de vanguarda da Paris do início do século XX, ao

vanguarda estética do século XX e seus primeiros colegas. Mas é duvidoso que isso

longo dos anos defendendo e explicando os cubistas e, mais tarde, o Teatro do

tenha lhe causado grande dor. Com o grau de fama que ele alcançou, novos amigos

Absurdo, os dadaístas e qualquer grupo ou indivíduo que tenha demonstrado ta-

e sicofantas (para não falar de amantes) eram encontrados facilmente.

lento e um desejo sincero de correr riscos e desafiar o conformismo.

Se as pinturas cubistas de Picasso eram inacessíveis fora das famosas soirées de

Picasso, Modigliani, o etéreo Chaim Soutine, Matisse, Apollinaire, Braque,

Stein, o homem em si não era exatamente um recluso. As vidas dos artistas da Paris

Duchamp - muítos dos vanguardistas de antes da guerra iriam conquistar dife-

boêmia antes da "Grande Guerra'' (Primeira Guerra Mundial) eram uma seqüência

rentes graus de fama e segurança financeira, mas uma guerra mundial, combinada

de bares, cafés e festas privadas que nem mesmo o sempre presente ciúme competiti-

com o seu próprio sucesso, iria interromper a coesão do mundo boêmio. Pouco

vo conseguia acabar. A brigada de Picasso incluía Max Jacob, poeta e pintor generoso

depois da guerra, Apollinaire morreu. Em A autobiografia de Alice B. Toklas,

e altamente emocional que normalmente estava fora de si por uma combinação de

Gertrude Stein escreveu: ''A morte de Guillaume Apollinaire naquele momento fez

álcool, ópio e éter, e o grande poeta experimentalista Guillaume Apolinaire.

uma grande diferença para todos os seus amigos, além da tristeza por sua morte.

Eles farreavam e bebiam juntos, freqüentando todos os bares da margem esquer-

Era aquele momento logo após a guerra, quando muitas coisas tinham mudado e as

da, muitos dos quais eram antros de anarquismo político. (Para ter uma noção do que

pessoas naturalmente se sentiam isoladas. Guillaume teria sido um elemento de

era Paris na década de 1910, é preciso notar que Le Merle Blanc, jornal semanal

união, ele sempre tivera a qualidade de manter as pessoas juntas, e agora que ele

cruelmente satírico com tendências anarquistas vendia oitocentos mil exemplares

tinha partido todo mundo deixou de ser amigo:'

226

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

BRILHANTES EXPLOSÕES DE RISO

Medidas extremas: dadá e a vanguarda do pós-guerra

227

mas agora nós queremos merda em muitas cores, decorar o jardim zoológico da arte com todas as bandeiras dos consulados do do bong hibo aho hibo aho':

O dadá nasceu de uma revolta que era partilhada por todos os adolescentes.

De todos os lugares, os dadaístas fizeram a sua estréia em Zurique, na Suíça, em um clube de arte de vanguarda chamado Cabaret Voltaire, perto do final da guerra.

Tristan Tzara

Os artistas se reuniram para ler poesia e falar nonsense, bater ritmos, gritar, uivar e se entregar a música e dança aleatórias, sem forma. Essa cacofonia, sentiam eles, era

A beleza precisa ser convulsiva, ou nada.

a única afirmação artística ainda possível em meio à guerra. Tzara escreveu: "O André Breton

novo artista protesta. Ele já não pinta:' Certo dia o organizador do Cabaret Voltaire, Hugo Ball, anunciou que estava lançando uma pequena revista chamada Dada.

O súbito colapso do equilibrio político europeu nos horrores da Primeira Guerra Mundial pegou o mundo boêmio francês desprevenido. Alguns se juntaram ao esfor-

Tristan Tzara ficou encantado com a palavra e começou a construir poemas nonsense em seu nome. O dadaísmo nascia.

ço de guerra, enquanto outros protestaram, segundo o espírito do anarquismo, do

Embora os dadaístas estivessem dispostos a jogar na privada toda a história da

pacifismo ou simplesmente da humanidade. A guerra foi uma chacina diferente de

arte, eles reconheciam uma grande inspiração do passado recente: Alfred Jarry.

qualquer outra que a humanidade vira até então. Mais de oito milhões de pessoas

Jarry ainda pode ser classificado como o mais excêntrico artista que o mundo já

foram mortas. Sem que houvesse claramente um agressor, a conflagração foi uma

conheceu. Ele ficou conhecido em Paris em 1896, quando uma peça escrita por ele

espécie de briga de bar em grande escala. As democracias da Europa e os Estados

começava com um ator gritando "Merdre!" (uma jarryesca mutação da palavra

Unidos tentaram vendê-la como uma guerra para salvar a civilização. Mas o senti-

merde, ou merda).A chocada platéia do final do século XIX se ergueu, horrorizada.

mento que se espalhou pela comunidade boêmia de Paris era exatamente o oposto.

Eles claramente não estavam preparados para o século XX.

Muitos escritores e artistas viam a guerra como uma prova de que a civilização tinha

Jarry era um moleque e piadista experimentado que estava sempre disparando

fracassado, e que a doce razão postulada pelo iluminismo servira apenas para amor-

sua adorada arma em público (embora não em pessoas); sua maior (e mais famosa)

daçar expressões do subconsciente (convenientemente descoberto por Freud meia

travessura foi sua montagem da peça Ubu Roi. A peça girava em torno de um

década antes), que finalmente tinham irrompido com uma fúria vulcânica. Discipli-

personagem inteiramente revoltante, glutão, que vomitava obscenidades, era natu-

nados psicóticos uniformizados marchando em longas ffias retas sob a ordem de

ralmente mortífero e que, ao mesmo tempo, apresentava toda a pompa e hipocrisia

matarem e serem mortos tinham produzido um caos muito mais medonho do que os

de um homem de poder político e econômico. Embora a apresentação de estréia em

desordeiros artistas de Paris poderiam sequer imaginar ou, certamente, desejar. Se a

1896 tenha provocado uma revolta, a peça foi bem recebida por muitos integrantes

lógica, a disciplina e o refinamento burguês tinham produzido aquela insanidade

da intelligentsia européia. Comentaristas compararam Jarry a Shakespeare e Rabelais.

sangrenta, então a única saída era a irracionalidade, a desobediência e a provocação.

A respeitada publicação literária Vers et Prose classificou a peça de "uma das obras-

Surge o dadá.

primas do gênio francês". Mas Ubu Roi não tinha sido escrita por Jarry. Era uma

O dadaísmo, um termo deliberadamente sem sentido, foi o brado de abertura de

brincadeira escrita coletivamente alguns anos antes, por um pequeno grupo de

um movimento de antiarte que pretendia sustentar uma guerra aberta contra o

estudantes de 16 anos de idade, entre eles Jarry. (Na verdade, ele deu apenas

formalismo cultural e a repressão. Em seu primeiro Manifesto Dadaísta, o poeta

uma pequena contribuição.) Eles estavam brincando com o seu professor de física

Tristan Tzara escreveu: "Dadá é nossa intensidade; ele ergue baionetas sem conse-

(que, quis o destino, acabou se transformando em um personagem político reacio-

qüência (... ) Dadá é arte sem chinelos ou paralelo (... ) em nossa sabedoria, sabemos

nário). A paródia escrita pelos estudantes de seu professor pomposo e autoritário

que nossas cabeças irão se transformar em almofadas macias( ... ) ainda é merda,

foi elogiada por intelectuais respeitados, que deram a Jarry o crédito pelo que

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

BRILHANTES EXPLOSÚES DE RISO

229

consideraram ser uma caricatura de personagens como Robespierre e Napoleão. A

Certos aspectos do dadaísmo sugerem uma espécie de versão européia do taoísmo

autoria atribuída a Jarry foi uma brincadeira intencional, não um mero ato de

radical. Os taoístas gentilmente provocavam a mente rígida, categorizadora, limitadora

exploração. O próprio Jarry criou ambigüidade quando questionado sobre isso, e

e lógica com brincadeiras, charadas e exercícios de meditação. Os dadaístas impa-

seus colegas ex-estudantes gostaram da piada o bastante para continuar com ela.

cientemente jogavam coquetéis molotov sobre as barricadas psíquicas dos europeus

O personagem Ubu Roi era puro id, e Jarry ficou obcecado com o potencial

anal-retentivos. As armas dos dadaístas nessa guerra contra o pensamento civilizado

libertário de seu comportamento anti-social. Diz Franck: "Ele marchava no palco de

eram poesia niilista, brincadeiras, eventos teatrais absurdos, xingamentos e, acima de

sua vida como uma cópia desse personagem. (... )Ele escandalizou os freqüentadores

tudo, invasões de acontecimentos artísticos parisienses considerados aborrecidos e

de salas de desenho elegantes com sua provocação, sua insolência, e( ... ) com um

pretensiosos demais. Picasso, por exemplo, foi denunciado como sendo "um velho

comportamento que agitava a bandeira do libertarismo e do anarquismo, rejeitando

soldado que morreu no campo de honrà'- ein outras palavras: antes radical, agora

as suntuosas cadeiras das academias oficiais:' André Breton, que logo se tornaria a

estéril. (Mais tarde ele se tornaria amigo dos surrealistas.)

principal força do surrealismo, :filho do dadá, disse: "Começando com Jarry, muito

Um acontecimento dadá típico é assim descrito por Franck:

mais que com Wilde, a distinção durante muito tempo considerada necessária entre arte e vida foi tornada imprecisa até ser finalmente eliminadà:

No dia 26 de maio de 1920, o Festival Dadá aconteceu na Salle Gaveau.

Como acontece com muitas brincadeiras, o ego do brincalhão talvez tenha

(... ) Todos os dadaístas teriam o seu cabelo raspado em público. O show

tomado o golpe mais duro. A longa incorporação por Jarry da persona de Ubu Roi

não aconteceria apenas no palco, graças aos senhores Aragon, Breton,

tinha ao mesmo tempo o caráter de libertação e de resignação. Ele freqüentemente

Éluard, Fraenkel, Soupault e Tzara, mas também na platéia, que, espera-

se queixava de que a brincadeira casual de uma confraria de secundaristas gaiatos

va-se, seria grande e brigona.

era, de longe, sua obra mais popular. Mesmo sua brilhante invenção de uma "ciên-

Tzara abriu a mostra apresentando "Le sex de Dada", um enorme falo

cià' imaginária chamada de patafísica, uma metodologia de investigar a realidade

de madeira pendurado por balões. Então, o "famoso ilusionistà' Philippe

utilizando paradoxos e anomalias como ponto de partida, nunca chegou a merecer

Soupault surgiu, maquiado de modo a se parecer com um negro, ves-

a aclamação dirigida a Ubu Roi (embora "patafísicà' tenha mais tarde sido citada na

tindo um penhoar e armado com um cutelo. Ele soltou cinco balões nos

composição de Paul McCartney para os Beatles, "Maxwell's Silver Hammer").

quais estavam escritas as identidades daqueles que estavam voando

Pouco depois da "Grande Guerrà: Tristan Tzara migrou para Paris, onde uniu

alto, balões que deveriam ser estourados, um papa (... ) um homem de

forças a um grupo de insurgentes poéticos que incluía Louis Aragon, Philippe

guerra (... ) um estadista (... ) uma mulher de letras (... ) e [o poeta estéril]

Soupault e o poderosamente carismático André Breton. Tzara tinha escrito que "o

Cocteau, o primeiro a morrer, perfurado pela lâmina do poeta surrealista.

dadá nasceu de uma necessidade de independência, de uma desconfiança da co-

(... ) Houve um pandemônio na platéia.

munidade': e Franck sustenta que o projeto dos dadaístas significava "Chega de grupos. Chega de teorias. Abaixo os cubistas e os futuristas: eles não eram nada além de 'laboratórios de idéias

Os dadaístas, claro, eram um grupo.

A não ser que alguém esteja buscando uma espécie de iluminação taoísta- ou tenha sucesso em derrubar tudo o que é considerado sólido na civilização ociden-

Sem problema. Tzara não tinha nada além de desprezo por qualquer um que

tal-, a antiarte, por sua própria natureza, só pode levá-lo a isso. Após algumas

buscasse explicações. O poeta dadaísta Francis Picabia escreveu: "O dadá em si não

provocações, o que realmente havia a ser feito? (Muitas décadas depois, Mareei

sente nada, é nada, nada, nada./ É como suas esperanças: nada./ como seus paraí-

Duchamp iria resolver esse quebra-cabeças abandonando a arte para se dedicar ao

sos: nada/ como seus deuses: nada./ como seus políticos: nada./ como seus heróis:

xadrez.) Em 1922, compreendendo essas limitações, o ambicioso Breton declarou

nada./ como seus artistas: nada:'

o dadá morto, e anunciou o advento do surrealismo. (Um choque de personalidades

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

BRILHANTES EXPLOSÕES DE RISO

231

com Tzara forneceu motivação extra.) O surrealismo (o termo tinha sido inventa-

ansioso forçando a barra, ou o movimento cultural se transforma em irrelevância

do por acaso por Apollinaire alguns anos antes para descrever uma apresentação teatral) era basicamente sobredadaísmo. O redirecionamento dado por Breton foi proclamar um objetivo - dar à arte uma razão para continuar a existir. Segundo o

histórica (o que também pode ser bom de um certo ponto de vista contracultural, mas então sobre o que eu estaria escrevendo?). Uma das mais famosas provocações surrealistas parece ter sido espontânea e

surrealismo, o trabalho do artista era dar expressão ao inconsciente inexpurgado, não-censurado.

localizada. Em julho de 1925, os surrealistas foram convidados a participar de um banquete formal patrocinado por Les Nouvelles Littéraires para todos os seus cola-

O pronunciamento de Breton teria grande influência. Centenas (talvez milhares) de respeitáveis artistas e poetas - de Man Ray e Salvador Dalí ao popular

boradores. Embora muitos surrealistas escrevessem para essa estabelecida publica-

grupo de humoristas ingleses Monty Python's Flying Circus, passando por García Lorca - iriam vender o seu peixe sob o signo do surrealismo durante o restante do século XX. O surrealismo iria acabar se transformando apenas em outro gênero do espetáculo da mídia no século XX, irreverente, mas muito pouco revolucionário. Mas na Paris da década de 1920 os surrealistas ainda estavam levando à frente os elementos da insurreição dadaísta. E dessa vez eles eram organizados, graças às desagradáveis tendências autoritárias de André Breton. (Salvador Dalí escreveria mais tarde que Breton era "tão rígido quanto a cruz de Santo André".) A imagina-

ção literária, Les Nouvelles Littéraires apresentava muitos dos mais importantes "homens de letras" da França. Os surrealistas estavam se comportando bem ao longo do jantar, até que se ouviu a conservadora Madame Rachilde dizer: - Uma francesa nunca deveria desposar um alemão. Horrorizado com essa xenofobia, Breton ergueu-se e disse à mulher: O que você disse é extremamente insultuoso para com nosso amigo Max Ernst. Como conta Franck, Uma maçã voou pelo ar, depois outra. Breton (... ) jogou um guardana-

ção de Breton tinha sido acesa pela vitoriosa revolução bolchevique de Lenin. Querendo brincar do seu próprio jeito absurdo, ele começou a patrocinar julga-

po no rosto de Rachilde, gritando:

mentos e eventuais "expurgos" de outros participantes do movimento surrealista. Inicialmente os julgamentos, que eram comandados por Breton, tinham uma ade-

A batalha continuou. A comida voava por todos os lados. A travessa de

quadamente brincalhona qualidade através do espelho': Eles eram absurdos e lúdicos, compreensíveis apenas como uma espécie de paródia da disciplina do

munição: vegetais frescos, a prataria, os copos, os pratos. (... )

Partido Comunista. Mas por baixo do delírio Breton levava aquilo a sério, e a prática de excomunhões pelo papa do surrealismo acabou se tornando dolorosa. Mas nós precisamos dar a esse líder alfa do delírio o crédito por ter as habilidades necessárias para estimular os surrealistas a dar continuidade ao programa de

- Puta da tropa! peixe com molho de creme era uma catapulta, e tudo servia como Philippe Soupault respirou fundo, se agarrou no candelabro, ficou pendurado se balançando e acertando qualquer um que passasse. Vmdo de uma sala contígua, Louis de Gonzague Frick, por sua vez, se lançou sobre os surrealistas. Uma multidão estava reunida na calçada. Max Ernst colocou as mãos em concha junto à boca e gritou:

perturbação dadá durante os anos 1920.Amaioria de seus compatriotas surrealistas, como Man Ray e Max Ernst, provavelmente ficaria contente de se encontrar, como freqüentemente faziam, para cheirar cocaína e fazer colagens de palavras e ima-

Michael Lieris respondeu:

gens. Mas quando Breton chamava seus agentes para a batalha, eles se apresentavam- por respeito, sem dúvida-, mas também por desejo de evitar um xilique

- Viva a China!, gritou alguém.

- Abaixo a Alemanha! - Abaixo a França! -

Viva os africanos!, gritou outro.

bretoniano, quando não uma excomunhão surreal. Talvez esse relacionamento sirva para ilustrar uma fundamental ironia contracultural- por mais anárquica e despreocupada que seja a filosofia, é preciso haver pelo menos um filho da puta

Segundo Franck, "foi um grande escândalo. No dia seguinte, toda a imprensa atacava os surrealistas, acusando-os de serem 'o terror do Boulevard Montparnasse'.

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BRll.HANTES EXPLOSÕES DE RISO

CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

A Sociedade de Homens de Letras e a Associação de Escritores Ex-Combatentes, em conjunto com o I.:Action Français, exigiram que os nomes daqueles homens

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Gogh: o suicida da sociedade, e fez uma transmíssão de rádio intitulada "Não tenho nada a ver com o julgamento de Deus': Ele morreu de câncer em 1948.

nunca mais fossem mencionados, de modo a afastá-los das vistas do público, pelo bem:' Nada desse tipo iria acontecer. Os escândalos surrealistas vendiam jornais. Por mais perturbador que pudesse parecer o delírio de poder de Breton, ele ainda era, de coração, suficientemente anarquista para chegar a concretizar seus sonhos de unificar o surrealismo com o Partido Comunista internacional. Quando

Joyce, Pound e Beach conspiram para fazer o rio da mente correr livre

um camarada do partido perguntou a ele quando os surrealistas estariam prontos

Na livraria de Sylvia Beach, Ulisses está estocado como dinamite em

para a verdadeira revolução, Breton contra-atacou dizendo que o Partido Comu-

uma célula revolucionária.

nista não tinha o monopólio da revolução e que sua transformação subjetiva era tão essencial quando a revolução política deles.

Cyril Connolly

Nenhuma discussão sobre o surrealismo estaria completa sem mencionar Antonin Artaud. Artaud caiu no círculo surrealista em seus primeiros anos. Poeta,

James Joyce tentou- parece-me, com impressionante sucesso- mos-

dramaturgo, ator e estudante de magia e ocultismo francês, Artaud se tornaria

sempre mutáveis, carrega, como se estivesse em um palimpsesto de

talvez o mais imperturbável apologista do ópio no século XX, e escreveu liricamente sobre sua experiência com peiote (ele afirmou que as horas que passava ligado com peiote eram os únicos momentos em que se sentia em casa no mundo).

plástico, não apenas o que está sob o foco da observação do homem das verdadeiras coisas acerca de si mesmo, mas também, em uma zona de

Breton o excomungou do surrealismo em meados de 1920 por suas "tendências

mas produzidas por associações no domínio do subconsciente. Ele mos-

místicas': Mas o período mais criativo de Artaud ainda estava por vir. Influenciado pelo teatro oriental, ele desenvolveu o "teatro da crueldadê: a primeira teoria artís-

tra como cada uma dessas impressões afeta a vida e o comportamento do personagem que ele está descrevendo.

tica a tentar explicitamente romper a barreira entre ator e platéia. Artaud escreveu

O que ele busca conseguir não é diferente do resultado de uma dupla

que seu teatro também iria "romper a linguagem de modo a tocar a vidà: Ele via no teatro a liberação de um potencial mágico tal que os próprios corpos dos participantes seriam transformados e sua natureza imortal desvelada.

ou, se isso é possível, múltipla exposição em uma película de cinema

trar como a tela de consciência, com suas impressões caleidoscópicas

penumbra, resíduos de impressões passadas, algumas recentes e algu-

que possa dar um claro primeiro plano com um fundo visível, mas um pouco borrado e fora de foco em diferentes graus. John M. Woolsey, Juiz Distrital dos Estados Unidos,

Segundo o ator Jean-Louis Barrault, '1\.rtaud transpirava desejos mágicos. Ele foi o metafísico do teatro': Insistindo no poder de transformação literalmente mágico da

6 de dezembro de 1933

arte, ele explorou profundamente a metafísica subjacente à sua obra. E, como no caso de Jarry, seu desprezo pelas convenções sociais era total. Na década de 1930, o trabalho de Artaud começou a apresentar uma obsessão com sua própria (sentida) perseguição, e ele passou dez anos (1937 -1946) em uma instituição mental francesa (na

A história, disse Stephen, é um pesadelo do qual eu estou tentando despertar. James Joyce, Ulisses

verdade não foi uma má escolha, já que ele ficou de fora da Segunda Guerra MunEm 1919, pouco depois da Primeira Guerra Mundial, Sylvia Beach, uma jovem

dial). Um programa de tratamento de 51 eletrochoques não podia modificar a visão deArtaud de que a sociedade era uma merda. Após sua libertação em 1946, ele escre-

e atraente americana de mente aberta que tinha ido para Paris estudar poesia expe-

veu seus ensaios mais furiosos, mas convincentes e transcendentes, incluindo Van

rimental, abriu na margem esquerda uma livraria chamada Shakespeare and

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

Company, inspirada e bancada por sua amante, Adrienne Monnier, cuja própria livraria parisiense, La Maison des Amis des Livres, abrigava regularmente leituras

BRILHANTES EXPLOSOES DE RISO

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primeiro grande candidato, T. S. Eliot, o grande escritor inglês recusou, por uma questão de orgulho. Pound estava sempre envolvido na criação de "pequenas revistas': a expressão

de poesia, recitais musicais e outros encontros literários. A livraria e biblioteca de empréstimos de Beach se tornou o mais importante centro literário de Paris pelas

utilizada na época para descrever periódicos alternativos de produção barata apre-

duas décadas seguintes, oferecendo praticamente todos os grandes nomes literários da época, incluindo Ezra Pound, Ernest Hemingway, T. S. Eliot, Thornton Wilder e, acima de tudo, o gênio irlandês James Joyce.

sentando escritores e artistas que se interessavam mais com a qualidade da obra que com a viabilidade comercial. De acordo com Fitch, "Ele planejava o formato de uma revista, a concebia em uma azáfama de reforma apaixonada e então a entrega-

Era uma época de transição para a boêmia artística de Paris. Apollinaire estava morto. Picasso tinha assumido a vida de classe média de um homem casado de suces-

va para que outros a publicassem, enquanto se voltava para outras causas". Essas "pequenas revistas" sem censura, de muitas formas fruto dos periódicos dos

so e só era visto ocasionalmente nos bares e cafés da margem esquerda. Os dadaístas tinham importado seu frenesi da Suíça, mas a maior parte da vanguarda francesa, que tinha permanecido sob o encanto do cubismo, ainda estava tentando firmar os pés no

transcendentalistas americanos de meados dos anos 1800, eram militantemente contraculturais. O autor inglês (Winifred) Bryher escreveu: "Se um manuscrito era vendido para um editor estabelecido, seu autor era visto como uma ovelha negrà'.

pós-guerra. A boêmia de Paris precisava de sangue novo. Ele chegou em 1920. Ezra Pound, um americano que tinha sido um vigoroso organizador de um ambiente

Virtualmente todos os escritores importantes do século XX tiveram seus primeiros trabalhos publicados em "pequenas revistas" e cada um, por sua vez, iria "se vender"

literário na Inglaterra, tinha convencido James Joyce a se juntar a ele em Paris. A notícia se espalhou, e um ano depois Emest Hemingway, Malcolm Cowley, Sherwood Anderson e Thomton Wilder se juntaram ao fluxo de expatriados.

e se transformar em uma ovelha negra aos olhos daquele mundo. Beach e Pound trabalharam alegremente para criar um poderoso mundo literá-

Poeta generoso que viveu para servir à vanguarda literária e seus escritores,

rio parisiense. Mas seria o ligeiramente reservado irlandês James Joyce que com sua celebridade iria dominar toda aquela época. Joyce era uma presença freqüente

Pound não perdeu tempo em reunir essa nova comunidade, patrocinando leituras, eventos e encontros informais, freqüentemente com a colaboração de Beach. Em Sylvia Beach and the Lost Generation, Noel Riley Fitch escr.eve: "Pound ajudou a

mas constrangida em encontros literários, normalmente permanecendo sentado sozinho ou conversando apenas por intermédio de monossílabos. Ele já era respei-

levar muitos jovens escritores para Paris. Embora( ... ) pobre ele mesmo, emprestou

quando jovem. O inovador presente de Joyce para a linguagem começou a intimi-

dinheiro a eles ou pediu a alguém que tivesse.( ... ) Hugh Kenner batizou sua história literária do período de (... ) The Pound Era. (... ) O homem (... ) influenciou uma geração de escritores. Ele descobriu talentos, incluindo, em certa medida,( ... ) Eliot

dar ou confundir (ou ambos) todos os outros escritores daquele mundo no momento em que fragmentos de sua nova obra, Ulisses, começaram a aparecer em

e Joyce, e atuou como seu agente não-remunerado. Criou novas revistas; leu e criticou poesia (ele revisou um terço de A terra devastada); persuadiu editores a publicarem Joyce, Eliot (... )e muitos outros; e enviou cartas e reuniu assinaturas de protesto contra a taxação de livros, censura literária. (... ) Entre aqueles que ele convenceu a ir para Paris estava o poeta norte-americano William Carlos Williams:' Em dado momento Pound elaborou um plano para, em suas palavras, "libertar o maior número possível de presos': tentando coletar donativos de modo que gran-

tado nos círculos literários cultos por seu romance de 1916 Retrato do artista

"pequenas revistas': E não foram apenas os escritores que foram tocados por esse trabalho. Aqueles que o publicavam geralmente se viam enfrentando acusações de obscenidade. Na verdade, quando os editores da prestigiosa Literary Review de Nova York se viram em uma corte por terem publicado um trecho, o juiz condenou a obra não apenas por ser obscena, mas por ser "ininteligível". O promotor distrital do caso, enquanto isso, estava mais perturbado com a "expressão excessivamente franca a respeito da

des escritores pudessem largar seus empregos diários e se concentrar em tempo

vestimenta feminina quando a mulher estava nas roupas descritas". Sem fonte de renda, com mulher e filho, o bardo obcecado trabalhou em Ulisses

integral em sua obra. Ironicamente, quando conseguiu levantar apoio para seu

durante vários anos, inicialmente apoiado por um patrono, Harriet Weaver, rica

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

editora literária que tinha publicado trechos de Retrato em um de seus periódicos. Felizmente, Weaver era próspera o bastante para suprir as necessidades de Joyce, que eram muitas. Ele sofria de uma grande variedade de problemas médicos, incluindo um doloroso caso de glaucoma, que o deixou praticamente cego de um olho. E ele e sua mulher, Nora, tinham gostos caros. Eles insistiam em se hospedar nos melhores hotéis, comer nos melhores restaurantes e beber bebidas caras (em grande quantidade). Quando o dinheiro acabava, cartas tristes e suplicantes eram enviadas para a senhora Weaver, que aumentava o seu investimento naquilo que alguns poucos conhecedores estavam convencidos de que seria a obra-prirnaliterária da época. Enquanto Joyce trabalhava para concluir Ulisses, Weaver buscava um plano para publicá-lo, mas descobriu que ninguém estava interessado em imprimi-lo. Escreve Fitch: "Tempestades de medo e censura desencorajavam qualquer tentativa [de publicar Ulisses]. Em julho, a Pelican Press tinha recusado uma sondagem de Harriet Weaver; em agosto, a senhorita Weaver abandonou sua última esperança de uma edição inglesa, porque os impressores, que estavam sujeitos a processo por obscenidade e certamente não tinham o mesmo compromisso com a arte de um editor, descartaram qualquer possibilidade de imprimir Ulisses." Após muitas idas e vindas, Sylvia Beach decidiu assumir ela mesma a tarefa de publicação, e conseguiu contratar uma gráfica francesa onde ninguém lia inglês. Agora editora de Ulisses, Beach também estava no carrossel de necessidades de Joyce, e começou a dar ao escritor "adiantamentos" sobre eventuais vendas do livro. Além de suas necessidades médicas e financeiras, Joyce também tinha dificuldade de encontrar datilógrafos para o manuscrito. Nove distintas damas de Paris em seqüência ficaram tão ofendidas com o conteúdo sexual que desistiram, e uma chegou mesmo a ameaçar se jogar da janela. Finalmente, um grupo de amigos, incluindo Sylvia, precisou contribuir com seu tempo para que o romance fosse datilografado. Logo ficou claro que Ulisses não seria uma perda financeira total para as generosas mulheres. As poucas cópias de fragmentos de Ulisses que vazaram para o mundo externo já tinham causado sensação na intelligentsia, e assim que Beach anunciou que a publicação do livro se aproximava, começàram a chegar à Shakespeare and Company pedidos de todo o mundo. Entre aqueles que pagaram antecipadamente pelo livro estavam Edith Sitwell, H. G. Wells, William Butler Yeats, Winston Churchill, Virgínia Woolf e Aldous Hu:xley. No dia 2 de fevereiro de 1922, no quadragésimo aniversário de Joyce, Ulisses foi publicado.

BRILHANTES EXPLOSÕES DE RISO

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Nunca antes tinha havido uma obra literária tão profunda e estranha. Joyce pegara suas influências particularmente a utilização em verso livre da linguagem comum e da gíria das ruas por Walt Whitman e a inventividade alegre de Lewis Carroll com novas palavras e múltiplos significados - e as encaixara em cenários que envolviam as mais vulgares facetas da existência humana. Era invariavelmente densa, embrulhada com duplos e triplos sentidos, e era apenas a história de um único dia. Ou nas palavras de Joyce, "um épico de duas raças {israelitairlandesa) e ao mesmo tempo o ciclo do corpo humano, bem como uma pequena história de um dià: De fato, a partir do momento em que Joyce introduz brevemente seu alter-ego, o poeta Stephen Dedalus, a história realmente dá a partida com o monólogo interior de Molly Bloom dando uma cagada - e termina cerca de seiscentas páginas mais tarde com Molly Bloom fantasiando sobre uma trepada. o mundo tinha visto alguns poemas e manifestos niilistas dadaístas/surrealistas, e até mesmo o desconcertante Uma temporada no inferno, de Rimbaud, mas nunca tinha sido presenteado com todo um romance épico de um mestre da linguagem cheio de visões como "Bags of corpsegas sopping in foul brine.A quiver of minnows, fat a spongy titbit, flash through the slits of his buttoned trouserfly. God becomes man becomes fish becomes barnacle becomes featherbed mountain. Dead breaths I living breath, tread dead dust, devour a urinous offal from ali dead. Hauled stark over the gunwhale he breathes upward the stench of his green grave, his leprous nosehole snoring to the sun:' A maioria dos críticos não estava feliz. Mas não importa. Assim que Ulisses foi publicado, Joyce demonstrou ser incansável na autopromoção. Ele estava todos os dias na Shakespeare and Company, fazendo Sylvia e suas assistentes mandarem cada vez mais exemplares para divulgação, pedirem a escritores amigos que plantassem resenhas e recomendações por toda a mídia ocidental. E ele foi um dos primeiros artistas inovadores do século XX a se dar conta daquilo que hoje é um clichê - que o escândalo é bom para a sua carreira. Resenhas negativas quanto mais chocadas e perturbadas, melhor - o satisfaziam quase tanto quanto as empolgadas. Um resenhista o chamou de "Rabelais após um colapso nervoso': e outro o classificou de "Zola que gorou': Para um terceiro ele era um dos "discípulos do diabo': Até mesmo Virgina Woolf torceu o nariz, dizendo que Joyce era "um estudante nojento espremendo as suas espinhas". Ele, Sylvia e Waver gostaram particularmente de uma manchete de primeira página do principal tablóide

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

londrino que dizia: "O ESCÂNDALO DO ULISSES DE JAMES JOYCE': O artigo classificava Joyce de "lunático pervertido': Beach o colou na parede atrás de sua mesa de trabalho. Por mais divertidos que fossem esses surtos de escândalo puritano, a censura representava um problema comercial para Joyce e Beach. Particularmente nos Estados Unidos, depois que o primeiro carregamento foi apreendido pelas autori-

BRILHANTES EXPLOSÕES DE RISO

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Apesar de seus detratores, no final da década de 1920 Joyce podia levar a literatura para onde quisesse. Apenas pela força de Ulisses, ele era amplamente considerado o grande homem de letras, e tinha sua própria corte de seguidores e sicofantas. Um deles, um jovem chamado Samuel Beckett, também iria se transformar em um escritor de originalidade quase sem paralelo.

dades portuárias de Nova York, Ulisses se transformou em uma espécie de livro

No início dos anos 1930, quando Joyce estava concluindo Finnegan's Wake, o excesso de bebida, os problemas de Joyce com a filha esquizofrênica, Lucia, e sem

marginal e seu editor se converteu em um guerrilheiro do marketing. Beach enviava o livro envolto em outras capas (freqüentemente Shakespeare) e sugeria que

dúvida o stress de ser famoso sem ser rico estavam cobrando o seu preço. Sua personalidade, sempre carente, se tornou beligerante, e ele começou a perder ami-

seus clientes fizessem o mesmo quando viajassem com seus exemplares. Ela chegou mesmo a contratar um personagem do submundo norte-americano em Chica-

gos e defensores. Também naquela época o próprio clima para cima do mundo parisiense já tinha dado lugar ao que- nos anos 1970 era chamado de "bad

go para contrabandear livros para os Estados Unidos, um esquema arriscado que se mostrou bastante eficaz. Enquanto isso, Joyce tinha começado a escrever um romance ainda mais anticonvencional e perturbador, que ele acabaria batizando de Finnegan's Wake. Ele disse a seus amigos que iria "colocar a linguagem para dormir". O romance seria a mais radical subversão da língua inglesa colocada no papel por qualquer grande autor nas história, com a possível exceção de William S. Burroughs. Como escreve Fitch, ele "inventou(... ) o discurso multilingüístico':

trip': Em grande parte como em Haight-Ashbury naquela época (e aparentemente para sempre), multidões de vivandeiras menos-que-talentosas e mal-educadas enchiam as ruas. A grande decadência alimentada pelo ópio, associada a um clima festivo em torno de escritores de vanguarda americanos expatriados e dos editores Harry e Car esse Crosby (a dupla Keith Richards/ Anita Pallenberg da época) tinha mostrado sua influência dois anos antes. Gertrude Stein transmitiu bem a sensação do momento com a frase poética '1\ntes das flores da amizade murcharem murchou a amizade':

À medida que excertos de Finnegan- sob a designação Sem título- começaram a aparecer nas pequenas revistas, até mesmo a maioria dos defensores

Finalmente, mesmo a aliança Joyce/Beach se desgastou quando ficou claro para Joyce que os grandes editores na Inglaterra e nos Estados Unidos que queriam

vanguardistas de Joyce se distanciaram. Sua patronesse, a senhora Weaver, manteve seu apoio financeiro, mas agastada, porque não conseguia entender ou gostar da

publicar Ulisses não pretendiam oferecer compensações financeiras para seu autor e seu editor original. O bardo irlandês pressionou Beach a abrir mão de seus

obra. Seu velho colega Pound, que já tinha se mudado para sua própria forma de insanidade política na Itália, o classificou de uma "diarréia de consciêncià'.

direitos de edição de modo que ele pudesse fazer um acordo. Sua ansiedade de ter uma empresa poderosa por trás de Ulisses era compreensível. Não apenas o livro

Com suas palavras recombinantes e impenetráveis multiplicidades de sentidos que praticamente tentavam alinhavar conexões entre tudo no universo a cada frase,

continuava banido nos Estados Unidos, como também estava sendo pirateado por um editor menor de Nova York. Apenas uma grande editora teria recursos para

Finnegan's Wake se parece - sejamos honestos

com um surto do mais brilhante esquizofrênico que o mundo já tinha visto. E ainda assim funciona, não como uma

sustentar as batalhas legais necessárias para tirar Ulisses do submundo de modo que ele tivesse uma distribuição que atendesse à demanda existente. Beach ficou

'boa leiturà: mas como um brilhante e longo "poema sonoro" para ser ouvido em voz alta, e um texto virtualmente "talmúdico" para ser estudado e desconstruído com o

profundamente magoada com o que considerou falta de lealdade de Joyce. Joyce, por sua vez, supôs que Beach tinha conseguido um bom lucro com as onze edições

tempo. O próprio Joyce comentou manhosamente, "Eu coloquei tantos enigmas e quebra-cabeças que irei manter os professores ocupados durante séculos discutindo

que já tinha publicado. Ela nunca disse que tinha pagado a ele mais do que a soma dos lucros do livro ao longo dos anos. Beach e Joyce continuaram superficialmente

o que eu queria dizer, e essa é a única forma de garantir a sua imortalidade':

cordiais um com o outro, mas a dura realidade do mundo literário oficial tinha

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

BRILHANTES EXPLOSÕES DE RISO

prejudicado permanentemente a sua amizade. Nas palavras imortais do Cérebro, "o dinheiro modifica tudo': Em 1933, a gigantesca editora americana Random House entrou com uma

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imperador romano': Ela se juntou com uma companheira viajante da Califórnia chamada Alice B. Toklas, e as duas começaram a transformar seu apartamento em

causa na Corte Distrital dos Estados Unidos em Nova York e finalmente recebeu permissão para importar e distribuir Ulisses nos Estados Unidos. Em sua decisão, o

um salão lendário e quase perpétuo para os luminati artísticos e literários de Paris. Pablo Picasso e suas sucessivas mulheres, Matisse, Braque, Apollinaire e Juan Gris estavam entre os artistas que freqüentemente desfrutavam da comida, da bebida e

juiz John M. Woolsey escreveu: ''A respeito do recorrente surgimento do tema do

da conversa. Stein expunha as pinturas de seus amigos com destaque, e à medida

sexo nas mentes de seus personagens, é preciso lembrar que seu cenário era celta,

que as notícias da festa perpétua começaram a chegar ao demimonde, elas passaram a receber marchands e colecionadores, ricos homens e mulheres da sociedade,

e sua estação, primaverà:

e mesmo um acidental diplomata ou líder político. Era um cenário festivo valioso, assim como agradável, para a elite boêmia de Paris.

Inocentes no exterior: a geração perdida

Apesar da atmosfera festiva, Stein encontrava tempo para fazer experiências literárias. Movida pelo desejo de transformar a linguagem em algo novo, ela traba-

Então a vida em Paris começou, e como todos os caminhos levam a

lhou em um romance chamado The Making ofAmericans, no qual utilizava ritmo,

Paris, todos nós estamos aqui agora e eu posso começar a contar o que

repetição e justaposições incomuns para criar um estilo literário fragmentado que espelhava aquilo que seus amigos cubistas estavam fazendo com tinta.

aconteceu quando eu fazia parte dela. Gertrude Stein, Autobiografia de Alice B. Toklas A época exigia que nós cantássemos/ e cortou nossa língua./ A época

exigia que nós fluíssemos/ e nos prendeu no tonel./ A época exigia que dançássemos/ e nos colocou em calças de ferro/ e no final a época recebeu/ o tipo de merda que pediu.

Embora tanto Stein quanto Toklas tenham transformado a França em seu lar, elas nunca perderam o afeto pelos Estados Unidos. Felizmente, após a guerra, os Estados Unidos foram a elas. Seguindo Beach e Pound estavam Ernest Hemingway, Sherwood Anderson, E Scott Fitzgerald, John Dos Passos, Djuna Barnes, Malcolm Cowley, William Carlos Williams, Hart Crane, Katherine Anne Porter, Thornton Wilder, e. e. cumrnings, Christopher Isherwood e Nathanael West.Alguns perma-

Ernest Hemingway

neceram muito tempo, enquanto outros entravam e saíam. Todos estavam, no final das contas, buscando um alívio da lei seca norte-americana. A maioria

Esse é o alimento do paraíso. (... ) Euforia e brilhantes explosões de riso;

estava procurando experimentar uma liberdade sexual que era negada a eles na terra dos puritanos. E muitos também estavam fugindo de uma ética

sonhos extáticos e a extensão da personalidade de alguém em vários planos simultâneos devem ser esperados com complacência. Receita de "Doce de haxixe': de O livro de cozinha de Alice B. Toklas. A invasão de Paris por expatriados americanos nos anos 1920 foi antecipada por três grandes influências que estabeleceram uma cabeça-de-ponte, transformando-se em personagens centrais da comunidade boêmia. Duas delas, claro, eram Sylvia Beach e Ezra Pound. Mas uma década e meia antes que eles se colocassem sob os holofotes culturais, chegou à França Gertrude Stein, escritora da Califórnia de enorme cintura que era freqüentemente descrita como tendo o "rosto de um

antiintelectual avara simbolizada pela eleição de Calvin Coolidge, o Ronald Reagan do início dos anos 1900. Como os cubistas nativos antes deles, os americanos comiam, bebiam, flertavam, fodiam e falavam de ffiosofia dia e noite nos cafés e bares. Esse estilo de vida hedonista podia ser natural para os europeus, mas de alguma forma assumia um ar de desconsolo quando praticado pelos homens e mulheres da jovem democracia do outro lado do Atlântico. Stein classificou seus novos amigos americanos de ''A Geração Perdidà: e Hemingway iria mais tarde caracterizar o mundo dos americanos expatriados como uma "alegria desesperadà:

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BRILHANTES EXPLOSÕES DE RISO

CONTRACULTURA ATRAvts DOS TEMPOS

Sem dúvida a voz mais amarga do descontentamento vivido pelos jovens ame-

autodestruição e destruição dos outros. Eles, contudo, (... ) viam a si

ricanos sérios foi a do crítico social da Geração Perdida Harold Stearns. Stearns

mesmos como distintos, como diferentes, como mais capazes (... ) de

escreveu sobre os Estados Unidos como um país culturalmente sufocado por uma "mania de regulamentação de banalidades': e apresentando "menos liberdade e

usufruir a força cultural do momento em Paris do que de sucumbir à sua capacidade de corromper ainda mais um espírito e uma vontade já

direito de reunião, menos tolerância, maior controle governamental sobre a opi-

viciados ou destruídos.

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nião política e econômica, menos liberdade para professores do ensino médio e superior e mais reação e militarismo do que no dia em que declaramos guerra à

Assim, embora a maioria das obras dos expatriados contenha alguns elementos

Alemanhà: Em um ensaio de 1920 intitulado "What Cana Young ManDo?': Stearns

de um tipo embrutecido de otimismo pessoal, elas são povoadas por espécimes

deu um único conselho aos jovens americanos em busca de liberdade: "Saiam!':

humanos tristes, enganados e venais e antecipam a chegada do mortiço

O poeta expatriado Glenway Wescott descreveu a atração em termos mais favo-

existencialismo francês dos anos 1950. Os romances mais famosos que espelham a

ráveis, dizendo: "Eu tinha ouvido dizer que os franceses eram tolerantes, e que os

experiência dos expatriados americanos, O sol também se levanta, de Ernest

parisienses, especialmente, tinham a mente aberta, eram curiosos e questionadores

Hemingway, e Suave é a noite, de F. Scott Fitzgerald, são obras em que o escritor

em relação a artistas estrangeiros que traziam consigo diferentes estilos de vida.

utiliza a energia da boêmia parisiense em uma viagem de descoberta pessoal na

Aprendi que um escritor em Paris podia fazer o que quisesse, não importando

qual ele enfrenta as complexidades algumas vezes feias das emoções e dos relacio-

quem fosse ou de onde viesse, não importando quão escandaloso pudesse ser o seu

namentos humanos, incluídos os seus próprios, para sair dela como um americano

comportamento:' Esse caso de americano expatriado não era uma história arquetípica de um

mais-triste-porém-mais-sábio- mais sofisticado.

exilado-contraculturalista-em-busca-da-utopia. De fato os americanos buscavam uma certa liberdade cultural na Europa, mas as viagens empreendidas por

Dissipação e conseqüências

Hemingway, Fitzgerald, Stein, Dos Passos e, mais tarde, Henry Miller, não eram na direção de divindade numinosa ou absoluta fraternidade. Na verdade, exatamente

Superlotada de mentirosos e parasitas, consumida pela bebida e pelos excessos

para apren-

do mundo festivo de Harry e Caresse Crosby (que terminou com o suicídio de

der os fatos sujos e algumas vezes amargos da vida e, seguindo um princípio tipica-

Harry Crosby), a época da Geração Perdida estava terminando no início dos anos

mente americano, superá-los. Donald Pizer, autor de American Expatriate Writing

1930. Mas isso não impediria que uma dupla de recém-chegados tentasse levantar

and the Paris Moment escreveu sobre

o nível mais uma vez. Henry Miller e Anais Nin eram dois lascivos escritores

o oposto: eles iam para a sofisticada Paris para perder a virgindade

americanos que formavam uma fogosa parceria

algumas vezes amigos, algumas

o romance expatriado de fundo autobiográfico no qual um indivíduo

vezes

potencialmente criativo é frustrado e derrotado, e as memórias na qual

livre sexualidade, bebida, drogas e espontaneidade e, diferentemente de alguns dos

há um rico florescimento do artista em solo estrangeiro. Por que a

primeiros americanos, eles consideraram isso inequivocamente bom. Nin iria pu-

experiência do exílio se voltou para essa dicotomia temática? E por que

blicar seu famoso diário de suas aventuras em Paris, revelando mais sobre a sexua-

essa dicotomia encontrou saída nessas duas formas distintas? [Eles]

lidade feminina liberada do que já tinha sido colocado em letra de fôrma. E Miller,

viam ao redor deles nos cafés e nas ruas de Paris, entre seus compa-

que tinha casado uma vigorosa e franca voz trabalhadora operária com o tipo de

nheiros, incontáveis exemplos de inadequação e fraqueza, variando do

estilo do fluxo-de-consciência terreno de Whitman e Joyce, escreveu seu famoso

diletantismo boêmio à subversão da possibilidade de liberdade em

Trópico de Câncer. Descrito por Fizer como um retrato do "escritor como artista

na Paris da década de 1930. Eles provaram os "pecados" de Paris:

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

rebelde( ... ) em meio a uma Paris mítica radicalmente recriadâ: o romance autobiográfico de Miller provocou nos censores a mesma reação que Ulisses cerca de

BRLLHANTES EXPLOSÕES DE RISO

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expressão pelos cubistas já não é radical. Ela é onipresente na música pop

uma década antes. Teria sua entrada nos Estados Unidos proibida até meados da

particularmente hip-hop e eletrônica-, em filmes, vídeos musicais e propaganda televisiva. As paisagens imaginárias livres do surrealismo também não podem fal-

década de 1950. Apesar dos grandes esforços de Miller e Nin, Paris tinha chegado ao fim como

tar exatamente nos mesmos meios de comunicação populares. Os escândalos dadaístas - ainda utilizados tanto na política quanto na arte, e algumas vezes

centro boêmio vital. Os melhores pintores estavam mais velhos e confortavelmente estabelecidos. Picasso era rico havia muito tempo. Vendendo os suvenires de sua

financiados por fabricantes de vodka, também são praticados por empresas como Benetton e Abercrombie & Fitch. Claro que hoje apenas Bill O'Reilly e seu pouco

revolução contra a estase por uma boa quantia, rebeldes surrealistas como Breton,

mais de um milhão de espectadores ficam escandalizados. Na literatura, múltiplos pontos de vista são a norma, e as experiências de linguagem de Joyce, Stein e outros

Man Ray, Klee e Duchamp tinham retornado à segurança dos museus. Os melhores escritores - Hemingway, Dos Passos, Anderson também famosos e bem-sucedidos, já estavam vendendo as memórias de seus antigos dias de boêmia parisiense para grandes revistas americanas como Vanity Fair, The Atlantic Monthly e Esquire. Gertrude Stein, Philippe Soupault e alguns outros entraram para o circuito internacional de palestras- sempre um sinal de que uma época está terminando. Enquanto isso, Ezra Pound, que se mudara para a Itália em meados da década de 1920, se tornara

são considerados elementos comuns a serem usados ou descartados, dependendo de o artista querer ou não que seu livro seja compreendido por Oprah Winfrey. E, claro, alguns artistas e escritores ainda bebem demais, usam drogas, têm uma vida sexual libertina, vestem boinas e adoram camembert. Isso demonstra falta de originalidade ou simplesmente expressa preferências naturais que, uma vez identificadas e atingidas, nunca devem ser eliminadas? A escolha é sua.

obcecadamente irritado com a prática da usura pelo sistema bancário internacional. Os populistas de direita italianos, os fascistas, liderados pelo ex-anarquista Benito Mussolini, fingiam partilhar esse sentimento antiestablishment, de modo que Pound se tornou parte do movimento, chegando mesmo a assumir a mistificação anti-semita sobre os judeus controlarem os bancos. Difamação e dissensão freqüentemente caracterizam o fim de uma era. Gertrude Stein, em sua popular Autobiografia de Alice B. Toklas, publicada em 1933, afirmou ser a maior escritora da época e retratou seus antigos amigos como crianças petulantes e egoístas desencaminhados. Isso provocou uma carta pública de denúncia, publicada na primeira página do diário parisiente The Post. Era assinada por Tristan Tzara, Georges Braque e Henri Matisse, entre outros. Até mesmo Paris é uma festa, de Hemingway, publicado em 1964, foi violentamente atacado por outros sobreviventes da vida artística de Paris em função dos retratos negativos de seus colegas boêmios, embora as descrições pareçam leves pelos padrões de hoje. Colocando de lado toda a fofoca e as queixas posteriores, as contraculturas

devem ser transitórias, senão se consolidarão como novos conformismos. Mas tanto os estilos quanto as realizações da vanguarda parisiense podem ser vistos mas, felizmente, não seguidos cegamente - em cenários artísticos por todo o mundo atual. A fragmentação da forma utilizada primeiramente como modo de

i'

PARTE III

Após Hiroshima, ''X' contracultura

CAPÍTULO ONZE

Rebeldes sem causa Os anos 1950

Após Hiroshima, a contracultura Eu me tornei a morte, o destruidor de mundos.

J. Robert Oppenheimer, 1947 Os defensores do senador Joseph McCarthy temiam o Partido Comunista. (... ) Enclaves liberais e de esquerda temiam o macarthismo. Os conservadores temiam a dissolução social, a imoralidade, o rock and roll e até mesmo a fluoretação. Todd Gitlin, The Sixties: Years of Hope, Days of Rage O rock'n'roll [é] insistente selvageria (... ) deliberadamente competindo com os ideais artísticos da selva. Livro do Ano da Enciclopédia Britânica, 1956

No dia 6 de agosto de 1945, os Estados Unidos da América jogaram uma bomba atômica sobre a cidade japonesa de Hiroshima. A história foi dividida em dois. Antes mesmo que tivéssemos a oportunidade de contar os mortos do assassinato cuidadosamente executado e burocrático de seis milhões de judeus, ciganos, homossexuais e dissidentes por Hitler, o holocausto foi tecnologicamente superado no teatro da consciência humana pela impressão de que um holocausto global impessoal e instantâneo poderia estar logo depois da esquina. A vida sob a ameaça de um apocalipse instantâneo tem sido tão freqüentemente descrita, remoída e cantada que, mesmo agora, quando a bomba é repassada para

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REBELDES SEM CAUSA

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CONTRACULTURA ATRAVÉS DOS TEMPOS

nações instáveis, administrações caóticas e talvez até gangues sem filiação, um novo ensaio corre o risco de soar banal. E mesmo os nossos observadores mais sofisticados soam como o escritor de ficção científica ciberpunk Bruce Sterling, que prontamente previu em entrevista ao Well.com em 2003 que mesmo uma conflagração nuclear em grande escala provavelmente ainda deixaria de pé aproximadamente um bilhão de seres humanos: Sabe, essas coisas não acabam com o mundo. Uma guerra nuclear em grande escala entre duas superpotências fortemente armadas talvez possa matar todo mundo, mas essa já não é uma grande probabilidade, e mesmo em retrospecto eu acho que essa possibilidade foi superestimada. O que você terá será um holocausto de proporções inimagináveis. Na manhã seguinte alguém ainda acorda e precisa conseguir o café da manhã. E finalmente algum historiador irá escrever alguma coisa como: "Bem, havia nove bilhões de nós, e agora há cerca de 750 milhões de nós. E 'nós' já não é 'eles', porque o mundo deles desapareceu, e agora precisamos dar o melhor para nos tornarmos nós:' Os relógios continuam a tiquetaquear e as folhas continuam a cair do calendário. Nascem crianças que não têm qualquer ligação emocional com o antigo modo de vida. É algo um tanto reconfortador para nós pensar que "o mundo acabá' quando tudo o que conhecemos e amamos é reduzido a cinzas, mas, sabe, o mundo simplesmente não acaba. Deixando de lado análises gastas do século XXI, no dia seguinte "à bomba" o discurso intelectual e a mitologia popular se concentraram na aniquilação em massa. O niilismo era inevitável. E a novidade atômica também tinha um subtexto - uma mensagem que talvez fosse mais sentida no nível do corpo e do sistema nervoso que naquele do intelecto: velocidade. E velocidade produz aniquilação. Americanos empolgados estavam celebrando o fim instantâneo da guerra mundial. E a bomba nuclear que tinha feito a guerra desaparecer quase que do dia para a noite não dizia respeito apenas a uma evolução fantástica da física, dizia respeito ao vôo. Não apenas tínhamos uma arma de incomensurável terror; ela

podia ser levada para qualquer lugar em questão de horas!

E mais uma vez: quem tinha essa bomba? A América! Terra da democracia, da liberdade (mais ou menos) e do apartheid racial. Ainda mais: a terra do capitalismo empresarial e do otimismo tecnológico: inventor do telefone, do avião e da televisão. De fato, mesmo sem o poder nuclear sobre a vida e a morte (aproximadamente) globais, aqueles americanos eram uma impressionante raça de mágicos: eles tinham tornado possível projetar vozes e imagens ao redor de todo o planeta e se mover ao redor do mundo a muitas centenas de quilômetros por hora. E eles estavam até vendendo esses superpoderes para o resto do mundo por uma pequena quantia. Seja ela mortal ou engraçada, essa fusão de tempo e distância era nada menos que um dado persistentemente excitante, interpretado como a expansão das possibilidades humanas - ou, na frase do filósofo dos meios de comunicação dos anos 1960 Marshall McLuhan, as extensões do homem. É na América, nesse peculiar nexo de niilismo e jovialidade, otimismo

tecnológico e poder militar excessivo, um lugar onde expectativas e desejos que tinham sido cultivados ao longo de muitas vidas estavam começando a ficar disponíveis em questão de momentos, a terra do jazz e da algazarra, que começa a história da contracultura na segunda metade do século XX.

Uivando para despertar os anos 1950 Embora a explosão que anunciou um novo quadro mundial tenha sido atômica, um som muito mais baixo explodiu a aparente coesão cultural/psicológica/política da cultura branca conformista dominante dos Estados Unidos dos anos 1950. Era 1955, e uma multidão de jovens poetas alienados e amantes da poesia tinha superlotado a Six Gallery, em São Francisco. Jarras de vinho tinto providenciadas pelo romancista Jack Kerouac circulavam. Um pequeno e neurótico homossexual judeu caminhou para a frente da sala e, tão dramaticamente quanto podia, entoou as palavras: Eu vi os expoentes de minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus, arrastando-se pelas ruas do b